condições de produção do discurso e formações ... - revista Icarahy
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Revista <strong>Icarahy</strong><br />
Edição n.04 / outubro <strong>de</strong> 2010<br />
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO E FORMAÇÕES<br />
DISCURSIVAS: UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM DA PRÁXIS<br />
DISCURSIVA<br />
Rodrigo Oliveira Fonseca *<br />
RESUMO: Este artigo propõe uma reconsi<strong>de</strong>ração da noção <strong>de</strong> <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong><br />
<strong>do</strong> <strong>discurso</strong> nos processos <strong>de</strong> análise. Se é importante a consi<strong>de</strong>ração das <strong>formações</strong><br />
discursivas, por apontarem as regularida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> dizer e <strong>do</strong> fazer senti<strong>do</strong>, as <strong>condições</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>produção</strong>, numa perspectiva dinâmica, po<strong>de</strong>m trazer a prática discursiva <strong>do</strong>s agentes<br />
históricos. No entanto, é necessário superar a visão <strong>de</strong> que as <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>discurso</strong> seriam as situações <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong>sse <strong>discurso</strong>, meros indica<strong>do</strong>res para a<br />
montagem <strong>do</strong> corpus. Eu sugiro que as <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> estão relaciona<strong>do</strong>s àquilo<br />
que Rancière chama “mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>” e trago como exemplo uma análise <strong>do</strong><br />
<strong>discurso</strong> <strong>de</strong> promoção <strong>do</strong> Orçamento Participativo.<br />
PALAVRAS-CHAVE: <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>; práxis discursiva; mo<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> subjetivação; orçamento participativo.<br />
ABSTRACT: This article intends a reconsi<strong>de</strong>ration of the notion of production<br />
conditions of discourse in the analysis procedures. If it is important to consi<strong>de</strong>r the<br />
discursive formations, since they indicate the regularities of saying and of the meaning<br />
production, the production conditions, in a dynamic view, can suscitate the discursive<br />
praxis of historic agents. However, it is necessary to advance the vision that the<br />
production conditions of discourse are the communication situations of this discourse,<br />
* Mestre em história social da cultura pela PUC-Rio e <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> em estu<strong>do</strong>s da linguagem pela UFRGS.
Revista <strong>Icarahy</strong><br />
Edição n.04 / outubro <strong>de</strong> 2010<br />
just indicators of the corpus montage. I suggest that the production conditions are<br />
related to what Jacques Rancière calls the mo<strong>de</strong>s of subjectification and I bring as an<br />
example an analysis of the discourse of announcing of participatory budget discourse.<br />
KEYWORDS: production conditions of discourse; discursive praxis; mo<strong>de</strong>s of<br />
subjectification; participatory budget.<br />
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO<br />
Uma noção cara à análise <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> <strong>de</strong> corte pecheutiano — teoria da<br />
<strong>de</strong>terminação histórica <strong>do</strong>s processos semânticos — é a <strong>de</strong> <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>discurso</strong>, que nos remete para as relações <strong>de</strong> força presentes na e constituintes da prática<br />
discursiva. O que são, entretanto, estas relações <strong>de</strong> força?<br />
Na base <strong>de</strong> sua compreensão está a constatação <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> real, a<br />
assimetria na relação entre os homens, o <strong>de</strong>snível entre os lugares que ocupamos e os<br />
po<strong>de</strong>res que exercemos no to<strong>do</strong> da <strong>produção</strong> social. Vale a pena <strong>de</strong>stacar que isso que<br />
está em jogo, seja num texto ou num <strong>discurso</strong>, nunca são apenas relações entre sujeitos<br />
e temas ou entre sujeitos e objetos. O que está em jogo são, sobretu<strong>do</strong> e essencialmente,<br />
relações entre sujeitos. Se o <strong>discurso</strong> é efeito <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> entre interlocutores, a tensão<br />
constituinte da relação entre estes interlocutores não é estranha aos senti<strong>do</strong>s aí<br />
produzi<strong>do</strong>s.<br />
Para, entretanto, não cairmos num concepção estática <strong>do</strong> social e seus conflitos,<br />
igualmente há que se consi<strong>de</strong>rar que tais <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e assimetrias não são<br />
inexoráveis, eternas e inquestionáveis, e que sobre elas instauraram-se práticas <strong>de</strong><br />
ruptura, tensionamento, reacomodação e alteração na or<strong>de</strong>m instituída <strong>de</strong>stes lugares e
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po<strong>de</strong>res pré-estabeleci<strong>do</strong>s, herda<strong>do</strong>s 1 . Não há <strong>do</strong>minação sem resistência, os homens e<br />
mulheres não cabemos plenamente nos lugares que nos são reserva<strong>do</strong>s, nas camisas (<strong>de</strong><br />
força e <strong>de</strong> grife) que nos solicitam vestir. A língua e as linguagens, pelo seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
fogo e <strong>de</strong> jogo, pela sua flexibilida<strong>de</strong> e mordacida<strong>de</strong>, têm um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> figuração e<br />
transfiguração sem tamanho. Assim, pensar o <strong>discurso</strong>, esse instrumento fundamental da<br />
prática política, é, por isso mesmo, muito mais <strong>do</strong> que pensar “como a história se<br />
inscreve na linguagem”. Quan<strong>do</strong> dizemos história não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ver que a luta<br />
para mudá-la (tanto para dizê-la quanto para fazê-la <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>) é parte fundamental<br />
<strong>de</strong> toda história. É o seu motor.<br />
Ao mobilizar a noção <strong>de</strong> <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>, explicitamos que, na<br />
base <strong>do</strong>s processos discursivos, além da materialida<strong>de</strong> simbólica, há também uma<br />
materialida<strong>de</strong> histórica, formada pelas relações sociais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada formação<br />
social, em meio às quais (e para as quais) os sujeitos históricos trabalham a formulação<br />
<strong>do</strong>s “seus” dizeres, provocan<strong>do</strong> agitações nas filiações <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e, também, como<br />
aqui é proposto, produzin<strong>do</strong> uma práxis discursiva.<br />
É preciso dizer, entretanto, que, em muitas análises, as <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>discurso</strong> ten<strong>de</strong>m a ocupar um papel exterior, anterior e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte em relação ao<br />
trabalho específico que é realiza<strong>do</strong>, como a <strong>de</strong>-sintagmatização linguística e a <strong>de</strong>-<br />
sintagmação discursiva (PÊCHEUX, 1990), responsáveis pela neutralização <strong>do</strong>s<br />
esquecimentos enunciativos e subjetivos. Acontece que certos fantasmas teóricos<br />
assombram a noção <strong>de</strong> <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início. São os nossos<br />
velhos e íntimos adversários <strong>do</strong> psicossociologismo 2 , que tomam o imaginário e a<br />
dinâmica social como funcionamentos i<strong>de</strong>ais. É por isso que Jaques Guilhaumou afirma<br />
que esta noção foi aban<strong>do</strong>nada pelos historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>, pois ela trazia como seu
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corolário a “situação <strong>de</strong> comunicação” e <strong>de</strong>scambava para uma investigação analógica<br />
<strong>de</strong> tipo sociolinguístico (GUILHAUMOU, 2009: 31).<br />
Consi<strong>de</strong>ro que a proposta <strong>de</strong> Jean-Jacques Courtine para o entendimento das<br />
<strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> é ainda insuficiente, pois restringe-se à i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong><br />
coor<strong>de</strong>nadas espaço-temporais e circunstanciais que <strong>de</strong>terminam as especificida<strong>de</strong>s<br />
enunciativas <strong>de</strong> uma formulação (COURTINE, 2009: 108).<br />
As <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>, por trazerem os lugares sociais e suas<br />
representações (quase sociologicamente falan<strong>do</strong>, com Courtine, 2009), por trazerem as<br />
relações <strong>de</strong> força e as relações <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> da socieda<strong>de</strong> (dizen<strong>do</strong>-o mais como<br />
historia<strong>do</strong>r, com Jacques Rancière, 1996), seja em que dimensão contextual for (ampla<br />
ou circunstancial), <strong>de</strong>vem, por to<strong>do</strong> esse leque <strong>de</strong> tensões e contradições que mobilizam,<br />
aparecer não apenas na conformação <strong>do</strong> corpus, antes <strong>do</strong> trabalho; e não como pano <strong>de</strong><br />
fun<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> plano, <strong>condições</strong> <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> etc. As <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> <strong>de</strong>vem<br />
aparecer também no que <strong>de</strong>nominamos tomadas <strong>de</strong> posição (PÊCHEUX, 1997) ou<br />
mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação.<br />
OS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO – UMA DEFINIÇÃO E DOIS EXEMPLOS<br />
Muitos trabalhos em análise <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> exploram as tensões entre memória e<br />
acontecimento, entre os já-ditos e o a-dizer. Po<strong>de</strong>mos pensar aí também no<br />
<strong>de</strong>slocamento ten<strong>de</strong>ncial <strong>do</strong> sujeito enuncia<strong>do</strong>r (PÊCHEUX, 1981: 17), que é o mesmo<br />
que pensar nas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> funcionamento discursivo e as dissimetrias entre sujeito<br />
da enunciação e o sujeito universal <strong>de</strong> uma formação discursiva. No que tange a estas<br />
agitações nas filiações <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, vemos entretanto que o conceito <strong>de</strong> práxis<br />
discursiva é ainda marginal no conjunto da <strong>produção</strong> teórica <strong>de</strong>ste campo.
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Para <strong>de</strong>senvolver esta ferramenta, o conceito <strong>de</strong> práxis discursiva, parece-me<br />
pertinente trazer outro, o <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação, proposto por Jacques Rancière, que<br />
assim o <strong>de</strong>fine: “<strong>produção</strong>, por uma série <strong>de</strong> atos, <strong>de</strong> uma instância e <strong>de</strong> uma capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> enunciação que não eram i<strong>de</strong>ntificáveis num campo <strong>de</strong> experiência da<strong>do</strong>, cuja<br />
i<strong>de</strong>ntificação caminha a par com uma reconfiguração <strong>do</strong> campo <strong>de</strong> experiência”<br />
(RANCIÈRE, 1996: 47).<br />
Parece-me que será produtivo trazer para o trabalho em análise <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>, e<br />
sobretu<strong>do</strong> em meio aos procedimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>-sintagmatização discursiva, o rico campo<br />
<strong>de</strong> experiência <strong>do</strong>s sujeitos históricos. Campo social este que não é um pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong><br />
ou moldura <strong>de</strong>ntro da qual se dão suas ações, mas que sofre reconfigurações por parte<br />
<strong>de</strong>stes sujeitos em sua práxis e intervém no fazer senti<strong>do</strong>. Contra a frágil relação frente-<br />
fun<strong>do</strong> que <strong>do</strong>mina a compreensão <strong>de</strong> “situações <strong>de</strong> comunicação”, entra em questão o<br />
trabalho sempre incompleto <strong>do</strong>s sujeitos históricos na construção <strong>do</strong>s seus palanques,<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m falar, fazen<strong>do</strong>-se visíveis e audíveis. Estes palanques são ao mesmo<br />
tempo a instância e a capacida<strong>de</strong> dinâmica que condicionam as práticas discursivas <strong>do</strong>s<br />
sujeitos históricos, em meio às relações <strong>de</strong> força e às formas <strong>de</strong> combate nas quais os<br />
<strong>discurso</strong>s ecoam ou não.<br />
É na forma <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação que compreen<strong>do</strong>, por exemplo, o que os<br />
historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> Jacques Guilhamou e Denise Maldidier (1994) analisaram na<br />
apropriação da língua política <strong>do</strong>s jacobinos pelo povo pobre e faminto <strong>de</strong> Paris. A<br />
partir <strong>de</strong>sta prática, promoveram o ingresso <strong>do</strong> conflito social no interior <strong>do</strong> conflito<br />
político, com palavras e um palavrear característicos da Assembleia Nacional, mas com<br />
uma nova referenciação. O tema da subsistência pô<strong>de</strong>, a partir <strong>de</strong> certos rituais da<br />
palavra, emergir no interior da revolução francesa, <strong>de</strong>svirtuan<strong>do</strong> a retórica jacobina das
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assembleias. Guilhaumou e Maldidier compreen<strong>de</strong>ram que a referenciação para a<br />
palavra pão <strong>de</strong> início estava inserida na discursivida<strong>de</strong> conceitual <strong>do</strong>s direitos<br />
fundamentais <strong>do</strong> homem, e <strong>de</strong>pois passou a ser outra, inserin<strong>do</strong>-se na discursivida<strong>de</strong> das<br />
palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m vindas das ruas, apontan<strong>do</strong> para reivindicações concretas.<br />
O mesmo po<strong>de</strong> ser dito para alguns dizeres da Conjuração Baiana <strong>de</strong> 1798 3 ,<br />
quan<strong>do</strong> a apropriação da língua revolucionária francesa por trabalha<strong>do</strong>res mulatos <strong>de</strong><br />
uma formação social escravista e colonial fez com que aquelas palavras e aquele<br />
palavrear produzissem outros senti<strong>do</strong>s e consequências. Outros entendimentos e<br />
<strong>de</strong>sentendimentos – por exemplo, a historiografia ainda discute se o abolicionismo fez<br />
ou não fez parte <strong>do</strong> programa político <strong>do</strong>s revolucionários baianos <strong>de</strong> 1798. Temos aqui<br />
mais um exemplo <strong>do</strong> princípio leninista <strong>de</strong> que as palavras mudam <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />
aqueles que as empregam. Este quase consenso no campo teórico da análise <strong>do</strong> <strong>discurso</strong><br />
não po<strong>de</strong> ficar restrito a uma consi<strong>de</strong>ração das <strong>formações</strong> imaginárias, visto que o<br />
“quem sou eu para lhe falar assim sobre isso” (<strong>de</strong>ntre outras imagens que intervêm na<br />
prática discursiva) não inci<strong>de</strong> apenas na (re)formulação <strong>do</strong>s saberes, na atualização <strong>do</strong>s<br />
<strong>discurso</strong>s, mas intervém com força na <strong>produção</strong> social <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s.<br />
A PRÁXIS DISCURSIVA NA DIVULGAÇÃO DO ORÇAMENTO<br />
PARTICIPATIVO<br />
Mas o exemplo que trago para <strong>de</strong>senvolver a reflexão sobre práxis discursiva e<br />
mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação vincula-se a elementos históricos e discursivos da<br />
implementação <strong>do</strong> Orçamento Participativo em Porto Alegre na primeira gestão da<br />
Frente Popular nesta cida<strong>de</strong> (1989-1992), especialmente no que diz respeito ao<br />
movimento comunitário. Estes elementos foram extraí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Fonseca (2005).
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A prefeitura da Frente Popular para propor com legitimida<strong>de</strong> sua política <strong>de</strong><br />
orçamentação participativa pôs a trabalhar toda uma memória <strong>do</strong> dizer que vinha há<br />
anos circulan<strong>do</strong> em vilas e bairros populares da cida<strong>de</strong>, a partir da ação <strong>de</strong> diferentes<br />
entida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> movimento comunitário local. Esta memória trazia consigo experiências<br />
comuns <strong>de</strong> organização, articulação e reivindicação, e produzia uma nova instância e<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enunciação e prática política por parte da prefeitura – o que não foi<br />
possível, por exemplo, na gestão anterior, <strong>do</strong> prefeito Colares (<strong>do</strong> PDT), também<br />
proponente <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> orçamentação participativa.<br />
Entretanto, não se pega a língua <strong>do</strong> outro, <strong>de</strong> outra posição social e histórica, sem<br />
o risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sentendimentos. Aliás, e <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Jacques Rancière (1996), o<br />
<strong>de</strong>sentendimento caracteriza a racionalida<strong>de</strong> própria da política. A história da política<br />
proletária, por exemplo, po<strong>de</strong> ser vista como a <strong>de</strong>snaturalização e o <strong>de</strong>sentendimento da<br />
comunida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res enquanto uma função social (i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> objetiva, classe-<br />
em-si), abrin<strong>do</strong> espaço para a sua subjetivação enquanto coletivo <strong>de</strong> seres <strong>de</strong>sejantes da<br />
<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> seu produto social e <strong>de</strong> suas <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> (ser classe-para-si).<br />
Outro exemplo é o da política feminista, que arranca as mulheres <strong>de</strong> sua evidência<br />
enquanto complementarida<strong>de</strong> sexual para empreen<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>núncia (e o <strong>de</strong>sentendimento)<br />
<strong>de</strong> uma ausência na sua existência social, uma ausência no espaço público e nas relações<br />
aí estabelecidas.<br />
Enquanto houver esse abismo semântico entre dizer homem público e mulher<br />
pública, abismo calca<strong>do</strong> numa existência que – muito mais <strong>do</strong> que ser diferente – é<br />
<strong>de</strong>sigual e injusta, a história da política feminista, como a história da política proletária,<br />
estará na or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> dia.
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No caso da apropriação <strong>do</strong>s dizeres <strong>do</strong> movimento comunitário pela prefeitura da<br />
Frente Popular, processo marca<strong>do</strong> pela busca <strong>de</strong> novas lealda<strong>de</strong>s entre segmentos da<br />
socieda<strong>de</strong> política e da socieda<strong>de</strong> civil, há uma outra referenciação das palavras (como,<br />
por exemplo, os sintagmas organização popular, comunida<strong>de</strong>s organizadas e soberania<br />
popular), em busca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e legitimida<strong>de</strong>. Nos seguintes recortes, elas<br />
associam-se a “cida<strong>de</strong> melhor” e “compromisso da Administração Popular”.<br />
(1) a construção <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> melhor... passa pela organização e construção da soberania<br />
popular.<br />
(2) O COMPROMISSO DA ADMINISTRAÇÃO POPULAR... É COM A SOBERANIA<br />
POPULAR E COM A SOBERANIA DA COMUNIDADE. (recortes da cartilha <strong>de</strong><br />
promoção da Orçamentação Participativa, <strong>de</strong> 1989, retira<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Fonseca, 2005)<br />
Os dizeres <strong>do</strong> OP po<strong>de</strong>m ser compreendi<strong>do</strong>s na sua filiação a uma memória <strong>do</strong><br />
dizer sobre a participação popular, uma formação discursiva participacionista (cf.<br />
FONSECA, 2005), com uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> saberes que vêm se atualizan<strong>do</strong> há tempos, com<br />
permanências e rupturas, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> difuso e contraditório, seja a partir da <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s<br />
conselhos populares, da <strong>de</strong>mocracia direta da Comuna <strong>de</strong> Paris e <strong>do</strong>s sovietes, seja das<br />
chamadas prefeituras <strong>de</strong>mocráticas da Itália e da França nos anos 1970, entre outras<br />
experiências. Também a partir da ONU há uma discursivida<strong>de</strong> participacionista, não<br />
com a perspectiva da autonomia ou soberania popular, mas numa perspectiva <strong>de</strong><br />
integração, <strong>de</strong>senvolvimento e mo<strong>de</strong>rnização das periferias, contra estruturas<br />
governamentais corruptas e ineficientes <strong>do</strong> Terceiro Mun<strong>do</strong> (como se apenas na<br />
periferia elas assim o fossem).<br />
As <strong>formações</strong> discursivas, em suas regularida<strong>de</strong>s, em seus rituais da palavra e <strong>do</strong><br />
palavrear, necessariamente trabalham silêncios e interdições, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> saberes<br />
que po<strong>de</strong>riam ameaçar sua coerência e unida<strong>de</strong>, saberes que po<strong>de</strong>riam ser<br />
sintagmatiza<strong>do</strong>s, lineariza<strong>do</strong>s, formula<strong>do</strong>s, mas não o são.
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Proponho que tenhamos em conta, porém, que a formação discursiva, por si,<br />
enquanto elemento <strong>de</strong> uma prática i<strong>de</strong>ológica no campo da <strong>produção</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s, não é<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> algum, por seu compromisso com a <strong>produção</strong> <strong>de</strong> esquecimentos significativos<br />
e re<strong>produção</strong> <strong>de</strong> saberes nos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> dizer, o único elemento a indicar o que não po<strong>de</strong><br />
ser dito. Há que se pensar, na prática da análise discursiva – e pensar <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais<br />
consequente e efetivo, nas pressões das <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> sobre o <strong>discurso</strong>. Desse<br />
mo<strong>do</strong>, enxergaremos essa dupla coerção: a pressão das relações <strong>de</strong> força sobre a<br />
enunciação e a pressão das relações <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> sobre o <strong>discurso</strong>. Ou seja, no saber<br />
prático <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> realiza<strong>do</strong> por homens e mulheres, na práxis discursiva processual e<br />
cotidiana, existem diferentes tensões entre o que dizer e o que não dizer, tensões que<br />
<strong>de</strong>terminam e comprometem tanto a capacida<strong>de</strong> enunciativa para dizer algo (o que se<br />
po<strong>de</strong> dizer, no nível <strong>do</strong> consciente/pré-consciente) como para dizê-lo <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a se<br />
atualizar um saber (o que se <strong>de</strong>ve dizer, no nível <strong>do</strong> inconsciente).<br />
Assim, por mais que a “Administração Popular” tivesse <strong>de</strong> reverberar<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s saberes como aqueles associa<strong>do</strong>s a soberania popular e comunida<strong>de</strong>s<br />
organizadas, para falar com legitimida<strong>de</strong> sobre participação junto aos setores que<br />
po<strong>de</strong>riam levar a cabo a realização <strong>do</strong> OP, os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> reproduzir estes saberes se<br />
<strong>do</strong>braram frente a coerções próprias das <strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong>, apontan<strong>do</strong> para uma<br />
nova práxis discursiva participacionista. Vejamos o exemplo a seguir:<br />
(3) o engajamento da comunida<strong>de</strong> organizada [na elaboração <strong>do</strong> Orçamento-Programa <strong>do</strong><br />
Município]... é uma experiência inova<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>sta administração... visa aten<strong>de</strong>r mais um<br />
compromisso assumi<strong>do</strong> pela Frente Popular... (recorte da cartilha <strong>de</strong> promoção da<br />
Orçamentação Participativa, 1989, retira<strong>do</strong> <strong>de</strong> Fonseca, 2005)<br />
O sintagma comunida<strong>de</strong>s organizadas sai <strong>do</strong> horizonte <strong>de</strong> expectativas para ser<br />
posto a trabalhar <strong>de</strong> forma distinta, como algo já estabeleci<strong>do</strong>, um campo/força exterior
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chama<strong>do</strong> a colaborar com o enuncia<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> forma engajada e objetiva. E o sintagma<br />
cida<strong>de</strong> melhor, <strong>de</strong>ntre outros, passa a ocupar o papel <strong>do</strong> irrealiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>.<br />
Um jornal <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> circulação no esta<strong>do</strong>, dias antes <strong>do</strong> início <strong>do</strong> mandato da<br />
Frente Popular em Porto Alegre, toma a palavra participacionista e assim a publica no<br />
seu editorial:<br />
É esse movimento que a administração municipal a empossar-se em 1º <strong>de</strong> janeiro preten<strong>de</strong><br />
valorizar, pela criação <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s Conselhos Populares, em forma nãoinstitucionalizada,<br />
<strong>de</strong> vez que tentativa em tal senti<strong>do</strong> promovida na gestão que finda<br />
acabou obstaculizada pelos verea<strong>do</strong>res. Nada há a obstar a que tais colegia<strong>do</strong>s <strong>de</strong>finam<br />
priorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> investimentos, <strong>de</strong> obras e <strong>de</strong> melhoramentos, que sejam ouvi<strong>do</strong>s e acata<strong>do</strong>s<br />
pelos governantes. Certamente esta será uma cida<strong>de</strong> melhor, se cada <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> Executivo<br />
Municipal for embasada num amplo conhecimento <strong>de</strong> nossa realida<strong>de</strong> (Editorial Zero Hora,<br />
19/12/1988. Grifos meus. Trecho retira<strong>do</strong> <strong>de</strong> Fonseca, 2005).<br />
Vemos aí que não há repetição automática: naquela conjuntura anterior ao OP o<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação participacionista ainda não havia si<strong>do</strong> <strong>de</strong>svirtua<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos e<br />
interesses históricos <strong>de</strong> autonomia popular, mas a entrada <strong>do</strong> jornal na justificativa e<br />
<strong>de</strong>fesa da participação popular produz reducionismos e estranhamentos (“os chama<strong>do</strong>s<br />
Conselhos Populares”, “os tais”) e efeitos <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> outros que buscam administrar a<br />
polissemia <strong>de</strong> participação (ao <strong>de</strong>finir que os conselhos serão grupos colegia<strong>do</strong>s e quais<br />
serão suas atribuições). O fechamento <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> ao final, em resumo, coloca o<br />
participacionismo a ser efetiva<strong>do</strong> pelo Executivo Municipal como um mecanismo <strong>de</strong><br />
consulta e reconhecimento da realida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> a subjetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> movimento<br />
comunitário é silenciada, transformada em fornecimento <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s estatísticos para a<br />
promoção <strong>de</strong> uma “cida<strong>de</strong> melhor”.<br />
A partir <strong>de</strong> 1989 então, a FD Participacionista passa a falar também da posição da<br />
prefeitura. A mobilização <strong>do</strong>s seus saberes sofre coerções das novas <strong>condições</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>produção</strong> <strong>de</strong>sse <strong>discurso</strong>, e tem-se um contraste com a discursivida<strong>de</strong> autonomista <strong>do</strong>s<br />
Conselhos Populares, que quase <strong>de</strong>saparecem <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>.
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Os enuncia<strong>do</strong>s parecem continuar se estruturan<strong>do</strong> e dispersan<strong>do</strong>-se a partir da FD<br />
Participacionista, mesmo que outros pontos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva sugiram uma rearticulação da<br />
memória <strong>do</strong> dizer. Para além <strong>de</strong>ssa apropriação, <strong>produção</strong> <strong>de</strong> uma instância e<br />
capacida<strong>de</strong> enunciativa a partir <strong>de</strong> outro lugar, com o passar <strong>do</strong>s anos e com a<br />
normatização <strong>do</strong> OP, seus agentes passaram a ser nomea<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> distinto, como<br />
socieda<strong>de</strong>, população, você e qualquer um.<br />
(4) a população [agora/Afinal]... é... que <strong>de</strong>fine as obras prioritárias e mais urgentes no seu<br />
bairro.<br />
(5) a socieda<strong>de</strong> / junto com o governo [No orçamento participativo]... <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>... as obras e<br />
investimentos da prefeitura!<br />
(6) Você <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>! (recortes da cartilha <strong>de</strong> promoção <strong>do</strong> Orçamento Participativa <strong>de</strong> 1992,<br />
retira<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Fonseca, 2005)<br />
Em Fonseca (2005) fica claro que temos aí um estranhamento entre as palavras e<br />
as coisas, e temos aí um acontecimento discursivo em meio aos dizeres<br />
participacionistas, até então muito calca<strong>do</strong>s na experiência histórica das comunida<strong>de</strong>s<br />
organizadas em seus locais <strong>de</strong> moradia, <strong>de</strong>pois transfigura<strong>do</strong> num compromisso direto<br />
entre prefeitura e movimento comunitário e, no último ano <strong>de</strong> gestão, algo que é ao<br />
mesmo tempo amplia<strong>do</strong> e enquadra<strong>do</strong> pelas instâncias <strong>do</strong> OP.<br />
A <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> você qualquer um que surge no <strong>discurso</strong>, na história a participação<br />
no OP continuou se dan<strong>do</strong> junto a setores específicos da socieda<strong>de</strong>, setores que, porém,<br />
foram aos poucos per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o “direito” à nomeação, per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o direito à reverberação<br />
<strong>de</strong> sua discursivida<strong>de</strong> e seus mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação. O movimento comunitário porto-<br />
alegrense foi sen<strong>do</strong> progressivamente silencia<strong>do</strong> no campo <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>. Sua<br />
participação já não fazia tanto senti<strong>do</strong> no momento em que o OP já aparecia enquanto<br />
um mecanismo objetivo, uma tecnologia/engenharia <strong>de</strong> discussão <strong>do</strong> orçamento. Isso<br />
que antes apontava para o campo <strong>do</strong> polêmico, <strong>do</strong> contraditório e <strong>do</strong> processual, com<br />
seus dizeres prenhes <strong>de</strong> futuro, pauta<strong>do</strong>s na construção <strong>de</strong> Conselhos Populares
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autônomos por toda cida<strong>de</strong> – o que nem o Zero Hora escondia, a <strong>de</strong>speito da má-<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> o dizer – passou a legitimar algo imaginariamente consensual, harmonizante<br />
e pragmático.<br />
O novo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivar o agente da participação na discussão <strong>do</strong> orçamento<br />
municipal acompanhou o <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> compromisso (histórico e subjetivo) com a<br />
soberania popular para o dispositivo (inova<strong>do</strong>r e objetivo) <strong>do</strong> orçamento discuti<strong>do</strong> com<br />
as comunida<strong>de</strong>s – com uma tecnologia <strong>de</strong> participação já estabelecida; com um conjunto<br />
já estabeleci<strong>do</strong> <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s representativas; e com um ainda irrealiza<strong>do</strong> mobiliza<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
<strong>discurso</strong> que se caracteriza pelo você/leitor, que é aquele que ou não ouviu falar <strong>do</strong> OP<br />
ou não sabe como funciona ou não se sente motiva<strong>do</strong> para participar, e que se<br />
caracteriza também como a promessa <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> melhor.<br />
PARA CONCLUIR<br />
A práxis discursiva <strong>do</strong> participacionismo da prefeitura, ao final <strong>de</strong>ssa gestão,<br />
aponta para a ampliação numérica da participação no OP, o que implica na busca <strong>de</strong><br />
outra legitimida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> outros laços com outros setores da socieda<strong>de</strong> civil. Tal<br />
compreensão se dá <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais efetivo através da consi<strong>de</strong>ração das <strong>condições</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>produção</strong> daquele <strong>discurso</strong> participacionista e, logo, das relações <strong>de</strong> força em jogo na<br />
prática política daqueles sujeitos históricos. Falta à prefeitura uma maioria parlamentar<br />
na Câmara Municipal, sobra uma hegemonia liberal e inci<strong>de</strong> também nesse processo a<br />
própria guinada i<strong>de</strong>ológica que o Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res efetua em 1991, no seu I<br />
Congresso (CÉSAR, 2002), quan<strong>do</strong> oficialmente aban<strong>do</strong>na a concepção <strong>de</strong> duplicida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, elemento nortea<strong>do</strong>r para a construção <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res autônomos no teci<strong>do</strong> da<br />
socieda<strong>de</strong> civil.
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É <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong> que surge na cena participacionista um novo sujeito histórico e<br />
imaginário, o qualquer um, o você-indivíduo, voluntário e cidadão, peça elementar <strong>de</strong><br />
outra cena e <strong>de</strong> outro horizonte <strong>de</strong> expectativas, o <strong>do</strong> discursivo da cidadania liberal.<br />
Pretendi mostrar, nestas breves consi<strong>de</strong>rações, o quanto a consi<strong>de</strong>ração das<br />
<strong>condições</strong> <strong>de</strong> <strong>produção</strong> po<strong>de</strong> intervir <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> expressivo e consequente ao longo <strong>do</strong><br />
trabalho em análise <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>, pois que sobre a discursivida<strong>de</strong> inci<strong>de</strong>m tanto relações<br />
<strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, com base no campo <strong>do</strong> simbólico, quanto relações <strong>de</strong> força, com base na<br />
materialida<strong>de</strong> histórica.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Recebi<strong>do</strong> em setembro <strong>de</strong> 2010<br />
Aprova<strong>do</strong> em outubro <strong>de</strong> 2010<br />
CÉSAR, Benedito Ta<strong>de</strong>u. PT: a contemporaneida<strong>de</strong> possível – base social e projeto<br />
político (1980-1991). Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul: Editora Universida<strong>de</strong>/UFRGS, 2002.<br />
COURTINE, Jean-Jacques. Análise <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> político: o <strong>discurso</strong> comunista<br />
en<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> aos cristãos. São Carlos: EdUFSCar, 2009.<br />
FONSECA, Rodrigo Oliveira. Dos fins aos meios, da história ao <strong>discurso</strong>:<br />
enquadramento e ampliação no Orçamento Participativo <strong>de</strong> Porto Alegre.<br />
Departamento <strong>de</strong> História / Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica <strong>do</strong> Rio (dissertação <strong>de</strong><br />
mestra<strong>do</strong>), 2005.<br />
GUILHAUMOU, Jacques. Linguística e História: percursos analíticos <strong>de</strong><br />
acontecimentos discursivos. Coor<strong>de</strong>nação e tradução <strong>de</strong> Roberto Leiser Baronas e Fábio<br />
César Montanheiro. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2009.<br />
GUILHAUMOU, J. & MALDIDIER, D. Efeitos <strong>do</strong> arquivo: a análise <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> no<br />
la<strong>do</strong> da história. Tradução <strong>de</strong> Suzy Lagazzi e José Horta Nunes. In: ORLANDI (org).<br />
Gestos <strong>de</strong> Leitura: da história no <strong>discurso</strong>. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994,<br />
pp. 163-181.
Revista <strong>Icarahy</strong><br />
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HENRY, Paul. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e <strong>discurso</strong>. Tradução <strong>de</strong> Maria<br />
Fausta Pereira <strong>de</strong> Castro. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992.<br />
MARX, Karl. O 18 Brumário <strong>de</strong> Luís Bonaparte. Lisboa: Editora Ventos <strong>do</strong> Leste,<br />
1975.<br />
PÊCHEUX, Michel. Análise Automática <strong>do</strong> Discurso. Tradução <strong>de</strong> Eni Orlandi. In:<br />
GADET, F. & HAK, T. (org.). Por uma análise automática <strong>do</strong> <strong>discurso</strong>. 3ª edição.<br />
Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1990, pp. 61-151.<br />
_______. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação <strong>do</strong> óbvio. Tradução <strong>de</strong> Eni<br />
Orlandi [et al.]. 3ª edição. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997.<br />
PÊCHEUX, M. et al. Ouverture du Colloque. In: Colloque Matérialités Discursives.<br />
Lille: Presses Universitaire <strong>de</strong> Lille, 1981.<br />
RANCIÈRE, Jacques. O <strong>de</strong>sentendimento: política e filosofia. Tradução <strong>de</strong> Ângela<br />
Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996.<br />
1 “Os homens fazem a sua própria história mas não a fazem arbitrariamente, em <strong>condições</strong> escolhidas por<br />
eles, mas sim em <strong>condições</strong> diretamente herdadas e transmitidas pelo passa<strong>do</strong>. A tradição <strong>de</strong> todas as<br />
gerações pesa muito sobre o cérebro <strong>do</strong>s vivos. E mesmo quan<strong>do</strong> parecem ocupa<strong>do</strong>s em transformar-se, a<br />
eles e às coisas, em criar algo absolutamente novo, é precisamente nessas épocas <strong>de</strong> crise revolucionária<br />
que evocam respeitosamente os espíritos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong>-lhe <strong>de</strong> empréstimo os nomes, as palavras<br />
<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, as roupagens, para surgir no novo palco da história sob esse respeitável disfarce e com essa<br />
linguagem emprestada” (MARX, 1975: 17).<br />
2 Que seguirão nos acompanhan<strong>do</strong> por muito tempo, visto que, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Paul Henry, a psicanálise e<br />
o materialismo histórico ten<strong>de</strong>m a não encontrar lugar na universida<strong>de</strong> (HENRY, 1992: 141).<br />
3 Tema que estou trabalhan<strong>do</strong> agora no <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>.