REVISADO_Final_Cap_II_Celia_Carla
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<strong>Cap</strong>ítulo <strong>II</strong> – Educar para a Diversidade: viver diferenças e tensionar<br />
desigualdades na escola<br />
Célia Elizabete Caregnato 1<br />
<strong>Carla</strong> Beatriz Meinerz 2<br />
A escola ocupa um lugar central na instrução das pessoas a partir da<br />
modernidade. A Sociologia da Educação já mostrou há algum tempo que ela é um lugar<br />
no qual passamos um tempo significativo de nossas vidas. Aprendemos conteúdos<br />
organizados a partir de propostas curriculares e aprendemos também a conviver com<br />
pares, tendo como base valores e comportamentos sociais adquiridos no ambiente, os<br />
quais cada um de nós assumimos claramente. Quando temos o desafio de pensar o tema<br />
da Educação para a Diversidade, tendo a escola brasileira como lugar de referência, é<br />
indispensável recorrer a noções históricas sobre esta instituição e sobre os contextos que<br />
a envolvem. Paralelamente precisamos esclarecer a ideia de diversidade e sua relação<br />
com questões de diferenças e desigualdades.<br />
Nosso objetivo é problematizar o ambiente escolar para enfrentar preconceitos e<br />
discriminações existentes e muitas vezes tomados como naturais. 3 A compreensão<br />
estabelecida requer que pensemos a escola como espaço de sociabilidades e como<br />
núcleo de ação a partir dos novos aprendizados na relação com a comunidade. Assim,<br />
familiares, grupos e comunidades estão também no foco do trabalho desenvolvido no<br />
sentido da Educação para a Diversidade. Esse é o propósito dos elementos que<br />
propomos nas três unidades desse capítulo.<br />
A primeira unidade aborda a escola como espaço de composição mais ou menos<br />
integrado de diversas culturas. Discute a noção de cultura, procurando situar relações de<br />
poder e desigualdades reproduzidas e também produzidas, afirmadas no espaço escolar.<br />
Mostra a escola como espaço público, lócus na sociedade, lugar de promoção de<br />
pensamento crítico, de trocas culturais, portanto, com capacidade para propulsão de<br />
outros tipos de relações sociais, para além daqueles que reproduzem desigualdades,<br />
preconceitos e discriminações. Também a ressalta como espaço para a valorização das<br />
1<br />
Doutora em Educação e mestre em Ciência Política, docente na FACED/UFRGS. E-mail:<br />
celia.caregnato@gmail.com.<br />
2 Doutora e mestre em Educação, docente na FACED/UFRGS, coordenadora do PIBID/UFRGS. E-mail:<br />
carlameinerz@gmail.com.<br />
3 Este texto vincula-se aos estudos no âmbito da pesquisa intitulada Diversidade cultural e políticas do<br />
estado brasileiro junto ao sistema de escolarização, coordenado pela profa. dra. Célia Elizabete<br />
Caregnato, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na qual a profa. <strong>Carla</strong> Beatriz<br />
Meinerz é pesquisadora.
experiências sociais (Dubet, 1994) e para experimentação de novas práticas na relação<br />
com comunidades, onde o plural e o intercultural acontecem.<br />
A segunda unidade conduz a uma reflexão de natureza histórica, analisando a<br />
escola como instituição moderna, constituída dentro de contextos socioeconômicos e<br />
objetivos socioeducativos específicos, instigada a transformar-se a partir da<br />
contemporaneidade que incorpora a diversidade e a desigualdade. A história da<br />
educação escolar no Brasil é pensada na relação com a pobreza e a desigualdade<br />
socioeconômica que caracteriza essa sociedade, assim como a partir das práticas sociais<br />
que se vinculam ao reconhecimento ou negação da diferença e da diversidade numa<br />
sociedade marcada pelas trocas culturais intensas evidenciadas no sincretismo e na<br />
miscigenação.<br />
Na terceira unidade refletimos sobre possibilidades para a construção da<br />
convivência ética baseada na diversidade presente na sociedade e na escola brasileira.<br />
Pensamos, além da instrução, um tipo de formação comprometida com relações sociais<br />
que promovam a dignidade humana, reconhecendo os anseios dos alunos e de suas<br />
comunidades. Conhecer a comunidade de origem destes sujeitos é um primeiro e<br />
importante passo nessa proposição, que deseja fazer da escola um observatório do seu<br />
entorno, incidindo em ações capazes de enfrentar preconceitos e discriminações<br />
presentes nas relações cotidianas dentro e fora da escola.<br />
1 Educação escolar, trocas culturais e enfrentamento de preconceitos e<br />
discriminações<br />
A educação escolar surgiu com o propósito universalista (Sacristán, 2000),<br />
constituído a partir do período entendido como modernidade (Hall, 1997; Santos, 1989;<br />
Santomé, 1998; Martins, 2000). Entretanto, a escola, a modernidade e seus valores<br />
mostraram limites importantes para a efetivação do sentido universalista da educação<br />
escolar, especialmente na sua dimensão contemporânea de direito social. A<br />
desigualdade social e os valores e comportamentos tradicionais são marcas que se<br />
mantêm e com as quais nos deparamos quando analisamos o tema da educação para a<br />
diversidade. A escola como espaço social e educacional pode ser base para superação de<br />
relações discriminatórias que impedem o reconhecimento da diversidade e a construção<br />
de relações sociais mais democráticas.
O conjunto de estudos sociológicos da educação, dos anos 1980 no Brasil,<br />
mostrou que a desigualdade da sociedade está presente na escola. Com eles, aprendemos<br />
a ver que a desigualdade na escola não se limitava a refletir de maneira passiva aquilo<br />
que tinha origem externa, ao contrário, os estudos explicitaram seu papel ativo como<br />
instituição social que dava continuidade a desigualdades. Seja por meio da noção de<br />
Aparelho ideológico do Estado (Althusser, 1985), seja da noção de <strong>Cap</strong>ital Cultural<br />
(Bourdieu e Passeron, 1975), esses estudos mostraram que a instituição escolar cumpre<br />
papel ativo na reprodução da sociedade e de suas hierarquias.<br />
Os professores são sujeitos importantes nesse cenário, pois atuando nos<br />
processos pedagógicos, utilizam como referenciais, para além da sua formação<br />
profissional, seus parâmetros sociais constituídos subjetivamente. Estes se manifestam,<br />
por exemplo, em momentos de classificar ou estabelecer juízo sobre atividades dos<br />
estudantes (Bourdieu e Saint-Martin, 2005). Para além das suas contribuições, as teorias<br />
crítico-reprodutivistas revelaram-se insuficientes para dar conta da complexa realidade<br />
que cerca a escola, suas comunidades e seus sujeitos. A contribuição analítica que<br />
destacamos aqui é o questionamento à ideia de educação universal. Vimos que em<br />
período histórico anterior nem todos tinham acesso à escola e que, na atualidade, o<br />
acesso não significa inclusão ou participação com base em condições similares àqueles<br />
que já compunham os quadros escolares desde um primeiro momento.<br />
Pierre Bourdieu, no livro A miséria do mundo (1997), mostra que os indivíduos e<br />
camadas sociais marginalizadas, mesmo estando no interior da escola e percorrendo<br />
todos os anos escolares, não participam com as mesmas condições e não obtêm os<br />
mesmos benefícios da escola. Ele afirma que a escola “mantém no próprio âmago<br />
aqueles que ela exclui, simplesmente marginalizando-os nas ramificações mais ou<br />
menos desvalorizadas” (Bourdieu, 1997, p. 485). No dia a dia da escola é possível<br />
verificar vários tipos de exclusões ou marginalizações – formas de discriminar –, as<br />
quais são praticadas a partir de diversos critérios sociais e culturais. O critério<br />
socioeconômico é recorrente, mas outras distinções associadas a essa fazem parte dos<br />
processos de exclusão praticados na/pela vida escolar das crianças, jovens e adultos.<br />
A ampliação do ingresso à escola é um fator importante e insuficiente do ponto<br />
de vista da qualificação do trabalho escolar e do desenvolvimento das pessoas e da<br />
sociedade. No caso da sociedade brasileira, com seu histórico de escolarização desigual<br />
e excludente, é possível verificar a ampliação de ingresso, por meio da ampliação de<br />
vagas vinculadas a políticas estatais nos diversos níveis educacionais.
MATRÍCULAS EDUCAÇÃO BÁSICA DA REDE PÚBLICA<br />
Anos 4 Ensino Fundamental Ensino Médio Total<br />
1991 25.585.712 2.753.324 28.339.036<br />
1995 28.870.418 4.210.346 33.080.764<br />
2000 32.528.707 7.039.529 39.568.236<br />
2009 27.927.139 7.023.940 34.951.079<br />
Fonte: Censo Escolar e Censo da Educação Superior, MEC/INEP/SEEC, 1991 a 2009.<br />
O aumento do ingresso na escola ocorre no contexto de situações complexas,<br />
seja na educação básica, seja na universidade e/ou ensino superior.<br />
MATRÍCULAS ENSINO SUPERIOR<br />
REDE PÚBLICA REDE PRIVADA TOTAL<br />
2000 887.026 1.807.219 2.694.245<br />
2009 1.351.168 3.764.728 5.115.896<br />
Fonte: Censo Escolar e Censo da Educação Superior, MEC/INEP/SEEC, 2000 e 2009.<br />
O tema da diversidade na educação e na escola nos faz questionar quem são<br />
esses novos ingressantes e como eles convivem no ambiente escolar. A democratização<br />
do acesso com a presença desse expressivo contingente de pessoas, historicamente<br />
alijado das instituições escolares brasileiras, evidencia a composição de novas questões<br />
para a educação escolar e especialmente para o ensino público em nosso país. Esse<br />
acesso ampliado intensifica as trocas culturais no interior do espaço escolar e torna<br />
necessário o reconhecimento de identidades e culturas, antes invisíveis, hoje<br />
explicitadas em novas sociabilidades. É nesse contexto escolar que aparecem mais<br />
intensamente os temas da diversidade cultural e do tipo de relações que ocorrem na<br />
escola.<br />
Quando se diz que a escola exclui estudantes que a frequentam, se está<br />
chamando atenção para o papel ativo dessa instituição na manutenção de relações de<br />
poder e de desigualdades. Não se trata de um processo maquinado por atores sociais do<br />
seu interior, entretanto, esses atores, dos quais – como professores – fazemos parte,<br />
atuam colaborando para a existência desse tipo de relações discriminatórias. A tabela a<br />
seguir mostra uma situação de desigualdade que certamente não tem origem na escola,<br />
4 As matrículas no Ensino Fundamental Público em 2000 tiveram aumento de 27% em relação a 1991 e<br />
aumento de 13% em relação a 1995. Em 2009 houve redução de 12% nas matrículas do Ensino<br />
Fundamental; houve aumento no número de matrículas em instituições privadas no Ensino Fundamental<br />
(+19%); e houve redução nas matrículas no Ensino Médio privado maior que na rede pública (18% contra<br />
menos de 0,22%). Fonte dos dados: Censo Escolar e Censo da Educação Superior, MEC/INEP/SEEC,<br />
1990, 1995, 2000 e 2009.
porém diante da qual a mesma não consegue oferecer condições de igualdade entre<br />
crianças e jovens separados por questões étnicas e de gênero.<br />
Fonte: Paixão (2012, p. 238).<br />
Os dados da tabela anterior registram o desempenho dos alunos com base nas<br />
provas aplicadas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) do<br />
Ministério da Educação para o ano de 2005.<br />
Certamente há uma variedade de fatores que determinam o fato. O estudo de<br />
Paul Willis (1991), realizado na Inglaterra entre alunos trabalhadores, nos aproxima de<br />
um dos fatores que auxilia na interpretação. Ele mostra que a escola é refratária à<br />
cultura de origem dos alunos marginalizados pela sociedade, e diante disso os alunos<br />
criam alternativas de sobrevivência, desvalorizando conhecimentos que são objeto de<br />
trabalho da escola, por exemplo. Nesses casos, os estudantes são vistos pelos<br />
professores como alunos não típicos e são objeto de aversão pela gestão escolar.<br />
Evidentemente que os estudantes localizados socialmente à margem de condições de<br />
vida dignas, ou mesmo aqueles que precisam trabalhar, enfrentam condições de estudo<br />
que em geral determinam desempenhos inferiores. Porém, além disso, as suas histórias<br />
de vida, seus modos de lazer, seus gostos e comportamentos muitas vezes são vistos<br />
como não desejáveis pela escola e por seus integrantes. Há a marca da condição social,<br />
assim como há a marca étnico-racial e/ou de opção sexual.<br />
Nesse sentido, Grignon (1995, p. 180) afirma que a “escola conduz<br />
espontaneamente ao monoculturalismo”, reforçando valores de culturas dominantes e<br />
sendo incapaz de levar em consideração diferenças entre seus estudantes. A pretensão
universalista tem como referência aquilo que a sociedade passou a considerar válido e,<br />
desse modo, aquilo que sai do comportamento e dos códigos dominantes historicamente<br />
passa a ser considerado como não válido.<br />
O exemplo claro é o do uso da língua: “o sentimento hierárquico da língua<br />
escrita repercute sobre a língua oral: o sotaque dominante é percebido, ou melhor, não<br />
percebido, é sotaque zero, o sotaque em relação ao qual outros sotaques, populares e<br />
regionais, se fazem ouvir [...]” (Grignon, 1995, p. 180). A escola possui importantes<br />
limites para o reconhecimento da diversidade cultural e social em suas práticas<br />
curriculares e para a integração equilibrada da diversidade existente no seu interior. Ela<br />
pratica discriminação por meio de suas práticas cotidianas. Os seus atores ou sujeitos –<br />
professores, funcionários e alunos – são agentes nesse processo.<br />
No interior da escola e da educação escolar há relações de poder relativas, não só<br />
quanto à origem socioeconômica, mas também quanto à condição de origem étnica,<br />
faixa de idade, gênero, sexualidade, entre outras. Assim, é indispensável pensar a escola<br />
nos seus aspectos de reprodução daquilo que existe na sociedade. Também é necessário<br />
pensá-la como espaço de produção de relações diante da desigualdade e de diferenças<br />
culturais.<br />
A desigualdade social na escola<br />
No contexto escolar da rede pública de ensino no Brasil tem sido comum o<br />
enfrentamento de situações de grande dificuldade na execução de projetos educativos<br />
qualificados, devido a vários fatores, com destaque para a precariedade socioeconômica<br />
de grande parte das comunidades atendidas e do seu entorno. Diante disso, tem sido<br />
importante recorrer e valorizar modos de produção da subsistência e alternativas de<br />
organização domésticas e comunitárias, como recursos e temas que mobilizam o ensinoaprendizagem<br />
nas escolas.<br />
O problema da desigualdade continua presente na escola e tem íntima relação<br />
com as questões de diferença e diversidade. Conforme José de Souza Martins (2009), a<br />
desigualdade tende a estar presente em nossas consciências como diferenças. Quando os<br />
baixos desempenhos evidenciam-se, e em geral são atribuídos às incapacidades<br />
individuais, desconsideram-se as condições socioeconômicas e socioculturais<br />
interconectadas a comportamentos de falta de concentração, indisciplina ou dificuldades<br />
de aprendizagem entre crianças e jovens na escola. Conforme Martins (2009), as
diferenças significativas – de gênero, étnicas, geracionais, etc. – tendem a chegar a nós<br />
como diferenças superficiais, ou seja, são ignoradas na sua expressividade e percebidas<br />
apenas através de manifestações exteriores. Nesses casos, elas são interpretadas a partir<br />
de valores morais predominantes. Isso pode ser visto por meio do exemplo de assédio<br />
ou abuso sofrido por mulheres. Muitas vezes elas são responsabilizadas por tais atos<br />
devido ao uso de vestuário considerado propício a gerar o ato de violência sobre si: foi<br />
ela quem provocou!<br />
Nas sociedades complexas, as desigualdades ficam muitas vezes veladas, mas<br />
não deixam de existir. Na situação de intensa pobreza, entretanto, a desigualdade social<br />
e a diversidade cultural aparecem como elementos indistintos. François Dubet (1994)<br />
mostra que as experiências sociais dos indivíduos formam base no processo de criação<br />
de sentido e interpretação da vida em sociedade. O distanciamento da própria<br />
experiência de socialização é necessário para elaborar significados e sentidos que<br />
conduzem os alunos a projetar-se nas relações sociais como sujeitos. Em situação de<br />
extrema pobreza, as crianças e jovens, tornados alunos pela escola, encontram grandes<br />
dificuldades de distanciarem-se de suas experiências de vida como única possibilidade<br />
de interpretar o real. Assim, tornam-se facilmente objeto de preconceitos e<br />
discriminações variadas na escola, e tendem a reproduzir ao longo das suas vidas tais<br />
experiências.<br />
Freitas (2006), em estudos a partir de observações da infância e da juventude,<br />
analisa a situação de extrema pobreza e destaca a necessidade de aproximação dos<br />
locais de vida dessas pessoas, a fim de conhecer os modos que encontram para se<br />
organizarem e se distinguirem dos juízos que fazemos delas. O autor mostra que alunos<br />
classificados a partir de categorias sociais marginais podem ser mais bem visualizados e<br />
interpretados na medida em que nos aproximamos de seu cotidiano.<br />
A proximidade começa a demonstrar que mesmo em locais muito pobres há<br />
um esforço contínuo por parte das pessoas visando distinguir-se dessas<br />
imagens que pairam sobre os lugares onde estão e que são redesenhados<br />
diariamente nos mais variados instrumentos de comunicação. O trabalho de<br />
campo conduz ao encontro com essas personagens que só ganham<br />
visibilidade quando associadas aos predicados da sua rua. É o primeiro passo<br />
para conhecer alunos considerados “em situação de risco” ou em “situação de<br />
vulnerabilidade” (Freitas, 2006, p. 27).<br />
Situações de alta desigualdade exigem que conheçamos e saibamos lidar com o<br />
modo de vida das crianças e jovens, alunos na escola, para explorar possibilidades de<br />
fortalecimento de relações que valorizem a dignidade humana. Reconhecer a
desigualdade e a diversidade, em algumas de suas nuanças e a partir do lugar onde as<br />
pessoas extremamente pobres fazem sua vida, pode ser o primeiro passo para enfrentar<br />
preconceitos e discriminações que ocorrem no cotidiano escolar.<br />
Discriminação e preconceito caminham juntos, embora se diferenciem entre si<br />
nas práticas sociais. O preconceito diz respeito às ideias e percepções que desvalorizam<br />
o sujeito diferente, enquanto a discriminação relaciona-se às ações que implicam<br />
segregação, negação ou exclusão de outrem, considerado valorativamente inferior em<br />
função de sua diferença. A partir de práticas desse tipo, além do mote socioeconômico,<br />
a sociedade brasileira e a escola precisam enfrentar desigualdades afirmadas a partir de<br />
diferenças de etnia, gênero, religiosidade, entre outras, as quais negam a convivência<br />
democrática com a diversidade. Para tanto, um recurso importante é a escola valorizar a<br />
interpretação das culturas e o seu reconhecimento no cotidiano escolar.<br />
Diferenças e diversidade cultural como possibilidades para a educação escolar<br />
Para explorar o tema da diversidade na escola e da educação para a diversidade,<br />
a partir das relações comunitárias e do cotidiano dos alunos, é indispensável recorrer à<br />
compreensão sobre o que seja a cultura e as relações entre distintas experiências<br />
culturais. A abordagem antropológica esclarece a diversidade de culturas, a tendência a<br />
disputas e ao não reconhecimento da cultura do outro. Ela nos instiga a relativizar<br />
nossos pontos de vista, a fim de compreender distintos códigos culturais.<br />
A cultura não é um dado, mas uma construção variável no tempo e no espaço.<br />
Ela é herança que se transmite de geração em geração porque “é uma produção<br />
histórica, isto é, uma construção que se inscreve na história e mais precisamente na<br />
história das relações dos grupos sociais entre si” (Cuche, 2002, p. 143). Uma vez que<br />
cultura é produção histórica e que cria padrões de comportamento a partir dos quais os<br />
indivíduos e grupos sociais expressam suas trajetórias de vida, teremos tantas culturas<br />
ou traços culturais distintos como a diversidade de experiências humanas em grupo é<br />
capaz de produzir.<br />
O antropólogo Roque de Barros Laraia (2009), apresentando a noção de cultura,<br />
afirma que aquilo que é apreendido através de gerações, a nossa herança cultural, nos<br />
faz agir de forma depreciativa em relação aos que praticam comportamentos distintos<br />
daqueles da nossa comunidade. Todavia, as trocas culturais e as práticas sociais tornam
essas heranças dinâmicas, capazes de se alterarem e serem alteradas ao longo da<br />
história.<br />
Podemos falar em diversidade cultural como elemento de destaque da sociedade<br />
contemporânea. Há vários aspectos históricos que definem a alta complexidade desse<br />
tempo social e que fazem emergir a percepção de identidades antes não reconhecidas.<br />
De fato, diferenças sempre existiram, porém nem sempre foram ou são reconhecidas,<br />
problematizadas. O reconhecimento atual decorre de transformações sociais e<br />
paradigmáticas importantes.<br />
As trocas culturais são potencializadas por variadas razões: pela grande<br />
concentração humana em centros urbanos que define espaços heterogêneos em<br />
convivência; pelas vias de comunicação em ritmo e em possibilidades de acessos que<br />
intensifica redes; e pela coexistência de camadas e grupos sociais não reconhecidos<br />
como tal até então. Tais trocas permitem a afirmação de diferentes identidades e um<br />
maior reconhecimento da diversidade.<br />
[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social,<br />
estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o<br />
indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim<br />
chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo<br />
de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das<br />
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos<br />
indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (Hall, 1997, p. 7).<br />
As diferenças, sendo acolhidas ou obtendo maior espaço para manifestação nas<br />
sociedades complexas, tornam as disputas muito mais intensas. Se as diferenças fazem<br />
parte do mundo social e dos processos históricos, é necessário considerar mudanças e<br />
evoluções que dinamizam essa noção. Os assim considerados diferentes pela sociedade<br />
hoje expressam identidades que surgiram em expressão com o novo momento histórico.<br />
São, entretanto, passageiros, pois suas questões tendem a ser tratadas socialmente e<br />
superadas por outras. Isso, entretanto, não significa que sejam necessariamente<br />
resolvidas com base em padrões ético-sociais esperados.<br />
Constatada em determinado momento e sociedade, qualquer diferença é, ao<br />
mesmo tempo, um resultado e uma condição transitória. Resultado, se<br />
consideramos o passado e privilegiamos o processo que resultou em<br />
diferença. Mas ela é igualmente um estado transitório, se privilegiamos a<br />
continuidade da dinâmica, que vai necessariamente alterar este estado no<br />
sentido de uma configuração posterior (Semprini, 1999, p. 11).<br />
A admissão de novas identidades e de diferenças entre segmentos que compõem<br />
a vida social, mesmo que transitórias, é fruto de novos arranjos históricos e tem<br />
importante relação com a noção de diversidade. A resolução de demandas e problemas
vinculados a preconceitos e discriminações depende de posturas ativas de sujeitos<br />
sociais atuantes com esses propósitos.<br />
Portanto, é a partir da ideia de cultura e de diversidade cultural que<br />
reconhecemos a variedade de modos de vida, de histórias e de identidades de grupos<br />
com origens comunitárias próprias, os quais estão presentes na escola. Reafirmamos que<br />
as dimensões de desigualdade social e de diversidade cultural precisam ser tratadas pela<br />
escola por meio do reconhecimento de seus alunos na condição de crianças e jovens que<br />
possuem múltiplas histórias a partir de suas condições e seus modos de vida.<br />
É possível constituir ambientes de trocas culturais, nos quais a diversidade pode<br />
manifestar-se como elemento que fortalece espaços públicos desde a compreensão e<br />
valorização do modo de vida comunitário, sendo indispensável que a escola e seus<br />
sujeitos desenvolvam práticas desse gênero para melhor lidar com a diversidade em seu<br />
interior.<br />
A seguir pensaremos a escola numa perspectiva histórica, como instituição<br />
moderna, instigada a transformar-se a partir da contemporaneidade que incorpora a<br />
diversidade e a desigualdade. Reconheceremos as especificidades da história da<br />
educação escolar no Brasil, compreendida no contexto de desenvolvimento de uma<br />
modernidade diferenciada, marcada pela pobreza, pela desigualdade socioeconômica e<br />
pelas trocas culturais intensas.<br />
2 Escolarização no Brasil: múltiplas histórias contadas a partir da desigualdade e<br />
da diversidade<br />
Hoje em dia, a escolarização, a que é obrigatória, em particular, é um aspecto<br />
que se universalizou nas diferentes sociedades e culturas. É-o enquanto<br />
realidade prática institucionalizada, mas também enquanto construção mental<br />
(Sacristán, 2000, p. 8).<br />
Falar em educação em nosso país requer análises que impliquem seu<br />
entendimento dentro da dinâmica das relações sociais marcadas pela desigualdade por<br />
um lado e pela pluralidade por outro. Exige igualmente a busca de explicações<br />
históricas para as políticas e para as práticas educacionais mais recentes. Isso significa<br />
selecionar e construir possíveis leituras tanto do passado quanto do presente. Aos<br />
historiadores convergem perguntas sobre quando ou em que situações a escola criou
possibilidades de mudança crítica, deixando de ser preponderantemente um espaço de<br />
reprodução das desigualdades, preconceitos e discriminações. Podemos dizer que os<br />
vestígios deixados através dos tempos nos permitem falar ou calar sobre determinados<br />
temas ou grupos sociais. A presença de temáticas relativas à presença e ao<br />
enfrentamento de preconceitos e discriminações na escola, através de políticas públicas<br />
ou de práticas pedagógicas, é recente nos estudos do campo da história da educação no<br />
Brasil. Porém, não é recente a presença da pluralidade cultural em nosso país. A<br />
convivência entre diferentes e desiguais atravessa as ações de homens e mulheres ao<br />
longo dos tempos e, nesse sentido, podemos afirmar que as mudanças são relativas aos<br />
processos de disputas por espaços, e resultam tanto de pressões dos movimentos sociais<br />
organizados quanto da implementação de políticas públicas de democratização e da<br />
constituição de novos paradigmas científicos e culturais. Podemos destacar momentos<br />
importantes na democratização e no acesso à educação escolar, a partir do final do<br />
século XX, no Brasil, mas igualmente devemos apontar que as mudanças estão em<br />
curso e nos colocarmos como protagonistas ao privilegiarmos a vida cotidiana como<br />
lugar onde a sociedade adquire existência concreta, lugar onde se dão as transformações<br />
sociais.<br />
A escola laica e estatal não surge apenas no vazio deixado por outras instituições<br />
de educação, como a família e a igreja, mas seus defensores tiveram que produzir seu<br />
lugar travando conflitos e diálogos com outras organizações da vida social. A<br />
escolarização obrigatória universalizou-se como imaginário e como prática presente na<br />
maior parte das sociedades contemporâneas, mas sua história recente tem mostrado<br />
mudanças nas maneiras de pensar e de agir nos espaços escolares. A observação e<br />
análise dessas transformações pode nos ajudar a compreender a escola como criação<br />
humana, envolta em jogos de poder e resistência, capaz de reinventar-se em processos<br />
dinâmicos de interação entre os sujeitos que nela transitam e que dela se apropriam em<br />
suas práticas sociais.<br />
No caso específico da história da escolarização no Brasil, podemos questionar a<br />
ideia de educação universal, uma vez que o acesso à escola não tem significado<br />
processos de inclusão saudáveis no sentido da construção de perspectivas sociais<br />
diferenciadas e igualitárias, assim como na perspectiva da construção de relações<br />
libertárias, capazes de experimentar eticamente a pluralidade de experiências culturais,
geracionais, étnico-raciais, religiosas, ambientais e de gênero presentes hoje e na<br />
historicidade de nossas comunidades de convívio.<br />
Ao ingressar no espaço escolar, o sujeito traz consigo a herança das tradições,<br />
que são os caminhos dos saberes e fazeres educativos, além de guiar-se por práticas<br />
socioculturais construídas dentro e fora dessa instituição. A escola é o espaço<br />
institucional de um legado histórico-cultural intenso, onde insistem modelos diversos de<br />
como, para que, para quem e o que ensinar ou aprender, desenvolvendo-se de forma<br />
diferenciada conforme os contextos sociais e históricos em que se produz.<br />
No Brasil, a história da educação escolar deve ser problematizada a partir do<br />
cenário de pobreza e de desigualdade socioeconômica que caracteriza nossa sociedade,<br />
assim como das práticas sociais que se vinculam ao reconhecimento ou negação da<br />
diferença e da diversidade. Uma leitura sobre as produções acerca da dimensão histórica<br />
da educação brasileira, a partir do período da colonização, pode nos alertar para dois<br />
traços marcantes que insistem de alguma forma na nossa organização em termos<br />
políticos: a inclusão precária e a dimensão elitista da escola. Nos últimos quinhentos<br />
anos sucederam-se autoridades religiosas ou estatais, importaram-se e desenvolveram-se<br />
propostas educativas e curriculares, aumentaram-se as redes de ensino, o número de<br />
professores e os projetos de formação docente, mas ainda temos dificuldades de manter<br />
os jovens na escola e de tornar a escolarização uma experiência rica em aprendizagens<br />
significativas.<br />
Com base na contribuição analítica das teorias crítico-reprodutivistas, citadas<br />
anteriormente, podemos afirmar que a escola, em alguns momentos históricos mais do<br />
que em outros, tendeu a reproduzir não apenas a desigualdade socioeconômica, mas<br />
também os valores das elites, expressos em movimentos de racismo e intolerância<br />
diante das diferenças. Talvez um dos exemplos mais clássicos dessa expressão de<br />
desigualdade histórica é a negação da presença de grupos étnicos como os indígenas e<br />
os negros nos processos de escolarização brasileiros. A construção recente de leis,<br />
políticas e ações afirmativas no campo das relações étnico-raciais na educação<br />
brasileira, resultantes da pressão de grupos outrora ignorados, demonstra a necessidade<br />
de reparação histórica e de construção de novos espaços equitativos no contexto da<br />
democratização em nosso país. Espaços que recuperam eticamente a pluralidade de<br />
experimentações históricas presente em nossa trajetória de uma pretensa nação.
Múltiplas histórias e variadas experiências marcadas pela presença de diferentes<br />
etnias, crenças e costumes, produtoras de sincretismos e mestiçagens singulares,<br />
compõem o que podemos chamar de uma nação plural. O modo como o moderno e os<br />
símbolos da modernidade se incorporam nas relações sociais e na cultura popular ajuda<br />
a compreender essas singularidades em nosso país. Trata-se de uma cultura arraigada,<br />
capaz de integrar e conciliar o que é oposto, como forma de resistir à inovação e à<br />
transformação, na qual a presença surpreendente da televisão e até mesmo do telefone,<br />
mesmo nas casas onde não há o que comer, ou a ostentação de roupas com frases e<br />
palavras em inglês, em geral desconhecidas por quem as utiliza, são exemplos<br />
reveladores. O pobre busca também aderir ao sistema e busca formas de incluir-se. Para<br />
Martins:<br />
O pobre ostensivo, mal vestido ou esfarrapado, estereotipado, que havia há<br />
algumas décadas, foi substituído pelo pobre para o qual a aparência e o<br />
aparente e, portanto, o disfarce, tornam-se essenciais (Martins, 2002, p. 37).<br />
A multiculturalidade, dessa forma, convive com os traços marcantes de uma<br />
sociedade desigual. Eduardo Galeano atenta para o fato de que<br />
Nunca el mundo ha sido tan desigual en las oportunidades que brinda, pero<br />
tampoco ha sido nunca tan igualador en las ideas y las costumbres que<br />
impone. La igualación obligatoria, que actúa contra la diversidad cultural del<br />
mundo, impone un totalitarismo simétrico al totalitarismo de la desigualdad<br />
de la economía [...] (Galeano, 1996, p. 1).<br />
A desigualdade não é um fenômeno natural, mas construída nas relações sociais<br />
e nos modelos econômicos historicamente consolidados. O Brasil, por exemplo, não é<br />
considerado um país de economia pobre, mas ainda convive com o paradoxo da miséria<br />
no seu cotidiano, constituindo-se como um espaço muito desigual, onde a concentração<br />
de renda nas mãos de alguns grupos estabelece a marginalidade e a exclusão de grandes<br />
camadas populacionais em relação aos benefícios do desenvolvimento da nação.<br />
Martins (2000, 2002) discute conceitos de exclusão e de modernidade no caso<br />
específico do desenvolvimento da sociedade brasileira. Para o autor, a experiência da<br />
modernidade, no Brasil e nos países latino-americanos em geral, tem características<br />
específicas e diferenciadas daquelas da experiência europeia, configurando-se como um<br />
processo incerto e inacabado, produzido pelo desenvolvimento capitalista dependente e<br />
marcado pelo acirramento da desigualdade social. É uma modernidade constituída por<br />
distintas temporalidades que se combinam, em realidades nas quais a industrialização<br />
tardia convive com a permanência de estruturas tradicionais, assim como a emergência
de requintados processos tecnológicos convive com a miséria, o desemprego, o<br />
subemprego, ou até mesmo a persistência do trabalho escravo. Nessa espécie de<br />
modernidade anômala, constituída sob o signo da desigualdade de possibilidades de<br />
escolha, o tema da exclusão social ganha outros contornos. Ele não concerne apenas à<br />
pobreza ou às condições materiais, embora esteja delas indissociado, mas diz respeito<br />
também a “[...] uma multiplicidade de dolorosas experiências cotidianas de privações,<br />
de limitações, de anulações e, também, de inclusões enganadoras [...]” (Martins, 2002,<br />
p. 21).<br />
A sociedade que exclui é a mesma que integra, mas de forma precária,<br />
patológica, gerando processos que atingem a todos nós independentemente do grupo<br />
social em que nos constituímos. E o discurso da exclusão social, tão utilizado por<br />
militantes e pensadores críticos, revela-se como um discurso desconectado dos anseios<br />
daqueles que dele são vítimas e, teoricamente, diz mais respeito a uma ideia de<br />
manutenção do que de crítica da realidade vigente, pois acaba defendendo as relações<br />
sociais existentes, questionando apenas a inacessibilidade de uma parte da sociedade.<br />
Nas palavras de Martins,<br />
[...] a exclusão moderna é um problema social porque abrange a todos: a uns<br />
porque os priva do básico para viver com dignidade, como cidadãos; a outros<br />
porque lhes impõe o terror da incerteza quanto ao próprio destino e ao<br />
destino dos filhos e dos próximos. A verdadeira exclusão está na<br />
desumanização própria da sociedade contemporânea, que ou nos torna<br />
panfletários na mentalidade ou nos torna indiferentes em relação aos seus<br />
indícios visíveis no sorriso pálido dos que não têm um teto, não têm trabalho<br />
e, sobretudo, não têm esperança (Martins, 2002, p. 21).<br />
Essa situação de inclusão precária está presente nos processos de escolarização<br />
que desenvolvemos, uma vez que observamos a presença recente dos grupos<br />
historicamente empobrecidos e negligenciados acompanhada das dificuldades de<br />
inclusão nos processos de aprendizagem da cultura escolar de uma forma ampla.<br />
Sujeitos que entram na escola, mas vivem cotidianamente em suas corporeidades os<br />
limites das diferenças explicitadas em suas maneiras de aprender, de viver, de vestir, de<br />
relacionar-se, marcadas pelos traços geracionais, de etnia, gênero, religiosidade, renda,<br />
entre outros.<br />
Destacamos que a escola é uma instituição contingente e histórica surgida na<br />
modernidade, e que os processos educacionais atuais são uma resposta às necessidades<br />
de complexificação das sociedades contemporâneas, resultantes das demandas da
industrialização, da urbanização e da informatização. A escola como instituição laica,<br />
estatal e gratuita, surge historicamente no contexto da modernidade europeia, tendo<br />
como um dos deveres a transmissão dos fundamentos da ciência e seu ensinamento.<br />
Enquanto na Europa do século XIX nascem os sistemas públicos de educação de<br />
massas como base comum de cidadania e formação do ideário de nação, no Brasil não<br />
experimentamos essa correlação entre construção de sistemas educacionais para todos e<br />
formação de nação, uma vez que nos formamos em bases escravistas e em projetos de<br />
desenvolvimento desiguais.<br />
Vai longe a ideia de que temos no Brasil uma identidade nacional ou um jeito<br />
único de ser brasileiro, e poucos são os que acreditam que a mistura étnica e a<br />
pluralidade cultural explicam nossa situação de pobreza e desigualdade socioeconômica.<br />
Já avançamos no sentido de compreender que nossa pluralidade cultural é inventiva e<br />
positiva, e que as desigualdades são resultantes de escolhas históricas realizadas por<br />
grupos comprometidos economicamente com os interesses do capital.<br />
A construção de um ideário de nação brasileira, homogeneizante e fundado nas<br />
concepções de grupos socialmente privilegiados, é tardia em nosso país e mostrou-se<br />
precária em termos de propiciar acesso universal à educação de qualidade. O momento<br />
posterior à Independência, por exemplo, é rico em debate sobre instrução, quando parte<br />
da elite se interessa pelo tema, motivada pelo ideal iluminista civilizatório. O período<br />
imperial apresenta uma variedade de propostas para a escolarização nas províncias, não<br />
há um sistema educacional centralizado e nem uma forma única de pensar a educação<br />
escolar; por outro lado, o investimento estatal em educação escolar é ínfimo. O período<br />
republicano acentua o debate, incorpora os novos movimentos políticos e educacionais,<br />
instaura o acesso da maior parte da população à escola. No entanto, a democratização e<br />
qualificação da escola não é obra apenas do sistema de escolarização, e é impossível<br />
vislumbrar melhorias nesse campo sem que os sujeitos sejam ativos nesse processo cujo<br />
início está na sociedade e em seus movimentos sociais, obtém legitimação nas políticas<br />
estatais e efetiva-se nesse espaço privilegiado para a problematização de questões<br />
sociais, que é a escola. A escola e seus agentes ainda estão em fase de aprendizagem<br />
sobre como lidar de forma pertinente com a diversidade de segmentos sociais e culturais<br />
presentes na escola, a fim de ampliar relações democráticas no espaço público.<br />
Nessa perspectiva podemos pensar a função social da escola como espaço<br />
coletivo, de sociabilidades, de aprendizagens, de diferenças e de convivência entre<br />
múltiplas histórias, culturas, misturas e sincretismos. Ao ingressar na escola integramos
e construímos pautas de socialização e sociabilidade. Os processos de escolarização<br />
modernos e contemporâneos estão relacionados com os processos civilizatórios e com<br />
os de socialização, que incluem a adaptação do indivíduo à sociedade vigente ou<br />
emergente, conforme sua origem social. Norbert Elias (1994b), em suas pesquisas,<br />
dispostas na publicação da obra O processo civilizador, demonstra que os tipos de<br />
comportamento considerados próprios do homem civilizado ocidental são resultado de<br />
uma trajetória de longo prazo, através de mudanças lentas e graduais. Sentimentos como<br />
vergonha e delicadeza, medo e desagrado sofreram mudanças específicas, assim como a<br />
diferenciação entre a experiência desses sentimentos vivida por crianças e adultos. Com<br />
isso, o autor destaca as ligações entre mudanças na estrutura da sociedade e mudanças<br />
na estrutura do comportamento e da constituição psíquica do indivíduo. Segundo Elias,<br />
[...] o processo específico de ‘crescimento’ psicológico nas sociedades<br />
ocidentais, que com tanta frequência ocupa a mente de psicólogos e<br />
pedagogos modernos, nada mais é do que o processo civilizador individual a<br />
que todos os jovens, como resultado de um processo civilizador social<br />
operante durante muitos séculos, são automaticamente submetidos desde a<br />
mais tenra infância, em maior ou menor grau e com maior ou menor sucesso<br />
(Elias, 1994b).<br />
Tal compreensão está relacionada com a concepção inédita de sociedade,<br />
construída teoricamente por esse sociólogo alemão. Para Elias (1994a), os seres<br />
humanos individuais ligam-se numa pluralidade, configurando algo novo: a sociedade.<br />
A indissociabilidade de ambos e, ao mesmo tempo, a singularidade de cada um, é o que<br />
desafia a nossa compreensão. Ambos só podem ser entendidos se investigados como<br />
entidades em mutação e evolução. As atitudes humanas, conforme o autor, são<br />
desenvolvidas na interação social, que inclui a família e a escola, entre outros espaços<br />
educativos, como agências civilizadoras, corresponsáveis nos processos de<br />
socialização.<br />
A família, as mídias, a comunidade e suas organizações, cumprem igualmente<br />
esse papel social, incidindo sobre a socialização do indivíduo e construindo redes de<br />
sociabilidade. Igualmente estabelecem relações com a escola que incluem hábitos<br />
sociais construídos, saberes e fazeres que incidem nos processos de escolarização de<br />
seus membros, por isso é fundamental compreender a escola como um observatório da<br />
comunidade.
A seguir trataremos das possibilidades educacionais constituídas a partir da<br />
compreensão da escola como espaço sociocultural, observatório da comunidade, capaz<br />
de criar movimentos para além dos seus muros, incorporando as múltiplas histórias e<br />
criando oportunidades que possam tensionar a sociedade desigual em que se insere.<br />
3 A escola como espaço sociocultural e observatório da comunidade<br />
A escola vive um processo de crise de sua função social na sociedade brasileira.<br />
Vários projetos e imaginários convivem num mesmo espaço e cotidiano, especialmente<br />
no que se refere a sua tarefa em relação à formação de seus cidadãos. Vivemos ainda o<br />
paradoxo de uma instituição que abre suas portas a um contingente populacional jamais<br />
visto, mas convive com a precariedade material e pedagógica em muitos casos. Tudo<br />
isso implica a necessidade de desacomodação dos mais variados segmentos escolares,<br />
no sentido de reconhecer a diversidade, bem como as possibilidades de convivência e de<br />
relações interculturais organizadas na valorização das trocas públicas.<br />
Com a entrada de um contingente populacional historicamente alijado das<br />
instituições escolares de nosso país, novas práticas culturais consolidam-se no espaço<br />
escolar. As tendências e perspectivas da abordagem dos temas da diversidade cultural<br />
num projeto de nação mais plural e igualitária estão na pauta de movimentos sociais, de<br />
políticas públicas e também de práticas cotidianas. Todavia, vivemos ainda o paradoxo<br />
entre discursos legais, sociais e pedagógicos, relativamente a práticas possíveis no<br />
cotidiano escolar. De um lado, os movimentos sociais demandam atenção às não tão<br />
novas questões sociais que envolvem etnias, gênero, sexualidade, ambiente natural,<br />
entre outros, e que ainda não são devidamente consideradas no cotidiano escolar. De<br />
outro lado, especialmente nos últimos anos, as políticas estatais têm procurado<br />
regulamentar e definir atenção sobre esses temas. Mais complexa é a tradução dessas<br />
demandas por reconhecimento social e educacional nas práticas educacionais e nos<br />
ambientes cotidianos das escolas, seja a escola básica, seja a universidade. Porém, um<br />
grande desafio é ampliar a afirmação de caráter público da educação e, ao mesmo<br />
tempo, cumprir sua função social incorporando as questões problematizadas a partir da<br />
desigualdade e da diversidade. O foco deixa de ser o privilégio dos títulos escolares e<br />
passa a ser o trabalho com os conhecimentos formais contextualizados, exercitando uma<br />
formação de base necessária para o indivíduo enfrentar os desafios da sociedade,
paralelamente ao desenvolvimento de sua capacidade crítica. Entre os desafios a serem<br />
enfrentados estão todos aqueles relativos à temática da diversidade cultural, expressos<br />
na forma de preconceitos e discriminações variadas.<br />
O fenômeno do acesso da maioria dos jovens à escola é recente no Brasil e vem<br />
igualmente acompanhado pelas dificuldades de permanência e rendimento escolar. Hoje<br />
temos o acesso consolidado, mas as experiências da evasão, do analfabetismo funcional<br />
e da baixa qualidade da educação brasileira 5 permanecem instigando nossas análises. 6<br />
Na atualidade, é um fato o acesso de crianças e jovens, marginalizados<br />
historicamente por sua condição social, à escola pública. A escola, nessa situação, tornase<br />
um espaço de sociabilidades novas, tornando-se referência para trocas comunitárias<br />
que evidenciam uma apropriação singular dessa instituição centenária. Inspirados em<br />
Dayrell (2001), caracterizamos essas crianças e jovens como atores sociais de formas<br />
frágeis e insuficientes de inclusão.<br />
Para entender a situação desses novos atores na escola, precisamos considerar<br />
que eles têm pouca perspectiva social, com dificuldades de adaptação na escola,<br />
limitados em suas formas de lazer, de participação no mercado de consumo e de<br />
possibilidades de vivenciar sua própria condição juvenil. Diante disso, já não usamos<br />
mais o conceito de exclusão, mas sim o de inclusão precária, 7 implementada no modelo<br />
de desenvolvimento presente na sociedade brasileira. Esses jovens, muitas vezes,<br />
formam uma espécie de exército de reserva, 8 aguardando vaga nas atividades<br />
relacionadas com o comércio ilegal de drogas. Imersos nessa realidade social, por outro<br />
lado, constroem-se como atores sociais que possuem motivações para a vida e<br />
mobilizam-se em torno de seus grupos, de suas músicas, de seus encontros no pátio da<br />
5 Algumas dessas análises estão presentes no relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre<br />
Educação para o Século XXI (Delors, 1998).<br />
6 A situação pode ser visualizada, na atualidade, para além da ampliação da escolarização, em dados<br />
como os expostos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), indicativos das possíveis<br />
causas da redução das matrículas no ensino médio regular, ocorrida em nível nacional a partir de 2005. Os<br />
dados demonstram que há uma diminuição do número de concluintes do ensino fundamental, assim como<br />
uma redução da distorção idade-série no ensino médio; há, além disso, um aumento das matrículas no<br />
ensino médio, na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Os dados encontram-se disponíveis<br />
em Corbucci (2009).<br />
7 Conceito já citado a partir de José de Sousa Martins. Para o autor, “[...] as políticas econômicas atuais,<br />
no Brasil e em outros países, que seguem o que está sendo chamado de modelo neoliberal, implicam a<br />
proposital inclusão precária e instável. Não são, propriamente, políticas de exclusão. São políticas de<br />
inclusão das pessoas nos processos econômicos, na produção e na circulação de bens e serviços,<br />
estritamente em termos daquilo que é racionalmente conveniente e necessário a mais eficiente (e<br />
barata) reprodução do capital” (Martins, 1997, p. 20).<br />
8 Expressão originalmente marxista e, na atribuição aqui recebida, retirada do artigo de Maria de Nazareth<br />
Agra Hassen (2003).
escola, apontando para novas formas de sociabilidades, para as quais devemos estar<br />
cada vez mais atentos como investigadores e como educadores.<br />
A escola tem uma função tradicionalmente socializadora vinculada ao objetivo<br />
de difusão dos conhecimentos sistematizados pela humanidade. Essa socialização<br />
tradicional pressupõe o ato de adaptação e varia a partir das práticas sociais. A escola é<br />
também lugar de sociabilidades, entendidas como processos relativos às interações<br />
grupais que se estabelecem por opção individual e que tem a ludicidade como aspecto<br />
importante. Assim, por exemplo, nos pátios escolares, ou seja, dentro do espaço<br />
institucional, mas fora do ambiente em que se produz sua função prioritária, a sala de<br />
aula, alguns jovens podem construir sociabilidades que subvertem a lógica escolar. Para<br />
eles, tal processo vivido nesses espaços pode ser prioritário na sua relação com a escola.<br />
Se, na perspectiva institucional, os processos de socialização têm presença<br />
marcante ao orientar o indivíduo para a vida social, uma vez que entendemos necessário<br />
repensar a função social da escola, é fundamental visualizar outras formas de trocas<br />
culturais e sociabilidades no seu interior. Isso propicia que vislumbremos novas<br />
possibilidades para a função social da escola. É nessa brecha que se encontram as<br />
potencialidades para viver a diversidade e tensionar a desigualdade! Para tanto, é<br />
necessária a conexão entre as ações da escola e os movimentos comunitários e culturais<br />
de seu entorno, sejam eles compostos por grupos organizados ou não.<br />
<strong>Final</strong>mente defendemos a escola como lócus de investigação e ação junto às<br />
questões da diversidade, no seu espaço socioinstitucional e no seu entorno, capaz de<br />
tornar-se um observatório ativo da comunidade da qual faz parte. Dessa forma,<br />
focalizamos movimentos mais amplos que buscam transformar as maneiras de ser e de<br />
fazer da instituição escolar, criando ações que tentam conectá-la às redes sociais<br />
caracterizadas pela pluralidade e diversidade das experiências cotidianas, capazes de<br />
contribuir na superação dos preconceitos e discriminações ainda presentes em nosso<br />
país. Obviamente, não é somente responsabilidade da escola a construção de ações<br />
educativas nessa perspectiva, mas reconhecidamente sua participação é fundamental.<br />
Qual o papel do professor diante dessa proposição? Para Cury,<br />
Nisso o múnus do professor é insubstituível, no sentido de estar preparado<br />
para enfrentar a questão da alteridade na diferença. Também não se pode<br />
deixar de apontar que a importância da educação escolar ainda não conseguiu<br />
chegar a ponto de mobilizar agressivamente a sociedade civil em prol de sua<br />
dignidade e valor. É preciso que essa bandeira chegue à população e que ela<br />
possa injetar novo ânimo aos educadores identificados com a cidadania e<br />
com os direitos humanos e possa cobrar dos governos o devido empenho para
com um direito que deve conjugar a igualdade jurídica com a igualdade<br />
substantiva (Cury, 2005, p. 29-30).<br />
O professor que entende que pesquisa e docência são indissociáveis facilmente<br />
aderirá à ideia da escola como observatório da comunidade, a fim de conhecer e<br />
problematizar relações sociais marcadas pela desigualdade e pela diversidade.<br />
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