ROGÉRIO DUPRAT E A TROPICÁLIA Regiane Sanches ... - iaspm-al
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<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
<strong>Regiane</strong> <strong>Sanches</strong> Gaúna<br />
FUNDARTE (Fundação das Artes de São Caetano do Sul)<br />
Professora de História da Música Européia e Brasileira<br />
rsgauna@uol.com.br<br />
Resumo: Rogério Duprat é um dos compositores mais importantes no<br />
cenário da cultura brasileira a partir da década de 1960, até os dias de hoje.<br />
Sua atuação se deu no âmbito da música erudita, popular e na criação de<br />
trilhas sonoras, princip<strong>al</strong>mente para o cinema. A trajetória artística do<br />
compositor foi marcada, fundament<strong>al</strong>mente, pela participação em dois<br />
movimentos culturais de vanguarda: Música Nova e Tropicália, que<br />
marcaram o Brasil, assim como <strong>al</strong>guns países da América Latina. Sendo<br />
assim, o ponto centr<strong>al</strong> desta comunicação é abordar e elucidar a<br />
contribuição de Duprat como, um dos principais, arranjador e orquestrador<br />
da Tropicália. Sua presença na cultura brasileira caracterizou-se por seu<br />
perfil renovador, e isso não se deve apenas ao fato de ter integrado esses<br />
movimentos culturais, mas em especi<strong>al</strong> por ter transitado em diferentes<br />
faces musicais. Além de fazer parte da primeira geração de compositores<br />
brasileiros a utilizar o computador em experiências musicais, foi um dos<br />
pioneiros na adoção do happening como expressão e na utilização de<br />
elementos da música concreta e eletrônica como possibilidade de criação.<br />
P<strong>al</strong>avras-chave: Duprat, Tropicália, arranjos.<br />
Abstract: Rogério Duprat is one of the most important composers in the<br />
Brazilian music<strong>al</strong> scene from the 60's until today. His works go from classic<strong>al</strong><br />
and popular music to the creation of soundtracks, mainly for movies. His<br />
artistic journey was determined mainly by his participation in two vanguard<br />
cultur<strong>al</strong> movements: New Music (Música Nova) and Tropicália, important in<br />
Brazil and some Latin American Countries. Therefore, discussing and<br />
clarifying Duprat´s contribution as one of the centr<strong>al</strong> arranger and composer<br />
of Tropic<strong>al</strong>ia is this Seminar's main point. His presence in the Brazilian<br />
cultur<strong>al</strong> scene was characterized by his refreshing spirit, and not only<br />
because of his participation in the art movements mentioned above, but <strong>al</strong>so<br />
for having moved through different music<strong>al</strong> aspects. Aside from being part of<br />
the first generation that used the computer in music<strong>al</strong> experiences, he was<br />
one of the first musicians to adopt the concept of the happening as a way of<br />
expression and to use elements of concrete and electronic music as a<br />
creative possibility.<br />
Key Words: Duprat, Tropicália, arrangements.
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
A Tropicália foi um movimento artístico divulgado em nível nacion<strong>al</strong> nos<br />
festivais de música popular brasileira, sobretudo, entre os anos de 1967 e 1968,<br />
através das músicas “Alegria, <strong>al</strong>egria” e “Domingo no parque” de Caetano<br />
Veloso e Gilberto Gil, respectivamente. Apesar deste movimento ter se<br />
estendido à literatura de vanguarda, à estética de filmes como Macunaíma, de<br />
Joaquim Pedro de Andrade, peças de teatro como O rei da vela, de Osw<strong>al</strong>d de<br />
Andrade, dirigida por José Celso Martinez Corrêa e às artes plásticas com os<br />
Parangolés, de Hélio Oiticica, a música popular tem sido considerada o seu<br />
maior expoente, dada a larga adesão por parte de diversos músicos, a exemplo<br />
de Tom Zé, Capinam, os integrantes do grupo Os Mutantes, Torquato Neto, G<strong>al</strong><br />
Costa e outros.<br />
O ideário estético da Semana de Arte Moderna de 22 foi uma das<br />
principais influências sofridas pelos tropic<strong>al</strong>istas. Para uma mistura de<br />
conteúdos singulares da cultura, tratada por eles como "geléia ger<strong>al</strong>", somaram<br />
aos tradicionais instrumentos elétricos os ritmos brasileiros, elementos da bossa<br />
nova, o happening, o samba, a poesia concreta, The Beatles, literatura de cordel<br />
às letras das canções, sem, contudo, deixar de lado a crítica soci<strong>al</strong> introduzida<br />
pelo humor, paródia, <strong>al</strong>egoria e o cafonismo. Segundo Favaretto, <strong>al</strong>ém da<br />
Tropicália elaborar uma nova linguagem para a canção a partir da tradição da<br />
música popular brasileira e dos elementos que a modernização fornecia, "a<br />
prática tropic<strong>al</strong>ista incorporava o caráter expressivo do momento às<br />
experiências culturais e artísticas que vinham se processando no Brasil e<br />
internacion<strong>al</strong>mente; trab<strong>al</strong>hava essas informações segundo a vivência do<br />
cosmopolitismo dos processos artísticos e com atinada sensibilidade pelas<br />
coisas do Brasil" (1987: 20).<br />
Assim como os maestros Julio Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino<br />
Hohagen, Rogério Duprat participou deste movimento como arranjador. No<br />
entanto, no início da década de 1960, antes de sua participação no<br />
Tropic<strong>al</strong>ismo, Duprat já havia atuado em diferentes campos musicais. Como<br />
arranjador, em 1962, assinou três discos: Nat<strong>al</strong> bem brasileiro (coletânea de<br />
temas nat<strong>al</strong>inos arranjados ao estilo de marcha rancho) e, no ano seguinte, os<br />
discos Dedicado a você (novos arranjos para o repertório popular da década de<br />
1960) e Clássicos da bossa nova (temas de música erudita arranjados ao estilo<br />
de bossa nova). Ainda em 1963, <strong>al</strong>ém de sua participação no movimento Música<br />
Nova, havia sido premiado com o filme A ilha, como melhor trilha sonora, e<br />
também incursionado na música para computador com a peça Klavibm II.<br />
A partir da segunda metade da década de 1960, a aproximação de Duprat<br />
com a música popular tornou-se mais acentuada. Desestimulado a compor<br />
música erudita para uma pequena elite, passou a intensificar seus trab<strong>al</strong>hos no<br />
âmbito popular: "Chega desse negócio de coisinha da música erudita enfiada só<br />
dentro do teatro, para meia dúzia de milionários e t<strong>al</strong>. A gente tem é de sair,<br />
fazer música na rua com o meios que houver. Foi aí que cheguei perto da<br />
música popular" (ShowBizz, 2000: 57).<br />
Nessa época, vislumbrou juntamente com o produtor Solano Ribeiro a<br />
possibilidade de re<strong>al</strong>ização de um projeto music<strong>al</strong> popular que se diferenciasse<br />
dos demais. Segundo C<strong>al</strong>ado, eles "pretendiam adaptar a música sertaneja ao<br />
ritmo do rock (1995: 103). No entanto, Duprat afirma que o projeto não se<br />
restringia apenas à música sertaneja, mas,"todo e qu<strong>al</strong>quer ritmo brasileiro<br />
passível de integrar-se com as guitarras", ou seja, seu objetivo era transferir o<br />
http://www.hist.puc.cl/historia/<strong>iaspm</strong>la.html 2
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
instrument<strong>al</strong> do rock para a música popular brasileira: "Seria uma 'injeção' de<br />
modernidade. A 'bronca' era que só se fazia sambas e tocados com os<br />
instrumentos acústicos brasileiros" (Entrevista, nov.,1999). O uso da guitarra<br />
não era apenas um novo recurso dos instrumentos eletrônicos ao ambiente<br />
acústico music<strong>al</strong> da música popular brasileira. Duprat acrescenta que "um novo<br />
tipo de comportamento se apresentava nos anos 60 e incluir a guitarra, à nossa<br />
música, era fazer v<strong>al</strong>er os elementos desse novo comportamento" (Idem). Para<br />
que seu projeto se re<strong>al</strong>izasse, Duprat observou diversas bandas de rock da<br />
época, no entanto, apenas uma chamou-lhe a atenção. Tratava-se do grupo<br />
O'Seis que costumava apresentar-se em <strong>al</strong>guns programas de TV e ensaiavam<br />
no fundo de um quint<strong>al</strong>, num bairro da Pompéia, em São Paulo. Apesar desse<br />
projeto não ter se concretizado, para Duprat, o grupo O'Seis era melhor do que<br />
tudo o que tinha visto: "Parecia com os The Beatles, com seu humor e seu jeito<br />
de cantar" (Vibrations, 1999: 43). Posteriormente, esse grupo tornou-se<br />
conhecido como Os Mutantes.<br />
As preocupações de Duprat acerca das renovações na música popular<br />
abriram espaço para uma aproximação com os compositores baianos,<br />
inici<strong>al</strong>mente Gilberto Gil e, posteriormente, aqueles que integrariam o que seria<br />
chamado movimento Tropic<strong>al</strong>ista.<br />
No ano de 1967, Rogério Duprat fora indicado, como arranjador, pelo<br />
maestro Julio Medaglia, ao cantor e compositor Gilberto Gil,<br />
que colaborava com a equipe de produção do festiv<strong>al</strong><br />
da TV Record - a seleção das canções para as três<br />
eliminatórias aconteceu na casa do maestro, no bairro<br />
da Lapa. Na verdade, Medaglia até já começara a<br />
escrever o arranjo orquestr<strong>al</strong> de “Domingo no Parque”,<br />
mas ao ser convocado para integrar o júri do evento,<br />
teve que interromper o trab<strong>al</strong>ho. Assim, acabou<br />
indicando Duprat, assegurando que ele tinha bagagem<br />
music<strong>al</strong> e criatividade de sobra para desempenhar o<br />
papel de George Martin, na linha beatle que Gil<br />
imaginara para sua composição. (C<strong>al</strong>ado, 1997: 123)<br />
Gilberto Gil ide<strong>al</strong>izava um arranjo para sua canção “Domingo no parque”<br />
que se assemelhasse ao estilo da banda inglesa The Beatles. C<strong>al</strong>ado diz que<br />
ele "pretendia combinar a sonoridade nordestina do quarteto com uma<br />
orquestra, porém dando à música um tratamento sonoro mais pop, exatamente<br />
como o produtor George Martin fizera nos arranjos de Sgt. Pepper`s Lonely<br />
Hearts Club. Para isso, observou, uma guitarra elétrica seria essenci<strong>al</strong> no<br />
arranjo da canção" (C<strong>al</strong>ado, 1997:122). A fim de tornar possível a idéia de Gil,<br />
Duprat o apresentou aos integrantes do grupo Os Mutantes que, de fato,<br />
participaram desse arranjo.<br />
No livro B<strong>al</strong>anço da bossa e outras bossas, Gilberto Gil tece comentários<br />
sobre o processo criativo do arranjo de “Domingo no parque” ao lado de Duprat:<br />
3 Anais do V Congresso Latinoamericano da<br />
Associação Internacion<strong>al</strong> para o Estudo da Música Popular
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
Rogério tem, em relação à música erudita, uma<br />
posição muito semelhante à que nós temos em<br />
relação à música popular. Essa posição de<br />
insatisfação ante os v<strong>al</strong>ores já impostos. Ele quer<br />
desenvolver a música erudita, ele não quer sujeitá-la a<br />
um sentido acadêmico. Eu acho que é, precisamente,<br />
por essa coincidência de propósitos, que a<br />
aproximação era inevitável. Por exemplo: quem<br />
procurar saber como foi feito o arranjo de “Domingo no<br />
parque”, fica sabendo que ele se processou nesse<br />
nível de aproximação, de programação conjunta, por<br />
nós dois. Eu mostrei a Rogerio a música e as idéias<br />
que eu já tinha e ele as enriqueceu com os dados<br />
técnicos que ele manuseia e eu não: a orquestração, o<br />
conhecimento da instrumentação. Mas a decupagem<br />
do arranjo, a determinação de que climas funcionariam<br />
em determinadas partes, que tipos de instrumento,<br />
que tipos de emoção, todas essas coisas foram<br />
planejadas juntamente por mim e pelo Rogério.<br />
Inclusive, o arranjo foi feito gradativamente. Nós nos<br />
sentamos, durante 4 ou 5 dias, em tardes<br />
consecutivas e fomos discutindo, formulamos,<br />
reformulamos e até no estúdio ainda fizemos<br />
modificações em função das sonoridades que<br />
resultavam. Foi um trab<strong>al</strong>ho re<strong>al</strong>mente feito em<br />
conjunto. (Campos, 1993: 195)<br />
Para Favaretto, “Domingo no parque” causou impacto pela complexidade<br />
construtiva do arranjo que ele e Rogério Duprat re<strong>al</strong>izaram, segundo uma<br />
concepção cinematográfica:<br />
[...] assim como a interpretação contraponteada<br />
de Gil. Aquilo que se poderia tornar apenas a narração<br />
de uma tragédia amorosa, vivida em ambiente popular,<br />
tornou-se uma féerie em que letra, música e canto<br />
compõem uma cena de movimentos variados, à<br />
imagem da festa sincrética que é o parque de<br />
diversões. O processo de construção lembra as<br />
montagens eisensteinianas; letra, música, sons,<br />
ruídos, p<strong>al</strong>avras e gritos são sincronizados,<br />
interpenetrando-se como vozes em rotação. (1979: 9)<br />
Augusto de Campos também esteve atento à riqueza de informações<br />
presente no arranjo de “Domingo no parque”, quando observou que a junção<br />
de fragmentos documentais (ruídos no parque) com o uso de instrumentos<br />
orquestrais somada ao ritmo marcadamente region<strong>al</strong>, a exemplo da capoeira,<br />
com o berimbau associado aos instrumentos elétricos e à voc<strong>al</strong>ização típica de<br />
Gil, deu origem a um arranjo bastante complexo e assin<strong>al</strong>a que,<br />
http://www.hist.puc.cl/historia/<strong>iaspm</strong>la.html 4
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
[...] aqui deve ser lembrada a contribuição do<br />
arranjador, Rogério Duprat, no caso, essenci<strong>al</strong>, e em si<br />
mesma um ma rco para a música popular brasileira.<br />
Marco de uma colaboração que muitos julgariam<br />
impossível entre um compositor de música popular e<br />
um compositor de vanguarda (embora Rogério não<br />
goste de ser chamado assim, seus conhecimentos e<br />
sua prática de <strong>al</strong>ta cultura music<strong>al</strong> contemporânea não<br />
suportam outra classificação). Esse encontro, tão bem<br />
sucedido, mostra que já não há barreiras<br />
intransponíveis entre a música popular e a erudita.<br />
(1993: 154)<br />
Fruto de uma colaboração inusitada entre um compositor popular<br />
preocupado com a reformulação da canção e um músico com formação<br />
suficiente para traduzir t<strong>al</strong> reformulação. O arranjo da canção “Domingo no<br />
parque” pode ser considerado, não apenas um marco para a música popular<br />
brasileira, como Campos sugeriu, mas um marco na carreira de Duprat a<br />
inauguração de um estilo sincrético que ele adotaria, a partir de então, na<br />
maioria de seus arranjos. Ruídos, gritos e instrumentos regionais somados a<br />
instrumentos elétricos e orquestrais compõem o ambiente sonoro de “Domingo<br />
no parque”. Esse recurso de fazer coexistir elementos aparentemente<br />
disparatados, em uma mesma canção, tornou-se uma de suas marcas<br />
estilísticas como arranjador. E <strong>al</strong>ém disso, não se pode esquecer que Duprat,<br />
como compositor de trilhas sonoras, trouxe a seu trab<strong>al</strong>ho de arranjador<br />
influências dessa experiência. É possível que Favaretto, ao relacionar o arranjo<br />
de “Domingo no parque” a concepções cinematográficas, tenha percebido tais<br />
influências.<br />
Junto com seus trab<strong>al</strong>hos ao lado dos tropic<strong>al</strong>istas, veio o reconhecimento<br />
de um público cada vez maior. Sua notoriedade como arranjador deveu-se<br />
especi<strong>al</strong>mente a este trab<strong>al</strong>ho ao lado de Gilberto Gil pelo qu<strong>al</strong> obteve o prêmio<br />
de melhor arranjo do III Festiv<strong>al</strong> Música Popular Brasileira, da TV Record, em<br />
1967, destacando-se, ainda, diversos prêmios recebidos, o prêmio Roquete<br />
Pinto de melhor arranjador do ano de 1967 e o Troféu André Kostelanetz, como<br />
melhor arranjo do Festiv<strong>al</strong> Internacion<strong>al</strong> da Canção (TV Globo), nos anos de<br />
1968 e 1970.<br />
Rogério Duprat foi o diretor music<strong>al</strong> e arranjador da grande maioria dos<br />
trab<strong>al</strong>hos tropic<strong>al</strong>istas, e isso inclui Tropicália ou Panis et Circensis, de1968,<br />
disco coletivo que os tropic<strong>al</strong>istas gravaram em São Paulo, comumente<br />
associado ao ápice music<strong>al</strong> do movimento Tropic<strong>al</strong>ista. Caetano Veloso<br />
coordenou o projeto e selecionou o repertório, que também destacava canções<br />
inéditas de Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinam e Tom Zé, com a produção de<br />
Manoel Barenbein (C<strong>al</strong>ado, 1997: 194). Nesse mesmo ano, Duprat assinou o<br />
arranjo da canção “É Proibido proibir” e, no ano seguinte, o arranjo da canção<br />
“Baby”, ambas de Caetano Veloso que considera esta última um sucesso pelo<br />
fato de ter sido revelada na "voz de G<strong>al</strong> Costa e no arranjo de Duprat, uma<br />
5 Anais do V Congresso Latinoamericano da<br />
Associação Internacion<strong>al</strong> para o Estudo da Música Popular
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
obra-prima do tropic<strong>al</strong>ismo" (Veloso, 1997: 280). A respeito da atuação de<br />
Duprat como arranjador, o maestro Julio Medaglia diz:<br />
Re<strong>al</strong>mente ele não foi fazer 'média' com a música<br />
popular. Foi levar todo o seu t<strong>al</strong>ento, a sua inteligência<br />
brilhante e a sua capacidade técnica que trazia de<br />
outras faces culturais e sobretudo, o espírito da época,<br />
daquela década de 1960, onde ele atuou. Tudo isso<br />
prevê um gigantesco c<strong>al</strong>deirão orquestrado, tão bem,<br />
t<strong>al</strong>vez como nenhum outro tenha feito. (Entrevista à TV<br />
Cultura, série Arranjadores, agosto, 1992)<br />
Seus arranjos refletem um estilo bastante person<strong>al</strong>ista. Esse aspecto<br />
pode ser percebido, por exemplo, na música “Coração Materno”, uma das<br />
faixas incluídas no álbum Tropicália ou Panis et Circensis, anteriormente<br />
mencionado. C<strong>al</strong>ado a considera como uma clássica canção-dram<strong>al</strong>hão do<br />
cantor e compositor Vicente Celestino que "resultou em um dos mais bemacabados<br />
produtos da tática tropic<strong>al</strong>ista de reler obras cafonas. Caetano<br />
conseguiu isso com uma interpretação suave, que atenuou a pieguice origin<strong>al</strong><br />
da canção, criando um contraste com o tom melodramático do arranjo de<br />
cordas de Duprat" (1997: 194). Caetano Veloso impressionado com o arranjo<br />
dessa canção, tece comentários:<br />
S<strong>al</strong>ve o arranjo de “Coração Materno”, que coisa<br />
deslumbrante ele fez! Sabe, que eu na hora de gravar<br />
fiquei comovido, impressionado...é lindo aquilo!<br />
Porque mantém a grandiosidade de idéia, tem a dose<br />
de irônia exata e ao mesmo tempo, você sente uma<br />
cultura de orquestração operística. Era uma coisa, que<br />
na verdade, um desejo do Vicente Celestino, que não<br />
estava bem re<strong>al</strong>izado no Vicente Celestino, quer dizer,<br />
numa versão que deveria ser uma versão caricata que<br />
era a minha, estava muito menos caricata. Muitos dos<br />
elementos constitutivos daquele estilo estavam<br />
melhores representados no arranjo de Rogério, do que<br />
na gravação do Vicente Celestino, mais a sério, indo<br />
mais fundo naquilo. (Entrevista ao programa Ensaio,<br />
out., 1992)<br />
A necessidade de colocar em prática tudo o que sabia fazer em música<br />
fez com que Duprat fundisse diferentes estilos, muitas vezes, em um só<br />
arranjo. Dessa forma, acrescentava às canções, para as quais o arranjo estava<br />
sendo elaborado, uma forma muito particular de compor as cordas e os metais,<br />
ou seja, suas orquestrações ganhavam praticamente uma autonomia par<strong>al</strong>ela,<br />
permanecendo ao mesmo tempo integradas harmoniosamente às estruturas<br />
das canções. Muito embora vinculados às canções, seus arranjos, muitas<br />
vezes, assumiam um caráter composicion<strong>al</strong>. O compositor Tom Zé, em<br />
http://www.hist.puc.cl/historia/<strong>iaspm</strong>la.html 6
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
entrevista, mostra a correspondência existente entre os arranjos de Duprat e as<br />
canções tropic<strong>al</strong>istas:<br />
Durante toda a atuação do Rogério no<br />
Tropic<strong>al</strong>ismo era como se houvesse uma <strong>al</strong>ma única<br />
que trab<strong>al</strong>hasse todas as coisas. Aquilo estava de t<strong>al</strong><br />
modo enriquecido, ritmado, em todos os sentidos.<br />
Como música popular de ter charme, b<strong>al</strong>anço, de ter<br />
tantas coisas bem colocadas instrument<strong>al</strong>mente na<br />
parte de sopros, de cordas, de coisas da banda e com<br />
a linguagem das bandas daquele tempo. Tudo muito<br />
bem adequado, como também na inteligência dos<br />
arranjos. Aí, nesse sentido, da inteligência mais<br />
universitária, ofici<strong>al</strong> que eram as citações, o vestir, o<br />
botar dentro de uma moldura. Parecia que a música<br />
não existia sem aquela roupa. Quando fomos colocar<br />
a voz no disco Tropicália eu me lembro que comentei<br />
com os meninos, o Gil e o Caetano: "Vocês são uns<br />
caras de uma sorte que não tem tamanho. Entregar as<br />
músicas para uma pessoa e a pessoa entregar essa<br />
coisa tão brilhante". Essa colaboração tão importante é<br />
que nunca ouvi f<strong>al</strong>ar. A relação do Rogério em ouvir a<br />
canção e procurar uma moldura, enriquecendo com<br />
citações da linguagem nacion<strong>al</strong> ou internacion<strong>al</strong>. Se as<br />
citações não fossem muito bem feitas tornavam-se<br />
banais. O Gil e os Mutantes encontravam no Rogério o<br />
pensamento criativo para orquestra. Isso é muito difícil<br />
entre a sensibilidade das pessoas. (Entrevista,<br />
outubro, 1995)<br />
Em seguida, Tom Zé comenta a importância da presença de Duprat,<br />
assim como dos maestros Damiano Cozzella e Julio Medaglia para o<br />
enriquecimento do tipo de linguagem utilizada pelos tropic<strong>al</strong>istas:<br />
No disco Tropicália ele fez o arranjo da minha<br />
música “Parque industri<strong>al</strong>”. Nós combinamos quais<br />
músicas íamos botar no disco e depois mandamos<br />
para Rogério. Era fácil lidar com ele porque estava<br />
sempre bem humorado, pedia sugestões, estava<br />
sempre disposto a remodelar o que ele fazia. Os<br />
primeiros arranjos, mandamos para arranjadores do<br />
Rio. Quando as músicas voltaram arranjadas a<br />
impressão que dava é que essas músicas eram<br />
outras. Nunca conversei com o Caetano sobre isso,<br />
mas ele fez um comentário na contracapa de um de<br />
seus discos: "Estas músicas que um dia foram<br />
minhas". Não vejo outra referência sobre isso. Quando<br />
7 Anais do V Congresso Latinoamericano da<br />
Associação Internacion<strong>al</strong> para o Estudo da Música Popular
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
não era o caso do Cozzella, do Julio ou do Rogério, o<br />
susto que a gente tomava era muito grande.<br />
O tropic<strong>al</strong>ismo deve ao Cozzella e princip<strong>al</strong>mente<br />
ao Duprat e ao Medaglia, mais do que se credita a<br />
eles. Acho que se não tivessem presentes naquele<br />
momento com aquela formação do pós-moderno e<br />
com o mesmo espírito crítico que foi uma das<br />
prerrogativas estéticas mais praticadas no<br />
tropic<strong>al</strong>ismo, não teria sido tão rico de linguagem e de<br />
força como foi. (Idem)<br />
De maneira ger<strong>al</strong>, a maioria dos álbuns dos anos 60 ou 70 arranjados por<br />
Duprat são imediatamente reconhecíveis por suas interferências sonoras,<br />
citações de músicas já conhecidas, ruídos, diálogos, mudanças de andamentos,<br />
enfim, um mundo de colagens sonoras que revela <strong>al</strong>go de novo a cada escuta, e<br />
como ele mesmo acrescenta:<br />
Coisas que faziam parte da música erudita, a<br />
desordem sonora, todos os v<strong>al</strong>ores de Cage. Eu fazia<br />
happening com partituras escritas para aparelhos<br />
domésticos, com coro lendo jornais do dia. Era tudo o<br />
que os tropic<strong>al</strong>istas esperavam e que nós já<br />
praticávamos há 10 anos. (Vibrations, 1999: 42)<br />
No fin<strong>al</strong> da década de 1960, Duprat chegou a ser bastante conhecido por<br />
um público mais abrangente e foi nesse período que gravou, no estúdio<br />
Scatena, com produção de Manoel Barenbein, o LP A banda tropic<strong>al</strong>ista do<br />
Duprat (1968). Contando com a participação do grupo Os Mutantes, esse disco<br />
destaca, <strong>al</strong>ém de <strong>al</strong>gumas orquestrações para clássicos da MPB, como “Chega<br />
de saudade” de Tom Jobim e músicas do tropic<strong>al</strong>ismo, como “Baby” de Caetano<br />
Veloso e “Bat macumba” de Gilberto Gil, músicas de John Lennon e Paul<br />
McCartney. Ao contrário do que se poderia pensar, Duprat não ficou satisfeito<br />
com o resultado:<br />
Não gosto muito daquilo. Eles forçaram muito,<br />
aquela foto... O pai de Edu Lobo era produtor<br />
[executivo]- já f<strong>al</strong>ecido, Deus o tenha em bom lugar-,<br />
mas não entendia as coisas. Então me fizeram subir<br />
em cima da mesa para bater fotografia... Coisa tão<br />
boba, ingênua, cretina, mas, enfim, acabei fazendo<br />
porque queria, tem umas coisas que eu gosto. Mas ele<br />
sofreu um pouco do efeito desse negócio do<br />
repertório, de me forçarem um pouco <strong>al</strong>guma música<br />
internacion<strong>al</strong>, mais comerci<strong>al</strong>izada (Showbizz, 2000:<br />
59).<br />
Surpreendentemente, no mesmo ano em que seu disco fora gravado,<br />
Duprat declarou, em uma entrevista ao Jorn<strong>al</strong> da Tarde, que o movimento<br />
tropic<strong>al</strong>ista era "coisa encerrada, um rótulo que não lhe interessava mais, uma<br />
etapa superada" (1968: não p.).<br />
http://www.hist.puc.cl/historia/<strong>iaspm</strong>la.html 8
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
Quanto aos festivais, declarou à imprensa da época ter desistido devido à sua<br />
péssima qu<strong>al</strong>idade, acrescentando, ainda, o fato de não suportar mais os<br />
discursos solenes das entregas de prêmios. É importante lembrar que o prêmio<br />
de melhor arranjador, em 1968, do Festiv<strong>al</strong> da Globo, Duprat não foi recebê-lo,<br />
atribuindo sua atitude à sua opinião de que "para fazer 'média' com Os<br />
Mutantes o júri agiu assim," e que, <strong>al</strong>ém do mais, para ele, esse título<br />
temporário nada significava (Jorn<strong>al</strong> da Tarde, 1968: não p.).<br />
Muitos autores referem-se ao ano de 1968 como o auge do movimento<br />
tropic<strong>al</strong>ista. Onze anos depois, em 1979, Duprat dá uma P<strong>al</strong>estra no Festiv<strong>al</strong><br />
de Cinema em Gramado, que não trata especificamente do tropic<strong>al</strong>ismo, mas<br />
pode ser considerada uma espécie de b<strong>al</strong>anço do que representaram os anos<br />
60 para a cultura em ger<strong>al</strong> e, mais especificamente, nacion<strong>al</strong>. Nessa p<strong>al</strong>estra,<br />
ele diz que os anos 50 representaram para os músicos "a restauração dos<br />
dodecafonistas, princip<strong>al</strong>mente Webern, e um momento dos trab<strong>al</strong>hos super<br />
ordenados, até matematicamente, das músicas concreta, seri<strong>al</strong> e eletrônica,<br />
com complicadíssimas estruturas e sistemas de notação, para circular entre<br />
duas ou três pessoas". Em oposição a essa tendência estrutur<strong>al</strong>ista da música<br />
dos anos 50, nos anos 60 iniciou-se o "'desbunde', inici<strong>al</strong>mente com a tímida<br />
incorporação de irracionais extraídos de teorias probabilísticas, e logo<br />
formando o cordão <strong>al</strong>eatório, com o sensacion<strong>al</strong> John Cage de b<strong>al</strong>iza"<br />
(Gramado, 1979). Duprat destaca como elementos caracterizantes da cultura<br />
dos anos 60, os "Beatles, cabelos, papos de comunidades não <strong>al</strong>inhadas,<br />
hippies e contestação". Esses elementos representavam um distanciamento<br />
com o que ele chamou de "Kultura com K maiúsculo", ao referir-se ao que<br />
considerava uma cultura reacionária, e uma aproximação com a antiarte e a<br />
contracultura:<br />
Fomos ficando de m<strong>al</strong> com a 'Kultura' e<br />
chegando mais à de massa. Os do K maiúsculo, que<br />
não tinham visto passar nem a primeira banda<br />
estrutur<strong>al</strong>ista dos 50, pegos de c<strong>al</strong>ças curtas, ficaram<br />
berrando em defesa da ordem, da estrutura e da<br />
grande arte, vejam só! Mas já era a era do grande<br />
sonho, caminho sem retorno. O sonho acabou, mas já<br />
tinha devastado tudo, demoliu o sistema, gerando<br />
terrível ab<strong>al</strong>o cósmico, para a perplexidade das novas<br />
gerações dos dancing days de hoje. (Gramado, 1979)<br />
Em 1983, num artigo escrito para a revista Leia, Duprat volta a tratar<br />
desse assunto, expondo uma versão mais politizada acerca dos anos 60. Para<br />
ele, o AI-5 foi instituído como uma reação do sistema ao descobrir que a<br />
verdadeira subversão estava <strong>al</strong>iada a uma revolução no nível comportament<strong>al</strong><br />
e no campo da linguagem. A partir disso, o Brasil assistiu a "um verdadeiro<br />
rapa, uma atroz e impiedosa caça às bruxas de que não se livraram nem os<br />
aparentemente inofensivos Gil e Caetano engaiolados feito bichos nos sujos<br />
porões da repressão, junto com outras centenas de cabeças que, cada uma à<br />
sua moda, sabiam que tinha que ocorrer mudanças". (Leia, 1983: não p.)<br />
9 Anais do V Congresso Latinoamericano da<br />
Associação Internacion<strong>al</strong> para o Estudo da Música Popular
<strong>ROGÉRIO</strong> <strong>DUPRAT</strong> E A <strong>TROPICÁLIA</strong><br />
Duprat é comumente considerado o princip<strong>al</strong> arranjador do tropic<strong>al</strong>ismo.<br />
Isso se deve, provavelmente, por ter sido capaz de transitar por diferentes<br />
gêneros musicais de maneira singular e, <strong>al</strong>ém disso, ter encontrado meios de<br />
<strong>al</strong>iá-los. Ao se tomar contato com seus arranjos, a impressão que fica é a de<br />
que ele soube re<strong>al</strong>mente traduzir, por intermédio de seus sons, o conteúdo<br />
estético do tropic<strong>al</strong>ismo.T<strong>al</strong>vez essa seja uma de suas contribuições, ter sido,<br />
de fato, um artesão que compilou sonoridades que comungam com as canções<br />
do repertório tropic<strong>al</strong>ista, num tipo de união que resultou em um legado para a<br />
música popular brasileira.<br />
Assim como os tropic<strong>al</strong>istas encontraram em Duprat os elementos<br />
necessários para as transformações que desejavam operar na música popular<br />
brasileira, este por sua vez encontrou um ambiente propício para a viabilização<br />
de muitas de suas concepções estéticas, ou como ele mesmo comenta: "Foi a<br />
união da fome com a vontade de comer". Entretanto, ele diz humildemente:<br />
"Não fui eu que fiquei dando aula para eles; ao contrário, eu aprendi com Os<br />
Mutantes, com o Gil, com o Caetano..." (ShowBizz, 2000: 59). Sua postura<br />
pode nos levar a pensar que seu papel no tropic<strong>al</strong>ismo era apenas o de um<br />
técnico music<strong>al</strong> a serviço dos ideais estéticos do movimento. Porém, essa<br />
visão, difundida muitas vezes por ele próprio, deve ser redimensionada, pois<br />
como visto anteriormente, ele foi um dos ide<strong>al</strong>izadores dos princípios estéticos<br />
que fundamentaram o movimento Música Nova. Ao apresentá-lo a Gilberto Gil,<br />
Julio Medaglia conhecia a potenci<strong>al</strong>idade de Duprat, não apenas no que se<br />
referia a seus conhecimentos técnico-musicais, atributo que poderia ter sido<br />
encontrado em outro profission<strong>al</strong>, mas sobretudo, sua concepção estética<br />
voltada para a vanguarda, e sua vivência nessa área, estes sim, atributos que<br />
somados aos ideais de transformação dos tropic<strong>al</strong>istas contribuíram para o<br />
redirecionamento da música popular brasileira.<br />
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