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a anamorfose na escritura de antónio lobo antunes - revista Icarahy

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A ANAMORFOSE NA ESCRITURA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNESMaria Cristi<strong>na</strong> Chaves <strong>de</strong> Carvalho *RESUMO: Em conformida<strong>de</strong> com a pesquisa que vem sendo realizada no curso <strong>de</strong>doutorado em Literatura Comparada, este trabalho apresenta algumas reflexões quevisam ao exame <strong>de</strong> técnicas <strong>na</strong>rrativas que favorecem a revitalização da estéticabarroca, <strong>de</strong>stacando procedimentos <strong>de</strong> escrita como a polifonia, o culto à ambigüida<strong>de</strong> eao artifício, recurso engenhoso que po<strong>de</strong> vir a revelar uma escrita em <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong>. Oobjetivo <strong>de</strong>ste estudo é <strong>de</strong>monstrar <strong>de</strong> que modo a expressão da <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong> – comoforma modificada da escrita ou como reescrita textual da matéria <strong>na</strong>rrada – po<strong>de</strong> serconfigurada como um processo <strong>de</strong> criação que permeia a obra Que farei quando tudoar<strong>de</strong>?, <strong>de</strong> António Lobo Antunes. Para isso, as bases teóricas da tessitura a<strong>na</strong>lítica <strong>de</strong>Severo Sarduy <strong>de</strong>vem ser investigadas, porque convergem para a consagração do“artifício” como estratégia encarregada <strong>de</strong> simular a força da teatralização da <strong>escritura</strong>.Barroco, <strong>de</strong> Sarduy, é percorrido por mo<strong>de</strong>los cosmológicos e por essa influência emvárias formas <strong>de</strong> expressão artística. Partindo <strong>de</strong> uma cosmovisão barroca, Sarduyevi<strong>de</strong>ncia a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar <strong>de</strong>svios em relação ao centro, como faz a vertenteneobarroca, que situa a perspectiva num constante movimento <strong>de</strong> mudança,representado pela figura da elipse.PALAVRAS-CHAVE: Romance português contemporâneo; António Lobo Antunes;<strong>a<strong>na</strong>morfose</strong>; neobarroco.ABSTRACT: In accordance with the research which has been <strong>de</strong>veloped in theDoctorate Course in Comparative Literature, this work offers some reflections that aimthe study of <strong>na</strong>rrative techniques that favor the revitalization of the Barroque Aesthetic,emphasizing writing procedures such as the polyphony, the use of ambiguity, theingenious resource that may come to reveal a written form in a<strong>na</strong>morphosis. Theobjective of this study is to <strong>de</strong>monstrate how the expression of a<strong>na</strong>morphosis – as amodified form of writing or as a written form of the oral <strong>na</strong>rrative – may be representedas a creation process that permeates the novel Que farei quando tudo ar<strong>de</strong>?, by AntonioLobo Antunes. In or<strong>de</strong>r to meet this purpose, the theory and a<strong>na</strong>lysis of Severo Sarduy’swork need to be investigated, because they tend to highlight his special <strong>de</strong>vice –“artifício” – as a strategy <strong>de</strong>veloped to show theatrical features in the literary text.Barroco, by Sarduy, is perva<strong>de</strong>d with cosmological structures and with this influence onmany ways of artistic expression. Consi<strong>de</strong>ring a Baroque world view, Sarduy shows thenecessity of i<strong>de</strong>ntifying digressions, as a Neo-Baroque ten<strong>de</strong>ncy, which focuses theperspectives in a regular movement of changes, represented by the <strong>de</strong>vice of ellipsis.KEYWORDS: Portuguese mo<strong>de</strong>rn novel; António Lobo Antunes; a<strong>na</strong>morphosis;neobaroque.* Doutoranda em Literatura Comparada da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense (UFF).


Agora que estou no fim do meu relato tenhope<strong>na</strong> que acabe sempre tive pe<strong>na</strong> que seja oque for acabe [...] escrevo uma linha ou duas,apago, torno a escrever a não foi assim, nãofoi assim, um traço mais carregado por cimadas palavras, como as palavras continuamlegíveis um segundo traço <strong>de</strong>morado, muitostraços rápidos em xis e agora que a frase senão enten<strong>de</strong> tentar <strong>de</strong>cifrá-la porque afi<strong>na</strong>lera assim, refazê-la <strong>na</strong> cabeça e perdi-a,procurar a i<strong>de</strong>ia que <strong>de</strong>u origem à i<strong>de</strong>ia e nãoconsigo, ape<strong>na</strong>s vagos rostos informes.Não entres tão <strong>de</strong>pressa nessa noite escuraAntónio Lobo Antunes“Vagos rostos informes” é a imagem-chave que encontramos para orientar a nossaleitura da obra <strong>de</strong> António Lobo Antunes, escritor que parece buscar incessantementeuma estrutura nova para a sua escrita, <strong>de</strong>monstrada através <strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>formas, <strong>de</strong>sdobradas em mudanças constantes nos traços <strong>de</strong> sua escrita. Numa <strong>na</strong>rrativasem contornos <strong>de</strong>finidos, em que rostos e palavras parecem informes, a idéia <strong>de</strong>mutabilida<strong>de</strong> da forma nos faz refletir sobre a <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong> - motivo caro ao artistabarroco -, recuperada como um artifício utilizado <strong>na</strong> <strong>escritura</strong> <strong>de</strong>sse autor consagrado <strong>na</strong>literatura portuguesa contemporânea. 1Barroco, <strong>de</strong> Severo Sarduy, é um texto percorrido pela cosmovisão barroca,porque o autor percebe a influência <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los cosmológicos em várias formas <strong>de</strong>expressão artística. A cosmologia anterior ao barroco, geralmente i<strong>de</strong>ntificada comogeocentrismo, foi marcada pela noção <strong>de</strong> centro e associada à forma do círculo - <strong>na</strong>sconcepções cosmológicas da República <strong>de</strong> Platão, <strong>na</strong> cosmologia esférica <strong>de</strong> Aristóteles,ou ainda <strong>na</strong> ptolomaica. Severo Sarduy pon<strong>de</strong>ra sobre as construções <strong>de</strong> mundo, sobrecosmologias clássicas ou sobre a <strong>de</strong>scentralização <strong>de</strong>ssas mesmas referências canônicas,portanto, em função da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar os <strong>de</strong>svios em relação ao equilíbrio


cosmológico, o autor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese <strong>de</strong> que o movimento realizado pela figura da elipseoferece-nos uma outra perspectiva, impelida por um constante movimento <strong>de</strong> mudança.De acordo com Chiampi, “a elipse kepleria<strong>na</strong> (que <strong>de</strong>screve o trajeto da terra aoredor do sol) tem seu análogo <strong>na</strong> elipse da retórica barroca (o significante que <strong>de</strong>screveuma órbita ao redor <strong>de</strong> outro ausente ou excluído)” (CHIAMPI, 1998:31). Nessesentido, a elipse representa o <strong>de</strong>scentramento, a perturbação do círculo, e a arte passa aser capaz <strong>de</strong> traçar uma complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criações relativas à forma e ao conteúdo.Assim, não encontramos o mesmo espaço para obras que visam à simetria perfeita ou aoantropocentrismo, motivos que regulavam as produções culturais do re<strong>na</strong>scimento,período em que as manifestações artísticas eram apresentadas <strong>de</strong> maneira or<strong>de</strong><strong>na</strong>da,revelando-se como expressão da harmonia do Homem e do mundo.Contrapondo-se a essa or<strong>de</strong>m, o barroco vai ser caracterizado pelo <strong>de</strong>sequilíbrio epela paixão porque o artista está diante <strong>de</strong> uma nova consciência cósmica, <strong>de</strong> uma noção<strong>de</strong> espaço infinito e <strong>de</strong> um universo <strong>de</strong>scentrado. Desenvolve-se, portanto, uma noçãoangustiante do tempo sob a forma <strong>de</strong> fuga, dissolução e morte, que vai distinguir obarroco como um reflexo do efêmero e do instável. Da mesma maneira, <strong>na</strong> artecontemporânea, a estética neobarroca passa a representar uma subversão em relação aocentro. 2O nosso objetivo é <strong>de</strong>monstrar que a expressão da <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong> – como formamodificada da escrita ou como reescrita textual da matéria <strong>na</strong>rrada – po<strong>de</strong> serconfigurada como um procedimento estético que permeia algumas <strong>na</strong>rrativas <strong>de</strong>António Lobo Antunes. Segundo Maria Alzira Seixo, a <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong> atravessa toda a<strong>na</strong>rrativa <strong>de</strong> Não Entres tão <strong>de</strong>pressa nessa noite escura, e[...] vai condicio<strong>na</strong>r o próprio <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> complementação dos dados ficcio<strong>na</strong>is por parte doleitor, que se habitua a um esquema <strong>de</strong> variações refiguradas <strong>de</strong> um número <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do e


finito <strong>de</strong> situações e <strong>de</strong> perso<strong>na</strong>gens, que se repetem insistentemente sem se po<strong>de</strong>remcompletar. (SEIXO, 2002: 399).Nesse romance, publicado no ano 2000, o processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> António LoboAntunes parte da construção <strong>de</strong> um mundo sob o olhar das perso<strong>na</strong>gens que recuperamatravés da memória a história <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong>sestruturada e em processo <strong>de</strong><strong>de</strong>cadência. A perso<strong>na</strong>gem Maria Clara busca a sua própria historia no sótão da casa,que funcio<strong>na</strong> simultaneamente como local <strong>de</strong> interdição e <strong>de</strong> entrada para o<strong>de</strong>sconhecido, porque é nesse lugar que a perso<strong>na</strong>gem cria ou inventa as suas memórias.A partir <strong>de</strong>ssa incursão no sótão e através da recuperação <strong>de</strong> objetos e fotografias, relataa sua história e a <strong>de</strong> sua família. A protagonista passa a escrever um diário, com aintenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstruir uma <strong>na</strong>rrativa e “inventar” outras, obrigando o leitor a<strong>de</strong>slocar-se no texto diante <strong>de</strong> suas múltiplas histórias, as suas e as dos outros. Esseprocesso criativo po<strong>de</strong> ser compreendido como uma perspectiva em <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong>.Severo Sarduy esclarece:Dilatação <strong>de</strong> um contorno e duplicação do centro: ou antes, <strong>de</strong>slizar programado do ponto<strong>de</strong> vista, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a posição frontal até esse ponto máximo <strong>de</strong> lateralida<strong>de</strong> que permite aconstituição <strong>de</strong> uma outra figura regular: <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong>. (SARDUY, 1988:65)O romance Que farei quando tudo ar<strong>de</strong>?, publicado em 2001, trata também <strong>de</strong> umdrama familiar, <strong>na</strong>rra a vida e a morte do travesti Carlos - que se metamorfoseia emSoraia -, e das perso<strong>na</strong>gens a ele envolvidas: Paulo (filho <strong>de</strong> Carlos), Judite (mãe <strong>de</strong>Paulo) e Rui (marido <strong>de</strong> Soraia). De semelhante modo, como ocorre em Não entres tão<strong>de</strong>pressa nessa noite escura, os relatos têm origem <strong>na</strong> memória, através <strong>de</strong>laconstituídos e revelados pelos olhares <strong>de</strong> suas perso<strong>na</strong>gens, sobretudo pela perspectiva<strong>de</strong> Paulo, filho <strong>de</strong> Carlos, que <strong>na</strong>rra as múltiplas “verda<strong>de</strong>s” ou as várias histórias queescreve em seu diário.


sombra, como fez o artista barroco, ou como <strong>na</strong> estética neobarroca, uma vez que nãocontempla uma obra acabada, mas sim uma obra aberta (no sentido <strong>de</strong> estrutura aberta esegundo os princípios <strong>de</strong> Heinrich Wölfflin – as formas abertas do barroco), cujaestrutura apresenta lacu<strong>na</strong>s ou vazios a serem (ou não) preenchidos pelo leitor 3 . Aseguir, percebemos a relação conflitante entre Paulo, o pai (Carlos-Soraia) e a mãe, emvirtu<strong>de</strong> do envolvimento amoroso <strong>de</strong> Carlos-Soraia e Rui. O relato é <strong>de</strong> Paulo:[...] uma ruga <strong>na</strong> corti<strong>na</strong> e o meu pai a chamar-me, não vestido, <strong>de</strong> roupão e cabeleiraoblíqua, agra<strong>de</strong>cido ao Rui, enervando-se comigo_ Nunca me viste tu?e <strong>na</strong> cara <strong>de</strong>le não eu, a minha mãe a protestar calada ou recolhendo com o mindinho umpingo <strong>de</strong> <strong>de</strong>silusão para o interior da pálpebra_ Carlosas palavras a trotarem entre nós numa exaltação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertareunimo-los, reunimo-lospuxando-o, puxando-me, aproximando-nos, quer-se dizer aproximando-me <strong>de</strong>lee eu sem vonta<strong>de</strong> nenhumafilando-me a manga com pontos <strong>de</strong> exclamação <strong>de</strong> incisivos, pontos <strong>de</strong> suspensão <strong>de</strong>molares, o til do contorno dos lábios, o meu pai atento à maquilhagem, às meias que o<strong>de</strong>sajeitado do meu filhonunca vi uma coisa assimvai <strong>de</strong> certeza romper-me_ Detesto que me agarres (ANTUNES, 2001:468).Em outro ensaio <strong>de</strong> Severo Sarduy, intitulado “La simulación”, o autor asseguraque a <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong> é o discurso do espectador, pois neste caso há algo <strong>na</strong> obra <strong>de</strong> arte quelhe é ocultado, impelindo aquele que a aprecia a participar <strong>de</strong> sua feitura. A <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong>é uma rubrica das artes plásticas e representa uma figura, um objeto ou uma ce<strong>na</strong> <strong>de</strong>maneira que, quando contemplada frontalmente, tor<strong>na</strong>-se distorcida e até mesmoirreconhecível, aparecendo com niti<strong>de</strong>z somente quando vista <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>doângulo, a certa distância, ou ainda com o uso <strong>de</strong> lentes especiais, ou com a ajuda <strong>de</strong> umespelho curvo. Para Sarduy,A <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong> e o discurso do espectador como forma <strong>de</strong> ocultação: algo que se oculta aosujeito – e daí o seu mal estar – e não po<strong>de</strong> ser lido, revela mais que uma mudança <strong>de</strong> lugar.O sujeito está implicado <strong>na</strong> leitura do espetáculo, <strong>na</strong> tradução do discurso, precisamenteporque isso que <strong>de</strong> imediato não consegue ver ou ouvir o transforma diretamente no sujeito.


O inquietante é que a relação frontal do sujeito ao espetáculo não possa ser consi<strong>de</strong>radocomo algo adquirido com a certeza <strong>de</strong> uma premissa. (SARDUY, 1999: 1276-77, nossatradução) 4Desse modo, cabe ao leitor <strong>de</strong>slocar-se no texto porque precisa constantementeretomar vários aspectos da <strong>na</strong>rrativa, juntar os relatos a partir <strong>de</strong> memóriasfragmentadas, e situando-se em tempos e espaços que se superpõem ao longo <strong>de</strong> todo oromance. Nele, recolhemos os acontecimentos do presente – a <strong>de</strong>gradação <strong>de</strong> Rui e <strong>de</strong>Paulo pelo uso <strong>de</strong> drogas, os questio<strong>na</strong>mentos <strong>de</strong> Paulo acerca da distância entre pai efilho - e os do passado, quando Paulo vivia com os pais Carlos e Judite – a lembrançado portão da casa, do anão <strong>de</strong> gesso, do Tejo “e algures no Tejo” -, trazendo momentosda infância <strong>de</strong> Paulo que lhe <strong>de</strong>volvem momentaneamente a paz. Mas para Paulo esta éagora “uma paz difícil”:[...] o Rui a fitar o meu pai sem que o meu pai <strong>de</strong>sse por ele, a amparar o estômago em queuma dor, um incómodo [...] a tremura das mãos sem acertarem com o dinheiro que o meupai lhe oferecia <strong>na</strong> primeira sema<strong>na</strong> do mês e ele furtava <strong>na</strong>s restantes [...] se ao menos asletras ajudassem o meu pai a amarrotar e a alisar uma colcha, se lograsse conhecê-lo porintermédio do ca<strong>de</strong>rno com a mesma niti<strong>de</strong>z com que lhe noto as joiazinhas <strong>de</strong> vidro, se meelucidasse porquê, me ensi<strong>na</strong>sse a auxiliá-lo e por não saber auxiliá-lo este remorso quemascaro <strong>de</strong> indiferença, distância, <strong>na</strong>s alturas em que me interrogo acerca do que sinto porele a caneta, ocupada a cheirar <strong>na</strong>s ruí<strong>na</strong>s a do<strong>na</strong> Hele<strong>na</strong> ou os cabo-verdianos <strong>de</strong> Chelas,inunda-me a pági<strong>na</strong> <strong>de</strong> um mulato <strong>de</strong> óculos escuros que abre e fecha um canivete <strong>de</strong>criança numa encosta do rio, se tento perceber, para além <strong>de</strong>le, não o bairro da heroí<strong>na</strong>, nãoa pare<strong>de</strong>, não o gaio, o Tejo e algures no Tejo o que faz tantos anos procuro, meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> umportão, um anão <strong>de</strong> gesso sobre o frigorífico, a paz, uma paz difícil agora que o Rui_ Soraia (ANTUNES, 2001:466-467).Nesse romance <strong>de</strong> António Lobo Antunes existem interrogações relacio<strong>na</strong>das nãosomente à socieda<strong>de</strong> portuguesa, mas a todo o mundo circundante, atestando à sua<strong>escritura</strong> um caráter universal. Essa sobreposição <strong>de</strong> tempos, espaços e vozes confere à<strong>na</strong>rrativa uma característica fragmentária, assim como a do indivíduo <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong>mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>. Para um autor que <strong>de</strong>seja “transformar a arte do romance”, interessa-lhe, maisdo que contar uma história, propor um jogo com o leitor em suas <strong>na</strong>rrativas, <strong>de</strong>safiandooa persegui-lo com a mesma sensação que a <strong>de</strong> quem entra num labirinto. 5 Mas como


ficam as palavras nesse jogo, se são tão inquietas no romance que abriga o diário <strong>de</strong>Paulo? 6[...] as palavras todas quietas no ca<strong>de</strong>rnonunca mais as solto prometoabre-se a janela e os castanheiros, a vinhanenhuma frase a <strong>de</strong>smentir-me, a escapar-seo quintal mesmo aquinenhuma frase a <strong>de</strong>smentir-me salvo por um instante, um instantezinho não seassuste (ANTUNES, 2001:474-475).Esse modo não habitual <strong>de</strong> tratar a palavra po<strong>de</strong> ser compreendido neste estudo apartir da etimologia da palavra “<strong>a<strong>na</strong>morfose</strong>”, pois “morfose” significa a aquisição <strong>de</strong>uma forma, enquanto <strong>a<strong>na</strong>morfose</strong>, quer dizer “formado <strong>de</strong> novo”. Portanto, todo oprocesso <strong>de</strong> criação do autor culmi<strong>na</strong> em metamorfose, pois esta implica a mudançacompleta da forma. Logo, as vozes que pertencem a essas perso<strong>na</strong>gens cujos “vagosrostos” são informes, fazem parte <strong>de</strong> uma <strong>na</strong>rrativa marcada por uma perspectiva em<strong>a<strong>na</strong>morfose</strong>, cuja escrita in<strong>de</strong>finida se mantém em um processo contínuo <strong>de</strong> mudança,<strong>de</strong>sdobrando-se em metamorfose.Recebido em outubro <strong>de</strong> 2009Aprovado em novembro <strong>de</strong> 2009NOTAS1 O ensaísta Mourão-Ferreira, ao falar sobre a qualida<strong>de</strong> literária dos primeiros romances <strong>de</strong> AntonioLobo Antunes, afirma que eles [...] caracterizam-se por uma extrema <strong>de</strong>senvoltura <strong>de</strong> estrutura e escrita,em que os eventos se vêem convocados através <strong>de</strong> constantes mutações <strong>de</strong> planos temporais e em quemuito livremente funcio<strong>na</strong>m os processos <strong>de</strong> enca<strong>de</strong>amento ou <strong>de</strong> associação, numa linguagem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>riqueza imagística, por vezes mesmo ofegantemente barroca, que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o uso reiterado da gíria aregistos do mais transbordante lirismo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> certa obsessão escatológica à sugestiva oportunida<strong>de</strong> dasmais variadas alusões culturais (MOURÃO-FERREIRA, 198: 419).2 Na segunda meta<strong>de</strong> do século XX, a revitalização do barroco como um meio <strong>de</strong> expressão dasmanifestações artísticas contemporâneas surge a partir <strong>de</strong> uma proposta <strong>de</strong> autores latino-americanos,


entre os quais Lezama Lima, Alejo Carpentier e Severo Sarduy, este último autor <strong>de</strong> Barroco, obra queteoriza uma nova vertente estética <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>da “neobarroco”.3 Segundo Wölflin, são cinco os pares <strong>de</strong> conceitos fundamentais ao longo da história da arte. Um <strong>de</strong>lesdiz que “do clássico ao barroco a evolução se dá da forma fechada para a forma aberta. Embora toda aobra <strong>de</strong> arte se apresente como uma forma fechada e completa em si mesma, a comparação entre asformas clássicas e barrocas revela o segundo muito mais solto e flexível, enquanto o clássico obe<strong>de</strong>ce àsleis rígidas <strong>de</strong> construção. In: WÖLFFLIN, Henrich. Re<strong>na</strong>scença e Barroco. São Paulo: Perspectiva,2005:16.4 No ensaio “La simulación”, Sarduy diz que “La a<strong>na</strong>morfosis y el discurso <strong>de</strong>l a<strong>na</strong>lizante como forma <strong>de</strong>ocultación: algo que se oculta al sujeto – <strong>de</strong>l allí su malestar – que no se lê revelará más que gracias a umcambio <strong>de</strong> sitio. El sujeto está implicado em la lectura <strong>de</strong>l espectáculo, em el <strong>de</strong>sciframiento <strong>de</strong>l discurso,precisamente porque eso que <strong>de</strong> inmediato no logra oír o ver lo concierne directamente en tanto quesujeto. Lo inquietante es que la relacíon frontal <strong>de</strong>l sujeto al espetáculo no pueda consi<strong>de</strong>rarse como algoadquirido com la certeza <strong>de</strong> uma premisa.”. In: SARDUY, S. Obra Completa. Gustavo Guerrero yFrançois Wahl, coords, Madrid, ALLCA XX, Scipione Cultural, 1999:1276-77.5 Nuno Júdice <strong>de</strong>staca, em ensaio sobre a obra <strong>de</strong> António Lobo Antunes, as palavras do autor: “O quepretendo é transformar a arte do romance, a história é o menos importante [...] a intriga não me interessa,o que queria não é tanto que me lessem mas que vivessem o livro. As emoções são anteriores às palavrase o repto é traduzir essas emoções, tentar que as palavras ‘signifiquem’ essas emoções [...] Como fazemos poetas”. “Os mapas do humano em António Lobo Antunes”. In: A escrita e o mundo em António LoboAntunes. Actas do Colóquio Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora. Organização Eunice Cabral, CarlosJ.F. Jorge e Christine Zurbach. Lisboa: Dom Quixote: 2003. (JÚDICE, 2003: 316).6 Acerca <strong>de</strong>sse jogo lúdico entre o autor e o leitor, Barthes diz: “Esse leitor, é mister que eu o procure(que eu o “drague”), sem saber on<strong>de</strong> ele está. Um espaço <strong>de</strong> fruição fica então criado. Não é a “pessoa”do outro que me interessa, é o espaço: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma dialética do <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> uma imprevisão do<strong>de</strong>sfrute: que os dados não estejam lançados, que haja jogo. (BARTHES, 2004: 9).REFERÊNCIASANTUNES, António. Não entres tão <strong>de</strong>pressa nessa noite escura. 4ª. ed., Lisboa: DomQuixote, 2000.______. Que farei quando tudo ar<strong>de</strong>? 2ª. Ed., Lisboa: Dom Quixote, 2001.BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4ª ed., São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.CHIAMPI, Irlemar. Barroco e mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: ensaios sobre literatura latino-america<strong>na</strong>.São Paulo: Perspectiva, 1998.JÚDICE, Nuno. “Os Mapas do humano em António Lobo Antunes”. A escrita e omundo em Antonio Lobo Antunes. Actas do Colóquio Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>


Évora. Organização Eunice Cabral, Carlos J.F. Jorge e Christine Zurbach. Lisboa: DomQuixote: 2003.MOURÃO-FERREIRA, David & SEIXO, Maria Alzira. Portugal – A Terra e oHomem. Antologia <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> escritores do século XX. II Volume – 3ª. série.Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Imprensa Nacio<strong>na</strong>l-Casa da Moeda, 1981.SARDUY, Severo. Barroco. Tradução <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s Júdice e José Manuel <strong>de</strong>Vasconcelos. Lisboa: Veja Universida<strong>de</strong>, 1988.––––––. Obra Completa. Gustavo Guerrero y François Wahl, coords, Madrid, ALLCAXX, Scipione Cultural, 1999.SEIXO, Maria Alzira. Os romances <strong>de</strong> Antonio Lobo Antunes. Análise, interpretação,resumos e guiões <strong>de</strong> leitura. Lisboa: Dom Quixote, 2002.WÖLFFLIN, Heinrich. Re<strong>na</strong>scença e Barroco. São Paulo, Perspectiva, 2005.

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