08.01.2016 Views

Ilustração

VilaCultural_141

VilaCultural_141

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

possível. Mas a questão que às<br />

vezes se coloca é no que consiste<br />

essa fidelidade. Por vezes, isso<br />

talvez leve a cometer pequenas<br />

infidelidades à literalidade para<br />

poder ser fiel ao espírito geral do<br />

texto”, diz o tradutor Irineu Franco<br />

Perpétuo, que também traduziu<br />

contos clássicos russos.<br />

“A maior dificuldade que enfrentamos<br />

ao traduzir uma obra de<br />

ficção reside na sintaxe das falas<br />

das personagens, pois essa sintaxe<br />

deriva do seu grau de escolaridade<br />

e cultura, de sua pertença<br />

a um universo sociocultural e também<br />

do equilíbrio ou desequilíbrio<br />

de seu sistema nervoso central,<br />

espelho imediato de sua linguagem.<br />

Toda obra objeto de tradução<br />

apresenta dificuldades peculiares<br />

às modalidades de discurso que<br />

a enfeixam. Nesse Clássicos do<br />

conto russo, há três obras traduzidas<br />

por mim: Diário de um louco<br />

e O nariz de Gógol, e O grande<br />

inquisidor, capítulo do romance de<br />

Dostoiévski Os irmãos Karamázov.<br />

Cada uma dessas obras tem um<br />

tipo de linguagem característica<br />

do tipo de personagem objeto da<br />

narrativa. Contudo, limito-me a um<br />

breve comentário do Diário de um<br />

louco de Gógol. O louco, personagem<br />

central e narrador dessa<br />

obra usa uma linguagem sinuosa,<br />

uma sintaxe descontínua (típica<br />

de um louco!) e um ritmo também<br />

descontínuo, que traduz o estado<br />

de seu sistema nervoso central no<br />

qual os tempos de nossa existência<br />

se sobrepõem, perdem sua<br />

continuidade, março se mistura<br />

com outubro, formando ‘martubro’<br />

com oitenta e seis dias, abril tem<br />

a data 43 etc. Essa circunstância<br />

impõe ao tradutor o grande desafio<br />

de recriar esse ritmo como<br />

representação do modo de ser da<br />

personagem, de sua maneira de<br />

ver e apresentar os 'fatos' na descontinuidade<br />

do funcionamento de<br />

seu sistema nervoso. A estratégia<br />

central da tradução é recriar os<br />

sentidos que enfeixam uma obra<br />

no contexto histórico, cultural, social,<br />

psicológico etc. em que agem<br />

as personagens, plasmando-os<br />

numa linguagem consentânea com<br />

o espírito da obra e das personagens<br />

que a povoam e permitindo<br />

que seus leitores sintam o espírito<br />

dessa obra sem sentirem que estão<br />

lendo tradução”, diz o tradutor<br />

Paulo Bezerra, outro integrante<br />

da equipe que traduziu o livro da<br />

Editora 34.<br />

A palavra tradução<br />

supõe uma<br />

‘transposição<br />

mecânica’ que<br />

não é real.<br />

O que existem<br />

são grandes<br />

transposições – e<br />

outras nem tanto.<br />

Jacó Guinsburg<br />

“É claro que para o trabalho de<br />

tradução literária de textos clássicos<br />

da prosa russa (como é o caso<br />

das pequenas obras-primas da<br />

literatura russa – e mesmo, eu diria,<br />

da literatura mundial), a responsabilidade<br />

do tradutor é imensa. O<br />

tradutor deve sempre se lembrar<br />

que a tradução é uma espécie<br />

de modalidade da crítica literária<br />

e, portanto, quando traduzimos<br />

textos de escritores como Gógol,<br />

Dostoiévski, Tchékhov, Bulgákov, e<br />

tantos outros gigantes da literatura<br />

russa, estamos incidindo uma nova<br />

luz para a sua leitura no presente,<br />

dando-lhes uma nova vida, mas,<br />

ao mesmo tempo, sem desprezarmos<br />

a sua vida no passado<br />

literário, do qual fazem parte. A<br />

tradução literária é uma leitura “ao<br />

vivo” do autor e de seu passado<br />

literário. Neste sentido, os dilemas<br />

da tradução são muitos, mas um<br />

desafio sempre muito estimulante”,<br />

afirma a professora Arlete quando<br />

perguntada especificamente sobre<br />

os dilemas no trabalho recente.<br />

Diante da mesma questão, o<br />

tradutor Paulo Bezerra diz o seguinte:<br />

“A característica principal<br />

de um clássico é sua capacidade<br />

de transcender seu espaço e seu<br />

tempo, deixando-se ler em épocas<br />

pósteras à luz de novas conquistas<br />

da cultura, novas concepções filosóficas,<br />

estéticas, linguísticas, de<br />

uma nova psicologia da recepção.<br />

O tradutor é um homem do seu<br />

tempo, formado na linguagem do<br />

seu tempo e por ela contagiado.<br />

Mas, quando traduz diretamente<br />

do original, é um mediador entre<br />

seus leitores e o autor, entre a época<br />

do autor e a época da recepção<br />

de sua tradução. Se a época do<br />

autor está distante, o tradutor deve<br />

usar de um rigor: não pode arcaizar<br />

muito a linguagem sob pena<br />

de obrigar o leitor a frequentes<br />

consultas ao dicionário– o que<br />

atrapalharia a leitura e a tornaria<br />

enfadonha –, mas tampouco pode<br />

modernizar demais a linguagem a<br />

ponto de desfigurar o contexto da<br />

obra. Ele tem de se pautar pelo<br />

velho e bom adágio: nem tanto ao<br />

mar, nem tanto à terra. O cuidado<br />

maior do tradutor é atingir o máximo<br />

de fidelidade ao espírito da<br />

obra. Nesse sentido, ele enfrenta<br />

vários dilemas, entre eles a tradução<br />

de provérbios, expressões<br />

idiomáticas etc. Cito um exemplo.<br />

Em Diário de um louco, o narrador<br />

Popríschin caminha pela rua,<br />

depara-se com duas cadelinhas<br />

conversando, uma dizendo para<br />

a outra que lhe escrevera, mas<br />

não recebera resposta, ao que<br />

ele exclama literalmente: “Que eu<br />

fique sem todos os meus vencimentos,<br />

mas nunca ouvi dizer que<br />

cachorro escrevesse”. Trata-se de<br />

mera expressão interjetiva, que<br />

assim traduzi para o português:<br />

“Macacos me mordam! Nunca<br />

na vida ouvi dizer que cachorro<br />

escrevesse”. Se eu optasse<br />

pela tradução literal, criaria um<br />

paradoxo: o autor teria pensado<br />

uma coisa, eu teria traduzido outra<br />

e o leitor não entenderia nada.<br />

Optando pelo espírito do contexto,<br />

resolvi o dilema da tradução,<br />

deixando-a compreensível para o<br />

leitor brasileiro.”<br />

18

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!