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d aniel
gruber
a
Floresta
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© 2021 Daniel Gruber
Todos os direitos reservados
Capa e diagramação
Daniel Gruber
Preparação
Danilo de Albuquerque
PROIBIDA A REPRODUÇÃO
Nenhum trecho desta obra poderá ser reproduzido,
transcrito, copiado ou transmitido por meios eletrônicos
ou gravações, assim como traduzido, sem
a permissão expressa do autor, de acordo com a lei
vigente Nº 9.610/98.
ESCUTE A PLAYLIST DO LIVRO:
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a
Floresta
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“Ninguém consegue nos enganar
melhor do que nós mesmos.”
Johann Wolfgang von Goethe
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glossário
Brasileiros era como os imigrantes chamavam
quem não tinha ascendência germânica.
Fachwerk ou “enxaimel” é a técnica de construção
típica do norte europeu que consiste
em paredes caiadas sobre hastes de madeira
encaixadas em posições horizontais, verticais
e diagonais. Arquitetura trazida pelos imigrantes
ao sul do Brasil no século 19.
Kerb é uma quermesse de origem alemã. Geralmente
realizadas na inauguração de uma
igreja, duravam três dias. Mais tarde passou
a ser realizada anualmente, como forma de
integração das comunidades.
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No dia do seu aniversário, enquanto ela dormia e o sol se levantava
no horizonte, ele invadiu seu quarto e a levou.
Ela sonhava com um castelo de torres altas e jardins floridos
quando ele apareceu diante da porta, feito uma sombra negra,
tapou sua boca com a mão grossa e encardida, arrancou-a
da cama com um puxão e a imobilizou em seus braços. Ela tentou
lutar, mas ele a arrastou pela sala — onde o pai, a madrasta
e o irmão pequeno permaneciam sentados, calados e de olhos
baixos — e gritou ao ser colocada no lombo do cavalo, mas ninguém
ouviu ou pareceu se importar.
Cavalgaram por fazendas e estradas desertas, já era um
dia pleno quando chegaram a uma casinha no meio do mato
de paredes brancas e revestidas de hera. Ele a jogou num quarto
pequeno e sufocante, de janelas pregadas com tábuas cheias de
musgo. Uma jarra de água, uma caneca e um prato de comida a
esperavam do lado da cama. Assim, por longas horas ela ficou
ali sozinha, mergulhada na escuridão.
Nenhum bravo cavaleiro viria resgatá-la. Aquele homem
era seu marido.
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2
Anna era nome de moça boa, moça direita. Só percebeu isso
depois de ter uma visão em que seu pai era esfaqueado.
Seu casamento foi num domingo de sol, no final de abril.
Ela observou as mulheres trazendo mesas grandes da congregação
e as dispondo no pátio, cobrindo-as com charque, linguiças
e cucas açucaradas. Penduraram varais de fitas coloridas e
arranjos floridos em postes de madeira. Os homens trouxeram
carnes de caça para assar — veados, javalis e tatus — como se
uma dádiva estivesse se realizando ali.
Rapazes de ternos escuros tocavam gaitas e rabecas, e moças
de cabelo trançado e vestidos levemente coloridos dançavam
marchinhas alemãs. Os mais velhos formavam um círculo ao
seu redor, como faunos em volta de ninfas indomáveis, batendo
palmas e dando tapinhas em seus quadris, muito sorridentes,
pois há anos ninguém mais fazia festas naquele lugar.
Anna ponderou sobre suas opções. Fugir pelo mato e viver
como um animal, se alimentando de ratos no banhado, ou
acatar a decisão do pai e ter uma vida medíocre. Ela poderia ter
tido um futuro mais ensolarado, mas os desmaios e crises de
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sonambulismo na infância a confinaram em seu próprio mundo
de sombras. Parecia ser o mais conveniente a todos. Pelo menos
para o pai, o pastor Franz Schutz. Pois os pais sempre sabem
o que é melhor para os filhos. Deveriam. Mesmo que seja entregá-la
ao herdeiro de um rico e falecido fazendeiro da região.
Mesmo que houvesse um dote polpudo nesse acordo.
A boa filha cumprindo seu dever, ovelha humilhada. Não,
esse arremedo de vida não lhe serviria jamais.
Entocada no quarto, Anna se ajeitou com o vestido negro
que Catarina, sua madrasta, lhe emprestara de seu próprio casamento
(o primeiro e o segundo). Era tradição casar-se de preto,
o que soou bem apropriado, já que a cerimônia parecia mais um
funeral. Para uma moça, pelo menos, o casamento era a morte
de algo importante.
Deixou que a madrasta refizesse três vezes a trança em seu
cabelo castanho, volumoso e anelado, cortado à altura do queixo
depois que as pontas pegaram fogo em um acidente doméstico.
Contou até três em silêncio cada vez que Catarina insistiu em
dizer que eles estariam crescidos no verão.
Anna os prendeu com o alfinete de ferro longo e pontudo,
que muitas vezes imaginou atravessando sua garganta, e Catarina
pôs uma grinalda de margaridas sobre sua cabeça, do mesmo
jeito que faria a uma linda boneca de pano. A madrasta empenhava-se
em disfarçar a rigidez contida em cada um dos seus
gestos, mas àquela altura ninguém podia deixar que um pensamento
ruim lhes assombrasse.
No fundo, Anna era igual a qualquer moça de dezoito anos
naquela terra inculta, dura e pobre, à mercê de um pouco de
conforto e alegria. Mesmo que preferisse a companhia de livros
a de pessoas, aquele dia chegaria para ela também, o dia em que
a terra árida terminaria por dobrá-la. Só quando olhava para as
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crianças dançando, suando e gargalhando ao redor do gramado
é que se convencia de que a vida podia ser mais livre do que
apenas sobreviver a um dia de cada vez.
Não se reconheceu no espelho, enfiada naquele vestido
apertado e pavoneante. Preferia as roupas soltas e leves, sem o
medo de sujá-las. Preferia os pés descalços, o cabelo solto. Suas
olheiras se destacavam mais fundas e arroxeadas. Sua cicatriz na
pálpebra, mais evidente e brutal. O que enxergava ali, refletido,
era apenas um pálido fantasma de pé sobre a própria sepultura.
No pátio, seu pai espalhava sorrisos e discursos. Explicava
suas ideias grandiosas ao único homem que lhe concedia atenção,
que Anna gravou na memória por lhe causar certo incômodo,
todo vestido em couro rústico.
Uma moça se aproximou dele, enroscando-se nos seus
braços, provavelmente sua filha. Foi então que Anna a notou
pela primeira vez, a moça mais loura que já andara por aquelas
terras. Pequena e de uma beleza estranha: a pele leitosa, o rosto
afogueado, os lábios como um coração sangrento. Uma trança
dourada descendo pelas costas, atraindo o olhar para o corpo
esguio, o que faria qualquer homem cair no pecado da luxúria.
A moça rondou a sombra do pai, olhando para a casa e alisando
o vestido muito asseado, porém curto nas pernas, deixando
à mostra suas botas masculinas. Parecia a roupa de uma sereia,
se sereias usassem roupas. Anna reparou nos seus adornos,
cuidadosamente deixados à mostra: uma gargantilha de renda
preta em volta do pescoço, um bracelete prateado dançando em
seu pulso minúsculo. Ela era diferente de todas as pessoas ali, e
as atenções se voltavam a ela como uma força de gravidade. Parecia
levitar sobre as cabeças prosaicas daquela gente como uma
imperatriz em cima de uma liteira.
O belo retrato de família que todos esperavam encontrar já
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fora abalado pela sua presença. Pais puxavam suas crianças para
perto quando ela passava, a olhavam com graves julgamentos.
Ao perceber que Anna também a espiava da janela, a moça
se virou e desapareceu.
— Está na hora — a madrasta veio dizer na porta do quarto.
— Faça o favor de não chegar atrasada, só para variar.
— Já vou — Anna respondeu com voz calma e firme.
Ao sair, percebeu que suas mãos tremiam. Tapou o rosto
por causa da luz. Viu o pai e o noivo na frente do altar, ensanguentados,
as roupas retalhadas em muitos cortes e perfurações.
Fechou os olhos e abriu novamente para afastar aquela visão.
Depois de vencer o clarão, viu os convidados reunidos em
duas fileiras, formando um corredor para que ela passasse. Começou
a contar. Demorou exatamente um minuto e treze segundos
para ter coragem de dar o primeiro passo. Alguém passou
correndo com uma jarra de água e respingou nela, encharcando
as costas de seu vestido. Como poderia ficar pior?
Depois, foi impulsionada pelas mãos de alguém. Lembrou-
-se da voz cantada e aguda do pai: você precisa mesmo de um
empurrão, não é, Anna?
Na ponta do corredor, aquele que seria seu marido a aguardava
num terno marrom-escuro, um chapéu largo na cabeça e
uma flor vermelha na lapela. Atrás dele, o pai de Anna folheava
a Bíblia, procurando as palavras certas para aquele momento.
Franz Schutz falaria em nome de Deus para declará-la mulher
daquele homem.
Diante do altar improvisado, seu irmãozinho Jacob trouxe
as alianças. Johannes, o noivo, tomou sua mão e enfiou o anel
em seu dedo. Seu pai mastigou alguns salmos, fazendo uma voz
grandiloquente. Durante intermináveis minutos ele falou e falou,
até que Anna compreendeu que estava casada.
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Estava feito e era para sempre, do mesmo jeito que se apunhala
um coração desprevenido.
Johannes se aproximou para beijá-la, mas Anna desviou o
rosto por reflexo. Os olhos dele ferveram, suas mãos a agarraram
pela cintura e ele enfiou sua língua dentro da boca dela, demarcando
sua conquista. Os convidados aplaudiram e assoviaram.
Foi mais rápido que ela: Anna o empurrou e deu um tapa
em seu rosto.
As vozes cessaram e Johannes permaneceu com a cabeça
inclinada, como aquela reação o tivesse paralisado ou entortado
seu rosto para sempre. Anna se deu conta só um segundo depois
de ter feito, tarde demais para se arrepender. Manteve-se firme
e se esforçou para não demonstrar medo ou arrependimento.
Johannes endireitou o rosto, ajeitou o cabelo com frieza e
sorriu sem olhar para os lados, o que fez Anna estremecer. Ela
jamais tinha visto aquele homem sorrir. O rosto dele se avermelhava,
não só do lado que ela estapeou, mas dos dois. Era um
homem orgulhoso e acostumado a ter o que queria, e homens
assim não sabiam lidar com os olhares de uma plateia.
O pai de Anna se apressou em dar fim à cerimônia e todos
voltaram a tagarelar sobre seus assuntos. Aquela não seria a primeira
nem a última vez que algo escandaloso aconteceria em
um casamento. Mesmo assim, Anna desejou estar morta dali a
algumas horas. Não. Ela desejou que um grande incêndio apagasse
da História aquele lugar e aquelas pessoas.
O baile se iniciou com a Polonaise Aufzug e seguiu com valsas e
polcas. A comida foi servida e logo todos tinham se esquecido
dos problemas. Anna olhou para o outro lado da mesa, atraída
pelas risadas, e enxergou a loura magra na ponta, cochichan-
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do com duas meninas da comunidade, germânicas como todo
mundo, sorridentes e vivazes, e lhes fazia rir com comentários
ao pé do ouvido. Assim que Anna a avistou, sua atenção se prendeu
nela e não soltou mais. Desejou saber sobre o que falavam.
Teve uma breve vontade de rir junto, mas isso logo se dissipou
na enorme tristeza que engolia aquilo tudo.
A loura tirou de dentro do decote um frasquinho que, sob
o olhar atento das outras duas, despejou dentro de uma taça de
vinho. Uma das moças, enfiada num vestido azul vulgar, mexeu
o líquido com o cabo de uma colher e saiu com a taça nas mãos.
Caminhou até o outro lado do jardim e entregou a um rapaz
que conversava num grupinho. Ele e a moça de azul trocaram
sorrisos e depois ela voltou para a mesa.
Aquilo parecia uma simples travessura, alguma simpatia
que Anna teria feito na infância, se tivesse amigas. Mas talvez
aquele frasco não contivesse nada infantil. Então aconteceu. A
loura se virou e percebeu que Anna as observava. Encarou-a por
alguns segundos e sorriu. O estômago de Anna se revirou num
movimento involuntário e violento. Sentiu-se impelida a virar o
rosto para as nuvens escuras que se fechavam no céu e manteve
os olhos ali por um longo tempo.
Mais tarde, todos se reuniram na frente da casa, onde um
fotógrafo da capital retrataria o momento. Anna esperou de pé
ao lado do marido até que todos se amontoassem em volta deles,
e nenhum dos dois sorriu. Quando o fotógrafo acendeu a pólvora
do flash, um zunido tomou conta dos seus ouvidos, sua visão
escureceu e ela caiu sentada.
A madrasta veio lhe acudir e o pai lhe alcançou um copo
d’água. Então a chuva desabou e os convidados correram para
recolher as mesas. Anna se deitou no quarto e não saiu mais de
lá. Não disse mais nenhuma palavra e não comeu mais nenhum
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pedaço de carne naquele dia, preparando-se para o inferno que
acabara de adentrar.
Quando a noite chegou, seu marido entrou no quarto sem olhar
nos seus olhos. O quarto era dele e agora Anna era sua também.
Ela se sentou na cama com a camisola que ele lhe dera para
vestir. Johannes fechou a porta e desabotoou a camisa, seu cheiro
de terra e suor impregnando o cômodo. Fez com que Anna
se deitasse e subiu a barra de sua camisola até os joelhos. Suas
mãos enormes e peludas separaram as pernas dela. Seus bigodes
negros, fartos e fedorentos roçaram em seu pescoço.
Ele subiu em cima de Anna e seu corpo pesou sobre a barriga
dela. Anna sabia que não podia gritar. Sabia que, se gritasse,
ninguém viria lhe ajudar. Apenas virou o rosto para a parede,
para não encarar aqueles olhos assustadores. Segurou o grito
quando ele entrou. Deixou as lágrimas rolarem no travesseiro
até que elas não rolassem mais.
A luz do lampião projetou sombras disformes na parede,
como uma dança macabra no interior de uma primitiva caverna.
Anna sentiu como se houvesse outras pessoas no quarto,
mas não havia ninguém. Um dia, talvez, ela tomasse as rédeas
de sua própria vida, mas não seria naquela noite.
Naquela noite ela estava sozinha, e foi como sempre estivera
até então.
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Pela manhã, enquanto esticava os lençóis sujos no varal do pátio,
Anna contava apenas com a companhia do vento para cumprir
sua primeira tarefa, a primeira ordem do marido. Era tradição
o homem exibir a roupa de cama manchada pela mulher com
quem se casara, para que a vizinhança atestasse sua pureza.
Aquilo foi suficiente para deixar seu peito doendo. Teve
que se apoiar no fio do varal para não desabar. A pior parte era
pensar que sua vida nunca mais seria a mesma, que algo se quebrara
definitivamente dentro dela.
Então, quase hipnotizada pelo som dos tecidos se debatendo,
ela enxergou a moça loura do casamento. Vinha caminhando
pela estrada de chão crepitante, a observando com uma
atenção curiosa. Algum tipo de cumplicidade se passara entre
elas naquele momento, mas o coração de Anna continuou sufocado.
Havia o peso de uma vigília ali.
Por algum motivo, se lembrou do pesadelo da noite, em
que um estranho felino perseguia um cervo através do relvado.
Aquela moça era sua vizinha mais próxima, mesmo que as
casas ficassem a muitos metros de distância. O pai dela era um
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tipo de açougueiro, que caçava animais silvestres para vender
nas redondezas, e o marido de Anna tinha negócios com ele.
Pensar nisso lhe causou arrepios. Era tão bruto, tão feroz, que
ela mal conseguia tirar da cabeça. Tão envolvente e apavorante
quanto uma serpente engolindo um rato.
Um dos cachorros veio até a frente do pátio e começou a
rosnar. Nervosa, Anna deixou o cesto de roupa cair no chão.
Quase tropeçou nas galinhas espalhadas pelo pátio ao correr de
volta para dentro.
Demorava a clarear e escurecia mais cedo naquele vale coberto
de sombras. O dia era curto e havia muito o que fazer. Anna listava
as tarefas ao seu gato enquanto trabalhava, e logo se pegou
imaginando novas histórias com ogros e bruxas para espantar
sua solidão.
Trouxeram o piano de sua antiga casa e o instalaram na
sala. Seu pai achou que isso a ajudaria a se entreter, já que o tempo
ali também corria mais devagar. Anna sentiu apenas o peso
das sólidas madeiras recair sobre seus ombros e lamentou que o
pai não tivesse lhe enviado livros, uma das poucas coisas que lhe
despertava paixão.
A casa nova era escura, apesar de espaçosa. Talvez tivesse
sido luxuosa algum dia, mas agora cheirava a poeira e madeira
velha, como tudo naquele lugar. O chão e as paredes rangiam a
cada momento impróprio. Os poucos móveis deixavam a respiração
mais pesada, tamanha a desolação. Principalmente quando
ela olhava pela janela e enxergava o morro coberto de mata
escura, tão rente à casa, elevando-se no meio de uma grande
extensão de paisagens áridas. Uma muralha mantendo a todos
confinados.
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Logo compreendeu que ali os homens eram covardes,
enquanto as mulheres, em sua maioria, obedientes. As pessoas
racionavam tudo, inclusive palavras, falando apenas quando
não havia alternativa. Comunicavam-se com olhares, gestos de
cabeça e pela forma como entortavam a boca sem abri-la. Era
desolador presenciar aquilo todos os dias, a sensação de estar
gritando dentro de um porão fechado. Um mundo de roupas
sóbrias, vegetação sem vida e construções austeras.
Muitas vezes, enquanto relia seu romance preferido de Goethe,
Anna sonhava em se casar com um jovem apaixonado que
lhe desse dois lindos filhos e a levasse para viver em uma casinha
simples na cidade, onde escutasse os cascos dos cavalos nas ruas
de pedra. Nada poderia estar mais distante agora.
Então usava o tempo livre para escrever, seu único suspiro,
já que não tinha quase nenhuma leitura à disposição. Mas também
podia pressentir o que seu pai lhe diria: você vive no mundo
da imaginação, já está na hora de amadurecer. Escrever era a
única maneira de usar as palavras naquela imensidão silenciosa.
Depois do almoço ela se sentou à escrivaninha, ajeitou um
maço de papeis e afagou as orelhas do gato, Werther.
— Inteligente é você, meu amigo, que passa o dia dormindo
em volta do fogo. Há mais liberdade dentro de nossas cabeças
do que num campo arado por homens.
Werther ergueu a cauda e ronronou diante do tinteiro.
Anna terminava de escrever o capítulo final de um romance,
o qual chamaria Der Wald. A Floresta. Era a história de dois
jovens apaixonados cujos pais não consentiam que se casassem,
e que por isso decidiram fugir através de uma floresta amaldiçoada,
onde enfrentariam perigos inimagináveis para ficarem
juntos. Os dois morrem no final, obviamente, consumando para
sempre o seu amor.
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Fez anotações no seu diário:
Quando o livro estiver pronto, o enviarei a um jornal da capital
da província que publica folhetins. Eles o divulgarão, sob o
pseudônimo de Wolfgang Schiller, uma homenagem aos meus escritores
preferidos. Será bem recebido pelos leitores cultos, desde
que não saibam que fora escrito por uma moça.
Sim, era bom sonhar. Viver outra vida por breves minutos.
Aliviar-se da realidade. Mas não era prudente.
Você sabe disso, Anna, não é prudente.
Ao entardecer, o marido chegou em casa com uma ovelha morta
sobre os ombros. Estava animado, pois vários animais foram
atacados perto do bosque e seus proprietários estavam se livrando
deles por um preço baixo.
Anna ficou admirada com aquela história.
— Atacados? Pelo quê?
Johannes a fitou com seus olhos pequenos e muito azuis.
Comprimiu todas as linhas desproporcionais do rosto, como se
fosse sorrir. Finalmente a esposa havia quebrado seu silêncio.
Ele tocou seu rosto com os dedos sujos de sangue e, quando se
deu por conta, limpou-o com a manga da camisa. Ela virou o
rosto e se afastou. Mesmo assim Johannes parecia satisfeito, talvez
pensando que Anna começaria a desabrochar, que em breve
estaria dócil como aquele animalzinho morto.
— Lembra o que eu te disse quando a vi pela primeira vez?
Sim, Anna se lembrava. Ele disse que a buscaria em sua
casa quando ela fizesse dezoito anos e a poria diante de um altar.
Também lhe disse que nenhum outro homem aceitaria se casar
com um bicho arredio feito ela, e que ela fosse grata à generosidade
dele. Johannes tinha um jeito bruto, mas era sagaz. Tinha
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aqueles olhos que, por serem bonitos, a deixavam intimidada.
Ele colocou a ovelha sobre a mesa e, com um facão, abriu
sua barriga. Tirou as vísceras e as colocou num saco, para usar
mais tarde. Esfolou o bicho até ficar só um amontoado de carne.
Limpou a testa, olhando para o teto de forma reflexiva.
— Meu pai foi encontrado morto na mata, com o sangue
extraído do corpo — murmurou. Suas palavras eram entrecortadas
pelo mugido das vacas atrás da casa. — Disseram que um
animal chupou o seu sangue. Lembrei-me disso agora, olhando
para o estado dessa mesa.
O cheiro de sangue cobriu o ar, mas Anna não ficou enjoada.
Olhou para o retrato em cima da lareira, onde posava o
falecido Friedrich Klein e seus dois filhos, Johannes e o irmão,
Mathias. Não conseguiu ter nenhum sentimento por eles.
Lembrou-se de quando era pequena e seu pai abatia animais,
e ela corria para o quarto repugnada. Durante anos tentou
não colocar aquela carne impura na boca, embora a fome
sempre sussurrasse em seus ouvidos e acabasse por vencer a
teimosia. Agora já não se perturbava mais. Havia até um fascínio
ao ver a pele se desprendendo do corpo e tingindo tudo de
vermelho.
Enquanto o marido desmembrava a ovelha com o rosto
salpicado de sangue, o corpo de Anna queria reagir a cada um
de seus gestos, alertando-a para um bote a qualquer momento.
Johannes contou sobre as feras que apareciam por aquelas
matas de vez em quando. Cachorros selvagens e até um leão-
-baio, que os nativos chamavam de suçuarana. No ano passado,
um homem foi morto por um desses bichos, e durante várias
semanas as pessoas deixaram de sair de casa.
— Você está me contando isso pois não quer que eu saia
— disse Anna.
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Ele pediu para que ela se calasse e seu rosto ficou subitamente
amarelo.
— Termine isso e depois limpe tudo. Não estou em condições
de continuar.
Secou as mãos com um pano encardido e foi fumar na varanda.
Anna sentiu seu coração diminuindo outra vez. Percebeu
o quão selvagem era o lugar em que viviam. O quão isolada e
desamparada era sua vida ali.
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