Poéticas do Improviso: a arte no horizonte do possível “Não será novidade nenhuma afirmar que no Brasil a gambiarra é uma prática endêmica”. Ricardo Rosas
Gambiólogos, com curadoria de Fred Paulino, é uma exposição surpreendente, um quase paradoxo ao assumir tamanha amplitude para tratar do precário e do improvisado. As 25 obras reunidas em torno do tema “A Gambiarra nos Tempos do Digital” oferecem um testemunho eloqüente do estoque de criatividade concentrada disponível em práticas ligadas à desmontagem de hardware, à reutilização de materiais, ao deslocamento de objetos, ao reaproveitamento de dejetos. São artistas de diferentes gerações, entre Guto Lacaz, Paulo Nenflídio, Fred Paulino, Jarbas Jácome, Fernando Rabelo e Alexandre B, em recorte que permite entender os elos entre as formas pré-digitais da gambiarra, e os desdobramentos mais recentes, em que a materialidade da sucata reprocessada sobrepõe-se às contas e cálculos algorítmicos típicos dos computadores (incertos, pequenos, públicos, defeituosos, médios, domésticos, grandes, portáteis, frágeis). Mas não se trata de uma retrospectiva, senão de uma compilação. Outro paradoxo, quase: a quantidade de obras, a diversidade dos artistas, as sutilezas de abordagem, não fazem supor a coerência dos trabalhos incluídos na mostra. Em certo sentido, a exposição montada no Cento e Quatro, em Belo Horizonte, é uma versão contemporânea do parque descrito por Rousseau, em que todas as peças se encaixam, menos o conjunto. Em Gambiólogos, o conjunto encaixa, apesar da fratura explícita e intencional das partes. Aliás, um dos aspectos importantes da exposição é como a forma de funcionamento das obras é exibida. Conexões, engrenagens, equipamentos, tudo o que normalmente fica nos bastidores, faz parte do espaço oferecido ao público. Além de obras, também estão presentes ali processos que estimulam o acesso à tecnologia, em procedimento que resulta em um estímulo à apropriação criativa de seus componentes. São obras que propõe desdobramentos para a postura de desconstrução do outro, de incorporação do externo, de subversão daquilo que não pertence. Presente em Oswald de Andrade, e o canibalismo literário da Revista de Antropofagia; na videoarte desconcertante de Éder Santos, especialmente em trabalhos como 4 maneiras de playtear a eternidade e Enciclopédia da Ignorância, em que o artista constrói dispositivos sofisticados de visualização e fragmentação de imagens usando poucos recursos; no cinema corrosivo de Kiko Goifman, com filmes que combinam o doméstico e o complexo como 33 e Filmefobia; em instalações como Spio e Mobile Crash, em Lucas Bambozzi subverte a lógica dos dispositivos hackeando seu funcionamento. Os trabalhos presentes em Gambiólogos expandem esta vertente que concilia sofisticação e precariedade por meio de doses fartas de invenção. Impossível esgotar, neste texto breve, a diversidade de abordagens existentes na exposição. Dois exemplos, que servem como amostra deste universo complexo: Gambiociclo, unidade de transmissão móvel que leva adiante a tradição de veículos urbanos nômades presentes, por exemplo, na obra de Kristof Wodiscko. O trabalho mistura componentes visíveis e invisíveis, buscando formas de transmissão que expandem o aspecto coletivo, distribuído e participativo comum nos processos de rede. E Toc: trigger de objetos cotidianos, espécie de jukebox de aparelhos dos mais diversos tipos, que ligam em desligam em lógica imprevisível. Gambiólogos, assim como os trabalhos incluídos na exposição, é construída por um conjunto maior que suas partes. Em conjunto, as obras da exposição fornecem um diagnóstico amplo de práticas marcantes na arte brasileira desde, pelo menos, o modernismo (inclusive o humor, a ironia, a síntese, a otimização de recursos e a problematização de conjunturas desfavoráveis). Além disso, os trabalhos que compõe esta taxonomia da gambiarra em tempos de digital permitem discutir uma ética da reciclagem que tornou-se central no mundo contemporâneo. Avesso do lixo: gambiologia... MarCus BasTos é diretor de trabalhos premiados como o vídeo interativo “Interface Disforme” (2006) e o curta-metragem “Radicais livre(o)s” (2007). desenvolveu trabalhos de mapeamento como “coexistências” e “2346”, com o grupo LAT-23, com quem também dirigiu o webdocumentário “Cidades Visíveis” (RUMOS Itaú Cultural, 2010). Criou, com Dudu Tsuda, composições audiovisuais como “ausências i-vii”, apresentada em eventos como Bienal do Mercosul, Mostra Live Cinema e Kino Lounge, e “fluxos”, apresentado na exposição Paço das Artes 40 anos. Foi curador de mostras como “Geografias Celulares”, exibidas na Fundação Telefônica em Buenos Aires e Lima, “instalação- -->vídeo”, criada para a TV Sesc como parte da Mostra Sesc de Artes 2010. É curador do Vivo arTe.MoV - Festival internacional de arte em Mídias Móveis. Atualmente é professor da PUCsP e do Mestrado em design da universidade anhembi-Morumbi.