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TEDSON SILVA SOUZA FAZER BANHEIRÃO ESTAÇÃO LAPA

Dissertação Tedson da Silva Souza

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANASPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIACURSO DE MESTRADO EM ANTROPOLOGIA<strong>TEDSON</strong> DA <strong>SILVA</strong> <strong>SOUZA</strong><strong>FAZER</strong> <strong>BANHEIRÃO</strong>:AS DINÂMICAS DAS INTERAÇÕES HOMOERÓTICAS NOSSANITÁRIOS PÚBLICOS DA <strong>ESTAÇÃO</strong> DA <strong>LAPA</strong> E ADJACÊNCIASSalvador2012


<strong>TEDSON</strong> DA <strong>SILVA</strong> <strong>SOUZA</strong><strong>FAZER</strong> <strong>BANHEIRÃO</strong>:AS DINÂMICAS DAS INTERAÇÕES HOMOERÓTICAS NOSSANITÁRIOS PÚBLICOS DA <strong>ESTAÇÃO</strong> DA <strong>LAPA</strong> E ADJACÊNCIASDissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduaçãoem Antropologia, da Faculdade de Filosofia e CiênciasHumanas, da Universidade Federal da Bahia, comorequisito parcial à obtenção do grau de Mestre emAntropologia.Orientador: Prof. Dr. Edward John Baptista das NevesMacRaeSalvador2012


3AGRADECIMENTOSAo meu orientador Edward MacRae que me adotou como um filho.A Minha Mãe, Terezinha, que esteve presente nas horas mais difíceis, compreendendo eapoiando todas as minhas escolhas..A Minha avó Lindaura (in memorian).Ao amigo Ari Sacramento, pelas orientações e pela confiança no meu trabalho.A Ton Israel pelas leituras, revisões e dicas.A Osmundo Pinho pelas aulas de África Antropológica e pelas indicaçõesbibliográficas, tão importantes para a construção do referencial teórico deste trabalho.A todos os colegas, professores e funcionários do PPGA/UFBA.Aos amigos Maurício Tavares, Rafael Abreu e Silvana Oliveira, sempre presentes emmomentos de descontração e de desabafo.A todos os participantes da pesquisa, que me contaram suas histórias.A Ranieri Souza pela compreensão e disponibilidade nessa reta final.A CAPES, pelo financiamento parcial, com apenas 17 meses de bolsa de estudos.


RESUMOAs pesquisas de sexualidade in loco são bastante insólitas no campo da Antropologia eessa situação se agrava quando as variáveis homossexualidade, raça e gênero sãotomadas para compreender as interações sexuais entre homens nos espaços públicos dasgrandes cidades. A fim de compreender tal dinâmica, procedo, através de umaabordagem autoetnográfica, uma investigação das práticas de “pegação” em banheirospúblicos masculinos da Estação da Lapa – maior terminal de ônibus urbano de Salvador– e adjacências. Como não se trata de um objeto tradicional da Antropologia(“comunidade X ou Y”), tomo como objeto a deriva urbana da pegação no Centro daCidade por onde transitam sujeitos que praticam sexo ocasional e não comercial entrehomens, nas negociações e consórcios episódicos tecidos no – e no entorno do –“banheirão”. Percebo que, para além de um simples terminal com um sanitário, aEstação da Lapa é ressignificada como espaço de práticas sexuais de desejosdissidentes, na direção de interesses tão diversificados quantos são os sujeitos queinteragem na cena e que só são reunidos aqui pelo traço em comum dos desejos,diversificadamente, homo-orientados.Palavras-chave: Homossexualidade Masculina. Gênero. Raça. Corpo. Narrativaspessoais. Autoetnografias.


5ABSTRACTIn loco research into sexuality is very unusual in anthropology and it is even lesscommon to take into account variables like homosexuality, race and gender in order tounderstand sexual interaction among men in public areas of big cities. In order tounderstand such a dynamics, I have undertaken an autoetnography, an investigation of“cruising “ practices in male public conveniences in the Lapa station- the biggest urbanbus terminal in Salvador, where there is a transit of subjects who practice occasionaland non-commercial sex among men. Studying the negotiations and episodicconjunctions occurring in and in the vicinities of the public convenience, I notice thatthe terminal is resignified as a space for sexual practices of dissident desires, inaccordance with interests as diverse as are the subjects who interact in the scene andwho are only united by their common desires of a diversified homosexual nature.Key words: Male Homosexuality. Gender. Race. Body. Personal narratives.Autoetnography


LISTA DE FIGURASFigura 1 Pegação com sigilo – Salvador 67Figura 2 Post Clube do Banheiro – SSA 68Figura 3 Pegação no Orkut 70Figura 4 Perfil Disponível.com 72Figura 5 Clube do Banheiro – SSA 79Figura 6 Escada do SSA SHOPPING 81Figura 7 O caso Jão Vitor 83Figura 8 Chat no Facebook 99


SUMÁRIOINTRODUÇÃO 8A SUBJETIVIDADE ERÓTICA DO ANTROPÓLOGO EM CAMPO 9UMA NARRATIVA DE SI COM PERSPECTIVAS DIALÓGICAS 131INÍCIO DE CONVERSA: TEMÁTICA, SEXUALIDADES DISSIDENTES E O OBJETO DEESTUDO1.1 A “GANG BANG” NO SANITÁRIO DA <strong>ESTAÇÃO</strong> 161.2 A <strong>LAPA</strong>: UM TERRITÓRIO MARGINAL 231.3 PERCURSO ETNOGRÁFICO 261.4 SEXO E ESPAÇOS PÚBLICOS 291.5 O “<strong>BANHEIRÃO</strong>” COMO LOCAL DA PRÁTICA SEXUAL HOMO-ORIENTADA 37162EROTICIDADES HETEROSSEXUAIS MASCULINAS: TENSÕES EM TORNO DO MODELOHEGEMÔNICO2.1 A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E AS HOMOSSEXUALIDADES BRASILEIRAS 432.2O “HETEROSSEXUAL PASSIVO” E OUTRAS HETEROSSEXUALIDADES FLEXÍVEIS EMCAMPO2.3 O JOGO DAS HETEROSSEXUALIDADES FLEXÍVEIS 552.3.1A SACANAGEM – “TODO MUNDO FAZ” – “POR DEBAIXO DO PANO TUDO PODE56ACONTECER”2.4 “DESCARTO AFEMINADOS”: ENTRE O CIBERESPAÇO E A RUA 65424833.1UM NEGÃO DESSE... VIADO! : RAÇA, GÊNERO, SEXUALIDADES E TENSÕES NAPEGAÇÃO DA <strong>ESTAÇÃO</strong> DA <strong>LAPA</strong>O CASO ZUMBI DOS PALMARES E AS TENSÕES ENTRE MOVIMENTOS NEGRO, LGBT E O“MEIO HOMOSSEXUAL”3.2 “DIGA PRA ELE QUE VOCÊ ME CONHECE E QUE EU NÃO SOU LADRÃO” 973.3 O SURFISTINHA DE OLHOS AZUIS E A CAIXINHA DE NATAL 10277864 CONSIDERAÇÕES FINAIS 104REFERÊNCIAS 107ANEXOS


8INTRODUÇÃONas últimas décadas, a Antropologia Social abriu-se para o estudo das culturasde grupos sociais urbanos e começou a fazer uma espécie de “antropologia de nósmesmos”. Com isso, pesquisadores que muitas vezes se auto-identificam com minoriascomo mulheres, gays e negros colocaram questões referentes a sexualidades dissidentesna pauta de pesquisa das Ciências Sociais. A inclusão desses novos campos de pesquisademandou a criação de uma nova metodologia para a construção da etnografia, quelevasse em conta o autobiográfico e empregasse uma nova concepção para o conceito desubjetividade. Além disso, precisava ser construída de maneira dialógica através de umaescrita capaz de revelar diferentes vozes culturais. Desse modo, a subjetividade passa aser construída de forma transpessoal, estabelecendo uma relação entre memória pessoale memória coletiva.Diante dessa conjuntura, achei necessária a escrita de um texto autoetnográfico,em que a posição do pesquisador diante do objeto fosse explicitada. Esta dissertação foiconstruída por mim, homem negro, morador do Subúrbio Ferroviário de Salvador,assumidamente homossexual e adepto da deriva urbana e da “pegação” em banheirospúblicos. Logo, esse relato não é apenas sobre a vida sexual de “outros” homens quebuscam interações sexuais em banheiros, e, sim, sobre uma reunião de relatosautobiográficos, observações participantes e depoimentos de homens que partilham damesma prática.Por isso, o objetivo desta dissertação é configurar, através de uma abordagem(auto)etnográfica, as interações em banheiros públicos masculinos da Estação da Lapa –maior terminal de ônibus urbano de Salvador e adjacências, isto é, os trânsitos dessessujeitos que praticam sexo ocasional e não comercial entre homens, nas negociações econsórcios episódicos tecidos no, e no entorno do, “banheirão”.É necessário ainda asseverar que este estudo não é sobre uma comunidade ou umgrupo homogêneo, mas sobre a prática da “pegação” (caracterizada como breve,impessoal e, na maioria dos casos, não mediada por palavra) e os sujeitos que por elatransitam e operacionalizam a cena. Por isso, diante de toda a dinâmica, diversidade einteratividade do objeto, foi impossível a adoção de uma postura metodológica rígida decaráter homogeneizador. Desse modo, a imersão do sujeito pesquisador na derivahomoerótica que atravessa e demarca, erótica e sexualmente, os sanitários públicos


9masculinos da Estação da Lapa, Shopping Piedade e Shopping Center Lapa darão orumo ao relato que foi construído através de observação participante da cena e dascoletas de dados, a saber: observações livres (em que foi feito um percurso nosbanheiros de pegação, colhendo, meticulosamente, impressões, descrições e cenas),entrevistas itinerantes (em que, inserido na cena, o pesquisador fez contato verbal comos partícipes) e, por fim, entrevistas profundas (em que há maior interação entre oentrevistador e o entrevistado) (PERLONGER, 2008).A SUBJETIVIDADE ERÓTICA DO ANTROPÓLOGO EM CAMPONo final do século XIX e início do século XX, a Antropologia foi fundada sobreprincípios positivistas e, no intuito de ser reconhecida como ciência, pretendeu adotar,como parâmetro para coleta de dados, os padrões de objetividade e neutralidadecaracterísticos da matemática e das ciências exatas. O objetivo do trabalho doantropólogo – que, naqueles tempos, geralmente, era branco, homem, heterossexual,europeu ou estadunidense – consistia, em geral, em etnografar o cotidiano de povosdistantes do dele em colônias conquistadas pelas Expedições Européias, nas “exóticas”e desconhecidas América, África, Ásia e Oceania. Mas, apesar de todas as distâncias edivergências, para ser bem sucedido em campo, era necessário que este pesquisadorfizesse uma espécie de imersão nos costumes desses “outros”, vivenciando a dinâmicasocial desses povos. Estava estabelecida a tensão entre tornar-se amigo, conquistar aconfiança dos “informantes” e, consequentemente, estar “contaminado” pelos impactosemocionais provocados pelas situações vividas em campo e a busca pela “isenção” eobjetividade científicas modeladas nas “ciências duras”.Embora não exista uma espécie de código de conduta em que se explicite atéonde o pesquisador deve ir em relação aos contatos com os seus informantes, observaseque interações mais íntimas, a exemplo de interações afetivas com os informantes,não são bem avaliadas no seio das discussões no âmbito das ciências sociais.Um caso bastante conhecido que até hoje levanta questionamentos sobre oenvolvimento sexual do etnógrafo em campo é o de Malinowvki, considerado o pai daAntropologia Moderna. Ele foi o primeiro antropólogo a pensar em etnografia densa,pois seus escritos traziam análises minuciosas, sistemáticas e detalhadas dos povosestudados. Apesar de expedições etnográficas serem muito comuns antes de sua atuação


10como pesquisador, ele ganha notabilidade por “inventar” o método da observaçãoparticipante que consistia em conviver longamente com a comunidade pesquisada,participar de suas atividades, aprender sua língua para, prescindindo da ajuda deintérpretes e registro de dados feito de forma distante e formal, poder familiarizar-secom o que antes fora estranho ao pesquisador. Em suas pesquisas nas Ilhas Trobriand,Malinowvski (1983 [1929]) estuda a sexualidade dos nativos, escrevendo notas decampo com vários recortes que, naturalmente, dada a amplitude e densidade dos dadoscoletados em relação ao que, de fato, é tratado na análise constante de um relatório doestudo feito, não se tornaram públicos enquanto o autor vivia. Em 1967, entretanto, foipublicado o diário pessoal de Malinowski sob o título de Um diário no sentido estritodo termo, em que o antropólogo confessa ter sentido desejo sexual em campo,masturbar-se e até mesmo manter relações sexuais com os nativos. A partir dessapublicação, o tema da sexualidade do pesquisador, tópico que não era até então citadoem seus escritos, nem nos de outros antropólogos, tornou-se também objeto de crítica,contestação, mas também, por outro lado, validação como dado de análise em pesquisa.A subjetividade sexual do pesquisador é trazida, assim, para o centro da discussão sobrea inquirição em Antropologia, sendo, então, a “reflexividade e a subjetividade”(STRATHERN, 2004), em sua acepção mais íntima e profunda, discutidas como dadode campo.É fato que a sexualidade sempre esteve presente nas pesquisas antropológicas(BRAZ, 2010). Através da sexualidade, era possível estabelecer as fronteiras entre“nós” (pesquisadores) e “eles” (pesquisados), porque, nos relatos de pesquisa, asexualidade era sempre vista como exótica, distante, estranhada – a sexualidade dooutro. A questão foi tradicionalmente abordada na busca pelo entendimento de como sedão as relações de parentesco na configuração das comunidades. Vários antropólogosNewton (1993), Kulick (1995), entre ouros começaram a questionar essa perspectiva deestudos da sexualidade, porque tal perspectiva tinha como objetivo e/ou efeito aumentara distância entre pesquisador e pesquisado, colocando a sexualidade dentro de padrõeseuro-americanos. Assim, a sexualidade do outro (não branco, não europeu) era muitasvezes classificadas como doentia, patológica, categorizando, desse modo, o sujeitopesquisado como inferior, exótico, selvagem.Embora o tema da sexualidade estivesse sempre presente nas análises euroamericanas,essas pesquisas tendiam à patologiazação da sexualidade dos outros. Há,


11assim, alguns pesquisadores (TORGOVINICK, 1990; KULICK, 1995, dentre outros)que sugerem a abordagem também da sexualidade do antropólogo in loco. Kulick(1995) questiona o silêncio sobre a sexualidade do pesquisador em campo tratando dosproblemas decorrentes do silenciamento da sexualidade da antropologia como forma demanutenção do pacto da diferença irreconciliável entre nós e eles.Ao abordar questões relativas a relações de poder em pesquisa, Cardoso (1996)diz que, tradicionalmente, a Antropologia tratava de contextos distantes e inferiorizados.Posteriormente, começam a ser estudadas sociedades mais próximas, porém ainda emestado de pauperização. Há, nessa relação, o suposto problema do envolvimento doantropólogo com o participante, possivelmente com o intuito de este engajar-se em umabarganha de política pública. No caso da pesquisa sobre sexualidade, em que háenvolvimento sexual, quando há esta disparidade entre etnógrafo e etnografado, asexualidade pode figurar como moeda de troca, barganha, exercício de poder.Kulick (1995) ressalta que, em estudos com grupos desprivilegiadossocialmente, o envolvimento sexual entre pesquisador e pesquisado tem sido visto comouma forma de operação do poder na qual os sujeitos são postos em uma posiçãohierárquica mais baixa. Ainda segundo o autor, esse estabelecimento de relações depoder está pautado em um modelo de construção de sexualidades ocidentais embasadana tríade raça, sexo e gênero.Um exemplo prático, e numa perspectiva invertida, aconteceu no Brasil noestudo de Rojo (2004), que se envolve com uma das participantes de seu estudo,praticante de naturismo. Ela era professora universitária, psicóloga, entretanto – comoalega Rojo – não mantinha nenhum domínio sobre a participante, nem nenhumproblema provocado pelo envolvimento sexual. Nesse caso, o domínio a partir do fatoreconômico não existe.Em todo caso, tradicionalmente, quando se trata de sexualidade, a abordagemera sempre in absentia, sempre se discutindo o outro, da terceira pessoa de quem se fala.A consideração da sexualidade do pesquisador in loco, em Antropologia, tem seu iníciomais representativo no caso Humphreys (1975), que faz uma pesquisa sociológica nofinal da década de 1960 nos Estados Unidos. O sociólogo pesquisou as tearoom trade –termo que se refere a “atividades sexuais entre homens em um banheiro público”(NARDI, 1999) – em campo, observando e atuando muitas vezes como “bicha vigia”,“tomando conta” do banheiro para que seus usuários engajassem em práticas sexuais


12(HUMPHREYS, 1975). A pesquisa foi publicada em 1970 e o pesquisador nela declaraque, para conseguir as informações, muitas vezes disfarçou-se de funcionário dogoverno e adentrou os lares desses homens com intuito de aplicar questionários eentrevistas sobre a vida de cada um. Consequentemente, apesar da importância de seusestudos, esse pesquisador foi visto como personna non grata em antropologia por suacriticada (falta de) ética. Entretanto, Nardi (1999) tenta resgatar a importância dotrabalho de Humphreys por este sugerir a mudança de abordagem metodológica porfazer pesquisa in loco sobre sexualidade nesta ciência.Em Cuerpo, parentesco y poder, ao responder ao que é um ato sexual naspesquisas que fizera, Godelier (2000) afirma que[p]arece que quando lhes é pedido para definir o que para eles significa umato sexual, de acordo com a sua experiência, antropólogos e psicanalistas seencontram em situação distinta, ainda que, de certa forma, similar. Porquenenhum deles costuma observar diretamente atos sexuais durante o exercíciode sua profissão. À primeira vista, o que parecem experimentar é a formacomo as pessoas falam ou não a respeito. (GODELIER, 2000, p. 173, apudDÍAZ-BENÍTEZ, 2010, p. 21).Na perspectiva do presente estudo, a citação de Godelier talvez seja bastantepertinente no sentido de ajudar a entender como a metodologia antropológica tem,tradicionalmente, possibilitado que se estudem os discursos sobre as práticas sexuais, enão as práticas propriamente ditas. Nesse sentido é que a contribuição desse marxista sefaz presente, já que questiona os métodos tradicionalmente utilizados em Antropologiana abordagem do objeto de estudo.Godelier questiona a falta de trabalhos etnográficos e de psicologia sobresexualidade in loco e chega a afirmar que antropólogos e psicólogos conhecem somentediscursos sobre sexualidade, não sabendo, especificamente, da prática sexual dosparticipantes em virtude da busca pelo distanciamento entre pesquisador e pesquisados,tão caro à ciência positivista. Porém, Díaz-Benítez (2010) o critica por evitar o contatocom os humanos e estudar a sexualidade de “entidades” das comunidades. Apesquisadora atenta para o fato de que “O próprio Godelier pesquisou entre os baruya,de Papua Nova Guiné, outro tipo de atos sexuais – aqueles que acontecem naimaginação e sem manifestações corporais visíveis” (DÍAZ-BENÍTEZ, 2010, p. 22).Em uma pequena busca no portal da Capes, notei que ainda é muito pequeno onúmero de trabalhos sobre a sexualidade in loco, sobre erotismo e prazer sexual nasCiências Humanas e Sociais do Brasil. A heterogeneidade dos nomes dos trabalhos


13impossibilitou que eu os quantificasse, pois a busca via web tornou-se bastante difícil.Pude notar, através das leituras de Parker (1999) (e, mais especificamente nos estudosempreendidos por Braz (2010) que realiza esse levantamento no âmbito do grupo depesquisa que integra o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos(CLAM)) que o número de pesquisas sobre a sexualidade é um pouco maior quando ofoco é a “sexualidade e juventude” e “sexualidades em tempos de Aids ou naprostituição”.Nas últimas décadas, levantei através da internet as etnografias de Gaspar Neto(2008), Díaz-Benítez (2010), Braz (2010), Costa Neto (2005) e Vale (2000) quetrabalham com observação de práticas sexuais in loco. A dissertação de mestrado emAntropologia pela Universidade Federal Fluminense de Gaspar Neto (2008), intituladaNa Pegação: encontros homoeróticos em Juiz de Fora e a de Costa Neto (2005), queretrata a pegação nos banheiros da UFRN, intitulada Banheiros Públicos: os bastidoresdas práticas sexuais, versam sobre objetos muito parecidos com o meu, pois tratam depegação homoerótica em lugares públicos ou semi-públicos.Diferente desta dissertação, nenhum dos trabalhos citados acima é um relatoautoetnográfico, todos os pesquisadores optaram por deixar claro que não eram adeptosdas práticas sexuais etnografadas.UMA NARRATIVA DE SI COM PERSPECTIVAS DIALÓGICASOs relatos das minhas experiências de interação sexual nos sanitários públicos eescadas da Estação da Lapa são o ponto de partida para a realização deste estudoautoetnográfico. Ao escrever sobre autoetnografia, Versiani (2005) enxerga essamodalidade de texto como uma alternativa de construção de uma subjetividade atravésde processos dialógicos, que possibilitam dar vozes e visibilidade a “minorias” por meiode textos de cunho autobiográficos. Ao dialogar com Watson (1993) e Clifford (1998),ele atenta para a necessidade da negociação construtiva do texto, privilegiando apolifonia das vozes. Clifford se refere “à não negação da experiência pessoal e,principalmente, à explicitação do ‘contexto performativo imediato’ no qual ocorre arelação interpessoal entre etnógrafo e etnografado como pressuposto básico daconstrução da própria etnografia” (VERSIANI, 2005, p. 84).Gostaria de explicitar que, neste trabalho, descarto o distanciamento do objetopregado, tradicionalmente, como pressuposto indispensável para a realização do


14trabalho de campo. Eu sou, ao mesmo tempo, produtor de conhecimento e objetoetnografado e entendo que seria um equívoco metodológico falar aqui em terceirapessoa, pois este trabalho não é, e não pretende, ser a interpretação de uma realidadedistante. O outro que encontrei no campo é muito parecido comigo e o diálogoconstruído no decorrer do texto é intersubjetivo.Em Sexo público, Lauren Berlant e Michael Warner (2002) refletem sobre acultura sexual hegemônica que insiste em separar a vida pessoal da vida pública,destinando tudo relacionado às questões de sexualidade ao âmbito da intimidadepessoal. É através dessa estratégia que a heteronormatividade 1 impera, impossibilitandoa construção de novas culturas sexuais não normativas ou explicitamente públicas.É exatamente a partir da necessidade de um olhar que se desloca das díadeshomossexualidade/heterossexualidade, norma/desvio, regra/exceção, centro/margemque esta pesquisa mostra-se de extrema relevância. O texto problematiza as explicaçõesacerca das relações entre homens com desejos homo-orientados e de seu exercício emespaços públicos; uma vez que, os discursos da cultura sexual normativadescontextualizam as circunstâncias nas quais os encontros entre gays, bissexuais,transgêneros e homens-que-fazem-sexo-com-homem (HSH) em sanitários públicossão/foram possíveis em nome de uma narrativa de coerção estética dos usos dos corpos.Lancei olhares, que evitam psicologizar e patologizar a questão do sexo públicoe dessa forma discutir tais relações nos espaços urbanos nos quais há a alternativa de sepoder ser anônimo em meio ao público.Assim, nesta dissertação, o leitor encontrará logo no primeiro capítulo um relatode uma das minhas idas a campo. Esse posicionamento foi escolhido para que o leitorpudesse começar seu percurso pelo texto, criando imagens desse objeto de enormeheterogeneidade que é a “pegação no banheiro da Estação da Lapa e adjacências”. Essaparte do trabalho dedica-se a apresentar o histórico de como o presente estudo seconfigurou.1 Por heteronormatividade, entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelocasamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família (esquema pai-mãefilho(a)(s)).Naesteira das implicações da aludida palavra, tem-se o heterossexismo compulsório, sendoque, por esse último termo, entende-se o imperativo inquestionado e inquestionável por parte de todos osmembros da sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às práticas heterossexuais (FOSTER,2001, p. 19).


15No capítulo 2, problematizarei o modelo de masculinidade hegemônica presenteno imaginário brasileiro. O objetivo é discutir outros modelos de eroticidadeheterossexual masculina permissíveis na prática do “banheirão”. Os relatos de campoilustram identidades de homens que se auto-definem como heterossexuais, mas cujaspráticas alteram, de certo modo, a matriz heterossexual hegemônica, fugindo do que seconvencionou permissível para um “macho” dentro da conjuntura social brasileira.Lançarei o meu olhar para essas heterossexualidades periféricas e, para isso, também énecessário discutir qual o discurso que regula a eroticidade heterossexual hegemônica,isto é, o que é ser um “homem de verdade” no Brasil? Na última seção, discutirei ahierarquia que se construiu tomando como topo o modelo hegemonizado e como base aostensiva repulsa em relação aos afeminados.Por fim, no capítulo 3, através dos relatos etnográficos, tratarei das relaçõesentre negritude e sexualidade na Cena da Pegação da Estação da Lapa, um lugarconsiderado marginal. Para isso, trabalharemos com discursos sobre as identidades dohomem negro e a relação entre conceitos como sujeira versus limpeza, belo versus feiodentro desse território de deriva sexual.


161 INÍCIO DE CONVERSA: TEMÁTICA, SEXUALIDADES DISSIDENTES E OOBJETO DE ESTUDOEste capítulo terá início com um relato de uma das minhas idas a campo. Esseposicionamento foi escolhido para que o leitor pudesse começar o percurso pelo texto,criando na mente retratos desse objeto de heterogeneidade tamanha que é a “pegação nobanheiro da Estação da Lapa e adjacências”. Entendo por “adjacências” os sanitários eescadas de emergência dos shoppings Piedade e Center Lapa. Esta parte do trabalhodedica-se a apresentar o histórico de como o presente estudo se configurou. Assim, apóssituar o leitor acerca da escolha do tema, apresento o objetivo da pesquisa e as perguntasde pesquisa. Em seguida, discuto de forma panorâmica a visão de alguns autores notocante à prática sexual homo-orientada em contextos públicos e privados, além detratar da escolha do macro-território e da microterritorialidade (o “banheirão” comocontexto de vivências homoeróticas consideradas dissidentes) em que o registro dedados se deu.1.1 A “GANG BANG 2 “ NO SANITÁRIO DA <strong>ESTAÇÃO</strong>Eram quase 22h de uma terça-feira do mês de maio. Após assistir a uma sessãode filmes LGBT no Complexo Cultural da Caixa Econômica, localizado na Rua CarlosGomes, atravessei a Avenida Sete de Setembro e segui pela Praça da Piedade. Noentorno da Praça, já se encontravam alguns garotos a procura de clientes na noite doCentro de Salvador, que se esvaziava. Confesso nunca ter conseguido estimar a idadedesses meninos que fisicamente são raquíticos e, por conta do tipo franzino, aparentamter menos idade do que tem. Certo dia, numa dessas idas e vindas pelo Centro, quandovoltava de um show no Âncora do Marujo 3 , conversei com um deles. O garotoaparentava uns 16 anos e me abordou oferecendo serviços. Daniel cobrava R$50 por um“boquete” 4 . Esse valor baixou gradativamente para R$40, R$30 e parou em R$5,2 É um dos principais gêneros de sexo explícito, muito requisitado pelos fãs do cinema pornô. Écaracterizado por cenas de sexo entre uma pessoa e várias outras em um curto espaço de tempo.Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gang_bang em: 21/10/20113 Bar tradicional do baixo gay soteropolitano, palco para shows de transformistas, situado na Rua CarlosGomes4 O mesmo que sexo oral ou felação - prática sexual que consiste em acariciar o pênis do parceiro com aboca, a língua ou ainda a garganta.


17quando eu disse não estar interessado. Para minha surpresa, o garoto magro que trajavashort, camisa e boné Adidas e uma corrente de prata no pescoço, informou ter 23 anos.Após passar pela Praça, acompanhei o grande fluxo de trabalhadores dosshoppings Center Lapa e Piedade, de estudantes de escolas públicas, cursos técnicosprofissionalizantes e faculdades da região. Todos seguiam apressadamente pela“Ladeira do Camelô” em direção à Estação da Lapa – maior terminal de ônibus dacidade.Na noite daquela terça-feira, ao chegar ao pavimento superior 5 da Estação daLapa, fui direto ao sanitário masculino. Ao adentrar o recinto, sujo, mal cheiroso (éindispensável lembrar o cheiro fétido, que mistura o ardor da uréia ao péssimo cheirodas fezes espalhadas pelos cantos) e com um dos dois mictórios de inox quebrado eisolado, segui em direção ao mictório dos fundos e acabei sendo surpreendido: oequipamento, com vazamentos que permitia que a urina caísse sobre os pés dosusuários, estava totalmente ocupado e oito homens espremiam-se e masturbavam-se umao lado do outro. Notei também que mais outros seis exibiam, discretamente, os pênisem frente ao espelho e tentavam disfarçar fingindo estar penteando o cabelo ou lavandoas mãos em pias, cujas torneiras haviam sido arrancadas. A estratégia deles era, aoperceber que estavam sendo observados por outros homens com desejo homo-orientado,colocar o pênis para fora das cuecas rapidamente, mostrar e esconder em seguida,deixando apenas à mostra a excitação através do volume das bermudas e calças.Eles eram de todas as idades, comerciários, rodoviários e estudantes, alguns defarda, um trajava o uniforme do Colégio Estadual Senhor do Bonfim, situado nosBarris, outro era rodoviário e vestia a farda da empresa Litoral Norte e ainda tinha umjovem com a farda de uma casa de material elétrico localizada no bairro da Calçada.Fiquei olhando aquela cena excitante e, como o mictório estava cheio, eu não podia“estacionar” 6 como os demais e me contentei em observar a cena a alguns metros de5 No pavimento superior da estação da Lapa, ficam localizados um dos postos de recarga e revalidação docartão de meia passagem estudantil, dezoito lojas e dezesseis boxes (dentre elas um sebo e diversaslanchonetes que vendem cachorro quente e suco), telefones públicos (a maioria com defeito) e muitosambulantes vendendo desde comida e produtos eletroeletrônicos a cartões de recarga para celular.6 Os adeptos da pegação utilizam a palavra estacionar para reclamar quando alguém para no mictório,finge estar urinando e não sai mais, passando horas ocupando o espaço. Geralmente, quem “estaciona” nomictório acaba despertando suspeita dos seguranças e dos auxiliares de serviço gerais do banheiro efazem com que eles comentem em alto e bom tom “Aquele viado estacionou no mictório olhando o cacetedos outros”.


18distância. De repente, o jovem mais cobiçado no momento por trazer consigo ascaracterísticas que compõem o tipo “moleque” (rapaz negro, másculo, utilizandobermuda da Mahalo 7 , camiseta regata preta e boné) – um dos tipos mais viris e valiososdaquele contexto – agarrou o pênis do homem ao lado, um senhor negro retinto, cercade 1,70m de altura, magro, aparentando entre 45 e 50 anos, cabelos curtos grisalhos, devestimenta discreta (trajava camisa social de manga comprida azul e calça social detergal, figurando como um pastor de igreja neopentencostal). Era mais um homemcomum no meio da multidão, mas que tinha uma “ferramenta” que aumentava o seupoder de sedução, um pênis descomunal, aparentando de medir entre 22cm e 25cm.Eu já conhecia esse “negão” de outras “pegações” na Estação da Lapa e nosbanheiros do Shopping Piedade, Center Lapa e da Estação Iguatemi, mas o que me fazialembrar dele era o relato de um colega de trabalho, considerado bonito por estar dentrodos padrões de beleza nacional – ser um “moreno jambo”, no degradê de cores daBahia, ter 1,90m, 27 anos e um sorriso avassalador. Lembro “João” 8 dizer que “aquelenegão crente é feio, mas eu não resisto à pica dele, abaixo e chupo onde estiver, masuma vez no banheiro da Estação Iguatemi ele tirou onda comigo e não deixou”.E a “pegação” continuava. O jovem atraente de bermuda Mahalo se curvou,ficou de joelhos e começou a chupar o enorme pênis do “negão”. A atitude do rapaz foia senha para que eu e os demais homens, que observavam de longe, cheios de desejo,nos sentíssemos a vontade para nos aproximar. Uma semi-roda com cerca de dozehomens se formou em volta dos dois, o rapaz sugava sem parar o pênis preto, cheio deveias e com uma mancha branca entre a glande e o prepúcio que aparentava ser umalesão por Vitiligo. Em seguida, pênis de todas as cores e tamanhos brotaram das calças ecomeçou um “chupa-chupa”, um “pega-pega” generalizado.Outras rodas se formaram pelo sanitário, perdi a conta dos homens que semasturbavam e se chupavam mutuamente. Alguns, certamente, voltavam de uma noiteregada a muita cerveja e cravinho na tradicional Terça da Benção no Pelourinho e,quando iam urinar, se deparavam com uma cena digna de gang bang pornô gay einteragiam, outros bradavam coisas como “Isso aqui tá foda!! Esse rebanho de viadofica fodendo aqui, depois quando morre acha ruim!”, “É uma sacanagem da porra, com7 Grife de moda Surf Wear muito popular na Bahia. Uma das preferidas dos “moleques” da periferia,vendedores de picolé, engraxates, guardadores de carros, por isso, usar Mahalo é indicador de virilidade emasculinidade.8 Todos os nomes de informantes citados são fictícios.


19tanto hotel baratinho os filhas da puta ficam nessa putaria e ninguém pode mijar”. Emsituações cotidianas, toda vez que um desavisado ou um não receptivo reclamava, faziaseuma pausa brusca nas interações e o contingente desejante se dispersava. Algunsparavam em frente ao espelho e fingiam pentear o cabelo, outros tentavam esconder aereção. Existiam aqueles que “davam um tempo” e deixavam o sanitário por algunsminutos, mas voltavam na maioria das vezes. No entanto, o clima daquela noite erapropício para uma postura diferenciada, com a falta de vigilância na Estação da Lapa,que, naquele horário, não tinha segurança, guardas municipais, policiais militares oumesmo o auxiliar de serviços gerais, o que fazia com que aqueles adeptos do sexoanônimo se sentissem menos temerosos. Outro fator que considero determinante é areunião de muitos homens em busca de prazer no mesmo espaço. Talvez isso tenhacoibido a prática de violência física pelos usuários do sanitário público que se sentiramincomodados com a prática.E as interações continuavam no “banheirão” da Lapa, alguns pênis“esporravam 9 “, os que queriam penetrar e serem penetrados se apropriavam da portainterditada dos fundos onde se dividia espaço com grandes ratos. O lugar maliluminado, mal cheiroso, cheio de fezes e urina espalhados pelo chão e paredes, eraisolado por um madeirite. Ali naquele quadrado improvisado – que funcionava comoum dark room 10 – era permitido todo tipo de interação e, principalmente, a penetração,raramente concretizada no meio dos sanitários na frente dos outros participantes.Cada vez mais, as interações se intensificavam e vários homens chegavam aoclímax. O “negão bem dotado” ejaculou no rosto do rapaz da bermuda Mahalo. Com orosto todo sujo de “gala 11 “, ele se deparou com as limitações causadas pela degradaçãoda estrutura física do sanitário da Estação da Lapa. Ao dirigir-se à pia para lavar o rosto,9 Fiz opção por utilizar o termo nativo. O mesmo que ejacular, atingir o orgasmo, ou para empregar umvocabulário mais popular “gozar”10 (do inglês, quarto escuro, também designado por backroom ou blackroom) é um quarto ou sala comiluminação muito baixa ou totalmente escura que existe em alguns bares ou saunas. A finalidade do darkroom é propiciar atividade erótica ou sexual entre os presentes que é quase anônima por causa daescuridão, e por isso pode ajudar reduzir as inibições das pessoas. Dark rooms começaram aparecer nosEstados Unidos nos anos 70 em boates gays. Hoje em dia, também há dark rooms em estabelecimentosvoltados ao público heterossexual. Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Darkroom em: 29/11/201111 Optei usar aqui novamente o termo nativo. Nos dicionários de língua portuguesa, a palavra galasignifica grande festa, geralmente de caráter oficial: noite de gala; uniforme de gala. Mas em Salvador e,em outras cidades do nordeste como Aracaju, Fortaleza e Recife, o termo foi ressignificado e substitui“porra” – palavra considerada de baixo calão por no resto do país ser sinônimo de esperma, mas que entreos soteropolitanos é muito utilizada para designar espanto, admiração, aborrecimento, elogio e para fazerpausas em discursos informais. Na capital da Bahia, a palavra “gala” é, massivamente, utilizada para sereferir ao sêmen.


20não encontrou torneiras, pois todas haviam sido arrancadas. A única alternativa para aassepsia do rosto foi a abertura das torneiras do mictório, que estavam fechadas, poiscomo já relatei anteriormente, o equipamento tinha um furo e derramava urina sobre ospés dos usuários. Mesmo após a ejaculação cinematográfica do negão “desmarcado” 12 ,a “pegação” continuava com muito fôlego.Os espectadores de filmes pornôs 13 sabem do poder da ejaculação nesse gênero.Ela é o momento do ápice de uma relação sexual e o fato de ser registrada com riquezade detalhes ao espectador é requisito indispensável para que o filme seja considerado deboa qualidade. Enquanto homens saciados e satisfeitos com seus gozos, ou com o prazerde terem presenciado uma ejaculação digna de uma produção pornô, deixam o sanitário,outros sedentos por prazer interagiam formando novos círculos para desfrutar da libidode forma proibida em outros espaços.É indispensável registrar que a proximidade da meia-noite – horário de partidada maioria dos últimos ônibus para bairros mais distantes como os localizados noSubúrbio Ferroviário ou em Cajazeiras e cidades da Região Metropolitana – fazia comque muitos daqueles homens acelerassem o passo desesperadamente. Alguns chegavama dizer: “tenho que gozar logo, senão eu perco o buzu”. Poucos eram os que, como eu,tinham a coragem de ficar à mercê dos ônibus pernoites, no meu caso, depois das 23h.Eu tinha a opção de pegar um ônibus à 1h da madrugada ou às 3h30. Outra opção paravoltar para minha residência, localizada no bairro de Paripe, seria uma das Kombis que,porventura, faziam transporte clandestino durante a madrugada na Estação da Lapa. Ofator financeiro representava um complicador para quem desejava voltar para casautilizando essa modalidade de transporte, pois nem todos podiam pagar pela Kombi, jáque a maioria dos adeptos da “pegação” naquele sanitário é formada por estudantes etrabalhadores que utilizavam o cartão Salvador Card 14 e não dispunham de dinheiro emespécie.Com o esvaziamento, apenas um grupo bem menor, de seis homens, continuavaas interações homoeróticas. Essa diminuição de adeptos os tornou mais suscetíveis à12Optei por utilizar o termo nativo, bastante utilizado em Salvador e Região Metropolitana.“Desmarcado” nesse contexto refere-se ao fato de ele possuir um pênis considerado descompensado,desmesurado, enorme. A palavra é sinônima de “pauzudo”.13 Para mais informações sobre o cinema pornô no Brasil ver (ABREU, 1996) e (DÍAZ-BENÍTEZ, 2010)14 Cartão de passe estudantil ou de vale transporte eletrônico pré-pago. Geralmente o usuário recarrega ocartão previamente no início do mês. Ele não é aceito nas Kombis clandestinas, pois elas estão fora dosistema oficial de transporte coletivo da cidade.


21ação dos “sacizeiros 15 “. Quatro dos homens praticavam uma masturbação coletiva erecíproca no mictório e dois deles estavam mais afastados. O mais velho, aparentando50 anos, que era gordo, branco, tinha cabelos pretos e media cerca de 1,70m de altura,chupava o pênis de um homem pardo, magro, aparentando 28 anos e com cerca de1,75m de altura. Os dois carregavam mochilas e pareciam ter saído do trabalho emalgum restaurante – é comum que garçons e ajudantes de cozinha da região central etambém da orla peguem a segunda condução de volta para casa na Estação da Lapa, queé um dos poucos pontos da cidade com possibilidade de transporte 24h.Tudo parecia tranquilo, mas o clima de excitação mudou com a chegada de doishomens, sujos e maltrapilhos, que se posicionaram na parte dos fundos do sanitário para“fumar uma pedra” 16 . Naquele momento, apesar da fala de suposto consentimento dosdois rapazes que diziam “podem continuar, com a gente é limpeza, é nenhuma...”, omedo e a tensão sobressaíram-se ao prazer e o banheiro foi esvaziado. Essadesconfiança é decorrente da relação tensa entre os adeptos da “pegação” e os usuáriosde drogas (principalmente crack) que circulam pela Estação.Certa vez, fui confundido com um Policial Militar por um homem que utilizavaum dos boxes do sanitário da Lapa para cheirar cocaína. Ele tinha acabado de sair doreservado e eu observava a “pegação” que acontecia no mictório através do espelhoquando ele encostou ao meu lado e disse “Se você é policial e vai me prender, prendalogo, não fique me olhando não!!”. Fui tomado de surpresa pela fala do rapaz e, commedo de represálias, fui obrigado a me justificar dizendo: “Meu velho, você tá viajandobrother! A minha onda aqui é outra, eu não tô ligado na sua não. Fique frio! De ondevocê tirou essa idéia de que eu sou policial?”. No final, ele acabou pedindo desculpaspelo ocorrido e tudo ficou bem, mas nem sempre as coisas se resolvem dessa maneira.Os “sacizeiros” são jovens mendicantes que ficam embaixo de escadarias e emáreas mais recônditas da mal conservada Lapa. Ali eles sobrevivem, praticandopequenos furtos e roubos, e também prestando serviços sexuais para “homens comdesejo homorientado” que praticam “cruising 17 “ (“caçação”) no centro da cidade. Em15 Gíria popular em Salvador (BA), que define as pessoas viciadas em crack ou usuário de drogas pesadasem geral. Para fumar a pedra de crack é preciso ter uma espécie de cachimbo improvisado o que remeteao personagem Saci-Pererê do folclore brasileiro. Disponível em:. Acesso em: 24 set. 2011.16 O mesmo que utilizar Crack17É o ato de caminhar ou dirigir-se a uma localidade em busca de um parceiro sexual, geralmenteanônimo e casual. O termo também é usado quando a tecnologia é usada para encontrar o sexo casual,


22depoimento, um dos informantes desta pesquisa atentou para os riscos da ação dessesgarotos que, segundo ele, não são “michês profissionais e querem dinheiro a qualquercusto. São aproveitadores, muitas vezes não conseguem nem fazer o pau subir”(20/11/2011), afirmou o estudante universitário, de 28 anos, frequentador da cena da“pegação” na região da Lapa desde a adolescência.Ele também disse ter presenciado por várias vezes “sacizeiros” inconformadospor não conseguirem dinheiro com “as gays”, passarem informações de “bote” parapoliciais militares que, munidos de características físicas e também da localização exatade onde as interações estão ocorrendo, fazem um flagrante e conduzem esses homenspara módulos policiais e lá realizam uma chantagem. Ainda segundo o informante, essespoliciais dariam uma “ponta 18 “ para os “sacizeiros”, ou seja, uma percentagem dodinheiro extorquido.Um homem desempregado, de 30 anos, contou ter sido vítima de extorsão porparte de policiais militares após ser flagrado em uma relação sexual com outro homemdentro de uma cabine do sanitário da Estação da Lapa. “Nós fomos levados para umasala especial para essas coisas por dois policiais, chegando lá, eles perguntaram onde agente morava e ameaçaram contar para nossa família. Na época (2005), eu morava comminha avó e tinha saído para pagar a prestação de uma geladeira na Insinuante doShopping Piedade. Um deles (policiais) encontrou o carnê e 50 reais da prestação eficou com o dinheiro, nos liberando em seguida”.Apesar de ter ouvido muitos relatos, eu nunca presenciei casos de extorsão emcampo, nem sofri chantagens por parte de policiais, mas já ouvi xingamentos, fui vítimade agressões verbais e presenciei agressões físicas tanto por parte de seguranças quantopor policiais.Após a dispersão no sanitário masculino, desci as escadas que dão acesso àplataforma A da Estação para tomar o pernoite para Paripe. Ao mesmo tempo em que euseguia para pegar a última condução, também faziam o mesmo percurso os últimoshomens que interagiam no WC. Para minha surpresa, todos eles se dirigiram para aúltima escadaria da Estação – que promove acesso à última plataforma de embarque daLapa. Essa plataforma, onde os passageiros embarcavam com destino a cidades dacomo o uso de um site na Internet ou um serviço de telefonia. Disponível em:. Acesso em: 20 set. 2011.18Para os jovens da periferia e do Subúrbio Ferroviário de Salvador “dar uma ponta” significa pagaralgum dinheiro por um serviço informal prestado, que pode ser um pequeno trabalho braçal ou até aprestação de favores sexuais.


23Região Metropolitana, foi interditada no início da década passada para obras do metrô e,por isso, é pouco movimentada. Chegando à escadaria, percebi que o lugar deserto erapropício a práticas sexuais. Dois homens já fingiam urinar encostados no canto daparede e, rapidamente, foram se aproximando e começaram a interagir, mas asinterações que ocorriam na escada não chegaram ao ápice, foram interrompidas pelobarulho que alertava para a saída do “pernoitão” de 1h da manhã.1.2 A <strong>LAPA</strong>: UM TERRITÓRIO MARGINALA Estação da Lapa é o maior terminal de ônibus da cidade de Salvador, funciona24h e recebe mais de 460 mil passageiros por dia. O precário, sujo e inseguro terminal éa única alternativa que eu e muitos deles temos para tomar um transporte de volta paracasa. De acordo com dados da Transalvador 19 , cerca de 460 mil passageiros embarcam edesembarcam diariamente no Terminal, cujo funcionamento 24 horas por dia, recebendo71 linhas urbanas e 21 metropolitanas. São 325 ônibus por hora com uma frota de 511coletivos por dia. A Estação, com área total ocupada de 150.000,00m 2 , correspondendoa 30.000,00m 2 de área construída e 120.000,00m 2 de área urbanizada – possui noveescadas rolantes 20 , a maior parte delas eternamente quebrada, dificultando a locomoçãodos usuários entre um nível e outro e, também, entre a Lapa e a Avenida JoanaAngélica.A escada rolante quebrada causadora de maior transtorno à população é aresponsável por ligar a Lapa ao Colégio Central, na Joana Angélica 21 . O nãofuncionamento do equipamento, considerado pelo CREA-BA o maior do Brasil, com12m de desnível, dificulta a vida dos passageiros que precisam subir e descer a pé. O19 Superintendência de Trânsito e Transporte do Salvador, vinculada a Secretaria dos TransportesUrbanos e Infraestrutura da Prefeitura do município.20 Dados do portal oficial da Transalvador e do Relatório de Vistoria da Estação da Lapa nº. 007/2006,elaborado pelo Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia da Bahia CREA (SANTOS,2006) a pedido do Ministério Público do Estado da Bahia – 4ª Promotoria de Justiça do Consumidor. Oobjetivo da vistoria era “verificar condições físicas nos aspectos da manutenção periódica, estruturas,instalações, acessibilidade, segurança e conforto ambiental, a fim de constatar problemas decorrentes douso, vida útil do equipamento e estado de conservação, bem como verificar se aquela Estação temcondições de suportar eventual incremento do afluxo de pessoas decorrente da instalação de Posto doSindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Salvador – SETPS. Quando houve divergênciaentre os dados, como no caso do número de escadas rolantes – O CREA-BA apontou onze escadas naEstação da Lapa e a Transalvador nove – optei pelos dados da Transalvador que administra todas àsestações de ônibus urbano da cidade.21O equipamento foi interditado no dia 25/10/2011, cinco ônibus foram disponibilizados pelaTransalvador para fazer o traslado de passageiros até o Colégio Central na Avenida Joana Angélica


24drama da escada rolante quebrada é tão grande que está naturalizado nas músicas da AxéMusic, como é o caso de Óculos Escuros, da Banda Eva, na qual escutamos, num dosversos, “na promoção Hot-dog, Ki-suco, da escada quebrada já vejo o circular”. Essasituação está tão impregnada no cotidiano soteropolitano que, numa das minhaspassagens pelo Terminal, um vendedor de recargas para celular, vendo a minhainsatisfação com a tal escada, exclama: “Anormal aqui é se tivesse funcionando!”.Outro problema que provoca pavor e faz com que os usuários da Lapa apressemo passo é a insegurança. Apesar de contar com um posto da Polícia Militar (PM) e outroda Guarda Municipal, os assaltos são constantes na Estação. Matéria publicada no sitedo Jornal Correio no dia 28/08/2011, aponta a escadaria que dá acesso à Avenida JoanaAngélica como o ponto mais perigoso. Em Estação da Lapa vive pânico durante assaltoa repórter Camila Mello narra o episódio em que um homem rouba o celular de umagarota na escadaria da Joana Angélica, a menina grita e ele dispara para cimaprovocando pânico e confusão entre os usuários da Lapa. Um dos ambulantes daEstação relatou: “Foi gente correndo, caindo, deixando chinelo para trás. Nesse horáriode 7h ainda não tem policial”. De acordo com o periódico da Rede Bahia, “ocorrem emmédia 15 assaltos por dia na estação, principalmente de manhã cedo e à noite” e “seisvigias trabalham na estação – três de dia e três à noite – além de três duplas de policiais,com um carro, das 7h às 19h”.Eu mesmo fui vítima de uma tentativa de assalto no banheiro da Lapa. Na noitedo dia 20/06/2011, após sair do exame de qualificação, fiquei ávido pelo retorno aocampo e segui da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas em São Lázaro de ônibusem direção ao Terminal. Ao me dirigir ao banheiro, que estava vazio naquela noite, fuiabordado por dois homens enquanto urinava no segundo mictório dos fundos. Um delesfazia cobertura para o outro apontar uma faca grande e enferrujada ao meu pescoço.Eles queriam levar minha mochila, que só tinha o caderno de campo e um livro. Nessedia eu havia esquecido o telefone celular que eles imaginavam estar guardado namochila, mas para minha sorte eu saí de casa apressado por conta do Exame e deixei oaparelho. Um deles dizia “Passa o celular” e eu respondi “Não tenho celular, nessamochila tem apenas um livro e um caderno”. Ele arrancou a minha mochila e, quandovasculhava meu material em busca de dinheiro e do celular, foi surpreendido pelaentrada de três seguranças. De forma hábil, o assaltante escondeu a “peixeira”enferrujada nas calças. Um dos seguranças perguntou o que estava acontecendo, eu


25respondi que eles estavam me assaltando e que ele tinha colocado uma “peixeira” nomeu pescoço e havia escondido a faca nas calças. Um deles, o que apontou a faca, diziaaos seguranças “Ele fez um programa comigo e não pagou”. O segurança fez a revistano homem e encontrou a faca enferrujada. Enquanto isso um deles se dirigiu a mim eperguntou: “Você é viado é? Você fez um programa com o cara e não quer pagar?!”Irado, apesar da situação – acho que esse foi único momento em que perdi a calma –respondi: “Você deve estar pensando que eu achei meu ‘pau’ no lixo pra ‘trepar’ comuma ‘desgraça’ dessa? Me respeite, rapaz!”.O ladrão insistia em gritar que eu tinha feito um “boquete” nele e que não tinhacumprido com o acordo de pagar dez reais. Diante do deboche e escárnio dasinsinuações dos seguranças que afirmavam coisas como – “tem muito ‘viado’ que vempra cá chupar pau de marginal, mas esse não deve ser o seu caso...”. Seguidas de umirônico e sarcástico sorrisinho e da afirmação de um deles que disse não ter poder dePolícia e que por isso soltaria o cara que atentou contra a minha vida – decidi procurar oefetivo da PM, mas, ao chegar ao módulo policial, descobri que não havia nenhumsoldado de plantão e fui aconselhado por um Guarda Municipal a sair da Estaçãorapidamente, pois o “cara” já deveria estar solto. Acatei aos conselhos e fui obrigado aevitar a Estação da Lapa por 15 dias, com medo de encontrar um dos dois.Os banheiros masculinos da Estação da Lapa são o ponto principal de partidapara uma série de encontros homoeróticos que acontecem no entorno entre os banheirosmasculinos e escadas de emergência dos Shoppings Piedade, Center Lapa, terrenosbaldios e da própria escada que leva até a última plataforma do subsolo do Terminal deônibus urbano. Nesse circuito, muitas interações que começam de forma anônimaacabam em hotéis de bairros como Barris, Largo Dois de Julho, Avenida Sete deSetembro e Rua Carlos Gomes. A Estação da Lapa foi escolhida por ser a ligação entrea Grande Salvador e a “Região Moral” – conceito de Park utilizado por Pherlongher(1987/2008) para referir-se às zonas de perdição e vício das grandes cidades – Boca doLixo. De acordo com Pinho (2011), seria quase possível fazer a mesma analogia que oantropólogo argentino fez com o Centro de São Paulo para caracterizar a Rua CarlosGomes, em Salvador, pois a localidade concentra bares gays, boates, saunas, além dapresença de michês e travestis se prostituindo em via pública.Ao escrever sobre sociabilidade no Metrô, a antropóloga Janice Caiafa (2007)aponta que a experiência do transporte coletivo promulga sociabilidades e


26comunicabilidades de toda ordem. São fluxos de intersubjetividades e experiênciasculturais que permitem a seus usuários vivenciarem, de acordo com a autora, um ritmocoletivo de recolocação dos corpos e assumindo novos sentidos na coletividade· O fluxocontínuo de pessoas na Estação da Lapa configura várias possibilidades de relações einterações intensas e (des)contínuas entre todos os usuários. No terminal, entre esperas edeslocamentos, é possível se alimentar, (re)encontrar pessoas, marcar encontros, ouseja, realizar aquelas atividades cotidianas da vida social-cultural – e isso inclui o acessoao “banheirão”.Outro fator que acarretou na escolha da Região da Lapa como campo de estudofoi o estado de degradação em que se encontram os equipamentos públicos do Centro daCidade do Salvador e, principalmente, da suja, mal conservada e insegura Estação deônibus, que sofre com o descaso da administração municipal. Esse contexto deprecariedade faz com que a prática considerada abjeta da “pegação homoerótica” torneseainda mais dissidente dentre as práticas sexuais “marginalizadas”.1.3 PERCURSO ETNOGRÁFICOOs primeiros contatos com textos de temática gay, como as produções dosantropólogos como Luiz Mott (2000), Peter Fry e Edward MacRae (1991), aconteceramno decorrer da graduação, quando eu cursava a disciplina Antropologia Cultural, noBacharelado em Comunicação com habilitação em Jornalismo. Estimulado pela leiturados textos, lancei outro olhar para o circuito de “pegação” homoerótica de Salvador.Entre os anos de 2004 e 2007, trabalhei como auxiliar administrativo no Espaço XistoBahia, nos Barris, Centro de Salvador e, frequentemente, transitava pelos sanitáriospúblicos da Estação da Lapa e dos shoppings Center Lapa e Piedade. Numa dessaspassagens, atentei para uma interação entre homens com desejo homo-orientado nointerior desses espaços.Passei a observar com atenção a atuação desses homens que, por inúmerasvezes, praticavam exibicionismo, voyeurismo, masturbação recíproca ou não e até sexooral nos mictórios desses movimentados banheiros. O primeiro contato misturou medo eexcitação, mas não demorei em enxergar nessa prática uma alternativa para satisfazer osmeus desejos homoeróticos. Emprego a palavra alternativa, pois essa prática anônima emarginal representou para mim uma opção à cena gay tradicional. Eu nunca me senti à


27vontade no circuito de bares e boates gays. A música eletrônica, o jogo de caras e bocas,a necessidade do corpo “sarado” me excluíam do processo. Faltava a mim “didática”para a dinâmica da paquera e da conquista.A emergência de personagens homossexuais nas telenovelas brasileiras, aproliferação de Paradas do Orgulho Gay em diversas partes do país e a chegada deestudantes oriundos de programas de ações afirmativas na universidade faziam com quediscussões acaloradas sobre a questão gay acontecessem em sala de aula. Em 2007,chega a hora de escolher o tema do trabalho de conclusão de curso de graduação. Comohomossexual assumido, imaginava que a produção deveria ser um projeto experimentalque abordasse o tema homossexualidade, mas eu não simpatizava com as pesquisasrealizadas na época por alguns colegas de curso, pois eram voltadas para o estudo darepresentação de homossexuais em telenovelas da Rede Globo ou sobre as versõesbritânica e norte-americana da série Queer as Folk. Eu não me sentia representado emnenhuma dessas produções, apesar de ser consumidor ávido das novelas e das séries, ede acreditar que estudar os discursos dessas representações era importante paracompreender a cena gay contemporânea.Por isso, meu Projeto Experimental da graduação foi uma série de reportagenspara o rádio sobre o sexo público na cena gay soteropolitana. Através de um trabalho deobservação participante, entrevistei, de forma espontânea, e revelando a minha condiçãode pesquisador, homens adeptos da pegação. O trabalho também contou com entrevistasde militantes do movimento gay e estudiosos da questão LGBTT (Lésbicas, Gays,Bissexuais, Travestis e Transgêneros).No decorrer da coleta de depoimentos, os entrevistados apresentaram uma novatopografia do sexo público na capital baiana que extrapola os limites da região central.De acordo com informações das fontes, é possível presenciar tais interações na regiãodo Iguatemi, Pituba, Barra e até em bairros mais afastados como Paripe, Pau da Lima eCajazeiras. É importante atentar para o dinamismo desse circuito, que, por muitas vezes,é itinerante e muda conforme o grau de vigilância e repressão da prática nos sanitáriospúblicos.O conjunto de discussões de internautas nos fóruns das comunidades do Orkutsobre interações homoeróticas em Salvador também serviram de base para a formaçãode uma topografia de locais de “pegação” na cidade. As comunidades “Pegação emSalvador”, “Clube do Banheiro SSA”, “Pegação com sigilo-Salvador” e “BSB-Bofes


28Suburbanos da Bahia” possuem uma diversidade de discussões sobre a prática em locaispúblicos e realizam uma espécie de “agendamento” de encontros entre usuários emsanitários públicos da cidade. A descrição das comunidades em suas páginas principaisé reveladora das representações e discursos sobre a “prática da pegação” e seus locais nacapital baiana.Dessa maneira, decidi dar continuidade ao projeto de estudos no mestrado,pesquisando tais ambientes, vivenciando a teoria aprendida e formulando novasproposições sobre o tema. O foco da minha (auto)etnografia é o circuito de pegação embanheiros da região central da cidade; mais especificamente, os banheiros da Estação daLapa, Shopping Piedade e Center Lapa. Com isso, configurei, através de umaabordagem autoetnográfica, as interações sexuais desses banheiros públicos masculinosda capital baiana, isto é, os trânsitos dos sujeitos nas negociações e consórciosepisódicos tecidos no – e no entorno do – “banheirão”, bem como a produção dosignificado erótico desses espaços sociais. Esses banheiros foram escolhidos porpropiciarem maior anonimato. São locais de circulação de uma massa de gays, homensque fazem sexo com homens (HSH) e de outras tribos urbanas consideradas “marginais”e, por isso, potencializam a cena da “pegação”.Por conseguinte, após imergir na deriva homoerótica que atravessa e demarca,erótica e sexualmente, os sanitários públicos, escadas de emergência e lugaresrecônditos como o teto e o subsolo da Estação da Lapa e dos Shoppings Piedade e CenterLapa, busquei entender, durante o presente estudo, como essa cena se articula. Comoesse espaço de trânsito é reconfigurado para o exercício dessas sexualidadesconsideradas dissidentes, analisando os mecanismos de operacionalização desseslugares para interações sexuais. Procurei compreender as negociações sexuais entre ossujeitos na cena do banheiro e entender a trama tecida entre esses homens com desejohomo-orientado, que sofrem uma repressão, ainda que não explicitada, pelo discursoheteronormativo. Eu ansiava também compreender o significado da pegação nos WCpara a comunidade gay soteropolitana, através da coleta de relatos sobre sexo públicoentre homens com desejo homo-orientado em Salvador.É preciso ressaltar, com Perlongher (2008, p. 60), que este estudo “[...] não ésobre uma comunidade, nem sequer sobre um grupo, mas [...] uma abordagem de certaprática e das populações nela envolvidas”. É exatamente esse fator que impossibilitaque haja uma postura metodológica rígida e de caráter homogeneizador.


29A fim de responder às questões de pesquisa e buscar atingir os objetivos, procediao registro de dados nos banheiros da Estação da Lapa e adjacências, utilizando-me denotas de campo e entrevistas com participantes. Julgo, assim, de significativaimportância descrever esse local de práticas sexuais consideradas dissidentes paramelhor entendimento do estudo feito.Não obstante, antes de adentrar com mais detalhes na explicitação de meu localde registro de dados, explano a seguir, de forma genérica, a cena gay de Salvador erecortes de outras capitais brasileiras, além de fazer referências a estudos depesquisadores em outros países. É importante ressaltar que a Estação da Lapa é aprincipal ligação entre os bairros periféricos, o subúrbio ferroviário, a regiãometropolitana e a cena Gay 22 do Centro de Salvador. Por isso, o “banheirão” da Lapa éencenado tanto por trabalhadores, estudantes que se deslocam para casa ou para escoladepois de um dia de trabalho ou estudo como por um contingente de gays, lésbicasprofissionais do sexo (travestis e michês) e de jovens negros, periféricos com práticashomoeróticas, sem nenhuma vinculação identitária, que vão em busca de diversão esexo nos espaços de homossociabilidade da Carlos Gomes e do Beco dos Artistas.Dessa forma, busco levar o leitor a compreender melhor as escolhas feitas ao longo dapesquisa empreendida, principalmente no tocante à escolha dos locais de registro.1.4 SEXO E ESPAÇOS PÚBLICOSA sexualidade e o erotismo são elementos fortalecedores da identidade e culturagay. O apelo ao erotismo é predominantemente presente e movimenta a Cena GayOcidental. Em Tricks, friends, and lovers: erotic encounters in the field, ao observar aCena Gay da Noruega, Ralph Bolton (1995) constata que a cultura gay comemora oerótico, que é o fundamento do seu ser, mas com o surgimento da AIDS esse erotismoteve de ser ressignificado por conta das ameaças das poderosas forças heterossexistas demorte e opressão. A epidemia da AIDS e a pressão dos grupos conservadores nãopodem ser considerados os únicos motivos que provocam a condenação do sexo e do22 Em Public Sex, Gay Space, Leap (2007) entende por Cena Gay um conjunto locais significados pelocontingente de homossexual para expressão de sua sexualidade. Essa cena é diversificada e acontece tantoem locais públicos (ruas, praças, praias e banheiros públicos) quanto em privados (bares, boates, saunas ecinemas).


30erotismo na cena gay. De acordo com a antropóloga Gayle Rubin (1993, p. 4 apudSPARGO, 2006, p. 5), “[o] reino da sexualidade tem sua própria política e modos deopressão internos. Assim como outros aspectos do comportamento humano, as formasinstitucionais concretas de sexualidade, em qualquer tempo e local, são produtos daatividade humana”. Com isso, constata-se que mesmo em contextos construídos emtorno de uma sexualidade considerada abjeta em relação aos padrões estabelecidos pelodiscurso heteronormativo dominante, práticas sexuais como relações homoeróticas emespaços públicos são rotuladas como ainda mais abjetas dentro da Cena Gay.Para Green (2000), a acessibilidade do homem a determinados espaços públicospotencializou os encontros homoeróticos aleatórios, pois constituíam um dos poucosmeios de conhecer parceiros em potencial. Parques e praças tornaram-se locaispropícios para a “pegação” entre homens. Quando mapeia a topografia homossexual dosdois grandes centros urbanos do sudeste brasileiro no século passado, o autor afirmaque, após passar por uma série de melhoramentos, o Vale do Anhangabaú, na capitalpaulista, na época apelidado de Central Park do Brasil, “logo tornou-se um ponto deencontro para homens interessados em paqueras homoeróticas” (GREEN, 2000, p. 97).Na década de 30, o Anhangabaú, a Avenida São João, a Praça da República, o Jardim daLuz e o banheiro público da Estação da Luz foram espaços do centro de São Paulo queatraíam homens em busca de contato sexual com outros homens.Essa configuração de espaços para a vivência sexual dissidente toca no queCosta (2010) trata como “território”. Para o autor, “[o] território significa a brecha porentre o espaço público normatizado, ou agregações informais, nas quais sujeitosnegociam representações sobre si mesmos e estabelecem moldes culturais práticos parasuas relações” (COSTA, 2010, p. 21). Assim, ainda segundo o referido autor, osterritórios homoeróticos representam a “apropriação de partes do espaço urbano no qualtais sujeitos podem exercer práticas homoafetivas. Essas territorializações se relacionamà produção de representações sociais que definiram, no processo histórico, as origens dodesvio social” (COSTA, 2010, p. 22). Nesse sentido, o sexo em espaços públicos éentendido como uma prática considerada dissidente, porém imbricada de sujeitos quetambém circulam pelas redes públicas normatizadas pelo imperativo heterossexual.Perlongher (2008, p. 159), por sua vez, trata dos espaços em que os sujeitos àderiva interagem como sendo “[o]s diversos pólos e categorias [que] funcionariamcomo pontos de ‘reterritorialização’ na fixação a um gênero ou a uma postura


31determinada; fixação que manifestar-se-á na adstrição categorial e, correlativamente, naaparência gestual e discursiva, indícios de um desempenho sexual esperado ouproclamado”. O autor, embora ressalte a importância do espaço físico na configuraçãoda territorialidade por aquele delimitar as fronteiras do gueto desta, entendeterritorialidade no próprio espaço do código, ou seja, “[a]s redes do código“capturariam” os sujeitos que se deslocam, classificando-os segundo uma retórica, cujasintaxe corresponderia à axiomatização dos fluxos. No entanto, o dispositivo territorialagiria canalizando os fluxos, mas ao mesmo tempo veiculando-os” (PERLONGHER,2008, p. 163). Como se vê, o autor considera a possibilidade de o sujeito ocupar váriosespaços no código no sentido de circularem intermitentemente na trama do desejo emdiversos territórios (espaço e códigos), e não tão-só adscritos a uma categoria identitáriapré-definida por suas práticas sexuais.Perlongher (2008) trata de uma situação em que haveria “unidades totais”, comuma segmentariedade binária (homem/mulher, jovem/velho etc...) e, simultaneamente,outro tipo de segmentação. Nesta, haveriafluxos moleculares, que fazem referência ao desejo - considerado nãocomo uma “energia pulsional indiferenciada”, mas como resultante deuma montagem elaborada, de um engineering de altas interações: todauma segmentariedade flexível que trata de energias moleculares”(DELEUZE e GUATARI, 1980, p. 262) - sacodem “disruptivamente”o corpo social. Movimentos de “desterritorialização e“reterritorialização” operarão complexas “transduções” entre estadiversidade de planos. (PERLONGHER, 1987, p. 161, grifos do autor)Assim, o autor justapõe a ideia de territorialidade à de identidade. Entendo, dessamaneira, que o olhar é então direcionado para as práticas do sujeito, que sãosituacionais, variáveis, fluidas, e não estanques ou resultantes de uma identidadeacabada e concreta.Perlongher (2008, p. 165-166, grifo do autor), ao articular Lefevbre (1978) eMaffesoli (1985), afirma que:[h]á um modo de circulação característico dos sujeitos envolvidos nastransações do meio homossexual, “a paquera” ou a deriva. Trata-se depessoas que saem à rua à procura de um contato sexual ou,simplesmente, “vão para o centro pra ver se pinta algo”. [...] A rua,“microcosmo da modernidade” (LEFEVBRE, 1978), torna-se algomais do que mero lugar de trânsito direcionado ou de fascinação


32espetacular perante a proliferação consumista: é, também, um espaçode circulação desejante, de “errância sexual” (MAFFESOLI, 1985).Esta 'errância sexual' refere-se à busca pelo prazer obtido nas práticas sexuaisconsideradas dissidentes, próprias de espaços ora alternativos, ora imbricados no espaçomainstream, heteronormativo.A reação de homossexuais à repressão policial contra eles no Stonewall Inn,Estados Unidos, em 1969, representa um marco inicial para o surgimento de lugares deconvivência mais declaradamente gays, como bares, boates, restaurantes etc (COSTA,2010). Por isso, “[e]sse contexto reforça a territorialização homoerótica nos bares eboates das grandes cidades, cujos eventos precursores temos a cultura disco norteamericana,dos anos de 1970, e da 'Meca Gay Studio' 54, em Nova Iorque” (COSTA,2010, p. 23). Assim, a cultura gay passa ao período (talvez ainda vigente) em querepresenta uma alternativa oposta ao mundo heteronormativo em várias instâncias,principalmente na música, dança, moda, experiências eróticas etc. Nesse sentido, é queCosta (2010) fala de territorialização, ou territórios homoeróticos como sendo 'brechas'existentes no espaço público normatizado, ou melhor, heteronormatizado.Na capital baiana, ruas e praças do centro também servem de ponto de encontropara homens que fazem sexo com homens que figuram, assim, esse territórioconsiderado dissidente no tocante às práticas homoeróticas que aí se dão. A maioria dospontos de sociabilidade gay está concentrada nessa zona da cidade, entre o CampoGrande e a Praça da Sé. De acordo com Luiz Mott (2000, p. 76), isso ficou constatadodesde a década de 30, quando um trabalho do médico Estácio de Lima, intitulado AInversão dos sexos, apelidou o Campo Grande de “o covil famoso dos invertidos daterra”.Entretanto, nos dias atuais, a territorialização se apresenta de uma maneira umpouco diferenciada, uma vez que se apresenta como rizomas (DELEUZE, 1995) que seespalham em diferentes regiões dos grandes centros. A configuração desses espaços,dessa maneira, é peculiar dentro mesmo da territorialização que se propõe distinta dasociedade (hetero)normatizada, não havendo assim uma homogeneidade quanto a essesespaços no que concerne ao combate puro e simples contra os preceitosheteronormativos, ocorrendo o que Costa (2010) chamaria de “modificação estética dogueto gay”, no sentido de que há


33condições híbridas variáveis e múltiplas entres os seguintes aspectos:as condições heteronormativas e de gênero, impostas em meiosfamiliares e profissionais; as propostas também unificadoras de umacultura gay alternativa; a diversidade de reuniões e misturas culturaispós-modernas, nos quais se apresentam oportunas as experiênciasafetivas para com o mesmo sexo (COSTA, 2010, p. 23).Assim é que surgem o que o autor chama de micro-territorializações (COSTA,2007), isto é, formas rizomáticas ativadas e desativadas em consonância com o desejo(não com uma identidade pré-existente ou sentimento de pertença a um gueto gayespecífico) homoerótico.A cidade de Salvador que, conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística), tem cerca de 3 milhões de habitantes, como qualquer outra metrópole nomundo, possui uma cena gay. Levando em consideração o entendimento de Perlongher(1987) e Costa (2010), os sujeitos que frequentam esses lugares de sociabilidade e/oupráticas sexuais nem sempre se inserem (ou se vêem) em uma comunidade gaysupostamente homogênea.Atualmente, o circuito da orla de Salvador também vem se consolidando comoárea de convivência gay e espaço para o sexo público, que ocorre, frequentemente, emlocais como Cristo e Farol da Barra, Praia do Jardim de Alah, no bairro da Pituba, Praiados Artistas, na Boca do Rio e Pedra do sal, no bairro de Itapuã.Vale atentar para a constante reclamação de frequentadores desse circuito quantoà pequena variedade de locais de homossociabilidade em Salvador. Em matériaintitulada “Está o ó do borogodó”, publicada no extinto Jornal Província da Bahia noano de 2004, os frequentadores do circuito de bares e boates gays da cidade já sequeixavam de mesmice, falta de variedade, diversidade e de preços altos e serviço ruim.Atualmente o quadro não mudou, um dos informantes dessa pesquisa, que se autoidentificacomo urso – homossexual masculino, gordo, peludo e que rejeita o padrãogay vigente marcado pelo privilégio de uma estética em que é preciso combinar umcorpo com músculos definidos e roupas da moda – queixa-se de falta de opçõesespecificamente direcionadas para os “gays da caverna” nas três boates destinadas aopúblico LGBT em Salvador.Atualmente, na cena gay da capital baiana, é significativa a presença demarcadores de diferença (PARKER, 1999) que se interseccionam, como classe, idade,raça e cor. Os bares e boates da região central da cidade – localizados entre o Campo


34Grande e a Rua Carlos Gomes – são frequentados por gays, em sua maioria, negros epardos e oriundos de bairros populares, com menor poder aquisitivo e pejorativamenterotulados como bichas “baixo astral”, “ploc-ploc” e “pão com ovo”.Já o circuito gay da orla – que compreende bares e boates localizados em umeixo de bairros nobres e pontos turísticos como Barra, Rio Vermelho e Patamares – é oconjunto de templos dos gays da classe média-alta soteropolitana, hoje personificadonum ideal “barbie” – ressignificação gay da boneca americana de corpo “perfeito” paraum ideal de beleza masculina, em que se persegue o cada vez mais musculoso.Diante dessa polarização, nota-se a carência de espaços para o exercício desexualidades consideradas mais dissidentes em Salvador. Nas principais metrópoles dosudeste brasileiro, São Paulo e Rio de Janeiro, são notáveis a presença deestabelecimentos de sociabilidade e exercício de prazer para “ursos”, ‘leather” (espéciede segmentação dos ursos que cultuam o couro) “sadomasoquistas” (adeptos daspráticas sexuais mediadas pela dor para a obtenção de prazer sexual), como mostra atese de doutorado de Camilo Albuquerque de Braz, que constrói uma etnografia sobreclubes de sexo para homens na capital paulistana.Em Salvador, são apenas dois clubes de sexo: a “Queen’s Club”, situada nobairro central dos Barris, e o “Cine Cabine 155”, localizado no boêmio Rio Vermelho.A “Queen’s Club” funciona desde o ano 2000 e foi idealizada pelo ex-garoto deprograma e hoje empresário André Cupolo. O lugar oferece vídeo-locadora com filmespornôs, sex shop e glory holes – cabines, onde as pessoas podem assistir a filmeseróticos e manter relações sexuais através de “buracos” nas paredes que as separam. Acasa viveu seu auge na década passada, quando funcionava também como danceteria,com shows de “gogoboys”, sexo explícito ao vivo e eventos temáticos como “A Festada Cueca”, que aconteciam no primeiro e terceiro domingo do mês, em que os homensdançavam de cuecas ao som de muita música eletrônica podendo, ainda, desfrutar dodarkroom (quarto escuro destinado à prática sexual). O estabelecimento atualmente viveum momento de decadência e o proprietário queixa-se de diminuição de público.De acordo com informações da homepage oficial, o “Cine Cabine 155” é um[e]spaço de entretenimento para o público ADULTO masculino, assimdefinimos o 155. Uma casa onde a famosa “pegação” pode serrealizada com segurança, discrição, conveniência, higiene e commuito prazer, é claro! Casa feita para proporcionar encontros entreclientes. Não é permitida a prostituição ou presença de menores de


35idade. São dez cabines com buracos, cada uma equipada com TVexibindo vídeos eróticos de vários gêneros além de quarto escuro,espaço de convivência, mini bar (onde podem ser consumidos cerveja,água mineral e refrigerantes) e espaço para fumantes.Apesar de estar em funcionamento há mais de um ano, o “Cine cabine 155”parece não ser muito frequentado. Fui à casa em uma tarde de domingo do verão de2011 e apenas cinco pessoas estavam no recinto. Os usuários da comunidade “Pegaçãoem Salvador”, no site de relacionamentos Orkut comentam que a casa não “pegou”entre o público soteropolitano. No fórum “Como está a Cabine 155?”, vemos o seguinterelato:Sou de Maceió, e estou indo p SSA semana q vem!! Curto umapegação bem discreta, e aqui na cidade quase n saio c caras com medode ser descoberto. Queria aproveitar essa ida a SSA p dar umachupada, e ser chupado, com algum cara bem discreto!! Queria saberse vale a pena tentar algo na CABINE 155!! (usuário 1)Se ainda não fechou não merece uma visita. Fuja de lá. (usuário 2)pois é (usuário 3)já tem muito tempo que abriu e o movimento não cresce.Eu só fui lá 3vezes, e já tem mais de 4 meses que eu não vou pelo fraco movimento,então, eu também não recomendo.só tem moscas la (usuário 4)Bom...estive lá a (sic) duas semanas assim que cheguei o movimentoestava fraco, era umas 18:00, mas quando resolvi ir embora umas20:00 tava começando a movimentar, mas tinha q sair nesse tempofiquei com dois, foi legal, mas assim se vc quiser marcar seria bom.sou de Maceió . mas moro em ssa. (usuário 5)(Diálogo entre usuários da comunidade “Pegação em Salvador”Disponível:http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=1296093&tid=5603201462720959029acesso em 10/05/2011)Ainda em 2004, na ocasião da apuração para a matéria do Província da Bahia,era possível notar um certo receio entre os entrevistados em assumir frequentar lugaresexclusivos para a prática de sexo dentro do ciclo de sociabilidade gay. Tal incômodopode ser oriundo do fato de que, dentro da própria cena gay, os homens que frequentamlugares de “pegação” são rotulados como promíscuos e sujos e são descartados para aconstituição de um relacionamento mais formal e estável. É comum no circuito LGBTTa “demonização” de estabelecimentos como os clubes de sexo, saunas e cinemas pornôs.


36A fala seguinte, de um dos frequentadores de uma boate gay classe médiasoteropolitana, reflete a hierarquização desses espaços de sociabilidade homossexual noimaginário do público: Para ele a “Queen’s” banaliza o sexo, enquanto a “Off” 23 é mais“hipócrita”, já que a maioria do público da “Off” frequenta a casa com o mesmoobjetivo: sexo.Como se nota, tal qual preconizado por Costa (2010) sobre o micro-território,sujeito às opressões internas e intrínsecas de que trata Gayle Rubin (1993), também emSalvador produz-se mais um espaço social, híbrido, no que concerne aos sujeitos que osproduzem (não pertencentes a nenhuma categoria identitária fixa e pré-existente), sendotal hibridismo resultante da dialética entre as formas normatizadoras da sociedade e osposicionamentos transgressores de tais normas dos sujeitos, ligadas tais formas e taisposicionamentos pelo desejo. O fato de o espaço público ser negado à expressão eexperimentação do desejo homo-orientado resulta na produção de “localismos oureuniões expressos pelo ‘aqui’ e ‘agora’ estético sem propósitos funcionais oureisificados, mas pela afetividade e sexualidade (MAFESOLI, 2002) que acabamtornando singularizada uma parte do espaço público” (COSTA, 2010, p 25). Aoburlarem a organização da normativa sociedade mainstream, os sujeitos que produzemestes localismos criam o micro-território (COSTA, 2010), composto pelo hibridismo desujeitos que convergem no que concerne ao desejo sexual. A deriva desses sujeitos,assim, se dá ora por entre espaços pouco frequentados, ora em locais com muitocontingente como osbanheiros públicos, como na deriva atenta e na paquera por entre amultidão, fato que constrói trajetos e pontos de parada e contatosobrepostos aos corredores de circulação e aos lugares mais comunsdas tarefas outras cotidianas, cujas interações homoeróticas nem sãovistas e percebidas por aqueles que não se interessam a elas (COSTA,2010, p. 25).Ressalte-se, também, que Costa (2010) chama atenção para o fato de que, aopasso que o microterritório se configura como um espaço para a experiênciahomoerótica menos passível de atos homofóbicos e discriminatórios, a permissividadetambém23 Boate gay situada no bairro da Barra, um espaço caro para os padrões médios soteropolitanos, quecobra entrada em torno de 30 reais – considerada por alguns participantes da pesquisa como “a boate dasbichas bicudas”.


37se apresenta perigosa em relação ao contato direto com outros'transgressores' que não somente são 'transgressores quanto aosdeterminantes sociais', mas buscam oportunidade de lucro rápido eoportunismos financeiros que acabam gerando atos de violaçãopessoal pelo roubo, extorsão, furto, atentado e violência. Atos debandidagem se misturam com oportunismos lucrativos envolvidoscom a sexualidade e com a homofobia, tornando a deriva homoeróticauma atividade necessária, em virtude da impossibilidade devisibilidade social dela, mas muito insegura quanto à vida dessessujeitos (COSTA, 2010, p. 25, grifos do autor).Dessa maneira, entendo que o banheiro público se torna uma das formas demicroterritorialização das quais trata o autor, e é no sentido de funcionar como 'brecha'por entre a dissidência e as regras normatizantes da sociedade heteronormativa que otomo neste trabalho como micro-território.Na subseção a seguir apresento a visão de alguns autores que pesquisaram aprática sexual em banheiros público e situo o leitor quanto à escolha desse contexto paraa pesquisa realizada.1.5 O “<strong>BANHEIRÃO</strong>” COMO LOCAL DA PRÁTICA SEXUAL HOMO-ORIENTADAPerlongher (2008) demonstra como a homossexualidade tem se despido decaracterísticas que a estereotipam Isso se dá, por exemplo, com o crescimento depopulações legitimamente homossexuais que se diferenciam da famigerada “bichalouca”. Assim, na luta contra esse estereótipo, “o homem ‘superviril’ ou ‘macho’tornou-se ideal: cabelos curtos, bigodes ou barba, corpo musculado”. Assim: “enquantoo tema da emancipação dos heterossexuais está, muitas vezes, ligado à indiferenciaçãodos papéis masculino e feminino, a emancipação homossexual passa atualmente poruma fase de definição muito restrita da identidade sexual” (POLLAK, 1983, p. 64 apudPERLONGHER, 2008, p. 79).Perlongher (2008), citando Park (1973), trabalha também com o conceito de“região moral”, entendida como “o espaço urbano em círculos concêntricos: uma faixaresidencial, outra industrial e o centro – que serve ao mesmo tempo como ponto deconcentração administrativa e comercial, e como lugar de reunião das populações


38ambulantes que “soltam”, ali, seus impulsos reprimidos pela civilização” (PARK, 1973,p. 65 apud PERLONGHER, 2008, p. 69). O banheiro público é, sem dúvida, umexemplo de microterritório imerso na região moral da qual trata o autor.O sanitário público é um local de interação homoerótica que desperta muitapolêmica. Para Perlongher (2008, p. 177-178), “o mictório ocupa o lugar mais baixo nacategorização dos locais de engate homossexual. É, junto com as saunas, o maisdiretamente sexual, o menos ‘amoroso’; mas é também o mais perigoso, pois estásujeito a esporádicas irrupções policiais”. Ao discutir a relação entre os banheiros e osistema de gêneros, Preciado (2011), por sua vez, afirma que, a partir do século XIX, ossanitários públicos se transformam de forma progressiva em “cabines de vigilância dogênero”. A autora atenta para o fato de que “escapar do regime de gênero dos banheirospúblicos é desafiar a segregação sexual que a moderna arquitetura urinária nos impõe hámais ou menos dois séculos: público/privado, visível/invisível, decente/obsceno,homem/mulher, pênis/vagina, de pé/sentado, ocupado/livre”.Na cena gay, constata-se uma valoração a partir de parâmetros comportamentaisdo segmento, que, por sua vez, são fundamentados pelo modelo heterossexual. Tece-seuma série de princípios éticos e morais, isto é, uma categorização em que homens quebuscam “aventuras” em locais públicos, como banheiros, são marginalizados. Essamarginalização é evidenciada no hit da drag music a Piranha do Banheiro. A música –que explodiu nas boates LGBTs e ganhou as pistas dos clubes heterossexuais – trata dapegação em banheiros com o humor e a ironia marcantes do gênero das Drags e refletea condenação a esse tipo de comportamento dentro da própria cena gay:Piranha!Eu sou a piranha do banheiro!Samba! Meu corpo é um carnavalEu sou a troya, eu sou o pecadoA vergonha!Eu sou a piranha!Eu sou a vagabundaMeu corpo é um carnavalVagabunda! Raspada! Safada!Eu sou o pecado a vergonhaBaby Marcelo (Disponível: http://letras.terra.com.br/babymarcelo/181254/Acesso em: 20/12/2007)


39Luiz Mott (2000), em A cena Gay de Salvador em tempos de AIDS, afirma que:[...] Dependendo da audácia dos frequentadores e da tolerância dosvigilantes, em tais lugares, se pratica voyeurismo e masturbaçãorecíproca no próprio espaço dos mictórios, e, dentro das privadas,todo tipo de intimidade homoerótica. São tais W.C. um dos nichosmais típicos e preferidos dos adeptos do sexo anônimo. (MOTT,2000, p. 88, grifo meu)Apesar da forte vigilância, com o progressivo desaparecimento de banheiros derua, decorrentes das transformações urbanas, novos locais são significados comoespaços da chamada “pegação” – esta caracterizada como breve, impessoal e nãomediada por palavra – como, por exemplo, banheiros de grandes shoppings, dehipermercados, de estações de transporte coletivo e de edifícios empresariais. Aindacom Mott (2000, p. 88), observa-se um esboço de uma topografia homossexual: “[...]em todos os sanitários masculinos dos shoppings centers de Salvador e em algunssupermercados mais movimentados, há discreta paquera homoerótica, incluindoShoppings Lapa, Piedade, Iguatemi, Barra, Itaigara etc.”Esses espaços constituem-se como alternativas para preservar, de particulares, odesejo sexual, para que não se sofra sanção decorrente da “transgressão” dos padrõeslegitimados pelo discurso dominante. Em etnografia pioneira sobre homossexuais queformam uma rede na Zona Sul carioca nos anos 1970, a antropóloga Carmem DoraGuimarães – que classifica as relações entre eles como homossociais (relações semconotação sexual entre indivíduos do mesmo sexo) e homossexuais (engloba relações debusca de prazeres sexuais como as interações homoeróticas em lugares públicos) –relata a “pegação” entre seus informantes como uma tentativa de ocultar a identidadehomossexual quando é conveniente e atenta para a utilização de códigos não-verbais nahora de firmar tais contatos.Embora nesse mesmo plano, mas sob outro ponto de vista, Bourdieu (1999) trazo conceito de efeito de destino responsável pela tendência do dominado em assumir, arespeito de si, o ponto de vista dominante, isto é, aceitar determinadas categorias depercepção que os façam, conforme a leitura de Nussbaumer (2007), “viverenvergonhadamente suas experiências sexuais”. Todavia, não se pode descartar ofetiche pelo sexo em banheiros públicos, como supõe Mott (2008), já que há muitos


40gays assumidos que são assíduos frequentadores desses ambientes simplesmente porsentirem prazer “pelo medo e pelo risco”.Líper (2008) acredita que a prática do “banheirão” é uma alternativa à repressãodo próprio circuito de estabelecimentos gays de classe média:Uma contradição é que nós temos locais oficialmente gays e que arepressão acompanha, por exemplo, até bem pouco tempo algunsbares do beco não permitiam carências mais intensas entre homens.Eles queriam que o comportamento se limitasse mais ou menos comoficam um rapaz com uma moça. O ideal é vender uma cerveja muitocara, explorar a clientela e não permitir que eles façam nada contra amoral vigente. Isso não é porque a polícia proíbe. É um moralismo dodono do bar. O dono do bar que não quer que um rapaz alise o pau dooutro, nem bote pra fora. O medo do falo ereto fora da calça faz comque o “viadinho” que é dono do bar fique chocado. Ou então atradicional tirania da “bicha” de classe média. Ela quer sim que vocêpague, mas saia de lá frustrado, aí ela fica satisfeita, e volte no outrodia para ser torturado. Isso fica abominante, ninguém pega ninguém evai para o sanitário. O que acontece no sanitário? Ele é muito explícitoe não há clima para caras e bocas. Eu sou bonita, eu sou isso. Ali éputaria mesmo. Quem não quer não faz.Nos anos 60, o teatrólogo argentino Tulio Carella, ao descrever sua derivasexual em um diário, relata o episódio em que teve o pênis “chupado” por um rapaz nobanheiro de um bar do Centro do Recife, em Pernambuco:[...] Abstraído nestes pensamentos olha sem ver os grupos que sereúnem na calçada do bar: permanecem de pé, conversando, longashoras. Paga ao garçom e vai urinar. Surpreende-o a disposição domictório: é uma espécie de pia de azulejos brancos, sem divisões. [...]Dois ou três tipos fingem urinar, mas o que fazem é mostrar amercadoria fálica. Lúcio tem a uretra pudica e retira-se semsatisfazer seu desejo. Um pouco mais adiante, numa rua transversal,há um bar aberto. Entra, e logo que desabotoa a braguilha surge umrapaz louro que se inclina e chupa seu membro de surpresa.Lúcio deixa, divertido e pasmado, vendo que o jovem se masturbacom um frenesi cego. Ao sair, vê que outro louro, que estava nacalçada do Deserto, o deseja e o segue. (CARELLA, 2011, p. 75,grifo nosso)Em Fiestas, baños y exilios. Los gays porteños en la ultima dictadura (2001),Flavio Rapisardi e Alejandro Modarelli acenam para um declínio da prática da“pegação” em banheiros nas grandes cidades Ocidentais como Buenos Aires, Córdoba,Londres e Nova Iorque. Eles atribuem o desaparecimento a fatores como a privatizaçãodo circuito do sexo, com aberturas de clubes de sexo, cines eróticos e também as


41mudanças arquitetônicas e urbanísticas proporcionados pelo neoliberalismo, pois osbanheiros de shopping e estabelecimentos privados são extremamente vigiados. Não épossível notar esse declínio da prática da pegação em Salvador, mas constata-se que aprivatização do circuito do sexo não ocorre com a mesma velocidade por aqui. Desde2000, a capital baiana conta somente com duas casas do gênero: Queens e Cabine 155.


422 EROTICIDADES HETEROSSEXUAIS MASCULINAS: TENSÕES EMTORNO DO MODELO HEGEMÔNICONos anos 1970, com a publicação do primeiro volume da História daSexualidade, Foucault contestou o discurso dominante disseminado sobre a sexualidade,que, desde o período vitoriano, reforçou a premissa de que o comportamento sexual eracaracterística ou fato natural da vida humana. A obra de Foucault é importantíssimapara a compreensão da sexualidade para além dos aspectos biológicos. Ao evidenciarque a sexualidade é uma categoria construída, com origens históricas, sociais eculturais, o historiador e filósofo prestou grande contribuição para a pesquisa dasexualidade e foi um dos responsáveis para que tais estudos seguissem um rumo quedivergia da maioria das pesquisas da época, que eram construídas sob uma ótica médicae patologizante.Com essa perspectiva provocadora, Foucault ajudou a canalizar o olhar doscientistas sociais para o papel que o discurso conservador das instituições exercia naformação da sexualidade ocidental. A preocupação principal de Foucault não era definirou conceituar a sexualidade, o foco do seu trabalho era entender a maneira como elafunciona na sociedade. Logo, a sexualidade não é estática e sofre mudanças com osprocessos históricos e sociais que fazem com que novas modalidades sejam sempreproduzidas.Estimulado pelas reflexões de Foucault, neste capítulo problematizarei o modelode masculinidade hegemônica presente no imaginário brasileiro. O objetivo é discutiroutros modelos de eroticidade heterossexual masculina permissíveis na prática do“banheirão”. Os relatos de campo que seguem ilustram identidades de homens que seauto-definem heterossexuais, mas cujas práticas alteram, de certo modo, a matrizheterossexual hegemônica, fugindo do que se convencionou permissível para um“macho” dentro da conjuntura social brasileira. Lançarei o meu olhar para essasheterossexualidades periféricas e, para isso, também é necessário discutir qual odiscurso que regula a eroticidade heterossexual hegemônica, isto é, o que é ser um“homem de verdade” no Brasil? Na última seção, discutirei a hierarquia que seconstruiu tomando como topo o modelo hegemonizado e como base a ostensiva repulsaem relação aos afeminados.


432.1 A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA E AS HOMOSSEXUALIDADESBRASILEIRASAo deixar de ser apenas um adepto da “Pegação” nos sanitários públicos daEstação da Lapa e adjacências e lançar um olhar também de pesquisador sobre esseobjeto tão dinâmico, afinal, como já disse a partir de Perlongher (2008, p. 60), o tipo depesquisa aqui apresentado escapa dos eixos tradicionais da Antropologia, pois não setrata de “comunidade” ou de um “grupo”, e sim de práticas homoeróticas na derivaurbana de Salvador e dos sujeitos nelas envolvidas.Por isso, logo veio à memória as reflexões realizadas por Fry (1982) no artigoDa Hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil,cuja proposta é “investigar a construção das categorias sociais que dizem respeito àsexualidade masculina no Brasil” (FRY, 1982, p. 87). Para Fry, fica evidente queconceitos de “homossexual” e “homossexualidade” não poderiam ser utilizados empesquisa de campo realizada por ele em Belém, no Pará. A acertada posturametodológica do etnógrafo parte da reflexão de que esses conceitos teriam sido gestadospelas ciências biomédicas e apropriado pelo movimento homossexual das grandescidades e enfatizavam a igualdade entre parceiros, o que era destoante do modelo de“Bofes” e “Bichas” predominante na periferia de Belém do início dos anos de 1980. As“Bichas” de Belém em nada pareciam com os “entendidos” 24 ou gays de classe médiados grandes centros brasileiros.Era um modelo sexual regido pelas díades atividade/passividade,dominação/submissão. Ao “homem” cabia se comportar de maneira “masculina” e à“bicha” reproduzir um comportamento “feminino”. No ato sexual, a função do“bofe/homem” é penetrar; a da “bicha”, ser penetrada. As ações de penetrar (atividade)e de ser penetrado (passividade) são o reflexo de um cenário em que o “bofe/homem”domina e a “bicha” é submissa.Ainda segundo Fry, naquele contexto cultural, ficava perceptível que asrepresentações das relações sexuais-afetivas entre ‘homens’ e ‘mulheres’ esboçavam24 Modelo de relacionamento homossexual não pautado na dicotomia “ativo” e “passivo”, presente entreos gays das classes médias dos grandes centros urbanos brasileiros a partir da década de 1960. Diferentedo modelo “Bicha” e “Bofe”, entre os “entendidos” a passividade não estaria necessariamente ligada àfeminilidade e os papéis sexuais não seriam tão demarcadas e poderiam variar entre os parceiros. Paramelhor aprofundamento ver a etnografia pioneira O Homossexual visto por Entendidos de Guimarães(2004).


44basicamente um sistema pautado na dominação e na submissão, e não na“homossexualidade”. É indispensável ressaltar que ao bofe/homem era permitidomanter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo sem ferir a sua condição de“homem de verdade” caso desempenhasse o papel de ativo. Diante disso, apesar da“bicha” ser considerada uma figura desviante, as relações entre “bichas” e“bofes/homens” eram normativas e não representavam uma transgressão perante aordem sexual vigente.Ainda no âmbito da América do Sul, um estudo com dois grupos de “homensque fazem sexo com homens” (HSH) 25 de bairros pobres de duas cidades costeiras doPeru, a capital Lima e Trujilo, mostrou um modelo de relações afetivo-sexuaissemelhante ao observado por Fry na periferia de Belém e também pautado naatividade/passividade. Segundo Fernandez-Dávila (2005), o fato de se relacionaremcom homossexuais, travestis e mariconas não violava a masculinidade de homens quetambém se envolviam com mulheres e desempenhavam atividades consideradaspertinentes à conduta de um heterossexual. Ele notou que as relações sexuais entre esseshomens com condutas marginais e clandestinas eram aceitas e toleradas quandomantidas num pseudo-anonimato. Elas eram uma espécie de “segredo aberto” epoderiam até figurar como fofoca, mas não eram oficialmente assumidas. Esses homenssão popularmente chamados de esquineiros quando mantêm relações sexuais comafeminados sem fins lucrativos e mostaceros quando praticam sexo pago. Logo aosmostaceros/esquineiros machos e ativos cabia se comportar de forma viril, como“homens de verdade”. Uma conduta semelhante à das mulheres era designada aoshomossexuais com trejeitos femininos e passivos.Ao refletir sobre o sistema de gênero brasileiro, Parker (1999, p. 55) observa que“talvez em nenhum outro lugar do mundo esta distinção entre atividade e passividadeseja mais evidente do que na linguagem popular usada para descrever as relaçõessexuais, em verbos como comer e dar”. Ele nota que a utilização da palavra comer paradescrever a penetração ativa até nas relações entre machos e fêmeas é um reflexo da25A terminologia HSH – Homens que fazem sexo com homens – surgiu nas políticas de saúde para oenfrentamento HIV, com o intuito de conciliar a divergência de comportamento sexual e identidades entreesses homens. Muitos autores, dentre eles Júlio Simões e Sérgio Carrara, pensam que essa denominação éproblemática por “dissolver a questão da não-correspondência entre desejos, práticas e identidades numaformulação que recria a categoria universal ‘homem’ com base na suposta estabilidade fundante do sexobiológico, ao mesmo tempo em que permite evocar as bem conhecidas representações da sexualidademasculina como inerentemente desregrada e perturbadora” (Carrara e Simões, 2007, p.94, nota 35)


45dominação simbólica presente na cultura tradicional brasileira de gênero e em diversoscontextos o verbete pode significar possuir ou vencer. Já o verbo dar é utilizado comosinônimo de submissão passiva de quem é penetrado.Após três décadas da publicação da obra de Fry (1982) e há mais de uma décadada publicação do livro Parker (1999), é evidente que a forma de o brasileiro encarar asexualidade e o gênero passou por profundas transformações. A ação do MovimentoLGBT organizado, o crescimento estrondoso da Parada do Orgulho Gay de São Paulo, aproliferação de uma série de outras paradas gays nos lugares mais longínquos edistantes do país e a presença de personagens homossexuais nas poderosas 26 telenovelasda Rede Globo contribuíram para que a figura do Gay másculo e de classe média, que serelaciona com iguais, chegasse até as camadas mais populares da população.Atualmente, as representações de um homossexual afeminado (com trejeitosfemininos e muito semelhantes ao modelo “bicha” versus “bofe/homem” apresentadopor Fry) e de um homossexual próximo da figura do entendido (másculo, branco, declasse média, corpo atlético e com parceiro de características semelhantes) estão bemconsolidadas no imaginário do brasileiro. Esse último modelo citado foi tomado comopadrão e aqueles que não se enquadravam nele passaram a ser estigmatizadossocialmente, inclusive dentro da própria cena gay. Não comungar desse ideal do gaymásculo, viril e monogâmico coloca o sujeito divergente sobre rótulos pejorativos comoo da “bicha louca e fechativa” 27 , da “bicha pão com ovo” 28 e do “gay promíscuo”.26 Apesar de ter perdido audiência nas últimas décadas, as telenovelas da TV Globo ainda são osprogramas televisivos mais assistidos no Brasil. Até a década de 1990, a novela das oito (exibida às 21h)chegava a marcar 60 pontos de audiência (cada ponto é equivalente a 60 mil domicílios na Grande SãoPaulo). Atualmente, a trama das oito Avenida Brasil chega a marcar em média 40 pontos e é a atraçãomais vista pelos brasileiros. De acordo com reportagem da Revista Veja, “um capítulo de IrmãosCoragem, de Janete Clair, foi mais visto que a vitória do Brasil sobre a Itália na final da Copa do Mundode 1970, um dia antes.” Em sua autobiografia lançada em 2011, um dos responsáveis pela criação dessemodelo de teledramaturgia, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (BONI), narrou um episódio quedemonstra a força desse produto televisivo no país: “No dia 1º de janeiro de 1971, eu e minha família, oTarcísio (Meira) e a Glória (Menezes)... e alguns familiares fomos participar da procissão marítima doSenhor dos Navegantes em Salvador... Eram mais de mil barcos no mar... Os barcos iam navegando etodos cantavam hinos religiosos, como ‘Queremos Deus’. Quando perceberam que o Tarcísio Meiraestava em uma das embarcações, as pessoas do barco ao lado começaram a entoar a música de abertura deIrmãos Coragem e a coisa foi passando de barco em barco. De repente, mais de três mil barcos e trintamil pessoas cantavam, no mar de Salvador, a uma só voz: ‘Irmão, é preciso coragem... Milhares deembarcações tentavam se aproximar da nossa, atirando flores e jogando beijos...” (OLIVEIRASOBRINHO, 2011, p 259.).27 "o povo chama de 'bicha louca'- rapazes efeminados ou "desmunhecados", que não têm comoesconder sua "androginia psicossocial", e que se distinguem dos travestis por que não se vestem demulher, embora alguns adotem nomes femininos, se chamem entre si de "monas", "mulher", etc."Fechativa" ou "fechação" vem de "fechar", que no vocabulário gay, ou no "bichionário" é sinônimo de"dar bandeira", exibir-se, "arrasar". A bicha fechativa é certamente a categoria homossexual que sofre


46Como já explicitei no capítulo anterior, após chegar do interior do Estado paraestudar em Salvador, no final dos anos 1990, a dificuldade de inserção na Cena Gay decidade grande – na qual o objeto de desejo ideal era o homem másculo, de corpo atléticoe que conseguia manter um padrão de classe média e sustentar uma vida boêmia nosbares e boates da moda e vestindo roupas de grife – fez como que eu enxergasse naprática da “pegação” uma oportunidade de exercer a minha sexualidade de forma livre.Em pouco tempo de convívio na Capital, eu descobri as interações homoeróticas queocorriam aos fundos do Farol da Barra e a “pegação” nos sanitários de Shoppings eEstações de ônibus.Diante da variedade e da heterogeneidade dos freqüentadores não é possívelafirmar qual o tipo de homem que pratica a “pegação” nos sanitários públicos daEstação da Lapa. Não tenho dúvidas que esse contingente de trabalhadores e estudantes,em sua maioria negra, mestiça e moradora da periferia da Capital 29 , é unificado pelodesejo sexual homoerótico. Isso não quer dizer que esse desejo seja uniforme, pelocontrário, a minha experiência levou-me a perceber que, apesar da busca pelo “homemde verdade”, esse desejo se manifesta de maneiras muito heterogêneas e diversas.Em uma das minhas idas a campo, numa conversa informal, ou melhor, numaentrevista itinerante, tentei contato verbal com um homem de cerca de 60 anos, quesempre estava presente no mictório da Lapa. A figura daquele senhor discreto, semprede calça comprida e camisa de botão xadrez, branco, para os padrões soteropolitanos 30 ,e calvo, me chamou atenção. Seja no mictório do sanitário do piso de serviços da Lapamaior discriminação e violência, exatamente por se situarem, indefinidamente, na fronteira entre o machoe a fêmea. Há travestis que dizem ter sofrido mais violência nas ruas quando eram "bichinhas" do quedepois que vestiram saia.” Texto extraído do Manual do Multiplicador Homossexual do ProgramaNacional DST/AIDS do Ministério da Saúde. Disponível:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd10_09.pdf em: 30/11/201128 “Bicha-pão-com-ovo – S.f. (pejorativo) (P) 1. Homossexual pobre culturalmente; 2. Diz-se das bibitasque não têm condições financeiras para comer na rua e levam um pão com ovo para comer na condução,na viagem de volta para casa depois da balada. Ex.: Aquela lacria saiu voada da domingueira com asbichas-pão-com-ovo; já eram onze e meia e ela não podia perder o último metrô. 3. Refere-se àquelabicha de moral baixa, sem escrúpulos nem dignidade e com lapsos de caráter. Ex.: Gustafa, aquela bichapão-com-ovo,ela não se enxerga mesmo; agora deu pra ficar dando em cima do meu bofe!”. Disponívelem: .Acesso em: 20 jan. 201229 Essa afirmação não exclui a presença de homens de outras classes sociais, mas a maioria dos que fazempegação naquela região são homens que utilizam daquela Estação para pegar ônibus e fazer o percursocasa/ trabalho ou escola e vice e versa30 Apelidada de Roma Negra, parece até clichê reafirmar aqui que a Capital da Bahia é a cidade maisnegra do Brasil, mas é necessário informar que em uma terra tão negra como Salvador, convencionou-seum degradê de cores e tonalidades. E nesse sistema racial á brasileira, os negros que possuem a pele maisclara e o cabelo menos escuro e se enquadram num padrão mais próximo ao do branco europeu, podemtornar-se brancos.


47ou na escada da última plataforma, ele sempre carregava na mão uma lata de cerveja. Eusempre o observava comprando mais cervejas no isopor do primeiro piso de embarque edesembarque. Eram 18h de uma segunda-feira do mês de outubro, a fila do posto derecarga do Salvador Card estava imensa e, enquanto isso, em meio ao horário de picoda Estação da Lapa, o fluxo de homens em busca de prazer entre os sanitários e a escadada última plataforma era grande. Em um momento, junto-me a uma dezena deles quefingia urinar e se masturbava na escada. O senhor de cerca de 60 anos era um deles. Apassagem de uma viatura da PM, nas imediações da escada, fez com que os adeptos dapegação corressem e se dispersassem.Minutos depois, reencontro-o encostado em uma das pilastras do Terminal deônibus. Puxo conversa, o homem é receptivo ao meu papo e narra, brevemente, suahistória. Conta-me que foi casado com uma mulher por mais de 25 anos, com quem temuma filha de 22 anos. Ele é professor de matemática aposentado da Rede Estadual e viuseu casamento terminar após a esposa descobrir a paixão e o caso amoroso com umaluno da escola na qual ocupava o cargo de vice-diretor do noturno, numa cidade dointerior do estado. Ele me contou: “O rapaz era maior de idade, tinha 19 anos e eraaluno do terceiro ano. Nós passamos a andar junto o tempo todo. Ele frequentava aminha casa. Meu grande erro foi presenteá-lo com uma motocicleta. A cidade toda ficoucomentando e isso fez com que minha mulher confirmasse as suspeitas e terminassecomigo”.O professor me contou que o primeiro contato dele com a “pegação” na Estaçãoda Lapa ocorreu após solicitar transferência para uma escola na Capital. “Eu era loucopara conhecer a sauna quando morava no interior, mas, quando fui a uma, ninguém mequis. Tava cheio de rapazes novos, bonitos, malhados, mas eles só queriam os novinhoscomo eles e me desprezaram. Aí, eu dava aula num Colégio aqui no Centro. Passava poraqui todo dia para pegar ônibus e via a putaria. Aqui é possível pegar caras novos, masna sauna não. Gosto de novinhos de 20 anos, não curto velhos da minha idade”.O professor aposentado é mais um homem que, como eu, enxergou no banheirouma oportunidade de exercer sua sexualidade dissidente. Em Pensando o Sexo: Notaspara uma Teoria Radical da Sexualidade, a antropóloga norte-america Gayle Rubin(2003) atenta para o fato de que as sociedades ocidentais modernas classificam os atossexuais conforme um sistema hierárquico de valores sexuais. Nesse sistema, homenscomo nós, que mantêm relações sexuais com outros homens em lugares públicos e não


48somos monogâmicos, fazem parte das castas sexuais mais desprezadas. Ainda segundoo esquema apresentado por Rubin, ficamos muito abaixo dos casais lésbicos e gaysestáveis, de longa duração, que figuram no limite da respeitabilidade. Aos adeptos da“pegação” resta o olhar patológico e criminal.Como Fry (1982), ao lançar o olhar sobre o meu objeto de pesquisa, percebi quenem o conceito de homossexualidade, gestado nos moldes de um movimentohomossexual de classe média; nem o de “Masculinidade Hegemônica” 31 , que rejeitaoutras formas de masculinidade divergentes da firmada pelo modelo viril e másculobrasileiro e latino americano, serviam para pensar a questão das relações homoeróticasna Estação.2.2 O “HETEROSSEXUAL PASSIVO” E OUTRAS HETEROSSEXUALIDADESFLEXÍVEIS EM CAMPOComeçava mais uma tarde de sol escaldante em Salvador e, após uma manhã detrabalho, resolvi passar no sanitário da Estação da Lapa com o intuito de realizar maisuma maratona de observações para esta pesquisa. Como já havia sinalizado no capítuloanterior, o local sofre degradação total, um mau cheiro estonteante, falta de portas nascabines, torneiras sem pia, mictórios com vazamento que fazem com que a urina caiasobre os pés dos usuários. Essa descrição da atmosfera física da Estação pareceexaustiva, mas é proposital, pois como cidadão, contribuinte que se sente lesado comalta carga tributária desse país, não consigo deixar de esboçar a minha indignação dianteda omissão dos poderes públicos perante a tamanha degradação.Naquela tarde de terça-feira, em que a cidade já tinha cara de feriadoprolongado, pois parte da população já deixava a Capital para aproveitar os dias deCorpus Christi e de São João no interior, um homem isolava o mictório e deixava comoopção para os passageiros apenas as privadas, local onde se ficava extremamenteexposto por não ter portas. Dava pra ver alguns homens que defecavam sentados novaso sanitário e outros urinavam ou defecavam nos cantos do banheiro.31A “Masculinidade Hegemônica” garante a legitimação de ideais fundados dentro de um “patriarcadobrasileiro” e representa a consolidação de um homem viril, dominador, provedor e preferencialmentebranco. Esse modelo de masculinidade não abarca a série de masculinidades líquidas que surgem emcontextos considerados transgressores. Para aprofundamento nesse conceito ver PINHO (2011) eALMEIDA (2000)


49Saí daquele banheiro em direção ao do Shopping Piedade, vizinho a Lapa.Quando o sanitário da Lapa sofre alguma interdição o fluxo nos sanitários do Piedadeaumenta. Realmente, o sanitário do piso L2 estava cheio. Dentre os usuários, umhomem de mais ou menos 25 anos me chamou atenção. Ele era negro, alto, magro emuito atraente. Tinha um belo sorriso, carregava uma mochila nas costas e haviaestacionado no último mictório do banheiro. Os movimentos de masturbação,interrompidos com a chegada de homens estranhos, que não davam sinais de interesseem interações homoeróticas, eram visíveis. Não demorou muito para que percebesseque eu o observava, começamos a trocar olhares e eu encostei-me no mictório queestava ao seu lado e, também, comecei a me masturbar.Logo em seguida, chegou um homem, negro, forte, trajando camiseta regataamarela, bermuda surf wear 32 , batidão 33 dourado no pescoço. Ele não se aproximou domictório, mas me chamou atenção, pois olhava com muito desejo e sem disfarçar paranós dois. Não cheguei a temê-lo, pois o tesão que sentia era perceptível. De repente, eleencosta-se na fileira oposta do mictório que nós usávamos, finge urinar. Para no meiodo banheiro e tenta olhar nossos pênis. O servente do banheiro entra em cena, ele ocumprimenta e pergunta: “De folga hoje”? Ele responde: “É, dando um rolé [sic] ecurtindo meu dia de folga!!”. Com a chegada do servente, eu e o outro rapaz deixamos omictório e nos dirigimos à pia para lavar a mão, o rosto e arrumar o cabelo.O homem de regata amarela – que pelo visto trabalha no Shopping Piedade –também para em frente ao espelho da pia e nos olha. Saímos juntos os três do sanitário,começa uma troca de olhares, todos caminham em direção a Estação da Lapa, aexcitação é visível pelo volume dos pênis eretos que transparecem, mas apesar decaminharmos na mesma direção não trocamos uma só palavra.O silêncio impera. Entramos no banheiro da Estação, algumas “bichaspintosas” 34 conversam sobre o estado de degradação daquele banheiro estacionadas emfrente aos espelhos e um deles diz “tem gente que está gostando”, se referindo aos32 É um estilo popular de vestuário casual, inspirada pela cultura do surfe. Muitas marcas relacionadas aosurfe surgiram de indústrias artesanais, suprindo surfistas com bermudas, roupas de mergulho, pranchasde surfe e outros acessórios. Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Surfwear em: 20/11/201033 Cordão de bijuteria, ouro ou prata, que confere status e prestígio, a homens jovens oriundos de bairrosperiféricos, dentro das comunidades onde eles residem. O batidão é um acessório da estética do Hip-Hope do Funk Carioca e nas duas últimas décadas foi incorporado por jovens adeptos do pagode baiano emSalvador.34 Termo pejorativo utilizado para rotular gays afeminados que “dão pinta ou bandeira” demonstram,através de gestos e trejeitos, a homossexualidade.


50homens adeptos da “pegação”, que transitam sedentos por uma interação homoeróticaentre os sanitários dos shoppings Lapa, Piedade e da Estação da Lapa e as escadas deemergência desses estabelecimentos. O mictório continuava interditado, seguíamos anossa “deriva” a procura de um lugar para concretizarmos o nosso desejo. Fomos até aescadaria da última plataforma da Lapa – pouco movimentada por ter ficado interditadapor muito tempo durante as intermináveis obras do Metrô – o lugar sujo, que durante anoite numa espécie de breu – estava muito iluminado por conta do horário, por volta de15h e era impossível “fazer 35 “ ali. O negro alto desistiu e se desvencilhou da gente. E,eu e o homem de camisa amarela voltamos para a parte superior da Estação da Lapa.Ele encostou-se a uma das sacadas do primeiro piso, próximo à saída para o ColégioCentral, na Avenida Joana Angélica, eu parei próximo. Ele se aproximou de mim edisse: “Não posso vacilar aqui porque sou segurança do Piedade e alguém pode me veraqui fazendo pegação. Você tem local?”. Eu respondi que morava distante da Lapa commeus pais e não tinha local. Olhando o tempo todo para minha bermuda que marcava ovolume do pênis ereto, ele respondeu: “Eu sou casado, moro com minha mulher e duasfilhas no Matatu de Brotas. Minha esposa está no trabalho, minha filha mais nova de 2anos está na creche e minha outra mais velha, de 13 anos, deve está saindo para umcurso. Vou ligar pra ver se ela já saiu”.Ele telefona para a filha e constata que a garota não está mais em casa. E resolveme convidar para irmos até a sua casa: “Olha, eu vou confiar em você. Nunca levoninguém para minha casa e você tem cara de que é do bem. Minha mulher é policial(tive a impressão de que falou para tentar me amedrontar), está trabalhando emCamaçari e só vai voltar às 18h. Vamos lá pra casa. Dá pra gente foder a vontade”.Concordei em ir, mas fiz ressalvas: Negão, eu não quero problemas com sua mulher.Você tem a certeza de que ela não irá voltar antes? Obtive como resposta: “Brother, énenhuma”! “Pode ficar tranquilo que é limpeza”. “É só a gente não demorar”. Subimosa escada rolante em direção a Joana Angélica e seguimos andando para o Matatu deBrotas.O segurança preferiu fazer o trajeto a pé. A opção dele foi proveitosa para mim,pois consegui conversar bastante com ele no caminho. Perguntei há quanto tempo35No meio LGBT e entre os adeptos da pegação o verbo “Fazer” não necessita de complemento. Aexpressão “fulano fez”, por exemplo, já traz elíptico o fazer sexo. Em rodas de conversas com colegaslingüistas gays, chegamos a parodiar o título “Amar, verbo intransitivo” de Mario de Andrade com aexpressão “Fazer, verbo intransitivo”.


51“rolava” esses “lances” com ele no banheiro? Ele respondeu: “há mais ou menos trêsanos. Depois de transar com um primo fiquei ligado nessas coisas e comecei afrequentar, os banheiros, mas com muito cuidado porque não posso me queimar, depoisde trabalhar no Shopping”. Ele completou “a gente pega muitos caras fodendo dentrodas cabines e é muito constrangedor. A gente leva para a administração, eles assinamum livro de ocorrência e, em seguida, são conduzidos para o módulo policial e podematé ser presos. Você sabe que é crime de atentado ao pudor!”. Eu retruco: - Mas até vocêque curte a putaria faz isso com os caras?”Ele responde: “tenho de fazer quando sousolicitado pelo cara da limpeza, ou quando estou com outros colegas. Quando pegosozinho, eu peço para sair e digo que eles podem ser presos”.Em seguida, conta-me que “todo” segurança faz. E já fez com três colegas novestiário do Shopping Piedade. Pergunto se isso não “vaza”, se não rola boato, fofoca eele responde que não, pois todos são casados. Ele me deu a dica e os horários detrabalho de um funcionário da limpeza do banheiro próximo à entrada da C&A doprimeiro piso. Disse que o rapaz trabalha a partir das 14h e folga às quintas-feiras. É um“cara gostoso, malhado e macho”, discreto e “não dá pinta” e adora “sentar numa pica”.Conta também que na semana anterior, havia feito sexo com um policial colega detrabalho da esposa. “Eu estava bebendo com ele, minha mulher e a dele na casa dele, nodia de Santo Antônio e percebi que ele olhava para minhas pernas diferente”. “Ficoutarde e acabamos dormindo na casa dele”. “Transamos a noite toda enquanto nossasesposas dormiam. Ele me chupou e eu chupei ele, comeu o meu cu e eu comi o dele. Foimassa. No outro dia fomos embora e fingimos que nada tinha acontecido”.Passamos pela Avenida Joana Angélica, pelo Campo da Pólvora, descemos aLadeira do Estádio da Fonte Nova e continuávamos a andar e conversar. Na Ladeira dosGalés, nos deparamos com um adolescente muito atraente trajando short e camiseta, ogaroto aparentava ter 16 anos, de longe admiramos a beleza dele, as pernas grossas, abunda grande e ele confessou-me ser assediado por um vizinho adolescente de 15 anos,que o menino era uma “tentação” e vivia convidando-o para transar dentro da casa deseus pais, quando eles saiam para trabalhar. O segurança jurou-me nunca ter cedido aosassédios do menor – criado pela mãe e pelo padrasto – considerado por ele um homemmuito “gostoso” e atraente. O garoto confessou-lhe manter relações sexuais com omarido da mãe quando a mesma sai para o serviço.


52Logo depois, ele olhou para o ponto de ônibus no qual estava parado um jovemde aproximadamente 25 anos e falou “tenho certeza que aquele ali é da putaria”! Nósdois olhamos para o rapaz que correspondeu o olhar e nos seguiu até o SupermercadoBompreço do Matatu. Sugeri que ele convidasse o jovem para também ir até a casa delee temeroso de que a presença de mais um pudesse levantar suspeitas na vizinhança elerecusou.Enfim, após passar pelo supermercado, descemos a primeira de uma série deescadarias e adentramos a invasão 36 em que ele reside. Não demorei a perceber que eleera muito popular no local, pois cumprimentava vários moradores (homens e mulheres)que transitavam as ruas estreitas. Ao chegar à escadaria onde morava, ele simulou umaconversa para fingir que nos conhecíamos de outro contexto mais familiar “Rapaz,minha mãe estava prestando atenção e viu que ela exagerou na bebida”. Depoiscumprimentou a vizinha de frente à sua casa – que fica n 1° andar de um sobrado.Adentramos a casa, fotos das filhas. Ele oferece água; eu aceito. Sou conduzido por eleaté o quarto do casal. Começamos a nos beijar, despimo-nos e ele insiste numapenetração sem camisinha. Eu recuso e acabo gozando quando ele me faz sexo oral.Noto a foto de um homem na cabeceira da cama e pergunto quem é. Embaraçosamente,ele diz que é o cunhado, mostra-me fotos da filha adolescente e da menor, mas nenhumafotografia da esposa. Peço para ir ao banheiro, pensei em me lavar, mas não tinha água.Uso papel higiênico para limpar o pênis com resto de esperma e sou interrompido porele, que simulando certa aflição, diz ter ouvido o celular tocar. Eu, que tenho ouvidosmuito sensíveis, não escutei nada. Vai até o quarto, pega o telefone e diz que a ligaçãoera da filha adolescente. Retorna, e diz “Cristiane 37 , como você esquece sua apostila?”.“Você precisa sair porque minha filha esqueceu a apostila e está voltando para buscar.”Finjo sair apressado. Ele me conduz até a frente de casa, pois necessita abrir o portão ese despede dizendo “Na próxima semana, Alberto te paga a outra parte, ele está no36 Conjunto de habitação popular erguido a partir da ocupação de um terreno público ou privado,geralmente desprovido de serviços básicos, como educação, segurança, saúde e saneamento. Nasmetrópoles do sudeste brasileiro, esse tipo de moradia é denominado favela. Em Salvador, até a década de90, a palavra favela, tinha uma carga negativa e, por isso, os próprios moradores preferiam o termo“invasão”. Atualmente, jovens da periferia e do Subúrbio Ferroviário influenciados pelo movimento Hip-Hop, pelo Funk Carioca e, principalmente, pelo “Pagode Social” ou “Neo-pagode” (denominaçõesutilizadas pelos veículos de comunicação para rotular bandas de pagode baiano, que cantam problemasdas comunidades) utilizam a palavra “favela” com um cunho de auto-afirmação. Expressões como “Vocêé Favela ou é Orla?” e “Sou Favela” são muito comuns para afirmar essas origens, mas em outroscontextos, menos poéticos, e dentre outras faixas etárias, a palavra invasão ainda é predominante.37 Todos os nomes de personagens desse trabalho são fictícios para preservar as identidades das pessoas


53trabalho agora”. O que me fez pensar que aquele lar era construído por um casalhomossexual.O episódio relatado acima me fez lembrar uma cena vivenciada antes doingresso no curso de Mestrado, em meados do ano de 2009, quando realizei um précampopara escolha do objeto e elaboração do anteprojeto desta pesquisa. Numa tardede sexta-feira, fazia observação no sanitário público da Estação de Transbordo doIguatemi 38 , quando percebi que alguns dos adeptos da pegação subiam no vaso paraobservar uma interação que acontecia entre dois homens na cabine de deficiente físico,que é maior do que as outras. Percebendo tamanho alvoroço e excitação, movido pelacuriosidade que a mim é inerente, negociei com outro homem que ocupava a cabinevizinha para subir no vaso sanitário. Logo dei de cara com um homem negro de mais oumenos 1.90 metros sendo penetrado por outro homem negro dentro da cabine. Apóspresenciar a cena, desci do vaso sanitário, saí da cabine e passei a observar amovimentação dentro do sanitário. Alguns minutos depois os dois homens deixaram acabine e se separaram. O homem que penetrava saiu rapidamente pela passarela depedestres e sumiu em meio à multidão que trafegava na movimentada região. Já o queestava sendo penetrado se dirigiu ao ponto de ônibus da estação, onde esperavacondução para retornar ao lar, possivelmente depois de uma jornada de trabalho, poisele trajava a calça da farda de uma empresa de segurança e carregava uma mochila nascostas. Fiquei a observar o homem de longe, pensei em fazer um contato verbal embusca até de uma possível entrevista, mas naquele momento não tive oportunidade.Voltei para casa frustrado, pois poderia não encontrá-lo nunca mais.Mais ou menos quinze dias se passaram, eu retorno a Estação Iguatemi.Gostaria de explicitar que no início dessa pesquisa eu carregava uma imensa dúvida,pois ainda não havia definido o recorte geográfico da minha pesquisa. Sabia que dianteda problemática de deslocamento em uma metrópole com a dimensão de Salvador, euprecisava optar por uma região da cidade e, mais tarde, venho escolher a Região daEstação da Lapa. Os motivos dessa escolha já foram explicitados no capítulo anterior,mas penso que a Região do Shopping Iguatemi, considerado o novo Centro financeiroda capital baiana, também, oferece um cenário de investigação bastante dinâmico.38 De acordo com reportagem de Daniela Prata, exibida em 25.07.2011 no programa “Bahia no ar” da TVItapoan, Rede Record, a Estação de Transbordo do Iguatemi é a terceira em número de passageiros daCapital Baiana, 65 mil pessoas embarcam e desembarcam no local que funciona 24 horas por dia. Namatéria, a repórter mostra o estado de degradação do sanitário masculino, sujo, sem torneira e comvazamentos. Disponível: http://www.youtube.com/watch?v=hbnIbELsb3c em: 30/11/2011


54Mas agora voltemos a Estação de Transbordo do Iguatemi. Já passavam das 19horas e ao adentrar ao sanitário masculino, me deparo com o mesmo homem, trajandouma calça de uma empresa de segurança patrimonial, uma camiseta regata branca e comuma mochila nas costas. Com o intuito de me aproximar, finjo urinar no mictório aolado. Trocamos olhares e começamos a nos masturbar, enquanto olhávamos um para ooutro. Em seguida, estrategicamente, guardo o meu pênis e deixo o sanitário. Ele mesegue. Sento-me em um dos bancos da Estação e logo após, ele senta ao meu lado. Puxouma conversa e ele me convida para voltar ao sanitário. Informo que não posso, poistenho horário para chegar em casa. Ele pergunta se sou casado, respondo que não, masmoro com minha mãe. Ele me conta que tem 32 anos, é casado com uma mulher, morano bairro de Massaranduba, na Cidade Baixa, e tem um filho de 6 anos. O papo sobre afamília é a deixa para que eu pergunte sobre como ele se define sexualmente. Eleresponde que se considera heterossexual, pois é um “cara homem”, comporta-se comoum homem, não anda rebolando e nem desmunhecando e não freqüenta o meio-gay.Diante dessa afirmação sinto-me à vontade para provocá-lo e digo “Como vocêpode se considerar heterossexual, se outro dia vi você ‘dando a bunda’ para outro ‘cara’na cabine de deficientes do banheiro aqui do transbordo”? Obtenho como resposta que“isso não tem nada a ver, ser bicha é se comportar como uma bichinha, se o cara é“plantado 39 “, anda e fala como um homem, ele pode ser ativo ou passivo.” Insisto epergunto mais uma vez como ele se define sexualmente, pois, para a maioria daspessoas, dar a bunda não seria aceitável para um macho e ele responde: “me consideroum heterossexual passivo, sou casado, tenho filhos e respeito a sociedade e não saio poraí provocando e dando pinta”.39 O termo “plantado” é muito usado em chats e sites de relacionamentos gays para designar que não se éafeminado ou cheio de trejeitos, que coloquem em xeque a masculinidade e a virilidade.


552.3 O JOGO DAS HETEROSSEXUALIDADES FLEXÍVEISOs relatos de campo apresentados acima mostram experiências em que aheterossexualidade se concretiza através de masculinidades e heterossexualidadesflexíveis. O jovem que se auto-intitula “heterossexual passivo”, o segurança que, apesarde casado e “pai de família”, concede penetrar e ser penetrado por outro homem, e oprofessor casado que se envolve amorosamente com um aluno mais jovem e faz“pegação” em banheiro rasuram o sistema de gênero heteronormativo vigente nasociedade brasileira e latino-americana (FIGARI, 2008).As trajetórias eróticas desses homens adeptos da pegação em banheiro e suaspráticas divergentes são uma ameaça à masculinidade hegemônica ou, se observarmospor outra ótica, podem colaborar para a manutenção desse modelo tradicional demasculinidade, pois tais práticas apenas são permitidas em contextos de anonimato. Omeu objetivo nesse tópico é apresentar uma série de práticas sexuais de homens que seauto-identificam heterossexuais, observadas por mim em campo (a pegação no banheiroda Estação Lapa e Adjacências). Todas elas extrapolam o permissível pelos padrões daeroticidade heterossexual masculina hegemônica vigente.A leitura do artigo publicado por Figari (2008) intitulado HeterossexualidadesMasculinas Flexibles influenciou a minha abordagem metodológica. No texto, baseadoprincipalmente em observação participante e não participantes em darkrooms, saunas eoutros lugares de encontro gay e mistos da Capital da Argentina, o autor descrevediversas possibilidades de variações eróticas consideradas por ele heteronormativas,uma vez que os diversos sujeitos envolvidos se autodenominam heterossexuais, embora,freqüentemente, fraturem, nas mais diversas performances sexuais, as concepções maisrígidas da masculinidade-heterossexualidade hegemônica.Tal como Figari, trabalharei nesta seção com descrição de “cenas” de campo etrechos de entrevistas para descrever essas performances divergentes do discursohegemônico.


562.3.1 A sacanagem – “Todo mundo faz” – “Por debaixo do pano tudo podeacontecer”Parece, de fato, que a dinâmica das interações homoeróticas em contextos deanonimato (banheirão, escadas, praças, parques) proporciona a criação de arranjos queextrapolam os limites mais comuns dos contatos entre homens heterossexuais que searrogam “machos”. Parker (1991) chama a atenção para expressões popularesconsolidadas no imaginário erótico no Brasil como “debaixo do pano tudo podeacontecer”, “entre quatro paredes tudo pode acontecer” ou ainda “as paredes vêem, masnão falam” que seriam índices da forte distinção entre as performances sexuais nopúblico e privado na nossa cultura.Ainda no texto de Parker sobre a cultura sexual do Brasil contemporâneo, a falade uma das informantes aponta para o fato de que é imprescindível estar escondido nahora do ato sexual, não importa se o cenário para as práticas é a casa. Elas podem seconcretizar nas ruas, num beco escuro, ou em uma praia deserta. Estar distante daquelespara quem é preciso manter o status de macho, homem provedor e bem sucedido éindispensável para se poder flexibilizar a heterossexualidade. Os limites da casa, lugardo aconchego e valores familiares, necessitam ser respeitados. O lar é o local dasexualidade doméstica. Por outro lado, a rua da grande cidade, mesmo com aemancipação e a chegada da mulher ao mercado produtivo, continua a ser um domíniomuito mais associado ao masculino. É o lugar do trabalho, também habitado por tiposconsiderados mais marginais como prostitutas, gays, boêmios, malandros.A rua é o território da vivência da liberdade, do perigo e também dos prazeresconsiderados dissidentes. As obras de Freyre (1992), Da Matta (1978, 1985) e Parker(1991) demonstram o poder da oposição rua versus casa na organização da vida diáriados brasileiros.Salvas raras exceções, os colaboradores da pesquisa acreditam que o contextosecreto do “banheirão” em que se pode ser anônimo em meio ao público é um dospoucos lugares da permissividade, da fantasia, do sexo menos domesticado e deexercício de um comportamento sexual que se distancia do ideal de masculinidadehegemônica. Até entre alguns que se autodenominam gays, a premissa de que a casa é olugar do sexo “limpinho” e familiar e a rua está destinada ao sexo considerado “sujo eselvagem” prevalece. Ouvi de dois ex-namorados que conheci quando fazia “pegação”


57no sanitário da Estação da Lapa, adeptos da prática de Fisting 40 e de Chuva Dourada 41antes do início do relacionamento, que “esse tipo de coisa não se faz com o namorado,pois se perde o respeito”. A fala dos dois pareceu-me reforçar o velho discurso de que aúnica posição destinada aos conjugues é o “papai e mamãe”.Como vimos no capítulo anterior, a rua das grandes cidades potencializaencontros eróticos entre homens há séculos no Brasil. A seguir, com base em trechos derelatos etnográficos, procuraremos entender os fatores que funcionam comocondicionantes para que esses homens, auto-identificados como heterossexuais, sejamatores de práticas que podem colocar em risco as suas condutas e reputações sexuais edestruir a imagem de “homem de verdade” e, ao mesmo tempo, ajudam a manter essaimagem perante os círculos profissionais e familiares.Anonimato do CentroCena 1: Em conversa informal, em uma tarde na plataforma de serviços daEstação da Lapa, um empresário, negro, 40 anos, casado e que constantemente“caça”, entre um intervalo e outro, nos banheiros e escadas de emergência dosShoppings Piedade, Center Lapa e da Estação da Lapa, enquanto faz compras para seuestabelecimento comercial na Avenida Sete de Setembro e na Rua Carlos Gomes, diz“Eu não curto fazer pegação em praias 42 como o Jardim de Alah, na Pituba, e a Pedrado Sal, em Itapuã. Se me pegarem saindo de lá não terei álibi e vão dizer ‘É viado,estava fazendo pegação’. Caso seja surpreendido por um conhecido num dossanitários daqui do Centro, disfarço e a desculpa é que estava mijando”.Cena 2: Dois homens interagiam na escada de emergência do Center Lapa.Ambos aparentam entre 30 e 35 anos. Eles faziam sexo oral, beijavam-se emasturbavam-se mutuamente. Um deles era negro, magro, trajava camiseta listrada,40 Fisting (do inglês. Fist - punho) Prática sexual que consiste em inserir o punho no ânus ou na vagina. Éa exploração manual do reto e do "trato digestivo" ou da vagina como uma proposta de busca do prazer.41 Ato de desfrutar da urina do parceiro. Os adeptos geralmente gostam de sentir a urina sobre a pele ouingerir o líquido. A prática também é conhecida como golden shower (Estados Unidos) e watersports(Reino Unido)42 Salvador é uma cidade litorânea, não existe aqui uma tradição de visitação a Parques como acontece emSão Paulo. Apesar de já ter ouvido inúmeros relatos de Cruising de homens com práticas homoeróticas noParque da Cidade (situado entre o Itaigara e o bairro de Santa Cruz), a prática da pegação ao ar livreacontece mesmo em praias como a do Jardim de Alah e da Pedra do Sal.


58bermuda cargo e chinelos. O outro era branco para os padrões soteropolitanos, usavaos cabelos alisados e tingidos de preto, tinha piercing na língua, trajava calça jeansskinning 43 , camisa pólo cor de rosa, calçava um sapatênis e carregava um jalecobranco e um caderno. Em meio a troca de carícias, eles ejaculam. Fico sozinho naescada e resolvo retornar ao sanitário da Estação da Lapa. A pegação está correndosolta. Encosto no mictório dos fundos, onde vários homens se masturbam. Um deles,trajando bermuda preta e camiseta regata listrada e calçando um tênis estilo Joggingmasturbava-se de olhando para o meu pênis que estava semi-hereto. O homem negroque anteriormente encontrei interagindo sexualmente na escada do Center Lapaobservava, se aproximou de mim e, mexendo a cabeça e gesticulando discretamente,convidou-me a deixar o sanitário. Do lado de fora, ele pergunta se aceito ir até oedifício onde ele trabalhou por dois anos. Ele explica que o prédio, localizado nasimediações do Relógio de São Pedro, na Avenida Sete de Setembro, é cheio deconsultórios médicos e está fechado a partir do 6º andar e confessa que sempre levahomens que encontra na Lapa para o 7º andar. Sigo com ele até o local. Tomamos oelevador que só vai até o 5º andar, subimos dois vãos de escada. O 7° andar sofre cominfiltrações e alagamentos. O local é insalubre. Nas escada, ponho meu pênis parafora. Ele coloca-o na boca e em seguida pede para ser penetrado, mas o ato não seconcretiza por falta de camisinha. Deixamos o edifício juntos. Ele pediu para que euesqueça o que aconteceu, confessa-me que é heterossexual e tem uma companheira comquem mora no bairro de Plataforma, no Subúrbio Ferroviário de Salvador e completadizendo “tudo que rolou morre aqui”. Conto para ele que soube que nas ruínas de umafábrica abandonada em Plataforma acontece muita “pegação”. Você freqüenta: Ele dizque não. “No bairro onde eu moro é sujeira. Todo mundo me conhece. Eu só façoquando vou ao Centro. Hoje mesmo saí de casa para fazer um óculos aqui, pois tenhoastigmatismo”.Nos dois relatos de campo apresentados acima, os banheiros, escadas deemergência e prédios do Centro de Salvador proporcionam a esses dois homens casadose “chefes de família” o anonimato para exercer uma sexualidade considerada suja e que43 “Skinny é o modo como se é cortada a Calça Jeans, o corte é bem justo a perna tanto na coxa quanto napanturrilha, com o comprimento um pouco maior que o normal pode-se franzi-la um pouco no calcanhar,e se caso for um homem deve-se franzir também no joelho para que a calça não fique muito esticada comefeito de Leggin e a transformando em uma ‘calça feminina’.”


59poderia destruir suas reputações perante familiares, vizinhos e parceiros nos negócios.Mesmo que venham a ser surpreendidos por pessoas de um desses círculos, os fatos deurinar no intervalo das compras ou se deslocar para confeccionar óculos especiais paraum determinado problema de visão constituem-se em álibis para eles, que, pelo visto,encontrariam dificuldades para explicar suas presenças durante a noite numa praiarotulada como um lugar de “pegação gay” ou nas ruínas de uma fábrica abandonada.Por essa razão, os banheiros da Estação da Lapa, dos Shoppings Center Lapa e Piedadesão os lugares preferidos para que esses homens saiam à caça.É preciso explicitar que com o crescimento de Salvador novos centros vãosurgindo e locais como as Estações Mussurunga e Pirajá vão se configurando comoespaço de “errância e desejância”, mas muitos dos colaboradores dessa pesquisasinalizaram que a proximidade de suas casas, a circulação de vizinhos e parentes sãoempecilhos para que se sintam à vontade para fazer “pegação” nesses lugares e, porisso, preferem a possibilidade do anonimato do Centro.As notícias veiculados nos meios de comunicação soteropolitanos e a minhaprópria vivência em espaços de “pegação” me fizeram acreditar na existência de umavigilância mais truculenta à prática do “banheirão” em novos centros de convergênciada periferia como as Estações Pirajá e Mussurunga e no Centro de Abastecimento deParipe. Esse é um fator que também inibe a participação desses homens na “pegação”nos banheiros desses locais.No final da tarde da segunda-feira 23/07/2012, saí de casa em direção ao Centrode Abastecimento de Paripe para fazer compras. No trajeto, encontro ocasionalmente,um dos colaboradores da pesquisa. Marcos tem 28 anos, é evangélico, casado, pai detrês filhos e trabalha em uma rede de lojas de eletrodomésticos. Cumprimentamos-nos,e logo em seguida ele me pergunta “Tem ido lá (em referência a Estação da Lapa)”? Eurespondi que não estava mais fazendo trabalho de campo, pois agora escrevia adissertação. Ele, que antes trabalhava na filial no Shopping Piedade, disse ter sidotransferido para a loja de Paripe. Eu o parabenizei pensando na transferência como umaação benéfica para o comerciário, pois trabalharia perto de casa e não levaria uma horapara se deslocar. Ele afirmou ter detestado a medida, por agora ficar longe dosbanheiros de “pegação” do Centro. Argumentei que a “pegação” era bastante forte nosbanheiros do Centro de Abastecimento de Paripe e o rapaz retrucou “Mas aqui no bairroé foda. Todo mundo conhece a gente. E a segurança é muito violenta. Esse horário


60mesmo tem um baixinho escroto da porra, mete a porrada na galera e não deixaninguém fazer nada”.A noite já havia caído, encerramos o papo e fui com certa pressa para o banheirodo Centro de Abastecimento. Chegando lá me deparei com dois homens negros que semasturbavam no mictório. Eles estavam distantes um do outro e olhavam-se. Para nãolevantar suspeitas, peguei logo no meu pênis por cima da bermuda, alisei e mostrei paraeles, que entenderam o código e não interromperam a interação. Eu parei em frente à piae fingia lavar a mão enquanto observava, mas não demorou muito e fomossurpreendidos por uma dupla de seguranças patrimoniais que adentrou o sanitáriogritando “sai daí rebanho de viado”.Em meio a uma sequência de gritos e palavrões, um deles apontou uma arma nacabeça de um dos rapazes. Os dois adeptos da pegação deixaram o sanitárioapressadamente. Eu continuei fingindo lavar as mãos e tive que passar pelos doisseguranças que pararam na porta fazendo uma espécie de um corredor. Um delesapontava a arma para mim.No dia 09/09/2011, o Presidente do Grupo Gay da Bahia (GGB), MarceloCerqueira, encaminhou uma carta à Corregedoria da Polícia Militar do Estado da Bahia,solicitando a apuração do assassinato de um homem de 32 anos no sanitário da EstaçãoMussurunga 44 . De acordo com o documento protocolado por Cerqueira, após receberdenúncia de passageiros de que um grupo de homens fazia “uma orgia no banheiro dolocal”, um policial militar de serviço no terminal, por volta das 20h do domingo04/09/11, teria atirado no abdômen de um dos homens adeptos da “pegação”, quechegou a ser socorrido por uma viatura da PM, mas não resistiu e morreu a caminho dohospital.44De acordo com informações do portal da TRANSALVADOR, a Estação Mussurunga foi inauguradaem 21 de novembro de 2001 e fica localizada na Avenida Luiz Viana Filho (Paralela), na entrada dobairro de Mussurunga. O terminal, que funciona 24 horas, possui uma área física coberta de 7.500 m2 everde paisagística de 3.500 m2. A estrutura conta com dois sanitários para os passageiros e um exclusivopara rodoviários e funcionários, um estacionamento privativo e 25 telefones públicos, sendo um delesexclusivo para deficientes auditivos. Estão instalados no local, salas de administração e fiscalização, ummódulo da Polícia Militar, duas guaritas, além de postos do Juizado de Menores (provisoriamentedesativado), da Coordenação de Informação e Atendimento à Comunidade (CIAC), do Sindicato dasEmpresas de Transporte de Passageiros de Salvador (SETPS) e do Grupo Especial de Repressão a Roubode Coletivos da PM (GERC). Uma lanchonete, farmácia, agência do Banco Popular funcionam no localpara atender os 30 mil usuários que embarcam e desembarcam diariamente na Estação Mussurunga.Trinta e uma linhas urbanas saem do terminal, são 115 ônibus circulando por hora, com uma frota de 144veículos por dia.


61Dias antes, no final da manhã do dia 31/08/2011, eu fazia observaçãoparticipante na comunidade “BSB – Bofes Suburbanos da Bahia”, do site derelacionamentos Orkut, quando fui surpreendido pelas comemorações de usuáriosdaquela comunidade virtual. Eles festejavam com frases como “Toda porrada para quemfaz pegação em banheiros é pouco!”, a chamada de uma das matérias do programapopularesco “Que Venha ao Povo” da TV Aratu, afiliada do SBT na Bahia, tinha comotema o espancamento de um Babalorixá adepto da “pegação” no sanitário público daEstação Pirajá 45 . Na reportagem, o Babalorixá, negro relatou ter sido espancado nasdependências do banheiro por quatro Guardas Municipais que em seguida o fizeram sairnu no meio da Estação. Ele negou ter praticado a “pegação” e disse apenas estarutilizando o sanitário em companhia de um amigo, quando foi surpreendido pelosagentes que perguntaram se eram viados e, diante da resposta afirmativa, partiram paraa agressão. Ainda na reportagem, ambulantes da Estação Pirajá afirmam que sanitáriopúblico é um ponto de encontro de homossexuais.O SilêncioCena 1: No diálogo que tive como o segurança do Shopping ele conta-me que“todo” segurança faz. E já fez com três colegas no vestiário do Shopping Piedade e queo que é feito entre eles não vira boato, pois todos são casados. Ele também relata quena semana anterior, fez sexo com um policial colega de trabalho da esposa. “Eu estavabebendo com ele, minha mulher e a dele na casa dele, no dia de Santo Antônio epercebi que ele olhava para minhas pernas diferente”. “Ficou tarde e acabamosdormindo na casa dele”. “Transamos a noite toda enquanto nossas esposas dormiam”.“Ele me chupou e eu chupei ele, comeu o meu cu e eu comi o dele”. “Foi massa. Nooutro dia fomos embora e fingimos que nada tinha acontecido.”45 De acordo com informações do portal da TRANSALVADOR, a Estação Pirajá foi inaugurada em 25de novembro de 1994 e fica localizada Rua da Idonésia, s/nº - Campinas de Pirajá, nas proximidades daBR-324. O terminal, que funciona 24 horas, possui uma área física de 22.000 m2. A estrutura conta comquatro sanitários e 20 telefones público, sendo que dois são destinados a portadores de deficiência visual ea cadeirantes. Estão instalados no local, salas de administração e fiscalização, um módulo da PolíciaMilitar, duas guaritas, além de postos do Juizado de Menores, da Coordenação de Informação eAtendimento à Comunidade (CIAC). Uma lanchonete, farmácia, casa lotérica, agência do Banco Popular,três terminais de auto-atendimento dos principais bancos funcionam na estação, que ainda conta 88vendedores ambulantes cadastrados na prefeitura trabalhando. Diariamente, 130 mil pessoas embarcam edesembarcam nas três plataformas do terminal, por onde circulam 279 ônibus.


62Para Figari (2008, p. 116), “[...] La esperiencia del silêncio es una de las másatávicas, pero de las más fértiles, en materia de posibilidades de novedades semánticasque devengan en posteriores posibilidades linguísticas”. Durante séculos, a experiênciado silêncio foi fundamental para o exercício da sexualidade entre iguais no ocidente. Afamosa expressão de Oscar Wilde “O amor que não ousa dizer o nome” denota o modooculto que as relações entre homossexuais masculinos eram vividas. Neste caso, doishomens unidos pelos laços de amizade e sob o álibi da embriaguez alcoólica encontramuma brecha para um comportamento jamais permitido dentro do que ficouconvencionalmente marcado para um macho nos limites do sistema de gênero brasileiro.Nessa circunstância silenciosa, na qual é permitido esquecer as práticas sexuais após arelação e fingir que a lógica da masculinidade hegemônica não foi rasurada, é possívelpara um “homem de verdade” extrapolar esses limites e se deixar ser penetrado poroutro.A SacanagemCena 1: Um vendedor de uma casa de material elétrico, de 27 anos, quetambém se autodenomina heterossexual e confessou que, apesar de não ser gay, seapaixonou por um homem “lindo e maravilhoso” com quem interagiu sexualmente emum sanitário público da Estação Rodoviária. Quando perguntado se gostava de serpassivo respondeu que “na sacanagem rola tudo, sendo com carinho rola tudo”. Elereiterou que encara sua performance sexual como “tesão porque eu não me comportocomo um gay, eu não me vejo como um gay, na verdade. Então, para mim é sexo, veio.E viva a sacanagem”. Quando questionado se a família sabe dessa sua preferênciasexual ele diz: “Minha família, velho, não, não sabe não. Na verdade é uma coisaminha. Na verdade é sexo também” e ainda completou contando que pretende casar eter filhos. (ENTREVISTA FUNCIONÁRIO CASA DE MATERIAL ELÉTRICO –<strong>ESTAÇÃO</strong> DA <strong>LAPA</strong> - 10/10/2011)Cena 2: Já se aproximava das 19 horas de uma quarta-feira do mês de Julho.Eu me masturbava junto a outros quatro homens no mictório da frente do Sanitáriomasculino do piso de serviços da Estação Lapa. Outros homens fingiam lavar as mãoou pentear os cabelos em frente às pias e espelhos e enquanto isso apalpavam o pênis


63dentro das calças e de vez em quando colocavam para fora em parte ou na totalidade,escondendo rapidamente quando estavam prestes a serem surpreendidos por algum serindesejado que não partilhava do desejo de fazer pegação e isso a gente percebia noolhar. De repente entrou André, e logo olhou para mim e mordeu os lábios meconvocando para uma conversa fora do banheiro. Instantes depois o encontrei sentadoà balaustrada, que fica em frente ao sanitário. Naquele horário, o barulho eraensurdecedor na Estação. Uma mulher que vendia chips para telefones celularesgritava alto anunciando seus produtos, o burburinho era grande na fila de compra decréditos para o Salvador Card. Eu encostei-me à balaustrada, olhei para ele e passei amão no pênis semi-ereto. Meu gesto foi o suficiente para que André parasse ao meulado e perguntasse se eu estava malhando (eu trajava short e camiseta de fitness e umtênis de jogging). Respondi para ele que iria para a academia na Ladeira do Camelô.Em seguida, ele disse que também precisava malhar para perder a barriga. De formabastante objetiva e sem fazer voltas, perguntei se ele era ativo ou passivo no mesmotempo e com a mesma objetividade obtive como resposta. “Na sacanagem eu faço tudo,dar que eu não dou” 46 . Eu insisto e digo que “sou viciado em comer um cuzinho” e elediz que “com jeito tudo rola em quatro paredes, dependendo da porra na hora vocêmete a cabecinha, a putaria vence”. Questiono se ele é “viado” e ele afirma “soucasado, moro junto com uma mulher há 16 anos, tenho um filho de 13 anos e semprecurti a putaria. Se eu gostar do cara, faço direto essa porra. Na hora da putaria agente faz tudo, eu não gosto de dar porque dói, mas a depender do tesão, se tiver umaxilocaína pro cara meter a cabecinha, é gostoso, mas se não tiver eu faço a putaria,deixo gozar na boca, tudo. “ Pergunto se a mulher dele desconfia e ele respondeexaltando sua performance sexual: “É só chegar em casa e dar pica a mulher que elafica satisfeita e não desconfia. Se eu dormir com você vai ver que eu aguento foder anoite toda sem parar e meu pau não baixa não, gozo várias vezes”. (André, 39 anos,casado, funcionário de um sindicato no Centro de Salvador)46 É bom ressaltar que as palavras ativo/passivo, heterossexual/homossexual/bissexual são nomenclaturasconsideradas clínicas para a maioria da população brasileira. A massa não se identifica com esses termose desconhece os significados. Recentemente um vídeo gravado nas ruas de uma cidade da Paraíbademonstra que a maioria das pessoas desconhecia o significado da palavra heterossexual. Disponível: em:. Acesso em: em: 02 jul. 2012.


64Segundo Parker,[...] O conceito de sacanagem liga noções de agressão e hostilidade,brincadeira e diversão, excitação sexual e prática erótica num únicocomplexo simbólico. Usada de forma positiva ou negativa, indicandoinjustiça e violência, brincadeira, gozação, obscenidades e ofensassexuais, materiais eróticos e pornográficos e práticas sexuaisespecíficas, sacanagem significa desobediência a regras de decoro– regras que devem controlar o fluxo da vida diária. Nos seussignificados, corresponde a formas de transgressão ou rebeliãosimbólica – rompimento das restrições que governam as relaçõessociais normais. Essa transgressão é mais claramente manifestadano sentido de fazer tudo que normalmente seria proibido.Pensando nas ações sexuais, a ideia de “fazer tudo” está nocoração do que a grande maioria dos brasileiros define como “boasacanagem”. (PARKER, 1991, p. 159, grifo nosso)Os exemplos etnográficos e a citação do texto de Richard Parker monstramcomo a “sacanagem” é a licença para que os homens adeptos da prática do “banheirão”extrapolem o que se convencionou permitido em uma relação sexual normativa. Nessecontexto, caem as regras do convívio social diário ascético. Os maridos, pais, filhos –homens “normais” – que no dia-a-dia se submetem a censura social, para a realizaçãodas fantasias homoeróticas, na cena quase recôndita do “banheirão”, encontram alicença “na sacanagem”, na qual “vale tudo” porque “todo mundo faz”.Essa possibilidade intempestiva de interação sexual coloca em tensão aquilo queMichel Foucault chamou, quando discutiu os usos dos prazeres, de “práticas de si” –práticas construídas sobre si para a construção de um “sujeito moral” de si, em nome deum código moral vigente (FOUCAULT, 1984). Dada a perenidade do vínculo sexual, ossujeito que socialmente se afirmam “machos de verdade” atendendo às determinaçõesda hipótese do determinismo biológico, mas também, sob a condição do sigilo e pormeio da sacanagem, são capazes de “fazer tudo”.Esse jogo possui regras instáveis, nos quais os sujeitos imbricados, ao passo quese limitam pelos códigos morais hegemônicos vigentes, transformam-no a partir daprodução de novas interpretações de si por meio de suas práticas. É assim, por exemplo,que o participante que se auto-identifica como heterossexual, no pragmatismo daquelecontexto, sente-se à vontade para afirmar: “na sacanagem eu faço tudo, dar que eu nãodou”. De fato, a posição passiva, a menos prestigiada pelo fato de ser a que maisaproxima o homem da figura feminina, é a que mais ameaçaria a heterossexualidade doParticipante, fato que explica a advertência “dar que eu não dou”. Mas, até isso, foi


65negociado quando, em tom provocador e incisivo, afirmei: “sou viciado em comer umcuzinho”, ao que ele respondeu: “com jeito tudo rola em quatro paredes, dependendo daporra na hora você mete a cabecinha, a putaria vence”.É precisamente neste contexto episódico, justificado pela fugacidade e brevidadedo consórcio afetivo, dentro de “quatro paredes” que a “putaria vence”. O participantereelabora o discurso apagando-se da cena estrategicamente: em lugar do “eu” quefigurava em “na sacanagem eu faço de tudo”, agora aparece, paradoxalmente, a“putaria” assujeitadora do “eu”, protagonizará a relação sexual em que passivo – agorainominável – é penetrado.A questão dentro e fora das “quatro paredes” parece desafiar a estruturacotidiana narrada em ambiente familiar. Tais concepções também são observadas porParker, para quem[a]s normalmente nítidas distinções entre interno e externo, entreprivado e público, de repente se dissolvem e as estruturas da vidadiária são reviradas, relativizadas e rearranjadas. Nesses momentos, deacordo com essa ideologia, qualquer coisa pode acontecer. Tudo épossível [...]. O conceito de “tudo” é fundamental. É central com suacorrespondente mistura de tentação e perigo, ao que os brasileirosdefinem como sacanagem (PARKER,1991, p. 157).O “tudo” fundamental apontado por Parker, em 1991, ainda é audível pelositinerários de práticas dissidentes de Salvador. Prova disso é a fala de um participante,também heterossexual, que, quando perguntado se gostava de ser passivo respondeu:“na sacanagem rola tudo, sendo com carinho rola tudo”. A “sacanagem” à brasileiraparece sustar o discurso acerca das questões relativas à identidade sexual ou, ao menos,torná-lo uma questão periférica das conversas entre o dentro e o fora das “quatroparedes”. Para tencionar ainda mais a questão, perguntei ao participante como ele seencarava no que tange à identidade sexual. Não sem embaraço, ele respondeu que eraapenas “tesão”, e justificou porque: “eu não me comporto como um gay, eu não me vejocomo um gay, na verdade. Então, para mim é sexo, veio. E viva a sacanagem!”.2.4 “DESCARTO AFEMINADOS”: ENTRE O CIBERESPAÇO E A RUAAs mudanças na cena da “pegação” não são apenas provenientes dastransformações urbanísticas sofridas pelas metrópoles e da privatização do circuito de


66sexo. Com a emergência dos meios de comunicação, e mais precisamente o surgimentoda Rede Mundial de Computadores (Internet), na década de 90 do século XX, um novoespaço público é criado e desponta como local de socialização para o público LGBT.Duarte e Nussbaumer (2001) consideram que o ciberespaço possibilita a gays e lésbicasa criação de lugares de encontro e interação social. No início do século XXI, oscomunicólogos atentavam para o potencial do universo virtual em estabelecer laços parauma “sociabilidade cada vez mais difícil de ser alcançada no espaço público das grandescidades contemporâneas”.Listas, sites, portais e chats direcionados ao público gay multiplicam-se de formaveloz na Internet, mas em 2004, o site de relacionamento Orkut é criado, e logo emseguida se torna febre entre os brasileiros. Com isso, diversas comunidades gays,lésbicas e simpatizantes, em que são discutidos temas que versam desde direitoshumanos a encontros homoeróticos, despontam no Orkut. Atualmente, a rede social queperde espaço para o site de relacionamentos Facebook, ainda continua sendo popular nopaís, com mais de 32 milhões de usuários cadastrados.Como já pontuei no capítulo anterior, as discussões de internautas nos fóruns dascomunidades do Orkut sobre interações homoeróticas em Salvador colaboraram naconstrução de uma topografia de locais de “pegação” na cidade. Tais comunidadesapresentaram uma diversidade de discussões sobre a prática em locais públicos e, pormuitas vezes, possibilitam a realização de “marcação” de encontros entre usuários emsanitários públicos da cidade. A descrição das comunidades em suas páginas principaisé reveladora das representações e discursos sobre a “prática da pegação” e seus locais nacapital baiana. O anonimato e a quebra de vínculo com “o meio gay” é o atrativo para osmembros da comunidade “Pegação com sigilo-Salvador”:


67Figura 1: Pegação com sigilo – SalvadorDESCRIÇÃO DA COMUNIDADE PEGAÇÃO COM SIGILO - SALVADORNossa comunidade é pra galera que não pode ou não quer frequentar locais GLS, mas está afim de umapegação real e com sigilo. É um espaço para nos conhecermos, trocarmos idéias, informações, tirarmosnossas dúvidas e principalmente marcarmos uma real. É para aquele cara (bi, gay, simpatizante, curioso,safado...) que está doido para rolar uma real e que nínguem pode desconfiar. Putaria e Discrição emSalvador / Bahia!!!!.(PEGAÇÃO COM SIGILO-SALVADOR. Disponível em:. Acesso em 10 mai. 2011).Os “classificados do sexo” que figuram na porta das cabines dos banheiros,através de grafitos, como documentou Barbosa (1986), passaram também a acontecer nofórum dessas comunidades. Em um dos fóruns de discussão da comunidade “Clube doBanheiro SSA” um dos participantes apela em busca de parceiro no tópico “QUEROCHUPAR”:Figura 2: Post Clube do Banheiro – SSA


68TRANSCRIÇÃO DO POST DE “QUERO <strong>FAZER</strong> TUDO”SOU PASSIVO, DISCRETO E AMO MAMAR UMA PICA, NÃO TENHO PRECONCEITO DE CORE NEM IDADE, APENAS PRECISA SER LIMPO, NÃO TENHO LOCAL, MAS SE QUISEREMPOSSO IR AO BANHEIRO EXTRA RÓTULA E ATACADÃO RÓTULA QUE É TRANQUILOQUEM TIVER AFIM, ESTOU ON LINE NO MSN OU ME MANDA UM E-MAIL, MORO NOBAIRRO DO PAU MIÚDO. TENHO 25 ANOS, MORENO CLARO, CORPO NORMAL. OBS: NÃOVOU VIAJAR NO SÃO JOÃO! E TENHO FOTOS NO MSN (CLUBE DO BANHEIRO SSA.Disponívelem:http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=1291070&tid=2471524875219886337&kw=QUERO+CHUPAR. Acesso em: 20 mai. 2010)Os textos produzidos nelas são extremamente importantes para pensar aprodução da “pegação” em Salvador. Com base na leitura de textos acadêmicos, emincursão na cena do ‘banheirão” e nos relatos de usuários do Orkut elaborei a seguintelista sobre o Circuito de Pegação Homoerótica em Salvador:a) Banheiros – o circuito do “banheirão” inclui os banheiros da Estação daLapa, Center Lapa, Shopping Piedade, Fundação Politécnica, CineGlauber Rocha, Shopping Iguatemi, Salvador Shopping, Estação detransbordo do Iguatemi, Terminal Rodoviário de Salvador, EdifícioEmpresarial Iguatemi, Edifício Capemi, Shopping Sumaré, EdifícioSalvador Trade Center, Hiper Bom Preço do Iguatemi, Catedral da Fé daIgreja Universal (Iguatemi), Hipermercado Makro (Avenida TancredoNeves), Shopping Itaigara, Imbuí Plaza Shopping, Extra Rótula, ExtraParalela, Extra Vasco da Gama, Shopping Barra, Vitória Center, Bom


69Preço do Chame-chame, Shopping Ponto Alto (São Rafael), Centro deAbastecimento de Paripe e Feira de São Joaquim;b) Parques – Parque da Cidade (Itaigara);c) Praias – Jardim de Alah (Paredão e Autorama), Praia dos Artistas (Bocado Rio), Fundos do antigo Aeroclube Plaza Show, Pântano (nasimediações do antigo Casquinha de Siri), Pedra do Sal (Itapuã), Ponte doSesc Piatã, Praia de Tubarão (Paripe), Farol da Barra e Cristo (Barra-Ondina);d) Praças – Campo Grande, Praça Castro Alves;Além de ajudar a traçar uma topografia da cena da “pegação” na Capital Baiana,os fóruns nas comunidades do Orkut esboçam discursos sobre a prática de sexoimpessoal em lugares públicos em Salvador. Neles estão expressos, medos, anseios,desejos, rejeições, cuidados e preocupações desses homens com desejo homoerótico.Em fórum da comunidade “Clube do Banheiro SSA”, os participantes fazemconsiderações sobre frequentadores, funcionamento, condições de higiene e segurançados banheiros do Terminal Rodoviário de Salvador:


70Figura 3: Pegação no OrkutNós tópicos postados pelos usuários da rede social, é visível a vinculação dodesejo homoerótico a valores ditados pelo estilo de vida gay baseado em seriadosamericanos como Dantes Cover e The Lair 47 e nas publicações para o público47 Séries gays norte-americanas com personagens vampiros, quase uma versão homossexual da série defilmes crepúsculo.


71homossexual masculino do Brasil com a Revista Junior – em que todos os personagenssão brancos, de classe média, consomem grifes e trabalham o corpo em academias demusculação. No mesmo fórum sobre o banheiro da Estação Rodoviária, um dosparticipantes reclama dessa ditadura: “O problema é que todos só procuram os gatos, osmalhados, os de corpos definidos e eles sabem disso...”.É importante explicitar que num espaço como o Orkut – os corpos sãoressignificados e ganham uma nova construção virtual. Essas comunidades virtuais queversam sobre sexualidades “não-convencionais” são compostas em sua maioria porusuários com perfis fakes – muitas vezes apelidados por eles como “Orkut sujo”, já quemuitos desses usuários possuem perfis oficias para se relacionar com amigos, colegas detrabalho ou estudo e familiares. Esse é um espaço no qual pode-se ser o que se quer.Segundo Parreiras (2008) “os fakes adotam diferentes procedimentos na escolha de seusavatares, e a principal característica é construírem uma imagem totalmente diferentedaquela que apresentam no off-line”. Logo, a maioria dos perfis das comunidadesobservadas apresenta fotos de homens, másculos, musculosos e próximos ao ideal“barbie”.Tal observação pode ser encontrada na descrição do perfil de um usuário do sitedisponivel.com 48 , cujos desejos e compreensão de si projetam-no na configuração maishegemônica dos desejos homo-orientados, a saber:48 Os portais disponível.com e manhunt.net são os mais utilizados na Grande Salvador para encontros deparceiros para práticas homoeróticas. Durante a noite e nos finais de semanas, as referidas páginaschegam a registrar mais de 60 mil usuários online.


72Figura 4: Perfil Disponível.comTRANSCRIÇÃO DO BOX DA FIGURAGERAL: Eu sou homem Querendo conhecer homem – Para amizade, email/chat, apenas sexo, sexogrupal, com no mínimo 20 até 43 anos. Sou um cara normal. Branco. Às vezes queimado de sol. Másculo(descarto afeminados, nada contra, somente não curto mesmo).SOBRE MIM: Sou somente ATIVO, mas curto muito beijar e todas as preliminares. Gosto de tudo o quea vida tem de bom a oferecer. Curto muito os verdadeiros amigos.PROCURO POR: Procuro caras discretos, de preferência versáteis, mas que curtam ser passivos. Comjeito, voz, cabeça e comportamento de homem. Que não sejam do meio gay nem afeminados, poiscomo já disse acima, apesar de não ter nada contra, não curto mesmo. Sigilo e discrição sãoimprescindíveis.(ANÚNCIO DO PERFIL BROTHER SANGUE BOM EM SITE DE RELACIONAMENTO GAY.Disponível: http://fran1.disponivel.uol.com.br/web/perfil.asp?nome=Brbrother Em: 10/05/2011 grifonosso)Nas exigências expressas no anúncio acima, o autor reafirma os ideais demasculinidade hegemônica vigentes no sistema de gênero brasileiro, privilegiando enormatizando a valorização e exaltação do “macho”, “branco”, “jovem”, “viril” e “forado meio” em detrimento dos que podem ser identificados como “gays”, “afeminados” e“indiscretos”. O texto explicita que o individuo pode até ser passivo contanto quecarregue características aproximadas de um ideal heteronormativo, semcomportamentos que remetam aos “afeminados freqüentadores do meio gay”.


73A expressão “descarto afeminados”, que nomeia esta seção, é bastante utilizadapor usuários de sites de anúncios de procura de parceiros sexuais ou amorosos comoManhunt e Disponível, salas de bate-papo e sítios de relacionamento como o Orkut eFacebook. Junto com termos como “descarto gordo” e prefiro “plantados” e “foras domeio”, ela dimensiona os corpos privilegiados e também os segregados na Web.Em estudo proveniente de incursão etnográfica em salas de bate-papo gaydirecionadas ao público gay de São Paulo, Miskolci (2009) identificou um considerávelnúmero de usuários que se classificavam como “macho” e “brother” com intuito clarode fazer oposição àqueles que são identificados ou se assumem homossexuais (nessecaso, necessariamente passivo e/ou afeminado). Dos encontros combinados nociberespaço, os internautas partem para um encontro avaliativo a partir dos contatospessoais (e-mail, telefone, programas de chat como MSN ou Skype). Miskolci relatauma situação bastante similar a que acontece nas redes em Salvador, a saber:O encontro face a face costuma ser de avaliação recíproca e seguequesitos como conformação a imagens dominantes de masculinidade.Muitos rapazes relatam contatos prévios por telefone para avaliar otom de voz e conversa, ou seja, se o outro fala como “macho”,“brother” (o que é valorizado) ou se “fala mole” ou “mia” (termospejorativos que associam o outro ao efeminamento e, sobretudo, àautodenunciação como gay). O “conjunto” procurado no parceirosoma a aparência física atraente, voz grave, conversa que expressavalores comuns, mas quase sempre tem como moldura a possibilidadede construir uma relação em segredo. (MISKOLCI, 2009, p. 181).Tal configuração de sujeitos também chega à errância do banheiro, embora nãoseja com o volume de exigências e expectativas que a internet, ao menos em teoria,demanda. Todavia, a relação entre “machos” e afeminados também parece se manter demaneira bastante hierarquizada. Tudo isso pode ser visto em outra narrativa feita por uminternauta na comunidade Clube da Punheta Bahia, que relata, com um olhar bastanteestigmatizador, a própria incursão no sanitário da Estação da Lapa.Gente, o que é aquilo, estava passando pela estação da lapa, parapoder pegar o bus, eu estava apertado e nao queria voltar para oshopping para poder fazer minha necessidade, passei pelo banheiro,sabendoo q la rolava esses tipo de coisas, mas nao sabia q era daqelejeito, pessoas fazendo sexo oral na frente de todo mundo, tinha gente qentrava para as cabines para fazer sexo, e o pior é q o cara q tomaconta do banheiro vendo tudo e dando risada, tinha tb varias bixinhasefeminadas no meio, coisa mas ridicula, sem falar do banheiro nojento


74q é,, nao sei se alguém aki ja entrou nesse banheiro, a vontade q medeu foi de vomitar, uma sencação horrível eu sentir na hora quando viaquela cena, sem falar nas doenças pos por ali passam mlhares depessoas todos os dias com varios tipos de doença. A galera esquecemq hj em dia com os tgratamentos q existem a aids e outros tipos deDST nao tem mas caras. Antes vc via aquela pessoa toda acabada efalava ela estar com AIDS hj não vc ver caras malhadosaparentemente esbanjando saúde mas so q estar com aids ou outra dst.Pessoal vamos nos policiar, pois o gay é vistoo como um meio poronde as dst se espalham. (post o usuário do Orkut da comunidade“Clube da Punheta Bahia” acesso em 21/07/2011)Na Cena do “banheirão” da Lapa e adjacências, os participantes da pegaçãotambém buscavam se relacionar com homens “não-afeminados”, “sem afetações”,“machos” e sem “trejeitos”. Logo, tornava-se mais valorizado sexualmente aquele queconstruía sua imagem com base em uma indumentária considerada “discreta”. “Os carasplantados” – eram aqueles que exibiam virilidade e masculinidade com seus corpos“sarados” e, em uma cidade litorânea como Salvador, trajavam peças da moda Surfwear ou skate, que tradicionalmente compõem o guarda-roupa do “moleque”,“malandro”, jovem, viril e ativo. A meu ver foi curioso perceber que o corpo construídodentro dos padrões da masculinidade hegemônica havia sido eleito o predileto tantopelos que se autodenominavam “ativos” (penetradores) quantos pelos passivos(penetrados). Essa constatação derrubou por terra aquela associação que ligavaautomaticamente passividade a feminilidade e atividade a virilidade masculina. Dentrodo “banheirão” exige-se do passivo uma atitude de “macho” hegemônico.Nesse contexto, a virilidade masculina figura como a moeda de troca maisvalorosa na relação entre homens. O excludente e crudelíssimo “descarto afeminados”ganha eco no discurso e na prática dos adeptos dessa modalidade erótica consideradadissidente e abjeta dentro do sistema heteronormativo vigente. Essa concepção fica clarana fala que capto de um dialogo entre dois jovens que conversam próximo a escada daúltima plataforma da Estação da Lapa: È um cara “gostoso, malhado e macho”, discretoe “não dá pinta” e adora “sentar numa pica”. (Estação da Lapa, tarde de 21/06/11)Em entrevista estruturada, na qual explicito a minha condição de adepto da“pegação” e pesquisador, um dos participantes, comerciário, negro, 27 anos e que seautodenomina heterossexual, ao ser questionado sobre com qual tipo de homem não serelacionaria sexualmente respondeu instantaneamente: “O afeminado, velho. Não sobe


75de jeito nenhum, velho. Não dá, não rola. Porque eu gosto da atração de homem comhomem. É uma pegada diferente, é... Só eu sei viu”.Em outra entrevista nos mesmos moldes, Candy, 27 anos, branco para ospadrões soteropolitanos, estudante universitário e vendedor de uma loja de artigos parafazendas, que se autodenomina “cem por cento homossexual”, pois acredita que otermo “tem mais poder político que palavras como gay e viado” - busca nos banheirosde “pegação” “satisfazer somente seus instintos sexuais, ser olhado, desejado e tocado”e pensa que o par ideal não pode estar na cena do “banheirão”. Ele me contou “no livrode regras do quero para mim não estão inclusas pessoas que freqüentam esse tipo decenário. Aqui eu passo o meu tempo até chegar alguém que me faça não sentir maisvontade de freqüentar lugares como esse, alguém que me complete”. Na estação daLapa ele diz procurar “caras com pegada máscula de homem e descarta bichas e tiosqueimados que não agüentam ver uma rola”.Os discursos dos dois entrevistados sustentam a premissa de que, como emoutros locais de sociabilidade homoerótica, na cena do “banheirão” da Lapa, em que amaioria dos participantes são negros ou mestiços, estudantes, trabalhadores e moradoresdo Subúrbio Ferroviário, da Periferia e de cidades da Região Metropolitana de Salvador,os privilegiados e mais cobiçados são os mais jovens, que se aproximam dos padrões debeleza televisivos, másculos, com corpos malhados e bem-dotados. É importanteressaltar que essas preferências não são fixas e imutáveis.Durante o campo, presenciei algumas vezes uma “bicha com trejeitosafeminados”, cabelos longos com tranças usadas cotidianamente pelas mulheres negras,trajando bermuda ciclista florida, camiseta curta e aparentado cerca de 45 anos, tornarseo objeto de desejo de muitos homens que pregavam o ódio aos afeminados, apósdeixar à mostra o pênis grande e grosso no mictório. Essas cenas, que se repetiram portrês vezes, confirmaram a fala de um participante negro, homossexual assumido, de 25anos, desempregado, corpo sarado e enquadrado nos padrões heteronormativos, quedisse em uma conversa informal: “para uma bicha afeminada ser aceita e desejada, elaprecisa ter pau grande. Aí todos caem matando”.Observei que um dos contextos de exceção, no qual é possível “fechar”,“desmunhecar”, “barbarizar”, “fazer churria” e “dar pinta” é uma roda de conversa quese forma durante a noite, próximo à última escada que dá acesso a plataforma A doTerminal. As conversas versam sobre temas como: quem é bonito, gostoso e desejado,


76quais são os “viados” passivos, “queimados”, “arrombados” e também sobreexperiências sexuais bem sucedidas e prazerosas.Para mim, foi perceptível que todos mudam a postura e procuram “endurecer”diante do mictório ou da escada na hora da pegação. Nesse momento, “dar bandeira” édigno de repúdio como veremos no relato a seguir: “O malhado diz que não vai maiscontinuar, pois a escada está muita arriscada. Ele conta que, só durante a tarde, foisurpreendido no local por seguranças que o mandaram sair de lá por três vezes.“Muitos deles são agressivos, xingam e humilham e têm o prazer de provocarconstrangimento na gente em público, no meio do shopping, gritando vá fazer suaviadagem em outro lugar seu viado descarado. Eles só não me batem porque eu nãodemonstro medo enfrento mesmo. Um dia, um disse que era para eu descer pela saídada administração e eu respondi que saía por onde eu quisesse, mas [n]esses viadosmoles eles batem mesmo.” Sinto na fala dele rejeição a afeminados, que é confirmadapor um comentário de seu parceiro após a passagem de um gay efeminado (de cabelogrande e maquiagem no rosto, magro, trajando uma calça jeans com lycra e mini blusaamarela, umbigo com pircing à mostra) pela escada. “É esse tipo de gente queatrapalha e queima a galera”, disse. “As bichas afeminadas é que levantam suspeitasna escada porque dão na pinta e chamam a atenção da segurança”. (TRECHO DODIÁRIO DE CAMPO, ESCADA DE EMERGÊNCIA DO SHOPPING CENTER<strong>LAPA</strong>, tarde de 21/06/11)Na hierarquia dos corpos da pegação da Estação da Lapa, mesmo em contextode homens que exercem uma sexualidade considerada “dissidente” em relação aospadrões heteronormativos, existem corpos que são considerados privilegiados. Oshomens másculos, viris, atléticos e ativos são os mais desejados. Já aqueles que sedistanciam desse ideal, os afeminados, gordos e passivos, que se aproximam da figurafeminina, são preteridos em relação aos “machos e viris”. Dessa forma, até nessecontexto de abjeção existe uma escala de valoração em que o passivo e afeminadoocupa o posto menos privilegiado. Os gordos e afeminados são os “corpos que pesam”(BUTLER, 2010), também, no limite discursivo do sexo, nos contextos de pegaçãohomoerótica.


773 UM NEGÃO DESSE... VIADO! 49 : RAÇA, GÊNERO, SEXUALIDADES ETENSÕES NA PEGAÇÃO DA <strong>ESTAÇÃO</strong> DA <strong>LAPA</strong>O Mapa da População Preta & Parda no Brasil 50 , construído a partir de númerosdo Censo do IBGE de 2010, constatou que Salvador é a cidade com maior número denegros 51 do país. Segundo o levantamento, um quantitativo de 743, 7 mil habitantes sedeclarou preto. Outro dado de extrema relevância trazido pelo Censo de 2010 é o de quena Capital da Bahia a discrepância de rendimento entre pretos e brancos é maior do queem outras capitais brasileiras, os negros aqui recebem 3,2 vezes menos que os brancos.Em outras cidades do mesmo porte como Recife e Belo Horizonte a defasagem de rendados negros em relação aos brancos é respectivamente de 3,0 e 2,9 vezes. Ao levar emconta os dados nacionais, os brancos ganham em média R$ 1.538, quase o dobro dosnegros que em média recebem R$ 834.De acordo com a mesma pesquisa, o déficit educacional entre negros e brancosno Brasil também é gritante. A pesar de ter ocorrido uma aumento no número dealfabetizados em todo o país para todas as categorias de cor e raça, a taxa deanalfabetismo entre pessoas a partir dos 15 anos é de 9,6%, mas quando a análise érealizada levando em conta as diversas etnias que povoam o nosso país, os números sãobastante diversificados. O grupo dos pretos tem taxa de analfabetismo de 14,4%; dentrea população que se autodenominou parda, o percentual de analfabetos é de 13,0%.Esses números indicam uma taxa de analfabetismo entre pretos e pardos quase trêsvezes maior que a dos brancos que é de 5,9%.Mesmo com a política de Cotas para afro-descendentes em algumas dasuniversidades públicas brasileiras, o último Censo do IBGE apontou que a maioria dosestudantes matriculados no ensino superior ainda é branca. Dentre os jovens brasileirosentre 15 e 24, que estavam inscritos em cursos de graduação, 31,1% eram brancos,13,4% eram pardos e 12,8% eram pretos.Esses indicadores sócio-econômicos são indispensáveis para entender adinâmica do meu objeto de pesquisa (a “pegação” entre homens no sanitário público daEstação e adjacências), porque, sem medo de exageros, é a Lapa a imensa maioria de49 Expressão cotidianamente utilizada por moradores da periferia e do subúrbio de Salvador paramanifestar indignação ou espanto ao saber que um homem negro e viril é homossexual50 Dados disponíveis em: < http://www.laeser.ie.ufrj.br/> Acesso em: 29 mar. 201151 O termo “negro” engloba pretos e pardos.


78usuários é negra. Apesar de não haver dados estatísticos sobre a cor dos usuários daEstação, meu olhar de pesquisador participante não pôde deixar escapar essa flagranteconstatação. Isso ficou muito evidente para mim numa tarde de sábado em que, aoadentrar ao sanitário da Lapa, deparei-me com cinco homens negros masturbando-semutuamente no mictório dos fundos.Tais cenas são bastante comuns na Lapa, local bastante inóspito e com precáriainfra-estrutura, fatos que, não raro, são atribuíveis ao descaso com a população negra ede baixa renda. Esse fator econômico também entra nas avaliações dos adeptos dapegação: há muitos relatos de que na Lapa só há gente feia, mal vestida, que só háladrões identificados por roupas de surfwear do tipo Cyclone e que a Lapa é um localdantesco.Ajuda-me a compreender essa situação uma cena que testemunhei na escada deemergência do Shopping Center Lapa, nas proximidades da Estação. Essa escada, porser procurada e de circulação bastante intensa, passou a ter acesso controlado pelasegurança do Shopping. Bem na porta de acesso afixaram uma placa onde se lê:“Escada de Emergência: acesso controlado pelo Departamento de Segurança”.Um exemplo dessa cena na escada foi a experiência por que passei em abril de2011 quando, ao descer a escada, deparei-me com dois jovens de no máximo 30 anosque interagiam eroticamente das mais diversas formas. Juntei-me a eles e, para a nossasurpresa, o segurança que fazia incursões na escada coagiu a nossa interação compalavrões, gritos e xingamentos e fez com que nos dispersássemos, o que não nos inibiude todo.Minutos depois, voltamos a nos encontrar no mesmo local e um dos rapazessugeriu que fôssemos à Lapa por lá ter menos vigilância hostil. Sem mesmo o rapazterminar a formulação da proposta, o terceiro interrompeu-lhe com sentenças sumáriassobre o local: “Na Lapa não vou não! Não gosto daquele lugar... é sujo, cheio desacizeiro e ladrão!”.Essa não é uma opinião pontual, restrita a esse jovem. Muitos praticantes dosexo público têm a mesma opinião e, ao observar a comunidade Clube do Banheiro –SSA, verifico que é possível constatar um foro privilegiado de banheiros associados àszonas mais nobres da cidade. A relação parece ser diretamente proporcional, embora


79não de modo determinista: quanto mais nobre é a região mais “bonitas” 52 seriam aspessoas que lá estão; quanto mais pobre e utilizada pela periferia mais “feias” aspessoas.O post de um dos integrantes da comunidade aponta para o fato de como essacena da pegação é pensada pelos adeptos através das redes sociais. Nesse comentário,“Garotão Bahia” traça um itinerário que percorreu para aferir a qualidade e a veracidadeda pegação nos banheiros comentados da comunidade, a saber:Figura 5: Clube do Banheiro – SSATRANSCRIÇÃO DO POST DE GAROTÃO BAHIAMITOS E FATOS SOBRE OS BANHEIROS DE SSAGALERA,Este sábado dei uma vlta pelos banheiros da cidade e te difo o que é verdade ou mentira sobre eles.Vamos iniciar o ROTEIRO:Banheiro do Bompreço Rio Vermelho lá é bem sujo e aparece caras querendo sim mas são bizarros muitofeios.Banheiro do Shopping Rio Vermelho lá é bem tranquilo, ambiente limpo e dava pra rolar uma transatranquila ali ams nao aparece ninguém.Banheiro do Bompreço do Shop.Barra lá é certeza encontrar macho querendo mas a galera nem disfarçaali o local fica meio visado aparecem caras bonitos outros nem tanto.52 A expressão “gente bonita” - massivamente utilizada pelos grandes blocos de carnaval de Salvador paravender seus produtos (abadas, ingressos para shows e etc) - é sinônimo de “branquitude”. Para mim, umaimagem marcante dos anos 90 é o comercial de TV do Eva, que geralmente ia ao ar, logo após oCarnaval. Tenho em mente o texto do locutor "Eva o metro quadrado mais bonito da avenida" e asequência de imagens em câmera lenta de longas madeixas loiras sacudindo de um lado para o outro.Aquilo representava para mim uma das maiores expressões do racismo velado brasileiro. Eu me sentiaagredido.


80Banheiro do center lapa o local é tão visado que tem tipo um segurança dentrodo banehrio vendo qualqueratitude suspeita.Banheiro do Shop. Sumaré lá é muito legal tem espaço e tranquilidade falta aparecer alguém..E vc galera concordam? qual o melhor banheiro?O curioso é observar que, dentro de um mesmo bairro, no caso o Rio Vermelho,a situação é bastante complexa. De um lado, há o relato do banheiro de um mínishopping, com atrativos para a classe média em que não rola pegação (ao menos foi oque ele observou na incursão que fez); de outro, há o banheiro do “Bompreço RioVermelho”, estabelecimento comercial mais popular e por se tratar de um supermercadoque serve não só à classe média do bairro, mas também à periferia circunvizinha(Nordeste de Amaralina, Santa Cruz e Vale das Pedrinhas) e aos trabalhadores dobairro. A conclusão é bastante taxativa: “Banheiro do Bompreço Rio Vermelho [é] bemsujo e aparece caras querendo sim mas são bizarros muito feios.”. Novamente, estamosdiante da relação sujeira e feiúra, esta última, em Salvador, configurada, principalmente,pelas características dos fenótipos negros.Ao falar de outro “Bompreço”, agora o do Chame-Chame, vizinho ao ShoppingBarra, o relato ganha outra avaliação: “Banheiro do Bompreço do Shop.Barra lá écerteza encontrar macho querendo mas a galera nem disfarça ali o local fica meio visadoaparecem caras bonitos outros nem tanto.”. A avaliação qualitativa do público cresce adespeito da avaliação da qualidade infra-estrutural do banheiro que é tambémdegradante. É um ambiente que também está sob tensão entre a classe média e aperiferia (Calabar e o Alto das Pombas) e é um local que serve à classe trabalhadora, oque permite inferir que as relações entre raça, classe social e masculinidades estejamimbricadas na cena da pegação.Em outro post, em que os integrantes da comunidade Clube do Banheiro-SSAcomparam o banheiro do Shopping Iguatemi com o do Salvador Shopping (naquelaocasião recém inaugurado e considerado o novo reduto da sofisticação de Salvador), aavaliação do padrão de beleza dos freqüentadores é feita de maneira bastante rigorosa:


81Figura 6: Escada do SSA SHOPPINGTRANSCRIÇÃO DO POST ESCADA DO SSA SHOPPINGURSO BAIANO - 17/04/2009: A ESCADA ATRAS DO BOMPREÇO É MUITO BOA.SEM SEGURANÇAS, SEM CAMERAS, TRANQUILISSIMO. PENA QUE NAO VI NINGUEM LA.FUI ONTEM QUINTA AS 17:45H. OS SANITARIOS LA DO SSA SHOPPING SAO MUITO RUINSPARA A PUTARIA. NAO DIVULGUEM MUITO NAO PARA NAO ESTRAGAR O POINT.ALGUEM VAI HOJE SEXTA PASSAR PELA ESCADA DO TESAO?NAO DIVULGUEM MUITO NAO PARA NAO ESTRAGAR O POINT.Maximu´s ... - 24/04/2009Onde fica essa escada??Urso Baiano - 24/04/2009saindo do bompreço...vire a sua esquerda pelo estacionamento em seguida vire a esquerda outra vez e verás a porta vermelha. láé a escada do tesao. bora marcar.Michael Lima - 30/05/2009Banheiro da RiachueloGalera hoje entrei no banheiro da Riachuelo e estava rolando uma pegação entre três caras gostosos... namaior tranquilidade... sem seguranças.. sem nada...... fiquei besta... achei que essas historinhas eram puramentira... mas o negócio rola mesmo... e ganha pro Iguatemi... pq no Iguatemi dá muito cara feia... noSSA Shopping SÓ TINHA GATO GENTE... bom demais... marcaram amanhã às 12:00h... quem vai???O “Urso Baiano” descreve, com bastante entusiasmo, a estrutura do novoshopping apontando para os locais que tinham/têm potencial para a pegação. Sãolistados banheiros, escadas de emergência e outros locais que não possuem câmeras,nem são tão movimentados. Contraditoriamente, embora faça um post de divulgação,recomenda aos ouros membros da comunidade que não divulguem muito as


82informações veiculadas para que o local não fique popularizado, isto é, “para nãoestragar o point” da “escada do tesão”.Mas é só com o comentário de “Michael Lima” que a relação com o Iguatemivai parecer mais objetiva e pode revelar pistas concretas de como fatores raciais e declasse interferem na construção da imagem dos “caras gostosos” no banheiro. Aexperiência no banheiro do Salvador Shopping é narrada da seguinte maneira:Galera hoje entrei no banheiro da Riachuelo e estava rolando uma pegaçãoentre três caras gostosos... na maior tranquilidade... sem seguranças.. semnada...... fiquei besta... achei que essas historinhas eram pura mentira... mas onegócio rola mesmo... e ganha pro Iguatemi... pq no Iguatemi dá muitocara feia... no SSA Shopping SÓ TINHA GATO GENTE... bom demais...marcaram amanhã às 12:00h... quem vai??? (grifo meu)Fica evidente que o fato de o Iguatemi ter um recorte mais popular, maispróximo da Estação de Transbordo, do Terminal Rodoviário e estar no novo centrocomercial de Salvador favorece um maior fluxo da camada menos privilegiada dapopulação, fato que não faz do Iguatemi um lugar exclusivamente popular. Um rápidoolhar sobre os pisos do Shopping, digo, das lojas e atrativos lúdicos existentes permitemeinferir sobre a hierarquização econômica que se estabelece: no primeiro piso, hálojas de departamento e lanchonetes com perfil mais popular; no segundo, podemosobservar uma maior valoração, mas ainda com preços e lojas de conveniências maispopulares; e no terceiro, aí sim sem qualquer dúvida, a ala das grifes, onde o arcondicionado, banheiros e tipos de piso são contrastivamente superiores aos demais.Como apontei pelos dados do IBGE (referentes ao acesso à educação e rendamensal), a população menos favorecida em Salvador é, predominantemente, negra. Nãoseria, pois, exagero afirmar que a gente “feia” do banheiro do Iguatemi e, até mesmo daEstação da Lapa, sejam negros que, em geral, são desqualificados enquanto figuraestética, mas também venerados quando se trata da coisificação do corpo, isto é, toda acomplexidade do sujeito negro é reduzida à dimensão corpórea de um corpo-objeto(pênis grande, bunda redonda...), a um corpo cujas dimensões só cabem dentro de umfetiche sexual.Essa situação é muito bem exemplificada pela discussão recente entre JoãoVitor, estudante soteropolitano que imigrou para Espanha no intuito de se graduar emgastronomia, e um conhecido produtor de eventos do circuito LGBT, a saber:


83Figura 7: O caso Jão VitorTRANSCRIÇÃOTRANSCRIÇÃO DA FALA DO PRODUTORPena de vc querido, sinceramente acho que vc tem problemas mentais...Mas n irei discutir com vc mais nada, pq estou a milhões de anos luz de vc... E sei muito bem quaissão seus estudos ai... Puta aqui é vc, que faz prostituição... esse é seu estudo... Vc já viu preto estudarfora do país? Se toca preto, brasileiro, baiano... nordestino... Realmente, vc é ousado, mas sei que nãoé bem estudo, em relação a mente pequena ... coitado de vc....Pra chegar onde estou vai ter q pedalarmuito... Afinal de contas foi com o dinheiro dessas festinhas que comprei meu carro, meu AP,façominhas viagens... Apesar de por ter tudo isso por minha família que tem histórico positivo nasociedade baiana ... já sua deve ter um histórico de senzala em qualquer interior da Bahia... Emrelação aos estudos, enquanto vc estuda eu já me formei desde 2004. Setoca man, vc vai nadar, nadare morrer na praia. Vc é um nada, e mesmo que consiga chegar em algum lugar... Sempre vai serdiferente ... em qualquer espaço ... Vc sabe por que né ... Sua cor oferece uma coisa de boa ...agenética física ... todo pretinho tem um corpinho gostosinho ... Fora isso, fedem mais q qualquer serhumano,,, é suar e isalar ... Se cuida aí puta brasileira!! RS .... [...]O discurso produzido pelo Produtor de Eventos é uma boa (no sentido de serrepresentativa) metáfora do pensamento que se estruturou sobre o “preto, brasileiro,baiano... nordestino...”, isto é, de um discurso tecido no Brasil sobre o negro,geralmente, circunscrevendo-o numa redoma de fetiches sexuais e limitações cognitivasatribuídas à raça que, se comparados ao homem branco, adulto e heterossexual, são,frequentemente, desvirilizados.É nesse sentido que, ao refletir sobre as identidades (de gênero e sexualidade,principalmente) dos homens negros, Osmundo Pinho afirma que:


84[...] Tradicionalmente, e de um modo um tanto quanto esquemático, seriapossível dizer que o modelo de masculinidade hegemônico nas sociedadesocidentais apresenta-se com um conteúdo determinado: o homem, no plenogozo de suas prerrogativas, seria adulto, branco, de classe média eheterrossexual. Outros modelos específicos e concretos, localizados eestruturados de masculinidade estariam subalternizados ou seriamconstituídos por formas contextuais de subalternização. [...] (PINHO, 2004,p. 66).Em razão disso é que João Vitor é, quase que deterministicamente considerado,“puta” e, no imaginário do Produtor de Eventos, não poderia passar disso; afinal decontas a “família [do Produtor] tem histórico positivo na sociedade baiana”, ao contrárioda de Jão Vitor que tem “um histórico de senzala em qualquer interior da Bahia...”. Ainferência de que as famílias abastadas da Bahia são brancas e, por isso, guardiãs da boacultura, capacidade cognitiva, intelecto e civilidade não são insólitas. Durante muitasdécadas, elas engrossaram volumes nababescos de teses que consideravam“cientificamente comprovado” que o processo de miscigenação ocorrido entre as“raças” no Brasil teria provocado a degenerescência da população: as hediondas teoriasraciais do século XIX que, frequentemente, estavam relacionadas à AntropologiaCriminal (SCHWARCZ, 1993).Além disso, a fala do Produtor de Eventos aponta para a sensualização extrema,através da hiper-representação, do negro. Ele diz do jovem negro:Vc é um nada, e mesmo que consiga chegar em algum lugar... Sempre vai serdiferente ... em qualquer espaço ... Vc sabe por que né ... Sua cor oferece umacoisa de boa ...a genética física ... todo pretinho tem um corpinho gostosinho... Fora isso, fedem mais q qualquer ser humano,,, é suar e isalar ... Se cuidaaí puta brasileira!! RS .... [...]Esse discurso racista, beirando às representações de grosseiro naturalismo, expõeas considerações aviltantes sobre a capacidade intelectual do rapaz, restringindo oslimites da capacidade do sujeito João Vitor ao físico que serve de objeto do apetitesexual aos outros (estrangeiros, brancos e “admiradores da raça”). Nesse sentido, aindacom Osmundo Pinho, que articula debates sobre gênero, raça e sexualidade (inclusive apartir de releituras de Gilberto Freyre), é importante ratificar o seguinte:Antes de tudo, o homem negro é representado como um corpo negro, o seupróprio corpo. Paradoxalmente, esse corpo é configurado de forma alienada,como se fosse separado da autoconsciência do negro. O corpo negro é outro


85corpo, lógica e historicamente deslocado de seu centro. Ora, essa base écontraditória porque tem sido definida pelas discursividades racializantes oupuramente racistas que justamente aprisionam o negro na “geografia da pelee da cor”. Ser negro é ser o corpo negro, que emergiu simbolicamente nahistória como o corpo para o outro, o branco dominante. Assim, o corponegro masculino é fundamentalmente corpo-para-o-trabalho e corpo sexuado.Está, desse modo, decomposto ou fragmentado em partes: a pele; as marcascorporais da raça (cabelo, feições, odores); os músculos ou força física; osexo, genitalizado dimorficamente como o pênis, símbolo falocrático do plusde sensualidade que o negro representaria e que, ironicamente, significa suarecondução ao reino dos fetiches animados pelo olhar branco [...] (PINHO,2004, p. 67).É essa memória do negro como “corpo-para-o-trabalho” que fecunda expressõescotidianas tais como a que dá título a esta seção (“um negão desses... viado!”). Não é dese esperar que o negro confeccionado pelo imaginário branco (de pênis enorme e defulgor sexual estonteante) possa se desvirilizar-se em papéis passivos ou em relaçõeshomoafetivas de modo mais geral.O que reforçou essa inferência foi um anúncio no Manhunt, site derelacionamentos e encontros gays, em que se lia:MANHUNT -NEGRO SPMasculinidade, educação e humildade = essencial!!Viajo muito pelo Brasil. Percebi um dado estatístico claro. Paulistanos nãogostam, não se atraem por negros, alguns deles se atraem sim pelo mito donegro, esse sim é desejado, porque deve ter p grande e vigor físico, então,como tal ATIVO, esse rótulo se vende fácil. Fora dessa fantasia e voltandopara a realidade do h comum, nesse caso não há lugar para um h como eu,por ex. ou eu sou o mito do negro ou eu sou totalmente desinteressante.Concluindo, minha querida cidade natal, a falso-cosmopolita São Paulo criafilhos q culturalmente aprendem q um h comum nunca poderá ser um hnegro, pois eu posso ser um negro bonito, mas nunca um h bonito.Embora a questão apareça como um desabafo e queira se apresentar a partir dedados estatísticos (mesmo sem que eles apareçam), a situação descrita pelo usuário doManhunt vai ao encontro da situação vivida por João Vitor no Facebook e argumentadapor Osmundo Pinho: o negro aprisionada em sua “geografia da pele e da cor”.Os exemplos são diversos e a experiência em campo ainda mais me fortaleceu asconclusões sobre a coisificação do corpo negro. Tanto e de tal forma, que a fala de ummúsico, negro, cabelos Black Power, 35 anos, homossexual assumido, militante domovimento negro, adepto da pegação nos sanitários da Região da Estação da Lapalevou-nos à seguinte constatação: “O que me deixa mais indignado é esse lance que


86acontece aqui no ‘banheirão’ e nos lugares gays também, essa coisa de enxergar nósnegros como ativos e pauzudos, quando a gente diz que curte ser passivo a galera seespanta e rejeita”.Além disso, ainda no bate-papo com esse mesmo músico, atento-me para umaquestão que, de fato, me chamou atenção para os negros com práticas homo-orientadasna cena gay e na cena da pegação na Estação da Lapa e redondezas. Percebo que nósnegros carecemos de maior representatividade dentro dos movimentos que lutam pelosdireitos dos negros e dos homossexuais. Somos assolados, a um só tempo, pelo racismo,pela fragilidade econômica que decorre do processo de desigualdade social e pelahomofobia. O rapaz afirma sentir que as coisas têm melhorado um pouco, pois oslíderes têm sido mais cautelosos e ficam receosos em expressar preconceito, afinal “hojeem dia ninguém quer ser chamado de homofóbico, não pega bem, mas, no fundo, nofundo, há um preconceito mais velado”.Nessa direção, interrogo-me como tem sido construída a representação dessehomem negro e sou solidário à questão posta por Osmundo Pinho (2004): “qual aidentidade do homem negro?”; mas, para os fins ora propostos, assedio a pergunta delepara pensar no seguinte: como tem sido produzida as identidades e reflexões sobre oshomens negros que estabelecem vínculos homoafetivos? Essa é uma pergunta que cabeem trabalhos que se debrucem de modo mais específico sobre a questão, nãoaprofundarei o debate aqui. Tentarei, no entanto, avaliar as tensões que têm sidooperadas tanto dentro do Movimento LGBTs quanto no Movimento Negro e, a partirdisso, entender como são representados os negros LGBTs nos discursos de um e deoutro movimento e como se dão as sociabilidades deles na pegação.3.1 O CASO ZUMBI DOS PALMARES E AS TENSÕES ENTRE MOVIMENTOSNEGRO, LGBT E O “MEIO HOMOSSEXUAL”Uma das importantes estratégias de grupos da militância LGBT para a criação deum referencial foi a prática do Outing – que consiste em apontar personalidades,artistas, políticos e intelectuais como gays ou lésbicas com um intuito, também, deprovocar uma declaração pública da orientação sexual. O Outing foi bastante utilizadopelo antropólogo, decano do movimento homossexual brasileiro e presidente do GrupoGay da Bahia (GGB), Luiz Mott para dar visibilidade à militância homossexual e criar


87referenciais. Com grande penetração na mídia, Mott divulgou em programas de TV,jornais e revistas de circulação nacional a suposta homossexualidade de personalidadeshistóricas e celebridades como Santos Dumont, o ex-presidente Fernando Collor deMelo e a cantora pop Cássia Eller. É importante lembrar que dentre todas as“revelações” de Mott, a que causou mais polêmica foi a da possibilidade do líder negroZumbi dos Palmares ser “praticante do amor que não ousava dizer o nome”.As declarações do estudioso e militante da causa gay Luiz Mott vieram à tonajustamente em 1995, ano de comemoração do tricentenário de morte de Zumbi. Naocasião, ele apresentou cinco pistas de que o herói negro de Palmares era “amante domesmo sexo” e as expôs no artigo Era Zumbi Homossexual?, publicado em jornais daBahia (o extinto Bahia Hoje), de São Paulo (Folha de São Paulo) e no livro Crônicas deum gay assumido (2003, p.155-160):[...] Primeira pista: não há evidência alguma comprobatória que Zumbi tevemulher ou filhos. Para um grande chefe guerreiro, a poligamia era privilégioindispensável... Segunda pista: Zumbi era conhecido por um intriganteapelido: SUECA. Esta informação é confirmada por Clóvis Moura, outrorespeitado historiador negro... Terceira pista: Zumbi, que ficou coxo numacidente de batalha, descendia dos Jagas de Angola, etnia onde ahomossexualidade tinha numerosos adeptos, os famosos “quimbandas”,conforme atestam contemporâneos da guerra dos Palmares, entre eles o PadreCavazzi e o Capitão Cadornega... Quarta pista: Zumbi, descrito comopossuidor de “temperamento suave e habilidades artísticas”, antes de fugirpara o mocambo, até os 15 anos, foi criado pelo Vigário de Porto Calvo,Padre Melo, referido como “afeiçoado a seu negrinho”. Ora: nos temposinquisitoriais a homossexualidade era chamada, com razão, de “vício dosclérigos”, tantos eram os padres envolvidos com as práticas homossexuais...Quinta pista: dizem os estudiosos que Zumbi, ao ser preso e executado, a 20de novembro de l695, foi degolado “sendo castrado e o pênis enfiado dentroda boca”. Macabra coincidência: o Grupo Gay da Bahia dispõe de umvolumoso dossier de assassinato de homossexuais brasileiros, onde constam 5gays, dois em Alagoas, a mesma região onde castraram Zumbi, que foramencontrados mortos exatamente como o chefe quilombola: com o pênisdentro da boca. [...]Após a publicação do artigo, Luiz Mott teve os muros da casa onde mora e ocarro pinchados com as frases “Zumbi Vive!” e “Zumbi Filhos”. A reação deintelectuais ligados à militância negra, também, foi imediata. Cartas de repúdio, artigosem resposta ao antropólogo paulista radicado na Bahia foram publicados nos principaisveículos de imprensa do Brasil.O historiador e especialista em Palmares, Décio Freitas, rebateu as afirmações deLuiz Mott em um artigo intitulado As múltiplas mortes de Zumbi, publicado no Segundo


88Caderno do jornal gaúcho Zero Hora no dia 03/06/1995. Freitas, que faleceu em09/03/2004, explicita que, de acordo com os historiadores pernambucanos do século 19,Zumbi era casado com uma mulher branca, chamada Maria Paim e os dois tiveramfilhos. Ainda segundo Freitas, no século 17, era comum castrar os homens queseduziam as mulheres e colocar seu pênis na boca – e essa prática ainda é corrente emalguns lugares do nordeste do Brasil.É importante deixar claro que o objetivo desta modesta seção não é discutir aorientação de Zumbi dos Palmares. Eu quero refletir sobre as relações entre negritude ehomoerotismo no Brasil. Por isso, as reações de militantes, intelectuais e políticosdiante desse episódio me interessam muito. Não sou contrário ao fato de que Freitaslance argumentos para tentar desconstruir a tese apontada por Mott, mas um trecho doartigo, em que o historiador gaúcho sugere que o levantamento da hipótese dahomossexualidade é uma tentativa de matar Zumbi historicamente nos chama bastanteatenção:[...] A morte física de Zumbi, em 20 de novembro de 1695, seguiu a suamorte histórica. As crônicas coloniais e, depois, os livros de história doBrasil, mencionavam a república negra, mas não citavam Zumbi... Assim,como resultado de um longo processo investigativo e crítico, Zumbi ganhouexistência histórica. Agora, no tricentenário de sua morte, oobscurantismo racista, através de um ataque oblíquo e perverso, tentamatá-lo outra vez. [...] (FREITAS, 1995, grifo meu).A publicação do artigo de Mott expôs ao público reações homofóbicas de líderesde minorias com histórico de muita repressão e exclusão social no cenário brasileirocomo os blocos afros de Salvador. O coordenador cultural do Bloco Olodum, WalmirFrança Santos, disse a reportagem Um quilombo da pesada – publicada na edição daVeja de 24/05/1995 – que “A afirmação de Mott denigre Zumbi”. A fala de Santosressuscitou o verbo denegrir, condenado pelo Movimento Negro. Em uníssono, opresidente do Ilê Aiyê, Antônio Carlos do Santos, o Vovô, disse a reportagem daTribuna da Bahia, na matéria Comunidade negra defende virilidade do herói Zumbi,publicada no dia 20/05/1995, que a intenção do antropólogo era aparecer.A discussão sobre a sexualidade do líder dos Palmares chegou à plenária daCâmara Municipal de Salvador. Na época, a mesma matéria da Tribuna da Bahia,relatou que o vereador Dionísio Juvenal (PMDB) bradou em uma das sessões: “é umabsurdo Zumbi era macho mesmo” e obteve o apoio entusiasmado do colega evangélico


89Álvaro Martins (PT do B) que disse: “o maléfico Mott volta a atacar... É preciso que asautoridades do movimento negro tomem alguma providência”.Com o título, “Seguidores de Zumbi dão o troco”, a matéria publicada no Jornaldo Brasil em 19/05/1995 traz declarações do então diretor do Sindicato dosMetalúrgicos do Estado da Bahia, Roque Assunção da Cruz: “as suspeitas infundadas,sem bases científicas do GGB sobre Zumbi merecem o repúdio dos metalúrgicosbaianos. Se hoje ser negro é muito difícil e sofrido no Brasil, muito pior é ser negro ehomossexual.”A postura homofóbica dos militantes e políticos soteropolitanos, de certo modo,pode ser um reflexo da forma preconceituosa como a homossexualidade era tratada noâmbito das organizações revolucionárias do período da ditadura militar brasileira (1964-1984). De acordo com Baiardi (2008), inspirados pelos ideais de grupos estrangeiroscom visão marxista tradicional, eles ignoravam a existência de um comportamentohomossexual ou enxergavam a homossexualidade como uma projeção do declínio daburguesia. Ainda segundo a leitura de Baiardi, esses grupos não acreditavam que gaystivessem resistência ou grau ideológico para suportar ameaças e agressões como prisõese torturas.No final dos anos 70 e início dos anos 80, homossexuais participavam de gruposmilitantes negros, mas enfrentavam resistência por parte de outros militantes queacreditavam equivocadamente ser a homossexualidade um “vício branco”. SegundoMacRae (1990), “o preconceito anti-homossexual era frequentemente expressadousando-se termos como “vergonha da raça” e a militância negra partia da hipótese deque a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo era desconhecida no continenteafricano:[...] De acordo com essa visão, adotar um comportamento homossexual seriaequivalente a ser “negro de alma branca”. Curiosamente, essa posturapreconceituosa parece mais arraigada entre os militantes políticos do queentre a “massa” “, segundo nos relata um documento produzido pelo grupobaiano de negros homossexuais Adé-Dudu [...]Ainda segundo MacRae (1990), alguns integrantes negros do Grupo Somos, deSão Paulo, sentiam-se discriminados pelos brancos e levaram a temática racial para asreuniões do grupo:


90[...] No dia 26 de julho de 1980, durante uma reunião geral do Grupo Somosque passava então por um processo de reestruturação após a cisão queacabava de sofrer, quatro negros do grupo apresentaram uma visão dasmanifestações de racismo dentro do Somos e no meio homossexual em geral.Alguns dos pontos levantados foram os seguintes: A) o negro dentro doSomos tinha que ser melhor que o branco médio para ser levado a sério. Elesó era considerado, se capaz de levantar propostas e manter discussões(capacidade menos exigida dos brancos). B) o homossexual negro tinha quese conformar a um estereótipo. Devia ser alegre, simpático e desmunhecado.Se ele se conformasse a este estereótipo passava a ser aparentementebenquisto pelos brancos. Mas mesmo assim sua posição era enganosa, poisapós cumprimentá-lo muito efusivamente e de forma “fechativa”, o brancologo estabelecia um distanciamento e na rua às vezes até fingia não ver onegro. Esta associação do homossexual negro com a “bicha-pintosa” éespecialmente relevante quando se lembra que esta última é alvo freqüente dediscriminação, mesmo da parte de homossexuais. C) o negro era, muitasvezes, considerado feio pelos brancos e muitos sentiam uma rejeição a nívelafetivo. Diziam que brancos nunca queriam ter “casos” com eles por medo doque outros brancos poderiam dizer. Por outro lado, o negro também era vistocomo tendo uma sexualidade mais desenvolvida que o branco. Isto às vezeslevava o branco a procurá-lo só como objeto sexual. D) dentro do Somosalguns brancos seguindo a lógica aceita pelo grupo de que as minoriasdeveriam se organizar separadamente, às vezes sugeriam que os negroshomossexuais formassem seu próprio grupo. Porém, os negros, achando queeram eles que tinham que tomar esse tipo de decisão, resolveram continuarno Somos. Ao mesmo tempo, reservavam para si o direito de andaremsempre juntos, uma vez que sua condição específica era um importante elo auni-los. E quanto à definição de quem seria considerado negro, eraclassificada como tal qualquer pessoa que se dissesse de descendênciaafricana, não importando o tom da sua pele. Esse último ponto foimencionado quando surgiram dúvidas, por parte dos integrantes brancos doSomos que estavam presentes, quanto à condição de negro de um doshomossexuais que se colocava como tal. [...]De acordo com informações de Mott (2005), o mito da inexistência dahomossexualidade no continente africano foi oficialmente disseminado pelo historiadoringlês Edward Gibbon, em 1781, no livro History of the Decline and Fall of the RomanEmpire: “acredito e confio que os negros, no seu país, não estão expostos a essapestilência moral” (GIBBON, 1925, p. 506, tradução minha). Na literatura colonialsobre a áfrica costuma-se afirmar que as relações do sexo teriam sido importadas porárabes ou adotadas através da influência deles.A crença na inexistência da homossexualidade na África é tão forte que essafalsa premissa foi constantemente utilizada durante o tricentenário de Zumbi. Natentativa desmentir às declarações do líder do Grupo Gay da Bahia de que o herói negrode Palmares fosse homossexual, o leitor Felipe Salvador que se identifica como“africano e oriundo da tribo dos jagas, a mesma da qual Zumbi é descendente” escreveao Painel do Leitor da Folha de São Paulo, em 15/06/1995:


91[...] O homossexualismo não tinha nenhum sentido para eles (jagas) era vistocomo uma agressão total à natureza humana, já que na África se tem porcostume obrigatório o homem ter esposa como companheira e não outrohomem. Essa prática sexual degenerada entrou na África por meio dacolonização européia decadente, que, junto com a escravização física emental do povo africano, impôs as almas fracas seus hábitos imundos, nãosendo, porém aceitos pela maioria. [...] (FOLHA DE SÃO PAULO, 1995)Em Boy-Wives and Female Husbands: studies of African Homossexualities,Roscoe e Murray (1998) expõem inúmeros relatos que indicam não serem incomunscomportamento e relacionamentos homossexuais, nas sociedades altamente segregadaspor sexo da África, entre pares, tanto masculino e feminino, principalmente nos anosantes do casamento heterossexual. As relações foram identificadas com termosespecíficos. Embora a terminologia do ativo/receptivo, mais velhos/jovens e do sexomasculino/feminino foram muitas vezes utilizadas pelos envolvidos nessa relação e poroutros, na realidade, os papéis sexuais dentro do mesmo sexo no relacionamento comcolegas eram flexíveis e a adoção arbitrária.Por conta de liderarem o processo de exploração e colonização da África, osportugueses foram pioneiros na percepção da diversidade do gênero e sexualidade dosafricanos e acreditavam que as formas de expressão da sexualidade dos “nativos” eramchocantes em relação as suas:[...] Os relatórios de Angola deram o tom para o que se seguiu. Quando o osinformantes como o nativo E. Evans-Pritichard de Zande disse aos europeusque os homens tiveram relações sexuais com meninos só porque gostamdeles, os europeus ficaram chocados, incrédulos, e confusos. Elesregistraram, mas não compreenderam as práticas sexuais e de gênero quesimbolizadas... para eles como os africanos negros eram diferente (einferiores a) eles. Relatos de europeus mostram padrões de relações sexuaisentre pessoas do mesmo sexo por todo o continente [...] (ROSCOE;MURRAY, 1998, p. 02)Existem especulações de que a demanda por trabalho escravo negro tenhapromovido um discurso sobre a masculinidade negra, no qual foi excluída ahomossexualidade do olhar de muitos dos europeus, o que pode ter reforçado a premissade que a relação entre iguais não era praticada no continente africano.No Brasil, a masculinidade negra foi construída em torno de ideais de virilidade,força e potência sexual. Na maioria das vezes, o homem negro é relatado em nossaliteratura com um ser de força animal, com um pênis que ultrapassa as medidas


92“comuns” e uma virilidadede exacerbada. Talvez essa possa ser outra razão que levouos integrantes de Movimento Negro Unificado (MNU) e de outras entidades ligadas àcausa negra a tomarem como ofensa, inclusive utilizando termos de conotação negativae perjorativa como “denegrir”, o fato de Zumbi, um herói negro, ser consideradohomossexual.MacRae (1990) relata que, no ano de 1981, o fato de dois integrantes do MNU etambém do Adé-Dudu – primeiro grupo negro gay da Bahia – se apresentarem comohomossexuais em um debate da entidade em que se discutia a importância do 13 demaio (data considerada pela militância negra como de uma enganosa e falsa abolição daescravatura) provocou críticas por parte dos integrantes do MNU.Apesar de vivermos um momento no qual pensamos em novas maneiras deexplorar a questão da identidade humana, rompendo com paradigmas essencialistas,pois percebemos que as oposições binárias entre homem e mulher/heterossexual ehomossexual não abarcam uma gama de outras possibilidades,ainda é necessário firmaruma identidade LGBT no cenário político brasileiro e essa afirmação deve começar,principalmente, dentro do movimento de outras “minorias” como os Negros. Nasdiscussões, listas e fóruns virtuais que precediam o Encontro Nacional da JuventudeNegra (Enjune) que aconteceu entre 27 e 29/07/2007, em Lauro de Freitas, na GrandeSalvador, militantes negros protestaram contra a criação do grupo temático LGBT:Identidade de Gênero e Orientação Sexual. É importante explicitar que o tema centraldo ENJUNE de 2007 Novas perspectivas na militância étnico/racial já sugere umamudança na forma de pensar das pessoas que fazem o movimento.De acordo com o relatório final do Enjune, as discussões do grupo temáticoocorreram e ficou constatado que a homofobia é um sério problema enfrentado pelonegros LGBT:[...] A discriminação relacionada à homossexualidade é fenômeno maisfreqüente entre os (as) homossexuais negros(as). Dentre as principaismodalidades de discriminação está o impedimento de ingresso emestabelecimentos comerciais, expulsão de casa, problemas na escola e notrabalho, e também tratamento desigual em comércio e outros espaçospúblicos. [...]O Brasil é um dos países mais violentos contra homossexuais. De acordo comdados do GGB, apenas em 2011 foram 266 gays mortos em todo o território nacional. AONG de defesa dos direitos dos homossexuais adverte que nosso país é o líder no


93número de mortes violentas a homossexuais vencendo o México que registrou 35 casosno ano passado e Estados Unidos, com 25. Nos últimos anos, casos brutais de violênciacontra jovens homossexuais na Avenida Paulista, na Zona Sul do Rio de Janeiro e naRegião Metropolitana de Salvador ganharam o noticiário do país. Imaginamos, quealém de políticas públicas, um grande passo para acabar com esse quadro deintolerância é aceitar que “Um negão desse pode ser viado” e é dever também doMovimento Negro contribuir para a erradicação da homofobia.O assassinato do ativista gay ugandense David Kato, morto brutalmente nosarredores de Campala – capital de Uganda – dois meses após sair na capa do Jornallocal Rolling Stone (editado por ex-alunos da Universidade Makerere, de Campala) emuma lista dos “100 principais” gays e lésbicas do país, com fotos e endereços e umatarja amarela com os dizeres “enforquem-nos” é uma amostra de como é perigosodeclarar-se gay ou lésbica em um dos 53 países africanos.Segundo o Blog da Rede Afro LGBT, a homossexualidade ainda é criticada porlíderes políticos e religiosos da África como sendo “um comportamento não africano”.Em países como a África do Sul – onde casamentos gays foram reconhecidos e sem opoder evangélico presente em Uganda – mulheres lésbicas como Millicent Gaika, 30anos, são estupradas por homens que desejam “curá-las” da orientação sexual.Analisando o episódio Zumbi dos Palmares, ponto de partida dessa seção,refletimos sobre a postura do movimento negro e do movimento LGBT na ocasião dotricentenário da morte do Herói negro. Não podemos deixar de atentar para o fato deque o professor Luiz Mott cumpriu o seu papel de militante. Talvez o Outing realizadonaquela ocasião tenha destinado a discussão sobre homossexualidade aos espaços maisprivilegiados e cobiçados da imprensa brasileira. Mott pode ter exagerado quandoatribuiu a Zumbi uma identidade gay, pois essa construção identitária é coisa do nossotempo e não do século XVII, tempo em que o guerreiro negro viveu. Afirmar queZumbi poderia ter vivenciado relações sexuais com pessoas do mesmo sexo seria maiscoerente.A reação de alguns militantes e intelectuais negros foi um grande equívoco, poismostrou a força de um pensamento machista e homofóbico perigosíssimo e capaz defazer vítimas em todo mundo, mas que causa prejuízos irreparáveis a comunidade,principalmente, no Brasil e em países africanos. Vale ressaltar que a homofobia é umresquício do nosso processo de colonização, que dentre os irreparáveis danos,


94“demonizou” formas de manifestação de sexualidade que fugiam a um modeloheterossexista. É difícil compreender porque a homoafetividade de Zumbi poderiarepresentar ofensa tão grande capaz de desconstruir a sua imagem de herói diante damilitância negra brasileira? Será que seria tão desrespeitoso pensar em um ícone negro egay?Ao desenvolver estudo com três grupos gays - o GGB (Grupo Gay da Bahia) deSalvador/BA, o CORSA (Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor) de SãoPaulo/SP e MGM (Movimento Gay de Minas) de Juiz de Fora/MG – Ferrari (2006)constatou que esses grupos se tornaram locais de “locais de disciplinamento, criandocorpos dóceis e técnicas de poder para o trabalho de enquadramento, vigilância econtrole” (FERRARI, 2006, p. 01). Ele pensa que os grupos investiram na tentativa dacriação de um padrão hegemônico de homossexualidade, tentando enquadrar seusparticipantes em um modelo idealizado pelo mercado (Gay, branco, classe média e comrelacionamento monogâmico). No texto, ele problematiza os dilemas entre a “bichabanheirão” e o militante homossexual e demonstra uma condenação às “bichas” quefazem pegação no banheiro por parte de membros do MGM, de Juiz de Fora, no interiorde Minas Gerais.O autor chega a citar um dos trechos de reunião em que essa prática écondenada:[...] “É tão desagradável essa questão... que se ligou homossexualao banheiro público que, hoje eu moro ali perto do Santa CruzShoping, é tão desagradável essa questão, que às vezes eu to mijandona calça, mas eu passo direto.Eu passo por dentro do Santa Cruz parapoder ir a minha casa, que é ali pertinho mesmo, mas eu não vou aobanheiro do Santa Cruz Shoping, por um motivo muito simples, sevocê for mijar, passou uma bicha, já fala que tá pegando no banheiro eaí vira pegação. É uma merda. (...)Todo mundo que vê fala que vocêvai ali pra pegar,porque aquele banheiro é uma putaria, Tem gay quetem problema, que vai ao banheiro público segunda, terça, quarta...”.(FERRARI, 2006, p. 9)A fala leva a entender que o militante lança um olhar patológico em relação a“bicha banheirão” e condena os adeptos da prática.O Coordenador do Grupo Homossexual da Periferia de Salvador (GHP),Raphael Sant'ana, olha para a prática da pegação sobre outra perspectiva. O dirigente dogrupo, formado há 9 anos por homossexuais assumidos e moradores de bairrosperiféricos da Capital baiana, assume frequentar lugares de Pegação como a Praia do


95Jardim de Alah e os fundos do Aeroclube, no bairro da Boca do Rio, conta que o GHPfoi fundado pelo um grupo de jovens da invasão Calafate, na Avenida San Martin que“não se sentiam representados representado pelos grupos atuantes. Eles ficavam nocentro da cidade, não alcançavam os homossexuais da periferia e, principalmente,homossexuais negros.Sant'ana diz encarar a pegação apenas como uma sociabilidade gay que semanifesta numa ordem invertida das outras tradicionais:Eu acho que há uma grande hipocrisia com relação a pegação. Euenxergo a pegação como mais um espaço de socialização do gay, quenão tem os ditos espaços sociais que os heterossexuais têm comoshopping, bares. Ele procura esse espaço não só para a chamadapegação, que as pessoas enxergam de forma negativa, mas para sesocializar com outras pessoas, com outros gays, porque ali ele sabeque ele vai encontrar outros gays. Eu acho que é um pouco deinversão da prática que acontece em outros ambientes. Por exemplo,se você parar para pensar, a gente vai para o Beco de artistas, um localque todo mundo freqüenta independente de classe ou de raça, láespera-se que a pessoa chegue nesse espaço, paquere, namore e depoistenha relação sexual. Nos espaços de pegação essa norma é invertida.Você conhece a pessoa, transa e só depois pensa se quer namorar ounão. E as pessoas só querem enxergar esses espaços de forma negativae saem rotulando todo mundo como promiscuo. Tem esse discursoque todo gay que vai para esses espaços é promiscuo. Quem não éconsiderado promiscuo é quem vai para outros espaços. Tanto numespaço quanto no outro a finalidade é o sexo, independente se você vainamorar ou não. Só que a ordem é que está invertida no lugar depegação. É uma grande hipocrisia essas pessoas (militantes) quereremse colocar como as pessoas certinhas, limpinhas e ficarem criandonorma e padrão de gay.Diferente de outros militantes mais tradicionais como o professor Luiz Mott(2008), presidente do GGB, que desaconselha à prática da pegação, Sant'ana pensa quea militância LGBT deveria mudar o discurso para esse tipo de sociabilidade:[...] O discurso do movimento sobre a pegação está com foco errado,caracterizar esse local como um espaço que o gay não pode ir é umequívoco. Ele não deveria negligenciar a necessidade que as pessoastêm de encontrarem outras seja pra transar, conversar, namorar. Épreciso pensar esses locais como espaços de socialização. A genteprecisa pensar a questão da violência, a discriminação pelos própriosgays e pelas forças armadas e pela polícia.A partir desse episódio faz-se necessário problematizar aqui a condiçãoidentitária desse homem negro que exerce práticas sexuais homoeróticas em um espaço


96considerado marginal como a Estação da Lapa. Lembrar que ele é desamparado tantopelas representações negras quanto pelas entidades LGBTs, Por isso, faz-se necessáriointerrogar se o projeto de identidade dos dois movimentos inclui esse homem negro comdesejo considerado “marginal”.Para encerar esse capítulo, apresento nas duas seções seguintes, relatos decampo. O primeiro versa sobre os estigmas de marginalidade que pesam sobre oscorpos de jovens negros, pobres e periféricos na cena da Pegação. Já o segundo, mostrao fascínio que um jovem branco e de classe média provoca em um contexto povoadopor homens negros e oriundos das classes menos favorecidas. Ao presenciar estásituação em campo lembrei, imediatamente, dos relatos de Carella (2011) sobre suasaventuras sexuais no Recife. O teatrólogo lembra o frisson que a sua pela branca causadentre os negros da capital pernambucana, relata que chegava até a ser seguido poroutros homens em busca de sexo.


973.2 “DIGA PRA ELE QUE VOCÊ ME CONHECE E QUE EU NÃO SOU LADRÃO”Após deixar a academia de musculação na Barra quando já passavam das 17h deuma tarde de terça-feira, segui num ônibus Cajazeiras XI Lapa/ Barra em direção aEstação da Lapa. O comércio da cidade já vivia a agitação das compras de Natal, as ruasestavam lotadas de pessoas com sacolas e o trânsito ainda mais caótico do quecotidianamente. Enfrentei congestionamento na Avenida Centenário sentido Centro edepois de penar por quase uma hora num ônibus desconfortável desembarquei na suja efétida plataforma do subsolo da Estação da Lapa. Como de costume subi para o térreopela escada da última plataforma, a menos movimenta, pois por cerca de 10 anos foiinterditada por causa das obras do metrô de Salvador. O local continuava sujo, o cheirodas fezes e urina espalhadas pelo chão se misturava a umidade proveniente das goteirascausadas por diversas infiltrações do teto da Estação. Os ratos também continuavam ahabitar o local, restos de um cobertor que deveria ter sido deixado por algum moradorde rua compunham o cenário, que alguns meses antes era escuro como um “dark room’de boate gay e agora tinha sido presenteado com duas fortes lâmpadas, uma no início eoutra no final da escada, a iluminação era semelhante a de um show de Axé Music. Ocurioso é que dentre as escadas que ligam o térreo ao subsolo da Estação, essa foi aúnica presenteada com iluminação, as outras com fluxo de usuários muito maiorpermaneceram as escuras. Algumas bichas de língua mais ferina, que praticam Cruisingna Lapa e que no intervalo entre uma caça e outra, em quanto aguardavam uma novapresa, propagavam num bate papo em frente ao banheiro da plataforma de serviços: “ Aluz foi instalada para acabar com a putaria dos viados “. E pelo visto elas tinham razão,fui conferir, passei por todas as outras escadarias de acesso à plataforma do subsolo,onde em horário normal (até meia-noite) é possível tomar ônibus para o SubúrbioFerroviário, a Cidade Baixa, Cajazeiras e o grande e contrastante bairro de Brotas 53 , econstatei que em nenhuma delas havia iluminação.Após peregrinar entre as escadarias de acesso ao subsolo em trabalho deaveriguação, decidi me dirigir até o banheiro da plataforma de serviço – o famoso“banheirão da Lapa”. Com 12 pias, 12 espelhos, dois grandes mictórios de alumínio,53 é um bairro central da cidade de Salvador. É um dos distritos mais populosos da capital baiana. É umgrande conjunto de Morros limitados pelas grandes avenidas de vale Vasco da Gama, Juracy Magalhães,ACM e Bonocô. Com localização privilegiada, é um bairro de cenários bem divergentes, pois engloba emseu território comunidades bastante populares como a Baixa do Tubo, o Candeal Pequeno , Cosme deFarias e uma das áreas mais nobres da Capital baiana, o Horto Florestal.


98cinco cabines normais e uma especial para deficientes físicos, o principal sanitário daestação de ônibus mais movimentada da Bahia faz jus ao apelido no aumentativo dadopela comunidade LGBT 54·.Para minha surpresa deparei-me com a porta principal do banheiro fechada e fuiaté a porta dos fundos - que fica situada próximo dos quiosques que vendem cachorroquente,a área tem vista panorâmica de toda a plataforma térreo da Lapa - entrei nobanheiro com o aviso de que o iria fechar para limpeza. O lembre foi dado pelo próprioservente. Ele, para meu espanto, educadamente convidava alguns adeptos da “pegação”a saírem. Logo em seguida, desci para o piso térreo e presenciei a abertura do outrosanitário menor. Localizado entre a plataforma de embarque e uma série de casasconstruídas em terreno do terminal ocupado por aquelas famílias há pelo menos dezanos, o sanitário apenas começou a ser aberto aos usuários da Lapa a partir do segundosemestre de 2011, quando o banheiro do piso de serviços passou a ser fechado por voltadas 22h. Antes o sanitário funcionava apenas para atender a despachantes, motoristas,cobradores e funcionários da Transalvador – que trabalham na Estação. O banheiro émuito menor e conta com apenas dois pequenos mictórios de louça, um colado ao outro,separados por uma parede estreita, são apenas três cabines normais, pois falta cabineespecífica para deficientes e são duas pias com vazamento, que ao serem abertasderramam água sobre os pés de quem vai lavar as mãos e um pequeno espelho. Tudo alié muito espremido.Assim que o banheiro foi aberto, vários homens adeptos da “pegação”adentraram o recinto, mas tiveram que dividir o espaço com mendigos, pedintes,moradores de rua e “sacizeiros” ávidos por utilizar o banheiro ou pela água das torneiraspara se lavarem nas pias. Os públicos e interesses eram incompatíveis e, por isso, ossedentos por uma rápida interação homoerótica tiveram que procurar ressignificaroutros espaços da Estação da Lapa.Por conta da vigilância, na semana do Natal, a Estação da Lapa, queestrategicamente fica vizinha aos Shoppings Piedade e Center Lapa é a principal ligaçãoentre os bairros mais distantes e cidades da Região Metropolitana e importantes locaisde comércio popular como as Avenidas Sete de Setembro, Joana Angélica e a54 O termo “Fazer Banheirão” é nativo da comunidade gay e era bastante utilizado por colegas de trabalhodo Espaço Xisto Bahia (teatro localizado no bairro central dos Barris), a maioria deles gays fazia piadascom os colegas que saiam para o lanche nos shoppings Lapa e Piedade – que são vizinhos a Estação daLapa. Quando alguém demorava logo alguém proferia a expressão: “Essa bicha ta é fazendo banheirão”.O termo também é utilizado em outras regiões do Brasil como o Rio de Janeiro e São Paulo.


99Barroquinha, recebe patrulhamento da Polícia Militar (com viaturas fazendo rondas naplataforma térreo e subsolo) e da Guarda Municipal. Por isso, já passavam das 19horas, e a escada da última plataforma que geralmente “bomba” continuava vazia.Alguns homens paravam lá, fingiam urinar, mas logo saiam, pois eram surpreendidospela passagem de uma viatura da PM pelo local. Ouvi relatos de que naquele períodomuitos policiais chegavam a parar, descer da viatura, fazer revistas e em casos extremosbater, humilhar, xingar e extorquir os “viados” que encontravam naquela escada. Nomesmo período, cheguei até a ser questionado sobre a ação da PM na escada por umparticipante via mensagem privada no Facebook, enviada no dia 9 de dezembro. Confiradiálogo:Figura 8: Chat no FacebookTRANSCRIÇÃO DO CHATE ai amigo blz , me tire uma duvida a policia esta fazendo ronda ali onde rola a pegação na lapa é ??n seivc soube de alguma coisa?estava indo vi um cvarro da policia passando por ali proximo sai fui para o ponto desiste de ir para lámas vc sabe se rolou alguma parada?naoTinha ate um cara massa por aquelas redondeza , quando viu a viatura fez que tava mijando


100A presença de reforço policial na Estação da Lapa – desassistida por serviçospúblicos – mudou a rotina do lugar. Naquele horário, após fechamento do banheiroprincipal e com o banheiro da plataforma do térreo tomado por moradores de rua,pedintes e “sacizeiros”, a alternativa para os adeptos da “pegação” foi ocupar outraescada, essa fica ao ar livre, próxima a uma área arborizada e termina justamente aolado do banheiro menor do térreo. A escadaria escura é muito frequentada por casaisheterossexuais que estão a fim de dar um amasso e também por homens em busca deinterações homoerótica que estacionam no corrimão em busca de uma paquera.À postos na escadaria encostando-se ao corrimão, um casal heterossexual sebeijava e trocava carícias. Um rapaz belo, corpo atlético, camiseta regata preta ebermuda de surfista estilo taketel – já famoso adepto da pegação – também encostou nocorrimão em busca de sua presa. A movimentação é intensa entre a escadaria e obanheiro do térreo – ainda está ocupado por moradores de rua que aproveitam a águadas torneiras.De repente, encosta ao meu lado um conhecido informante, morador de Paripe,funcionário de uma loja de material elétrico do bairro da Calçada, negro, alto, cerca de1,90 metros, magro, um daqueles tipos que fariam uma senhora de classe média mudarde passeio caso se batesse com ele na rua. O cara é um dos mais cobiçados da Lapa, porser dono de um pênis de tamanho descomunal. Conhecemos-nos no campo, ele meconcedeu uma entrevista e foi um colaborador fundamental para esta pesquisa. Eu e ocara de Paripe criamos uma certa amizade por morarmos no mesmo bairro e chegamos anos tratar como conterrâneos, sempre nos batemos no ônibus e trocamos idéias. Um dia,passeava no Shopping Iguatemi quando encontrei meu “conterrâneo” que tambémandava pelo 2º piso, nos cumprimentamos e segui para o 3º piso. Logo depois, fuisurpreendido por uma ligação dele solicitando que eu fosse ao seu encontro na porta dobanheiro, em frente à Opção Modas, no 2º piso. Esse banheiro é um dos pontos depegação mais tradicionais do Iguatemi. Chegando lá, fui apresentado a um rapaz,branco, baixo, troncudo e malhadinho e interpelado pela seguinte fala: “Diga pra ele quevocê me conhece e que eu não sou ladrão?” Aquela cena para mim foi extremamenteconstrangedora e eu logo retruquei “Porque você haveria de ser ladrão?” e elerespondeu “Estou a fim dele, que mora sozinho em um apartamento na Pituba, mas estácom medo de me levar para a casa dele, pensando que eu sou ladrão e resolvi te chamarpara que você dissesse que eu sou honesto”. Indignado bradei com meu “conterrâneo”


101dizendo que ele não precisava passar por uma situação dessas e que mandasse aquelebabaca pastar e se desse valor. Depois desse dia passamos a conversar ainda mais,papeávamos no ônibus sobre putaria, homens e até pretensões profissionais.Ele encostou ao meu lado e logo começamos a conversar e meu “conterrâneo’me passou a ficha do belo rapaz de camiseta regata preta. Ele me contou que os dois játiveram uma transa, que o cara era muito gostoso, era passivo e mandava bem na cama ecompletou, tirando todas as minhas esperanças e dizendo que estava interessado em“repetir à dose”. Eu sabia que não tinha o mesmo poder de “falo” do meu “conterrâneo”– dono de um pênis de mais de 25 centímetros e de um biótipo desejado pela maioriados adeptos da pegação. Ele fazia aquela linha moleque, malandro e preenchia afantasia daqueles que sonham em transar com um tipo “marginal”. Diante dasdificuldades, logo tirei meu time de campo, e segui a procura de novo alvo. Nãodemorou, os dois conversaram e saíram juntos em direção ao subsolo da Lapa e nãoretornaram mais.A chegada de um novo alvo também não demorou. Ele descia e subia a escadaenquanto falava ao celular, era negro, alto, careca, aparentava ter uns 30 anos e faziaaquele tipo que um dia malhou muito, mas deixou os exercícios físicos de lado e agoraostenta uma barriguinha saliente. Ele não parava de falar ao celular e, também, de olhar.Eu o media dos pés a cabeça, olhava aquela bunda desenhada na calça jeans apertada.Começamos a trocar olhares e ele resolveu estacionar ao meu lado no corrimão daescada. Não conversávamos e eu logo comecei a acariciar meu pênis. Ele deu umapegadinha discreta, mais dois caras, um deles mais velho, de cabelos grisalhos eaparentando uns 50 anos, e outro jovem, cerca de 20 anos, que fazia o estilo moleque,conversavam e olhavam o nosso movimento. A dupla subiu em direção ao teto daEstação e nós resolvemos seguir o mesmo caminho, mas estacionamos nuns degrausque levam ao telhado. Os dois adentraram um matagal e alguns minutos depois ficaramnos observando. Paramos nossas interações. Eles tentaram descer e avistaram uma tropada Guarda Municipal e por isso retornaram e nos avisaram. Continuamos a interagir. Ocara fez sexo oral, gozei. Quando descemos, os homens da Guarda Municipal nãoestavam mais naquela área da Estação. A escadaria e o banheiro do térreo seguiammovimentados e com um fluxo intenso.Outro homem conhecido e com quem eu já havia interagido em outraoportunidade apareceu. Ele era gordo, aproximadamente 1,70 de altura, meio calvo,


102branco nos padrões soteropolitanos, aparentava ter 28 anos e trajava um uniforme deinstalador da operadora de telefonia e internet GVT. Como já havia chegado aoorgasmo, estava mais interessado em conversar com aquele rapaz que num dia de“vacas magras” bateu uma punheta recíproca comigo dentro do apertado box dobanheiro do térreo da Lapa.3.3 O SURFISTINHA DE OLHOS AZUIS E A CAIXINHA DE NATALA cidade estava em clima de Natal e a Estação da Lapa super movimentada porconta do grande número de pessoas circulando nos Shoppings Center Lapa, Piedade eno comércio popular da Avenida Sete de Setembro, da Barroquinha e da Baixa dosSapateiros. Por volta das 15h, do dia 22/12/2011 resolvo voltar ao sanitário público daestação, onde a pegação estava a todo vapor. Confesso não conseguir quantificar onúmero de homens que se masturbavam reciprocamente no mictório dos fundos, minhamemória conseguiu registrar mais de 20. Eram trabalhadores, estudantes, professoresnão era possível dizer que tipo de homem se fazia presente ali, mas dava para notar queaquela amostragem sedenta por prazer não destoava da cor da Estação da Lapa, cujosusuários são em sua maioria negros. Com a conivência e a vigilância do auxiliar deserviços gerais que tomava conta do banheiro, eles faziam a festa, pegavam no pênis umdo outro, chupavam, ejaculavam. O servente ainda desligou a luz dos fundos para que oclima ficasse ainda mais propício. Confesso que estranhei tanta permissividade ecooperação por parte do rapaz da limpeza, pois dias antes tinha testemunhado o seguintediálogo do mesmo jovem com um segurança que estava de plantão e adentrou osanitário: “Muito viado olhando um para o pau do outro aí hoje?” O servente respondeu“é com tanto motel barato aqui perto esses caras vem achar de namorar aqui.” Nessemomento, os dois homens que ocupavam o mictório deixam o sanitário rapidamente. Eo segurança dispara ofensas como uma metralhadora “Esse rebanho de viado semvergonha, eles deveriam ir para o presídio, tem um monte de preso lá precisando devisita íntima”. O servente completa: “Eles iam adorar, iam sair todos arrombados de lá”.Pra finalizar, o segurança diz “Esses filhos da puta agora estão querendo direitos iguais,eles vão ver os direitos iguais, merecem porrada”. Se eu pegar aqui, eu quebro naporrada”. Mas logo depois de chegar próximo ao mictório fui convidado a fazer umacontribuição na caixinha de Natal dos auxiliares de serviços gerais do sanitário da Lapa


103e descobri o motivo de tanta cordialidade. Os participantes da pegação passavam pelaporta e logo em seguida eram interpelados pelo rapaz da limpeza que solicitava acontribuição natalina. Com o intuito de arrecadar o máximo, ele flexibilizava, faziavistas grossas e até colaborava para que a pegação acontecesse. E a pegação continuavano mictório quando despontou um garoto branco, olhos azuis, corpo atlético, 24 anos ,cabelos loiros e lisos, vestindo camiseta regata e bermuda surf-wear . Ele logo tornou-seo principal objeto de desejo da maioria dos homens ali presentes, quase todos negros. Orapaz foi cercado por oito homens. Eram pênis e bundas a mostra. Todos queriam tocálo,beijá-lo. Encostado na pia, mostro para ele meu pênis desenhado por cima dabermuda. Ele deixa o sanitário e retorna minutos depois e fez sinal para que eu deixasseo local. Saímos os dois juntos do banheiro e vários outros homens nos seguem.Batemos um papo, nos apresentamos e o “surfistinha” me convida para ir até a casa deleno bairro de Nazaré, numa das ruas próxima ao Campo da Pólvora. Ele diz “tem de serrápido, porque daqui a pouco meu irmão chega do trabalho”. Aceito o convite.Conversamos no caminho e me conta que mora com a mãe e o irmão, que sempremorou no Centro, no bairro de 2 de julho e que havia mudado há menos de um ano paraessa casa em Nazaré. Em tom de brincadeira, digo “Você deveria fazer o maior sucessono 2 de Julho, aquele bairro ferve” e obtive como resposta “ não, que nada, sempre fuigordinho e ninguém olhava para mim. Agora, malhei , fiz regime e estou curtindo muitoesse lance de ser desejado”. Não demora e chegamos até sua casa, um sobrado muitobonito e amplo. Acesso as dependências da residência pela garagem e sigo direto parauma dependência de empregada aos fundos onde transamos. Após acabarmos deentrar, fomos surpreendidos pelo toque da campainha. Fomos atender a porta e era umdos rapazes que estava na “pegação da Lapa”, negro, malhado, cabelos raspados namáquina zero, cerca de 1.65 m, trajando calça jeans e uma camiseta regata amarela. Elehavia nos seguidos e para disfarçar diz ter pensado que uma sauna gay funcionavanaquela casa. O dono da casa o dispensou e continuamos as nossas interações nobanheiro da dependência de empregada.


1044 CONSIDERAÇÕES FINAIS“Habla desde tu ano”. Esta recomendação considerada por muitos irreverente éfeita por Beatriz Preciado no texto Terror Anal: apuntes sobre los primeros días de larevolución sexual. Com o propósito de se desvencilhar do “distanciamento científico”, afilósofa de orientação Queer 55 confecciona uma “Ciência do Ânus”. Ela aponta para anecessidade de o pesquisador marcar o seu lugar de enunciação e, assim, desconstruir osmitos cristalizados por uma tradição colonial e européia do fazer científico. Foi namesma perspectiva que escrevi este relato autoetnográfico, em que eu exponho asminhas “vergonhas”, assumindo ser adepto da pegação em banheiros públicos, práticasexual considerada uma das mais baixas dentro dos parâmetros éticos e morais do meiohomossexual brasileiro.Quando escrevo este texto em primeira pessoa não quero em momento algumme limitar a um depoimento pessoal, o meu intuito é, por meio de uma perspectiva deintervenção, não apenas dar voz aos subalternos, como fazem alguns antropólogostradicionais, mas possibilitar que o sujeito subalternizado construa um saber sobre simesmo, a partir do seu lugar de fala.Como foi explicitado no decorrer deste trabalho, o texto autoetnográficorepresenta, principalmente para as consideradas “minorias”, uma alternativa de, atravésda expressão da subjetividade do pesquisador, promover reverberação de outras vozestambém oprimidas. Para isso, foi indispensável uma quebra com o pacto da “autoridadeetnográfica”, em que o pesquisador vai a campo observar um “outro”, “distante”,“exótico”. Nesse contexto de pesquisa etnográfica, foi necessário um diálogodesprovido desse “distanciamento” hierarquizante, que, por muitas vezes, de formaequivocada, transmite a impressão de que o pesquisador letrado é detentor de um55 “’Queer’ pode funcionar como substantivo, adjetivo ou verbo, mas em qualquer caso se define contra o‘normal’ ou normatizador. A teoria queer não é um quadro de referência singular, conceitual ousistemático, mas sim uma coleção de compromissos intelectuais com as relações entre sexo, gênero edesejo sexual. Se a teoria queer é uma escola de pensamento, então ela é uma escola com uma visãobastante heterodoxa de disciplina. O termo descreve um leque diverso de práticas e prioridades críticas:leituras da representação do desejo pelo mesmo sexo em textos literários, filmes, música e imagens;análise das relações de poder sociais e políticas da sexualidade; críticas do sistema sexo-gênero; estudosde identificação transexual e transgênero, de sadomasoquismo e de desejos transgressivos”. (SPARGO,2006, p. 8 e 9)


105conhecimento superior ao do “nativo”. No cotidiano da Estação da Lapa, não cogiteioutra possibilidade que não a condição de adepto da deriva da pegação.Diante do breve panorama das pesquisas sobre sexualidade e erotismorealizadas, apresentado na introdução, onde ficou constatada uma produção quaseexclusivamente direcionada aos campos da sexualidade, saúde e prevenção deDST/AIDS, sugiro que pesquisadores desloquem seus olhares para o erotismo e para aspráticas sexuais consideradas “dissidentes”. Apesar dos diversos avanços conquistadospela população LGBT nas últimas décadas, um olhar moralista e patológico ainda édirigido para aqueles seres com práticas consideradas “marginais”.Os mais de 12 meses de trabalho de campo na Estação da Lapa me fizeram teruma constatação ainda mais forte de que “sexo é política”. A busca daqueles homenscom desejo homoorientado por pela satisfação sexual jamais poderia ser observada pormim sem uma leitura dos fatores sociais, culturais, políticos e econômicos queenvolvem a deriva no maior terminal de ônibus da Região Metropolitana de Salvador.Assim, no capítulo 1, apresentei a deriva sexual na Estação da Lapa. O objetivoera entender a geografia homoerótica que demarca aquele terminal de transbordo urbanoe perceber como aquela plataforma de idas e vindas era ressignificada para a prática dapegação. Para isso, fez-se necessário ter acesso a números do CREA-BA e daTransalvador sobre a estrutura do lugar. Ainda nessa parte do texto, justifico a escolhada Região da Lapa diante de outras regiões de Salvador. O grande movimento depessoas na Estação da Lapa é capaz de possibilitar as relações mais diversas entre todosos usuários, dentre elas a prática do “banheirão”.O estado de degradação em que se encontram os equipamentos públicos doCentro da Cidade do Salvador e, principalmente, da suja, mal conservada e inseguraEstação de ônibus, que sofre com o descaso da administração municipal foi tambémoutro fator preponderante para a escolha, por colocar o local em uma situação aindamais marginalizada. A precariedade física tornou a prática considerada abjeta da“pegação homoerótica” ainda mais dissidente dentre as práticas sexuais consideradas“anormais”.Em O negócio do michê, Perlongher atenta para o fato de que olhar dosantropólogos urbanos, geralmente, está voltado para estudar aqueles que ficam nasperiferias das grandes cidades e atenta para a necessidade de voltar-se para os que seperdem no Centro – no caso de seu objeto de estudo, jovens filhos de pais oriundos do


106interior do país que migram para a metrópole, e, por muitas vezes, acabam se perdendono Centro. Apesar de não ser um michê, acabei me identificando com o objeto doantropólogo argentino, pois cheguei a Salvador com meu pais e irmãos no final dadécada de 1990, fui morar em Paripe, mas nunca vivi a rotina do bairro suburbano.Durante a semana, Sempre deixei minha casa em direção ao Centro da cidade muitocedo para estudar e trabalhar e só voltava após a meia-noite.Durante os finais de semana, as minhas opções de lazer e sociabilidade tambémse encontravam no Centro. Os embarques e desembarques na Estação da Lapa seconstituíam uma oportunidade de encontrar potenciais parceiros sexuais para satisfazermeus desejos. Dessa forma, o meu bairro funcionava para mim com função dormitório.Fora os laços familiares, conheci os amigos que também residem em Paripe no trajetonos ônibus e no transporte alternativo. Por esses motivos, também me considero umdaqueles que “se perdeu” ou “se encontrou” no Centro.É impossível traçar um perfil do homem adepto da pegação na Região daEstação da Lapa. Eles são os mais diversos possíveis. É notável que por se tratar de umterminal de transporte coletivo, a maioria deles é formada de estudantes e trabalhadoresdas camadas mais populares. No capítulo 2, dialoguei com as mais diversas formas deexpressão da eroticidade hterossexual masculina presente naquele contexto de ‘caça” ederiva sexual. O texto mostrou as diversas formas de masculinidade que, dentro de certolimite, rasuram a masculinidade hegemônica, apesar de em alguns momentoscolaborarem para a manutenção dos padrões tradicionais de masculinidade. Umexemplo disso é a rejeição aos corpos “afeminados” que se distanciam do padrãomásculo e viril.Não é exagero afirmar que a Estação da Lapa é um território negro. O capitulo 3foi destinado a relação entre raça e homossexualidade nesse contexto. O ponto departida foram os dados estatísticos do Censo do IBGE 2010, que mostram asdisparidades entre negros (pretos e pardos). Em seguida, através do Caso Zumbiproblematizei os dilemas vividos por homens negros não heterossexuais, tomando comobase o discurso do movimento negro e do movimento LGBT e os relatos departicipantes da Cena, tanto nas redes sociais quanto in loco. Cheguei a conclusão deque os projetos de identidade dos movimentos negros e LGBT não abarcam essehomem negro com práticas sexuais dissidentes. Ele, salvo raríssimas exceções, estáexcluído dos dois projetos.


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ANEXO A – ENTREVISTA FUNCIONÁRIO DE MATERIAL ELÉTRICO –<strong>ESTAÇÃO</strong> DA <strong>LAPA</strong> - 10/10/2011Minha primeira experiência foi a cinco anos atrás num banheiro da Estação Rodoviáriade Salvador. Eu conheci um cara lindo e maravilhoso velho e foi inexplicável. Eu nãotava naquele mundo, mas foi uma coisa que me cativou. Naquele momento eu senti, seilá, um. Eu não era gay eu me senti atraído por ele, aquele moreno lindo, cabelos, sei lá,escuros lisos e naquele momento eu fiquei cativado por ele. O tesão falou mais forte eali ele me levou a loucura. Ele me levou para um lugar maravilhoso, que eu não voucitar o lugar tal e foi só alegria.TS: ESSA FOI A SUA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA SEXUAL COM OUTROHOMEM?Sim, a minha primeira experiência. Se tornou um vício. Porque assim, eu não meconsidero um cara gay. Eu simplesmente me sinto atraído pelos homens agora hoje emdia. Porque assim como eu posso falar, é uma coisa inexplicável velho. E eu meapaixonei por ele e foi aquela coisa. Eu não conseguia dormir, eu não conseguia comereu num. Uma paixão a primeira vista. Aquilo me cativou, muito, muito, mesmo.TS: PORQUE VOCÊ NÃO SE CONSIDERA UM CARA GAY?Rapaz, velho. Eu vejo isso como tesão porque eu não me comporto como um gay, eunão me vejo como um gay, na verdade. Então, para mim é sexo veio. E viva asacanagem.TS: E COMO SERIA SE COMPORTAR COMO UM GAY?Porra se comportar como um gay na sociedade, na verdade é ser um gay mesmo. Têmgays que se mostram ser gays e têm gays que são reprimidos pela sociedade. E eu nãome considero assim. Eu sou tranqüilo graças a Deus. E viva a sacanagem.TS: MAS VOCÊ FREQUENTA LUGARES GAYS?Hoje em dia freqüento por intermédio de outras pessoas e gosto, sou tranqüilo, trabalhomuito meu psicológico. E não me preocupo como o que as pessoas pensam de mimporque eu sou independente, graças a Deus, e estou aí para o que der e vier.


116TS: E SUA FAMÍLIA, COMO É? ELES SABEM?Minha família velho, não, não sabe não. Na verdade é uma coisa minha. Na verdade ésexo também.TS: QUANTOS ANOS VOCÊ TEM?Hoje eu tenho 27 anos.TS: E SUA FAMÍLIA NÃO LHE COBRA NAMORADA, MULHER?Tenho namorada.TS: MAS VOCÊ GOSTA DE FODER MULHER?TambémTS: MAS VOCÊ PREFERE FUDER MULHER OU FUDER HOMEM?Rapaz, eu vou ser sincero pra você. Eu pretendo me casar e ter filhos. E é isso aí velho.TS: MAS E FODER? QUAL É A HISTÓRIA DE FODER HOMEM?É uma coisa inexplicável como falei pra você. É tesão velho. É inexplicável. Não temnem como te explicar isso aí.TS: VOCÊ GOSTA DE SER PASSIVO?Eu, rapaz, na sacanagem rola tudo. Sendo com carinho rola tudo.TS: E COMO VOCÊ COMO ESSA PUTARIA AQUI NA <strong>LAPA</strong>? COMO VOCÊCOMEÇOU A PERCEBER ESSA PORRA DESSE LUGAR?Com a minha primeira experiência. Assim, eu escolho muito meus parceiros, eu gostode um cara homem e não um cara que se mostre ser gay. Porque é uma coisa minha. Eunão tenho preconceito com gay, mas é a minha prioridade, é um cara homem.


117TS: QUAL O TIPO DE CARA QUE VOCÊ NÃO PEGARIA?O afeminado, velho. Não sobe de jeito nenhum, velho. Não dá, não rola. Porque eugosto da atração de homem com homem. É uma pegada diferente, é... Só eu sei viu.(risos)TS: E essa putaria de banheiro, você curte?Rapaz, às vezes velho. Quando estou com tesão eu curto. Não vou mentir pra você.


ANEXO B – PREGAÇÃO EVANGÉLICA – BANHEIRO DA <strong>LAPA</strong>... Esse é o caminho por todos aqueles que procuram o caminho reto. O senhor é salvo eé liberto. Deus, ele veio pra salvar aqueles que tá prisioneiro do diabo (sic). O diabo éenganador. O diabo usa o homem pra ser mulher. Eu quero dizer que Deus foi quembotou Adão e Eva naquele paraíso ali ó pra se unir. Homem e mulher, não homem comhomem e nem mulher com mulher. Deus ele tem um prano (sic) em cada vida. Eu abroa minha boca, eu enuncio o evangelho porque Deus, ele manda. E isso é abominaçãoaos olhos de Deus. Deus ele não aceita isso. Isso é condenação. Deus ele veio pralibertar aqueles que é prisioneiro de satanás. Pode dar risada. Eu abro a minha bocaporque Deus, ele manda. Eu sou perseguido por vocês. Não venha não porque aqui temfogo. Tem fogo, (palavras estranhas em outra língua). Pode botar o olho, mas só que vaiser queimado. Vai ser queimado porque Deus ele tem prano (sic). Ele quer (inaudível)abra o seu coração se arrependa. Eu lamento porque Jesus tá pra voltar. Ele vem semdemora. Ele vem sem demora tá aí sorrindo. Deus não que é isso não para o grupo delenão. Ele quer mudar sua vida, a sua história. Esse mundo parece ser direito, mas no finalé a morte é a salvação. Deus manda entrar pela porta estreita. Deus manda entrar pelaporta estreita. Deus manda entrar pela porta estreita porque se for entrar vai ser na dor.Vem filho meu, olha o amor que Deus tem por vocês, vem filho meu todo vinde a mimtodos que está cansado e oprimido. Todos aqueles que está cansado e oprimido Jesus elealuveia (SIC) seus problemas. Jesus ele te muda. Não tem espirito maligno que não sejaretirado por ele. Deus ele tira esse espirito satânico que quer destruir a vida, colocardoenças, doenças que o médico nem cura. Vai remédio e vai remédio, coquetel prapoder destruir a vida da até um baque no coração. Deus ele que lhe libertar, Deus elequer lhe salvar. O diabo tá querendo fazer do homem mulher isso não pode acontecer.Tem que procurar sua esposa pra casar, ser feliz, ter sua família. Para com isso, porqueisso é uma doença. Tem uns que mata, mas eu não eu levo a palavra de Deus, eu levo oconforto em seus corações. Eu não tô lhe condenando não eu tô vendo é o satanás que tálhe usando para querer ver a sua derrota, pra querer botar a enfermidade. Eu tô usadopelo espírito santo. Deus ele quer salvar e libertar. Larga esse caminho torto, maligno,aceita o seu Jesus porque os dias são maus. Quantos gays tá descendo a sepultura aí tamorrendo a toa aí. O diabo tá de olho pra querer matar as vida aí que Deus tem prano(sic)... Deus ele transforma, nova criatura eu sou, assim Deus disse. Um homem que eramacumbeiro, um homem que também praticava né, usava homem, e deus pegou aí é elelibertou. Ele libertou eu tive força de vontade. Eu não era gay não eu só fazia usar. Deusele me libertou, o diabo conhece que eu era dessa vida e ele leva os adeptos dele praquerer ver se eu caio na dele. Eu não caio mais não. Nove anos liberto, tenho mulher etenho filho, sou bem casado.

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