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Curso de Formação em Política Internacional.p65

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Fundação Perseu Abramo<br />

Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores <strong>em</strong> maio <strong>de</strong> 1996.<br />

Diretoria<br />

Ricardo <strong>de</strong> Azevedo – Presi<strong>de</strong>nte<br />

Selma Rocha – Diretora<br />

Flávio Jorge Rodrigues da Silva – Diretor<br />

Editora Fundação Perseu Abramo<br />

Coor<strong>de</strong>nação Editorial<br />

Flamarion Maués<br />

Editora Assistente<br />

Sandra Brazil<br />

Revisão<br />

Maurício Balthazar Leal<br />

Capa<br />

Eliana Kestenbaum<br />

Editoração Eletrônica<br />

Enrique Pablo Gran<strong>de</strong><br />

Impressão<br />

Bartira Gráfica<br />

1a edição: junho <strong>de</strong> 2007<br />

Todos os direitos reservados à<br />

Editora Fundação Perseu Abramo<br />

Rua Francisco Cruz, 224<br />

04117-091 — São Paulo — SP — Brasil<br />

Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910<br />

Correio eletrônico: editora@fpabramo.org.br<br />

Visite a página eletrônica da Fundação Perseu Abramo<br />

http://www.fpabramo.org.br<br />

Copyright © 2007 by autores<br />

ISBN 978-85-7643-038-4<br />

Dados Internacionais <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)<br />

C977 <strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional / [organização <strong>de</strong>] Mila Frati. – São<br />

Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.<br />

288 p.<br />

ISBN 978-85-7643-038-4<br />

1. <strong>Política</strong> internacional. 2. Ásia – Europa – América – Oriente Médio –<br />

África. 3. Capitalismo. 4. Relações internacionais. 5. Movimentos sociais. 6.<br />

<strong>Política</strong> <strong>de</strong> esquerda.. I. Frati, Mila.<br />

CDU<br />

327<br />

CDD 327<br />

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 2<br />

5/6/2007, 12:39


Sumário<br />

Apresentação .............................................................................................. 5<br />

Mapas – organização política 2007 ............................................................. 7<br />

A teoria, as instituições<br />

e os gran<strong>de</strong>s t<strong>em</strong>as das relações internacionais ....................................... 15<br />

Kjeld Jakobsen<br />

Retalhos para uma história dos movimentos<br />

contra a globalização neoliberal ................................................................ 35<br />

Gustavo Codas<br />

Capitalismo, imperialismo e relações internacionais ................................. 54<br />

Valter Pomar<br />

A evolução histórica da Europa ................................................................ 75<br />

Kjeld Jakobsen<br />

Um olhar sobre a Ásia .............................................................................. 92<br />

Wladimir Pomar<br />

Um olhar sobre a Índia............................................................................ 108<br />

Wladimir Pomar<br />

A Santa Rússia: Mo<strong>de</strong>rnização e atraso ................................................. 126<br />

Daniel Aarão Reis Filho<br />

O petróleo do Golfo Pérsico, ponto-chave<br />

da estratégia global dos Estados Unidos ................................................. 147<br />

Igor Fuser<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 3<br />

5/6/2007, 12:39<br />

3


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Altos e baixos na África Austral ............................................................. 165<br />

Beluce Bellucci<br />

A América Latina na história do capitalismo .......................................... 184<br />

Roberto Regalado<br />

A trajetória do Brasil: Construção nacional e inserção internacional ..... 203<br />

Alexandre Fortes<br />

A política internacional do Brasil e suas fases........................................ 219<br />

Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

Rupturas e continuida<strong>de</strong>s da política comercial do governo Lula .......... 247<br />

Fátima V. Mello<br />

Integração regional e construção da <strong>de</strong>mocracia na América do Sul .... 263<br />

Ana Maria Stuart<br />

Livros indicados ....................................................................................... 281<br />

Filmes indicados ...................................................................................... 287<br />

4<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 4<br />

5/6/2007, 12:39


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional Prefácio<br />

Apresentação<br />

A Fundação Perseu Abramo e a Secretaria <strong>de</strong> Relações Internacionais do<br />

Partido dos Trabalhadores (PT), com apoio da Secretaria Nacional <strong>de</strong> <strong>Formação</strong><br />

<strong>Política</strong> do PT e da Fundação Rosa Lux<strong>em</strong>burgo, da Al<strong>em</strong>anha, organizaram<br />

o Primeiro <strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>. Realizado<br />

<strong>de</strong> 15 a 30 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2007, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, o curso t<strong>em</strong><br />

como objetivos estudar e refletir sobre:<br />

a) a situação internacional, seus principais conflitos e <strong>de</strong>bates; os principais<br />

países, as instituições internacionais e o comércio internacional; o <strong>de</strong>bate sobre<br />

os gran<strong>de</strong>s t<strong>em</strong>as internacionais: meio ambiente, energia, migrações;<br />

b) a situação atual da luta dos trabalhadores, <strong>em</strong> suas várias dimensões; os<br />

partidos políticos, as organizações internacionais, os movimentos sociais e as centrais<br />

sindicais; o Fórum Social Mundial; os governos <strong>de</strong> esquerda e progressistas;<br />

c) o surgimento, a evolução e o estágio atual do capitalismo, dando ênfase<br />

aos <strong>de</strong>bates atuais sobre o imperialismo, a globalização, a mundialização<br />

e a financeirização;<br />

d) a evolução histórica e a situação das gran<strong>de</strong>s regiões do mundo: Estados<br />

Unidos, Europa, Eurásia, Oriente Médio, África, América Latina e Caribe;<br />

e) as relações Estados Unidos/América Latina;<br />

f) a evolução histórica do Brasil, as gran<strong>de</strong>s correntes da política externa<br />

no Brasil, a política externa e a política comercial do governo brasileiro;<br />

g) os nacionalismos, os socialismos, o internacionalismo hoje e a integração<br />

do continente americano.<br />

Os professores convidados a tratar <strong>de</strong>stes t<strong>em</strong>as foram também convidados<br />

a contribuir para este livro, que t<strong>em</strong> portanto como objetivo principal<br />

subsidiar o Primeiro <strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 5<br />

5/6/2007, 12:39<br />

5


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Entretanto, dada a qualida<strong>de</strong> das contribuições, esta coletânea possui<br />

também um valor autônomo e po<strong>de</strong> servir para a auto-formação <strong>de</strong> todos<br />

aqueles que não tiveram a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar do curso. Além dos<br />

textos, foram incluídos nesta edição mapas da organização política <strong>de</strong> todos<br />

os continentes, um mapa-múndi e duas listas com livros e filmes indicados,<br />

que <strong>de</strong>stacam obras <strong>de</strong> ficção e abordam, <strong>de</strong> forma geral, os t<strong>em</strong>as do curso.<br />

Trabalhar<strong>em</strong>os para que, ao longo dos próximos anos, possamos realizar<br />

novos cursos <strong>de</strong> formação (inclusive a distância), b<strong>em</strong> como produzir novas<br />

publicações (livros e ví<strong>de</strong>os) acerca dos gran<strong>de</strong>s t<strong>em</strong>as mundiais, da política<br />

externa do Brasil e da política <strong>de</strong> relações internacionais da esquerda.<br />

6<br />

Ricardo <strong>de</strong> Azevedo, presi<strong>de</strong>nte da<br />

Fundação Perseu Abramo<br />

Valter Pomar, secretário <strong>de</strong> Relações<br />

Internacionais do Partido dos Trabalhadores<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 6<br />

5/6/2007, 12:39


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 7<br />

5/6/2007, 12:39<br />

7


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política AMÉRICA internacional DO SUL<br />

AMÉRICA<br />

CENTRAL<br />

Equador<br />

Quito<br />

EQUADOR<br />

Trópico <strong>de</strong> Capricórnio<br />

RU - REINO UNIDO<br />

FRA - FRANÇA<br />

8<br />

PERU<br />

OCEANO<br />

PACÍFICO<br />

COLÔMBIA<br />

Lima<br />

Bogotá<br />

Santiago<br />

CHILE<br />

Caracas<br />

VENEZUELA<br />

La Paz<br />

Sucre<br />

BOLÍVIA<br />

Buenos Aires<br />

ARGENTINA<br />

Georgetown<br />

Paramaribo<br />

GUIANA<br />

Caiena<br />

SURINAME<br />

Guiana Francesa (FRA)<br />

PARAGUAI<br />

Assunção<br />

Montevidéu<br />

Ilhas Falkland (Ilhas Malvinas)<br />

(RU)<br />

Port Stanley<br />

ANTÁRTIDA<br />

URUGUAI<br />

BRASIL<br />

Brasília<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 8<br />

5/6/2007, 12:40<br />

OCEANO<br />

ATLÂNTICO<br />

0 410 820<br />

km


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 9<br />

5/6/2007, 12:40<br />

9<br />

ÁSIA<br />

OCEANO<br />

PACÍFICO<br />

Círculo Polar Ártico<br />

Alasca<br />

(EUA)<br />

0 635 1270<br />

km<br />

OCEANO<br />

GLACIAL ÁRTICO<br />

CANADÁ<br />

AMÉRICA<br />

DO NORTE<br />

ESTADOS UNIDOS<br />

MÉXICO<br />

Cida<strong>de</strong><br />

do México<br />

AMÉRICA DO NORTE E AMÉRICA CENTRAL<br />

Ottawa<br />

Washington<br />

Groenlândia<br />

(DIN)<br />

AMÉRICA<br />

CENTRAL<br />

Trópico <strong>de</strong> Câncer<br />

OCEANO<br />

PACÍFICO<br />

AMÉRICA DO SUL<br />

Golfo do México<br />

AMÉRICA<br />

DO NORTE<br />

GUATEMALA<br />

Guat<strong>em</strong>ala<br />

San Salvador<br />

EL SALVADOR<br />

Belmopan<br />

BELIZE<br />

HONDURAS<br />

Tegucigalpa<br />

EUROPA<br />

NICARÁGUA<br />

Manágua<br />

Lago <strong>de</strong> Nicarágua<br />

San José<br />

COSTA RICA<br />

ESTADOS<br />

UNIDOS<br />

OCEANO<br />

ATLÂNTICO<br />

G R A N D E S A N T I L H A S<br />

OCEANO<br />

ATLÂNTICO<br />

ÁFRICA<br />

Havana<br />

Ilhas Virgens<br />

Ilhas Turks e Caicos<br />

Americanas<br />

CUBA<br />

(RU)<br />

Ilhas Virgens<br />

Britânicas<br />

Ilhas Cayman<br />

Anguilla (RU)<br />

(RU)<br />

HAITI<br />

REPÚBLICA Porto Rico<br />

DOMINICANA (EUA)<br />

JAMAICA<br />

ANTÍGUA E<br />

Porto Príncipe<br />

Santo Domingo San Juan<br />

BARBUDA<br />

Kingston<br />

SÃO CRISTÓVÃO E NÉVIS St. John’s<br />

Basseterre Guadalupe<br />

Montserrat (RU) (FRA)<br />

MAR DAS ANTILHAS<br />

(MAR DO CARIBE)<br />

PEQUENAS<br />

ANTILHAS<br />

DOMINICA Martinica<br />

Roseau (FRA)<br />

SANTA LÚCIA Castries<br />

BARBADOS Bridgetown<br />

Antilhas<br />

Aruba Holan<strong>de</strong>sas<br />

(HOL) (HOL)<br />

SÃO VICENTE<br />

E GRANADINAS Kingstown<br />

St. George’s GRANADA<br />

Port of Spain<br />

TRINIDAD<br />

E TOBAGO<br />

PANAMÁ<br />

Panamá<br />

B A H A M A S<br />

Nassau<br />

0 465<br />

km<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

RU - REINO UNIDO<br />

EUA - ESTADOS UNIDOS<br />

FRA - FRANÇA<br />

DIN - DINAMARCA<br />

HOL - HOLANDA


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

10<br />

Ma<strong>de</strong>ira<br />

(POR)<br />

Ilhas Canárias<br />

(ESP)<br />

El Aaiun<br />

SAARA<br />

OCIDENTAL<br />

Trópico <strong>de</strong> Câncer<br />

OCEANO<br />

ATLÂNTICO<br />

Ilha Sta. Helena<br />

(RUN)<br />

Rabat<br />

MARROCOS<br />

EUROPA<br />

GANA<br />

TOGO<br />

BENIN<br />

Argel<br />

ARGÉLIA<br />

Túnis<br />

TUNÍSIA<br />

Trípoli<br />

LÍBIA<br />

ANGOLA<br />

Cida<strong>de</strong><br />

do Cabo<br />

ZÂMBIA<br />

Lusaka<br />

Cairo<br />

EGITO<br />

Harare<br />

ZIMBÁBUE<br />

NAMÍBIA<br />

BOTSUANA<br />

Windhoek<br />

Gaborone Pretória<br />

Lilongüe<br />

MALAUÍ<br />

Maputo<br />

Mbabane<br />

Blo<strong>em</strong>fontein SUAZILÂNDIA<br />

Maseru<br />

ÁFRICA LESOTO<br />

DO SUL<br />

MAR VERMELHO<br />

CABO<br />

MAURITÂNIA<br />

VERDE Nuakchott<br />

MALI<br />

NÍGER<br />

Praia<br />

Dacar<br />

CHADE<br />

SENEGAL<br />

Banjul GÂMBIA Bamaco<br />

BURKINA Niamei<br />

FASSO<br />

Bissau<br />

Ndjamena<br />

GUINÉ-BISSAU<br />

Uagadugu<br />

GUINÉ<br />

NIGÉRIA<br />

Conacri<br />

SERRA LEOA COSTA DO<br />

Abuja<br />

Freetown<br />

MARFIM<br />

REPÚBLICA<br />

Monróvia<br />

Lomé<br />

Yamoussoukro Porto<br />

CAMARÕES CENTRO-<br />

LIBÉRIA<br />

Acra Novo<br />

Bangui AFRICANA<br />

Cartum<br />

SUDÃO<br />

Asmará<br />

ERITRÉIA<br />

DJIBUTI<br />

Djibuti<br />

Adis-Abeba<br />

ETIÓPIA<br />

SOMÁLIA<br />

Equador<br />

Malabo<br />

GUINÉ EQUATORIAL<br />

São Tomé<br />

Iaundé<br />

Libreville<br />

UGANDA<br />

QUÊNIA<br />

Campala<br />

Mogadíscio<br />

SÃO TOMÉ<br />

E PRÍNCIPE<br />

GABÃO CONGO REPÚBLICA<br />

DEMOCRÁTICA<br />

Brazzaville<br />

DO CONGO<br />

Kinshasa<br />

Kigali RUANDA<br />

Bujumbura<br />

BURUNDI<br />

Nairóbi<br />

OCEANO<br />

ÍNDICO<br />

Vitória<br />

ILHAS<br />

Luanda<br />

TANZÂNIA<br />

Daar es Salaam<br />

SEICHELES<br />

Trópico <strong>de</strong> Capricórnio<br />

0 625 1250<br />

km<br />

ÁFRICA<br />

MAR MEDITARRÂNEO<br />

ÁSIA<br />

MOÇAMBIQUE<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 10<br />

5/6/2007, 12:40<br />

Moroni<br />

COMORES<br />

Antananarivo<br />

MADAGÁSCAR Port Louis<br />

MAURÍCIO<br />

St. Denis<br />

Ilha da Reunião<br />

(FRA)<br />

POR - PORTUGAL<br />

ESP - ESPANHA


OCEANO<br />

ATLÂNTICO<br />

MAR MEDITERRÂNEO<br />

Equador<br />

MAR NEGRO<br />

MAR VERMELHO Golfo <strong>de</strong> Á<strong>de</strong>n<br />

EUROPA<br />

M AR CÁSPIO<br />

MAR DE<br />

BARENTS<br />

MAR DE<br />

KARA<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

OCEANO GLACIAL<br />

ÁRTICO<br />

MAR DE<br />

LAPTEV<br />

FEDERAÇÃO RUSSA<br />

(parte asiática)<br />

MAR DA<br />

SIBÉRIA<br />

I<br />

N D O N É SI A<br />

Jacarta<br />

MAR DE<br />

OKHOTSK<br />

MAR DE<br />

BERING<br />

MAR<br />

DO<br />

JAPÃO<br />

Ancara<br />

Astana<br />

(MAR DO<br />

LESTE)<br />

TURQUIA<br />

JAPÃO<br />

(parte asiática)<br />

Ulan Bator<br />

CORÉIA<br />

Nicósia<br />

MAR CAZAQUISTÃO<br />

DO NORTE Tóquio<br />

DE<br />

CHIPRE<br />

ARAL<br />

MONGÓLIA<br />

Pyongyang<br />

LÍBANO<br />

Beirute SÍRIA<br />

UZBEQUISTÃO<br />

Seul<br />

Pequim<br />

Telaviv Damasco<br />

CORÉIA<br />

ISRAEL<br />

TURCOMENISTÃO Tashkent<br />

EGITO<br />

Amã<br />

Bishkek<br />

DO SUL<br />

IRAQUE<br />

QUIRGUISTÃO<br />

(parte asiática) JORDÂNIA Teerã<br />

Ashkhabad Dushanbe<br />

Bagdá<br />

MAR<br />

TADJIQUISTÃO<br />

AMARELO<br />

Basra IRÃ<br />

KUWAIT<br />

Cida<strong>de</strong><br />

Cabul<br />

<strong>de</strong> Kuwait<br />

CHINA<br />

AFEGANISTÃO<br />

Islamabad<br />

BAREIN<br />

Riad Manama<br />

CATAR Doha<br />

Taipé<br />

PAQUISTÃO<br />

ARÁBIA<br />

Abu Dhabi<br />

TAIWAN<br />

EMIRADOS<br />

NEPAL BUTÃO<br />

SAUDITA ÁRABES<br />

Nova<br />

Mascate<br />

UNIDOS<br />

Délhi Katmandu Timfu<br />

Macau<br />

BANGLADESH<br />

Hong Kong<br />

MAR DA<br />

Sanaa OMÃ<br />

Daca<br />

Hanói MAR DO<br />

ARÁBIA<br />

IÊMEN<br />

MIANMAR<br />

SUL DA<br />

ÍNDIA<br />

LAOS<br />

CHINA<br />

FILIPINAS<br />

Vientiane<br />

Manila<br />

Baía <strong>de</strong> Yangun<br />

Ilhas Socotra<br />

Bengala<br />

TAILÂNDIA VIETNÃ<br />

(IEM)<br />

Bangcoc<br />

ÁFRICA<br />

CAMBOJA<br />

Phnom Penh<br />

SRI LANKA<br />

BRUNEI<br />

Bandar<br />

Seri Begawan<br />

Male<br />

MALDIVAS<br />

Colombo<br />

M A L Á S I A<br />

Kuala Lumpur<br />

Cingapura<br />

CINGAPURA<br />

Trópico <strong>de</strong> Câncer<br />

0 815 1630<br />

km<br />

Círculo Polar Ártico<br />

OCEANO<br />

ÍNDICO<br />

ÁSIA<br />

IEM - IÊMEN<br />

Estreito <strong>de</strong> Bering<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 11<br />

5/6/2007, 12:40<br />

OCEANO<br />

PACÍFICO<br />

TIMOR LESTE<br />

Dili<br />

OCEANIA<br />

11


ÁSIA<br />

MAR DO<br />

SUL DA<br />

CHINA<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

12<br />

MAR DO<br />

JAPÃO<br />

(MAR DA<br />

CHINA)<br />

Koror<br />

AUSTRÁLIA<br />

OCEANO<br />

ÍNDICO<br />

PALAU<br />

Ilhas Ogasawara<br />

(JAP)<br />

Guam<br />

(EUA)<br />

Ilhas<br />

Marianas do<br />

Norte (EUA)<br />

Saipan<br />

Hagatna<br />

PAPUA<br />

NOVA GUINÉ<br />

Port Moresby<br />

Canberra<br />

Palikir<br />

MICRONÉSIA<br />

MAR DE<br />

CORAL<br />

Honiara<br />

Ilhas<br />

Marshall<br />

VANUATU<br />

Nova Caledônia<br />

(FRA)<br />

Yaren<br />

NAURU<br />

Ilhas<br />

Salomão<br />

MAR DA<br />

TASMÂNIA<br />

OCEANIA<br />

Ilhas Wake<br />

(EUA)<br />

Dalap-<br />

Uliga-Darret<br />

Bairiki<br />

K I R I B A T I<br />

TUVALU<br />

Toquelau<br />

Fongafale<br />

(NZL)<br />

Samoa<br />

Ilhas Wallis SAMOA Americana<br />

e Futuna (EUA)<br />

(FRA) Ápia Pago Pago Ilhas<br />

Suva<br />

Porto-Vila<br />

TONGA Niue (NZL)<br />

Alofi<br />

Cook<br />

(NZL)<br />

Nouméa<br />

FIJI<br />

Nukualofa<br />

Avarua<br />

Wellington<br />

NOVA<br />

ZELÂNDIA<br />

OCEANO<br />

PACÍFICO<br />

Havaí<br />

(EUA)<br />

RU - REINO UNIDO<br />

EUA - ESTADOS UNIDOS<br />

FRA - FRANÇA<br />

DIN - DINAMARCA<br />

HOL - HOLANDA<br />

JAP - JAPÃO<br />

NZL - NOVA ZELÂNDIA<br />

Honolulu<br />

Papeete<br />

Polinésia<br />

Francesa<br />

(FRA)<br />

Trópico <strong>de</strong> Capricórnio<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 12<br />

5/6/2007, 12:40<br />

Trópico <strong>de</strong> Câncer<br />

Equador<br />

Ilhas Pitcairn<br />

(RU)<br />

Adamstown<br />

0 700 1400<br />

km


OCEANO<br />

ATLÂNTICO<br />

Reykjavik<br />

ISLÂNDIA<br />

MAR DA<br />

NORUEGA<br />

NORUEGA<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

OCEANO GLACIAL ÁRTICO<br />

SUÉCIA<br />

FINLÂNDIA<br />

FEDERAÇÃO RUSSA (FR)<br />

MAR DO<br />

NORTE<br />

DINAMARCA<br />

ESTÔNIA<br />

LETÔNIA<br />

LITUÂNIA<br />

(parte européia)<br />

HOLANDA<br />

POLÔNIA BELARUS<br />

ALEMANHA<br />

RTC<br />

ESL<br />

UCRÂNIA<br />

FRANÇA<br />

SUÍÇA<br />

MOLDÁVIA<br />

ESV HUNGRIA<br />

ROMÊNIA<br />

CRO<br />

BHE<br />

SÉRVIA<br />

MONTENEGRO<br />

MAR<br />

TIRRENO<br />

MAR<br />

JÔNICO<br />

ÁSIA<br />

GEÓRGIA<br />

AZERBAIJÃO<br />

ARMÊNIA<br />

AZERB.<br />

LCH Oslo<br />

Helsinque<br />

RU<br />

IRLANDA<br />

Dublin<br />

REINO<br />

UNIDO<br />

Copenhague<br />

DINAMARCA<br />

Tallinn<br />

Estocolmo<br />

Riga<br />

KALININGRADO Vilnius<br />

(FR)<br />

Moscou<br />

Londres HOLANDA<br />

Minsk<br />

Amsterdã Berlim<br />

Bruxelas<br />

BÉLGICA<br />

LUXEMBURGO Praga<br />

Paris<br />

Lux<strong>em</strong>burgo<br />

Varsóvia<br />

Kiev<br />

Berna<br />

Viena<br />

ÁUSTRIA<br />

Bratislava<br />

Budapeste<br />

Chisinau<br />

ANDORRA<br />

PORTUGAL<br />

Madri Andorra la Vella<br />

Lisboa<br />

ESPANHA<br />

Liubliana<br />

ITÁLIA<br />

Zagreb<br />

Belgrado<br />

MÔNACO<br />

Bucareste<br />

SAN MARINO<br />

San<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Marino Sarajevo<br />

Mônaco<br />

BULGÁRIA<br />

Córsega<br />

MONTENEGRO<br />

VATICANO<br />

Podgorica<br />

Sófia<br />

Cida<strong>de</strong> do Roma<br />

Tirana<br />

Skopje<br />

Vaticano<br />

TURQUIA<br />

MACEDÔNIA (parte européia)<br />

Sar<strong>de</strong>nha<br />

ALBÂNIA<br />

GRÉCIA<br />

MAR NEGRO<br />

Baku<br />

Tbilisi<br />

Yerevan<br />

Estreito <strong>de</strong> Gibraltar<br />

Círculo Polar Ártico<br />

0 385 770<br />

km<br />

Canal da Mancha<br />

ÁFRICA<br />

Sicília<br />

MAR ADRIÁTICO<br />

M A R M E D I T E R R Â N E O<br />

MALTA<br />

Valletta<br />

EUROPA<br />

MAR BÁLTICO<br />

MAR EGEU<br />

Atenas<br />

Creta<br />

MAR DE<br />

BARENTS<br />

Nicósia<br />

CHIPRE<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 13<br />

5/6/2007, 12:40<br />

MONTES URAIS<br />

13<br />

ÁSIA<br />

MAR CÁSPIO<br />

BHE - BÓSNIA-HERZEGÓVINA<br />

CRO - CROÁCIA<br />

ESL - ESLOVÁQUIA<br />

ESV - ESLOVÊNIA<br />

FR - FEDERAÇÃO RUSSA<br />

LCH - LIECHTENSTEIN<br />

RTC - REPÚBLICA TCHECA<br />

RU - REINO UNIDO


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

14<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 14<br />

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A teoria, as instituições e os<br />

gran<strong>de</strong>s t<strong>em</strong>as das relações<br />

internacionais<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

Kjeld Jakobsen 1<br />

Kjeld Jakobsen<br />

Diariamente quando l<strong>em</strong>os os jornais ou assistimos aos noticiários na<br />

TV, tomamos conhecimento dos fatos ocorridos <strong>em</strong> outros países, dos conflitos<br />

entre países ou <strong>de</strong> medidas adotadas por <strong>de</strong>terminadas instituições<br />

internacionais. Esses fatos freqüent<strong>em</strong>ente se transformam <strong>em</strong> políticas que<br />

po<strong>de</strong>m ter repercussão para nós, diretamente ou não.<br />

A disciplina que trata das relações entre as “nações” chama-se relações<br />

internacionais. Como afirmou o professor francês Marcel Merle, “as relações<br />

internacionais pa<strong>de</strong>c<strong>em</strong> do fato <strong>de</strong> <strong>de</strong>signar ao mesmo t<strong>em</strong>po um campo<br />

<strong>de</strong> investigação e a disciplina que serve para investigá-lo” (Merle, apud<br />

Rodrigues, 1994, p. 12).<br />

O estudo <strong>de</strong> relações internacionais consi<strong>de</strong>rado mais antigo é a obra <strong>de</strong><br />

Tucídi<strong>de</strong>s (471-400 a.C.) intitulada Guerra do Peloponeso, que analisa as<br />

relações entre as cida<strong>de</strong>s-Estado da Grécia antiga, particularmente a guerra<br />

entre Esparta e Atenas, os interesses envolvidos e as alianças constituídas<br />

para <strong>de</strong>fendê-los.<br />

Esta disciplina constitui um campo científico in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das ciências<br />

sociais e <strong>de</strong>riva principalmente da ciência política, mantendo estreita relação<br />

com o direito, a história, a economia e a sociologia, entre outras disciplinas.<br />

O presente texto, além <strong>de</strong>ste comentário inicial, apresenta quatro outras<br />

partes: as principais teorias <strong>de</strong> relações internacionais; os gran<strong>de</strong>s t<strong>em</strong>as<br />

1 Ex-secretário <strong>de</strong> Relações Internacionais da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da prefeitura<br />

do município <strong>de</strong> São Paulo, atualmente é consultor <strong>em</strong> relações internacionais.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 15<br />

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15


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

internacionais da atualida<strong>de</strong>; as principais organizações internacionais; a<br />

bibliografia e as recomendações <strong>de</strong> leitura.<br />

2. AS PRINCIPAIS TEORIAS<br />

Neste tópico serão apresentadas apenas as três principais teorias positivistas das<br />

relações internacionais, das quais <strong>de</strong>rivam outras, inclusive as chamadas teorias<br />

pós-positivistas, apresentadas no Mapa teórico das relações internacionais (p. 18).<br />

2.1 REALISMO<br />

O principal expoente do realismo clássico foi Thomas Hobbes (1588-<br />

1679). Sua concepção <strong>de</strong> Estado provinha do fato <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o estado <strong>de</strong><br />

natureza do hom<strong>em</strong> como o <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> para fazer o que quisesse, inclusive<br />

cobiçar o mesmo que outros homens. Tal disputa seria resolvida <strong>em</strong> favor<br />

do mais forte. Assim, o estado <strong>de</strong> natureza real seria um estado <strong>de</strong> guerra<br />

entre os homens e somente po<strong>de</strong>ria ser regulamentado por meio <strong>de</strong> um<br />

po<strong>de</strong>r absoluto, o Estado.<br />

Essa concepção, traduzida para as relações internacionais, significa que o<br />

mundo apresenta uma estrutura anárquica <strong>de</strong>vida à ausência <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r<br />

central mundial, e o estado <strong>de</strong> natureza do mundo é a guerra, na qual os<br />

Estados nacionais são os atores principais, que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> seus interesses <strong>em</strong><br />

termos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> força. Desse modo, as principais preocupações na<br />

relação entre os Estados são o po<strong>de</strong>r e a segurança que eles administram<br />

com uma avaliação coerente dos custos e benefícios <strong>de</strong> suas ações.<br />

Há ainda outros teóricos clássicos do realismo, como o próprio<br />

Tucídi<strong>de</strong>s, já mencionado, e Maquiavel. Este também consi<strong>de</strong>rava o Estado<br />

capaz <strong>de</strong> impor a or<strong>de</strong>m e discutia a forma como o “príncipe” <strong>de</strong>veria<br />

assegurar a sua segurança.<br />

Esses conceitos foram atualizados no século XX. Primeiro por Edward<br />

H. Carr, que na década <strong>de</strong> 1930 criticou o i<strong>de</strong>alismo que regera algumas<br />

das iniciativas internacionais após a Primeira Guerra Mundial, e <strong>de</strong>pois por<br />

Hans Morgenthau, autor do livro A política entre as nações: a luta pelo po<strong>de</strong>r<br />

e pela paz (1948), cuja teoria tornou-se o paradigma das relações internacionais,<br />

ao menos até a década <strong>de</strong> 1970, e ainda hoje influencia a política<br />

externa <strong>de</strong> muitos países, a ex<strong>em</strong>plo da política <strong>de</strong> George W. Bush.<br />

16<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 16<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

Ele i<strong>de</strong>ntificou como seria a política externa dos Estados Unidos, potência<br />

heg<strong>em</strong>ônica após o término da Segunda Guerra Mundial, apontando que teria<br />

como base um contexto <strong>de</strong> substituição do multipolarismo pelo bipolarismo,<br />

com centros fora da Europa Oci<strong>de</strong>ntal, disputa entre dois sist<strong>em</strong>as antagônicos<br />

(capitalismo versus socialismo real) e <strong>de</strong>senvolvimento da tecnologia nuclear,<br />

que po<strong>de</strong>ria levar à <strong>de</strong>struição da humanida<strong>de</strong> (Sarfati, 2005, p. 91).<br />

Morgenthau também discutia o po<strong>de</strong>r dos Estados, que não se limita<br />

necessariamente à capacida<strong>de</strong> militar, mas também envolve população, geografia,<br />

recursos naturais, capacida<strong>de</strong> industrial, legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> governo,<br />

entre outros aspectos.<br />

Para obter a segurança internacional, ele aceitava a idéia <strong>de</strong> um “Estado<br />

mundial” com estrutura única, que fosse capaz <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>s<br />

dos diferentes agrupamentos humanos e <strong>de</strong> intervir nos conflitos entre Estados-nações,<br />

por meio, inclusive, <strong>de</strong> força militar própria.<br />

2.2 LIBERALISMO, NEOLIBERALISMO E INTERDEPENDÊNCIA COMPLEXA<br />

A teoria liberal das relações internacionais está associada a uma série <strong>de</strong><br />

idéias <strong>de</strong> pensadores que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo da Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna lidaram com<br />

os t<strong>em</strong>as da <strong>de</strong>mocracia, das leis e da paz, <strong>em</strong>anados da vonta<strong>de</strong> do povo <strong>de</strong><br />

controlar o Estado – e não o inverso, que é uma das características importantes<br />

do realismo.<br />

O neoliberalismo é a retomada <strong>de</strong>ssas idéias numa visão sistêmica das<br />

relações internacionais e cont<strong>em</strong>porâneas na conjuntura dos últimos 30<br />

anos. Para os liberais e neoliberais, as instituições internacionais são fundamentais<br />

para or<strong>de</strong>nar o sist<strong>em</strong>a internacional anárquico, e os atores não são<br />

apenas os Estados.<br />

Os teóricos neoliberais reconhec<strong>em</strong> que a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os Estados<br />

cooperar<strong>em</strong> mutuamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da construção <strong>de</strong> organizações internacionais<br />

que serão mais ou menos fortes a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do assunto e do momento<br />

histórico. Os atores <strong>de</strong>v<strong>em</strong> perceber que têm algo a ganhar com a cooperação<br />

e, quanto maior a institucionalização, maior será a influência no comportamento<br />

dos Estados (Sarfatti, ibi<strong>de</strong>m, p. 156).<br />

Keohane é um <strong>de</strong>sses teóricos. Ele <strong>de</strong>fine as organizações internacionais<br />

(OIs) como grupos que po<strong>de</strong>m tomar diversos formatos – organismos internacionais<br />

estabelecidos pelos Estados, ONGs (Organizações não-gover-<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 17<br />

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17


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

namentais) internacionais, regimes internacionais e convenções –, dos quais<br />

advirão regras formais e informais (apud ibi<strong>de</strong>m, p. 157).<br />

Esta classificação das instituições admite que a socieda<strong>de</strong> influencia as OIs<br />

não somente por intermédio dos Estados e das relações transgovernamentais,<br />

mas também por meio das ONGs internacionais. A isso se chama relações<br />

transnacionais, que, <strong>de</strong> acordo com Keohane e Nye, po<strong>de</strong>m afetar as relações<br />

internacionais <strong>de</strong> várias maneiras: mudar percepções e atitu<strong>de</strong>s, ampliar a<br />

<strong>de</strong>pendência, a inter<strong>de</strong>pendência e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> influência dos Estados e<br />

possibilitar a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> atores autônomos (ibi<strong>de</strong>m, p. 161-162).<br />

O último aspecto das relações transnacionais a ser consi<strong>de</strong>rado é o da<br />

inter<strong>de</strong>pendência complexa. Ainda <strong>de</strong> acordo com Keohane e Nye<br />

“inter<strong>de</strong>pendência é uma situação caracterizada por efeitos recíprocos entre<br />

os países ou entre os atores <strong>de</strong> diferentes países ou simplesmente o estado<br />

<strong>de</strong> mútua <strong>de</strong>pendência” (Keohane e Nye, apud Sarfatti, 2005, p. 164).<br />

2.3 MARXISMO<br />

Quando Marx elaborou a tese do materialismo histórico, não tinha qualquer<br />

preocupação <strong>em</strong> teorizar sobre relações internacionais. Porém, vários<br />

Fonte: Sarfatti, 2005, p. 364.<br />

18<br />

Mapa teórico das relações internacionais<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 18<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

dos conceitos que elaborou acabaram por fortalecer uma visão<br />

“internacionalista”, pois os trabalhadores são explorados no mundo todo<br />

pela burguesia. A fase <strong>de</strong> implantação do socialismo por meio da “ditadura<br />

do proletariado” até a extinção do Estado pressupunha que isso viesse a<br />

ocorrer <strong>em</strong> todo o planeta, <strong>de</strong> modo que toda a socieda<strong>de</strong> mundial passasse<br />

a viver sob o sist<strong>em</strong>a comunista.<br />

Para ele, a guerra era a conseqüência natural do mo<strong>de</strong>lo burguês <strong>de</strong> acumulação<br />

<strong>de</strong> capital, que levaria a conflitos por novas terras e novos mercados.<br />

A paz mundial somente seria alcançada com a ascensão do comunismo<br />

e o <strong>de</strong>saparecimento das classes sociais e do Estado.<br />

O marxismo tornou-se uma teoria importante para explicar as relações<br />

internacionais, primeiro a partir das discussões <strong>de</strong> Vladimir Lenin e Nikolai<br />

Bukharin sobre o imperialismo e, posteriormente, com a teoria da <strong>de</strong>pendência<br />

dos “cepalinos” 2 .<br />

As formulações <strong>de</strong> Lenin sobre o imperialismo inclu<strong>em</strong> a avaliação <strong>de</strong><br />

diversos t<strong>em</strong>as: a criação <strong>de</strong> monopólios; a relação do capital financeiro<br />

com o capital industrial; a formação dos monopólios internacionais que<br />

dominam a economia mundial; a consolidação da divisão territorial entre<br />

as gran<strong>de</strong>s potências capitalistas; e a diferenciação entre a exportação <strong>de</strong><br />

produtos manufaturados e a <strong>de</strong> commodities. Bukharin <strong>de</strong>senvolve também<br />

o conceito sobre a divisão internacional do trabalho favorável aos<br />

países industrializados.<br />

Estes conceitos forneceram a base para a elaboração da teoria da <strong>de</strong>pendência,<br />

que i<strong>de</strong>ntificava o <strong>de</strong>sequilíbrio entre o <strong>de</strong>senvolvimento econômico<br />

dos países industrializados e o dos países <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Um dos<br />

fatores era a relação comercial entre eles, <strong>em</strong> que os países industrializados<br />

se especializaram <strong>em</strong> exportar produtos <strong>de</strong> alto valor agregado, enquanto<br />

os países <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento exportavam produtos primários cujo valor não<br />

competia com os primeiros e que tendiam a se <strong>de</strong>svalorizar à medida que<br />

aumentava o volume <strong>de</strong> produção. Assim, os países sub<strong>de</strong>senvolvidos não<br />

2 Técnicos que trabalhavam na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe),<br />

responsáveis pelo <strong>de</strong>senvolvimento da proposta do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> importações como<br />

política para a região a fim <strong>de</strong> romper a <strong>de</strong>pendência <strong>em</strong> relação aos países centrais. Alguns nomes<br />

importantes entre eles foram Raul Prebisch e Teotônio dos Santos.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 19<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

conseguiam financiar sua industrialização por meio do comércio, mesmo<br />

aumentando a produção <strong>de</strong> commodities, mas apenas adquirir os bens industrializados<br />

dos países <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Para superar essa relação, surgiu a proposta do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong><br />

importações, que vigorou particularmente na América Latina e <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

países asiáticos, promovido pela ação do Estado voltada para financiar<br />

o <strong>de</strong>senvolvimento. Para os “<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntistas” (<strong>de</strong>fensores da teoria<br />

da <strong>de</strong>pendência), o Estado é um ator fundamental. No campo internacional,<br />

as instituições mais importantes são as organizações internacionais, o<br />

direito internacional e as <strong>em</strong>presas multinacionais, entre outras.<br />

3. OS GRANDES TEMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ATUAIS<br />

As várias teorias internacionais explicam ou <strong>em</strong>basam as medidas tomadas<br />

pelos diferentes atores, estatais ou não, diante dos gran<strong>de</strong>s t<strong>em</strong>as internacionais.<br />

Embora os t<strong>em</strong>as apresentados a seguir sejam mais amplos do<br />

que os que fundamentaram a elaboração realista e neo-realista, isso não<br />

significa que as medidas adotadas não possam ser explicadas por essas duas<br />

teorias ou outras.<br />

3.1 COMÉRCIO INTERNACIONAL<br />

As principais relações entre as nações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong>, têm se dado<br />

por intermédio do comércio.<br />

No início da Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna, sob os regimes absolutistas e, particularmente,<br />

a partir das gran<strong>de</strong>s navegações e das <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> novas terras e<br />

rotas marítimas, <strong>de</strong>senvolveu-se um conceito <strong>de</strong> comércio internacional<br />

chamado mercantilismo, cuja principal característica era a venda <strong>de</strong> produtos<br />

para acumular reservas <strong>em</strong> metais preciosos. Os países que tinham a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir algum b<strong>em</strong> para o comércio com outros o protegiam<br />

contra a concorrência externa.<br />

Com o advento do liberalismo econômico, adotou-se um novo conceito<br />

<strong>de</strong> comércio baseado nas “vantagens comparativas”. Esse conceito – <strong>de</strong>senvolvido<br />

inicialmente pelo economista inglês David Ricardo –, que vigora<br />

até hoje entre os liberais, pressupunha ser mais eficaz para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

da economia dos países que cada um <strong>de</strong>les exportasse os produtos<br />

20<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 20<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

nos quais eram mais especializados e importasse aquilo que outros países<br />

eram mais especializados <strong>em</strong> produzir. Isto significava, por ex<strong>em</strong>plo, que<br />

Portugal e França ven<strong>de</strong>riam vinho, os Estados Unidos exportariam trigo e a<br />

Inglaterra, produtos manufaturados.<br />

Para outros estudiosos, a teoria das vantagens comparativas e o livre comércio<br />

eram apenas uma forma <strong>de</strong> proteger a indústria inglesa <strong>de</strong> possíveis<br />

concorrentes. Para eles, os países atrasados <strong>em</strong> seu processo <strong>de</strong> industrialização,<br />

como a Al<strong>em</strong>anha e os Estados Unidos, <strong>de</strong>veriam ter o direito <strong>de</strong> proteger<br />

sua indústria até que ela também se consolidasse.<br />

De fato, se consi<strong>de</strong>rarmos a história do comércio mundial, perceber<strong>em</strong>os<br />

que a liberalização comercial ocorreu <strong>em</strong> poucos momentos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final do<br />

século XVIII até o fim da Segunda Guerra Mundial, e que a política comercial<br />

proposta pelos países <strong>de</strong>senvolvidos para os <strong>de</strong>mais nunca foi por eles<br />

adotada da mesma forma.<br />

Em 1948 foi criado o Acordo Geral <strong>de</strong> Comércio e Tarifas (GATT –<br />

General Agre<strong>em</strong>ent on Tarifs and Tra<strong>de</strong>) para negociar e coor<strong>de</strong>nar a política<br />

comercial internacional, principalmente a liberalização das tarifas externas<br />

<strong>de</strong> bens industriais dos países-m<strong>em</strong>bros. Porém, tais reduções ocorreram<br />

como se todos os países estivess<strong>em</strong> no mesmo patamar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento, tomando como parâmetro os produtos que os países mais<br />

<strong>de</strong>senvolvidos eram capazes <strong>de</strong> produzir <strong>em</strong> condições vantajosas com relação<br />

a outras nações mais pobres. Bens como os produtos têxteis ficaram<br />

excluídos da liberalização comercial até 2004, e os mercados agrícolas dos<br />

países <strong>de</strong>senvolvidos continuam protegidos.<br />

A partir do final dos anos 1970, começaram a ser discutidos outros t<strong>em</strong>as<br />

no GATT, como comércio <strong>de</strong> serviços, <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> intelectual, <strong>de</strong><br />

investimentos, entre outros, e <strong>em</strong> 1995 teve início o funcionamento <strong>de</strong><br />

uma nova instituição <strong>em</strong> substituição ao GATT, a Organização Mundial do<br />

Comércio (OMC), uma organização internacional estruturada com diretores<br />

e funcionários, que assumiu a coor<strong>de</strong>nação das negociações comerciais e<br />

também da resolução <strong>de</strong> controvérsias.<br />

Durante sua vigência, o GATT realizou oito rodadas <strong>de</strong> negociações,<br />

sendo a última <strong>de</strong>las – e a mais abrangente do ponto <strong>de</strong> vista liberal – a<br />

Rodada Uruguai, que perdurou <strong>de</strong> 1986 a 1994. Hoje a OMC coor<strong>de</strong>na a Rodada<br />

<strong>de</strong> Doha, iniciada <strong>em</strong> 2001 e s<strong>em</strong> acordo até o momento.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 21<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

3.2 DEMOCRACIA<br />

Este t<strong>em</strong>a se agregou às relações internacionais à medida que valores políticos<br />

liberais foram se consolidando e sendo adotados por um número<br />

crescente <strong>de</strong> países. Estes valores inclu<strong>em</strong> a divisão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res e a idéia da<br />

soberania popular como legitimadora do po<strong>de</strong>r político – idéias <strong>de</strong>fendidas<br />

já no século XVIII por Montesquieu e Rousseau, respectivamente – e outros<br />

conceitos posteriores.<br />

A <strong>de</strong>mocracia foi se aperfeiçoando ao longo do século XX e ainda está <strong>em</strong><br />

evolução. Em muitos países, as mulheres só conquistaram o direito <strong>de</strong> votar<br />

a partir dos anos 1920. Se consi<strong>de</strong>radas as limitações ao exercício do voto,<br />

menos <strong>de</strong> <strong>de</strong>z países no mundo po<strong>de</strong>riam ser consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong>mocráticos no<br />

início do século XX.<br />

Os regimes <strong>de</strong>rrotados na Segunda Guerra Mundial pela coalizão aliada<br />

eram francamente ditatoriais, o que serviu como mote na disputa i<strong>de</strong>ológica<br />

da Guerra Fria, para contrapor não apenas capitalismo e socialismo, mas<br />

também <strong>de</strong>mocracia oci<strong>de</strong>ntal versus autoritarismo do regime <strong>de</strong> partido<br />

único soviético.<br />

Assim, a <strong>de</strong>mocracia tornou-se um t<strong>em</strong>a s<strong>em</strong>pre presente nas relações<br />

internacionais, mesmo quando utilizado hipocritamente, como no caso do<br />

apoio norte-americano a ditaduras <strong>de</strong> direita na América Latina durante a<br />

Guerra Fria para “<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>mocracia ameaçada pelo comunismo”.<br />

Porém, as relações internacionais também contribuíram para a diss<strong>em</strong>inação<br />

e o fortalecimento da <strong>de</strong>mocracia, como mostram os casos <strong>de</strong> Espanha,<br />

Grécia e Portugal, que somente foram aceitos na Comunida<strong>de</strong> Européia<br />

após a sua re<strong>de</strong>mocratização.<br />

Hoje se discute muito a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprofundar a <strong>de</strong>mocracia pela<br />

adoção <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia participativa, com a criação <strong>de</strong> conselhos<br />

populares, a convocação <strong>de</strong> referendos, a criação da figura do ombudsman,<br />

orçamentos participativos etc.<br />

3.3 GUERRAS E PAZ<br />

A guerra é outro el<strong>em</strong>ento tradicional nas relações entre as nações, com<br />

um agravante: fracassar numa negociação comercial po<strong>de</strong> ser negativo para<br />

um país, mas fracassar na guerra po<strong>de</strong> ser o seu fim. A ascensão e a queda <strong>de</strong><br />

nações e <strong>de</strong> impérios s<strong>em</strong>pre estiveram <strong>de</strong> alguma maneira ligadas à guerra.<br />

22<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

No entanto, esse t<strong>em</strong>a assumiu uma dimensão diferente após a Segunda<br />

Guerra Mundial e o bombar<strong>de</strong>io atômico sobre as cida<strong>de</strong>s japonesas <strong>de</strong><br />

Hiroshima e Nagasaki. Durante a Guerra Fria e o período <strong>de</strong> bipolarismo,<br />

perdurou o chamado “equilíbrio do terror”, pois cada lado tinha a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir o outro várias vezes e ninguém sobreviveria a uma catástrofe<br />

nuclear generalizada. Houve muitas negociações internacionais nesse período<br />

visando a redução <strong>de</strong> armas nucleares, b<strong>em</strong> como, mais recent<strong>em</strong>ente,<br />

o controle sobre armas químicas e biológicas.<br />

Embora a discussão sobre <strong>de</strong>sarmamento e <strong>de</strong>smilitarização prossiga, há<br />

na verda<strong>de</strong> um comércio vigoroso <strong>de</strong> armamentos convencionais, e ainda<br />

hoje as encomendas militares do governo dos Estados Unidos são um fator<br />

importante <strong>de</strong> indução <strong>de</strong> sua economia. De 2001 até hoje, o governo<br />

George W. Bush já gastou mais <strong>de</strong> US$ 500 bilhões somente nas operações<br />

<strong>de</strong> guerra do Afeganistão e do Iraque.<br />

Atualmente, os conflitos armados têm caráter regional e com freqüência<br />

<strong>de</strong>corr<strong>em</strong> ou são justificados com base <strong>em</strong> razões étnicas, nacionalistas e<br />

religiosas. Parte <strong>de</strong>les <strong>de</strong>corre da forma como <strong>de</strong>terminados países da África,<br />

do Oriente Médio e da Ásia foram <strong>de</strong>scolonizados, s<strong>em</strong> qualquer consi<strong>de</strong>ração<br />

à auto<strong>de</strong>terminação dos povos e com a constituição <strong>de</strong> fronteiras irrealistas<br />

para, propositalmente, manter áreas <strong>de</strong> tensão, como entre a Índia e o<br />

Paquistão e no Oriente Médio.<br />

Outra parte dos confrontos <strong>de</strong>corre da maneira como a convivência<br />

entre certas nacionalida<strong>de</strong>s num mesmo território foi imposta, como<br />

nos casos da ex-Iugoslávia e da ex-URSS (União das Repúblicas Socialistas<br />

Soviéticas), que explodiram <strong>em</strong> conflito após a queda dos regimes do<br />

socialismo real, gerando um dos maiores genocídios do pós-Segunda<br />

Guerra Mundial.<br />

A questão da intolerância religiosa mescla conflitos étnicos e nacionalistas<br />

pelo fato <strong>de</strong> muitos Estados ter<strong>em</strong> forte relação com a religião e com<br />

instituições religiosas. Os casos mais expressivos são Israel, com o judaísmo,<br />

e os países árabes, com o islamismo.<br />

Diante dos conflitos <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong>-se uma série <strong>de</strong> mecanismos e especialistas<br />

voltados para a diplomacia da paz, seja a partir da ONU (Organização<br />

das Nações Unidas) e <strong>de</strong> suas organizações regionais, seja a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

países e personalida<strong>de</strong>s.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 23<br />

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23


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

3.4 DIREITOS HUMANOS<br />

Este t<strong>em</strong>a começou a ser normatizado internacionalmente após a Segunda<br />

Guerra Mundial, como <strong>de</strong>corrência do trauma advindo do genocídio e<br />

da violência praticados pelo regime nazista.<br />

A primeira norma com valores universais foi a Declaração Universal dos<br />

Direitos Humanos aprovada pela ONU, <strong>em</strong> 1948. Posteriormente, neste<br />

mesmo âmbito, foi aprovada a Convenção <strong>Internacional</strong> sobre a Eliminação<br />

<strong>de</strong> Todas as Formas <strong>de</strong> Discriminação Racial, <strong>em</strong> 1965, e <strong>em</strong> 1966 foram<br />

aprovados o Pacto <strong>Internacional</strong> <strong>de</strong> Direitos Civis e Políticos, o Protocolo<br />

facultativo a ele e o Pacto <strong>Internacional</strong> <strong>de</strong> Direitos Econômicos, Sociais e<br />

Culturais. A convenção e os pactos somente alcançaram as ratificações necessárias<br />

para vigorar <strong>em</strong> 1969 e <strong>em</strong> 1976, respectivamente.<br />

Na Europa foi aprovado <strong>em</strong> 1950 o Convênio Europeu dos Direitos<br />

Humanos e Liberda<strong>de</strong>s Fundamentais. No continente americano, a Declaração<br />

Americana dos Direitos e Deveres do Hom<strong>em</strong> data <strong>de</strong> 1948, e a<br />

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que ficou mais conhecida<br />

como o Pacto <strong>de</strong> San José da Costa Rica, <strong>de</strong> 1969.<br />

No âmbito mundial, a política <strong>de</strong> direitos humanos foi coor<strong>de</strong>nada <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1993 por um Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, substituído<br />

<strong>em</strong> 2006 pelo Conselho <strong>de</strong> Direitos Humanos. Na Europa, qu<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre questões relativas às violações é o Tribunal <strong>de</strong> Justiça da União<br />

Européia, com se<strong>de</strong> <strong>em</strong> Estrasburgo, na França. Nas Américas, qu<strong>em</strong> trata<br />

dos direitos humanos é a OEA (Organização dos Estados Americanos), por<br />

meio <strong>de</strong> sua Comissão Interamericana <strong>de</strong> Direitos Humanos e da Corte<br />

Interamericana <strong>de</strong> Direitos Humanos, com se<strong>de</strong>s, respectivamente, <strong>em</strong><br />

Washington e San José da Costa Rica.<br />

Para marcar o aniversário <strong>de</strong> 20 anos da Declaração Universal dos Direitos<br />

Humanos, a primeira conferência da ONU realizada especificamente para tratar<br />

do t<strong>em</strong>a ocorreu <strong>em</strong> Teerã, a capital do Irã, <strong>em</strong> 1968. Essa conferência<br />

pouco avançou, pois ocorreu no auge da Guerra Fria, quando não se permitia<br />

adotar resoluções sobre qualquer país e n<strong>em</strong> que a Comissão <strong>de</strong> Direitos Humanos,<br />

então existente, tomasse medidas diante das <strong>de</strong>núncias que recebia, sob a<br />

justificativa da soberania nacional e do princípio da não-intervenção <strong>em</strong> assuntos<br />

internos garantido na Carta das Nações Unidas. Além disso, as organizações<br />

da socieda<strong>de</strong> civil ainda não buscavam incidir sobre este tipo <strong>de</strong> conferência.<br />

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A primeira vez que a ONU ditou uma norma que se tornou obrigatória<br />

para os Estados-m<strong>em</strong>bros foi <strong>em</strong> 1977 contra o regime do apartheid na<br />

África do Sul, consi<strong>de</strong>rado um crime <strong>de</strong> lesa-humanida<strong>de</strong>. Na ocasião, o<br />

Conselho <strong>de</strong> Segurança aprovou um <strong>em</strong>bargo <strong>de</strong> armas àquele país.<br />

Os princípios sobre a <strong>de</strong>fesa dos direitos humanos estabelecidos até<br />

então foram sendo incorporados também <strong>em</strong> resoluções, convenções e<br />

recomendações <strong>de</strong> outras organizações e agências especializadas do sist<strong>em</strong>a<br />

ONU que tratam <strong>de</strong> trabalho, educação, saú<strong>de</strong>, alimentação, infância<br />

e <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Em 1993 realizou-se a segunda Conferência das Nações Unidas sobre<br />

Direitos Humanos <strong>em</strong> Viena, na Áustria, numa conjuntura muito diferente<br />

da anterior e com a participação <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> mil ONGs, entre elas algumas<br />

que haviam se tornado conhecidas e influentes, como Anistia <strong>Internacional</strong><br />

e American Watch, entre outras. As resoluções <strong>de</strong>sta conferência conseguiram<br />

romper algumas das barreiras mencionadas anteriormente.<br />

3.5 INTEGRAÇÃO ECONÔMICA<br />

A imprensa costuma tratar qualquer acordo <strong>de</strong> liberalização comercial<br />

bilateral entre países ou acordados regionais como sendo integração econômica.<br />

É uma versão parcial e <strong>de</strong>nota muito mais uma <strong>de</strong>fesa do livre<br />

comércio do que uma avaliação real do significado e das perspectivas <strong>de</strong><br />

uma integração.<br />

De fato, o primeiro passo da integração econômica é a eliminação das<br />

barreiras comerciais entre seus participantes, as tarifárias e as não-tarifárias.<br />

No caso da União Européia (UE), estas últimas somente foram r<strong>em</strong>ovidas<br />

na década <strong>de</strong> 1990. O <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro instrumento econômico que po<strong>de</strong>ria afetar<br />

o comércio a favor <strong>de</strong> um país ou <strong>de</strong> outro seria o câmbio, o que se<br />

resolveu na Europa com a adoção da moeda comum.<br />

Muitas críticas po<strong>de</strong>m ser feitas quanto ao <strong>de</strong>senvolvimento da estratégia<br />

européia, mas não há dúvida <strong>de</strong> que os objetivos <strong>de</strong> estabelecer a paz e o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento após a Segunda Guerra Mundial, que <strong>de</strong>struiu o continente,<br />

foram alcançados.<br />

A UE é o maior espaço econômico do mundo graças a uma política <strong>de</strong><br />

“Keynes <strong>em</strong> casa e Adam Smith fora <strong>de</strong>la”, pois aplicou políticas estatais<br />

para regular a integração e proteger os mercados <strong>de</strong> seus integrantes contra<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

a concorrência <strong>de</strong> terceiros, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que propunha o livre<br />

acesso aos mercados dos outros. Salvo os conflitos nos Bálcãs, com a dissolução<br />

da Iugoslávia, o continente vive um período inédito <strong>de</strong> paz.<br />

Po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>screver o processo <strong>de</strong> integração econômica da seguinte forma:<br />

começa com a área <strong>de</strong> livre comércio e <strong>em</strong> seguida vêm a união aduaneira,<br />

o mercado comum, a convergência macroeconômica e a união monetária.<br />

O Mercosul (Mercado Comum do Sul), por ex<strong>em</strong>plo, que preten<strong>de</strong> se<br />

tornar um mercado comum, ainda não ultrapassou a fase <strong>de</strong> união aduaneira<br />

incompleta, uma vez que a tarifa externa dos países-m<strong>em</strong>bros é comum,<br />

isto é, a mesma <strong>em</strong> todos eles, com exceção <strong>de</strong> alguns produtos <strong>de</strong> cada país<br />

que têm tarifas diferenciadas.<br />

O <strong>de</strong>bate sobre a integração da América do Sul é crucial neste momento.<br />

O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> importações adotado por vários <strong>de</strong> seus países<br />

buscou o <strong>de</strong>senvolvimento a partir do Estado Nacional e não conseguiu se<br />

sustentar <strong>de</strong>ssa forma. A pergunta é: não seria mais viável retomá-lo a partir<br />

<strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> integração entre vários Estados?<br />

Para que uma integração neste formato avance é necessário haver cessão<br />

<strong>de</strong> soberania entre os participantes. Consi<strong>de</strong>rando a herança da teoria da<br />

<strong>de</strong>pendência e da baixa institucionalida<strong>de</strong> do Mercosul, ainda há muito<br />

para avançar.<br />

Além dos casos mencionados, há mais <strong>de</strong> uma centena <strong>de</strong> acordos <strong>de</strong><br />

livre comércio e áreas <strong>de</strong> livre comércio, porém a maioria s<strong>em</strong> proposta <strong>de</strong> ir<br />

além das relações comerciais; po<strong>de</strong>-se mencionar, por ex<strong>em</strong>plo: o Acordo <strong>de</strong><br />

Livre Comércio da América do Norte (NAFTA – North American Free<br />

Tra<strong>de</strong> Agre<strong>em</strong>ent); o Acordo Econômico do Su<strong>de</strong>ste Asiático (ASEAN –<br />

Association of South East Asian Nations); a Cooperação Econômica da Ásia<br />

e do Pacífico (APEC – Asia-Pacific Economic Cooperation); a Cooperação<br />

para o Desenvolvimento Econômico da África do Sul (SADEC – South<br />

African Development and Economic Cooperation) e o Sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Integração<br />

Centro Americano (SICA), entre outros.<br />

3.6 ENERGIA<br />

Atualmente, falar <strong>de</strong> energia significa cada vez mais avaliar a<br />

vulnerabilida<strong>de</strong> das economias dos países que não dispõ<strong>em</strong> <strong>de</strong> autonomia<br />

diante <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> energia, seja para gerar eletricida<strong>de</strong> na ilumi-<br />

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nação <strong>de</strong> suas cida<strong>de</strong>s e movimentar suas indústrias, seja para que seus meios<br />

<strong>de</strong> transporte funcion<strong>em</strong>.<br />

A matriz energética mundial atual ainda é composta principalmente por<br />

hidrocarbonetos e carvão mineral, e <strong>em</strong> menor dimensão por energia hidráulica,<br />

nuclear, eólica, solar e biomassa. Além do efeito estufa e das transformações<br />

climáticas que provoca, a <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> hidrocarbonetos t<strong>em</strong><br />

dimensão política internacional.<br />

Quando o transporte e a indústria movidos a combustíveis <strong>de</strong>rivados do<br />

petróleo se tornaram irreversíveis no início do século XX, o domínio sobre a<br />

exploração <strong>de</strong> petróleo se tornou uma questão geopolítica, pois as fontes a ser<br />

exploradas concentram-se <strong>em</strong> apenas alguns lugares do mundo. A mais importante<br />

naquela época era o Oriente Médio, o que explica a relutância das<br />

potências européias, como Inglaterra e França, <strong>em</strong> conce<strong>de</strong>r in<strong>de</strong>pendência<br />

aos países daquela região ao fim da Primeira Guerra Mundial, o que somente<br />

ocorreria após o fim da Segunda Guerra, quando asseguraram a concessão da<br />

exploração <strong>de</strong> petróleo naqueles países para suas <strong>em</strong>presas multinacionais.<br />

O petróleo foi primeiro explorado comercialmente nos Estados Unidos,<br />

levando à criação <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas como Standard Oil, Exxon, Texaco, que junto<br />

com outras <strong>em</strong>presas européias formaram o cartel das “Sete Irmãs”, que<br />

teve a concessão da produção e distribuição <strong>de</strong> petróleo no mundo durante<br />

quase um século.<br />

Embora as Sete Irmãs monopolizass<strong>em</strong> a exploração <strong>de</strong> petróleo, os países<br />

produtores se articularam <strong>em</strong> 1960 por meio da Organização dos Países<br />

Exportadores <strong>de</strong> Petróleo (OPEP) a fim <strong>de</strong> tentar regular a produção e os<br />

preços <strong>em</strong> seu favor. A OPEP t<strong>em</strong> hoje 12 m<strong>em</strong>bros, entre os quais apenas<br />

um é latino-americano – a Venezuela –, pois o Equador retirou-se <strong>em</strong> 1992.<br />

Estes países possu<strong>em</strong> dois terços das reservas mundiais <strong>de</strong> petróleo e<br />

um terço das <strong>de</strong> gás natural, mas apesar <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r a maioria <strong>de</strong>les nunca<br />

conseguiu diversificar suas economias e são <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da exportação<br />

<strong>de</strong>sta commodity.<br />

Atualmente há um esforço <strong>de</strong> outros países fora do circuito da OPEP<br />

para buscar a auto-suficiência <strong>em</strong> petróleo e gás, b<strong>em</strong> como para <strong>de</strong>finir<br />

regras próprias para explorá-los e utilizá-los politicamente nas relações internacionais.<br />

É o que ocorre principalmente na América Latina, no Irã e na<br />

Rússia, <strong>em</strong>bora com características diferentes.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

3.7 COMBATE À POBREZA<br />

Este t<strong>em</strong>a tornou-se também relevante nas relações internacionais, principalmente<br />

a partir da Conferência Social <strong>de</strong> Copenhague, realizada <strong>em</strong> 1995, e<br />

da Declaração do Milênio, aprovada pela ONU na virada do século XXI, na<br />

qual foram incluídos os oito Objetivos <strong>de</strong> Desenvolvimento do Milênio (ODMs)<br />

a ser perseguidos pelos governos do planeta: erradicar a pobreza extr<strong>em</strong>a e a<br />

fome; alcançar o ensino primário universal; promover a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero e<br />

a autonomização da mulher; reduzir a mortalida<strong>de</strong> infantil; melhorar a saú<strong>de</strong><br />

materna; combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; garantir a<br />

sustentabilida<strong>de</strong> ambiental e criar uma parceria global para o <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Exist<strong>em</strong> 18 metas e 48 indicadores para monitorar o progresso dos objetivos.<br />

O prazo final para atingi-los é 2015, e normalmente a formulação<br />

indica <strong>de</strong>terminadas metas, como a redução <strong>de</strong> dois terços da mortalida<strong>de</strong><br />

infantil com até 5 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> ou a redução pela meta<strong>de</strong> do número <strong>de</strong><br />

pessoas que viv<strong>em</strong> com menos <strong>de</strong> US$ 1 por dia – uma referência adotada<br />

pelo Banco Mundial, pela OIT (Organização <strong>Internacional</strong> do Trabalho),<br />

pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e outros<br />

para <strong>de</strong>finir a “linha da indigência”.<br />

Uma vantag<strong>em</strong> dos ODMs é que traçam um patamar <strong>de</strong> objetivos iguais<br />

para todos os países e regiões, o que facilita a cooperação técnica nessa área.<br />

Os seus indicadores permit<strong>em</strong> o monitoramento da situação social e do<br />

combate à pobreza <strong>em</strong> qualquer nível administrativo. O governo Lula t<strong>em</strong><br />

o mérito <strong>de</strong> ter agregado a essas iniciativas a discussão sobre o programa<br />

Fome Zero internacional, b<strong>em</strong> como a busca <strong>de</strong> fontes alternativas <strong>de</strong> financiamento<br />

para o combate à pobreza, envolvendo inclusive governos <strong>de</strong><br />

outros países, como Chile, França e Espanha.<br />

3.8 MEIO AMBIENTE<br />

Esta questão é a que mais t<strong>em</strong> sido utilizada para discutir e ex<strong>em</strong>plificar a<br />

teoria da inter<strong>de</strong>pendência complexa, pois não há como pensar <strong>em</strong> soluções<br />

para os probl<strong>em</strong>as ambientais exclusivamente no marco dos Estados nacionais,<br />

pois o que acontece com a atmosfera, o clima, os mares e os rios afeta a todos.<br />

O t<strong>em</strong>a ambiental é também o que mais mobiliza as organizações da<br />

socieda<strong>de</strong> civil <strong>de</strong>vido aos impactos concretos causados pelos probl<strong>em</strong>as<br />

relacionados ao meio ambiente, por ex<strong>em</strong>plo, no caso do vazamento <strong>de</strong> gás<br />

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tóxico provocado pela fábrica da Union Carbi<strong>de</strong> <strong>em</strong> Bhopal, na Índia, que<br />

<strong>em</strong> três dias matou mais <strong>de</strong> 8 mil pessoas no ano <strong>de</strong> 1984.<br />

A primeira conferência sobre meio ambiente organizada pela ONU <strong>em</strong> Estocolmo,<br />

na Suécia, <strong>em</strong> 1972, foi também a primeira que teve a participação <strong>de</strong><br />

ONGs (Organizações não-governamentais) que, por meio <strong>de</strong> reuniões paralelas,<br />

promoviam a discussão acerca do meio ambiente a partir <strong>de</strong> seu ponto <strong>de</strong> vista e<br />

<strong>em</strong> seguida encaminhavam suas propostas para as <strong>de</strong>legações governamentais.<br />

Uma das razões para o <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong>sse interesse foi o enorme <strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong><br />

petróleo no Canal da Mancha, poucos anos antes, que danificou sobr<strong>em</strong>aneira a<br />

fauna e a flora marinha, b<strong>em</strong> como o litoral <strong>de</strong> diversos países europeus.<br />

A segunda, a Eco-92, realizada no Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>em</strong> 1992, foi a conferência<br />

sobre t<strong>em</strong>as sociais que obteve maior participação da socieda<strong>de</strong> civil<br />

até hoje e além disso produziu uma série <strong>de</strong> resoluções que vêm sendo<br />

tratadas internacionalmente, por ex<strong>em</strong>plo a Agenda 21 3 .<br />

Nesse ínterim também foi aprovada uma série <strong>de</strong> tratados específicos, como<br />

os Acordos Multilaterais Ambientais (AMAs), entre os quais figuram o Protocolo<br />

<strong>de</strong> Kyoto sobre <strong>em</strong>issão <strong>de</strong> gases e o combate ao buraco na camada <strong>de</strong> ozônio.<br />

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC –<br />

Intergovernmental Panel on Climate Change) divulgou no início <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong><br />

2007 o quarto relatório das avaliações conduzidas pelo grupo sobre o aquecimento<br />

global <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que foi instaurado, <strong>em</strong> 1998, pelo Programa das Nações Unidas<br />

para o Meio Ambiente (PNUMA), <strong>em</strong> parceria com a Organização Meteorológica<br />

Mundial (WMO – World Meteorological Organization), também parte da ONU.<br />

Este informe chamou a atenção pelo teor mais alarmante utilizado para tratar<br />

do t<strong>em</strong>a das mudanças climáticas e do papel do hom<strong>em</strong> na ampliação do<br />

efeito estufa, b<strong>em</strong> como do conseqüente aumento da t<strong>em</strong>peratura do planeta,<br />

que, segundo o documento, <strong>de</strong>verá aumentar <strong>em</strong> até quatro graus centígrados<br />

até o final do século. Espera-se que a divulgação do documento sirva para que os<br />

países formul<strong>em</strong> políticas públicas para enfrentar o aumento do uso <strong>de</strong> combustíveis<br />

fósseis, o maior responsável pelas <strong>em</strong>issões <strong>de</strong> gás que resultam no<br />

aquecimento global.<br />

3 Aprovada na Eco 92, a Agenda 21 continha uma série <strong>de</strong> t<strong>em</strong>as a ser negociados durante as reuniões<br />

da ONU (Organização das Nações Unidas) posteriores à conferência; entre eles estava o da <strong>em</strong>issão<br />

<strong>de</strong> CO 2 , que levou à criação do Protocolo <strong>de</strong> Kyoto.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

O presi<strong>de</strong>nte dos Estados Unidos, George W. Bush, apesar <strong>de</strong> ser extr<strong>em</strong>amente<br />

ligado à indústria petroleira, afirmou que seu país <strong>de</strong>verá diminuir<br />

<strong>em</strong> 20% o consumo <strong>de</strong> gasolina nos próximos <strong>de</strong>z anos, investindo na<br />

produção <strong>de</strong> biocombustíveis, a ex<strong>em</strong>plo dos programas já <strong>de</strong>senvolvidos<br />

com sucesso pelo governo brasileiro.<br />

3.9 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS<br />

O t<strong>em</strong>a das migrações internacionais se apresenta <strong>em</strong> função da<br />

globalização, da concentração <strong>de</strong> renda, do progresso dos meios <strong>de</strong> comunicação<br />

e dos meios <strong>de</strong> transporte. Refugiados <strong>em</strong> função <strong>de</strong> conflitos ou <strong>de</strong><br />

perseguições políticas e/ou religiosas s<strong>em</strong>pre houve. Hoje, porém, a migração<br />

internacional <strong>de</strong>corre principalmente por motivos econômicos.<br />

Na Europa dos anos 1960 e 1970, havia uma intensa migração dos países<br />

do sul do continente para os do norte <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> trabalho. A partir dos<br />

anos 1980, <strong>de</strong>stacaram-se os migrantes da África, que se fixavam principalmente<br />

nos países europeus <strong>em</strong> torno do Mediterrâneo. Depois do fim da<br />

Guerra Fria, passou a haver um fluxo importante também do Leste europeu<br />

<strong>em</strong> direção aos países da União Européia.<br />

Os migrantes latino-americanos <strong>de</strong> língua espanhola têm procurado principalmente<br />

a Espanha e os Estados Unidos para viver, e no caso dos brasileiros<br />

observamos fluxos importantes para Portugal e Japão, além dos Estados<br />

Unidos. Os migrantes asiáticos procuram majoritariamente o Japão, a Coréia<br />

do Sul, o Oriente Médio, os Estados Unidos e a Europa.<br />

As r<strong>em</strong>essas <strong>de</strong> dinheiro dos imigrantes a seus países <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> tornaram-se<br />

também um fator econômico relevante. Atualmente, os <strong>em</strong>igrantes<br />

<strong>em</strong> geral r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> aproximadamente US$ 170 bilhões por ano <strong>de</strong> volta aos<br />

seus países <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> – no caso da América Latina, esse montante alcança<br />

aproximadamente US$ 50 bilhões anuais.<br />

Em relação aos refugiados <strong>de</strong>vido a conflitos, <strong>de</strong>stacam-se hoje os <strong>de</strong><br />

Darfur, Afeganistão, Iraque e Colômbia.<br />

3.10 PARADIPLOMACIA<br />

Atualmente, algumas esferas não-centrais <strong>de</strong> governo, como estados,<br />

municípios e parlamentos, realizam ativida<strong>de</strong>s internacionais <strong>em</strong> seus respectivos<br />

âmbitos, o que t<strong>em</strong> sido <strong>de</strong>nominado por alguns “paradiplomacia”.<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

Os termos <strong>de</strong> referência para as relações internacionais <strong>de</strong>ssas esferas <strong>de</strong><br />

Estado subnacionais são obviamente diferentes das políticas sob responsabilida<strong>de</strong><br />

dos governos centrais, pois não lidam diretamente com t<strong>em</strong>as como<br />

<strong>de</strong>fesa ou acordos comerciais. Mesmo assim, po<strong>de</strong>m compl<strong>em</strong>entar <strong>de</strong>terminadas<br />

políticas centrais dos governos, inclusive no que tange às relações<br />

internacionais, b<strong>em</strong> como ao <strong>de</strong>senvolvimento da cooperação técnica internacional<br />

conhecida como cooperação <strong>de</strong>scentralizada.<br />

Seu reconhecimento como atores pelas organizações internacionais também<br />

é limitado. Um governo estadual ou municipal t<strong>em</strong> o mesmo status <strong>de</strong><br />

uma ONG junto à ONU, apesar <strong>de</strong> já existir<strong>em</strong> organizações <strong>de</strong> municípios<br />

e regiões com representação mundial, como a re<strong>de</strong> Cida<strong>de</strong>s e Governos<br />

Locais Unidos (CGLU), fundada <strong>em</strong> 2004, com se<strong>de</strong> <strong>em</strong> Barcelona.<br />

Exist<strong>em</strong> outras re<strong>de</strong>s municipais organizadas <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> t<strong>em</strong>as específicos,<br />

como meio ambiente, educação, promoção da paz, projetos <strong>de</strong><br />

integração – como o Mercosul e a Comunida<strong>de</strong> Andina <strong>de</strong> Nações –, metrópoles,<br />

entre outras iniciativas.<br />

A população mundial, que hoje já é majoritariamente urbana (pouco<br />

mais <strong>de</strong> 50%), exige a aceleração do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização políticaadministrativa<br />

para aten<strong>de</strong>r à <strong>de</strong>manda por melhor atendimento das suas<br />

necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> proteção social e <strong>de</strong> políticas públicas.<br />

Este processo, para ser mais eficaz, <strong>de</strong>veria ser acompanhado por relações<br />

internacionais paradiplomáticas, uma vez que muitos probl<strong>em</strong>as são<br />

s<strong>em</strong>elhantes e a troca <strong>de</strong> experiências po<strong>de</strong> ser muito útil para racionalizar<br />

esforços. Além disso, a cooperação <strong>de</strong>scentralizada po<strong>de</strong> aportar recursos,<br />

e um conjunto importante <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s ou estados com as mesmas visões<br />

po<strong>de</strong>m incidir positivamente sobre as políticas <strong>de</strong> algumas instituições<br />

internacionais que normalmente <strong>de</strong>stinam recursos para a gestão dos governos<br />

subcentrais.<br />

4. AS INSTITUIÇÕES E AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS<br />

As primeiras organizações internacionais com caráter <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente técnico<br />

datam do século XIX. A Comissão Fluvial para tratar da navegação do<br />

rio Reno surgiu <strong>em</strong> 1815, e a Comissão do Danúbio <strong>em</strong> 1856. A União<br />

Telegráfica foi fundada <strong>em</strong> 1865, a União Postal Universal <strong>em</strong> 1874, a União<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

para Proteção da Proprieda<strong>de</strong> Intelectual <strong>em</strong> 1883, e a União das Ferrovias<br />

<strong>em</strong> 1890 (Seitenfus, 2000, p. 35).<br />

A OIT é <strong>de</strong> 1919 e nasceu da negociação do tratado para <strong>de</strong>finir os<br />

termos <strong>de</strong> paz com a Al<strong>em</strong>anha, que havia sido <strong>de</strong>rrotada na Primeira Guerra<br />

Mundial. Essa negociação também levou à criação da Socieda<strong>de</strong> das Nações<br />

(SDN), proposta na época pelo presi<strong>de</strong>nte norte-americano Woodrow<br />

Wilson para cuidar <strong>de</strong> segurança, cooperação econômica, social e humanitária<br />

e executar alguns dos dispositivos do Tratado <strong>de</strong> Versalhes.<br />

A visão “i<strong>de</strong>alista” <strong>de</strong> Wilson pressupunha que a organização não necessitaria<br />

<strong>de</strong> mecanismos coercitivos para funcionar, uma vez que apenas países<br />

<strong>de</strong>mocráticos po<strong>de</strong>riam se tornar m<strong>em</strong>bros, e se todos eram <strong>de</strong>mocráticos<br />

todos respeitariam as <strong>de</strong>cisões tomadas e não haveria necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coerção.<br />

Como sab<strong>em</strong>os, não funcionou assim, e o início da Segunda Guerra<br />

Mundial jogou uma pá <strong>de</strong> cal nessa primeira experiência <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> uma<br />

organização internacional para promover a cooperação entre as nações.<br />

Em meio ao novo conflito, quando a vitória começava a <strong>de</strong>spontar para os<br />

aliados, os principais governantes da época, Franklin Delano Roosevelt,<br />

Winston Churchill e Joseph Stálin, começaram a discutir como seria a<br />

regulação do mundo no período posterior <strong>de</strong> paz.<br />

Dessas conversações surgiram as Instituições <strong>de</strong> Bretton Woods (FMI e<br />

Banco Mundial-BIRD), a ONU e o GATT. Posteriormente surgiram novos<br />

organismos mais especializados, alguns incorporados ao sist<strong>em</strong>a das Nações<br />

Unidas e outros como organizações autônomas. Também foram criadas organizações<br />

específicas como a OCDE (Organização para a Cooperação e<br />

Desenvolvimento Econômico) e a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico<br />

Norte), além <strong>de</strong> organizações regionais.<br />

A Carta <strong>de</strong> São Francisco marcou a criação da ONU, <strong>em</strong> 1945, e atribuiu<br />

a ela a seguinte estrutura <strong>de</strong>cisória: a Ass<strong>em</strong>bléia Geral, instância maior, <strong>em</strong><br />

que todos os m<strong>em</strong>bros têm direito <strong>de</strong> voz e voto; o Conselho <strong>de</strong> Segurança,<br />

composto por 15 integrantes, dos quais cinco têm assento permanente e<br />

direito <strong>de</strong> veto e <strong>de</strong>z são rotativos, com mandatos <strong>de</strong> dois anos cada e escolhidos<br />

pela Ass<strong>em</strong>bléia Geral; o Secretariado, composto por todo o staff da<br />

organização e das diferentes funções da ONU, coor<strong>de</strong>nado por um secretário<br />

geral também eleito pela Ass<strong>em</strong>bléia; e, finalmente, a Corte <strong>Internacional</strong><br />

<strong>de</strong> Justiça.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 32<br />

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Fonte: Seitenfus, 2000, p. 123.<br />

Organograma das Nações Unidas<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Esta última, apesar da <strong>de</strong>nominação, não possui po<strong>de</strong>r coercitivo para<br />

obrigar um m<strong>em</strong>bro a cumprir alguma resolução. Somente o Conselho <strong>de</strong><br />

Segurança possui tal po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se trate <strong>de</strong> questões que viol<strong>em</strong> a paz,<br />

que a maioria dos seus m<strong>em</strong>bros esteja <strong>de</strong> acordo e que nenhum dos países<br />

com assento permanente aplique seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> veto à <strong>de</strong>cisão. O sist<strong>em</strong>a<br />

ONU t<strong>em</strong> a configuração apresentada no Organograma da página anterior.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

KEOHANE, Robert e NYE, J. S. Transnational Relations and World Politics.<br />

Cambridge, Cambridge University Press, 1971.<br />

MORGENTHAU, Hans (1948). A política entre as nações: a luta pelo po<strong>de</strong>r<br />

e pela paz. Brasília, UnB, 2000.<br />

RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio. O que são relações internacionais.<br />

São Paulo, Brasiliense, 1994.<br />

SARFATTI, Gilberto. Teorias das relações internacionais. São Paulo, Saraiva,<br />

2005.<br />

SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre,<br />

Livraria do Advogado, 2000.<br />

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA<br />

GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer<br />

ou não per<strong>de</strong>r. Porto Alger/Brasília, Editora da Universida<strong>de</strong>/UFRGS/<br />

FUNAG, 2000.<br />

GUIMARÃES, Samuel P. Quinhentos anos <strong>de</strong> periferia: uma contribuição ao<br />

estudo da política internacional. Porto Alegre/Rio <strong>de</strong> Janeiro, Universida<strong>de</strong><br />

UFRGS/Contraponto, 2000.<br />

PECEQUILO, Cristina S. Introdução às relações internacionais: t<strong>em</strong>as, atores<br />

e visões. Petrópolis, Vozes, 2004.<br />

REVISTA <strong>Política</strong> Externa. São Paulo, Paz e Terra, vol. 15, n. 3, <strong>de</strong>z.-jan.fev.<br />

2006.<br />

VIGEVANI, Tullo e WANDERLEY, Luís Eduardo V. (orgs.). A dimensão<br />

subnacional e as relações internacionais. São Paulo/Bauru, EUC/Unesp/<br />

EDUSC, 2004.<br />

34<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 34<br />

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1. INTRODUÇÃO<br />

Retalhos para uma história<br />

dos movimentos contra a<br />

globalização neoliberal 1<br />

Gustavo Codas 2<br />

Kjeld Jakobsen<br />

O t<strong>em</strong>a proposto para a exposição – “Um olhar sobre o mundo; a situação<br />

atual da luta dos trabalhadores <strong>em</strong> suas várias dimensões; os partidos<br />

políticos, as organizações internacionais, os movimentos sociais e as centrais<br />

sindicais; o Fórum Social Mundial; os governos <strong>de</strong> esquerda e progressistas”<br />

– precisaria <strong>de</strong> uma boa equipe <strong>de</strong> pesquisadores <strong>de</strong>dicada por longos<br />

meses para conseguir chegar a um resultado aceitável 3 .<br />

Nas condições <strong>em</strong> que realizamos este trabalho, no entanto, nosso objetivo<br />

está aquém do anunciado no t<strong>em</strong>a do curso. Falamos <strong>em</strong> um estudo <strong>em</strong><br />

“retalhos” porque nos aproximar<strong>em</strong>os aqui apenas <strong>de</strong> alguns aspectos do t<strong>em</strong>a<br />

que nos foi proposto. Em nossa opinião, são capítulos importantes dos movimentos<br />

que têm se <strong>de</strong>senvolvido nos anos recentes contra a globalização<br />

neoliberal, mas não dão conta do “todo”. Por outro lado, são retalhos porque<br />

no estágio <strong>em</strong> que se encontra nossa elaboração falta ainda explorar conexões<br />

1 Este artigo resulta da fusão e da reelaboração <strong>de</strong> outros já publicados pelo autor: “¿Cuál es el papel<br />

<strong>de</strong>l Foro Social Mundial?”. Alternativas. Revista <strong>de</strong> análisis y reflexión teológica, ano 10, n. 25, Manágua,<br />

Editorial Lascasiana, jan.-jun. 2003; “De volta a Seattle: anotações sobre o futuro do ‘processo FSM’”.<br />

Proposta. Revista Trimestral <strong>de</strong> Debate da FASE, ano 28, n. 102, Rio <strong>de</strong> Janeiro, FASE, set.-nov. 2004; “América<br />

Latina: integração e lutas <strong>de</strong> <strong>em</strong>ancipação”. Contexto Latinoamericano. Revista <strong>de</strong> Análisis Político, n. 1,<br />

Bogotá, Ocean Sur, set.-<strong>de</strong>z., 2006; Trajetória, estrutura e funcionamento da Aliança Social Continental, documento<br />

para <strong>de</strong>bate no Conselho H<strong>em</strong>isférico da ASC <strong>em</strong> Havana, 3-6 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2007.<br />

2 Economista e jornalista paraguaio, resi<strong>de</strong> no Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1983; é assessor da Secretaria <strong>de</strong> Relações<br />

Internacionais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), e t<strong>em</strong> participado como representante da<br />

CUT <strong>em</strong> diversos momentos e instâncias do Fórum Social Mundial, da Ass<strong>em</strong>bléia <strong>de</strong> Movimentos<br />

Sociais e da Aliança Social Continental (ASC). Escreve aqui a título pessoal.<br />

3 O único esforço sério feito nesse sentido foi o livro <strong>de</strong> Amin e Houtart (2002), publicado no Brasil<br />

pela editora Cortez, <strong>em</strong> 2004, com a data do título alterada para “2003”. O livro foi o resultado <strong>de</strong><br />

uma iniciativa da re<strong>de</strong> Forum Mondial <strong>de</strong>s Alternatives que lamentavelmente não teve continuida<strong>de</strong>.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 35<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

entre os diversos aspectos aqui abordados e buscar chegar a conclusões mais<br />

abrangentes sobre o conjunto dos probl<strong>em</strong>as. Em suma, trata-se <strong>de</strong> um material<br />

<strong>de</strong> estudo e trabalho, antes que <strong>de</strong> um produto acabado.<br />

O conteúdo a seguir está dividido <strong>em</strong> tópicos <strong>de</strong>dicados ao Fórum Social<br />

Mundial (FSM), à Ass<strong>em</strong>bléia <strong>de</strong> Movimentos Sociais e à Aliança Social<br />

Continental (ASC) como casos e momentos-chave do amplo processo <strong>de</strong><br />

reorganização da socieda<strong>de</strong> civil mundial no cenário da globalização<br />

neoliberal. Desse estudo <strong>de</strong>riva uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>safios ainda não respondidos<br />

e que encontram <strong>em</strong> nossa região uma conjuntura toda especial. Por<br />

isso, finalizar<strong>em</strong>os com um tópico <strong>de</strong>dicado à aproximação dos processos<br />

políticos latino-americanos, suas potencialida<strong>de</strong>s e seus <strong>de</strong>safios.<br />

2. O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL (FSM): UMA RECOMPOSIÇÃO DEMORADA<br />

Entre o final dos anos 1980 e o início da década <strong>de</strong> 1990, um conjunto<br />

<strong>de</strong> fatos pôs <strong>em</strong> evidência a profunda <strong>de</strong>rrota política das esquerdas no<br />

mundo. Vista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> nossa região, essa é a fase <strong>em</strong> que, ao lado do impacto<br />

da queda do muro <strong>de</strong> Berlim (1989) e da dissolução da União das Repúblicas<br />

Socialistas Soviéticas (URSS) (1991), os sandinistas foram <strong>de</strong>rrotados<br />

eleitoralmente (1990), os processos <strong>de</strong> insurgência popular <strong>em</strong> El Salvador<br />

e na Guat<strong>em</strong>ala foram <strong>de</strong>tidos, Cuba iniciou a travessia no <strong>de</strong>serto do “período<br />

especial” 4 e o neoliberalismo tornou-se programa <strong>de</strong> governo <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas<br />

<strong>de</strong> países <strong>em</strong> nosso continente. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, ocorreu a primeira<br />

guerra contra o Iraque, quando o governo dos Estados Unidos estreou o “mundo<br />

unipolar” sob sua supr<strong>em</strong>acia militar. O neoliberalismo alterou as bases materiais<br />

<strong>de</strong> nossas socieda<strong>de</strong>s produzindo altas taxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego e precarização<br />

que acompanhavam o ritmo <strong>de</strong> uma onda i<strong>de</strong>ológica consumista e individualista.<br />

O socialismo saiu do horizonte do <strong>de</strong>bate, as organizações populares<br />

viram suas bases sociais tradicionais se <strong>de</strong>teriorar<strong>em</strong>, a idéia <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong><br />

4 Período especial é a <strong>de</strong>nominação com que ficou conhecida a década <strong>de</strong> 1990 <strong>em</strong> Cuba, quando<br />

esse país sofreu os brutais impactos econômicos (“uma das mais duras crises <strong>de</strong> sua história”) da<br />

<strong>de</strong>rrubada do bloco socialista. Cuba respon<strong>de</strong>u com “um forte processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>senho da política<br />

econômica, <strong>de</strong> reconversão industrial e <strong>de</strong> transformação estrutural da gestão produtiva” que lhe<br />

permitiu voltar a “crescer e se <strong>de</strong>senvolver” (ver: “La Economía Cubana en el Período Especial”,<br />

disponível <strong>em</strong> ).<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 36<br />

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Gustavo Codas<br />

foi posta <strong>em</strong> questão, <strong>em</strong> suma, os valores e as referências que tínhamos<br />

construído na fase anterior estavam sob intenso ataque.<br />

Houve ao longo do período <strong>de</strong> ascenso do neoliberalismo inúmeras lutas<br />

sociais <strong>de</strong> resistência, mas num contexto <strong>de</strong> isolamento político. Em nossa<br />

região, esse quadro teve sua mais clara expressão no Caracazo, <strong>em</strong> 1989, a<br />

sublevação popular na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caracas contra um pacote <strong>de</strong> medidas impostas<br />

pelo FMI (Fundo Monetário <strong>Internacional</strong>) e pelo governo recémeleito<br />

<strong>de</strong> Carlos Andrés Perez, que foi reprimida com violência, resultando <strong>em</strong><br />

centenas <strong>de</strong> mortos. Na década seguinte houve o clarão <strong>de</strong> uma nova conjuntura<br />

quando o levante indígena zapatista <strong>em</strong> Chiapas, no México, <strong>em</strong> janeiro<br />

<strong>de</strong> 1994, <strong>de</strong>spertou gran<strong>de</strong> simpatia internacional e nacional. Mas teríamos<br />

<strong>de</strong> esperar até o final da década para que processos mais amplos <strong>de</strong> contestação<br />

surgiss<strong>em</strong>, já num marco <strong>de</strong> visíveis dificulda<strong>de</strong>s mundiais do<br />

neoliberalismo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a eclosão da crise do su<strong>de</strong>ste asiático <strong>em</strong> 1997. Essa<br />

história começou internacionalmente com a repercussão que tiveram as manifestações<br />

<strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1999 <strong>em</strong> Seattle (Estados Unidos).<br />

O Fórum Social Mundial surgiu <strong>em</strong> 2001 nesse cal<strong>de</strong>irão 5 . Ao rastrear<br />

seus antece<strong>de</strong>ntes internacionais vamos encontrar o I Encontro Intergaláctico<br />

pela Humanida<strong>de</strong> e contra o Neoliberalismo (27 <strong>de</strong> julho a 3 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />

1996), organizado pelo EZLN (Exército Zapatista <strong>de</strong> Libertação Nacional),<br />

<strong>em</strong> Chiapas. Convocado por uma organização político-militar, no entanto,<br />

foi um momento <strong>de</strong> uma inédita convergência <strong>de</strong> setores sociais e<br />

políticos <strong>de</strong> esquerda muito plurais (o que voltaria a se repetir no FSM). A<br />

campanha contra o Acordo Multilateral <strong>de</strong> Investimentos (AMI) <strong>em</strong> 1997-<br />

1998 e sua repercussão na opinião pública mundial mostraram que era<br />

possível <strong>de</strong>ter o avanço das medidas neoliberais que estavam <strong>em</strong> negociação<br />

<strong>em</strong> instituições multilaterais 6 . Em janeiro <strong>de</strong> 1999, na Suíça, um conjunto<br />

5 O livro <strong>de</strong> Aguiton (2002) traz um amplo panorama do surgimento dos movimentos altermundialistas<br />

no final dos anos 1990 e início da presente década que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bocaram no processo do FSM e brinda<br />

com informação sobre uma série <strong>de</strong> encontros que prece<strong>de</strong>ram a Porto Alegre 2001 e serviram para<br />

construir o ambiente mundial favorável a essa ampla convergência no espaço Fórum.<br />

6 Pelo papel que teve nessa campanha e na criação (<strong>em</strong> boa medida impulsionada pelo seu êxito) da<br />

ATTAC (Associação pela Taxação dos Capitais <strong>em</strong> Apoio aos Cidadãos) <strong>em</strong> finais <strong>de</strong> 1998, o jornal<br />

Le Mon<strong>de</strong> Diplomatique ganhou ares <strong>de</strong> porta-voz do altermundialismo, ainda que nunca tenha perdido<br />

seu sotaque político francês. O slogan “Outro mundo é possível”, popularizado <strong>de</strong>pois pelo FSM,<br />

foi utilizado <strong>em</strong> um encontro internacional realizado <strong>em</strong> 1999, iniciativa <strong>de</strong>ssa e <strong>de</strong> outras re<strong>de</strong>s.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

<strong>de</strong> re<strong>de</strong>s internacionais realizou o encontro <strong>de</strong>nominado O Outro Davos 7 ,<br />

<strong>em</strong> contraposição ao Fórum Econômico Mundial que as gran<strong>de</strong>s corporações<br />

multinacionais realizam nessa cida<strong>de</strong> anualmente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1973 (idéia que<br />

<strong>de</strong>pois seria assumida como mote pelo FSM).<br />

Se analisarmos nossa região, ver<strong>em</strong>os que o FSM veio precedido <strong>de</strong> uma<br />

intensa ativida<strong>de</strong> dos movimentos sociais. Entre os antece<strong>de</strong>ntes mais importantes<br />

esteve a campanha continental contra os 500 anos <strong>de</strong> colonialismo<br />

<strong>em</strong> 1992. Nela, uma convergência entre movimentos indígenas, camponeses,<br />

<strong>de</strong> bairros, <strong>de</strong> mulheres, da cultura e comunicadores populares, entre<br />

outros, apontava a conformação <strong>de</strong> novos atores políticos. Articulações continentais<br />

surgiram ou se fortaleceram nesse processo na nova conjuntura<br />

que se <strong>de</strong>lineava <strong>em</strong> nossa região nos anos 1990: a Via Campesina e a Coor<strong>de</strong>nação<br />

Latino-americana <strong>de</strong> Organizações do Campo (CLOC); os encontros<br />

<strong>de</strong> povos indígenas que resultaram <strong>em</strong> coor<strong>de</strong>nações (amazônica, andina<br />

etc., e que <strong>em</strong> março <strong>de</strong> 2007, na Guat<strong>em</strong>ala, constituíram uma coor<strong>de</strong>nação<br />

<strong>de</strong> nível continental); o Jubileu Sul Américas e os “50 anos (<strong>de</strong> FMI/<br />

Banco Mundial) bastam”; a Marcha Mundial das Mulheres e a Re<strong>de</strong> Mulheres<br />

Transformando a Economia (REMTE); a Frente Continental <strong>de</strong> Organizações<br />

Comunitárias (FCOC); o Grito Continental dos/as Excluídos/<br />

as; a Aliança Social Continental; a Campanha Continental contra a ALCA<br />

(Área <strong>de</strong> Livre Comércio das Américas) e os Encontros H<strong>em</strong>isféricos <strong>de</strong><br />

Luta contra a ALCA; a Convergência <strong>de</strong> Movimentos Populares (COMPA);<br />

a Ass<strong>em</strong>bléia dos Povos do Caribe (APC). O mesmo processo encontramos<br />

no Brasil na constituição e no importante papel que cumpriu o Fórum<br />

Nacional <strong>de</strong> Lutas na década <strong>de</strong> 1990 e início da atual ao unificar todos os<br />

setores sociais e partidários contrários às medidas neoliberais dos dois mandatos<br />

<strong>de</strong> FHC (Fernando Henrique Cardoso).<br />

A força do evento <strong>de</strong> Porto Alegre <strong>em</strong> 2001 proveio <strong>de</strong> uma peculiar<br />

convergência <strong>de</strong> fatores. As primeiras organizações sociais brasileiras<br />

convocadoras sintetizavam a convergência <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong>s políticas diversas,<br />

ajudando a reproduzir essa pluralida<strong>de</strong> <strong>em</strong> nível internacional. Essa<br />

7 Sobre esse evento ver o livro publicado por Houtart e Polet (2002). Houtart, padre católico belga,<br />

expoente da teologia da libertação, foi um dos animadores do encontro.<br />

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Gustavo Codas<br />

convergência brasileira foi facilitada porque <strong>em</strong> 2000 todas tinham <strong>em</strong> maior<br />

ou menor medida uma referência política no Partido dos Trabalhadores<br />

(PT) e várias vinham <strong>de</strong> um trabalho conjunto no Fórum Nacional <strong>de</strong> Lutas.<br />

Porto Alegre foi escolhida pela forte presença <strong>de</strong> movimentos sociais e<br />

das esquerdas partidárias e pelas experiências dos governos do PT <strong>de</strong> ampliação<br />

da <strong>de</strong>mocracia a formas participativas e diretas (o “orçamento participativo”<br />

na prefeitura e no governo estadual). Esses governos (Olívio Dutra no estado<br />

do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul; Raul Pont até 2000 e Tarso Genro <strong>em</strong> 2001, na<br />

prefeitura <strong>de</strong> Porto Alegre) não somente <strong>de</strong>ram gran<strong>de</strong> apoio financeiro e <strong>de</strong><br />

infra-estrutura, s<strong>em</strong> nenhuma exigência <strong>de</strong> contrapartidas políticas, como<br />

introduziram a perspectiva <strong>de</strong> ir além <strong>de</strong> um mero encontro e transformá-lo<br />

<strong>em</strong> um evento <strong>de</strong> massas – como efetivamente veio a ser.<br />

3. DUAS DINÂMICAS E UM MÉTODO<br />

Já se passaram sete anos. Houve Fóruns Mundiais no Brasil (2001,<br />

2002, 2003, 2005), na Índia (2004) e no Quênia (2007), <strong>em</strong> 2006<br />

houve um Mundial Policêntrico (Venezuela, Mali, Paquistão), têm havido<br />

fóruns continentais e regionais, além <strong>de</strong> nacionais e t<strong>em</strong>áticos, subregionais<br />

e locais <strong>em</strong> muitas partes do mundo. Se os Estados Unidos eram<br />

uma referência importante pela mobilização <strong>de</strong> 1999 <strong>em</strong> Seattle, somente<br />

<strong>em</strong> junho <strong>de</strong> 2007 realizarão seu primeiro Fórum Social nacional. Enquanto<br />

algumas partes do mundo têm vivido o processo FSM <strong>de</strong> uma<br />

maneira mais intensa, <strong>em</strong> outras apenas têm chegado ecos – é o caso <strong>de</strong><br />

quase toda a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e do<br />

Leste Europeu, boa parte do Extr<strong>em</strong>o Oriente e do mundo árabe e muçulmano.<br />

Tal heterogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do processo FSM dificulta fazer afirmações<br />

gerais <strong>de</strong> balanço e perspectivas.<br />

Mas a importância <strong>de</strong> Seattle e das manifestações que lhe seguiram não<br />

po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sprezada. O FSM precisou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início tentar ser um espelho<br />

<strong>de</strong>las para se legitimar. Foram essas ações <strong>de</strong> rua que gestaram o que <strong>de</strong>pois<br />

o Fórum tentaria sist<strong>em</strong>atizar como “método”. A marca do FSM como espaço<br />

aberto v<strong>em</strong> do fato <strong>de</strong> que tais iniciativas buscavam a convergência <strong>de</strong><br />

setores muito diversos (cultural, organizativa e i<strong>de</strong>ologicamente), ainda que<br />

unidos pela rejeição da or<strong>de</strong>m mundial imposta (a tentativa <strong>de</strong> acordo na<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

OMC – Organização Mundial do Comércio – <strong>em</strong> 1999, no caso <strong>de</strong> Seattle) 8 .<br />

Novas formas <strong>de</strong> fazer política (organizações comunitárias <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>,<br />

grupos culturais, experiências <strong>em</strong> re<strong>de</strong>s horizontais etc.) convergiam com antigas<br />

organizações (como as centrais sindicais e as ONGs ligadas à conferências<br />

da ONU – Organização das Nações Unidas) 9 . Organizações <strong>de</strong> ação direta<br />

caminhavam ao lado <strong>de</strong> manifestantes <strong>de</strong> organizações <strong>de</strong> tipo institucionalista.<br />

A crise político-i<strong>de</strong>ológica que se abateu sobre a esquerda no início dos anos<br />

1990 <strong>de</strong>bilitou os principais aparatos do movimento operário antes dominantes<br />

(as diversas correntes social<strong>de</strong>mocráticas e as oriundas do stalinismo),<br />

dificultando qualquer tentação heg<strong>em</strong>onista. A <strong>de</strong>sorganização programática 10<br />

da esquerda no início dos anos 1990 abriu condições para que uma década<br />

<strong>de</strong>pois houvesse maior abertura para a busca <strong>de</strong> novas convergências<br />

programáticas entre os movimentos (e entre partidos políticos).<br />

Assim como <strong>em</strong> Seattle, no FSM convergiram o que po<strong>de</strong>mos<br />

esqu<strong>em</strong>aticamente caracterizar como dois setores diferentes. Estavam lá organizações<br />

(boa parte das centrais sindicais, <strong>em</strong> geral as ONGs e as organizações<br />

f<strong>em</strong>inistas institucionalistas) que diante da ofensiva neoliberal dos<br />

anos anteriores tinham ensaiado estratégias <strong>de</strong> incidência, lobby e advocacy 11<br />

sobre organismos multilaterais, tentando diminuir os impactos negativos<br />

do neoliberalismo. Foi uma cultura política reforçada pelo ciclo das Confe-<br />

8 Essa característica do FSM como “espaço aberto” (“que não adota campanhas enquanto tal”) foi<br />

sendo construída. Ainda na segunda reunião do Conselho <strong>Internacional</strong> do FSM, realizada <strong>em</strong> 30 <strong>de</strong><br />

outubro a 1 o <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2001 <strong>em</strong> Dakar (Senegal), representantes <strong>de</strong> duas organizações do<br />

Comitê Organizador brasileiro (Cives – Associação Brasileira <strong>de</strong> Empresários pela Cidadania – e<br />

Comissão Brasileira Justiça e Paz – CBJP) propuseram que se assumisse uma campanha mundial para<br />

erradicar a fome do mundo <strong>em</strong> um curto prazo como forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar os organismos multilaterais.<br />

A proposta foi polêmica e não prosperou.<br />

9 Que as formas organizativas sejam novas não significa automaticamente que super<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as<br />

das antigas organizações e culturas políticas. Por ex<strong>em</strong>plo, uma das experiências-símbolo da nova<br />

cultura política e do FSM como um todo, a ATTAC França, recent<strong>em</strong>ente entrou <strong>em</strong> profunda crise<br />

após um setor que dominava sua direção ter fraudado as eleições internas (nada mais tradicional <strong>em</strong><br />

política que fraudar uma eleição!) para evitar per<strong>de</strong>r a presidência da organização. Do mesmo modo,<br />

nada é tão típico da cultura política tradicional quanto o personalismo exibido pelos três autores –<br />

pessoas representativas do processo FSM – nos livros citados na nota 14 (página 44), <strong>em</strong> que tentam<br />

contar a história do Fórum na primeira pessoa do singular; a esse respeito ver a crítica <strong>de</strong> Kjeld Jakobsen<br />

na seção <strong>de</strong> resenha <strong>de</strong> livros da revista Teoria e Debate, n. 62, abr.-maio 2005.<br />

10 A expressão foi cunhada pelo espanhol Miguel Romero (hoje editor da revista Viento Sur) no<br />

início dos anos 1990 para <strong>de</strong>screver a crise que se abateu sobre as esquerdas no mundo.<br />

11 Advocacy é a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> estratégias para influenciar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong> civil,<br />

na elaboração e na impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong>finidas pelos po<strong>de</strong>res do Estado.<br />

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Gustavo Codas<br />

rências da ONU (ambiental, social, hábitat, mulheres etc.) ao longo da<br />

década. S<strong>em</strong> que existisse uma fronteira nítida, no entanto, foi crescendo ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po outra cultura política e outra orientação estratégica que questionavam<br />

a valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meros lobbies naqueles espaços multilaterais, privilegiavam<br />

as ações diretas e <strong>de</strong> rua e buscavam uma contraposição global à<br />

nova or<strong>de</strong>m através <strong>de</strong> campanhas. Havia evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente toda uma zona<br />

cinzenta <strong>de</strong> experiências e organizações que transitavam entre esses “dois<br />

pólos”. O que viria a ser o FSM foi “fundado” <strong>em</strong> 1999 <strong>em</strong> Seattle, pois lá,<br />

pela primeira vez e <strong>de</strong> forma muito ampla e internacional, essas duas culturas<br />

e todas as suas nuanças se unificaram na rua, mostrando as potencialida<strong>de</strong>s<br />

das mobilizações comuns ou, pelo menos, articuladas. Teve um efeito <strong>de</strong>monstração<br />

instantâneo sobre inúmeras outras mobilizações que viriam a<br />

ocorrer na seqüência. Feita essa proeza por milhares <strong>de</strong> militantes anônimos,<br />

bastou <strong>de</strong>pois às entida<strong>de</strong>s organizadoras do “evento FSM” tentar transpor<br />

a um “método” o que as multidões tinham produzido na luta política.<br />

4. GOVERNOS, PARTIDOS E DILEMAS DO FSM<br />

Há uma “crise da política” e <strong>de</strong> seus atores tradicionais (partidos, instituições<br />

do Estado etc.). Entre as várias críticas que lhe po<strong>de</strong>m ser feitas, há<br />

duas que têm forte repercussão nos movimentos sociais: o sentimento <strong>de</strong><br />

que mudam governos mas não mudam – ou pouco mudam – as políticas<br />

impl<strong>em</strong>entadas, e a percepção <strong>de</strong> que a lógica da construção dos partidos<br />

progressistas (sejam mais à esquerda ou mais mo<strong>de</strong>rados) é necessariamente<br />

burocrática, exclu<strong>de</strong>nte, centralizadora etc. Na sua versão mais recente, o<br />

discurso crítico afirma que a tentativa <strong>de</strong> tomar o po<strong>de</strong>r construído pela<br />

burguesia nos faria assumir características similares às que afirmamos combater<br />

– daí a hipótese <strong>de</strong> “mudar o mundo s<strong>em</strong> tomar o po<strong>de</strong>r”.<br />

As primeiras respostas a essa crise vieram, no início dos anos 1990, na<br />

forma da volta ao espaço local e a formas <strong>de</strong> vida comunitária. Mas essa<br />

resposta era ambígua <strong>em</strong> relação ao <strong>de</strong>safio colocado pela heg<strong>em</strong>onia<br />

neoliberal. Em alguns casos, víamos surgir fortes processos <strong>de</strong> resistência<br />

local, com vocação até mesmo <strong>de</strong> se expandir para além <strong>de</strong> seu espaço inicial.<br />

Porém, <strong>em</strong> outros, o localismo era apenas o verniz que a adaptação às<br />

políticas neoliberais assumia junto à comunida<strong>de</strong>. Dessa matriz surgiram<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

tanto visões e práticas <strong>de</strong> enfrentamento com a or<strong>de</strong>m conservadora como<br />

<strong>de</strong> submissão a ela. Para dizê-lo um pouco caricaturalmente, com a mesma<br />

lógica se podia construir uma comunida<strong>de</strong> indígena zapatista autônoma no<br />

México ou uma parceria com o programa Comunida<strong>de</strong> Solidária no Brasil<br />

sob o governo FHC.<br />

No FSM a questão da política e a questão dos partidos são matérias pen<strong>de</strong>ntes.<br />

Há que se esclarecer que a “exclusão” <strong>de</strong> partidos na organização do<br />

FSM aconteceu num segundo momento. Qualquer um(a) que revisar as<br />

primeiras atas do que viria a ser o primeiro Comitê Organizador do FSM <strong>de</strong><br />

2001 verá que havia a presença <strong>de</strong> uma representante da direção nacional<br />

do PT. Nossa interpretação é <strong>de</strong> que a “separação formal”, que aconteceu a<br />

seguir, foi mais por comodida<strong>de</strong> do que por formulação política. Malgrado<br />

muitas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, seria difícil conciliar as priorida<strong>de</strong>s da socieda<strong>de</strong> civil<br />

(elaborar agendas alternativas) com as dos partidos políticos <strong>de</strong> maior peso<br />

(como construir a governabilida<strong>de</strong> ao chegar ao po<strong>de</strong>r). Assim, o FSM se<br />

firmou como “espaço da socieda<strong>de</strong> civil” no qual os partidos políticos são<br />

observadores ou parceiros <strong>em</strong> ativida<strong>de</strong>s realizadas por organizações sociais,<br />

mas não são eles mesmos “organizadores” 12 . Essa “solução” foi necessária <strong>em</strong><br />

certo estágio <strong>de</strong> construção da contestação à or<strong>de</strong>m neoliberal. Mas não<br />

ajudará a sair do impasse estratégico. Serão necessárias novas formulações<br />

para “politizar a socieda<strong>de</strong> civil”, mas também para “<strong>de</strong>soligarquizar a política”.<br />

O diálogo entre essas esferas, seu mútuo questionamento, a busca <strong>de</strong><br />

novas sínteses são tarefas que o próprio êxito do FSM pôs <strong>em</strong> pauta 13 . A<br />

questão agora (2007) assume feições próprias na América Latina pelo avan-<br />

12 Essa fórmula foi impl<strong>em</strong>entada primeiro pelo Fórum Social Europeu e <strong>de</strong>pois assumida pelo<br />

conjunto do FSM. A verda<strong>de</strong> é que nas primeiras edições do FSM o Comitê Organizador brasileiro<br />

foi amplamente tolerante e aceitou a realização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> partidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que formalmente<br />

estivess<strong>em</strong> inscritas por alguma organização social. Ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> governos (a começar pelas dos<br />

dois governos locais que apoiavam o evento) s<strong>em</strong>pre foram aceitas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>em</strong> parceria com<br />

organizações sociais.<br />

13 Contraditoriamente, <strong>em</strong> suas origens o FSM expressava talvez <strong>de</strong> maneira mais clara essa necessida<strong>de</strong>;<br />

não foi por outro motivo senão pela experiência do orçamento participativo iniciada <strong>em</strong><br />

Porto Alegre, como <strong>em</strong>brião <strong>de</strong> uma “nova política”, que, quando se pensou <strong>em</strong> convocar o<br />

primeiro FSM para janeiro <strong>de</strong> 2001, o consenso entre entida<strong>de</strong>s brasileiras e estrangeiras foi que<br />

<strong>de</strong>veria acontecer naquela cida<strong>de</strong>, um lugar on<strong>de</strong> o “outro mundo possível” já tinha começado a ser<br />

construído. Esse quadro regrediu com as <strong>de</strong>rrotas eleitorais do PT no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (2004) e <strong>em</strong><br />

Porto Alegre (2006), mas, <strong>em</strong> compensação, se diss<strong>em</strong>inou <strong>em</strong> várias experiências nacionais na<br />

América Latina.<br />

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ço <strong>de</strong> forças políticas progressistas e <strong>de</strong> esquerda no plano institucional,<br />

com cerca <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> países <strong>em</strong> que os governos têm projetos variados<br />

que afirmam querer superar a fase neoliberal e/ou a <strong>de</strong>pendência <strong>em</strong><br />

relação ao imperialismo norte-americano. Voltar<strong>em</strong>os a esse ponto quando<br />

tratarmos da conjuntura regional ao final <strong>de</strong>ste texto.<br />

5. A ASSEMBLÉIA DE MOVIMENTOS SOCIAIS<br />

Em outubro <strong>de</strong> 2000, isto é, quase quatro meses antes do primeiro FSM,<br />

reuniram-se representantes da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e<br />

do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais S<strong>em</strong> Terra) <strong>em</strong> São Paulo<br />

para discutir a proposta que estava circulando entre várias re<strong>de</strong>s internacionais<br />

<strong>de</strong> realizar <strong>de</strong>ntro do FSM uma ativida<strong>de</strong> que já <strong>em</strong> Porto Alegre seria<br />

conhecida como a Ass<strong>em</strong>bléia <strong>de</strong> Movimentos Sociais, e que foi finalmente<br />

convocada e organizada por um conjunto <strong>de</strong> organizações e re<strong>de</strong>s nacionais,<br />

continentais e mundiais. Em diversas modalida<strong>de</strong>s, ass<strong>em</strong>bléias similares<br />

aconteceram também nas edições regionais ou mundiais seguintes do FSM,<br />

s<strong>em</strong>pre convocadas por um amplo leque <strong>de</strong> movimentos sociais. S<strong>em</strong> negar<br />

as diferenças políticas entre seus participantes, essas ass<strong>em</strong>bléias buscavam<br />

i<strong>de</strong>ntificar as visões políticas comuns sobre o período e <strong>em</strong> relação a uma<br />

agenda <strong>de</strong> mobilizações mundialmente articuladas.<br />

Sua novida<strong>de</strong> residia <strong>em</strong> sua realização <strong>de</strong>ntro do FSM, buscando construir<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s no amplo espaço plural <strong>de</strong>sse processo, s<strong>em</strong> se sobrepor a<br />

outras dinâmicas <strong>de</strong> convergência já existentes (sobretudo re<strong>de</strong>s t<strong>em</strong>áticas<br />

mundiais), mas fazendo com que dialogass<strong>em</strong> entre si e ajudando a que<br />

suas agendas foss<strong>em</strong> assumidas por novos segmentos.<br />

O momento <strong>de</strong> maior ressonância <strong>de</strong>sses esforços foi quando a Ass<strong>em</strong>bléia<br />

<strong>de</strong> Movimentos Sociais do FS Europeu <strong>de</strong> 2002 e a do FSM <strong>de</strong> 2003<br />

convocaram uma manifestação global contra a invasão militar do Iraque<br />

pelos Estados Unidos. Esse 15 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2003 catalisou uma mobilização<br />

mundial s<strong>em</strong> prece<strong>de</strong>ntes. Porém, tão importante quanto esse momento,<br />

as ass<strong>em</strong>bléias foram construindo uma confiança política mútua<br />

entre as organizações participantes.<br />

Na terceira ass<strong>em</strong>bléia <strong>em</strong> Porto Alegre, <strong>em</strong> 2003, foi lançada a proposta<br />

<strong>de</strong> constituir uma re<strong>de</strong> como vínculo permanente entre os movimentos<br />

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participantes. Buscava-se promover as convergências para além dos momentos<br />

<strong>em</strong> que se realizavam os eventos. Assim, estamos hoje <strong>em</strong> um momento<br />

intermediário, tentando <strong>de</strong>cifrar os caminhos possíveis <strong>de</strong> construção da<br />

re<strong>de</strong> colada com o cotidiano dos movimentos e evitar a constituição <strong>de</strong> mais<br />

uma “estrutura” – o que não <strong>de</strong>sejamos n<strong>em</strong> é nosso objetivo construir.<br />

Outros setores também fizeram suas experiências <strong>de</strong> encontro e articulação<br />

<strong>de</strong>ntro do FSM. Essa autogestão das convergências é uma dimensão<br />

ainda pouco analisada nos balanços até agora escritos. Houve ainda qu<strong>em</strong><br />

abordasse a realização das ass<strong>em</strong>bléias com <strong>de</strong>sconfiança – como se as convergências<br />

autogeridas foss<strong>em</strong> antagônicas no que diz respeito à diversida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro do espaço FSM 14 .<br />

Porém, apesar <strong>de</strong> todas essas <strong>de</strong>ficiências e dos mal-entendidos, o fato é<br />

que o FSM 2005 colocou como um dos pontos centrais <strong>de</strong> sua metodologia<br />

a tarefa <strong>de</strong> estimular experiências <strong>de</strong> convergências sobre plataformas, estratégias<br />

e ações. E a questão foi retomada no FSM <strong>de</strong> Nairóbi, <strong>em</strong> 2007, com<br />

um “quarto dia” <strong>de</strong>dicado a trabalhar articulações e o lançamento <strong>de</strong> campanhas,<br />

na expectativa <strong>de</strong> que <strong>em</strong> janeiro <strong>de</strong> 2008 se express<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma<br />

Jornada Mundial a ser realizada <strong>em</strong> todos os países/regiões/continentes no<br />

mesmo período do Fórum Econômico Mundial <strong>de</strong> Davos. Como <strong>em</strong> Seattle,<br />

serão os <strong>de</strong>bates que tenham como objetivo construir lutas concretas que<br />

permitirão fazer todas as discussões estratégicas anteriormente referidas num<br />

ambiente que signifique um salto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> para os movimentos <strong>de</strong><br />

altermundialização.<br />

6. A ALIANÇA SOCIAL CONTINENTAL<br />

Não t<strong>em</strong>os escrita uma história da Aliança Social Continental, mas, s<strong>em</strong><br />

dúvida, esta experiência se enquadra naquele contexto dos anos 1990 15 . Seu<br />

antece<strong>de</strong>nte mais r<strong>em</strong>oto, provavelmente, foram os esforços <strong>de</strong> articulação<br />

realizados por organizações mexicanas, estaduni<strong>de</strong>nses e cana<strong>de</strong>nses para<br />

14 Para essas críticas à ass<strong>em</strong>bléia ver os livros <strong>de</strong> Bernard Cassen (2003) – representante da ATTAC<br />

França – e <strong>de</strong> Chico Whitaker (2005) – representante da CBJP – com prefácio <strong>de</strong> O<strong>de</strong>d Grajew – por<br />

sua vez, representante da Cives.<br />

15 Entre as referências disponíveis, ver o texto do mexicano Cueva (2000).<br />

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resistir ao NAFTA (North American Free Tra<strong>de</strong> Agre<strong>em</strong>ent – Tratado <strong>de</strong><br />

Livre Comércio da América do Norte). Essa experiência nos ensinou, primeiro,<br />

o que significava essa nova geração <strong>de</strong> acordos comerciais, mas também<br />

que era necessária e se podia fazer uma aliança entre movimentos do<br />

Sul e do Norte com objetivos comuns.<br />

Assim, quando retomou a proposta da Iniciativa para as Américas (1991)<br />

apresentada pelo governo do “primeiro” Bush, o presi<strong>de</strong>nte Clinton lançou<br />

<strong>em</strong> 1994 o <strong>de</strong>safio da ALCA, como uma extensão a todo o continente (exceto<br />

Cuba) do NAFTA, e não <strong>de</strong>morou para que movimentos da região se articulass<strong>em</strong><br />

para enten<strong>de</strong>r o alcance <strong>de</strong>ssa iniciativa, adotar posições comuns e<br />

respon<strong>de</strong>r ao <strong>de</strong>safio. Das primeiras escaramuças <strong>de</strong> 1997-1998, entre os<br />

encontros <strong>de</strong> Belo Horizonte (Minas Gerais) e <strong>de</strong> Santiago do Chile, surgiu<br />

a Aliança Social Continental. Houve uma primeira fase <strong>de</strong> sua construção<br />

que teve conteúdo político estratégico: conformar uma posição política comum<br />

entre movimentos sociais, centrais sindicais e ONGs nacionais e re<strong>de</strong>s<br />

regionais muito diversas. O monitoramento dos t<strong>em</strong>as <strong>em</strong> negociação,<br />

a educação popular <strong>de</strong> base para socializar as análises sobre o acordo proposto,<br />

os materiais <strong>de</strong> divulgação, a discussão e elaboração <strong>de</strong> uma “Alternativa<br />

para as Américas” (<strong>de</strong> contraposição ponto por ponto à agenda<br />

intergovernamental a partir da visão da socieda<strong>de</strong> civil) etc. foram fundamentais<br />

para que, <strong>em</strong> contraposição à Cúpula <strong>de</strong> Presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Quebec,<br />

Canadá, <strong>em</strong> abril <strong>de</strong> 2001, organizada para impulsionar o capítulo final<br />

das negociações, a Cúpula dos Povos convocada pela ASC avançasse <strong>em</strong> dois<br />

pontos fundamentais.<br />

Por um lado, a Cúpula dos Povos <strong>em</strong> Quebec consolidou uma visão comum<br />

<strong>de</strong> que a ALCA não era “reformável”, <strong>de</strong> que não seria uma cláusula<br />

ambiental, trabalhista ou <strong>de</strong> gênero que tornaria o acordo aceitável, <strong>de</strong> que o<br />

probl<strong>em</strong>a com esse tipo <strong>de</strong> acordos era “o todo” e não apenas este ou aquele<br />

it<strong>em</strong>. Isso era muito importante, já que segmentos <strong>de</strong> peso da socieda<strong>de</strong> civil<br />

vinham da experiência <strong>de</strong> ter-se oposto à avassaladora ofensiva neoliberal dos<br />

anos 1980-1990 apenas com estratégias <strong>de</strong> lobby ou “incidência” buscando<br />

“diminuir impactos negativos” sobre este ou aquele setor etc. Em Quebec<br />

houve um posicionamento majoritário por outro rumo estratégico.<br />

Isso se concretizou <strong>em</strong> outra <strong>de</strong>cisão tomada naquele momento: diante<br />

da falta <strong>de</strong> transparência e da ausência <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong>mocráticos <strong>de</strong> partici-<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

pação nas negociações e nas discussões sobre a ALCA, lançou-se o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong><br />

se fazer uma “consulta popular” continental. Isto é, já que os governos não<br />

discutiam com a população (n<strong>em</strong> com seus congressos nacionais!), os próprios<br />

movimentos fariam a consulta por meio <strong>de</strong> plebiscitos e <strong>de</strong> outras<br />

formas. Esse segundo componente da <strong>de</strong>cisão da ASC <strong>em</strong> Quebec é que<br />

<strong>de</strong>u base para o lançamento da Campanha Continental <strong>de</strong> Luta contra a<br />

ALCA. Mas, não esqueçamos, sua gestação não foi simples n<strong>em</strong> linear.<br />

Houve dois momentos-chave <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates e <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>ssa política: a<br />

reunião do Conselho H<strong>em</strong>isférico da ASC <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2001, <strong>em</strong><br />

Florianópolis (Santa Catarina), e a primeira reunião da Campanha <strong>em</strong> janeiro<br />

<strong>de</strong> 2002, <strong>em</strong> Porto Alegre (imediatamente após o II Fórum Social Mundial).<br />

Em uma <strong>de</strong>cidiu-se transformar a proposta <strong>de</strong> Quebec <strong>em</strong> um calendário<br />

imediato <strong>de</strong> mobilização pela consulta continental. Na segunda, <strong>de</strong>u-se prosseguimento<br />

ao anterior, ao se convocar todos aqueles setores que, estando ou<br />

não na ASC, estivess<strong>em</strong> dispostos, na linha aprovada <strong>em</strong> Quebec (“Não à<br />

ALCA”), a <strong>de</strong>senvolver a campanha nos diversos países do continente.<br />

A realização do primeiro Encontro H<strong>em</strong>isférico <strong>de</strong> Luta contra a ALCA <strong>em</strong><br />

abril <strong>de</strong> 2002 <strong>em</strong> Havana, Cuba, consagrou essa combinação <strong>de</strong> duas dinâmicas:<br />

a <strong>de</strong> uma campanha continental unitária (integrada por campanhas nacionais<br />

unitárias) que funcionasse como um “espaço aberto” porém militante (isto<br />

é, numa confluência daqueles e daquelas que quer<strong>em</strong> <strong>de</strong>ter e <strong>de</strong>rrotar a ALCA).<br />

Por isso, po<strong>de</strong>mos afirmar que <strong>em</strong> Quebec entramos <strong>em</strong> uma “segunda<br />

fase” da ASC, a da Campanha Continental <strong>de</strong> Luta contra a ALCA. Nela<br />

somaram-se naturalmente t<strong>em</strong>as que os movimentos vinham tratando separadamente:<br />

a campanha contra a militarização e as bases militares norteamericanas<br />

na América Latina (da qual surgiu a re<strong>de</strong> CADA – Campanha<br />

pela Desmilitarização das Américas), a campanha pela anulação da dívida<br />

externa (li<strong>de</strong>rada pelo Jubileu Sul Américas), a campanha pela soberania<br />

alimentar (impulsionada pela Via Campesina) etc.<br />

Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que essa (segunda) fase terminou <strong>em</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong><br />

2005 <strong>em</strong> Mar <strong>de</strong>l Plata, Argentina, quando ficou claro que a ALCA (tal<br />

como proposta pelo governo dos Estados Unidos) estava paralisada. Não<br />

somente tinha a rejeição da opinião pública <strong>de</strong> vários países da região e<br />

gerara importantes mobilizações populares contra o acordo e alguns dos<br />

pontos que estavam implicados nas negociações, como países <strong>de</strong> peso<br />

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(Mercosul + Venezuela) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ram o abandono <strong>de</strong>ssa agenda continental,<br />

e o governo Bush e seus aliados regionais (a começar por Vicente Fox, do<br />

México) não conseguiram recolocar o t<strong>em</strong>a.<br />

A luta contra a ALCA produziu <strong>em</strong> nosso continente um dos processos<br />

<strong>de</strong> convergência política mais amplo e <strong>de</strong> maior peso que já ocorreram <strong>em</strong><br />

nível mundial. Trata-se <strong>de</strong> uma acumulação política importante, porém<br />

insuficiente para a nova fase <strong>em</strong> que nos encontramos hoje.<br />

7. DESAFIOS MUNDIAIS, POTENCIALIDADES<br />

LATINO-AMERICANAS, DILEMAS ALTERMUNDIALISTAS<br />

A América Latina entrou <strong>em</strong> um novo período político, com gran<strong>de</strong>s<br />

potencialida<strong>de</strong>s <strong>em</strong>ancipadoras, cujos contornos e <strong>de</strong>senvolvimento ainda<br />

estão <strong>em</strong> construção e disputa. As dificulda<strong>de</strong>s são imensas, mas trata-se <strong>de</strong><br />

uma oportunida<strong>de</strong> histórica única para conquistar a nossa segunda e verda<strong>de</strong>ira<br />

in<strong>de</strong>pendência. Nesse contexto, a questão da integração é <strong>de</strong>cisiva<br />

para <strong>de</strong>finir o rumo político a ser tomado pela região 16 .<br />

É inegável que esse processo <strong>de</strong> rearticulação das esquerdas t<strong>em</strong> tido<br />

um balanço globalmente positivo – ainda que com gran<strong>de</strong>s heterogeneida<strong>de</strong>s.<br />

A resistência <strong>de</strong>u seus frutos, como <strong>de</strong>monstra o fato <strong>de</strong> a negociação<br />

da ALCA estar paralisada e <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> surgido <strong>em</strong> diversos países<br />

forças políticas críticas do neoliberalismo e do imperialismo norte-americano<br />

com capacida<strong>de</strong> heg<strong>em</strong>ônica (e que são governos nacionais <strong>em</strong> uma<br />

<strong>de</strong>zena <strong>de</strong> casos).<br />

Um processo <strong>de</strong> <strong>em</strong>ancipação não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, porém, apenas da construção<br />

<strong>de</strong> forças sociais e políticas com capacida<strong>de</strong> heg<strong>em</strong>ônica; <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> também<br />

<strong>de</strong> que haja uma base material que o possibilite. Até 1991, as revoluções<br />

ocorridas no século XX, posteriormente à soviética – in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente<br />

do maior ou menor entusiasmo <strong>em</strong> relação a esta –, contavam com a<br />

retaguarda estratégica da URSS, ou seja, dispunham, fora do circuito eco-<br />

16 Para o aprofundamento do <strong>de</strong>bate sobre integração regional latino-americana recomendamos:<br />

Lan<strong>de</strong>r (2005); Mariátegui (1991); Ban<strong>de</strong>ira (2006); Guimarães (2005); os resultados dos Encontros<br />

H<strong>em</strong>isféricos <strong>em</strong> Havana e outros documentos dos movimentos sociais da região estão disponíveis<br />

no site da Aliança Social Continental, , e no portal .<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

nômico dominado pelo imperialismo, <strong>de</strong> um mercado para suas exportações,<br />

<strong>de</strong> uma fonte <strong>de</strong> aprovisionamento dos produtos que faltass<strong>em</strong>, <strong>de</strong><br />

uma plataforma <strong>de</strong> tecnologias <strong>de</strong> ponta à qual podiam ter acesso etc. E<br />

como o mundo estava dividido pela confrontação URSS–Estados Unidos<br />

havia interesse por parte do governo soviético <strong>de</strong> ampliar suas áreas <strong>de</strong> influência.<br />

Mas, diante do fato <strong>de</strong> que a URSS tinha alcançado essa condição<br />

no quadro da tragédia da opção stalinista nas décadas <strong>de</strong> 1920-1930, era<br />

necessário se equilibrar entre utilizar essa retaguarda estratégica e não per<strong>de</strong>r<br />

o caráter do processo revolucionário – dura prova pela qual passaria a<br />

experiência cubana. A questão é: <strong>de</strong>saparecida a URSS, qual seria a atual<br />

retaguarda estratégica? Se o processo <strong>em</strong>ancipatório tivesse lugar num país<br />

periférico, haveria condições <strong>de</strong> manter e aprofundar seu rumo revolucionário<br />

estando ele inserido num mercado mundial dominado pelo imperialismo?<br />

N<strong>em</strong> o pensamento revolucionário (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Marx e Engels até meados<br />

do século XIX) n<strong>em</strong> o pensamento e a ação estratégica do imperialismo<br />

(<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1917) admitiram jamais tal hipótese.<br />

No caso <strong>de</strong> nossa região, porém, há uma brecha que po<strong>de</strong>ria ser utilizada.<br />

Produto da combinação da existência <strong>de</strong> amplas reservas <strong>de</strong> recursos<br />

naturais <strong>de</strong> todo tipo e do esforço <strong>de</strong> industrialização nas fases anteriores ao<br />

neoliberalismo, a América Latina t<strong>em</strong> um potencial regional para construir<br />

capacida<strong>de</strong>s autônomas diante da pressão do capital imperialista. Mas não<br />

há nenhum país que possa fazê-lo isoladamente, <strong>de</strong>vendo tal projeto constituir<br />

um objetivo comum a vários países.<br />

A integração regional é, pois, uma necessida<strong>de</strong> para os projetos<br />

<strong>em</strong>ancipatórios, mas é também uma possibilida<strong>de</strong> concreta, graças ao<br />

surgimento, à consolidação e ao crescimento das forças que mencionamos<br />

anteriormente.<br />

As dificulda<strong>de</strong>s resi<strong>de</strong>m, não obstante, no caráter inédito <strong>de</strong> um processo<br />

assim. Até agora, a integração regional s<strong>em</strong>pre foi focalizada e entendida<br />

<strong>de</strong>ntro da área <strong>de</strong> influência – e como parte da influência – <strong>de</strong><br />

uma potência heg<strong>em</strong>ônica. Mesmo o processo que resultou na União<br />

Européia <strong>de</strong>ve ser entendido como parte da estratégia dos Estados Unidos<br />

<strong>de</strong> contenção da URSS.<br />

Já um processo <strong>de</strong> integração regional s<strong>em</strong> a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> uma potência<br />

heg<strong>em</strong>ônica e, pior ainda, contra as pretensões heg<strong>em</strong>ônicas da única atual<br />

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superpotência (Estados Unidos) não conta com uma doutrina que lhe<br />

proporcione antece<strong>de</strong>ntes e consistência programática: será necessário<br />

elaborá-la à medida que se for avançando. Essa é a tarefa dramática que se<br />

impõe às esquerdas latino-americanas como resultado dos êxitos colhidos<br />

na fase anterior.<br />

8. AGENDAS<br />

1. Neste momento inédito da longa marcha pela <strong>em</strong>ancipação indo-americana,<br />

será importante sist<strong>em</strong>atizar as propostas e as lições dos esforços<br />

realizados <strong>em</strong> fases anteriores. Isso incluirá, certamente, o resgate crítico<br />

dos <strong>de</strong>bates propostos por Simón Bolívar (a cujas iniciativas os Estados<br />

Unidos respon<strong>de</strong>ram com a Doutrina Monroe), José Carlos Mariátegui (<strong>em</strong><br />

diálogo e polêmica com Haya <strong>de</strong> la Torre), por pensadores da Comissão<br />

Econômica para a América Latina e o Caribe-Cepal (Comissão Econômica<br />

para a América Latina) (como Raúl Prebish, Celso Furtado, Aníbal Pinto e<br />

Maria C. Tavares), por Ernesto Che Guevara e teóricos da <strong>de</strong>pendência<br />

(como Rui Mauro Marini), entre outros.<br />

2. Qual <strong>de</strong>verá ser a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> política <strong>de</strong>sse amplo processo? I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

ou i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s? O nacionalismo nos países periféricos ou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

t<strong>em</strong> um caráter revolucionário quando é antiimperialismo 17 . Mas, quando<br />

se orienta a disputas entre países da periferia, torna-se um patrioterismo da<br />

pior espécie, facilmente manipulado por interesses imperialistas. Exist<strong>em</strong><br />

na região conflitos latentes entre países que, se guiados por essa dinâmica,<br />

levariam à <strong>de</strong>sagregação política e ao fracasso da idéia <strong>de</strong> que há alternativas<br />

à heg<strong>em</strong>onia imperialista na América Latina. Para superar essa dificulda<strong>de</strong>,<br />

o presi<strong>de</strong>nte Hugo Chávez t<strong>em</strong> proposto o “bolivarianismo” e, <strong>de</strong> fato, o<br />

legado <strong>de</strong> Bolívar se mostra <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> atualida<strong>de</strong> para as tarefas que estão<br />

hoje colocadas. No entanto, é necessário se perguntar – partindo inclusive<br />

das experiências do século passado – sobre a pertinência da busca <strong>de</strong> uma só<br />

17 Mas quando o nacionalismo é uma i<strong>de</strong>ologia dos Estados imperialistas trata-se <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia<br />

reacionária.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> política, mesmo que i<strong>de</strong>ologicamente ampla. Parece que o mais<br />

correto será buscar a convergência a partir <strong>de</strong> diversas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que orientadas pelo objetivo estratégico comum <strong>de</strong> uma construção contraheg<strong>em</strong>ônica<br />

na região.<br />

3. Quais <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser os conteúdos <strong>de</strong>sse processo? Ou seja, qual seria o seu<br />

“programa”? Como se afirma anteriormente, ele não está pronto: é e será<br />

um processo. E, se admitirmos uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s convergentes,<br />

<strong>de</strong>ver<strong>em</strong>os consi<strong>de</strong>rar inclusive uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> programas. Não<br />

obstante, há algumas diretrizes que po<strong>de</strong>m se afirmar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já. É lógico e<br />

compreensível que cada governo inicie o processo utilizando os meios que<br />

sua economia nacional possui no momento. Entretanto, se ficar<strong>em</strong> apenas<br />

nisso, será uma mera reiteração do momento atual (<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência e sub<strong>de</strong>senvolvimento),<br />

que justamente se preten<strong>de</strong> superar. Por isso, é fundamental<br />

vincular os <strong>de</strong>bates sobre a superação do neoliberalismo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

nossos países ao processo <strong>de</strong> integração regional. Por outro lado, nossas economias<br />

foram construídas historicamente para servir às metrópoles, possu<strong>em</strong><br />

inclusive características <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s competidoras entre si por mercados<br />

do capitalismo central e por capitais imperialistas nos mesmos ramos.<br />

Um projeto <strong>de</strong> integração <strong>de</strong>veria, assim, significar um amplo processo <strong>de</strong><br />

re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> nossas estruturas produtivas, das infra-estruturas <strong>de</strong> transporte<br />

e comunicação, das matrizes energéticas etc., para fazer da região uma<br />

unida<strong>de</strong> econômica comum voltada para as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seus povos. Por<br />

último, não há entre nossos países um único que seja capaz <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rar os<br />

<strong>de</strong>mais, porque nenhum t<strong>em</strong> capacida<strong>de</strong>s heg<strong>em</strong>ônicas regionais; isso significa<br />

que, nesse processo, ou se constitui uma li<strong>de</strong>rança compartilhada<br />

entre vários países, ou não haverá processo regional. (Este último é um<br />

<strong>de</strong>safio particularmente importante e estimulante, já que o pensamento<br />

estratégico convencional não prevê esta hipótese: <strong>de</strong>verá ser uma criação<br />

heróica <strong>de</strong> nossos povos.)<br />

4. Como fica claro neste artigo, esse processo não começou agora, n<strong>em</strong><br />

caiu do céu. É resultado <strong>de</strong> lentos e persistentes esforços <strong>de</strong> construção <strong>de</strong><br />

atores políticos e sociais, <strong>em</strong> nossos países e <strong>em</strong> nível regional. Por isso,<br />

como método, é fundamental partir daquilo que v<strong>em</strong> sendo construído <strong>em</strong><br />

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Gustavo Codas<br />

termos <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> convergência e <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilização. Nessa<br />

trajetória, a Cúpula dos Povos das Américas, reunida <strong>de</strong> 6 a 9 <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro<br />

<strong>de</strong> 2006 <strong>em</strong> Cochabamba, Bolívia, convocada pela ASC e pelo Movimento<br />

Boliviano pela Soberania e Integração dos Povos, concomitant<strong>em</strong>ente à<br />

Cúpula <strong>de</strong> Presi<strong>de</strong>ntes da América do Sul, significou um salto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>:<br />

houve um forte diálogo com os governos presentes – com a facilitação<br />

do presi<strong>de</strong>nte Evo Morales e sua equipe –, mesmo que preservada a autonomia<br />

dos movimentos sociais participantes. Porém, faltaram ou tiveram fraca<br />

participação alguns atores-chave do cenário político regional, como os partidos<br />

políticos <strong>de</strong> esquerda e progressistas.<br />

O êxito do processo <strong>de</strong> lenta recomposição das esquerdas <strong>de</strong> que são<br />

parte os Fóruns Sociais (Mundial e Regional), a Ass<strong>em</strong>bléia <strong>de</strong> Movimentos<br />

Sociais e a Aliança Social Continental colocou com redobrada força o<br />

<strong>de</strong>safio <strong>de</strong>, finalmente, superar os impasses nas relações entre governos<br />

progressistas, forças partidárias <strong>de</strong> esquerda e movimentos<br />

altermundialistas. O ponto <strong>em</strong> que ficou a elaboração do “método do<br />

FSM” (<strong>de</strong> mero “espaço aberto” e <strong>de</strong> negação do <strong>de</strong>bate aberto e da negociação<br />

programática e alianças com governos e partidos) é insuficiente<br />

para dar conta <strong>de</strong>sse recado. É por isso que o filipino Wal<strong>de</strong>n Bello, um<br />

dos principais animadores asiáticos do FSM <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu início, escreveu<br />

recent<strong>em</strong>ente que, após Nairóbi,<br />

“muitos antigos participantes no Fórum se perguntam: é o<br />

FSM o melhor veículo para a nova etapa da luta do movimento<br />

altermundialista? Ou, tendo cumprido sua função<br />

histórica <strong>de</strong> somar e vincular os diversos movimentos <strong>de</strong><br />

oposição provocados pelo capitalismo global, será hora <strong>de</strong> que<br />

o FSM levante seu acampamento e <strong>de</strong>ixe espaço para novas<br />

formas <strong>de</strong> organização global da resistência e da transformação?”<br />

(Bello, 2007).<br />

De nossa parte, afirmamos que na América Latina o próprio Fórum<br />

t<strong>em</strong> condições <strong>de</strong> ir mais além daquele estágio e que esse será o gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>safio do FS das Américas que <strong>de</strong>ve acontecer na Guat<strong>em</strong>ala <strong>em</strong> outubro<br />

<strong>de</strong> 2008.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Por outro lado, a elaboração programática da ASC, fruto fundamentalmente<br />

da fase <strong>de</strong> resistência à ALCA, também não está à altura do <strong>de</strong>safio<br />

da integração regional. Cochabamba abriu um novo caminho, mas não respon<strong>de</strong>u<br />

satisfatoriamente à necessária articulação <strong>de</strong> todos os atores políticos<br />

relevantes no cenário latino-americano. É necessário escrever um novo<br />

capítulo na história da <strong>em</strong>ancipação política e social dos povos indo-americanos.<br />

E, diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> <strong>em</strong> outros momentos, essa <strong>em</strong>ancipação não é<br />

somente um <strong>de</strong>sejo, mas também uma possibilida<strong>de</strong> concreta!<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

AGUITON, Christophe. O mundo nos pertence. São Paulo, Viramundo,<br />

2002.<br />

AMIN, Samir e HOUTART, François (eds.). Mondialisation <strong>de</strong>s résistances.<br />

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Nuits, 2003.<br />

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Sociedad, n. 166, Caracas, Fundación Friedrich Ebert, mar.-abr. 2000.<br />

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafio brasileiro na era dos gigantes. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, Contraponto, 2005.<br />

HOUTART, François e POLET, François (coords.). O outro Davos. São Paulo,<br />

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JAKOBSEN, Kjeld. “Fórum Social Mundial – um processo”. Teoria e<br />

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abr.-maio 2005.<br />

LANDER, Edgardo. “¿Mo<strong>de</strong>los alternativos <strong>de</strong> integración? Proyectos<br />

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CLACSO, jan. 2005.<br />

MARIÁTEGUI, José Carlos. Textos básicos (seleção, prólogo e notas <strong>de</strong> Aníbal<br />

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WHITAKER, Chico. O <strong>de</strong>safio do Fórum Social Mundial. Um modo <strong>de</strong> ver.<br />

Prefácio <strong>de</strong> O<strong>de</strong>d Grajew. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo/<br />

Edições Loyola, 2005.<br />

52<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 52<br />

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TEXTOS DISPONÍVEIS NA INTERNET<br />

Gustavo Codas<br />

BANCO CENTRAL DE CUBA. “La Economía Cubana en el Período Especial”.<br />

Disponível <strong>em</strong>: .<br />

BANDEIRA, Luiz A. Moniz. “¿Qué quiere Brasil con Sudamérica?” (entrevista).<br />

La onda digital. Montevidéu, 29 maio 2006. Disponível <strong>em</strong>:<br />

.<br />

BELLO, Wal<strong>de</strong>n. “The World Social Forum at the Crossroads”, 8 <strong>de</strong> maio<br />

<strong>de</strong> 2007. Disponível <strong>em</strong>: . Disponível <strong>em</strong> castelhano (“El Foro<br />

Social Mundial en la encrucijada”) <strong>em</strong>: .<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 53<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

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Capitalismo, imperialismo e<br />

relações internacionais<br />

Valter Pomar 1<br />

Compreen<strong>de</strong>r a dinâmica atual das relações internacionais, especialmente<br />

entre Estados, exige compreen<strong>de</strong>r o capitalismo. Até porque, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

crise geral do socialismo, cujo ápice se <strong>de</strong>u <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> 1990, o capitalismo<br />

tornou-se mais heg<strong>em</strong>ônico do que jamais foi.<br />

O capitalismo, suas origens, suas contradições internas, suas tendências<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, seus limites históricos são t<strong>em</strong>as extr<strong>em</strong>amente controversos,<br />

sobre os quais há pelo menos 150 anos <strong>de</strong> polêmica e diversas<br />

“escolas <strong>de</strong> pensamento”, muitas vezes antagônicas.<br />

Este texto aborda algumas <strong>de</strong>ssas questões, b<strong>em</strong> como sugere leituras<br />

(principalmente aquelas disponíveis <strong>em</strong> língua portuguesa) que permit<strong>em</strong><br />

uma abordag<strong>em</strong> acessível a militantes interessados <strong>em</strong> ter uma visão geral<br />

sobre o assunto.<br />

Comec<strong>em</strong>os pelas origens do capitalismo. Embora pareça algo banal,<br />

reconhecer o capitalismo como um fenômeno histórico é algo <strong>de</strong> enorme<br />

significado político, pois aceitar que ele teve uma orig<strong>em</strong> reforça a idéia <strong>de</strong><br />

que ele po<strong>de</strong>rá ter um fim.<br />

Entre os inúmeros autores que trataram do assunto, citar<strong>em</strong>os o professor<br />

inglês Maurice Dobb. Professor <strong>de</strong> economia e um dos “fundadores” da<br />

escola <strong>de</strong> marxistas ingleses integrada por Eric Hobsbawn, E. P. Thompson,<br />

Cristopher Hill e Rodney Hilton, Dobb é autor do livro A evolução do<br />

capitalismo, publicado <strong>em</strong> 1946.<br />

1 Secretário <strong>de</strong> relações internacionais do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores. Graduado,<br />

mestre e doutor <strong>em</strong> História Econômica pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. É co-autor (com Reinaldo<br />

Gonçalves) <strong>de</strong> A armadilha da dívida e <strong>de</strong> O Brasil endividado (com Marco Aurélio Garcia e Juarez Guimarães),<br />

e <strong>de</strong> Socialismo no século XXI, livros publicados pela Editora Fundação Perseu Abramo.<br />

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Valter Pomar<br />

O primeiro capítulo da obra <strong>de</strong> Dobb <strong>de</strong>dica-se exatamente a <strong>de</strong>finir o<br />

significado <strong>de</strong> “capitalismo”, entre outros motivos porque, “se o capitalismo<br />

não existe como entida<strong>de</strong> histórica, os críticos da or<strong>de</strong>m econômica atual<br />

que reclamam uma mudança do sist<strong>em</strong>a estão lutando contra moinhos <strong>de</strong><br />

vento”. Dobb (1973) afirma que,<br />

“por ter<strong>em</strong> exercido uma influência sobre a pesquisa e a<br />

interpretação históricas, três significados separados e atribuídos<br />

ao capitalismo surg<strong>em</strong> com <strong>de</strong>staque. Embora<br />

<strong>em</strong> alguns aspectos os mesmos se sobreponham, cada<br />

um <strong>de</strong>les se associa a uma visão distinta da natureza do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento histórico, cada qual acarreta um tratado<br />

<strong>de</strong> fronteiras cronológicas b<strong>em</strong> diferentes para o sist<strong>em</strong>a,<br />

e cada qual resulta num relato causal diferente<br />

quanto à orig<strong>em</strong> do capitalismo e o crescimento do<br />

mundo mo<strong>de</strong>rno”.<br />

A primeira abordag<strong>em</strong> é a que busca “a essência do capitalismo” não “<strong>em</strong><br />

qualquer dos aspectos <strong>de</strong> sua anatomia econômica ou sua fisiologia”, mas no<br />

“espírito” predominante na época: o espírito <strong>de</strong> <strong>em</strong>presa, <strong>de</strong> <strong>em</strong>preendimento,<br />

<strong>de</strong> aventura, <strong>de</strong> cálculo, <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>. Ou, nas palavras recentes<br />

<strong>de</strong> um filósofo menor, o “espírito animal” do <strong>em</strong>presário.<br />

Uma obra clássica partidária <strong>de</strong>sta primeira abordag<strong>em</strong> é A ética protestante<br />

e o espírito do capitalismo, <strong>de</strong> Max Weber (2004), para qu<strong>em</strong> o capitalismo<br />

está presente “on<strong>de</strong> quer que a provisão industrial para as necessida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> um grupo humano seja executada pelo método <strong>de</strong> <strong>em</strong>presa”.<br />

A segunda abordag<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ntifica o capitalismo com o comércio, ou ainda<br />

com a “produção voltada para a troca”. Essa abordag<strong>em</strong> é extr<strong>em</strong>amente<br />

influente e está na base das correntes teóricas (como o “utilitarismo” e o<br />

“marginalismo”) que buscam o “segredo” do capitalismo não no processo <strong>de</strong><br />

produção, mas sim no processo <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> mercadorias.<br />

Uma compreensão panorâmica <strong>de</strong>ssas correntes teóricas é apresentada no<br />

livro História do pensamento econômico, <strong>de</strong> E. K. Hunt (1989).<br />

A terceira abordag<strong>em</strong> é a que consi<strong>de</strong>ra o capitalismo um “modo <strong>de</strong> produção”<br />

específico, distinto <strong>de</strong> outros existentes na história da humanida<strong>de</strong>.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

O conceito <strong>de</strong> “modo <strong>de</strong> produção” é adotado, aqui, no sentido mais amplo<br />

do termo, ou seja, “as relações que os seres humanos estabelec<strong>em</strong> entre si<br />

e com a natureza, no processo <strong>de</strong> produção e reprodução <strong>de</strong> sua vida social”.<br />

A obra clássica daqueles que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m essa abordag<strong>em</strong> é O capital, <strong>de</strong><br />

Karl Marx (2006), que veio à luz <strong>em</strong> 1867. Anos antes, <strong>em</strong> 1859, Marx<br />

resumira assim seu método:<br />

56<br />

“(...) na produção social da sua vida, os homens contra<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>terminadas relações necessárias e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da sua<br />

vonta<strong>de</strong>, relações <strong>de</strong> produção que correspon<strong>de</strong>m a uma<br />

<strong>de</strong>terminada fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das suas forças produtivas<br />

materiais.<br />

O conjunto <strong>de</strong>ssas relações <strong>de</strong> produção forma a estrutura<br />

econômica da socieda<strong>de</strong>, a base real sobre a qual se levanta<br />

a superestrutura jurídica e política e à qual correspon<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong>terminadas formas <strong>de</strong> consciência social.<br />

O modo <strong>de</strong> produção da vida material condiciona o processo<br />

da vida social, política e espiritual <strong>em</strong> geral. Não é a consciência<br />

do hom<strong>em</strong> que <strong>de</strong>termina o seu ser, mas, pelo contrário, o<br />

seu ser social é que <strong>de</strong>termina a sua consciência.<br />

Ao chegar a uma <strong>de</strong>terminada fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, as<br />

forças produtivas materiais da socieda<strong>de</strong> se chocam com<br />

as relações <strong>de</strong> produção existentes, ou, o que não é senão a<br />

sua expressão jurídica, com as relações <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro das quais se <strong>de</strong>senvolveram até ali.<br />

De formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das forças produtivas, estas<br />

relações se convert<strong>em</strong> <strong>em</strong> obstáculos a elas. E se abre, assim,<br />

uma época <strong>de</strong> revolução social.<br />

Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos<br />

rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela.<br />

Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir<br />

s<strong>em</strong>pre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições<br />

econômicas <strong>de</strong> produção, e que po<strong>de</strong>m ser apreciadas<br />

com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas<br />

jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa<br />

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Valter Pomar<br />

palavra, as formas i<strong>de</strong>ológicas <strong>em</strong> que os homens adquir<strong>em</strong><br />

consciência <strong>de</strong>sse conflito e lutam para resolvê-lo.<br />

E, do mesmo modo que não po<strong>de</strong>mos julgar um indivíduo<br />

pelo que ele pensa <strong>de</strong> si mesmo, não po<strong>de</strong>mos tampouco julgar<br />

estas épocas <strong>de</strong> revolução pela sua consciência, mas, pelo<br />

contrário, é necessário explicar esta consciência pelas contradições<br />

da vida material, pelo conflito existente entre as forças<br />

produtivas sociais e as relações <strong>de</strong> produção” (Marx, 2003).<br />

Uma visão <strong>de</strong> conjunto sobre as idéias <strong>de</strong> Marx po<strong>de</strong> ser encontrada no<br />

livro do economista belga Ernest Man<strong>de</strong>l (1980) A formação do pensamento<br />

econômico <strong>de</strong> Karl Marx. Para uma visão sobre a evolução das diferentes<br />

correntes marxistas, recomenda-se a leitura <strong>de</strong> Consi<strong>de</strong>rações sobre o marxismo<br />

oci<strong>de</strong>ntal, <strong>de</strong> Perry An<strong>de</strong>rson (2004).<br />

É importante dizer que a metodologia histórica formulada por Marx e<br />

Friedrich Engels t<strong>em</strong> sido parcialmente adotada, nas últimas décadas e particularmente<br />

nos últimos anos, por pessoas que não são comunistas, socialistas,<br />

revolucionárias ou tampouco se consi<strong>de</strong>ram marxistas. Nessa linha, recomenda-se<br />

a leitura <strong>de</strong> A dinâmica do capitalismo, <strong>de</strong> Fernand Brau<strong>de</strong>l (1987).<br />

Segundo as abordagens do “espírito” e do “comércio”, o capitalismo já estaria<br />

presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong> clássica, pelo menos. Para a abordag<strong>em</strong> inspirada<br />

<strong>em</strong> Marx, o capitalismo seria um fenômeno histórico relativamente<br />

recente, produto da <strong>de</strong>sagregação do feudalismo na Europa oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Para conhecer a visão <strong>de</strong> Marx sobre as Formações econômicas pré-capitalistas<br />

(1977), sugere-se a leitura da obra <strong>de</strong> mesmo nome, precedida por uma<br />

introdução <strong>de</strong> Eric Hobsbawn, e também do texto “Modo <strong>de</strong> producción<br />

asiático y los esqu<strong>em</strong>as marxistas <strong>de</strong> evolución <strong>de</strong> las socieda<strong>de</strong>s”, <strong>de</strong> Maurice<br />

Go<strong>de</strong>lier (1969), no livro Sobre el modo <strong>de</strong> produccion asiático.<br />

Em A evolução do capitalismo, Maurice Dobb propõe uma interpretação do<br />

processo <strong>de</strong> transição do feudalismo ao capitalismo. O t<strong>em</strong>a gerou intensa polêmica,<br />

como po<strong>de</strong> ser visto na coletânea intitulada A transição do feudalismo<br />

para o capitalismo (Sweezy et alii, 1983). Obra mais recente sobre aspectos<br />

daquela transição é Linhagens do Estado absolutista, <strong>de</strong> Perry An<strong>de</strong>rson (2004).<br />

Embora haja opiniões distintas sobre o surgimento do capitalismo, há enorme<br />

consenso sobre a importância da chamada “revolução industrial”, b<strong>em</strong><br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

como das chamadas “revoluções burguesas” (a inglesa do século XVII, a norte-americana<br />

e a francesa do século XVIII, as várias revoluções ocorridas <strong>em</strong><br />

diferentes países da Europa no século XIX) na sua evolução posterior.<br />

Estes t<strong>em</strong>as são tratados <strong>de</strong> maneira bastante didática por Eric Hobsbawn<br />

<strong>em</strong> dois livros: Da revolução industrial inglesa ao imperialismo (1979) e A era<br />

das revoluções (1977). Do mesmo autor, A era do capital (1988) <strong>de</strong>screve a<br />

analisa a evolução do capitalismo entre 1848 e 1875.<br />

Entre o final do século XIX e o início do século XX, o capitalismo passou<br />

a apresentar características muito diferentes daquele que havia sido estudado<br />

por Marx <strong>em</strong> O capital. Essas características foram analisadas, na época,<br />

por cinco obras que hoje são consi<strong>de</strong>radas clássicas:<br />

a) Imperialismo, <strong>de</strong> John Hobson, <strong>de</strong> 1902 (1985);<br />

b) O capital financeiro, <strong>de</strong> Rudolf Hilferding, <strong>de</strong> 1910 (1985);<br />

c) A acumulação do capital, <strong>de</strong> Rosa Lux<strong>em</strong>burgo, <strong>de</strong> 1912 (1976);<br />

d) A economia mundial e o imperialismo, <strong>de</strong> Nikolai Bukharin, <strong>de</strong><br />

1915 (1984);<br />

e) Imperialismo: etapa superior do capitalismo, <strong>de</strong> Vladimir Lenin, <strong>de</strong><br />

1916 (1979).<br />

Embora tenham pontos <strong>em</strong> comum, essas cinco obras chegam a conclusões<br />

distintas. Delas, a que obteve maior repercussão política foi a <strong>de</strong> Lenin,<br />

adotada “oficialmente” pelo movimento comunista.<br />

A partir <strong>de</strong> então e até hoje, há uma enorme controvérsia sobre o “imperialismo”.<br />

Até porque, como disse Emir Sa<strong>de</strong>r <strong>em</strong> Século XX. Uma biografia<br />

não autorizada (2000), qu<strong>em</strong> quiser se calar sobre o fenômeno do imperialismo<br />

<strong>de</strong>verá calar-se sobre o século XX.<br />

Uma introdução ao período 1875-1914 é fornecida por Eric Hobsbawn<br />

<strong>em</strong> A era dos impérios (1988). A revista Marg<strong>em</strong> Esquerda (2005) organizou<br />

um dossiê inteiramente <strong>de</strong>dicado ao t<strong>em</strong>a.<br />

A <strong>de</strong>finição proposta por Lenin, no sétimo capítulo <strong>de</strong> seu “ensaio popular”<br />

sobre o imperialismo, é a seguinte:<br />

58<br />

“O imperialismo surgiu como <strong>de</strong>senvolvimento e continuação<br />

direta das características fundamentais do capitalismo<br />

<strong>em</strong> geral. Mas o capitalismo só se transformou <strong>em</strong> imperia-<br />

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Valter Pomar<br />

lismo capitalista quando chegou a um <strong>de</strong>terminado grau,<br />

muito elevado, do seu <strong>de</strong>senvolvimento, quando algumas<br />

das características fundamentais do capitalismo começaram<br />

a transformar-se na sua antítese, quando ganharam<br />

corpo e se manifestaram <strong>em</strong> toda a linha os traços da época<br />

<strong>de</strong> transição do capitalismo para uma estrutura econômica<br />

e social mais elevada. O que há <strong>de</strong> fundamental neste processo,<br />

do ponto <strong>de</strong> vista econômico, é a substituição da<br />

livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas.<br />

A livre concorrência é a característica fundamental do<br />

capitalismo e da produção mercantil <strong>em</strong> geral; o monopólio<br />

é precisamente o contrário da livre concorrência, mas<br />

esta começou a transformar-se diante dos nossos olhos <strong>em</strong><br />

monopólio, criando a gran<strong>de</strong> produção, eliminando a pequena,<br />

substituindo a gran<strong>de</strong> produção por outra ainda<br />

maior, e concentrando a produção e o capital a tal ponto<br />

que do seu seio surgiu e surge o monopólio: os cartéis, os<br />

sindicatos, os trustes e, fundindo-se com eles, o capital <strong>de</strong><br />

uma escassa <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> bancos que manipulam milhares <strong>de</strong><br />

milhões. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, os monopólios, que <strong>de</strong>rivam<br />

da livre concorrência, não a eliminam, mas exist<strong>em</strong> acima<br />

e ao lado <strong>de</strong>la, engendrando assim contradições, fricções e<br />

conflitos particularmente agudos e intensos. O monopólio<br />

é a transição do capitalismo para um regime superior.<br />

Se fosse necessário dar uma <strong>de</strong>finição o mais breve possível<br />

do imperialismo, <strong>de</strong>ver-se-ia dizer que o imperialismo é a<br />

fase monopolista do capitalismo. Essa <strong>de</strong>finição compreen<strong>de</strong>ria<br />

o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o<br />

capital bancário <strong>de</strong> alguns gran<strong>de</strong>s bancos monopolistas, fundido<br />

com o capital das associações monopolistas <strong>de</strong> industriais,<br />

e, por outro lado, a partilha do mundo é a transição da<br />

política colonial que se esten<strong>de</strong> s<strong>em</strong> obstáculos às regiões<br />

ainda não apropriadas por nenhuma potência capitalista para<br />

a política colonial <strong>de</strong> posse monopolista dos territórios do<br />

globo já inteiramente repartido.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

60<br />

Mas as <strong>de</strong>finições excessivamente breves, se b<strong>em</strong> que cômodas,<br />

pois contêm o principal, são insuficientes, já que é<br />

necessário extrair <strong>de</strong>las especialmente traços muito importantes<br />

do que é preciso <strong>de</strong>finir. Por isso, s<strong>em</strong> esquecer o<br />

caráter condicional e relativo <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>finições <strong>em</strong><br />

geral, que nunca po<strong>de</strong>m abranger, <strong>em</strong> todos os seus aspectos,<br />

as múltiplas relações <strong>de</strong> um fenômeno no seu completo<br />

<strong>de</strong>senvolvimento, convém dar uma <strong>de</strong>finição do imperialismo<br />

que inclua os cinco traços fundamentais seguintes: 1)<br />

a concentração da produção e do capital levada a um grau<br />

tão elevado <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, que criou os monopólios,<br />

os quais <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penham um papel <strong>de</strong>cisivo na vida econômica;<br />

2) a fusão do capital bancário com o capital industrial<br />

e a criação, baseada nesse ‘capital financeiro’, da oligarquia<br />

financeira; 3) a exportação <strong>de</strong> capitais, diferent<strong>em</strong>ente<br />

da exportação <strong>de</strong> mercadorias, adquire uma importância<br />

particularmente gran<strong>de</strong>; 4) a formação <strong>de</strong> associações<br />

internacionais monopolistas <strong>de</strong> capitalistas, que partilham<br />

o mundo entre si, e 5) o término da partilha territorial<br />

do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.<br />

O imperialismo é o capitalismo na fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>em</strong> que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do<br />

capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação<br />

<strong>de</strong> capitais, começou a partilha do mundo pelos trustes<br />

internacionais e terminou a partilha <strong>de</strong> toda a terra entre<br />

os países capitalistas mais importantes.<br />

Mais adiante ver<strong>em</strong>os como se po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>finir <strong>de</strong> outro<br />

modo o imperialismo, se tivermos <strong>em</strong> conta não só os<br />

conceitos fundamentais puramente econômicos (aos quais<br />

se limita a <strong>de</strong>finição que <strong>de</strong>mos), mas também o lugar histórico<br />

que esta fase do capitalismo ocupa relativamente ao<br />

capitalismo <strong>em</strong> geral, ou a relação entre o imperialismo e<br />

as duas tendências fundamentais do movimento operário.<br />

O que agora há a consi<strong>de</strong>rar é que, interpretado no sentido<br />

referido, o imperialismo representa <strong>em</strong> si, indubitavelmente,<br />

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Valter Pomar<br />

uma fase particular <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do capitalismo. (...)<br />

evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente que na natureza e na socieda<strong>de</strong> todos os limites<br />

são convencionais e mutáveis, que seria absurdo discutir,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, sobre o ano ou a década precisos <strong>em</strong> que se<br />

instaurou <strong>de</strong>finitivamente o imperialismo” (Lenin, 1979).<br />

A análise <strong>de</strong> Lenin acerca do imperialismo contém, além <strong>de</strong>sta discussão<br />

sobre seu lugar no processo <strong>de</strong> evolução do capitalismo, uma análise <strong>de</strong> suas<br />

implicações políticas (no sentido nacional e internacional). Lenin apresenta<br />

seu ponto <strong>de</strong> vista <strong>em</strong> O imperialismo, etapa superior do capitalismo, muitas<br />

vezes por meio <strong>de</strong> críticas a Karl Kautsky, então o principal teórico do Partido<br />

Social<strong>de</strong>mocrata al<strong>em</strong>ão.<br />

Uma boa introdução ao pensamento <strong>de</strong> Kautsky está na coletânea<br />

Karl Kautsky e o marxismo (Mattick et alii, 1988). Seus principais oponentes<br />

na social<strong>de</strong>mocracia al<strong>em</strong>ã foram Eduardo Bernstein, autor <strong>de</strong><br />

Socialismo evolucionário (1997), e Rosa Lux<strong>em</strong>burgo, autora <strong>de</strong> Reforma<br />

ou revolução (1975).<br />

Segundo Kautsky (1988), o imperialismo seria “um produto do capitalismo<br />

industrial altamente <strong>de</strong>senvolvido. Consiste na tendência <strong>de</strong> toda<br />

nação capitalista industrial a submeter ou anexar cada vez mais regiões agrárias,<br />

quaisquer que sejam as nações que as povoam”.<br />

Lenin dizia que esta <strong>de</strong>finição<br />

“<strong>de</strong>staca <strong>de</strong> um modo unilateral (...) apenas o probl<strong>em</strong>a<br />

nacional (se b<strong>em</strong> que seja da maior importância, tanto <strong>em</strong><br />

si como na sua relação com o imperialismo), relacionandoo<br />

arbitrária e erradamente só com o capital industrial dos<br />

países que anexam outras nações, e colocando <strong>em</strong> primeiro<br />

plano, da mesma forma arbitrária e errada, a anexação<br />

das regiões agrárias”.<br />

Para Lenin, o que é característico do imperialismo<br />

“não é precisamente o capital industrial, mas o capital financeiro<br />

(...) o que é característico do imperialismo é pre-<br />

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Kautsky (1988) consi<strong>de</strong>rava que<br />

cisamente a tendência para a anexação não só das regiões<br />

agrárias, mas também das mais industriais (...) pois, <strong>em</strong><br />

primeiro lugar, estando já concluída a divisão do globo,<br />

isso obriga, para fazer uma nova partilha, a esten<strong>de</strong>r a mão<br />

sobre todo o tipo <strong>de</strong> territórios; <strong>em</strong> segundo lugar, faz parte<br />

da própria essência do imperialismo a rivalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> várias<br />

gran<strong>de</strong>s potências nas suas aspirações à heg<strong>em</strong>onia,<br />

isto é, a apo<strong>de</strong>rar<strong>em</strong>-se <strong>de</strong> territórios não tanto diretamente<br />

para si, como para enfraquecer o adversário e minar a<br />

sua heg<strong>em</strong>onia (...)” (Lenin, 1979).<br />

“do ponto <strong>de</strong> vista puramente econômico não está excluído<br />

que o capitalismo passe ainda por uma nova fase: a aplicação<br />

da política dos cartéis à política externa, a fase do ultra-imperialismo<br />

(...) o superimperialismo, a união dos imperialismos<br />

<strong>de</strong> todo o mundo, e não a luta entre eles, a fase da cessação das<br />

guerras sob o capitalismo (...) a fase da exploração geral do<br />

mundo pelo capital financeiro, unido internacionalmente”.<br />

Lenin, falando <strong>em</strong> tese, consi<strong>de</strong>ra indiscutível que se po<strong>de</strong> dizer que “o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento vai na direção do monopólio; portanto vai na direção do<br />

monopólio mundial único, <strong>de</strong> um truste mundial único”. Mas, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, consi<strong>de</strong>ra esta afirmação uma abstração vazia e acusa as “divagações<br />

<strong>de</strong> Kautsky sobre o ultra-imperialismo” <strong>de</strong> estimular<strong>em</strong> “a idéia profundamente<br />

errada (...) <strong>de</strong> que a dominação do capital financeiro atenua a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />

e as contradições da economia mundial, quando, na realida<strong>de</strong>, o<br />

que faz é acentuá-las”.<br />

Para Lenin,<br />

“as alianças ‘interimperialistas’ ou ultra-imperialistas (...)<br />

seja qual for a sua forma: uma coligação imperialista contra<br />

outra coligação imperialista, ou uma aliança geral <strong>de</strong><br />

todas as potências imperialistas, só po<strong>de</strong>m ser, inevitavel-<br />

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mente, ‘tréguas’ entre guerras. As alianças pacíficas preparam<br />

as guerras e por sua vez surg<strong>em</strong> das guerras, conciliando-se<br />

mutuamente, gerando uma sucessão <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />

luta pacífica e não-pacífica sobre uma mesma base <strong>de</strong> vínculos<br />

imperialistas e <strong>de</strong> relações recíprocas entre a economia<br />

e a política mundiais” (Lenin, 1979).<br />

No décimo capítulo <strong>de</strong> seu “ensaio popular”, capítulo intitulado “O lugar<br />

do imperialismo na história”, Lenin afirma o seguinte:<br />

“(...) o imperialismo é, pela sua essência econômica, o capitalismo<br />

monopolista. Isto <strong>de</strong>termina já o lugar histórico do<br />

imperialismo, pois o monopólio, que nasce única e precisamente<br />

da livre concorrência, é a transição do capitalismo<br />

para uma estrutura econômica e social mais elevada. Há que<br />

assinalar particularmente quatro varieda<strong>de</strong>s essenciais do monopólio,<br />

ou manifestações principais do capitalismo<br />

monopolista, características do período que nos ocupa.<br />

Primeiro: o monopólio é um produto da concentração da<br />

produção num grau muito elevado do seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Formam-no as associações monopolistas dos capitalistas,<br />

os cartéis, os sindicatos e os trustes. Vimos o seu enorme<br />

papel na vida econômica cont<strong>em</strong>porânea. Nos princípios<br />

do século XX atingiram completo predomínio nos<br />

países avançados (...)<br />

Segundo: os monopólios vieram agudizar a luta pela conquista<br />

das mais importantes fontes <strong>de</strong> matérias-primas,<br />

particularmente para a indústria fundamental e mais<br />

cartelizada da socieda<strong>de</strong> capitalista: carvão e aço. A posse<br />

monopolista das fontes mais importantes <strong>de</strong> matériasprimas<br />

aumentou enorm<strong>em</strong>ente o po<strong>de</strong>rio do gran<strong>de</strong> capital<br />

e agudizou as contradições entre a indústria cartelizada<br />

e a não-cartelizada.<br />

Terceiro: o monopólio surgiu dos bancos, os quais, <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>stas<br />

<strong>em</strong>presas intermediárias que eram antes, se transfor-<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

64<br />

maram <strong>em</strong> monopolistas do capital financeiro. Três ou cinco<br />

gran<strong>de</strong>s bancos <strong>de</strong> cada uma das nações capitalistas mais<br />

avançadas realizaram a ‘união pessoal’ do capital industrial e<br />

bancário, e concentraram nas suas mãos somas <strong>de</strong> milhares<br />

e milhares <strong>de</strong> milhões, que constitu<strong>em</strong> a maior parte dos<br />

capitais e dos rendimentos <strong>em</strong> dinheiro <strong>de</strong> todo o país. A<br />

oligarquia financeira, que tece uma <strong>de</strong>nsa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência entre todas as instituições econômicas e<br />

políticas da socieda<strong>de</strong> burguesa cont<strong>em</strong>porânea s<strong>em</strong> exceção:<br />

tal é a manifestação mais evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ste monopólio.<br />

Quarto: o monopólio nasceu da política colonial. Aos numerosos<br />

‘velhos’ motivos da política colonial, o capital financeiro<br />

acrescentou a luta pelas fontes <strong>de</strong> matérias-primas,<br />

pela exportação <strong>de</strong> capitais, pelas ‘esferas <strong>de</strong> influência’,<br />

isto é, as esferas <strong>de</strong> transações lucrativas, <strong>de</strong> concessões, <strong>de</strong><br />

lucros monopolistas, etc., e, finalmente, pelo território econômico<br />

<strong>em</strong> geral. (...)<br />

É geralmente conhecido até que ponto o capitalismo<br />

monopolista agudizou todas as contradições do capitalismo.<br />

(...) Esta agudização das contradições é a força motriz<br />

mais po<strong>de</strong>rosa do período histórico <strong>de</strong> transição iniciado<br />

com a vitória <strong>de</strong>finitiva do capital financeiro mundial.<br />

Os monopólios, a oligarquia, a tendência para a dominação<br />

<strong>em</strong> vez da tendência para a liberda<strong>de</strong>, a exploração <strong>de</strong><br />

um número cada vez maior <strong>de</strong> nações pequenas ou fracas<br />

por um punhado <strong>de</strong> nações riquíssimas ou muito fortes:<br />

tudo isto originou os traços distintivos do imperialismo,<br />

que obrigam a qualificá-lo <strong>de</strong> capitalismo parasitário, ou<br />

<strong>em</strong> estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>composição. (...) No seu conjunto, o capitalismo<br />

cresce com uma rapi<strong>de</strong>z incomparavelmente maior<br />

do que antes, mas este crescimento não só é cada vez mais<br />

<strong>de</strong>sigual como a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> se manifesta também, <strong>de</strong> modo<br />

particular, na <strong>de</strong>composição dos países mais ricos <strong>em</strong> capital<br />

(Inglaterra) (...) De tudo o que diss<strong>em</strong>os sobre a essência<br />

econômica do imperialismo, <strong>de</strong>duz-se que se <strong>de</strong>ve<br />

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Valter Pomar<br />

qualificá-lo <strong>de</strong> capitalismo <strong>de</strong> transição ou, mais propriamente,<br />

<strong>de</strong> capitalismo agonizante” (Lenin, 1979).<br />

As conclusões <strong>de</strong> Lenin foram criticadas, recent<strong>em</strong>ente, pelo conhecido<br />

historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Ban<strong>de</strong>ira, que na “Introdução”<br />

<strong>de</strong> <strong>Formação</strong> do Império americano afirma o seguinte:<br />

“A prática, entendida como o curso da história, não confirmou<br />

a teoria <strong>de</strong> Lenin, segundo a qual o imperialismo<br />

representava a fase superior do capitalismo, o capitalismo<br />

<strong>em</strong> ‘<strong>de</strong>composição’, o ‘capitalismo <strong>de</strong> transição, capitalismo<br />

agonizante’, o ‘prelúdio da revolução social do proletariado’,<br />

pois estava ‘às portas <strong>de</strong> sua ruína, maduro até<br />

o ponto <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r o posto ao socialismo’. O critério da<br />

verda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> consistir <strong>em</strong> comparar as diferentes<br />

teorias, mas <strong>em</strong> compará-las com a realida<strong>de</strong>. E o que a<br />

realida<strong>de</strong> comprovou foi que a política imperialista, conforme<br />

Kautsky previra, foi <strong>de</strong>salojada por outra nova, ultraimperialista,<br />

<strong>em</strong> que a exploração <strong>de</strong> todo o mundo pelo<br />

capital financeiro, unido internacionalmente, globalizado,<br />

substituiu a luta entre si dos capitais financeiros nacionais,<br />

competição que se <strong>de</strong>sdobrava por meio das armas<br />

no mercado mundial.<br />

A guerra <strong>de</strong> 1914-1918 permitiu que os Estados Unidos<br />

conquistass<strong>em</strong> a pre<strong>em</strong>inência no sist<strong>em</strong>a capitalista, <strong>em</strong>bora<br />

contestada durante algum t<strong>em</strong>po pela Al<strong>em</strong>anha nazista.<br />

Todavia, a partir da Segunda Guerra Mundial, <strong>de</strong>rrotado<br />

o nazifascismo, ninguém mais podia imaginar uma<br />

guerra entre as gran<strong>de</strong>s potências capitalistas, não obstante<br />

as contradições que subsistiss<strong>em</strong> ou pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> ocorrer. A<br />

política imperialista fora realmente substituída por uma<br />

nova, ultra-imperialista, impl<strong>em</strong>entada pelos Estados Unidos,<br />

como potência heg<strong>em</strong>ônica, capaz <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar a vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> outros Estados e <strong>de</strong> conduzir a política internacional,<br />

<strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> com seus interesses, através <strong>de</strong> um<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

66<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> alianças e <strong>de</strong> pactos, que passaram a construir a<br />

partir <strong>de</strong> 1945” (Ban<strong>de</strong>ira, 2005).<br />

A crítica <strong>de</strong> Moniz Ban<strong>de</strong>ira mostra como o <strong>de</strong>bate sobre o imperialismo<br />

segue atual e t<strong>em</strong> implicações práticas na análise e na prática das relações internacionais.<br />

Curiosamente, o mesmo Moniz Ban<strong>de</strong>ira que critica Lenin afirma<br />

que a formação do Império americano é o epílogo “da globalização do sist<strong>em</strong>a<br />

capitalista, iniciada com as viagens <strong>de</strong> circunavegação, nos séculos XV e XVI”.<br />

Nada mais humano do que a tentação <strong>de</strong> qualificar a época <strong>em</strong> que se vive<br />

como a etapa “superior”, o “epílogo”, a “última” do capitalismo. Neste particular,<br />

é essencial distinguir conclusões teóricas <strong>de</strong> datação <strong>de</strong> processos históricos.<br />

É óbvio que o imperialismo cont<strong>em</strong>porâneo <strong>de</strong> Lenin não foi o último<br />

momento da vida do capitalismo, que sobrevive até os dias <strong>de</strong> hoje. Da<br />

mesma forma, o atual “epílogo” i<strong>de</strong>ntificado por Moniz Ban<strong>de</strong>ira po<strong>de</strong> durar<br />

vários séculos.<br />

Outra questão é saber se o estágio monopolista constitui ou não o ponto<br />

mais alto do <strong>de</strong>senvolvimento capitalista, diante do qual só haveria três<br />

<strong>de</strong>senlaces possíveis: a barbárie, o socialismo e o recomeço cíclico.<br />

O que ocorreu logo após a publicação <strong>de</strong> Imperialismo, etapa superior do<br />

capitalismo foram três décadas <strong>de</strong> crises econômicas, sociais e políticas, inclusive<br />

duas guerras mundiais e diversas revoluções que levaram partidos <strong>de</strong><br />

esquerda ao po<strong>de</strong>r. Após a Segunda Guerra, tiv<strong>em</strong>os um processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scolonização (especialmente na Ásia e na África), <strong>de</strong>senvolvimentismo<br />

(especialmente na América Latina), b<strong>em</strong>-estar social (basicamente na Europa)<br />

e expansão do chamado campo socialista.<br />

Este período da história (<strong>de</strong> 1914 a 1991) foi <strong>de</strong>scrito por Eric Hosbawn<br />

<strong>em</strong> Era dos extr<strong>em</strong>os (1995). B<strong>em</strong> pesados os fatos, parece que Lenin estava<br />

certo (e não Kaustky) ao perceber o imenso potencial <strong>de</strong>strutivo (e criativo)<br />

inaugurado pela etapa imperialista do capitalismo.<br />

Ocorre que o capitalismo não sucumbiu a essa crise geral. E, paradoxalmente,<br />

a existência <strong>de</strong> um “campo socialista” (articulado, <strong>de</strong> diferentes<br />

maneiras, com a <strong>de</strong>scolonização, o <strong>de</strong>senvolvimentismo e o b<strong>em</strong>-estar social)<br />

ajudou a criar as condições para o surgimento <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> cooperação<br />

intercapitalista, tanto no terreno político quanto no econômico,<br />

que recordam a aliança “interimperialista” vislumbrada por Kautsky.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 66<br />

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Valter Pomar<br />

Mas a condição fundamental para essa aliança interimperialista era a existência<br />

da ameaça socialista. E a “paz” proporcionada pela disputa entre<br />

“campo socialista” e “campo capitalista” era, <strong>em</strong> boa medida, assegurada<br />

pelas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição mútua e acompanhada por violentos conflitos<br />

militares, especialmente na Ásia e na África.<br />

O período que se esten<strong>de</strong> do final da Segunda Guerra Mundial até o final<br />

dos anos 1960 foi, <strong>de</strong> toda forma, bastante atípico, provocando inclusive o<br />

surgimento <strong>de</strong> novas interpretações acerca do capitalismo, do imperialismo<br />

e do próprio socialismo (vejam-se as “teorias” dos “três mundos”, do “socialimperialismo”,<br />

do “socialismo real” e dos “Estados operários burocraticamente<br />

<strong>de</strong>generados”).<br />

Os volumes 11 e 12 da História do marxismo (1989), <strong>de</strong> Hobsbawn,<br />

proporcionam um sobrevôo sobre as questões enfrentadas pela esquerda<br />

naquele período, inclusive nos países do chamado campo socialista. Cinqüenta<br />

anos <strong>de</strong> pensamento na CEPAL, <strong>de</strong> Ricardo Bielschowsky (2007),<br />

traz textos fundamentais, ilustrativos das teorias da <strong>de</strong>pendência e do<br />

<strong>de</strong>senvolvimentismo na América Latina. Um mapa da esquerda na Europa<br />

oci<strong>de</strong>ntal (An<strong>de</strong>rson, 2006) reúne informações básicas sobre a social<strong>de</strong>mocracia<br />

e o Estado <strong>de</strong> b<strong>em</strong>-estar social.<br />

O intenso <strong>de</strong>senvolvimento capitalista ocorrido <strong>de</strong>pois da Segunda Guerra<br />

Mundial preparou o terreno tanto para a crise dos anos 1970 como para o que<br />

está ocorrendo hoje. A era neoliberal, neste sentido, é filha inesperada do casamento<br />

entre o imenso <strong>de</strong>senvolvimento estimulado pelas políticas inspiradas<br />

<strong>em</strong> Keynes (Ski<strong>de</strong>slky, 1999) e a incapacida<strong>de</strong> da esquerda <strong>de</strong> aproveitar aquele<br />

período e aquela crise para iniciar um novo ciclo <strong>de</strong> transformações socialistas.<br />

A crise do capital, <strong>de</strong> Ernest Man<strong>de</strong>l (1990), traz uma <strong>de</strong>scrição da “primeira<br />

recessão generalizada” da economia capitalista internacional <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

Segunda Guerra Mundial. E Balanço do neoliberalismo, <strong>de</strong> Perry An<strong>de</strong>rson<br />

(2003), mostra os caminhos políticos e i<strong>de</strong>ológicos trilhados pelas forças<br />

capitalistas para sobreviver com sucesso a essa crise.<br />

Entre 1970 e 1990, o capitalismo dos países centrais venceu a batalha<br />

contra o “campo socialista”, contra os “<strong>de</strong>senvolvimentistas”, contra a<br />

“social<strong>de</strong>mocracia” e contra os “nacionalismos revolucionários”.<br />

Os anos 1990 começaram, portanto, assistindo ao triunfo do<br />

neoliberalismo, da “financeirização” e da heg<strong>em</strong>onia dos Estados Unidos.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 67<br />

5/6/2007, 12:41<br />

67


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista i<strong>de</strong>ológico, a palavra-chave era “globalização”. Segundo<br />

José Luís Fiori e Maria da Conceição Tavares:<br />

68<br />

“Não há dúvida <strong>de</strong> que a palavra globalização foi cunhada<br />

no campo próprio das i<strong>de</strong>ologias, transformando-se, nesta<br />

última década, num lugar-comum <strong>de</strong> enorme conotação<br />

positiva, apesar <strong>de</strong> sua visível imprecisão conceitual. É provável,<br />

inclusive, que esta palavra passe à história dos modismos<br />

s<strong>em</strong> jamais adquirir um estatuto teórico, mantendo-se<br />

como um conceito inacabado. Mas também não há<br />

dúvida <strong>de</strong> que, apesar <strong>de</strong> tudo isto, poucas palavras possu<strong>em</strong><br />

tamanha força política neste final <strong>de</strong> século XX, o<br />

que já seria razão suficiente para submetê-la a um exame<br />

rigoroso e crítico” (Tavares e Fiori, 1993).<br />

A Guerra do Golfo (1991) foi um sinal <strong>de</strong> que a aliança interimperialista<br />

encabeçada pelos Estados Unidos, sob pretexto <strong>de</strong> combater o campo socialista<br />

li<strong>de</strong>rado pela URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), parecia<br />

estar se transformando numa heg<strong>em</strong>onia unilateral dos Estados Unidos<br />

sobre todo o mundo, inclusive sobre os <strong>de</strong>mais Estados capitalistas centrais.<br />

Mas, <strong>em</strong> algum ponto entre o levante zapatista <strong>de</strong> 1º <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1994<br />

e os atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2001, ficou claro que a instabilida<strong>de</strong><br />

seria uma das principais características da nova fase da história mundial.<br />

Como era <strong>de</strong> se esperar, a crise do socialismo foi acompanhada <strong>de</strong> uma<br />

profunda “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m mundial”, <strong>em</strong> todos os terrenos: ambiental, social,<br />

político, i<strong>de</strong>ológico, militar.<br />

Não há como negar a relação entre isso e o aprofundamento da heg<strong>em</strong>onia<br />

capitalista, após a “queda do Muro”. Essa constatação é compartilhada, hoje,<br />

tanto por qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>seja “organizar” o capitalismo como por qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>seja<br />

construir outro modo <strong>de</strong> produção e organização da vida social. Mas no<br />

início dos anos 1990 o pensamento crítico foi turvado pelos efeitos da crise<br />

geral do socialismo, que, <strong>em</strong>bora viesse <strong>de</strong> antes, atingiu seu ápice exatamente<br />

com o fim da União Soviética.<br />

Aquela crise gerou uma imensa euforia na intelectualida<strong>de</strong> pró-capitalista,<br />

b<strong>em</strong> como uma confusão generalizada entre os pensadores socialistas.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 68<br />

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Valter Pomar<br />

Na direita, um ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong>ssa euforia é o muito citado mas pouco lido<br />

artigo “O fim da história”, <strong>de</strong> Francis Fukuyama, analisado longamente por<br />

Perry An<strong>de</strong>rson (1992) no livro O fim da história, <strong>de</strong> Hegel a Fukuyama.<br />

Mas a direita não foi acometida pela ingenuida<strong>de</strong> tão comum <strong>em</strong> certos<br />

meios <strong>de</strong> esquerda: a suposta <strong>de</strong>rrota final do socialismo não implicaria, <strong>em</strong><br />

nenhum caso, o fim dos conflitos, como foi reconhecido <strong>em</strong> 1996, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, pelo superconservador Samuel Huntington <strong>em</strong> O choque das civilizações<br />

e a recomposição da or<strong>de</strong>m mundial (1996).<br />

Na intelectualida<strong>de</strong> socialista predominaram num primeiro momento a<br />

revisão <strong>de</strong> “paradigmas”, o rebaixamento <strong>de</strong> horizontes e o abandono <strong>de</strong><br />

pr<strong>em</strong>issas teóricas fundamentais do marxismo, até então amplamente<br />

heg<strong>em</strong>ônico na esquerda.<br />

No balanço das tentativas <strong>de</strong> construção do socialismo, que ocuparam<br />

um lapso t<strong>em</strong>poral muito curto e tiveram curso <strong>em</strong> países <strong>de</strong> baixo <strong>de</strong>senvolvimento<br />

capitalista, muitos chegaram à conclusão <strong>de</strong> que seria impossível<br />

construir uma socieda<strong>de</strong> s<strong>em</strong> classes e s<strong>em</strong> Estado, baseada na proprieda<strong>de</strong><br />

social dos meios <strong>de</strong> produção (Pomar, 1994).<br />

Na discussão sobre a estratégia da esquerda partidária e social, cuja luta<br />

arrancou direitos que tornam mais suportável a vida sob o capitalismo, muitos<br />

concluíram que uma política eficaz não <strong>de</strong>veria ser fundada na existência<br />

das classes sociais e da luta <strong>de</strong> classes, muito menos na a<strong>de</strong>quada combinação<br />

entre luta por reformas e revolução.<br />

Na análise das mudanças ocorridas no capitalismo, apesar <strong>de</strong> a vida ter<br />

<strong>de</strong>ixado ainda mais claro os papéis do mercado e do Estado, muitos a<strong>de</strong>riram<br />

a teorias que <strong>em</strong> última análise <strong>de</strong>sconhec<strong>em</strong> o caráter contraditório e<br />

histórico <strong>de</strong>sse modo <strong>de</strong> produção.<br />

No início do século XXI, passado o momento inicial <strong>de</strong> confusão, o pensamento<br />

crítico (socialista ou não) dá sinais cada vez mais fortes <strong>de</strong> que está<br />

saindo da <strong>de</strong>fensiva. Isso se traduz, por ex<strong>em</strong>plo, no surgimento <strong>de</strong> várias<br />

tentativas <strong>de</strong> síntese acerca do atual estágio do <strong>de</strong>senvolvimento capitalista<br />

e sobre suas tendências futuras.<br />

É o caso das várias obras do veterano economista François Chesnais (A<br />

mundialização do capital, 1996; A mundialização financeira, 1999; A finança<br />

mundializada, 2005). É o caso, também, <strong>de</strong> O boom e a bolha, <strong>de</strong><br />

Robert Brenner (2003). E, finalmente, do extenso tratado Para além do<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 69<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

capital, <strong>de</strong> Istvan Meszáros (2002), autor também <strong>de</strong> O século XXI: socialismo<br />

ou barbárie? (2003).<br />

Numa outra matriz <strong>de</strong> análise, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os citar ainda as obras <strong>de</strong> Giovanni<br />

Arrighi (O longo século XX: dinheiro, po<strong>de</strong>r e as origens <strong>de</strong> nosso t<strong>em</strong>po, 1996)<br />

e Immanuell Wallerstein (Após o liberalismo, 2002).<br />

Como ocorreu no início do século XX, estamos diante <strong>de</strong> análises contraditórias<br />

entre si, mas que nos permit<strong>em</strong> tirar pelo menos duas conclusões<br />

fundamentais.<br />

Primeiro, que o unilateralismo norte-americano se mostrou muito po<strong>de</strong>roso,<br />

mas incapaz tanto <strong>de</strong> controlar o planeta como <strong>de</strong> eliminar a competição<br />

intercapitalista e interimperialista. Pelo contrário, como <strong>de</strong>monstra<br />

José Luís Fiori, a instabilida<strong>de</strong> e a competição são provocadas pela ação dos<br />

próprios Estados Unidos:<br />

70<br />

“Hoje se po<strong>de</strong> ver melhor a contribuição dos Estados Unidos,<br />

também no sucesso do antigo projeto russo <strong>de</strong> construção<br />

<strong>de</strong> uma Gran<strong>de</strong> Potência durante o século XX, ao<br />

colocar a União Soviética na condição <strong>de</strong> seu principal<br />

inimigo, na sua estratégia <strong>de</strong> Guerra Fria. A potência expansiva<br />

e ganhadora po<strong>de</strong> prever, com base na experiência<br />

da história passada, que o crescimento econômico e<br />

militar <strong>de</strong> seus competidores mais próximos produzirá,<br />

no médio prazo, uma redistribuição territorial da riqueza<br />

e um <strong>de</strong>slocamento dos seus centros <strong>de</strong> acumulação mundial.<br />

E, muito provavelmente, acabará provocando, no<br />

longo prazo, uma redistribuição do próprio po<strong>de</strong>r mundial.<br />

Mas a potência expansiva não t<strong>em</strong> como evitar esta<br />

conseqüência e por isto se po<strong>de</strong> dizer, <strong>em</strong> última instância,<br />

que é o seu próprio comportamento que cria seus<br />

principais obstáculos e adversários. É ela mesma que alimenta<br />

a contratendência ‘nacionalizante’ dos <strong>de</strong>mais Estados<br />

que bloqueiam sua marcha <strong>em</strong> direção ao po<strong>de</strong>r<br />

global e ao império mundial. Mas atenção, porque este<br />

comportamento não se restringe apenas ao campo econômico.<br />

Por mais paradoxal que possa parecer, ele também<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 70<br />

5/6/2007, 12:41


Valter Pomar<br />

acontece no campo militar porque, <strong>em</strong> última instância,<br />

são as potências ganhadoras que também armam os seus<br />

futuros e eventuais adversários, pelo menos até o momento<br />

<strong>em</strong> que eles adquiram autonomia tecnológico-militar”<br />

(Fiori, 2004).<br />

A segunda conclusão é que o método <strong>de</strong> análise inaugurado por Marx e<br />

Engels, <strong>em</strong> meados do século XIX, continua a ser uma ferramenta indispensável<br />

para compreen<strong>de</strong>r tanto o capitalismo atual como as dificulda<strong>de</strong>s<br />

experimentadas pelas tentativas <strong>de</strong> construir o socialismo, inclusive na China<br />

(Pomar, 1987). Pois, como dizia o velho mouro,<br />

“Nenhuma formação social <strong>de</strong>saparece antes que se <strong>de</strong>senvolvam<br />

todas as forças produtivas que ela contém, e jamais<br />

aparec<strong>em</strong> relações <strong>de</strong> produção novas e mais altas antes <strong>de</strong><br />

amadurecer<strong>em</strong> no seio da própria socieda<strong>de</strong> antiga as condições<br />

materiais para a sua existência.<br />

Por isso, a humanida<strong>de</strong> se propõe s<strong>em</strong>pre apenas os objetivos<br />

que po<strong>de</strong> alcançar, pois, b<strong>em</strong> vistas as coisas, v<strong>em</strong>os<br />

s<strong>em</strong>pre que esses objetivos só brotam quando já exist<strong>em</strong><br />

ou, pelo menos, estão <strong>em</strong> gestação as condições materiais<br />

para a sua realização.<br />

A gran<strong>de</strong>s traços po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>signar como outras tantas<br />

épocas <strong>de</strong> progresso, na formação econômica da socieda<strong>de</strong>,<br />

o modo <strong>de</strong> produção asiático, o antigo, o feudal e o<br />

mo<strong>de</strong>rno burguês. As relações burguesas <strong>de</strong> produção são<br />

a última forma antagônica do processo social <strong>de</strong> produção,<br />

antagônica não no sentido <strong>de</strong> um antagonismo individual,<br />

mas <strong>de</strong> um antagonismo que provém das condições sociais<br />

<strong>de</strong> vida dos indivíduos.<br />

As forças produtivas, porém, que se <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> no seio<br />

da socieda<strong>de</strong> burguesa criam, ao mesmo t<strong>em</strong>po, as condições<br />

materiais para a solução <strong>de</strong>sse antagonismo.<br />

Com esta formação social se encerra, portanto, a pré-história<br />

da socieda<strong>de</strong> humana” (Marx, 2003).<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 74<br />

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Gustavo Codas<br />

A evolução histórica da Europa<br />

A evolução histórica da Europa <strong>de</strong>scrita neste texto foi dividida <strong>em</strong> seu aspecto<br />

geral <strong>em</strong> duas partes: sua conformação na era mo<strong>de</strong>rna influenciada pelos conflitos<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Guerra dos 30 Anos (1618-1648) até o final da Primeira Guerra<br />

Mundial (1914-1918) e <strong>de</strong>sse momento até a construção da União Européia.<br />

O que apresentar<strong>em</strong>os aqui será apenas um resumo <strong>de</strong> alguns fatos marcantes<br />

<strong>de</strong>ssa evolução, b<strong>em</strong> como seu papel no <strong>de</strong>senvolvimento do capitalismo e no<br />

<strong>de</strong>senho do mundo atual. Os gran<strong>de</strong>s ciclos do capitalismo permearam essa<br />

evolução, assim como a ascensão e a queda <strong>de</strong> impérios como o dos Habsburgo,<br />

da Holanda, da França, da Al<strong>em</strong>anha, da Inglaterra e da União Soviética, e as<br />

transformações políticas que levaram, <strong>em</strong> particular, a diferentes concepções<br />

<strong>de</strong> Estado.<br />

O ponto <strong>de</strong> partida da história mo<strong>de</strong>rna da Europa é o Renascimento,<br />

abordado na introdução. Em seguida, há três seções que respectivamente<br />

englobam: a Guerra dos 30 Anos, a Conferência <strong>de</strong> Westfália e as revoluções<br />

burguesas; as Guerras Napoleônicas, o Concerto Europeu, a ascensão do<br />

liberalismo e a Primeira Guerra Mundial; e, por fim, a Segunda Guerra<br />

Mundial e a construção da União Européia.<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

Kjeld Jakobsen 1<br />

O Renascimento trouxe consigo uma série <strong>de</strong> transformações nas artes, na<br />

economia, na política e na religião. Seu centro principal era a península italiana.<br />

1 Ex-secretário <strong>de</strong> Relações Internacionais da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da prefeitura<br />

<strong>de</strong> São Paulo, atualmente é consultor <strong>em</strong> relações internacionais.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Dogmas da Igreja católica foram criticados e surgiu um movimento <strong>de</strong><br />

reforma religiosa que posteriormente levaria ao protestantismo. A influência<br />

da cristanda<strong>de</strong> sobre as práticas <strong>de</strong> governo, comum na Ida<strong>de</strong> Média,<br />

também passou a ser questionada, <strong>em</strong>bora a separação entre Igreja e Estado<br />

somente viesse a ser formalizada alguns séculos <strong>de</strong>pois.<br />

Particularmente, o Renascimento italiano fez avançar a constituição <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s-Estado,<br />

a república e a concentração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r nas mãos do príncipe,<br />

influenciando a formação <strong>de</strong> Estados territoriais e o fortalecimento do absolutismo<br />

monárquico no restante da Europa (Cervo, 2001, p. 60).<br />

Entre os séculos XIV e XVI, a “economia mundial” estava sob domínio<br />

da cida<strong>de</strong>-Estado <strong>de</strong> Gênova. Esta controlava o principal fluxo <strong>de</strong> comércio<br />

com a Europa Oci<strong>de</strong>ntal, distribuindo os produtos provindos do Oriente,<br />

como tecidos e especiarias.<br />

Os comerciantes e banqueiros genoveses ampliaram sua riqueza e sua<br />

influência <strong>em</strong> outras áreas européias ao <strong>em</strong>prestar recursos exce<strong>de</strong>ntes do<br />

comércio para governantes <strong>de</strong> outros países e cida<strong>de</strong>s-Estado. Conseguiam<br />

que suas mercadorias chegass<strong>em</strong> até o norte da Europa, e seu entreposto<br />

principal era a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bruges, localizada numa das províncias espanholas<br />

dos Países Baixos. Para que seus clientes não precisass<strong>em</strong> transportar altas<br />

somas <strong>em</strong> moedas ou metais preciosos, criaram a “carta <strong>de</strong> câmbio”, que<br />

podia ser trocada com os agentes genoveses mediante o pagamento <strong>de</strong> uma<br />

diferença sobre esta, que se tornou o primeiro título financeiro da história.<br />

A Península Ibérica tornou-se uma área <strong>de</strong> operações estratégica para os<br />

genoveses, não apenas como consumidores <strong>de</strong> seus produtos, mas também<br />

pela proteção militar que oferecia a seus negócios. Seus entrepostos <strong>em</strong> Portugal<br />

e na Espanha facilitavam o acesso aos mercados do norte da Europa e<br />

do norte da África.<br />

2. A FORMAÇÃO DOS ESTADOS-NAÇÃO EUROPEUS E O EQUILÍBRIO INICIAL<br />

Ao longo do século XVI, por meio <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> heranças, casamentos<br />

<strong>de</strong> conveniência, alianças e conquistas, o domínio da Casa dos Habsburgo<br />

consolidou-se sobre a Hungria, a Boêmia, regiões do norte da Itália, o Sacro<br />

Império Romano (Al<strong>em</strong>anha) e a Espanha, além da Áustria, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> a<br />

dinastia se originou. A Espanha, por sua vez, já dominava os Países Baixos,<br />

76<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

a Sar<strong>de</strong>nha, a Sicília, Gênova e outras áreas da península itálica, e <strong>em</strong> 1580<br />

o rei Filipe II assumiu também a Coroa <strong>de</strong> Portugal.<br />

Este império se expandiu e se manteve até meados do século XVII graças<br />

aos recursos dos banqueiros genoveses, aos lucros do comércio dos portugueses<br />

com a Ásia e aos metais preciosos trazidos pelos espanhóis e portugueses<br />

<strong>de</strong> suas colônias nas Américas. Era também uma potência militar<br />

<strong>de</strong>vido ao po<strong>de</strong>rio da Espanha, que <strong>de</strong>tinha uma forte esquadra e havia<br />

introduzido novas técnicas militares nas guerras.<br />

Além <strong>de</strong> consolidar sua expansão, os Habsburgo tiveram que enfrentar<br />

várias tentativas do Império Otomano e dos berberes do norte da África <strong>de</strong><br />

se estabelecer<strong>em</strong> no mar Mediterrâneo. Derrotaram-nos, finalmente, na<br />

Batalha <strong>de</strong> Lepanto, <strong>em</strong> 1571.<br />

Porém, a intolerância religiosa dos reis católicos da Espanha e da dinastia<br />

dos Habsburgo <strong>em</strong> geral, somada a constantes aumentos <strong>de</strong> impostos nos<br />

territórios dominados, provocou inúmeras insatisfações, a começar pelas<br />

províncias dos Países Baixos, que iniciaram uma campanha por sua in<strong>de</strong>pendência<br />

a partir <strong>de</strong> 1560.<br />

Essa luta levou quase cinqüenta anos para assegurar uma trégua e a autonomia<br />

na prática <strong>de</strong> algumas das províncias localizadas mais ao norte da<br />

Holanda. Entretanto, essa guerra transformou-se num conflito muito mais<br />

amplo <strong>de</strong>vido às preocupações dos <strong>de</strong>mais governantes europeus com a expansão<br />

do Império dos Habsburgo e às divisões religiosas que estavam ocorrendo<br />

<strong>em</strong> alguns países, como na França.<br />

A Inglaterra apoiava a Holanda, e seus corsários atacavam a frota espanhola<br />

que trazia metais preciosos da América Latina e que já era assediada<br />

pelos navios <strong>de</strong> guerra holan<strong>de</strong>ses. Aliás, a frota comercial holan<strong>de</strong>sa já era,<br />

praticamente, a maior do mundo a esta altura, <strong>em</strong>bora os holan<strong>de</strong>ses ainda<br />

estivess<strong>em</strong> lutando por sua in<strong>de</strong>pendência.<br />

No início do século XVII houve uma trégua entre Espanha e Holanda, a<br />

gran<strong>de</strong> armada espanhola não conseguira invadir a Inglaterra e os conflitos<br />

entre católicos e protestantes na França também haviam amainado. Parecia<br />

que haveria um período <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong> no continente.<br />

No entanto, <strong>em</strong> 1618 irrompeu um conflito entre católicos e protestantes<br />

pela sucessão do trono da Boêmia, que rapidamente envolveu o conjunto<br />

dos principados al<strong>em</strong>ães e levou à intervenção do imperador da Áustria a<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

favor dos príncipes católicos, com o apoio dos “primos” Habsburgo da<br />

Espanha. O conflito rapidamente se espalhou. A Holanda rompeu a trégua<br />

e invadiu a Renânia; a Dinamarca atacou o Império pelo norte; posteriormente,<br />

os suecos também intervieram, todos com o intuito <strong>de</strong> neutralizar<br />

os Habsburgo, que, <strong>em</strong> caso <strong>de</strong> conquista da heg<strong>em</strong>onia total no Sacro<br />

Império Romano, representariam uma ameaça séria ao conjunto dos países<br />

europeus não submetidos à sua influência.<br />

Foi o início da Guerra dos 30 Anos, um dos conflitos mais terríveis que<br />

afligiram a Europa, terminada <strong>em</strong> 1648 s<strong>em</strong> que houvesse uma vitória militar<br />

<strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong> qualquer dos lados. Porém, na prática, o Império Habsburgo<br />

estava s<strong>em</strong>ifalido e não tinha mais recursos para manter a guerra.<br />

Além da aliança <strong>de</strong> todas as forças protestantes e laicas contra os<br />

Habsburgo, o fator <strong>de</strong>terminante para sua <strong>de</strong>rrota foi a França, cujo primeiro-ministro<br />

era o car<strong>de</strong>al Richelieu. Embora fosse católico, não teve dúvidas<br />

<strong>em</strong> apoiar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início os protestantes, inimigos do Império, e até intervir<br />

diretamente na guerra, sob a alegação da Raison d’Etat (Razão <strong>de</strong> Estado).<br />

Se observarmos o Mapa 1, a seguir, ver<strong>em</strong>os que <strong>em</strong> caso <strong>de</strong> domínio<br />

Habsburgo total sobre o Sacro Império Romano a França ficaria praticamente<br />

cercada por eles.<br />

A sobreposição das razões <strong>de</strong> Estado <strong>em</strong> relação às questões religiosas e o<br />

Tratado <strong>de</strong> Westfália – que acomodou a situação nos principados al<strong>em</strong>ães,<br />

afastando o Império Austro-Húngaro do conflito e <strong>de</strong>ixando a continuida<strong>de</strong><br />

da guerra somente entre a França e a Espanha – constituíram um marco<br />

ao reconhecer a existência dos Estados nacionais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e, na medida<br />

do possível, laicos, estabelecer o equilíbrio político entre eles e inaugurar<br />

relações diplomáticas regulares.<br />

A Guerra dos 30 Anos foi também o primeiro conflito com caráter mundial,<br />

uma vez que os holan<strong>de</strong>ses e seus aliados levaram a guerra às possessões<br />

espanholas e portuguesas fora da Europa, como o Nor<strong>de</strong>ste brasileiro, o<br />

Ceilão e Angola.<br />

A paz entre a Espanha e a França somente se estabeleceu <strong>em</strong> 1659, com<br />

o Tratado dos Pireneus.<br />

A Holanda tornou-se totalmente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e a nova potência econômica<br />

mundial, pois, além <strong>de</strong> conseguir sua in<strong>de</strong>pendência, possuía a maior<br />

frota naval do mundo e dominava o comércio internacional. Os capitalistas<br />

78<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

holan<strong>de</strong>ses também instituíram a prática da armazenag<strong>em</strong> <strong>de</strong> commodities,<br />

comprando-as a preços baixos e ven<strong>de</strong>ndo-as no momento mais apropriado.<br />

Fonte: Kennedy, 1989, p. 42.<br />

Mapa 1 – O legado <strong>de</strong> Carlos V (1519)<br />

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Reprodução autorizada pela Editora Campus.


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

No entanto, tiveram que conviver com outros Estados ascen<strong>de</strong>ntes na<br />

política e na economia mundial, a saber, França, Inglaterra e Rússia, sendo<br />

que esta última não se envolvera nos conflitos anteriores.<br />

Embora o equilíbrio europeu não se modificasse muito ao longo das décadas<br />

seguintes, mesmo com as disputas entre uns e outros com o intuito<br />

<strong>de</strong> acumular po<strong>de</strong>r, era a França que mais ostensivamente buscava ampliar<br />

sua influência. Porém, ela estava dividida entre sua política voltada para a<br />

Europa Continental e a busca <strong>de</strong> espaço internacional (já possuía colônias<br />

na América), enquanto a Inglaterra, que tinha colônias mais consolidadas<br />

no Novo Continente, disputava o controle do comércio mundial com a<br />

Holanda, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong>pre atenta ao que ocorria no continente europeu.<br />

Assim, a Holanda enfrentava a pressão dos franceses no continente e precisava<br />

mobilizar exércitos e recursos para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que os<br />

ingleses disputavam seus mercados externos e atacavam sua frota mercantil. Um<br />

fator crucial foi a lei inglesa que <strong>de</strong>terminava que todos os bens <strong>de</strong> exportação<br />

produzidos na Inglaterra <strong>de</strong>veriam ser transportados <strong>em</strong> navios ingleses.<br />

Enfrentar os conflitos com os vizinhos s<strong>em</strong> a mesma fonte <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong><br />

antes significou o fim do ciclo econômico holandês, mas houve ainda um<br />

período <strong>de</strong> disputas entre Inglaterra e França, antes <strong>de</strong> a primeira se estabelecer<br />

como a nova potência heg<strong>em</strong>ônica.<br />

A primeira revolução burguesa da história foi a holan<strong>de</strong>sa, no século XVI,<br />

<strong>em</strong> meio à luta pela in<strong>de</strong>pendência, motivada pelos interesses econômicos<br />

dos produtores locais constrangidos pela dominação espanhola. A revolução<br />

inglesa ocorreu <strong>em</strong> vários momentos no século XVII, normalmente explicitada<br />

pelos conflitos entre o Parlamento e a monarquia, e representou a ascensão da<br />

burguesia industrial, que por sua vez buscava influência política.<br />

Embora a Revolução Francesa, iniciada <strong>em</strong> 1789, também visasse a participação<br />

dos setores sociais excluídos das <strong>de</strong>cisões políticas do país, o que<br />

implicava uma aceitação maior, por parte do rei, das <strong>de</strong>cisões do Parlamento<br />

– que teve sua representação ampliada –, a revolução burguesa na França<br />

se diferenciou das anteriores porque a participação popular foi maior, a<br />

monarquia foi abolida e os monarcas, executados.<br />

Todas elas levaram décadas para se consolidar, mas a francesa foi a que<br />

mais repercutiu na Europa pela profundida<strong>de</strong> das transformações que provocou<br />

nas estruturas agrárias, sociais e políticas da França.<br />

80<br />

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Kjeld Jakobsen<br />

Os mesmos costumes do Ancien Régime francês (Antigo Regime) estavam<br />

presentes <strong>em</strong> outras monarquias, como a estrutura agrária s<strong>em</strong>ifeudal,<br />

a monarquia absolutista e a economia mercantilista. Foram, principalmente,<br />

os fundamentos da Revolução Francesa que <strong>de</strong>pois inspiraram mudanças<br />

nas estruturas <strong>de</strong> outras monarquias e abriram caminho para a ascensão<br />

do liberalismo – primeiro o econômico, <strong>de</strong>pois o político.<br />

Paralelamente aos altos e baixos do equilíbrio europeu, consolidavamse<br />

duas outras potências na periferia da Europa: a Rússia, cujos domínios<br />

chegavam ao Extr<strong>em</strong>o Oriente, e os Estados Unidos da América, do outro<br />

lado do oceano Atlântico. Estes últimos foram a primeira colônia a se<br />

tornar in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma metrópole européia, <strong>em</strong>bora isso tenha sido<br />

facilitado pelos conflitos entre Inglaterra e França, já que esta última,<br />

ainda antes da revolução, apoiou diretamente os rebel<strong>de</strong>s norte-americanos<br />

contra a Inglaterra.<br />

3. O EQUILÍBRIO SE ROMPE, SE RECOMPÕE, SE ROMPE...<br />

As disputas entre os diferentes setores políticos revolucionários na França,<br />

a crise econômica e a guerra <strong>de</strong> quase <strong>de</strong>z anos com praticamente todos os<br />

seus vizinhos levaram à ascensão da chamada República Termidoriana 2 , e<br />

posteriormente ao golpe do 18 Brumário, que abriram caminho para o general<br />

Napoleão Bonaparte assumir o po<strong>de</strong>r, inicialmente como cônsul, <strong>de</strong>pois<br />

como cônsul vitalício e, finalmente, entre 1804 e 1814, como imperador.<br />

Ele consolidou seu po<strong>de</strong>r ao <strong>de</strong>rrotar e/ou promover acordos <strong>de</strong> paz com<br />

os inimigos externos da revolução e colocar a economia <strong>em</strong> or<strong>de</strong>m. Entretanto,<br />

pouco a pouco começou a esten<strong>de</strong>r seu controle sobre a maior parte<br />

da Europa por meio <strong>de</strong> guerras ou alianças. A Inglaterra se opôs a essa<br />

tentativa heg<strong>em</strong>onista e entrou <strong>em</strong> guerra aberta com a França. O Mapa 2,<br />

a seguir, apresenta a situação européia no auge do po<strong>de</strong>r napoleônico.<br />

Napoleão manteve a ofensiva por vários anos e até firmou uma aliança<br />

com a Rússia para enfrentar os austríacos. Porém, <strong>em</strong> 1813, ele atacou o<br />

2 República Termidoriana foi a última composição entre os partidos na Ass<strong>em</strong>bléia Nacional<br />

Francesa após a revolução e antes <strong>de</strong> Napoleão assumir o po<strong>de</strong>r.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

aliado. Os franceses chegaram às portas <strong>de</strong> Moscou, mas recuaram <strong>de</strong>vido à<br />

falta <strong>de</strong> abastecimento e ao rigoroso inverno russo, per<strong>de</strong>ndo a maior parte<br />

do exército <strong>de</strong>vido à fome, ao frio e aos ataques russos.<br />

82<br />

Mapa 2 – A Europa no auge do po<strong>de</strong>rio <strong>de</strong> Napoleão (1810)<br />

Fonte: Kennedy, 1989, p. 130.<br />

Foi o fim. Uma coalizão inglesa, prussiana e austríaca obrigou Napoleão<br />

a recuar e <strong>em</strong> 1814, com os inimigos às portas <strong>de</strong> Paris, o senado francês o<br />

<strong>de</strong>stituiu do po<strong>de</strong>r. Porém, após curto exílio na ilha <strong>de</strong> Elba, no mar Medi-<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 82<br />

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Reprodução autorizada pela Editora Campus.


Kjeld Jakobsen<br />

terrâneo, ele reassumiu o po<strong>de</strong>r por alguns meses, <strong>em</strong> 1815, mas foi novamente<br />

<strong>de</strong>rrotado, na batalha <strong>de</strong> Waterloo.<br />

Neste ano realizou-se a Conferência <strong>de</strong> Viena, com o objetivo <strong>de</strong> restabelecer<br />

o equilíbrio europeu rompido e criar um mecanismo que evitasse novos<br />

conflitos, afinal <strong>de</strong> contas prejudiciais à economia e ao progresso. Tal<br />

objetivo ficou conhecido como o Concerto Europeu e assumiu um caráter<br />

conservador. Áustria, Rússia e Prússia estabeleceram a Santa Aliança com<br />

base <strong>em</strong> suas afinida<strong>de</strong>s cristãs e resgataram a idéia dos direitos divinos dos<br />

monarcas. A Inglaterra e, <strong>de</strong>pois, a França também a<strong>de</strong>riram para influenciar<br />

as articulações políticas do continente e abrir espaço para fortalecer as<br />

respectivas economias sob a égi<strong>de</strong> do liberalismo.<br />

Até 1848 foi a Aliança que <strong>de</strong>cidiu quais alterações aceitaria no cenário<br />

político, europeu e mundial. Entre elas, que a Espanha não restabeleceria<br />

suas colônias nas Américas; que a Bélgica po<strong>de</strong>ria se separar dos Países Baixos<br />

e constituir um reino autônomo; que a Grécia po<strong>de</strong>ria se tornar in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

s<strong>em</strong> implicar o <strong>de</strong>smantelamento do Império Otomano, apesar<br />

dos interesses russos nesse sentido; que a Áustria po<strong>de</strong>ria reprimir as tentativas<br />

<strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> seus domínios no norte da Itália, e da mesma<br />

forma a Prússia <strong>em</strong> relação a alguns principados al<strong>em</strong>ães. Foi um período <strong>de</strong><br />

exercício coletivo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r (Cervo, 2001, p. 71).<br />

Entre 1840 e 1848 ocorreu uma onda revolucionária na Europa, inclusive<br />

na França, que aparent<strong>em</strong>ente provocaria profundas transformações.<br />

No entanto, ela foi <strong>de</strong>rrotada, e a segunda meta<strong>de</strong> do século XIX caracterizou-se<br />

pela ocorrência <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as no interior da Aliança, pelo fortalecimento<br />

do nacionalismo europeu e pela ascensão do liberalismo econômico.<br />

A Rússia tentou uma vez mais se expandir para o sul e ter acesso ao mar<br />

Mediterrâneo à custa do Império Otomano. Isso levou à Guerra da Criméia,<br />

<strong>em</strong> que Inglaterra e França, e posteriormente Áustria e Itália, opuseram-se à<br />

Rússia e forçaram um acordo que a fez recuar <strong>de</strong> suas intenções.<br />

A erupção do nacionalismo europeu levou, principalmente, às unificações<br />

al<strong>em</strong>ã e italiana, e ao fim <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> pequenos países. O processo <strong>de</strong><br />

expansão da Al<strong>em</strong>anha, já unificada <strong>em</strong> torno da Prússia, foi dirigido pelo<br />

chanceler Otto von Bismarck e teve início pela anexação <strong>de</strong> dois ducados ao<br />

norte, tomados da Dinamarca, por meio <strong>de</strong> guerra com o apoio da Áustria.<br />

Em seguida, continuou com uma guerra contra esta para quebrar sua resis-<br />

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tência à expansão al<strong>em</strong>ã. A incorporação das províncias do sul levou à guerra<br />

contra a França <strong>em</strong> 1871, que foi rapidamente <strong>de</strong>rrotada, e a Al<strong>em</strong>anha estabeleceu-se<br />

como a segunda potência econômica e militar da Europa.<br />

Esse processo representou o fim do Sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Viena 3 e recolocou o equilíbrio<br />

europeu <strong>em</strong> novos termos. A a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> todos ao liberalismo econômico estimulou<br />

a busca <strong>de</strong> novos mercados, inclusive por meio da expansão colonial na África<br />

e na Ásia. A Inglaterra e a França saíram na frente, mas Al<strong>em</strong>anha, Itália, Rússia,<br />

Estados Unidos e Japão buscaram também ocupar alguns espaços.<br />

A Inglaterra era a potência militar e econômica heg<strong>em</strong>ônica no mundo<br />

do final do século XIX. Dizia-se que “o sol nunca se punha no Império<br />

Britânico”. Sua característica geográfica <strong>de</strong> ilha s<strong>em</strong>pre a poupara <strong>de</strong> invasões<br />

estrangeiras na ida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. Ali se <strong>de</strong>u o berço da industrialização.<br />

Suas colônias e os acordos <strong>de</strong> livre comércio que impunha a outros países<br />

proporcionaram um mercado prontamente atendido por sua indústria e<br />

por sua frota naval, a maior do mundo.<br />

O fato é que o liberalismo gerou forte competição entre os gran<strong>de</strong>s países<br />

da época. Nações que haviam sido importantes no passado, como Espanha,<br />

Portugal e Holanda, ficaram muito enfraquecidas e algumas até mesmo<br />

per<strong>de</strong>ram parte <strong>de</strong> suas colônias para as novas potências.<br />

A competição e os diferentes interesses levaram à constituição <strong>de</strong> alianças e<br />

diferentes acordos mútuos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>em</strong> substituição ao Concerto Europeu 4 .<br />

Formaram-se dois blocos: a Tríplice Aliança (Al<strong>em</strong>anha, Áustria-Hungria e<br />

Itália) e a Tríplice Entente (Inglaterra, França e Rússia). Era também um<br />

momento <strong>em</strong> que o nacionalismo <strong>de</strong>spontava <strong>em</strong> diferentes lugares.<br />

Foi um fato com esta orig<strong>em</strong> que provocou a <strong>de</strong>flagração da Primeira<br />

Guerra Mundial: o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, her<strong>de</strong>iro do<br />

trono Austro-Húngaro, e <strong>de</strong> sua esposa por um estudante bósnio nacionalista<br />

<strong>em</strong> Sarajevo, capital da Bósnia, anexada pela Áustria <strong>em</strong> 1908. O atentado<br />

havia sido planejado por uma organização terrorista sérvia e a reação<br />

austríaca foi dar um ultimato à Sérvia, para o qual teve endosso al<strong>em</strong>ão. A<br />

Sérvia não respon<strong>de</strong>u satisfatoriamente ao ultimato e houve a <strong>de</strong>claração<br />

3 Sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Viena foi a articulação entre os países surgida a partir da Conferência <strong>de</strong> Viena, <strong>em</strong> 1815, e que<br />

pressupunha a manutenção do status quo europeu s<strong>em</strong> aceitar novas transformações na sua geografia.<br />

4 Concerto Europeu era o instrumento <strong>de</strong> conciliação e <strong>de</strong> pressões para manter o Sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Viena.<br />

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formal <strong>de</strong> guerra. Um dia <strong>de</strong>pois a Áustria iniciou o bombar<strong>de</strong>io <strong>de</strong> Belgrado.<br />

Com isso a Rússia <strong>de</strong>u apoio à Sérvia, a Al<strong>em</strong>anha <strong>de</strong>clarou guerra à<br />

Rússia e todos foram arrastados para o conflito <strong>de</strong>vido às alianças.<br />

A Entente recebeu a a<strong>de</strong>são da Itália, do Japão, <strong>de</strong> Portugal, da Romênia<br />

e, <strong>em</strong> 1917, dos Estados Unidos. A Al<strong>em</strong>anha e a Áustria-Hungria receberam<br />

apoio da Bulgária e da Turquia. O Mapa 3 apresenta os movimentos<br />

iniciais da guerra.<br />

Mapa 3 – As potências européias e seus planos <strong>de</strong> guerra <strong>em</strong> 1914<br />

Fonte: Kennedy, 1989, p. 247.<br />

A guerra teve início com vários movimentos <strong>em</strong> 1914, porém, quando o<br />

inverno chegou, as posições estagnaram-se e iniciou-se uma guerra <strong>de</strong> trincheiras<br />

por três anos, do canal da Mancha até a Suíça, s<strong>em</strong> que houvesse<br />

uma <strong>de</strong>finição do conflito, apesar <strong>de</strong> algumas gran<strong>de</strong>s batalhas que cobraram<br />

milhares <strong>de</strong> vidas <strong>de</strong> ambos os lados.<br />

Os russos saíram do conflito após a Revolução <strong>de</strong> 1917, <strong>em</strong>bora aceitando<br />

duras condições para a paz. Com a entrada dos norte-americanos na<br />

questão, a maré mudou a favor da Entente. Com o pedido <strong>de</strong> cessar-fogo <strong>de</strong><br />

Bulgária, Turquia e Áustria-Hungria, a tentativa <strong>de</strong> revolução <strong>em</strong> Berlim e<br />

a abdicação do imperador Guilherme II, a Al<strong>em</strong>anha também se ren<strong>de</strong>u.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

O fim da guerra e as negociações <strong>de</strong> paz levadas a termo com cada um<br />

dos <strong>de</strong>rrotados transformaram profundamente o mapa europeu, conforme<br />

po<strong>de</strong> se verificar no Mapa 4.<br />

86<br />

Mapa 4 – A Europa <strong>de</strong>pois da Primeira Guerra Mundial<br />

Fonte: Kennedy, 1989, p. 268.<br />

4. A ÚLTIMA GUERRA E A CONSTRUÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA<br />

As negociações <strong>de</strong> paz com a Al<strong>em</strong>anha ocorreram por intermédio do<br />

Tratado <strong>de</strong> Versalhes, e foram coor<strong>de</strong>nadas por Inglaterra, França e Estados<br />

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Unidos pelo lado vencedor, mas a agenda dos três não era necessariamente a<br />

mesma. À França interessava neutralizar a Al<strong>em</strong>anha <strong>de</strong>finitivamente e vingar-se;<br />

à Inglaterra interessava que a França não se tornasse a potência<br />

heg<strong>em</strong>ônica no continente; aos Estados Unidos interessavam a paz na Europa<br />

e regras que favorecess<strong>em</strong> o livre comércio para expandir sua economia.<br />

O presi<strong>de</strong>nte norte-americano Woodrow Wilson introduziu uma inflexão<br />

na política externa <strong>de</strong> seu país ao substituir a política imperialista <strong>de</strong> busca<br />

<strong>de</strong> influência pela promoção do livre comércio e pela diss<strong>em</strong>inação da <strong>de</strong>mocracia.<br />

O objetivo era fortalecer o comércio <strong>de</strong> produtos norte-americanos<br />

e ampliar a influência dos Estados Unidos não mais por intermédio da<br />

política do Big Stick 5 e da Diplomacia do Dólar <strong>de</strong> seus antecessores, mas<br />

pela diss<strong>em</strong>inação dos “valores americanos”, particularmente o liberalismo<br />

econômico e a <strong>de</strong>mocracia representativa.<br />

Os 14 pontos <strong>de</strong>fendidos por Wilson, <strong>em</strong> Versalhes, como base para o<br />

acordo <strong>de</strong> paz propunham nova divisão geográfica e política para a Europa,<br />

uma política <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarmamento, o início da <strong>de</strong>scolonização, a evacuação das<br />

tropas estrangeiras da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), a<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> navegação nos mares com ou s<strong>em</strong> guerra, a eliminação <strong>de</strong> barreiras<br />

comerciais e a criação da Liga das Nações (LDN). Os Estados Unidos<br />

também se opunham às retaliações aos países <strong>de</strong>rrotados.<br />

N<strong>em</strong> todos os pontos foram cont<strong>em</strong>plados. Por ex<strong>em</strong>plo, França e Inglaterra<br />

transformaram parte do Império Otomano <strong>em</strong> novas colônias; a<br />

in<strong>de</strong>nização exigida da Al<strong>em</strong>anha foi imensa e as novas fronteiras na Europa<br />

não seguiram exatamente a proposta norte-americana. Embora os<br />

Estados Unidos não viess<strong>em</strong> a participar <strong>de</strong>la, a ldn foi criada e funcionaria<br />

com base <strong>em</strong> sua proposta <strong>de</strong> não possuir instrumentos coercitivos.<br />

No entanto, as condições do tratado, na prática, transformaram-se nos<br />

motivos para o início da Segunda Guerra Mundial, ainda mais mortífera e<br />

<strong>de</strong>struidora do que a primeira.<br />

Quase no final da década <strong>de</strong> 1920, ocorreram a crise da bolsa <strong>de</strong> Nova<br />

York e a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão americana, que repercutiu no mundo todo, com<br />

5 Big Stick (cuja tradução é ‘gran<strong>de</strong> porrete’) era a política externa para impor a vonta<strong>de</strong> dos Estados<br />

Unidos por meio da força militar. A frase é do presi<strong>de</strong>nte Theodore Roosevelt: “fale suav<strong>em</strong>ente,<br />

mas carregue um gran<strong>de</strong> porrete” (big stick).<br />

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exceção da União Soviética, que havia inaugurado um novo sist<strong>em</strong>a econômico<br />

<strong>em</strong> 1917.<br />

O liberalismo já havia <strong>de</strong>monstrado sua incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assegurar a paz<br />

e agora mostrava também sua incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> garantir um <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico estável. Isto fortaleceu a visão do papel do Estado para garantir<br />

a recuperação econômica após a Primeira Guerra Mundial, que estava<br />

<strong>em</strong> execução na URSS, na Itália e na Al<strong>em</strong>anha, porém com viés autoritário,<br />

e nos casos dos regimes fascista e nazista também com viés nacionalista,<br />

armamentista e expansionista.<br />

A i<strong>de</strong>ologia fascista viria a se tornar política <strong>de</strong> governo <strong>em</strong> vários outros<br />

países, entre eles Japão, Polônia, Países Bálticos, Romênia, Hungria,<br />

Bulgária, Áustria, Espanha, Portugal, Grécia e até o Brasil. Al<strong>em</strong>anha,<br />

Itália e Japão conformariam uma aliança chamada <strong>de</strong> Eixo. Os regimes<br />

liberais mantiveram-se apenas na América do Norte e no norte e noroeste<br />

da Europa.<br />

A segunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1930 foi o momento <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong><br />

expansões e vitórias fascistas, inicialmente com a cumplicida<strong>de</strong> das potências<br />

liberais para <strong>de</strong>bilitar a URSS e os partidos comunistas, mas quando<br />

estes acumularam <strong>de</strong>masiado po<strong>de</strong>r a guerra teve início.<br />

A Itália <strong>de</strong> Mussolini ocupou a Abissínia (Etiópia), <strong>em</strong> 1935, e a Albânia,<br />

<strong>em</strong> 1939. A Al<strong>em</strong>anha, governada por Adolf Hitler, recuperou as regiões do<br />

Sarre e a Renânia, ocupadas pela França após a Primeira Guerra Mundial,<br />

respectivamente, <strong>em</strong> 1935 e 1936. Em 1938 anexou a Áustria e, até 1939,<br />

também várias regiões da Tchecoslováquia. Nesse mesmo ano, a Lituânia<br />

lhe ce<strong>de</strong>u a região do M<strong>em</strong>el.<br />

Entre 1936 e 1939 ocorreu a Guerra Civil espanhola, opondo <strong>de</strong> um<br />

lado os fascistas li<strong>de</strong>rados pelo general Francisco Franco e apoiados por Al<strong>em</strong>anha<br />

e Itália, com a cumplicida<strong>de</strong> das potências liberais, e <strong>de</strong> outro os<br />

republicanos apoiados pela URSS e pelo Comintern. O golpe franquista foi<br />

vitorioso, e o terreno espanhol serviu para testar várias armas que seriam<br />

utilizadas <strong>em</strong> seguida na Segunda Guerra Mundial.<br />

Concluídos esses avanços, Hitler <strong>de</strong>u um ultimato à Polônia para que<br />

permitisse o acesso à cida<strong>de</strong> portuária <strong>de</strong> Dantzig (Gdansk), o que foi recusado,<br />

dando início à invasão al<strong>em</strong>ã e, conseqüent<strong>em</strong>ente, à <strong>de</strong>claração <strong>de</strong><br />

guerra da Inglaterra e da França contra a Al<strong>em</strong>anha.<br />

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Até 1942 a ofensiva das forças do Eixo foi b<strong>em</strong>-sucedida, à exceção da<br />

Itália, que sofreu várias <strong>de</strong>rrotas para os ingleses no norte da África e no Mediterrâneo,<br />

b<strong>em</strong> como para os gregos quando tentaram ocupar este país. Toda<br />

a Europa, exceto a Inglaterra, as neutras Suécia e Suíça, b<strong>em</strong> como os regimes<br />

fascistas aliados, Espanha e Portugal, estava ocupada. Porém os al<strong>em</strong>ães, após<br />

um período <strong>de</strong> pacto <strong>de</strong> não-agressão, atacaram a URSS <strong>em</strong> 1941, mas foram<br />

<strong>de</strong>rrotados <strong>em</strong> Stalingrado após cercá-la por quase seiscentos dias.<br />

No início <strong>de</strong> 1943, os Estados Unidos também estavam envolvidos na<br />

guerra a partir do bombar<strong>de</strong>io japonês à base naval <strong>de</strong> Pearl Harbour, no<br />

Havaí. Com o revés al<strong>em</strong>ão na URSS, teve início a conta-ofensiva aliada até<br />

a rendição dos italianos, <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro daquele mesmo ano, dos nazistas <strong>em</strong><br />

maio <strong>de</strong> 1945 e dos japoneses <strong>em</strong> agosto.<br />

Nesse meio-t<strong>em</strong>po ocorreu uma série <strong>de</strong> negociações entre os governos<br />

dos Estados Unidos, da URSS e da Inglaterra para criar instituições responsáveis<br />

pela gestão da nova or<strong>de</strong>m mundial após a guerra, como a ONU<br />

(Organização das Nações Unidas), o FMI (Fundo Monetário <strong>Internacional</strong>),<br />

o Banco Mundial e o GATT (General Agre<strong>em</strong>ent on Tariffs and Tra<strong>de</strong><br />

– Acordo Geral <strong>de</strong> Tarifas e Comércio), b<strong>em</strong> como o <strong>de</strong>senho das esferas <strong>de</strong><br />

influência na nova geografia mundial, <strong>em</strong> particular na Europa.<br />

Cabe registrar que os Estados Unidos, na prática, já eram a potência<br />

econômica heg<strong>em</strong>ônica após a Primeira Guerra Mundial, mas, <strong>em</strong> função<br />

do extensivo império britânico e da crise <strong>de</strong> 1929, isso somente se tornaria<br />

<strong>de</strong>finitivo após a Segunda Guerra, quando assumiriam também a condição<br />

<strong>de</strong> principal potência militar.<br />

As conferências <strong>de</strong> Yalta, <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1945, e <strong>de</strong> Potsdam, <strong>em</strong> julho e<br />

agosto do mesmo ano, <strong>de</strong>finiram, entre outras questões, o novo <strong>de</strong>senho da<br />

Europa, dividida entre o lado oriental sob influência soviética e a Europa<br />

Oci<strong>de</strong>ntal. Do lado oriental ficariam os Estados Bálticos, a Al<strong>em</strong>anha Oriental,<br />

a Polônia, a Tchecoslováquia, a Hungria, a Romênia, a Bulgária, a Albânia<br />

e a Iugoslávia. Embora estes dois últimos adotass<strong>em</strong> regimes socialistas, se<br />

afastaram da influência soviética, até porque não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ram do Exército<br />

Vermelho para expulsar os al<strong>em</strong>ães e sim <strong>de</strong> sua guerrilha dirigida pelos<br />

respectivos partidos comunistas.<br />

Do lado oci<strong>de</strong>ntal ficariam Grécia, após uma intervenção do exército inglês<br />

contra a guerrilha comunista, Itália, Áustria, República Fe<strong>de</strong>ral Al<strong>em</strong>ã, Fran-<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

ça, Lux<strong>em</strong>burgo, Holanda, Bélgica, Inglaterra e os países escandinavos, <strong>em</strong>bora<br />

a Finlândia tivesse que efetuar uma política <strong>de</strong> equilíbrio entre sua vizinha<br />

URSS e os países oci<strong>de</strong>ntais com os quais se alinhava.<br />

Foi neste quadro que se iniciou a conformação do que se tornaria a atual<br />

União Européia (UE). A discussão reinante, ainda antes do fim da guerra,<br />

era sobre a reconstrução da economia e do equilíbrio europeu. Uma gran<strong>de</strong><br />

preocupação era como envolver a Al<strong>em</strong>anha <strong>de</strong> forma diferente da <strong>de</strong> 1919,<br />

que não <strong>de</strong>ra certo.<br />

A formação da UE po<strong>de</strong> ser analisada à luz <strong>de</strong> várias teorias econômicas e<br />

<strong>de</strong> relações internacionais. Os economistas neoclássicos <strong>de</strong>stacarão a economia<br />

<strong>de</strong> escala e a reestruturação do mercado, e os keynesianos mencionarão<br />

o papel dos Estados europeus para a <strong>de</strong>finição da política econômica e social.<br />

O bloco, do ponto <strong>de</strong> vista das relações internacionais, po<strong>de</strong>rá ser analisado<br />

como um processo neo-realista, liberal ou funcionalista. Neste texto,<br />

nos limitar<strong>em</strong>os a mencionar as etapas principais do processo.<br />

A primeira <strong>de</strong>las, não necessariamente dirigida ao objetivo <strong>de</strong> fundar a<br />

UE, foi a criação da zona <strong>de</strong> livre comércio entre Bélgica, Holanda e<br />

Lux<strong>em</strong>burgo, o Benelux, <strong>em</strong> 1948. Em 1950, o ministro francês <strong>de</strong> Relações<br />

Exteriores, Robert Schuman, propôs a administração da produção <strong>de</strong><br />

carvão e aço sob uma autorida<strong>de</strong> comum. Esta foi uma proposta estratégica,<br />

pois as regiões produtoras <strong>de</strong>stes bens se localizavam nas fronteiras entre<br />

Al<strong>em</strong>anha e França, e a busca <strong>de</strong> seu controle foi o motivo econômico histórico<br />

das várias guerras entre os dois países. A iniciativa francesa levou à<br />

assinatura do tratado que fundou a Comunida<strong>de</strong> Européia do Carvão e do<br />

Aço (CECA), <strong>em</strong> 1951, entre estes dois países, o Benelux e a Itália.<br />

A inclusão indireta da discussão sobre segurança por meio do tratado que<br />

estabeleceu a Comunida<strong>de</strong> Européia <strong>de</strong> Energia Atômica (Euratom) possibilitou<br />

a criação da Comunida<strong>de</strong> Econômica Européia (CEE), por intermédio<br />

do Tratado <strong>de</strong> Roma, <strong>de</strong> 1957, com o propósito <strong>de</strong> estabelecer um<br />

mercado comum.<br />

Este tratado foi a base que possibilitou uma série <strong>de</strong> iniciativas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

liberalização comercial, <strong>de</strong> serviços, <strong>de</strong> capitais e <strong>de</strong> livre circulação <strong>de</strong> pessoas<br />

até a ampliação do número <strong>de</strong> países-m<strong>em</strong>bros da comunida<strong>de</strong>. Estas<br />

<strong>de</strong>cisões foram gradativamente regulamentadas. Por ex<strong>em</strong>plo, a união aduaneira<br />

entrou <strong>em</strong> vigor <strong>em</strong> 1968.<br />

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Além da liberalização, também foram estabelecidas políticas comuns,<br />

por ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> competitivida<strong>de</strong>, transportes, agrícola, entre outras, além<br />

<strong>de</strong> instituições para coor<strong>de</strong>nar a integração com o Conselho Europeu –<br />

instância superior, o Parlamento, o Tribunal <strong>de</strong> Justiça, o Conselho Consultivo<br />

Econômico e Social e a Comissão Européia – órgão executivo.<br />

Posteriormente foi criado o Sist<strong>em</strong>a Monetário Europeu, e <strong>em</strong> 1992 entrou<br />

<strong>em</strong> vigor a eliminação <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> barreiras não-tarifárias <strong>de</strong>finidas<br />

pelo Ato Único Europeu. Novos tratados foram fortalecendo a integração<br />

européia até chegar à moeda única e aos atuais 27 países m<strong>em</strong>bros. Os<br />

principais foram os tratados Maastricht, que <strong>de</strong>finiu as regras macroeconômicas<br />

para criar a moeda comum européia, o euro, <strong>em</strong> 1993, <strong>de</strong> Amsterdã,<br />

<strong>em</strong> 1999, e <strong>de</strong> Nice, que discutiu a ampliação da União Européia,<br />

<strong>em</strong> 2000.<br />

A CEE começou a se ampliar durante os anos 1970 com a a<strong>de</strong>são <strong>de</strong><br />

Inglaterra, Dinamarca e Irlanda. Depois, entraram Grécia, Espanha e Portugal<br />

e, mais tar<strong>de</strong>, Áustria, Suécia e Finlândia, conformando a Europa<br />

dos 15 que se manteria assim até o início do século XXI.<br />

Os principais <strong>de</strong>bates <strong>de</strong> hoje sobre os rumos da União Européia estão<br />

relacionados com a aprovação ou não <strong>de</strong> uma Constituição Européia, a a<strong>de</strong>são<br />

<strong>de</strong> novos países que se divi<strong>de</strong>m entre o Oci<strong>de</strong>nte e o Oriente – como a<br />

Turquia, os países da ex-Iugoslávia que estiveram <strong>em</strong> guerra entre si ao longo<br />

da década <strong>de</strong> 1990 e a Ucrânia –, o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa comum e a dimensão<br />

social da integração.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das gran<strong>de</strong>s potências. Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Campus, 1989.<br />

CERVO, Luis Amado. “Heg<strong>em</strong>onia coletiva e equilíbrio: a construção do<br />

mundo liberal (1815-1871)”. In SARAIVA, José Flávio S. Relações<br />

Internacionais: dois séculos <strong>de</strong> história. vol I. Brasília: IPRI, 2001, p.<br />

59-104.<br />

SARAIVA, José Flávio Sombra (org). Relações internacionais: dois séculos <strong>de</strong><br />

história. Brasília, IBRI, 2001.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional Apresentação<br />

1. UMA LONGA HISTÓRIA<br />

1. A Ásia, consi<strong>de</strong>rada <strong>em</strong> geral um continente à parte, mas parcela oriental<br />

do continente Eurasiano, é o berço das mais antigas civilizações humanas. Entre<br />

elas se <strong>de</strong>stacam as civilizações indiana e chinesa. Esta última é a mais antiga<br />

<strong>de</strong> todas, com cerca <strong>de</strong> 6 mil anos <strong>de</strong> história, 4 mil dos quais <strong>de</strong> história escrita.<br />

A região asiática é também o berço <strong>de</strong> povos que, <strong>em</strong> ondas sucessivas, se dirigiram<br />

ao oeste, conformando os povos que hoje viv<strong>em</strong> no subcontinente europeu.<br />

Assírios, godos, visigodos, hunos e mongóis chegaram até as praias oci<strong>de</strong>ntais e<br />

<strong>de</strong>ixaram suas marcas étnicas e culturais nessas regiões.<br />

2. A cultura milenar dos povos asiáticos, especialmente a filosofia, a religião,<br />

a arte militar e as diferentes invenções técnicas, permanece ainda hoje<br />

influenciando a cultura mundial. A filosofia clássica chinesa, surgida no mesmo<br />

período da filosofia grega clássica, entre os séculos VI e IV a.C., t<strong>em</strong> como<br />

expoentes Confúcio, Mêncio e Lao-tsé. Relegada durante muito t<strong>em</strong>po<br />

como cultura apenas exótica, ainda é uma referência mundial importante. Por<br />

outro lado, o budismo, o hinduísmo e o taoísmo, através <strong>de</strong> suas diferentes<br />

seitas, têm ganhado terreno entre as religiões oci<strong>de</strong>ntais. Sun Zu (século V<br />

a.C.), mestre militar e político cujos textos estão <strong>em</strong> parte reunidos <strong>em</strong> A arte<br />

da guerra, é estudado com atenção <strong>em</strong> diferentes países. Mahatma Gandhi,<br />

Mao Tsé-tung, Ho Chi Min (lí<strong>de</strong>r revolucionário vietnamita) e outros lí<strong>de</strong>res<br />

asiáticos são referências mundiais. E hoje não se po<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>sconhecer que a<br />

92<br />

Um olhar sobre a Ásia<br />

Wladimir Pomar 1<br />

1 Jornalista e escritor, é m<strong>em</strong>bro do conselho <strong>de</strong> redação da revista Teoria & Debate, autor, entre outros,<br />

<strong>de</strong> Araguaia, o partido e a guerrilha, O enigma chinês – capitalismo ou socialismo, Lula lá – o susto das elites, A ilusão<br />

dos inocentes, Pedro Pomar – uma vida <strong>em</strong> vermelho e A revolução chinesa.<br />

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pólvora, a bússola, os tipos <strong>de</strong> impressão, o relógio mecânico, o l<strong>em</strong>e, as velas<br />

triangulares e diversos outros inventos humanos vieram do Oriente.<br />

3. No século VI a.C., algumas regiões da Ásia alcançaram o apogeu do escravismo<br />

e ingressaram no feudalismo. E no século XV d.C., quando os feudais venceram<br />

sua disputa contra a classe dos mercadores na China, o feudalismo tornou-se a<br />

formação econômico-social predominante na maior parte dos reinos asiáticos,<br />

<strong>em</strong>bora fosse possível encontrar populações vivendo no escravismo (a ex<strong>em</strong>plo do<br />

Tibete e <strong>de</strong> vários reinos indianos), ou mesmo no comunismo primitivo (a ex<strong>em</strong>plo<br />

<strong>de</strong> Papua Nova Guiné). Na China, no Vietnã e na Tailândia constituíram-se<br />

monarquias centralizadas já antes <strong>de</strong> nossa era. Porém, na Índia, no Japão, na<br />

Birmânia, no Camboja e <strong>em</strong> outras regiões essa centralização foi tardia ou não<br />

chegou a ocorrer antes da chegada das naus européias do mercantilismo.<br />

4. De qualquer modo, a riqueza <strong>de</strong>sses reinos, e a organização e a suntuosida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> suas monarquias, era <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m, muitas vezes <strong>de</strong>ixando conviver feudalismo<br />

e escravismo, que Hegel supôs que a Ásia estava estagnada no t<strong>em</strong>po, e<br />

Marx acreditou na existência <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> produção asiático, diferente do<br />

escravismo e do feudalismo.<br />

5. Essa complexida<strong>de</strong> começou a ser <strong>de</strong>svendada, <strong>em</strong>bora ainda <strong>de</strong> maneira<br />

enviesada e sob forte viés racista, no início da segunda onda <strong>de</strong> colonização<br />

européia, nos séculos XVIII e XIX. O império britânico, o mais forte e o maior,<br />

havia submetido a Índia, a Birmânia, o Ceilão, a Malásia e alguns territórios<br />

chineses (Hong Kong e concessões continentais). O império francês tentou<br />

concessões na Índia, mas, <strong>de</strong>rrotado pelos ingleses, conformou-se com a Indochina<br />

e concessões na China. O império al<strong>em</strong>ão dominava várias ilhas na Micronésia<br />

e tinha como concessão a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Qingdao, na China. O império norteamericano<br />

possuía o Havaí e as Filipinas, enquanto o império russo se esten<strong>de</strong>ra<br />

pela Sibéria, pela Mongólia e <strong>em</strong> concessões no nor<strong>de</strong>ste chinês. O império<br />

holandês dominava a Indonésia. Portugal mantinha suas antigas feitorias <strong>em</strong><br />

Timor (ilhas do su<strong>de</strong>ste), Goa e Diu (Índia), e Macau (China). O <strong>em</strong>ergente<br />

império nipônico dominava a Coréia e concessões na Manchúria (China).<br />

2. O SISTEMA DE DOMÍNIO COLONIAL CAPITALISTA DA ÁSIA<br />

6. O sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> exploração colonial das potências capitalistas européias,<br />

a partir do final do século XVIII e durante o século XIX, quando se conso-<br />

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lidou, compreendia a extração <strong>de</strong> recursos minerais e agrícolas necessários<br />

às indústrias metropolitanas, a exploração <strong>de</strong> direitos alfan<strong>de</strong>gários e concessões<br />

ferroviárias e portuárias, e a transformação dos territórios dominados<br />

<strong>em</strong> mercados para os produtos industriais das metrópoles.<br />

7. Nesse período, a Índia tornou-se gran<strong>de</strong> produtora <strong>de</strong> algodão, ópio,<br />

especiarias diversas e minérios; a Malásia e a Indochina passaram a produzir<br />

borracha; a China produzia algodão, especiarias e minérios; e o Japão, carente<br />

<strong>de</strong>ssas riquezas, teve que abrir seus portos para o ingresso dos produtos<br />

industriais. Além disso, todos esses países ofereciam mão-<strong>de</strong>-obra imensa<br />

e barata para as gran<strong>de</strong>s construções que as potências industriais realizavam<br />

no mundo. Suas alfân<strong>de</strong>gas passaram a ser administradas pelos<br />

dominadores, assim como as ferrovias e os portos internacionais. Inglaterra,<br />

França e Estados Unidos exportavam gran<strong>de</strong>s volumes <strong>de</strong> tecidos e bens <strong>de</strong><br />

consumo cotidiano para as regiões dominadas, a preços mais baratos do que<br />

os produtos artesanais locais.<br />

8. Em todos os países dominados, as potências capitalistas associaram-se<br />

às elites locais, <strong>em</strong> geral monarquias, como na Birmânia, na Malásia, na<br />

Indochina e na China. No Japão, associaram-se aos mercadores e a algumas<br />

famílias feudais. Na Índia, os dominadores britânicos associaram-se aos<br />

marajás e às castas superiores, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que incentivaram as<br />

disputas entre eles.<br />

9. Esse sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> domínio teve conseqüências <strong>de</strong> diferentes tipos. Em<br />

alguns países, <strong>de</strong>sorganizou setores produtivos inteiros, como aconteceu<br />

com a agricultura comunitária, na Índia, e com o artesanato <strong>em</strong> praticamente<br />

todos eles. Em outros, introduziu el<strong>em</strong>entos do modo <strong>de</strong> produção<br />

capitalista <strong>de</strong> forma mais intensa, como ocorreu principalmente no Japão e,<br />

<strong>em</strong> certa escala, na China. Em todos, aumentou as cargas sobre os camponeses,<br />

intensificou a exploração sobre os trabalhadores e fez surgir<strong>em</strong> revoltas<br />

e movimentos nacionalistas espontâneos.<br />

10. No Japão, a pressão imperialista fez surgir um movimento <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização<br />

conservadora, conhecido como Reforma Meiji, que transformou o país<br />

numa potência industrial, s<strong>em</strong> que fosse necessário <strong>de</strong>struir o feudalismo. Da<br />

mesma forma que a organização feudal dividia a proprieda<strong>de</strong> rural e o po<strong>de</strong>r<br />

político e militar entre algumas famílias, o mesmo ocorreu com a proprieda<strong>de</strong><br />

industrial. Em todos os <strong>de</strong>mais países asiáticos, as classes dominantes foram<br />

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incapazes <strong>de</strong> realizar algo idêntico ao Japão, conformando-se com sua manutenção<br />

como monarquias auxiliares dos colonizadores estrangeiros.<br />

11. Assim, ao explodir a Primeira Guerra Mundial, a Ásia encontrava-se<br />

dividida entre um grupo reduzido <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s potências industriais e algumas<br />

potências <strong>de</strong> segunda classe. Com exceção do Japão, primeira potência asiática<br />

a vencer uma guerra contra um país europeu (a Rússia, <strong>em</strong> 1905) e, aliada<br />

dos ingleses, <strong>em</strong> 1914, a enviar uma esquadra para auxiliar as operações navais<br />

contra al<strong>em</strong>ães, austro-húngaros e otomanos no mar Negro, todos os<br />

<strong>de</strong>mais tinham seu futuro atrelado aos resultados <strong>de</strong>ssa guerra global.<br />

12. A Primeira Guerra Mundial resultou numa nova configuração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res<br />

mundiais. Os impérios austro-húngaro, al<strong>em</strong>ão e otomano foram <strong>de</strong>stroçados.<br />

Os impérios britânico e francês tiveram perdas enormes e saíram<br />

enfraquecidos. Os impérios norte-americano e japonês se fortaleceram e se<br />

firmaram como impérios <strong>em</strong>ergentes. E o império russo naufragou numa<br />

revolução <strong>de</strong> novo tipo, que implantou uma união <strong>de</strong> repúblicas socialistas.<br />

13. Essa nova configuração causou uma redivisão no domínio colonial<br />

sobre a Ásia. Os impérios britânico e francês expandiram-se para a<br />

Mesopotâmia e o Oriente Médio, o império nipônico ocupou as antigas<br />

possessões al<strong>em</strong>ãs e os domínios holandês, português e norte-americano<br />

mantiveram-se inalterados.<br />

14. Por outro lado, <strong>em</strong>ergiram os primeiros gran<strong>de</strong>s movimentos<br />

anticolonialistas. Na Índia e na China, <strong>em</strong> 1919; na Indonésia, <strong>em</strong> 1926.<br />

Sua ban<strong>de</strong>ira principal era o nacionalismo. Em alguns casos, isso surgiu associado<br />

à <strong>de</strong>mocratização da proprieda<strong>de</strong> agrária, com o fim do sist<strong>em</strong>a feudal,<br />

ou s<strong>em</strong>ifeudal, e da opressão sobre o campesinato. Em outros também se<br />

associou à reivindicação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia política e a movimentos anticapitalistas.<br />

15. Nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, à nova redivisão<br />

colonial e à eclosão dos movimentos nacionalistas e <strong>de</strong> outros tipos na Ásia,<br />

também ocorreram nos países capitalistas centrais movimentos importantes,<br />

entre os setores imperialistas dominantes.<br />

16. A Al<strong>em</strong>anha <strong>de</strong>batia-se <strong>em</strong> crise profunda, não suportando as in<strong>de</strong>nizações<br />

e reparações impostas pelo Tratado <strong>de</strong> Versalhes, assinado <strong>em</strong> 1919.<br />

A república implantada não conseguiu consolidar-se, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> as forças<br />

militares, que serviram ao império e aos grupos econômicos, ter<strong>em</strong> se<br />

conservado intactas, e no comando da situação, principalmente após have-<br />

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r<strong>em</strong> <strong>de</strong>rrotado a insurreição <strong>de</strong> 1919. No início dos anos 1930, o Partido<br />

Nacional-Socialista (nazista), com o apoio da gran<strong>de</strong> burguesia, obteve<br />

maioria no Parlamento e assumiu o po<strong>de</strong>r. Para resolver a crise, os nazistas<br />

implantaram uma política econômica que tinha como carro-chefe o<br />

rearmamento, subordinado a uma estratégia <strong>de</strong> ampliação do espaço vital<br />

al<strong>em</strong>ão no rumo leste, ou seja, da União Soviética. Sob uma retórica estritamente<br />

antibolchevista, a Al<strong>em</strong>anha proclamava sua disposição <strong>de</strong> realizar<br />

uma nova divisão global.<br />

17. Os Estados Unidos, potência mais jov<strong>em</strong>, <strong>em</strong>bora houvess<strong>em</strong> colonizado<br />

o Havaí e as Filipinas, propunham uma política <strong>de</strong> divisão do mundo<br />

<strong>de</strong> natureza econômica, tendo como base o livre comércio e a competição<br />

comercial. Assim, <strong>de</strong>fendiam portas abertas na China, na Índia e <strong>em</strong> outras<br />

regiões, e se esforçavam por manter o status quo <strong>em</strong> relação ao Japão. À<br />

medida que as pretensões nazistas e nipônicas ficavam claras, formaram-se<br />

dois gran<strong>de</strong>s blocos internos, um <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o não-alinhamento a qualquer<br />

dos lados <strong>em</strong> disputa, outro <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo que os Estados Unidos teriam<br />

que tomar partido contra o nazismo e o Japão. Em vários círculos firmarase,<br />

além disso, a suposição <strong>de</strong> que o Japão avançaria sobre as zonas <strong>de</strong> influência<br />

dos Estados Unidos, o que obrigaria estes a confrontá-lo.<br />

18. O Japão, que também havia chegado tardiamente à industrialização<br />

e à divisão mundial capitalista, <strong>de</strong>senvolvera-se rapidamente após a Primeira<br />

Guerra Mundial. Seus círculos dirigentes concluíram, <strong>em</strong> 1927, que o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento do país só seria possível se, ao mesmo t<strong>em</strong>po, se espraiasse<br />

por outros países, garantindo as matérias-primas e as rotas <strong>de</strong> abastecimento<br />

para suas indústrias. O M<strong>em</strong>orando Tanaka, <strong>de</strong>sse mesmo ano, <strong>de</strong>lineou<br />

os planos <strong>de</strong> expansão japonesa na Ásia, estipulando a meta da heg<strong>em</strong>onia<br />

nessa região, começando pela ocupação da Manchúria e pela instalação <strong>de</strong><br />

um governo títere, o que ocorreu <strong>em</strong> 1931. Os preparativos para a expansão<br />

japonesa continuaram nos anos seguintes, com o abandono da Liga das<br />

Nações, <strong>em</strong> 1933, a a<strong>de</strong>são ao Pacto Anti-Comintern, <strong>em</strong> 1936, e a ofensiva<br />

geral para a ocupação da China, <strong>em</strong> 1937.<br />

19. Esses movimentos imperialistas, por uma nova redivisão do mundo,<br />

polarizaram todas as ações, conduzindo a humanida<strong>de</strong> a uma guerra <strong>de</strong> proporções<br />

mundiais ainda mais vasta e profunda do que a guerra <strong>de</strong> 1914-1918. Em<br />

1939 já havia se conformado uma estreita aliança entre a Al<strong>em</strong>anha nazista, a<br />

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Itália fascista e o Japão, o chamado Eixo anti-Comintern, ou anticomunista.<br />

Porém, <strong>em</strong>bora teoricamente o movimento <strong>de</strong>ssas potências tivesse como objetivo<br />

a liquidação da União Soviética, sua expansão territorial real ocorria às<br />

expensas das potências oci<strong>de</strong>ntais. Essa dicotomia agravou-se com a assinatura<br />

do Pacto <strong>de</strong> Não-Agressão entre a Al<strong>em</strong>anha e a URSS (União das Repúblicas<br />

Socialistas Soviéticas), e chegou a um ponto crítico com a invasão da Polônia,<br />

<strong>em</strong> 1939, levando a Inglaterra e a França a <strong>de</strong>clarar<strong>em</strong> guerra à Al<strong>em</strong>anha.<br />

20. A URSS, por seu lado, esforçava-se para impedir um ataque pelos<br />

dois flancos extr<strong>em</strong>os <strong>de</strong> seu território (da Al<strong>em</strong>anha, através da Ucrânia,<br />

no oeste; e do Japão, através da Sibéria, no oriente), ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que procurava ganhar t<strong>em</strong>po para reforçar-se militarmente. Suas negociações<br />

com a França e a Inglaterra haviam fracassado até então. Para impedir<br />

que a Finlândia pró-fascista servisse <strong>de</strong> base <strong>de</strong> operações das forças al<strong>em</strong>ãs<br />

pelo flanco noroeste, a URSS envolveu-se numa guerra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgaste com<br />

aquele país, conseguindo <strong>em</strong> parte sua neutralida<strong>de</strong>. Quando a Al<strong>em</strong>anha<br />

atacou a Polônia, a URSS também movimentou suas tropas sobre os antigos<br />

territórios ucranianos cedidos à Polônia no tratado <strong>de</strong> paz <strong>de</strong> 1918, avançando<br />

suas linhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa mais para o oeste.<br />

21. Na Ásia, os movimentos anticolonialistas ainda se encontravam divididos<br />

sobre qu<strong>em</strong> seria o inimigo principal. Embora o Japão houvesse invadido<br />

a Manchúria, havia aqueles que o enxergavam como aliado contra os<br />

colonialistas. Talvez por isso tenha sido na Ásia que o movimento imperialista<br />

<strong>em</strong> direção a uma nova guerra mundial se expandiu primeiro. A partir<br />

<strong>de</strong> 1936, o Japão acelerou a execução do plano Tanaka, a<strong>de</strong>riu ao Pacto<br />

Anti-Comintern, <strong>de</strong>nunciou o Pacto <strong>de</strong> Washington, que limitava sua capacida<strong>de</strong><br />

naval, e realizou sua ofensiva geral contra a China. Em 1938,<br />

<strong>de</strong>cretou a mobilização geral para a guerra e expandiu as operações <strong>de</strong> suas<br />

tropas, tanto no sentido sul-sudoeste (Xangai, Hong Kong, Macau,<br />

Indochina) como no sentido leste (ilhas da Micronésia).<br />

3. A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NA ÁSIA<br />

22. Em 1940, tanto a Europa quanto a Ásia estavam envolvidas na Segunda<br />

Guerra Mundial. Na Ásia, o Japão mantinha seu <strong>em</strong>puxo nas direções<br />

sul-sudoeste (Indochina, Birmânia e Tailândia) e sul-su<strong>de</strong>ste (Malásia,<br />

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Indonésia, Timor, Filipinas, Ceilão, Bornéu, Papua, ilhas Molucas). Ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> 1941, reforçava sua aliança com a Al<strong>em</strong>anha e a Itália,<br />

mas assinava um Pacto <strong>de</strong> Não-Agressão com a URSS, apontando que iria<br />

dirigir seu ataque principal não a oeste, mas a leste, contra os Estados Unidos.<br />

O ataque à base norte-americana <strong>de</strong> Pearl Harbour ocorreu <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro<br />

<strong>de</strong> 1941.<br />

23. Paralelamente, o Japão <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>u uma série <strong>de</strong> ações políticas com<br />

o intuito <strong>de</strong> superar suas fraquezas <strong>em</strong> recursos humanos, ampliar seus apoios<br />

nos países conquistados, dividir os movimentos <strong>de</strong> resistência e concentrar<br />

suas forças na luta contra o inimigo principal, os Estados Unidos. Procurou<br />

incentivar os movimentos anticolonialistas contra as potências oci<strong>de</strong>ntais,<br />

implantou governos pró-Japão na Manchúria, na China e nas Filipinas, e<br />

prometeu reconhecer a in<strong>de</strong>pendência da Birmânia (o que aconteceu <strong>em</strong><br />

1943), da Indochina e da Indonésia (o que ocorreu <strong>em</strong> 1945).<br />

24. A Grã-Bretanha reagiu mal à ofensiva japonesa. Parte <strong>de</strong> suas tropas<br />

capitulou <strong>em</strong> vários pontos (Hong Kong, Birmânia etc.) e as <strong>de</strong>mais retiraram-se<br />

para a Índia. Após esse recuo geral, os britânicos passaram à ação<br />

política, prometendo aos indianos autonomia e in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>pois do<br />

conflito. Nas outras colônias, então ocupadas pelos japoneses, os britânicos<br />

apoiaram os movimentos guerrilheiros <strong>de</strong> resistência, fornecendo-lhes armas<br />

e outros tipos <strong>de</strong> recursos materiais.<br />

25. A França, por seu turno, capitulou duplamente. Na Europa, diante<br />

das tropas nazistas, vendo-se dividida <strong>em</strong> duas: ao norte, incluindo Paris,<br />

sob ocupação das tropas nazistas, e, ao sul, com capital <strong>em</strong> Vichy, sob um<br />

governo títere. Na Indochina, suas tropas também capitularam e, <strong>em</strong> função<br />

da colaboração com a Al<strong>em</strong>anha, colaboraram com o Japão.<br />

26. Em virtu<strong>de</strong> do ataque japonês a Pearl Harbour, os Estados Unidos<br />

<strong>de</strong>cidiram romper sua posição <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong> e entrar na guerra. Embora<br />

o palco principal <strong>de</strong> suas operações fosse o Pacífico e a guerra contra o Japão,<br />

os Estados Unidos passaram a fornecer recursos militares para a guerra contra<br />

a Al<strong>em</strong>anha na Europa, participando da aliança formada por URSS,<br />

Inglaterra e França. Na Ásia, somente <strong>em</strong> 1942 os Estados Unidos conseguiram<br />

iniciar uma contra-ofensiva ao Japão, <strong>em</strong> três frentes.<br />

27. A resistência à invasão e à ocupação japonesas variou. Organizaramse<br />

movimentos guerrilheiros, tanto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia nacionalista quanto comu-<br />

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nista, às vezes constituindo frentes únicas (como no Vietnã), outras vezes<br />

não (como na Tailândia). Na China, o movimento <strong>de</strong> resistência tomou o<br />

caráter <strong>de</strong> uma frente única nacional. Na Índia, não atacada pelas tropas<br />

nipônicas, chegou a ser formado um exército pró-japonês, que foi <strong>de</strong>sbaratado.<br />

As tropas indianas participaram das operações militares da Inglaterra<br />

no norte da África e na Europa, mas não na Ásia.<br />

4. ÁSIA: SITUAÇÃO IMEDIATA NO PÓS-GUERRA – 1945-1950<br />

28. O surgimento <strong>de</strong> movimentos guerrilheiros nacionais relativamente<br />

fortes, a participação da URSS na guerra contra a Al<strong>em</strong>anha e, no final,<br />

também contra o Japão, a necessida<strong>de</strong> das potências coloniais <strong>de</strong> <strong>em</strong>punhar<br />

a ban<strong>de</strong>ira da liberda<strong>de</strong> e da <strong>de</strong>mocracia para conquistar o apoio dos povos<br />

contra o Eixo, a <strong>de</strong>rrota militar da Itália, da Al<strong>em</strong>anha e do Japão; tudo isso<br />

contribuiu para profundas mudanças na correlação <strong>de</strong> forças <strong>em</strong> cada país<br />

ou região da Ásia e tornou insustentável a continuida<strong>de</strong> do colonialismo.<br />

29. O Japão tornou-se um país ocupado por forças norte-americanas,<br />

que lançaram duas bombas atômicas sobre cida<strong>de</strong>s japonesas (Hiroshima e<br />

Nagasaki) para apressar o final da guerra e evitar que as tropas soviéticas<br />

também participass<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua tomada. Os Estados Unidos <strong>de</strong>ram início aos<br />

processos contra os criminosos <strong>de</strong> guerra nipônicos, elaboraram uma nova<br />

Constituição para o país, realizaram a reforma agrária e iniciaram uma forte<br />

política <strong>de</strong> reconstrução econômica, já sob os ventos da Guerra Fria contra<br />

a União Soviética.<br />

30. A China, que resistira ao Japão com um exército unificado, incluindo as<br />

tropas comunistas, mergulhou num duro processo <strong>de</strong> negociações <strong>de</strong> paz, entre<br />

1945 e 1947. Porém, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que essas negociações ocorriam, as<br />

forças militares norte-americanas supriam apoio logístico aos 8 milhões <strong>de</strong> homens<br />

das tropas do Guomindang 2 , para que se posicionass<strong>em</strong> estrategicamente<br />

com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotar os 3 milhões das tropas comunistas, numa nova guerra<br />

civil. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, a União Soviética pressionava os comunistas a aceitar o<br />

2 Tropas do Guomindang: tropas do Exército Nacional chinês, sob a direção do Guomindang, o<br />

Partido Nacionalista da China.<br />

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acordo proposto pelo Guomindang e pelos Estados Unidos, <strong>de</strong> modo a evitar o<br />

acirramento <strong>de</strong> suas disputas com os norte-americanos.<br />

31. O fracasso <strong>de</strong>ssas negociações foi acompanhado, <strong>em</strong> 1947, pela ofensiva<br />

das tropas do Guomindang. As tropas comunistas, rebatizadas Exército<br />

Popular <strong>de</strong> Libertação (EPL), realizaram retiradas, mas passaram paulatinamente<br />

à contra-ofensiva, sendo engrossadas por corpos <strong>de</strong> exército do<br />

Guomindang, que trocaram <strong>de</strong> lado. Em 1949, o EPL passou à ofensiva<br />

geral. As principais tropas r<strong>em</strong>anescentes do Guomindang fugiram para<br />

Taiwan, sob proteção da 7 a Frota da Armada dos Estados Unidos, enquanto<br />

outras se <strong>em</strong>brenharam pelo Vietnã e pela Tailândia. A República Popular<br />

foi proclamada <strong>em</strong> 1 o <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1949.<br />

32. Na Índia, <strong>em</strong> 1946, foram instalados a Ass<strong>em</strong>bléia Constituinte e<br />

um governo <strong>de</strong> transição. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> parte por pressão da Liga<br />

Muçulmana, os britânicos dividiram o antigo território imperial <strong>em</strong> Índia<br />

(<strong>de</strong> maioria hinduísta), Paquistão (Oci<strong>de</strong>ntal e Oriental, <strong>de</strong> maioria islâmica)<br />

e Birmânia. Essa divisão conduziu a migrações <strong>em</strong> massa e a choques sangrentos<br />

entre hinduístas e muçulmanos. Na Cax<strong>em</strong>ira, os indianos estimularam<br />

uma insurreição contra o principado feudal da região, <strong>em</strong> 1947. E, a<br />

pretexto <strong>de</strong>la, realizaram uma intervenção militar na região, promovendo a<br />

primeira guerra contra o Paquistão. Apesar da con<strong>de</strong>nação da onu (Organização<br />

das Nações Unidas) e do cessar-fogo <strong>de</strong> 1948, a Índia manteve sua<br />

ocupação <strong>de</strong> uma parte da região, que se tornou um dos principais pontos<br />

<strong>de</strong> atrito entre os dois países. Em meio a esses conflitos, <strong>em</strong> 1948, Mahatma<br />

Gandhi foi assassinado, e a Índia fez a anexação do principado muçulmano<br />

<strong>de</strong> Hi<strong>de</strong>rabad. Em 1950, o Parlamento indiano proclamou a Constituição<br />

da República da União Índia (Bharat).<br />

33. O Paquistão Oci<strong>de</strong>ntal, tendo como capital Islamabad, ficou a noroeste<br />

da Índia, na antiga região do vale do Indo. As migrações populacionais<br />

impuseram ao novo país uma série <strong>de</strong> crises e tensões, tanto <strong>de</strong> caráter<br />

religioso quanto econômico e social. As disputas da população com os proprietários<br />

feudais tomaram muitas vezes a forma <strong>de</strong> rebeliões armadas, agravadas<br />

<strong>em</strong> gran<strong>de</strong> medida pelas disputas com a Índia.<br />

34. O Paquistão Oriental ficou situado a 1.700 quilômetros do Paquistão<br />

Oci<strong>de</strong>ntal, na foz do rio Ganges. Enfrentou os mesmos probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> crises<br />

e tensões, agravados pelas condições naturais mais adversas e pela maior<br />

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pobreza <strong>de</strong> sua população. Algum t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois, proclamou sua própria<br />

in<strong>de</strong>pendência e passou a chamar-se Bangla<strong>de</strong>sh.<br />

35. Pelo Acordo <strong>de</strong> Potsdam, a antiga colônia japonesa da Coréia foi<br />

dividida, <strong>em</strong> 1945, <strong>em</strong> duas zonas, uma ocupada pelos soviéticos e outra<br />

pelos norte-americanos, tendo como linha fronteiriça o paralelo 38. A<br />

reunificação <strong>de</strong>veria ocorrer por meio <strong>de</strong> eleições gerais realizadas <strong>em</strong> ambos<br />

os lados. Ao norte, com base nas forças guerrilheiras que resistiram à ocupação<br />

japonesa, foram formados comitês <strong>de</strong> frente popular, que assumiram<br />

o governo <strong>de</strong> transição logo após o final da guerra. No sul, os norteamericanos<br />

mantiveram o governo militar até 1948, quando as tropas <strong>de</strong><br />

ocupação da URSS e dos Estados Unidos foram retiradas. As eleições foram<br />

adiadas e formaram-se duas repúblicas. Em 1950, conflitos <strong>de</strong> fronteira<br />

levaram o norte a invadir o sul, dando ensejo à intervenção da ONU<br />

e dos Estados Unidos.<br />

36. Na Indochina, a virada dos ventos da guerra mundial levou os japoneses<br />

a <strong>de</strong>sarmar as tropas francesas, <strong>em</strong> 1945. Tendo construído gran<strong>de</strong>s<br />

forças guerrilheiras antijaponesas, os vietnamitas e os cambojanos proclamaram<br />

a in<strong>de</strong>pendência. No Camboja foi restabelecida a monarquia constitucional,<br />

e no Vietnã foi proclamada a república popular <strong>de</strong>mocrática.<br />

Logo <strong>de</strong>pois, porém, tropas britânicas ocuparam Saigon e o sul do Vietnã,<br />

entregando a administração <strong>de</strong>sses territórios às autorida<strong>de</strong>s coloniais francesas.<br />

Numa ação para evitar a guerra, o Vietminh (Frente <strong>de</strong> Libertação<br />

Nacional do Vietnã) aceitou integrar a União Francesa, proposta repelida<br />

pela França, que pretendia retomar a Indochina como colônia. Em 1946,<br />

tropas francesas ocuparam o <strong>de</strong>lta do rio Vermelho, dando início à primeira<br />

guerra da Indochina.<br />

37. Embora ainda permanecesse forte a tentação <strong>de</strong> manter a situação<br />

colonial na Ásia, principalmente por parte dos franceses, o fim do<br />

colonialismo era patente. Além dos acontecimentos <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência na<br />

Índia, no Paquistão, na China, no Camboja e no Vietnã, as Filipinas tiveram<br />

a in<strong>de</strong>pendência <strong>em</strong> 1946, a Indonésia <strong>em</strong> 1950, a Malásia foi transformada<br />

<strong>em</strong> protetorado <strong>em</strong> 1948, a Tailândia teve seus territórios <strong>de</strong>volvidos,<br />

a Birmânia proclamou a in<strong>de</strong>pendência <strong>em</strong> 1947 (seguida <strong>de</strong> uma<br />

guerra civil que se prolongou até 1954) e o Ceilão conquistou o estatuto <strong>de</strong><br />

domínio <strong>em</strong> 1948.<br />

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5. CONTEXTO MUNDIAL PÓS-SEGUNDA<br />

GUERRA MUNDIAL E INFLUÊNCIA NA ÁSIA<br />

38. A eclosão da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética,<br />

logo após a Segunda Guerra Mundial, acirrada pela disputa <strong>em</strong> torno <strong>de</strong><br />

Berlim, teve <strong>de</strong>sdobramentos <strong>em</strong> todo o mundo. As duas maiores potências<br />

mundiais passaram a influir <strong>de</strong>cisivamente nas ações dos <strong>de</strong>mais países,<br />

procurando criar um ambiente no qual qu<strong>em</strong> não estava <strong>de</strong> um lado estava<br />

do outro.<br />

39. A política norte-americana baseou-se na doutrina <strong>de</strong> quatro pontos<br />

do presi<strong>de</strong>nte Harry S. Truman, tornada pública <strong>em</strong> 1947. Ele proclamou<br />

a responsabilida<strong>de</strong> mundial dos Estados Unidos <strong>de</strong> salvaguardar todos os<br />

países contra o comunismo, prestar a eles ajuda econômica – e on<strong>de</strong> fosse<br />

necessário –, militar ou intervir com suas próprias tropas. Com base nessa<br />

política, os Estados Unidos estabeleceram bases militares <strong>em</strong> várias partes<br />

do globo, impuseram o bloqueio econômico, político e militar à China,<br />

intervieram <strong>em</strong> todas as regiões on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolviam guerrilhas <strong>de</strong> inspiração<br />

comunista, socialista ou nacionalista, elaboraram e executaram os Planos<br />

Marshall (para a Europa) e Colombo (para a Ásia), e impuseram a<br />

vários países asiáticos a realização <strong>de</strong> reformas agrárias para tirar a base social<br />

<strong>de</strong> qualquer projeto <strong>de</strong> transformação social.<br />

40. A União Soviética, por seu turno, mais preocupada <strong>em</strong> curar as feridas<br />

da guerra e recuperar sua economia, estimulou os movimentos pacifistas,<br />

procurou também prestar ajuda econômica aos novos países in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,<br />

praticou ajuda militar a alguns movimentos <strong>de</strong> guerrilha e procurou<br />

exercer seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> veto, na ONU, para refrear <strong>em</strong> parte as ações<br />

militares dos Estados Unidos.<br />

41. Essa nova situação global influiu, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> medida, no <strong>de</strong>senvolvimento<br />

da situação <strong>em</strong> cada um dos países asiáticos, mesmo naqueles que<br />

procuravam uma posição <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong> entre os dois campos.<br />

42. O Japão assinou um tratado militar com os Estados Unidos, <strong>em</strong><br />

flagrante quebra dos acordos entre os aliados, no final da Segunda Guerra<br />

Mundial. Por outro lado, os Estados Unidos investiram pesadamente na<br />

recuperação industrial e comercial <strong>de</strong>sse país, possibilitando a seu ex-inimigo<br />

transformar-se <strong>em</strong> potência econômica, num curto espaço <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po.<br />

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Aliando-se aos antigos grupos dirigentes do Japão, os Estados Unidos facilitaram<br />

que o Partido Liberal D<strong>em</strong>ocrático se tornasse o principal partido<br />

japonês, exercendo quase o monopólio da vida política daquele país. Desse<br />

modo, o Japão transformou-se num forte aliado dos Estados Unidos para<br />

conter a expansão do comunismo, <strong>em</strong> especial da China, na Ásia.<br />

43. A China sofreu, por parte dos Estados Unidos e da maioria das potências<br />

oci<strong>de</strong>ntais, forte bloqueio econômico, comercial, diplomático e político.<br />

Recebeu pouco apoio material da União Soviética, ainda exausta pela<br />

Segunda Guerra Mundial. E foi obrigada a enviar cerca <strong>de</strong> 1 milhão <strong>de</strong><br />

voluntários à Coréia, para impedir o avanço norte-americano sobre suas<br />

fronteiras no rio Yalu. Mesmo assim, conseguiu reconstruir sua economia.<br />

Em 1953, alcançou os níveis <strong>de</strong> pré-guerra. Até 1956, implantou a reforma<br />

agrária <strong>em</strong> quase todo o país. Entre 1953 e 1957, executou seu primeiro<br />

plano qüinqüenal <strong>de</strong> industrialização. E promulgou a Constituição da Nova<br />

D<strong>em</strong>ocracia <strong>em</strong> 1954.<br />

44. Na Índia pós-in<strong>de</strong>pendência, o Partido do Congresso conquistou<br />

forte heg<strong>em</strong>onia, apesar da persistência <strong>de</strong> sérios conflitos religiosos e sociais.<br />

Numa dúplice política <strong>de</strong> manter neutralida<strong>de</strong> dinâmica entre os<br />

campos <strong>em</strong> disputa global e aproveitar-se <strong>de</strong>la, a Índia adotou o mo<strong>de</strong>lo<br />

soviético <strong>de</strong> planejamento, apresentando o seu primeiro plano qüinqüenal<br />

<strong>de</strong> industrialização <strong>em</strong> 1951. E, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que estimulava a<br />

proprieda<strong>de</strong> privada e os projetos capitalistas, interferiu na economia, inclusive<br />

nacionalizando ou estatizando pequenas unida<strong>de</strong>s produtivas, através<br />

das quais era possível reduzir as dificulda<strong>de</strong>s populares.<br />

45. A primeira guerra indochinesa, opondo o Vietminh aos franceses,<br />

prolongou-se <strong>de</strong> 1948 a 1954. Apesar dos reforços militares e do apoio<br />

militar dos Estados Unidos, a França não conseguiu <strong>de</strong>rrotar o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

guerra popular <strong>de</strong>senvolvido pelo Vietminh, sendo finalmente <strong>de</strong>rrotada<br />

na batalha <strong>de</strong> Dien Bien Phu. Teve que aceitar, a contragosto, participar da<br />

Conferência <strong>de</strong> Paz <strong>em</strong> Genebra, on<strong>de</strong> foi selada a paz, resultando na divisão<br />

da Indochina <strong>em</strong> três países in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes: Laos, Camboja e Vietnã.<br />

Por esse acordo, o Vietnã ficaria provisoriamente dividido <strong>em</strong> duas zonas,<br />

separadas pelo paralelo 13, com previsão <strong>de</strong> eleições para a reunificação do<br />

país <strong>em</strong> 1956. Antes <strong>de</strong>sse prazo, porém, generais vietnamitas cooptados<br />

pelos Estados Unidos <strong>de</strong>rrubaram o rei Bao Daí, mediante um golpe mili-<br />

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tar, e instauraram um governo ditatorial. As duas zonas tomaram, então,<br />

caminhos diferentes.<br />

46. No Vietnã do Norte foi instalada uma república popular <strong>de</strong>mocrática.<br />

Ela buscou ingressar na industrialização, principalmente com a ajuda<br />

da União Soviética e, secundariamente, da China. O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> construção<br />

econômica foi o soviético, com planejamento centralizado e investimentos<br />

<strong>em</strong> indústria pesada. Porém, as limitações do país impuseram atenção à<br />

agricultura e à produção <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo popular.<br />

47. No Vietnã do Sul, a instauração da ditadura militar e a repressão que<br />

se seguiu contra os antigos combatentes que se opunham à dominação japonesa<br />

e francesa rompendo com os acordos da Conferência <strong>de</strong> Genebra<br />

conduziram à formação da Frente Popular <strong>de</strong> Libertação do Vietnã do Sul<br />

(Vietcongue). Esta adotou os métodos <strong>de</strong> guerrilha e guerra popular aplicados<br />

na resistência contra o Japão e a França. Os vietcongues combinavam,<br />

ainda, a luta guerrilheira com movimentos <strong>de</strong> massa nas cida<strong>de</strong>s.<br />

48. A ausência <strong>de</strong> apoio político causava às tropas ditatoriais constantes<br />

<strong>de</strong>rrotas militares diante das guerrilhas, inferiores <strong>em</strong> homens e armamentos.<br />

Isso teve como conseqüência uma sucessão <strong>de</strong> golpes militares, inclusive<br />

sangrentos, entre as próprias forças ditatoriais, na suposição <strong>de</strong> que as<br />

<strong>de</strong>rrotas se <strong>de</strong>viam à incompetência ou a erros militares. Esses golpes também<br />

eram estimulados pelos vultosos recursos militares e financeiros carreados<br />

pelos Estados Unidos para o Vietnã do Sul, dando ensejo a uma imensa<br />

corrupção e ao enriquecimento rápido dos generais <strong>em</strong> comando.<br />

49. Após mais <strong>de</strong> seis anos, e milhões <strong>de</strong> dólares jogados na fogueira da<br />

guerra civil do Vietnã do Sul, os Estados Unidos <strong>de</strong>cidiram intervir, sob a<br />

justificativa <strong>de</strong> que o Vietnã do Norte era o responsável pela situação. A<br />

marinha norte-americana montou um falso combate na baía <strong>de</strong> Tonquim,<br />

<strong>em</strong> 1964, seguido do <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barque <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s contingentes <strong>de</strong> tropas <strong>de</strong><br />

combate no Vietnã do Sul e <strong>de</strong> bombar<strong>de</strong>ios ao Vietnã do Norte, assim<br />

como ao Camboja e ao Laos, acusados <strong>de</strong> permitir o trânsito do apoio<br />

logístico do Norte para os guerrilheiros do Sul.<br />

50. Os norte-americanos colocaram mais <strong>de</strong> 500 mil soldados para combater<br />

os vietcongues e entraram num atoleiro. Em 1970, a <strong>de</strong>rrota norteamericana<br />

transformou-se numa certeza e numa questão <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po, mesmo<br />

para uma parte do alto-comando dos Estados Unidos. Isso levou o país a<br />

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aceitar a diplomacia do pingue-pongue, ofertada pela China, para que esta<br />

intermediasse negociações <strong>de</strong> paz e uma saída relativamente honrosa dos<br />

<strong>de</strong>rrotados norte-americanos. As tropas dos Estados Unidos retiraram-se<br />

<strong>em</strong> 1974, levando à <strong>de</strong>bandada geral das tropas títeres e à ocupação <strong>de</strong><br />

Saigon e <strong>de</strong> todo o país pelas tropas vietcongues. A reunificação ocorreu <strong>em</strong><br />

1975, com o Vietnã tornando-se República Socialista do Vietnã. Por outro<br />

lado, a China, mesmo envolta nas dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua Revolução Cultural,<br />

aproveitou essa situação para realizar uma forte abertura diplomática e política<br />

ao exterior, rompendo o bloqueio dos Estados Unidos, impondo sua<br />

política <strong>de</strong> uma só China, reatando relações com a maioria dos países oci<strong>de</strong>ntais<br />

e reassumindo seu lugar na ONU e no Conselho <strong>de</strong> Segurança.<br />

51. Durante todo esse período, os Estados Unidos fizeram um imenso<br />

esforço, através do Plano Colombo, para o <strong>de</strong>senvolvimento capitalista dos<br />

países asiáticos e a criação <strong>de</strong> um cinturão “sanitário” contra a expansão<br />

comunista. Os recursos investidos pelos norte-americanos na Ásia foram<br />

superiores aos investidos na recuperação da economia européia no pós-Segunda<br />

Guerra Mundial. Os resultados <strong>de</strong>sse esforço foram a transformação<br />

do Japão <strong>em</strong> potência econômica e o surgimento dos Tigres Asiáticos. Coréia<br />

do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan, pequenas nações e regiões asiáticas,<br />

tornaram-se economicamente fortes e, mais tar<strong>de</strong>, passaram a concorrer<br />

com os próprios Estados Unidos no mercado mundial.<br />

52. A Coréia do Sul, arrasada pela guerra com o Norte, aproveitou a<strong>de</strong>quadamente<br />

os recursos para reconstruir o país, industrializar-se <strong>em</strong> áreas <strong>de</strong><br />

mercado que estavam sendo abandonadas pelos países industrialmente <strong>de</strong>senvolvidos<br />

(bens <strong>de</strong> consumo corrente), usufruir das novas técnicas produtivas<br />

<strong>de</strong>senvolvidas pelos japoneses, investir pesadamente na educação <strong>de</strong> sua<br />

mão-<strong>de</strong>-obra e disputar agressivamente o mercado internacional. Com isso,<br />

cresceu <strong>de</strong> forma sustentada por vários anos e tornou-se um player do mercado<br />

mundial. E Cingapura, uma cida<strong>de</strong>-Estado que se tornara in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

da Malásia, aproveitou as condições favoráveis dos fluxos <strong>de</strong> capitais enviados<br />

pelos Estados Unidos para transformar-se num centro financeiro e entreposto<br />

<strong>de</strong> troca <strong>de</strong> mercadorias entre a Ásia meridional e a Ásia do Pacífico.<br />

53. Hong Kong, então uma colônia s<strong>em</strong> voz n<strong>em</strong> voto da coroa britânica,<br />

era uma porta encravada no sul da China. Por causa disso, tornara-se escoadouro<br />

<strong>de</strong> migrações da China continental, porta <strong>de</strong> entrada clan<strong>de</strong>stina para<br />

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ações <strong>de</strong> sabotagens na China e, paradoxalmente, janela <strong>de</strong> intercâmbio utilizada<br />

pela China para comerciar com os países oci<strong>de</strong>ntais e furar o bloqueio<br />

imposto pelos Estados Unidos. Nessas condições, Hong Kong pareceu o lugar<br />

i<strong>de</strong>al para plantar uma próspera vitrine capitalista que atraísse os olhares e<br />

o <strong>de</strong>sejo da população chinesa. Foi <strong>de</strong>sse modo que essa colônia britânica<br />

tornou-se o maior centro financeiro e comercial do Su<strong>de</strong>ste da Ásia e, aos<br />

poucos, passou a concorrer fort<strong>em</strong>ente com os próprios Estados Unidos e a<br />

Inglaterra. Taiwan, ilha separada da província chinesa <strong>de</strong> Fujian por um estreito<br />

marítimo e refúgio das tropas nacionalistas <strong>de</strong>rrotadas na guerra civil<br />

chinesa, também se transformou <strong>em</strong> importante vitrine capitalista. Seguindo<br />

o mesmo caminho da Coréia do Sul, tornou-se um pólo industrial <strong>de</strong> primeira<br />

or<strong>de</strong>m para produtos <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> massa, também paulatinamente concorrendo<br />

vantajosamente com os produtos norte-americanos e europeus.<br />

54. O surgimento dos NIC (Newly Industrializing Countries – Novos Países<br />

Industrializados), durante os anos 1970, representou a segunda onda promovida<br />

pelos investimentos norte-americanos na Ásia, no contexto da Guerra<br />

Fria. Esses países foram Indonésia, Tailândia e Malásia. Embora seguiss<strong>em</strong> os<br />

mesmos passos dos Tigres Asiáticos, eles entraram atrasados no processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento, confrontaram-se com o ambiente <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte das <strong>de</strong>mandas<br />

dos Estados Unidos no Vietnã e não conseguiram alcançar o mesmo patamar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento dos Tigres. Além disso, no caso específico da Indonésia, os<br />

probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> corrupção agravaram sua situação social e política.<br />

6. SITUAÇÃO NA ENTRADA DO SÉCULO XXI<br />

55. A partir <strong>de</strong> 1978, a China realizou uma série <strong>de</strong> reajustamentos<br />

internos e aprovou um plano <strong>de</strong> longo prazo <strong>de</strong> reformas <strong>em</strong> seu socialismo,<br />

incluindo a abertura econômica para o exterior. Nos anos seguintes, apesar<br />

<strong>de</strong> o Japão haver ingressado numa prolongada crise <strong>de</strong> estagnação, o rápido<br />

<strong>de</strong>senvolvimento chinês e a manutenção <strong>de</strong> altas taxas <strong>de</strong> crescimento da<br />

Índia, dos Tigres e dos NIC contribuíram para transformar a Ásia do Pacífico<br />

na região <strong>de</strong> maior dinamismo econômico mundial, <strong>de</strong>slocando o eixo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento dos Estados Unidos e da Europa para a Ásia.<br />

56. A Ásia continua enfrentando inúmeros probl<strong>em</strong>as estruturais do passado.<br />

Gran<strong>de</strong>s populações, persistência <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> miséria, probl<strong>em</strong>as<br />

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fronteiriços ainda não solucionados (Cax<strong>em</strong>ira), reunificações não resolvidas<br />

(Coréias, Taiwan), coexistência religiosa difícil (hinduístas, muçulmanos e cristãos)<br />

e interferências externas permanec<strong>em</strong> como focos persistentes <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong>.<br />

Apesar disso, a maior parte dos conflitos latentes t<strong>em</strong> sido <strong>de</strong> baixa<br />

intensida<strong>de</strong>, havendo esforços consistentes para superá-los através <strong>de</strong> mecanismos<br />

<strong>de</strong> consulta e diálogo. O que não quer dizer que isso dure eternamente.<br />

BIBLIOGRAFIA INDICADA<br />

BARRACLOUGH, Geoffrey. O imperialismo e a reação nacionalista. In História<br />

do Século XX. vol. 1. São Paulo, Abril Cultural.<br />

CHESNEAUX, Jean. A Ásia Oriental nos séculos XIX e XX. São Paulo, Pioneira,<br />

1976.<br />

FLAMARION, Ciro. O modo <strong>de</strong> produção asiático. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Campus, 1990.<br />

HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1780. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Paz<br />

e Terra, 2002.<br />

MESGRAVIS, Laima. A colonização da Ásia e da África. São Paulo, Atual, 1994.<br />

PANIKKAR, K. M. A dominação oci<strong>de</strong>ntal na Ásia. São Paulo, Paz e Terra, 1977.<br />

POMAR, Wladimir. O enigma chinês. São Paulo, Alfa-Ômega, 1987.<br />

_____. A Revolução chinesa. São Paulo, Unesp, 2003.<br />

SPENCE, Jonathan D. Em busca da China mo<strong>de</strong>rna. São Paulo, Cia. das<br />

Letras, 2000.<br />

FILMOGRAFIA SOBRE A ÁSIA<br />

Ana e o rei do Sião (Anna and the King of Siam, Estados Unidos, 1946,<br />

direção: John Cromwell)<br />

Ana e o rei (Anna and the King, Estados Unidos, 1999, direção: Andy Tennant)<br />

Passag<strong>em</strong> para a Índia (A Passage to India, 1984, Inglaterra, direção: David Lean)<br />

Tai-Pan – A conquista <strong>de</strong> um Império (Tai-Pan, Estados Unidos, 1986, direção:<br />

Daryl Duke)<br />

O hom<strong>em</strong> que queria ser rei (The Man Who Would Be King, Estados Unidos/<br />

Reino Unido, 1975, direção: John Huston)<br />

O canhoneiro do Yang-tsé (The Sand Pebbles, Estados Unidos, 1966, direção:<br />

Robert Wise)<br />

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1. PRELIMINARES<br />

1. Os antigos territórios indianos incluíam, além da atual Índia, com 3,2<br />

milhões <strong>de</strong> km 2 , o Paquistão, com 796 mil km 2 , a noroeste, Bangla<strong>de</strong>sh, com<br />

144 mil km 2 , a nor<strong>de</strong>ste, e Sri Lanka, com 66 mil km 2 , ao sul. Nesses territórios,<br />

há vestígios <strong>de</strong> povoamento humano <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período Paleolítico (há 100<br />

mil anos). Mas datam <strong>de</strong> 5 mil anos (3000 a.C.) as primeiras povoações<br />

conhecidas, no vale do Indo, que tinham por base a agricultura <strong>de</strong> cereais.<br />

2. Nos 1.500 anos posteriores, essas aglomerações se transformaram <strong>em</strong><br />

cida<strong>de</strong>s-Estado, comandadas por reis (rajás 2 ) ou gran<strong>de</strong>s reis (marajás), configurando-se<br />

como culturas ou civilizações próprias. Suas características comuns<br />

eram as edificações <strong>de</strong> ladrilhos, os trabalhos com metais (exceto o<br />

ferro), as canalizações urbanas e rurais (estas para irrigação), as <strong>em</strong>barcações<br />

e o comércio fluvial, a escrita e as representações religiosas antropomórficas<br />

(shiva) e animistas (fauna local). A história conhece essas populações do vale<br />

do Indo, dispersas por suas cida<strong>de</strong>s-Estado, como drávidas.<br />

3. Por volta <strong>de</strong> 1.500 a.C. teve início a penetração <strong>de</strong> populações arianas,<br />

<strong>em</strong> migração da Ásia Central. Eram tribos <strong>de</strong> língua indo-européia, dotadas<br />

<strong>de</strong> carros <strong>de</strong> guerra puxados por cavalos e armadas com arco-e-flecha, armadura<br />

e escudo. Com essa superiorida<strong>de</strong> militar, impuseram-se aos drávidas,<br />

108<br />

Um olhar sobre a Índia<br />

Wladimir Pomar 1<br />

1 Jornalista e escritor, é m<strong>em</strong>bro do conselho <strong>de</strong> redação da revista Teoria & Debate, autor, entre outros,<br />

<strong>de</strong> Araguaia, o partido e a guerrilha, O enigma chinês – capitalismo ou socialismo, Lula lá – o susto das elites, A ilusão<br />

dos inocentes, Pedro Pomar – uma vida <strong>em</strong> vermelho e A revolução chinesa.<br />

2 Neste artigo, as palavras <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> híndi foram grafadas <strong>de</strong> duas formas: <strong>em</strong> itálico, quando não existe<br />

o termo dicionarizado <strong>em</strong> português, s<strong>em</strong> itálico, quando o termo <strong>em</strong> questão está dicionarizado. (N.E.)<br />

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Wladimir Pomar<br />

no vale do Indo, e esten<strong>de</strong>ram-se para leste, pelo vale do Ganges. Por volta <strong>de</strong><br />

600 a.C., haviam se estabelecido <strong>em</strong> quase todo o vale do Indo, restando<br />

apenas algumas cida<strong>de</strong>s-Estado sob domínio dravídico no golfo <strong>de</strong> Cambaia.<br />

4. Os arianos impuseram sua estrutura econômica, social e política, assim<br />

como sua religião védica. As terras foram repartidas entre os guerreiros (chatrias),<br />

os sacerdotes (brâmanes) e os camponeses arianos livres (vaisia) para cultivo e<br />

para criação dos rebanhos bovinos e ovinos. Os camponeses servos e mestiços<br />

(sudras) trabalhavam as terras para os guerreiros e os brâmanes. Ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, permitiram a existência <strong>de</strong> pessoas totalmente <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> meios <strong>de</strong><br />

trabalho (os párias).<br />

5. Essa estrutura foi consolidada no Código <strong>de</strong> Manu, entre 600 a.C. e 250<br />

a.C., ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que era sancionada pela religião Veda como regime <strong>de</strong><br />

castas, que impedia qualquer <strong>de</strong>slocamento social entre elas. Mas foi nesse período<br />

(540 a.C. a 468 a.C.) que a religião Veda sofreu seu primeiro choque, com o<br />

surgimento <strong>de</strong> duas novas vertentes religiosas, o budismo e o jainismo, o que a<br />

obrigou a uma profunda revisão, que se consolidou, mais tar<strong>de</strong>, no hinduísmo.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, os territórios arianos foram invadidos por povos oci<strong>de</strong>ntais.<br />

6. A Índia ariana era formada por diversas cida<strong>de</strong>s-Estado ou reinos, que<br />

travavam guerras entre si. Não conseguiram, pois, impedir que os persas, comandados<br />

por Ciro, penetrass<strong>em</strong> fundo no noroeste da Índia, <strong>em</strong> 312 a.C.<br />

Dario I ampliou as conquistas <strong>de</strong> Ciro, transformando essa região (que hoje faz<br />

parte do norte do Paquistão) <strong>em</strong> satrapias. Entre 327 a.C. e 325 a.C., o<br />

macedônio Alexandre, o Gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>rrotou os persas, transformou suas satrapias<br />

<strong>em</strong> satrapias gregas e tentou atravessar a Índia, rumo ao Pacífico, mas foi impedido<br />

pela forte resistência dos reinos arianos restantes.<br />

7. Em 321 a.C. ocorreu a primeira tentativa <strong>de</strong> unificação monárquica,<br />

feita pelo rei Chandragupta, <strong>de</strong> Magadha, no nor<strong>de</strong>ste. Ele rechaçou as<br />

tentativas <strong>de</strong> Seleuco I (antigo general <strong>de</strong> Alexandre), fundou a dinastia<br />

Maurya, mas não chegou a dominar todo o território. Isso quase será realizado<br />

por Asoka, seu neto, entre 272 e 231 a.C., com capital <strong>em</strong> Pataliputra.<br />

Apenas Pandia, Cola e Kerala, ao sul, on<strong>de</strong> os romanos haviam estabelecido<br />

os portos <strong>de</strong> Produke, Kolxoi e Muziris, permaneceram fora <strong>de</strong> seus domínios.<br />

A conquista <strong>de</strong> Kalinga, área litorânea ao sul <strong>de</strong> Maghada, foi realizada<br />

ao custo <strong>de</strong> 100 mil mortos e 150 mil <strong>de</strong>portados, levando Asoka a<br />

converter-se ao budismo e pregar a tolerância religiosa.<br />

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8. À morte <strong>de</strong> Asoka, <strong>em</strong> 231 a.C., seguiu-se nova divisão, a sucessão da<br />

dinastia Maurya pela Sunga, o estabelecimento <strong>de</strong> pequenos reinos gregos no<br />

Punjab (noroeste) e as invasões escitas (sakas, povo originário da Ásia Central)<br />

e dos yue chi (nôma<strong>de</strong>s indo-europeus), a fundação do reino <strong>de</strong> Kusana <strong>em</strong><br />

toda a região noroeste, da dinastia Satavahana na região central (Decão) e do<br />

Estado Ksatrapa na região oci<strong>de</strong>ntal (foz do Indo e vale do Narbada).<br />

9. O estabelecimento da dinastia Gupta, <strong>em</strong> 320 d.C., com se<strong>de</strong> <strong>em</strong><br />

Pataliputra, procurou reaver a heg<strong>em</strong>onia perdida com a morte <strong>de</strong> Asoka,<br />

mas não conseguiu <strong>de</strong>ter as constantes invasões pelas fronteiras noroeste<br />

(atual Cax<strong>em</strong>ira). Hunos brancos, sassânidas e mercenários turcos e árabes<br />

(muçulmanos) suce<strong>de</strong>ram-se entre os anos 400 e 1030 d.C. Os muçulmanos<br />

penetraram profundamente no território, fundaram o sultanato <strong>de</strong> Délhi,<br />

<strong>em</strong> 1206, e mantiveram seu domínio sobre a maior parte da Índia.<br />

10. Os muçulmanos implantaram um <strong>de</strong>spotismo teocrático-militar, com<br />

base no islamismo. Aniquilaram o budismo, <strong>de</strong>struindo t<strong>em</strong>plos, mosteiros<br />

e manuscritos. E exigiram que os hinduístas pagass<strong>em</strong> tributos para praticar<br />

sua religião. Como sua principal preocupação era a extração dos tributos,<br />

estipularam um sist<strong>em</strong>a fiscal que aumentava a riqueza mediante a<br />

expansão da produção (tecidos, especiarias, açúcar), mas garantia que parte<br />

<strong>de</strong>ssa riqueza fosse transferida para a se<strong>de</strong> do império árabe. Com isso,<br />

incr<strong>em</strong>entaram o comércio com o mundo islâmico oci<strong>de</strong>ntal, mas aumentaram<br />

os probl<strong>em</strong>as financeiros do sultanato.<br />

11. Os muçulmanos doavam, t<strong>em</strong>porariamente, os domínios feudais a<br />

altos funcionários ou guerreiros turcos, árabes, indianos e mongóis, não se<br />

importando <strong>em</strong> constituir uma nobreza feudal hereditária. Apesar das constantes<br />

disputas pelo trono, o sultanato <strong>de</strong> Délhi conseguiu esten<strong>de</strong>r seu<br />

domínio ao Decão e rechaçar as invasões mongóis, que se mantiveram no<br />

reino Bahmani por quase 180 anos (1347 a 1527).<br />

12. A extensão do domínio muçulmano ao Decão coincidiu com grave<br />

crise financeira do sultanato e com o início <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>cadência. Em 1340, os<br />

indianos fundaram o reino <strong>de</strong> Vijayanagar (cida<strong>de</strong> da vitória), ao sul do<br />

Decão, convertendo-o no principal centro <strong>de</strong> resistência ao domínio islâmico,<br />

ao esten<strong>de</strong>r-se às custas do reino Bahamani e dos <strong>de</strong>sm<strong>em</strong>bramentos do<br />

Decão. Em 1388, o imperador mongol Timur Lenk (Tamerlão) invadiu o<br />

norte da Índia e <strong>de</strong>struiu Délhi, anexando o Punjab a seu domínio.<br />

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13. Em 1504, os mongóis criaram o Império do Grão-Mogol, conquistando<br />

Agra, os rajputs <strong>de</strong> Khanua e o norte da Índia. Em 1601, haviam<br />

ocupado toda a Índia. Durante seu domínio, incentivaram o casamento dos<br />

nobres mongóis com princesas indianas, suprimiram o regime fiscal dos árabes,<br />

implantaram uma burocracia centralizada, com a participação dos<br />

hindus, proibiram os suicídios rituais e publicaram um édito <strong>de</strong> tolerância<br />

religiosa, mesmo tendo implantado o culto ao <strong>de</strong>us Sol. O luxo cortesão<br />

<strong>de</strong>smedido, os altos tributos exigidos dos camponeses, os conflitos <strong>em</strong> relação<br />

ao trono e a chegada da primeira onda colonial européia aceleraram o<br />

<strong>de</strong>clínio do império mongol.<br />

14. Em 1498, Vasco da Gama chegou a Calcutá, na costa sudoeste. Entre<br />

1505 e 1515 Portugal criou os primeiros elos do império português,<br />

estabelecendo feitorias <strong>em</strong> Goa, Ceilão e Diu. Retiravam ouro, diamantes,<br />

salitre, corantes, café, açúcar, pimenta, canela, algodão, lã, tecidos e ópio,<br />

através <strong>de</strong> suas companhias mercantis. Em 1612, a Inglaterra também <strong>de</strong>finiu<br />

sua política colonial, participando na expansão marítima, na pilhag<strong>em</strong><br />

dos novos territórios, na guerra contra seus concorrentes e no comércio<br />

mundial, através da Companhia das Índias Orientais. Derrotou os portugueses<br />

na batalha <strong>de</strong> Surat, <strong>em</strong> 1614, e ocupou Madras, <strong>em</strong> 1639, Bombaim<br />

(atual Mumbai), <strong>em</strong> 1661, e Calcutá, <strong>em</strong> 1696. A França, por sua vez,<br />

também organizou uma Companhia das Índias Orientais, <strong>em</strong> 1644, e fundou<br />

feitorias <strong>em</strong> Chan<strong>de</strong>rnagore e Pondicherry, no litoral oriental da Índia.<br />

15. O Império Grão-Mogol alcançou o auge <strong>de</strong> sua expansão territorial <strong>em</strong><br />

1691, <strong>em</strong> meio a disputas internas, <strong>em</strong>olduradas por conflitos religiosos.<br />

Aurengzeb, o último grão-mogol importante, tentou impor os rituais islâmicos<br />

sunitas e restaurar a jizya, os impostos discriminatórios. Perseguiu xiitas e<br />

hinduístas e <strong>de</strong>struiu seus t<strong>em</strong>plos, levando à revolta sikh e dos Estados vassalos<br />

do Rajput, e à organização militar dos maratas, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o hinduísmo.<br />

Em 1765, a Índia se livrou dos imperadores mongóis, mas permaneceu um<br />

mosaico <strong>de</strong> pequenos e gran<strong>de</strong>s reinos, comandados por príncipes (rajás e<br />

marajás), além <strong>de</strong> parcelas do território ocupadas por europeus. A socieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> castas continuava intocada, enquanto os príncipes hindus permaneciam<br />

<strong>em</strong> conflito, sob o manto do hinduísmo e do islamismo.<br />

16. A Companhia das Índias Orientais inglesa interveio nas disputas<br />

entre os príncipes hindus, com o apoio militar da metrópole, para assegurar<br />

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o domínio comercial, obter privilégios tributários e o controle político e<br />

implantar o domínio britânico. Entre 1757 e 1803, conquistou Bengala,<br />

Audh, Bihar e Ceilão, <strong>de</strong>sbaratou a Liga dos Maratas, <strong>de</strong>sarmou o nizan<br />

(alta autorida<strong>de</strong>) <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>rabad e avassalou o reino <strong>de</strong> Mysore, seus três<br />

principais inimigos. Finalmente, conquistou Délhi, Agra e Bengala meridional<br />

e, <strong>em</strong> 1814, tornou o Nepal parte do Império Britânico, transformando<br />

os gurkas <strong>em</strong> guerreiros auxiliares para o domínio sobre a Índia e para as<br />

guerras <strong>em</strong> outras partes do mundo.<br />

17. A partir <strong>de</strong> 1817, <strong>em</strong> nova guerra contra os maratas e os rajputs, a<br />

Inglaterra anexou a seu domínio os principados carentes <strong>de</strong> her<strong>de</strong>iros e os<br />

territórios limítrofes. O Tenasserin, o Arakan e o Assam, pertencentes à<br />

Birmânia, foram incorporados <strong>em</strong> 1826. A guerra para conquistar o<br />

Afeganistão, entre 1839 e 1842, fracassou. O Punjab foi anexado <strong>em</strong> 1849,<br />

a Baixa Birmânia <strong>em</strong> 1852, o Butão <strong>em</strong> 1865, o Beluquistão <strong>em</strong> 1876, o<br />

restante do território birmanês <strong>em</strong> 1886 e o Sikim <strong>em</strong> 1890. Em 1904,<br />

após uma sangrenta expedição militar a Lhasa, a Inglaterra garantiu privilégios<br />

comerciais no Tibete.<br />

18. Des<strong>de</strong> 1858, após a vitória inglesa sobre os cipaios (tropas indianas),<br />

com a ajuda <strong>de</strong> tropas gurkas e sikhs, e a dissolução da Companhia das Índias<br />

Orientais, a Índia foi convertida <strong>em</strong> Domínio Britânico, sob um vice-rei. Em<br />

1876, a rainha Vitória incorporou a seu título o <strong>de</strong> imperatriz da Índia.<br />

2. AS CORRENTES RELIGIOSAS INDIANAS<br />

19. Os Veda, conjunto <strong>de</strong> livros sagrados (sânscritos), constitu<strong>em</strong> o primeiro<br />

escrito <strong>em</strong> língua indo-européia. O Rigveda, constituído <strong>de</strong> 1.028<br />

hinos, é do ano 1000 a.C. Eles codificam os <strong>de</strong>uses, a doutrina, os ritos, os<br />

sacrifícios, a estrutura <strong>de</strong> castas e a exegese védica.<br />

20. Veda significa saber ou sabedoria sagrada. Seu núcleo doutrinário é a<br />

ioga, ou o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> libertação mediante a fusão com a realida<strong>de</strong> supr<strong>em</strong>a.<br />

Entre as <strong>de</strong>usas védicas encontram-se Rita (a verda<strong>de</strong>, força universal <strong>de</strong><br />

caráter impessoal), Varuna (<strong>de</strong>usa dos juramentos), Mitra (<strong>de</strong>usa dos contratos),<br />

Ushas (<strong>de</strong>usa da aurora), Agni (<strong>de</strong>usa do fogo), Surya (<strong>de</strong>usa do<br />

Sol), Indra (<strong>de</strong>usa da guerra). A exegese dos Veda é exclusivida<strong>de</strong> dos sacerdotes<br />

(brâmanes).<br />

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21. Hinduísmo foi uma <strong>de</strong>nominação imposta pelos muçulmanos aos<br />

védicos. Mas estes, após o surgimento do budismo e do jainismo, fizeram<br />

uma revisão. Aceitaram o hinduísmo, apresentando-o como continuida<strong>de</strong> da<br />

Sanâtama Daarma, lei cósmica universal, equilíbrio instável entre <strong>de</strong>uses e<br />

<strong>de</strong>mônios, e acrescentaram a transmigração budista à doutrina, rituais e sacrifícios<br />

védicos, tornando o hinduísmo a religião e a cultura predominantes.<br />

22. A doutrina da transmigração, ou da renúncia, justifica a or<strong>de</strong>m existente<br />

<strong>em</strong> função dos méritos e dos erros das vidas anteriores. A partir <strong>de</strong>ssa<br />

visão, para alcançar a libertação (mocsa), como renunciantes (sannyasin), os<br />

hindus <strong>de</strong>v<strong>em</strong> pagar suas dívidas aos <strong>de</strong>uses e ancestrais, primeiro como<br />

estudantes (brhmacarya) e <strong>de</strong>pois como senhores da casa (grihastha).<br />

23. O budismo surgiu <strong>em</strong> 600 a.C. como reação ao bramanismo védico.<br />

Gautama Buda (o Iluminado), um chatria, pregava a libertação das reencarnações<br />

mediante o auto-aperfeiçoamento. Os aspectos essenciais do budismo<br />

consist<strong>em</strong> no reconhecimento da existência humana como sofrimento,<br />

do <strong>de</strong>sejo como a causa (carma) <strong>de</strong>sse sofrimento, e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

suprimir o carma para ser libertado, através do caminho, ou iluminação,<br />

que leva ao nirvana (extinção), como propósito da vida.<br />

24. Após a morte <strong>de</strong> Buda, o budismo dividiu-se <strong>em</strong> seitas e escolas.<br />

Durante o reinado <strong>de</strong> Asoka, tornou-se uma religião com vocação universal,<br />

expandindo-se por meio <strong>de</strong> missionários. Porém, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> unificar-se <strong>em</strong><br />

torno <strong>de</strong> uma doutrina e uma igreja comuns, transformou-se num agregado<br />

ainda maior <strong>de</strong> seitas, que se distingu<strong>em</strong> pelas interpretações <strong>em</strong> torno<br />

do pequeno veículo tradicional (hinaiana), do gran<strong>de</strong> veículo reformado<br />

(mahayana) e <strong>de</strong> outros pontos doutrinários. Após um apogeu, por volta <strong>de</strong><br />

4 d.C. e 5 d.C., o budismo sofreu na Índia o ataque conjugado do hinduísmo<br />

reformado e do islamismo dominador, mediante perseguições e <strong>de</strong>struição<br />

<strong>de</strong> seus t<strong>em</strong>plos.<br />

25. Vardhamana, ou Mahavira (Alma Gran<strong>de</strong>), ou Jaina (o Vitorioso),<br />

também surgido <strong>em</strong> 600 a.C., pregava que o sofrimento terreno é conseqüência<br />

da fusão do espírito (jiva) com a matéria (ajiva). Como o budismo,<br />

colocava-se contra o bramanismo e buscava libertar o ser humano dos sofrimentos<br />

inerentes à existência. Tal libertação só seria possível com a separação<br />

<strong>de</strong> espírito e matéria, através da mortificação. Isto inclui o ascetismo, a<br />

maceração e o jejum, até a morte. Seu núcleo doutrinário consiste na nega-<br />

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ção <strong>de</strong> himsa (a violência) e na ahimsa (não fazer mal a criatura alguma). O<br />

jainismo seguiu uma trajetória idêntica à do budismo, dividindo-se <strong>em</strong><br />

ramos (os shvetambara, ou vestidos <strong>de</strong> branco, e os digambara, ou vestidos<br />

<strong>de</strong> espaço, ou nus) e seitas diversas.<br />

26. O Islã penetrou na Índia através das invasões turcas, árabes, persas,<br />

afegãs e mongóis, iniciadas <strong>em</strong> 711 d.C. Seu dogma principal é a existência<br />

<strong>de</strong> Deus (Alá) como criador do universo, ser supr<strong>em</strong>o único, perfeito, e juiz<br />

<strong>de</strong> todos os homens. Reitera o monoteísmo judaico e cristão. Mas, ao contrário<br />

<strong>de</strong>stes, coloca o crente <strong>em</strong> relação direta com Deus, mediante os<br />

cinco atos essenciais que cada um <strong>de</strong>ve praticar: a profissão <strong>de</strong> fé (Chahada),<br />

as abluções diárias na direção <strong>de</strong> Meca (Salat), o jejum durante o Ramadã,<br />

a peregrinação a Meca (hadjdj), pelo menos uma vez na vida, e o pagamento<br />

da esmola legal (zakat).<br />

27. Embora não exista um clero para colocar os crentes <strong>em</strong> relação com<br />

Alá, o Islã possui os homens da lei (mufti, ou intérpretes das questões jurídicas),<br />

e os juízes (qadis ou cádis, que velam pela interpretação e pela aplicação<br />

do Corão). Formaram-se, assim, Estados muçulmanos, dirigidos por<br />

imãs ou califas, que administram o governo e aplicam a lei corânica. A<br />

guerra santa (jihad) foi a base da expansão muçulmana na Índia, primeiro<br />

comandada pelos árabes, <strong>de</strong>pois pelos omíadas, abássidas, turcos-otomanos<br />

e, finalmente, pelos mongóis.<br />

28. Nessas condições, o islamismo na Índia s<strong>em</strong>pre esteve associado a<br />

uma forma <strong>de</strong> Estado, fosse sultanato (Délhi), reino (Bengala, Malva e<br />

Gujerat) ou império (Grão-Mogol), através do qual tentou <strong>de</strong>struir o<br />

hinduísmo e o budismo. Durante a dominação britânica, privados <strong>de</strong> Estado<br />

próprio, os muçulmanos voltaram a reivindicá-lo, no processo da in<strong>de</strong>pendência,<br />

o que levou à criação do Paquistão e, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> Bangla<strong>de</strong>sh.<br />

3. A POLÍTICA IMPERIALISTA BRITÂNICA<br />

29. A transformação da Índia <strong>em</strong> colônia britânica está inserida na<br />

onda <strong>de</strong> expansão colonial da Revolução Industrial dos séculos XVIII e<br />

XIX. As <strong>em</strong>ergentes potências industriais buscavam novas fontes <strong>de</strong> matérias-primas<br />

minerais e agrícolas para sua produção e novos mercados<br />

para seus produtos. Já não se tratava mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir novos territórios.<br />

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Tratava-se <strong>de</strong> realizar uma nova divisão territorial, tendo por base as <strong>de</strong>mandas<br />

das indústrias.<br />

30. A Inglaterra per<strong>de</strong>ra os Estados Unidos, <strong>em</strong> 1776, e seus privilégios<br />

comerciais na América Latina eram contestados. Nas “colônias brancas”,<br />

como Nova Zelândia e Austrália, surgiam movimentos autonomistas. De<br />

traficante negreira, a Inglaterra transformara-se <strong>em</strong> <strong>de</strong>fensora do fim do<br />

tráfico e da escravidão. Pressionada pelo incr<strong>em</strong>ento populacional, pela expansão<br />

urbana, pelo êxodo rural e pela concorrência industrial <strong>de</strong> franceses,<br />

al<strong>em</strong>ães, japoneses e norte-americanos, era levada a encontrar novos mercados<br />

para os quais direcionar seus migrantes e seus produtos, e <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

arrancar suas matérias-primas, assegurando ainda as vias <strong>de</strong> tráfego marítimo<br />

para seu comércio internacional.<br />

31. Com base <strong>em</strong> sua nova política colonial, <strong>de</strong> 1812, a Inglaterra lançou-se<br />

à conquista <strong>de</strong> territórios: Colônia do Cabo <strong>em</strong> 1814, Cingapura <strong>em</strong><br />

1819, ilhas Malvinas <strong>em</strong> 1833, Á<strong>de</strong>n <strong>em</strong> 1839, Hong Kong <strong>em</strong> 1841,<br />

Natal e Estado <strong>de</strong> Orange entre 1848 e 1954, Transvaal <strong>em</strong> 1852, Canal<br />

<strong>de</strong> Suez <strong>em</strong> 1875, Chipre <strong>em</strong> 1878, Egito <strong>em</strong> 1882. Em 1880, a Grã-<br />

Bretanha controlava 46% do comércio mundial. E <strong>em</strong> 1914, início <strong>de</strong> sua<br />

<strong>de</strong>cadência, a população <strong>de</strong> suas colônias era oito vezes superior à população<br />

da metrópole, enquanto a superfície <strong>de</strong>sta era 94 vezes inferior ao império<br />

colonial. O Império Britânico conseguira reunir sob sua coroa 23% da<br />

população mundial e 20% da superfície do planeta.<br />

32. Empreendimento <strong>de</strong>sse vulto necessitava <strong>de</strong> justificação i<strong>de</strong>ológica<br />

que revestisse os interesses imperialistas com uma roupag<strong>em</strong> menos vulgar.<br />

O <strong>de</strong>ver puritanista <strong>de</strong> fomentar a civilização transformou-se <strong>em</strong> missão. O<br />

escritor inglês Thomas Carlyle estabeleceu as bases i<strong>de</strong>ológicas da Inglaterra<br />

como nação pre<strong>de</strong>stinada a cumprir tal missão <strong>em</strong> escala universal. O<br />

ministro Charles Dilk criou a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um “mundo cada vez mais inglês”.<br />

E Rudyard Kipling exprimiu literariamente o “<strong>de</strong>ver do hom<strong>em</strong> branco”<br />

e a missão britânica.<br />

33. À medida que a Inglaterra colonizava a Índia, firmava posição na<br />

China e ocupava outros territórios, viu-se às voltas com as potências industriais,<br />

inclusive no continente europeu. Os movimentos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na Europa<br />

a sacudiram durante todo o século XIX. As guerras napoleônicas se esten<strong>de</strong>ram<br />

até 1815. As restaurações da contra-reforma, as revoluções libe-<br />

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rais e as insurreições operárias foram <strong>de</strong> 1815 a 1872. A proclamação do<br />

Segundo Reich e a política <strong>de</strong> Otto von Bismarck intensificaram a perspectiva<br />

<strong>de</strong> uma nova guerra européia. No início do século XX, dois blocos <strong>de</strong><br />

potências estavam <strong>em</strong> oposição: <strong>de</strong> um lado, Al<strong>em</strong>anha e Áustria-Hungria;<br />

<strong>de</strong> outro, Inglaterra, França e Rússia (a Entente Cordial, uma aliança entre<br />

nações européias).<br />

34. A Inglaterra s<strong>em</strong>pre procurou a heg<strong>em</strong>onia sobre as <strong>de</strong>mais potências<br />

imperialistas. Primeiro, expandindo-se sobre áreas ainda “livres” ou “abertas”.<br />

Segundo, com uma política armamentista que assegurasse sua supr<strong>em</strong>acia<br />

naval. Terceiro, consolidando-se como império. Para tanto, abandonou<br />

a política <strong>de</strong> câmbio livre e criou uma confe<strong>de</strong>ração imperial das “colônias<br />

brancas”, unidas pela língua, pelos privilégios econômicos e pela Coroa.<br />

Austrália, Nova Zelândia, Terranova e União Sul-Africana ganharam status<br />

<strong>de</strong> domínio. Em 1914, quando estourou a Primeira Guerra Mundial, o<br />

império britânico era constituído pela metrópole (Inglaterra) e por domínios,<br />

protetorados e colônias.<br />

4. O DOMÍNIO BRITÂNICO NA ÍNDIA<br />

35. O domínio sobre a Índia combinou administração direta <strong>de</strong> certas<br />

regiões com protetorado <strong>de</strong> outras. Na administração direta, não era admitida<br />

qualquer participação dos hindus. O Serviço Civil era totalmente ocupado<br />

por ingleses. Nos protetorados, como Nepal, Butão e Sikim, a administração<br />

era realizada pelos nativos, <strong>em</strong>bora <strong>de</strong>vess<strong>em</strong> solicitar autorização<br />

aos ingleses para qualquer passo.<br />

36. Os ingleses inundaram a Índia com seus produtos industriais, causando<br />

a liquidação da economia rural autárquica, até então predominante.<br />

Por outro lado, a introdução <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s plantations <strong>de</strong> algodão, chá, juta,<br />

índigo e papoula, com capitais britânicos, <strong>de</strong>sapropriou das ativida<strong>de</strong>s agrícolas<br />

parte importante dos camponeses, obrigando-os a migrar para as cida<strong>de</strong>s<br />

<strong>em</strong> busca <strong>de</strong> trabalho. Isso agravou os probl<strong>em</strong>as da superpopulação e<br />

da urbanização, gerando um imenso e miserável processo <strong>de</strong> favelização.<br />

37. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, para a comercialização dos produtos importados<br />

da metrópole e a exportação dos produtos agrícolas e minerais produzidos<br />

na colônia, os britânicos instalaram uma re<strong>de</strong> ferroviária, até então inexistente,<br />

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e mo<strong>de</strong>rnizaram os portos. Também introduziram novos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> irrigação<br />

nas plantations, <strong>em</strong>bora <strong>de</strong>ixando abandonados os sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> irrigação<br />

das zonas <strong>de</strong> predomínio <strong>de</strong> culturas <strong>de</strong> pouco interesse comercial.<br />

38. Os britânicos também implantaram seu sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> ensino, marginalizando<br />

a cultura e as línguas indianas. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, porém, estimularam<br />

a formação <strong>de</strong> uma elite cultural indiana <strong>em</strong> seus colégios e universida<strong>de</strong>s.<br />

Pretendiam que essa elite se europeizasse e colaborasse com o “processo<br />

civilizatório” inglês. Mas o domínio britânico produziu um contínuo <strong>de</strong>scontentamento.<br />

Além da resistência dos maratas e rajputs, com insurreições<br />

e ataques aos britânicos, a elite cultural que os ingleses pensavam europeizar<br />

seguiu outro caminho. Entrou <strong>em</strong> contato com as idéias nacionalistas, liberais<br />

e socialistas <strong>em</strong> ebulição na Europa e foi incentivada a participar da<br />

resistência e da luta contra o domínio britânico. Surgiram núcleos nacionalistas<br />

conspirativos <strong>em</strong> Londres, Paris e outras cida<strong>de</strong>s da Europa.<br />

39. Em 1885 foi fundado o Congresso Nacional Indiano (Partido do<br />

Congresso), que lutava pela participação na administração do país, pela<br />

outorga <strong>de</strong> direitos eleitorais e pela admissão <strong>de</strong> hindus no Serviço Civil. O<br />

êxodo <strong>de</strong> camponeses s<strong>em</strong> posses para as cida<strong>de</strong>s, as epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> 1896-<br />

1897 e a vitória do Japão sobre a Rússia <strong>em</strong> 1905 reforçaram o Partido do<br />

Congresso e incentivaram os boicotes aos produtos têxteis britânicos, a realização<br />

<strong>de</strong> atentados terroristas por nacionalistas extr<strong>em</strong>ados e a fundação<br />

da Liga Muçulmana como porta-voz da minoria islâmica.<br />

40. A eclosão da Primeira Guerra Mundial não envolveu diretamente a<br />

Índia, mas repercutiu profundamente nela. O fracasso da Socieda<strong>de</strong> das<br />

Nações (um tipo <strong>de</strong> Organização das Nações Unidas daquele período), o<br />

fortalecimento da consciência nacional e do princípio <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação<br />

dos povos, as controvérsias sobre os tratados <strong>de</strong> paz, as dificulda<strong>de</strong>s para a<br />

recuperação econômica européia e mundial, a crise da <strong>de</strong>mocracia liberal, a<br />

revolução russa e a <strong>em</strong>ergência do primeiro Estado socialista, a <strong>em</strong>ergência<br />

<strong>de</strong> movimentos operários e <strong>de</strong> partidos comunistas <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

países, inclusive coloniais, colocaram <strong>em</strong> crise a supr<strong>em</strong>acia européia no<br />

mundo – e portanto a inglesa.<br />

41. Em 1916, hindus e muçulmanos assinaram o Pacto <strong>de</strong> Lucknow,<br />

exigindo a autonomia do país. Contínuos levantes populares culminaram,<br />

<strong>em</strong> abril <strong>de</strong> 1919, no massacre <strong>de</strong> Amritsar. Tropas britânicas chaci-<br />

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naram mais <strong>de</strong> mil indianos <strong>de</strong>sarmados. Os protestos posteriores levaram<br />

os ingleses a realizar, <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro, a reforma Montagu-Chelmsford,<br />

prevendo a divisão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res entre o governo central e as províncias<br />

(diarquia), que <strong>de</strong>veria conferir a hindus os ministérios da agricultura, da<br />

indústria, da educação e da saú<strong>de</strong>, enquanto os ingleses manteriam sob<br />

seu controle a polícia, os impostos diretos e a <strong>de</strong>fesa.<br />

42. Foi neste momento que a pregação <strong>de</strong> Mohandas Gandhi, o<br />

mahatma (magnânimo), com sua luta pela in<strong>de</strong>pendência (swaraj), baseada<br />

na verda<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al (satya), na não-violência (ahimtsa) e na purificação<br />

pelo amor ao próximo (brahmajarya), alguns dos preceitos da tradição<br />

religiosa hindu, mobilizou gran<strong>de</strong>s contingentes da população.<br />

Boicotaram a compra do sal e alastraram a resistência passiva (satyagraja),<br />

ou <strong>de</strong>sobediência civil. Os britânicos con<strong>de</strong>naram Gandhi a seis anos <strong>de</strong><br />

prisão, <strong>em</strong> 1920, e implantaram um governo ditatorial. Não conseguiram,<br />

porém, <strong>de</strong>ter a mobilização popular. Viram-se obrigados a indultar<br />

Gandhi <strong>em</strong> 1924, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o Partido do Congresso,<br />

influenciado pelo movimento <strong>de</strong> Gandhi, avançava <strong>em</strong> suas reivindicações,<br />

exigindo o status <strong>de</strong> domínio.<br />

43. Diante da não-concretização da diarquia, <strong>em</strong> 1926 o Partido do<br />

Congresso aceitou a proposta <strong>de</strong> Constituição <strong>de</strong> Motilal Nehru e <strong>de</strong>u<br />

um ultimato para que a Grã-Bretanha conce<strong>de</strong>sse o status <strong>de</strong> domínio <strong>em</strong><br />

um ano. Mas Gandhi avançava suas reivindicações. Exigia in<strong>de</strong>pendência,<br />

reformas econômicas contra os monopólios britânicos e melhoria das condições<br />

<strong>de</strong> vida dos 60 milhões <strong>de</strong> párias (intocáveis). Em 1930, na segunda<br />

Campanha <strong>de</strong> Resistência Passiva, Gandhi e 60 mil nacionalistas foram<br />

presos, mas os ingleses tiveram que fazer um acordo, comprometendo-se<br />

a liberar os presos e iniciar, <strong>em</strong> Londres, as mesas-redondas para<br />

discutir a in<strong>de</strong>pendência. Em troca, a <strong>de</strong>sobediência civil seria paralisada.<br />

44. Nas mesas-redondas, porém, os ingleses não fizeram concessões. Em<br />

razão disso, a <strong>de</strong>sobediência civil foi retomada <strong>em</strong> 1932, levando os ingleses<br />

a instaurar a diarquia, <strong>em</strong> 1935, mantendo sob seu controle apenas os ministérios<br />

do Exterior e o da Guerra. Os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>veriam ser indicados pela<br />

Ass<strong>em</strong>bléia Legislativa. As províncias ganharam autonomia, mas o vice-rei e<br />

os governadores mantiveram o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cretar medidas extraordinárias.<br />

Durante as eleições <strong>de</strong> 1937, o Partido do Congresso obteve a maioria<br />

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<strong>em</strong> 6 das 11 províncias, entrando <strong>em</strong> vigor a nova Constituição. A Birmânia<br />

foi separada da Índia e recebeu o status <strong>de</strong> colônia.<br />

45. A essa altura, os ares <strong>de</strong> uma nova guerra escureciam os céus mundiais.<br />

O Japão se armava aceleradamente e não escondia as pretensões <strong>de</strong> tomar para<br />

si todas as colônias situadas na Ásia. Des<strong>de</strong> 1931 praticava uma política <strong>de</strong><br />

agressão e <strong>de</strong> expansão na China. Em 1936, a<strong>de</strong>riu ao Pacto Anti-Comintern,<br />

voltado para o ataque à União Soviética, e <strong>de</strong>nunciou o Pacto <strong>de</strong> Washington,<br />

que limitava sua marinha <strong>de</strong> guerra. E, <strong>em</strong> 1937, tomando como pretexto<br />

um inci<strong>de</strong>nte entre tropas chinesas e japonesas na ponte Marco Pólo, <strong>em</strong><br />

Pequim (Beijing), <strong>de</strong>u início à ofensiva para ocupar toda a China.<br />

46. A Inglaterra viu-se obrigada a fazer novas concessões aos indianos,<br />

tendo <strong>em</strong> conta o contexto internacional <strong>de</strong> uma nova conflagração mundial.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que, junto com a França, <strong>de</strong>clarava guerra à Al<strong>em</strong>anha,<br />

<strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da invasão da Polônia, na Índia o Azad Hind (Índia<br />

Livre) e seu ina (Indian National Army), dirigidos por Subhas Chandra<br />

Bose, <strong>de</strong>fendiam a unida<strong>de</strong> com o Japão, contra os ingleses, Gandhi lançava<br />

sua terceira satyagraja, com o apoio <strong>de</strong> Jawaharlal Nehru, do Partido do<br />

Congresso, e a Liga Muçulmana, dirigida por Mohamed Ali Jinnah, apresentava<br />

seu Plano Paquistão, propugnando a criação <strong>de</strong> um Estado islâmico<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, separado da fe<strong>de</strong>ração indiana.<br />

47. Além disso, a ofensiva japonesa dirigia-se <strong>em</strong> três direções. A primeira,<br />

para o sul, visando as Filipinas e as ilhas Holan<strong>de</strong>sas (Indonésia). A<br />

segunda, para o oeste, visando Hong Kong, Indochina, Tailândia, Malásia e<br />

Birmânia, colocando-se portanto <strong>em</strong> condições <strong>de</strong> invadir a Índia. A terceira,<br />

para o leste, a fim <strong>de</strong> ocupar as ilhas da Oceania. O Japão chegou a<br />

exercer o domínio sobre 450 milhões <strong>de</strong> habitantes, contando com importantes<br />

fontes <strong>de</strong> matérias-primas asiáticas para suas indústrias.<br />

48. Diante disso, os ingleses negociaram a in<strong>de</strong>pendência indiana e conseguiram<br />

que a Índia participasse <strong>de</strong> seu esforço <strong>de</strong> guerra. Tropas indianas<br />

realizaram operações bélicas junto com tropas inglesas e australianas, e as<br />

matérias-primas agrícolas e minerais indianas contribuíram para a produção<br />

das armas inglesas e norte-americanas. Em 1946, seguindo os acordos<br />

realizados, o governo inglês acertou a criação <strong>de</strong> uma Ass<strong>em</strong>bléia Constituinte<br />

e <strong>de</strong> um governo indiano <strong>de</strong> transição para a in<strong>de</strong>pendência, proclamada<br />

<strong>em</strong> 1947.<br />

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5. A ÍNDIA INDEPENDENTE<br />

49. A in<strong>de</strong>pendência da Índia, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> dar lugar a festejos generalizados,<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>bocou <strong>em</strong> graves conflitos entre hinduístas e muçulmanos.<br />

A formação do Paquistão, pelas províncias <strong>de</strong> maioria muçulmana, levou a<br />

um massivo movimento migratório, a rebeliões raciais e religiosas e ao<br />

marasmo econômico. Sind e Beluquistão constituíram o Paquistão Oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Já Bengala Oriental, a 1.700 km daquelas, formou o Paquistão<br />

Oriental. Os principados muçulmanos <strong>de</strong> Hi<strong>de</strong>rabad e Cax<strong>em</strong>ira questionaram<br />

a partição e foram anexados pela Índia. Em meio a esses conflitos,<br />

Gandhi foi assassinado, <strong>em</strong> 1948, por um hinduísta.<br />

50. Logo após a in<strong>de</strong>pendência, o governo interino do primeiro-ministro<br />

e ministro do Exterior Jawaharlal Nehru elaborou a Constituição Republicana<br />

da União Hindu (Bharat). Esta dava uma nova organização políticoadministrativa<br />

para o país, com 27 estados fe<strong>de</strong>rados (com governos e parlamentos<br />

próprios), seis territórios e um protetorado (Sikim). Nas eleições<br />

<strong>de</strong> 1951, o Partido do Congresso foi sufragado com 75% dos votos e manteve<br />

Nehru como primeiro-ministro.<br />

51. Os probl<strong>em</strong>as mais graves da Índia eram a superpopulação, a fome e a<br />

pobreza. O governo do Partido do Congresso adotou os planos qüinqüenais.<br />

Procurou fazer uma reforma agrária com doações voluntárias <strong>de</strong> terras. Nacionalizou<br />

os bancos, as companhias <strong>de</strong> seguros e a aviação. Procurou criar uma<br />

indústria pesada, com investimentos estrangeiros (si<strong>de</strong>rúrgicas <strong>de</strong> Rourkela e<br />

Bhilai), e <strong>de</strong>senvolver a exploração <strong>de</strong> suas matérias-primas, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que se esforçou para ampliar a educação e a cultura. No entanto, a renda<br />

nacional caiu e o aumento anual da população beirou 15 milhões <strong>de</strong> pessoas.<br />

52. O governo também procurou superar os tabus religiosos, como o das<br />

vacas sagradas e das castas, reduzir a ignorância e avançar no rumo <strong>de</strong> um<br />

Estado <strong>de</strong>mocrático. No entanto, quando os comunistas conquistaram eleitoralmente<br />

o governo do estado <strong>de</strong> Kerala, <strong>em</strong> 1958, o governo indiano não<br />

titubeou <strong>em</strong> dissolvê-lo à força. E foi impotente para controlar a natalida<strong>de</strong><br />

excessiva, evitar as lutas religiosas e lingüísticas e prevenir-se contra as catástrofes<br />

naturais.<br />

53. Nesse período <strong>de</strong> polarização entre os Estados Unidos e a União Soviética<br />

(Guerra Fria), Nehru instituiu uma política exterior <strong>de</strong> “neutralida<strong>de</strong><br />

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dinâmica”, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhando papel <strong>de</strong> mediador nas crises mundiais. Em 1954,<br />

durante a visita do primeiro-ministro chinês, Zhu Enlai, à Índia, ambos proclamaram<br />

os Cinco Princípios <strong>de</strong> Coexistência Pacífica – soberania, igualda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> direitos, não-interferência nos assuntos internos, aspirações pacíficas e aversão<br />

a qualquer agressão e intervenção externa –, mais tar<strong>de</strong> aceitos na Conferência<br />

dos Países Não-Alinhados, <strong>em</strong> Bandung, Indonésia.<br />

54. Apesar disso, a política da Índia <strong>em</strong> relação à Cax<strong>em</strong>ira acirrou suas<br />

contradições com o Paquistão. Em 1947, tropas hindus participaram da<br />

insurreição contra o principado feudal e ocuparam quase toda a região, com<br />

exceção <strong>de</strong> Gilgit. Apesar <strong>de</strong> ser uma região <strong>de</strong> maioria muçulmana, foi<br />

anexada à Índia. O armistício proposto pela onu apenas confirmou a divisão<br />

da Cax<strong>em</strong>ira, mantendo uma situação instável.<br />

55. A Índia também não reconhecia os reclamos da China contra a linha<br />

Mac Mahon, imposta pelos ingleses para <strong>de</strong>marcar as fronteiras setentrionais<br />

<strong>de</strong> seu Império, que avançara no território tibetano, sob a proteção da<br />

China <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XII. Em 1959, durante a insurreição <strong>de</strong> lamas tibetanos<br />

contra a reforma agrária e a proibição da servidão, a Índia permitiu a entrada<br />

<strong>de</strong> agentes estrangeiros na região, e <strong>de</strong>u guarida aos que seguiram o<br />

Dalai Lama, após a <strong>de</strong>rrota. As tropas indianas foram <strong>em</strong>purradas para trás<br />

das antigas fronteiras, e os conflitos com a China prolongaram-se até 1962.<br />

56. Nesse mesmo período, a Índia anexou os territórios ocupados por Portugal<br />

(Goa e Diu) e as feitorias francesas (Pondicherry e Chan<strong>de</strong>rnagore). Nehru<br />

morreu <strong>em</strong> 1964, mas o Partido do Congresso continuou no po<strong>de</strong>r até 1977. A<br />

antiga heg<strong>em</strong>onia do Partido do Congresso fora sendo corroída pelas dificulda<strong>de</strong>s<br />

econômicas, pelo aumento dos antigos probl<strong>em</strong>as que avassalavam o país<br />

(superpopulação, fome e pobreza) e pela multiplicação <strong>de</strong> conflitos regionais,<br />

étnicos e religiosos. Em 1984, a primeira-ministra Indira Gandhi, do Partido<br />

do Congresso, foi assassinada por um sikh <strong>de</strong> sua guarda pessoal.<br />

57. Em 1989, o Partido do Congresso foi <strong>de</strong>rrotado pelo Partido Nacional,<br />

que agrupou <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> si diversos partidos da oposição. Mas o governo<br />

do Partido Nacional não conseguiu se livrar <strong>de</strong> graves conflitos na Cax<strong>em</strong>ira,<br />

n<strong>em</strong> <strong>de</strong> violentas <strong>de</strong>monstrações contra a permissão do acesso das castas inferiores<br />

aos cargos públicos. Apesar da troca do primeiro-ministro, <strong>em</strong> fins <strong>de</strong><br />

1990, os distúrbios étnicos se alastraram a Assam, Hy<strong>de</strong>barad, Aligarth e<br />

Agra, e as negociações com os sikhs não tiveram sucesso.<br />

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58. O ambiente conflituoso continuou nas eleições gerais <strong>de</strong> 1991. O<br />

principal dirigente do Partido do Congresso, Rajiv Gandhi, foi assassinado<br />

num atentado, que matou outras 16 pessoas. Vitorioso, o Partido do Congresso<br />

esforçou-se <strong>em</strong> continuar as reformas que vinha tentando implantar<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o governo <strong>de</strong> Indira, especialmente a abertura da economia ao capital<br />

estrangeiro e a privatização <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas estatais. Mas isso o enfraqueceu e,<br />

<strong>em</strong> 1996, o levou à sua maior <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fora fundado.<br />

59. A vitória coube ao Partido Baratya Jamata, caracterizado como<br />

hinduísta e hostil aos muçulmanos e às <strong>de</strong>mais religiões. Entretanto, o Jamata<br />

não conseguiu coligar-se a outros partidos para obter maioria, sendo substituído<br />

pela Frente Unida, uma coalizão <strong>de</strong> 14 pequenos partidos <strong>de</strong> esquerda<br />

e <strong>de</strong> centro-esquerda. A continuida<strong>de</strong> dos probl<strong>em</strong>as sociais e políticos,<br />

assim como o envolvimento <strong>de</strong> um pequeno partido integrante da<br />

Frente Unida no assassinato <strong>de</strong> Rajiv Gandhi, conduziu a uma nova crise<br />

política e à convocação <strong>de</strong> eleições gerais, que marcaram o ressurgimento do<br />

Partido do Congresso, agora sob a direção <strong>de</strong> Sonia Gandhi, viúva <strong>de</strong> Rajiv.<br />

6. A LITERATURA INDIANA<br />

60. A literatura indiana, <strong>em</strong>bora possua um fundo cultural comum, t<strong>em</strong><br />

sua expressão nos quatro gran<strong>de</strong>s grupos ou famílias lingüísticas do país: o<br />

indo-ariano, o dravídico, o sino-tibetano e o austro-asiático. As principais<br />

línguas indo-arianas são o híndi, o bengali e o urdu, que agrupam cerca <strong>de</strong><br />

70% da população. O grupo dravídico inclui o tâmil, o malaiala, o canará<br />

e o teéugo, abrangendo mais <strong>de</strong> 20% da população. O grupo sino-tibetano<br />

e o grupo austro-asiático (munda) abrang<strong>em</strong> menos <strong>de</strong> 3%.<br />

61. As mais antigas obras literárias foram escritas <strong>em</strong> sânscrito. Elas r<strong>em</strong>ontam<br />

ao período védico, a elas ligando-se, mais tar<strong>de</strong>, os Brahmana, os<br />

Aranyaka e os Upanishads, <strong>de</strong> transição entre Veda e o hinduísmo (século<br />

VI a.C. a IV a.C.). A literatura hinduísta consolidou-se até o século X d.C.,<br />

com o Mahabharata, o Ramayana, o Pancatranta, o Kama-Sutra, o Panini,<br />

o Bharata e uma gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> textos épicos, históricos, religiosos,<br />

poéticos, gramaticais, <strong>de</strong> dramaturgia e técnicos. O budismo e o paninismo<br />

também produziram obras <strong>em</strong> sânscrito. Ainda hoje são produzidas <strong>em</strong><br />

sânscrito pequenas epopéias, dramas teatrais e novelas.<br />

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62. Os textos bengali mais antigos, os cantos carya, essencialmente religiosos,<br />

são posteriores ao século X d.C. Somente a partir do século XV<br />

surgiram obras <strong>de</strong> vulto, tanto biográficas como romances e poesias. A partir<br />

do século XVIII, já sob o domínio inglês, assistiu-se a um renascimento<br />

bengali, que teve <strong>em</strong> Rabindranath Tagore a sua expressão máxima.<br />

63. A literatura híndi também é posterior ao século X d.C. Durante seu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento histórico, ela produziu as narrativas <strong>de</strong> guerra, a poesia<br />

bhakti, o sufismo muçulmano, a retórica e a adaptação <strong>em</strong> prosa <strong>de</strong> obras<br />

sânscritas. A prosa híndi mo<strong>de</strong>rna apareceu no século XIX, estimulada pelo<br />

nacionalismo e pelas correntes filosóficas e literárias oci<strong>de</strong>ntais, como o<br />

marxismo, o existencialismo e outras.<br />

64. A literatura malaiala é uma das mais difundidas na Índia, por sua<br />

varieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> prosa e verso. Ela surgiu entre os séculos XII e XIII, com o<br />

Ramacaritan, unindo o sânscrito e o malaiala e introduzindo na literatura<br />

<strong>de</strong> Kerala todas as figuras retóricas do Kavya. Atualmente é internacionalmente<br />

reconhecida, através <strong>de</strong> vários escritores cont<strong>em</strong>porâneos.<br />

65. A literatura tâmil surgiu no início da era cristã, tendo sofrido a influência<br />

do sânscrito, da poesia da <strong>de</strong>voção (bhakit), dos poetas medievais profanos,<br />

do canto <strong>de</strong>voto popular (kisttanai), do islamismo e do catolicismo.<br />

66. A literatura télugo <strong>de</strong>senvolveu-se, a partir da música e do sânscrito,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XI. As narrativas télugos <strong>em</strong> verso e prosa tiveram seu apogeu<br />

no século XVI, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que as gramáticas e os dicionários<br />

consolidavam o idioma, no século XVIII. No século XIX, a literatura télugo<br />

firmou-se como expressão mo<strong>de</strong>rna.<br />

7. A ÍNDIA ATUAL<br />

67. A Índia atual, ou Bharat no idioma híndi, t<strong>em</strong> seu território limitado<br />

pelo mar <strong>de</strong> Omã, a oeste; pelo Paquistão, a noroeste; por China, Nepal<br />

e Butão, ao norte; por Bangla<strong>de</strong>sh e Miamar, a nor<strong>de</strong>ste; pelo Golfo <strong>de</strong><br />

Bengala, a leste; e pelo Oceano Índico, a sul e sudoeste. Sua capital é Nova<br />

Délhi e suas línguas oficiais são o híndi e o inglês. Sua divisão políticoadministrativa<br />

inclui 24 estados e sete territórios. A forma <strong>de</strong> governo é a<br />

república fe<strong>de</strong>rativa, e suas principais cida<strong>de</strong>s são Mumbai (antiga Bombaim),<br />

Calcutá, Madras e Bangalore.<br />

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68. A Índia é o segundo país mais populoso do mundo, com 1,1 bilhão <strong>de</strong><br />

pessoas <strong>em</strong> 2003, <strong>de</strong>vendo ultrapassar a China <strong>em</strong> poucos anos, apesar <strong>de</strong><br />

possuir menos da meta<strong>de</strong> do território daquela (3,2 milhões <strong>de</strong> km 2 contra<br />

9,5 milhões <strong>de</strong> km 2 ). Cerca <strong>de</strong> 25% <strong>de</strong>ssa população concentram-se <strong>em</strong> pouco<br />

mais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> centros urbanos com mais <strong>de</strong> 1 milhão <strong>de</strong> habitantes,<br />

enquanto os 75% restantes espalham-se por mais <strong>de</strong> 700 mil al<strong>de</strong>ias.<br />

69. Sua agricultura ocupa 60% da população, utilizando 160 milhões <strong>de</strong><br />

hectares, ou 50% da superfície total. Oitenta por cento dos agricultores, <strong>em</strong><br />

áreas inferiores a dois hectares, produz<strong>em</strong> trigo, no vale do Ganges, e arroz,<br />

também no vale do Ganges, <strong>em</strong> Bengala e nas costas do Decão, como alimentos<br />

básicos da população. A produção anual <strong>de</strong>sses cereais – cerca <strong>de</strong> 60 milhões <strong>de</strong><br />

toneladas <strong>de</strong> trigo e 110 milhões <strong>de</strong> toneladas <strong>de</strong> arroz – não supriria as necessida<strong>de</strong>s<br />

da população se esta tivesse um padrão alimentar superior ao atual.<br />

70. A agricultura comercial, herdada das plantations coloniais, inclui amendoim,<br />

algodão, juta, tabaco e chá, mas sua produção t<strong>em</strong> sido limitada pela fraca<br />

mecanização e pelo pouco uso <strong>de</strong> fertilizantes. A Índia é o maior produtor mundial<br />

<strong>de</strong> chá. O país também possui o maior rebanho bovino do mundo (200<br />

milhões <strong>de</strong> cabeças), mas a proteína animal é proveniente da pesca (3 milhões <strong>de</strong><br />

toneladas por ano), porque o hinduísmo proíbe o consumo <strong>de</strong> carne bovina.<br />

71. A Índia também é rica <strong>em</strong> recursos naturais. Carvão, petróleo, bauxita,<br />

manganês, ferro e pedras são relativamente abundantes. O potencial hidrelétrico<br />

para a geração <strong>de</strong> eletricida<strong>de</strong> é compl<strong>em</strong>entado por centrais nucleares. Aproveitando-se<br />

<strong>de</strong> seu domínio da energia nuclear, a Índia tornou-se uma das poucas<br />

potências mundiais a construir um arsenal nuclear e uma indústria <strong>de</strong> fabricação<br />

<strong>de</strong> mísseis.<br />

72. A indústria si<strong>de</strong>rúrgica indiana produz cerca <strong>de</strong> 80 milhões <strong>de</strong> toneladas<br />

por ano, compl<strong>em</strong>entada pelas indústrias metalúrgica, têxtil e química,<br />

além <strong>de</strong> por uma diversificada indústria <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo cotidiano e uma<br />

florescente indústria eletrônica <strong>em</strong> alguns pontos do território. A indústria<br />

indiana <strong>em</strong>prega cerca <strong>de</strong> 25% da população ativa, mas não t<strong>em</strong> sido capaz<br />

<strong>de</strong> absorver a crescente migração da população rural para as gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s.<br />

73. O comércio externo indiano é relativamente pequeno (apenas 10% do<br />

PIB – Produto Interno Bruto), orientado especialmente para Estados Unidos,<br />

União Européia e Japão, tendo por base produtos primários (chá, juta, algodão)<br />

ou secundários <strong>de</strong> baixo valor agregado (tecidos). Suas importações abrang<strong>em</strong><br />

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matérias-primas, alimentos, s<strong>em</strong>imanufaturados, manufaturados e bens <strong>de</strong> capital.<br />

Sua balança comercial inclui recursos provenientes do turismo externo e<br />

as r<strong>em</strong>essas dos indianos <strong>em</strong>igrados.<br />

74. Parte dos <strong>em</strong>igrados indianos, com formação escolar superior, constituindo<br />

uma mão-<strong>de</strong>-obra altamente qualificada, representa uma das contradições da<br />

Índia mo<strong>de</strong>rna. Sua enorme população inclui uma elite relativamente numerosa<br />

(cerca <strong>de</strong> 15% da população, ou 150 milhões), que t<strong>em</strong> condições <strong>de</strong> estudar no<br />

exterior e obter altas qualificações culturais, científicas e técnicas. No entanto,<br />

parte <strong>de</strong>ssa elite não encontra lugar no <strong>de</strong>senvolvimento da economia e da socieda<strong>de</strong><br />

indianas, tornando-se mão-<strong>de</strong>-obra relativamente barata para as indústrias<br />

<strong>de</strong> altas tecnologias e <strong>de</strong> informática dos Estados Unidos e da Europa.<br />

75. A adoção do programa Perspectiva 2020 levou a Índia, durante os<br />

anos 1990, a abrir-se aos capitais estrangeiros, realizar uma série <strong>de</strong> reformas<br />

econômicas (privatizações, redução dos investimentos públicos, flutuação<br />

do câmbio etc.) e adotar uma macroeconomia caracterizada por crescimento<br />

rápido, inflação baixa, reservas cambiais a<strong>de</strong>quadas, baixo déficit fiscal e<br />

baixas taxas <strong>de</strong> juros. Suas taxas <strong>de</strong> crescimento chegaram aos 8% anuais,<br />

<strong>de</strong>vendo manter-se entre 7% e 8% nos próximos anos. Em 2005, seu PIB<br />

atingiu US$ 750 bilhões e suas reservas <strong>em</strong> moeda estrangeira chegaram a<br />

US$ 140 bilhões. Mas alguns probl<strong>em</strong>as-chave para o <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

como infra-estrutura <strong>de</strong>ficiente, principalmente nos setores <strong>de</strong> energia, finanças<br />

e transportes, permanec<strong>em</strong> como obstáculo.<br />

76. A estratificação social, religiosa e regional indiana continua: 80,3% da<br />

população é hinduísta, 11% islâmica, 3,8% cristã, 2% sikh, 0,7% budista,<br />

0,5% jainista, havendo ainda outras religiões menores. Persist<strong>em</strong>, na prática,<br />

as diferenças <strong>de</strong> castas. Meta<strong>de</strong> da população indiana vive num estado crônico<br />

<strong>de</strong> má nutrição. As taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil e analfabetismo permanec<strong>em</strong><br />

elevadas, e a renda per capita e a expectativa <strong>de</strong> vida ainda são baixas,<br />

colocando o país entre as vinte nações mais pobres do mundo. Cerca <strong>de</strong> 300<br />

milhões <strong>de</strong> pessoas viv<strong>em</strong> abaixo da linha da pobreza.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

Para a bibliografia <strong>de</strong>ste artigo, ver “Bibliografia Indicada” do artigo<br />

“Um olhar sobre a Ásia”, do mesmo autor, na página 107.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 125<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

126<br />

A santa Rússia:<br />

mo<strong>de</strong>rnização e atraso 1<br />

Daniel Aarão Reis Filho 2<br />

No alvorecer do século XX, <strong>em</strong>bora ainda fundamentalmente imerso no<br />

universo rural, o Império Russo já não se resumia ao mundo agrário. Em<br />

um outro movimento, que faria estr<strong>em</strong>ecer as estruturas arcaicas, o processo<br />

<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização capitalista da Rússia <strong>de</strong>ra significativo salto para a frente,<br />

apesar das resistências, das contradições e, muitas vezes, da própria vonta<strong>de</strong><br />

manifestada pelos tsares 3 . Com efeito, os dois últimos imperadores, por<br />

ocasião dos respectivos coroamentos, reafirmariam solenes compromissos<br />

com as tradições <strong>de</strong> autocracia.<br />

O probl<strong>em</strong>a é que, para se manter, e para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> inimigos externos<br />

e internos, o tsarismo precisava das tecnologias e dos meios <strong>de</strong> produção<br />

<strong>de</strong>senvolvidos pelo capitalismo oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Assim, principalmente a partir dos anos 1890, o crescimento capitalista<br />

registrou uma notável aceleração <strong>de</strong> ritmo: metalurgia, si<strong>de</strong>rurgia, petróleo,<br />

carvão, prioritários numa perspectiva estratégica. Entre 1888 e 1913, o<br />

Império alcançou um crescimento médio <strong>de</strong> 5% ao ano.<br />

Na raiz dos sucessos, uma política estatal continuada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 1880,<br />

<strong>de</strong>finida pelos chefes <strong>de</strong> governo Sergei Witte (1892-1903) e Piotr Stolypin<br />

(1906-1911).<br />

1 Textos extraídos da obra <strong>de</strong> Daniel Aarão Reis Filho, Uma revolução perdida. A história do socialismo<br />

soviético (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1997).<br />

2 Professor titular <strong>de</strong> História Cont<strong>em</strong>porânea do Departamento <strong>de</strong> História da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

Fluminense e doutor <strong>em</strong> História Social pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (USP). Publicou, entre<br />

outros: As revoluções russas e o socialismo soviético, A revolução faltou ao encontro e Uma revolução perdida. História<br />

do socialismo soviético.<br />

3 As palavras <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> russa foram grafadas <strong>de</strong> duas maneiras: <strong>em</strong> itálico, quando não existe o termo<br />

dicionarizado <strong>em</strong> português; s<strong>em</strong> itálico, quando o termo <strong>em</strong> questão está dicionarizado. (N.E.)<br />

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Daniel Aarão Reis Filho<br />

O capitalismo russo assumiu feição própria, acentuando algumas características<br />

já presentes na história do Império: Estado hiperdimensionado, re<strong>de</strong> bancária<br />

altamente monopolizada (seis bancos, todos sediados <strong>em</strong> São Petersburgo, <strong>de</strong>tinham<br />

mais <strong>de</strong> 50% dos <strong>de</strong>pósitos à vista), presença maciça do capital estrangeiro,<br />

sobretudo nos setores <strong>de</strong> ponta (42% e 50% <strong>de</strong> participação nas indústrias<br />

metalúrgica e química) e uma burguesia nativa ainda pouco expressiva, mas bastante<br />

ávida, apoiada pelo Estado e ganhando terreno (Lyashchenko, 1949).<br />

Havia contradições e <strong>de</strong>sníveis no processo, e um ponto fraco <strong>em</strong> meio<br />

àquela prosperida<strong>de</strong>: a agricultura.<br />

Des<strong>de</strong> 1906, Stolypin tentou uma política agressiva no sentido <strong>de</strong> liberar<br />

os <strong>de</strong>mônios do apetite individual. Preten<strong>de</strong>u criar uma camada <strong>de</strong> pequenos<br />

proprietários privados, <strong>de</strong>stinada a configurar uma base agrária <strong>de</strong><br />

sustentação do regime, enfraquecendo simultaneamente as tradições<br />

igualitaristas da comuna rural e os controles dos gran<strong>de</strong>s proprietários,<br />

muitas vezes acusados <strong>de</strong> absenteísmo e ineficiência.<br />

Os atingidos acusaram o golpe e ofereceram resistência tenaz. Por cima,<br />

os gran<strong>de</strong>s proprietários tinham medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r mão-<strong>de</strong>-obra. Por baixo, a<br />

comuna rural receava um processo <strong>de</strong> completa <strong>de</strong>sagregação. Não conseguiram<br />

impedir <strong>de</strong> todo o processo <strong>de</strong> privatização: as explorações particulares<br />

passaram <strong>de</strong> 2,8 milhões, <strong>em</strong> 1905, para 5,5 milhões, <strong>em</strong> 1914, <strong>de</strong>senvolvendo-se,<br />

além disso, um forte movimento cooperativo no campo.<br />

Mas fizeram <strong>de</strong> tudo para se opor a ele. Em gran<strong>de</strong> medida, o conseguiram.<br />

Ou seja, apesar dos resultados alcançados, a política stolypiniana não alterou<br />

o panorama qualitativo da economia agrícola. Como um conjunto, salvo alguns<br />

setores, como o do açúcar, o campo continuou caracterizado por baixíssimos<br />

índices <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> e consumo. Assim, se o império já começava a ser<br />

periodicamente atacado por crises típicas do capitalismo avançado, o que indicava<br />

uma crescente inter<strong>de</strong>pendência com o mercado internacional, ainda continuava<br />

vítima <strong>de</strong> crises <strong>de</strong> abastecimento, expressão clara da força e da fraqueza<br />

do Antigo Regime (regime anterior à revolução, o Império tsarista).<br />

Observado no contexto internacional, o crescimento capitalista russo evi<strong>de</strong>nciava<br />

graves limitações, apesar do progresso alcançado e <strong>de</strong> resultados<br />

mais lisonjeiros, mascarando as realida<strong>de</strong>s contrastadas <strong>de</strong> um imenso país<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> população, na aparência uma potência, na realida<strong>de</strong> um gigante<br />

<strong>de</strong> pés <strong>de</strong> barro.<br />

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Na verda<strong>de</strong>, a combinação <strong>de</strong> estágios diferenciados <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

podia reunir, <strong>em</strong> espaços contíguos, o que havia <strong>de</strong> mais avançado e mais<br />

atrasado no mundo <strong>de</strong> então, dos pontos <strong>de</strong> vista econômico e tecnológico.<br />

Progresso e atraso alimentando-se mutuamente, <strong>em</strong> um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

“<strong>de</strong>sigual e combinado” (Leon Trotski), uma perigosa mistura.<br />

Segundo as circunstâncias, a combinação po<strong>de</strong>ria se transformar <strong>em</strong> nitroglicerina<br />

pura.<br />

1. A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO: GOLPE OU REVOLUÇÃO?<br />

No processo <strong>de</strong> ascensão ao po<strong>de</strong>r, os bolcheviques 4 procuraram estabelecer<br />

com os movimentos sociais uma sintonia fina. S<strong>em</strong>pre, no entanto, resguardando<br />

sua “autonomia” <strong>em</strong> relação à socieda<strong>de</strong>. No universo <strong>de</strong> referências<br />

por eles cultivados, os bolcheviques viam-se menos como expressão<br />

da socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> movimento do que como intérpretes <strong>de</strong> uma teoria revolucionária.<br />

Somente nesta medida é que é possível compreen<strong>de</strong>r as complexas<br />

evoluções dos bolcheviques <strong>em</strong> relação aos sovietes 5 . O mesmo se po<strong>de</strong> dizer<br />

a respeito da insurreição <strong>de</strong> outubro. Parece evi<strong>de</strong>nte que foi realizada<br />

s<strong>em</strong> prévia e formal consulta <strong>de</strong>mocrática. Entretanto, se estivesse <strong>em</strong> jogo<br />

apenas um golpe b<strong>em</strong> executado, os bolcheviques, mesmo vitoriosos <strong>em</strong><br />

Petrogrado, acabariam sendo rapidamente <strong>de</strong>rrotados. Conseguiram manter-se<br />

nos controles da máquina estatal porque souberam formular <strong>de</strong>cretos<br />

e leis que correspondiam fundamentalmente aos interesses dos amplos<br />

movimentos sociais.<br />

Em outras palavras: a insurreição <strong>de</strong> outubro foi um golpe vitorioso, mas não<br />

vitorioso porque golpista, mas porque se combinou com o atendimento a reivindicações<br />

sentidas por amplas maiorias. Neste sentido, <strong>em</strong> larga medida, realizava-se<br />

a <strong>de</strong>mocracia, enquanto prevalência da vonta<strong>de</strong> das maiorias. Paradoxalmente,<br />

os críticos “<strong>de</strong>mocráticos” dos bolcheviques naquele momento, libe-<br />

4 Bolcheviques: ala do partido operário social<strong>de</strong>mocrata russo/POSDR, constituída a partir <strong>de</strong> 1903,<br />

e li<strong>de</strong>rada por Vladimir Lenin. Em 1918, adotou o nome <strong>de</strong> Partido Comunista (bolchevique) Russo.<br />

O termo v<strong>em</strong> da palavra russa bol’che, que significa “maior/maioria”.<br />

5 Soviete: a palavra russa quer dizer “conselho”. Designa organizações populares autônomas, <strong>em</strong><br />

relação ao Estado e aos partidos políticos que <strong>de</strong>las, porém, podiam participar. Surgiram pela<br />

primeira vez na revolução <strong>de</strong> 1905 e foram retomadas <strong>em</strong> 1917.<br />

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rais e socialistas, recusavam-se a realizar as exigências majoritárias, daí por que<br />

suas <strong>de</strong>núncias não tiveram credibilida<strong>de</strong>, <strong>em</strong>bora formalmente pertinentes.<br />

Numa fase seguinte, e s<strong>em</strong>pre que o imaginaram possível, os bolcheviques<br />

ten<strong>de</strong>ram a exercitar a marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> autonomia auto-atribuída pela teoria, comportando-se,<br />

segundo a correlação <strong>de</strong> forças, real ou imaginada, com maior<br />

ou menor <strong>de</strong>senvoltura <strong>em</strong> relação à dinâmica da socieda<strong>de</strong>. Foram assumindo,<br />

nessa lógica, atitu<strong>de</strong>s e políticas cada vez mais ditatoriais, <strong>em</strong>bora comprometidas<br />

com a mudança da or<strong>de</strong>m e a transformação do antigo regime.<br />

No pólo oposto, os brancos 6 nunca ofereceram senão ditadura. E reação.<br />

E nenhuma proposta <strong>de</strong> mudança. Numa vertente que se quis intermediária<br />

<strong>em</strong> certo momento, apresentaram-se liberais e socialistas mo<strong>de</strong>rados. O<br />

probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong>sse campo, muito nuançado, é que não teve t<strong>em</strong>po histórico<br />

para afirmar um perfil diferenciado. E o mais grave é que não soube, ou não<br />

quis, ou não foi capaz, <strong>de</strong> <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r as mudanças exigidas pela socieda<strong>de</strong><br />

quando as circunstâncias foram propícias. Quando quiseram agir, só restava<br />

espaço para a <strong>de</strong>núncia e o protesto. Nas condições russas que então passaram<br />

a prevalecer, um exercício possível apenas no exílio.<br />

Fios partidos. Evoluções contraditórias. Contrastes entre intenções e gestos.<br />

Resultados inesperados. Interação difícil entre concepção e realização.<br />

Dois fenômenos seriam apontados, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, como <strong>de</strong>terminantes para<br />

as metamorfoses imprevistas.<br />

Primo: a revolução internacional não acontecera. Um prenúncio nesse sentido<br />

fora já registrado com a assinatura da paz <strong>de</strong> Brest-Litowski, <strong>em</strong> março<br />

<strong>de</strong> 1918. Em fins <strong>de</strong> 1918, porém, com a vitória da revolução al<strong>em</strong>ã e a fuga<br />

do cáiser, a história pareceu recobrar coerência, e entrar nos eixos das previsões<br />

<strong>de</strong> Lenin e Trotski. O tratado <strong>de</strong> Brest foi <strong>de</strong>vidamente rasgado (uma tira<br />

<strong>de</strong> papel) e os horizontes, aparent<strong>em</strong>ente, se abriram para a revolução internacional,<br />

que teve um esboço <strong>de</strong> confirmação com as insurreições <strong>em</strong> Budapeste,<br />

na Baviera e com os movimentos sociais no norte da Itália e <strong>em</strong> outras<br />

partes da Europa Oci<strong>de</strong>ntal. No fogo da guerra civil, criou-se a <strong>Internacional</strong><br />

6 Brancos: termo corrente nos entrechoques das revoluções russas para <strong>de</strong>signar a cor da contrarevolução<br />

e, por extensão, todos aqueles que se i<strong>de</strong>ntificavam com ela. O nome provém da cor<br />

branca, assumida pelas monarquias reacionárias da Europa, <strong>em</strong> oposição à cor vermelha, ban<strong>de</strong>ira<br />

das lutas populares e <strong>de</strong>mocráticas (século XIX).<br />

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Comunista 7 , <strong>em</strong> março <strong>de</strong> 1919. Os bolcheviques estavam então numa situação<br />

<strong>de</strong>sesperada, e o congresso teve um valor apenas simbólico, mas n<strong>em</strong> por isso<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> fixar uma perspectiva, um compromisso.<br />

Depois <strong>de</strong> 1921, o Estado soviético, minimamente consolidado, começou<br />

a se inserir e a participar do jogo das relações internacionais. S<strong>em</strong> abandonar<br />

a perspectiva – e a esperança – <strong>de</strong> uma revolução internacional, passou<br />

a assinar tratados comerciais e diplomáticos, num jogo tão complexo e<br />

diversificado <strong>de</strong> contatos e compromissos que, às vezes, já não se sabia se<br />

estavam merecendo preferência os interesses da revolução internacional ou<br />

os do Estado soviético. E a revolução russa, que seria apenas o prólogo <strong>de</strong><br />

uma revolução mundial, ficou isolada num mundo hostil.<br />

Secundo: a guerra civil radicalizou o atraso. Retrocesso econômico, exposto<br />

num terrível <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> todos os índices. E mais importante do que qualquer<br />

e todos os índices: as epi<strong>de</strong>mias, as mortes inúteis, a <strong>de</strong>smoralização, o cansaço,<br />

o <strong>de</strong>sgaste, e, por sobre tudo isso, o sombrio fenômeno do entrecruzamento<br />

do terror vermelho e do terror branco 8 , atrocida<strong>de</strong>s maciças. A brutalização<br />

das relações sociais. A patologia social. Como estimá-la? (Werth, 1993).<br />

No quadro <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sespero e <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>sesperança, surgiu a bizarra formulação<br />

do comunismo <strong>de</strong> guerra. Instituiu o mais absoluto igualitarismo.<br />

Decretou a proibição <strong>de</strong> qualquer <strong>em</strong>preendimento privado, na produção<br />

ou no comércio, <strong>de</strong> resto inexistentes, ao menos <strong>em</strong> termos legais. Expropriou<br />

os camponeses <strong>de</strong> todos os exce<strong>de</strong>ntes. Liquidou com a moeda, que,<br />

<strong>de</strong> qualquer forma, já se transformara <strong>em</strong> mero “papel pintado”. Alguns<br />

chegaram a falar na militarização do trabalho e <strong>de</strong> toda a vida. O conceito<br />

que, na formulação <strong>de</strong> Marx, figurava a socieda<strong>de</strong> do futuro e da abundância<br />

subitamente transmudava-se, instalava-se no presente e passava a nomear<br />

a escassez. Ainda uma vez, da necessida<strong>de</strong>, virtu<strong>de</strong>.<br />

7 Organização criada <strong>em</strong> março <strong>de</strong> 1919, proposta pelos bolcheviques, com o objetivo <strong>de</strong> reunir as<br />

alas revolucionárias dos movimentos e dos partidos socialistas, como alternativa à <strong>Internacional</strong><br />

Socialista social<strong>de</strong>mocrata, fundada <strong>em</strong> 1889, consi<strong>de</strong>rada “falida” pelos revolucionários, por suas<br />

políticas reformistas e, sobretudo, pela conciliação com a guerra imperialista <strong>de</strong> 1914-1918. A<br />

<strong>Internacional</strong> Comunista autodissolveu-se (ou, <strong>em</strong> outras versões, foi dissolvida por Stalin) <strong>em</strong> 1943.<br />

8 Terror vermelho e terror branco: políticas <strong>de</strong> represálias mútuas adotadas por vermelhos e por<br />

brancos no quadro da guerra civil (1918-1921), concretizadas <strong>em</strong> julgamentos e execuções sumárias<br />

<strong>de</strong> militantes políticos e/ou <strong>de</strong> reféns.<br />

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De sorte que, entre 1917 e 1921, acontecimentos vertiginosos tinham<br />

virado pelo avesso as intenções e modificado profundamente os projetos.<br />

Uma revolução <strong>em</strong> nome do internacionalismo nacionalizara-se. O prólogo<br />

se transformara <strong>em</strong> epílogo. Destinada a avançar no rumo <strong>de</strong> um mundo<br />

<strong>de</strong> abundância, a socieda<strong>de</strong> estava agora arrasada, brutalizada. Um processo<br />

“mil vezes mais <strong>de</strong>mocrático do que a mais <strong>de</strong>mocrática das <strong>de</strong>mocracias<br />

burguesas”, como gostava Lenin <strong>de</strong> se referir aos sovietes, evoluíra para<br />

uma ditadura política <strong>de</strong> partido único, um espécime até então ignorado,<br />

mas que se tornaria conhecido.<br />

A classe operária, consi<strong>de</strong>rada pelos bolcheviques a base social principal<br />

da revolução, minguara nos infortúnios da guerra civil. O camponês, um<br />

colossal aliado, <strong>em</strong>ergiu como os simples <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> nas lutas que arrasam as<br />

socieda<strong>de</strong>s complexas: fortalecido. O mujique (camponês russo) realizara o<br />

velho sonho: tinha o controle da terra e podia distribuí-la s<strong>em</strong> a interferência<br />

do Estado. A comuna rural, a antiga obchina, surgiu como gran<strong>de</strong> vitoriosa.<br />

A vingança histórica do “populismo” russo. Contudo, estranhamente,<br />

o partido que encarnara este projeto, <strong>em</strong> suas várias vertentes, estava marginalizado,<br />

perseguido, banido da vida legal, e só podia manifestar-se como<br />

espectro, através dos próprios bolcheviques.<br />

Os bolcheviques, ali estavam eles. Figuravam-se ainda como vanguarda<br />

da revolução mundial, mas eram apenas sobreviventes. Sob o comando <strong>de</strong><br />

Lenin, a nau não soçobrara, mas mudara <strong>de</strong> rumo, e já ninguém mais sabia<br />

o <strong>de</strong>stino daquela viag<strong>em</strong>. Os bolcheviques, com seus casacos <strong>de</strong> couro,<br />

ingênuos e ainda confiantes, terríveis <strong>em</strong> seu po<strong>de</strong>r e sua aura <strong>de</strong> invencíveis.<br />

Cercados na Rússia, e, na Rússia, cercados 9 , <strong>em</strong> seus castelos, meditavam<br />

sobre as ironias e as astúcias da História.<br />

2. A REVOLUÇÃO PELO ALTO E O SOCIALISMO SOVIÉTICO<br />

A “gran<strong>de</strong> virada” instaurou, <strong>de</strong> forma hesitante, no início, um processo<br />

<strong>de</strong> mobilização e <strong>de</strong> estatização da socieda<strong>de</strong>, uma economia comandada,<br />

ou mobilizada (Sapir, 1990), diretamente controlada e impulsionada pelo<br />

9 A fórmula, referida à esquerda armada brasileira dos anos 1960, é do professor Carlos Vainer.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

po<strong>de</strong>r político, uma revolução pelo alto. A ofensiva teve duas direções principais:<br />

a coletivização do campo e a industrialização acelerada.<br />

2.1 A COLETIVIZAÇÃO DO CAMPO E AS COLHEITAS DO DESESPERO<br />

As sucessivas “medidas <strong>em</strong>ergenciais”, tomadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> 1928,<br />

surg<strong>em</strong>, <strong>em</strong> perspectiva, como as primeiras escaramuças <strong>de</strong> uma guerra <strong>de</strong>clarada<br />

apenas <strong>em</strong> fins <strong>de</strong> 1929, quando o estado-maior bolchevique tomou<br />

<strong>de</strong>cisões que mudaram a qualida<strong>de</strong> do enfrentamento: da política <strong>de</strong><br />

requisições, outra maneira <strong>de</strong> nomear impostos extraordinários, passou-se à<br />

coletivização da terra, na forma <strong>de</strong> cooperativas (colcozes) e fazendas estatais<br />

(sovcozes), e à liquidação dos chamados kulaks.<br />

Duas comissões, no Comissariado do Povo para a Agricultura e no Bureau<br />

Político, atuando <strong>de</strong> forma conjunta, fixaram o calendário da coletivização e<br />

da caça aos kulaks, especificando metas e proporções para cada área, e visando<br />

especialmente os celeiros do país: o baixo e o médio Volga, o norte do<br />

Cáucaso, a Ucrânia e a Sibéria Oci<strong>de</strong>ntal. Tais <strong>de</strong>cisões, é interessante observar,<br />

apesar <strong>de</strong> notória importância, não foram ratificadas, n<strong>em</strong> sequer<br />

formalmente, por um congresso do partido ou dos sovietes. Nesse sentido,<br />

representaram um marco simbólico <strong>de</strong> transferência <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, do partido<br />

para as altas instâncias do Estado.<br />

Não mais a vigilância <strong>de</strong>sconfiada, mas a ofensiva aberta. Desfez-se o<br />

esboço <strong>de</strong> aliança, rompeu-se a trégua. Das alturas, os bolcheviques partiram<br />

para o assalto das planícies.<br />

Ao longo do ano <strong>de</strong> 1929, apesar do concurso da propaganda e dos incentivos<br />

<strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m, o progresso da coletivização alcançara patamares mo<strong>de</strong>stos:<br />

apenas 7,3% das explorações agrícolas estavam coletivizadas <strong>em</strong> 1 o <strong>de</strong><br />

outubro daquele ano. A partir daí, o ritmo acelerou-se, tornou-se frenético:<br />

13,2% <strong>em</strong> 1 o <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro; 20,1% <strong>em</strong> 1 o <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1930; 34,7% <strong>em</strong> 1 o<br />

<strong>de</strong> fevereiro; 50% <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> fevereiro; 58,6% <strong>em</strong> 1º <strong>de</strong> março (Werth, 1992).<br />

Em cerca <strong>de</strong> cinco meses, do início <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1929 ao fim <strong>de</strong> fevereiro<br />

<strong>de</strong> 1930, quase 60% dos mujiques foram agrupados <strong>em</strong> organizações<br />

coletivas <strong>de</strong> produção. Cumprira-se a resolução do comitê central do partido<br />

bolchevique, <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1929, segundo a qual “a construção do<br />

socialismo, sob direção do proletariado, po<strong>de</strong> ser realizada a uma velocida<strong>de</strong><br />

ainda <strong>de</strong>sconhecida na História”.<br />

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Ao mesmo t<strong>em</strong>po, e <strong>em</strong> conseqüência, começou a <strong>de</strong>portação maciça <strong>de</strong><br />

algumas centenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> camponeses, com as respectivas famílias,<br />

para as regiões inóspitas da Ásia Central e do Gran<strong>de</strong> Norte. Cartas e relatórios<br />

<strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s soviéticas, locais e regionais, então confi<strong>de</strong>nciais, e só recent<strong>em</strong>ente<br />

publicadas, atestaram com minúcia e eloqüência as arbitrarieda<strong>de</strong>s,<br />

as injustiças e o verda<strong>de</strong>iro caos que se abateram sobre as al<strong>de</strong>ias russas.<br />

A imposição e a resistência. Um furacão <strong>de</strong> morte e <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição. Uma<br />

orgia <strong>de</strong> sangue e <strong>de</strong> sofrimento.<br />

O próprio Joseph Stalin vacilou. Falou <strong>em</strong> vertig<strong>em</strong>. Em 2 <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />

1930, um dia apenas <strong>de</strong>pois da publicação das alucinantes estatísticas dando<br />

conta <strong>de</strong> que 60% dos camponeses já se encontravam coletivizados, o<br />

jornal Pravda divulgou um artigo <strong>de</strong> sua autoria no qual se <strong>de</strong>plorava a<br />

“vertig<strong>em</strong> do sucesso”.<br />

A coletivização tinha ido longe <strong>de</strong>mais. Os camponeses chacinavam o<br />

gado e se recusavam a <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r as s<strong>em</strong>eaduras <strong>de</strong> primavera. Um <strong>de</strong>sastre.<br />

Fez-se então a crítica aos dirigentes locais por ter<strong>em</strong> cometido arbitrarieda<strong>de</strong>s.<br />

Haviam interpretado mal ou mal aplicado as diretrizes do Centro.<br />

Ninguém po<strong>de</strong>ria ou <strong>de</strong>veria ser obrigado a ingressar nas organizações coletivas<br />

<strong>de</strong> produção. Os “excessos”.<br />

Entre os dirigentes <strong>de</strong> baixo escalão e os <strong>de</strong>stacamentos policiais, a <strong>de</strong>sorientação,<br />

o atordoamento. As metas tinham sido transmitidas por escrito.<br />

Como acusá-los, agora, por tê-las realizado? Entre os mujiques, nas<br />

organizações coletivas <strong>de</strong> produção, a <strong>de</strong>bandada. Nos quatro meses seguintes,<br />

a proporção das explorações “coletivizadas” já caíra para 21%,<br />

menos <strong>de</strong> um terço das metas alcançadas no início do mês <strong>de</strong> março. Foi<br />

preciso então retornar aos “excessos”. O <strong>em</strong>prego alternado e combinado<br />

<strong>de</strong> pressões políticas, fiscais e a repressão pura e simples fizeram a curva<br />

“coletivizante” retomar o sentido ascen<strong>de</strong>nte. Um ano <strong>de</strong>pois, já se haviam<br />

recuperado os patamares mais altos <strong>de</strong> 1930. Em seguida, s<strong>em</strong>pre<br />

apertando as cravelhas, <strong>de</strong> modo continuado e sist<strong>em</strong>ático, chegou-se, <strong>em</strong><br />

fins <strong>de</strong> 1935, ao percentual <strong>de</strong> 98% <strong>de</strong> mujiques trabalhando <strong>em</strong> formas<br />

coletivas <strong>de</strong> produção.<br />

Um processo <strong>de</strong>mencial pela grandiosida<strong>de</strong> das transformações operadas,<br />

a “ausência <strong>de</strong> limites” como política (Lewin, 1985). É possível encontrar<br />

alguma lógica <strong>em</strong> toda essa loucura?<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Os resultados econômicos apontavam, aparent<strong>em</strong>ente, <strong>em</strong> sentido contrário.<br />

Com efeito, o nível alcançado pelo setor estratégico da produção <strong>de</strong><br />

cereais <strong>em</strong> 1928, último ano <strong>em</strong> que, mal ou b<strong>em</strong>, prevaleceram as orientações<br />

da NEP (Novaya Ekonomiceskaya Politika – Nova <strong>Política</strong> Econômica),<br />

não seria mais superado, até 1939. A produtivida<strong>de</strong>, no melhor dos<br />

casos, permaneceu estagnada. As próprias fontes soviéticas, consultadas,<br />

revelam os impasses <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong>sastrosa. Em 1928, a colheita <strong>de</strong><br />

cereais atingiu a cifra <strong>de</strong> 73,3 milhões <strong>de</strong> toneladas. Em 1929, ligeira queda,<br />

para 71,7 milhões. No ano seguinte, um crescimento <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 10%<br />

levou a colheita para 77,1 milhões <strong>de</strong> toneladas. Queda brusca <strong>em</strong> 1931,<br />

para 69,4 milhões. Estagnação, na prática, <strong>em</strong> 1932: 69,8 milhões. Ainda<br />

uma ligeira queda <strong>em</strong> 1933: 68,4 milhões. Outra diminuição, <strong>em</strong> 1934:<br />

67,6 milhões. Poço s<strong>em</strong> fundo, <strong>em</strong> 1935: 62,4 milhões <strong>de</strong> toneladas, um<br />

resultado mais <strong>de</strong> 15% inferior ao <strong>de</strong> 1928. Para o ano <strong>de</strong> 1936, não há<br />

estatísticas disponíveis. Em 1937, houve um ano excepcional do ponto <strong>de</strong><br />

vista climático, foi possível colher 87 milhões <strong>de</strong> toneladas. Chegara, afinal,<br />

a bonança, como anunciaram as agências <strong>de</strong> propaganda do Estado soviético?<br />

Os frutos doces da s<strong>em</strong>eadura amarga? Os dois anos seguintes, 1938 e<br />

1939, com resultados <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> 67 milhões <strong>de</strong> toneladas, evi<strong>de</strong>nciaram<br />

o contrário. Dez anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> iniciada a coletivização, a agricultura soviética<br />

continuava produzindo b<strong>em</strong> menos do que no ponto <strong>de</strong> partida.<br />

Em outro procedimento, um autor construiu médias qüinqüenais <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o período anterior à Primeira Guerra Mundial, no intuito <strong>de</strong> oferecer um<br />

quadro que escapasse das variações sazonais, permitindo uma avaliação mais<br />

equilibrada. Assim, para o período <strong>de</strong> 1909-1913, encontrou a média <strong>de</strong><br />

72,5 milhões <strong>de</strong> toneladas. O qüinqüênio 1928-1933, que correspon<strong>de</strong> ao<br />

período do I Plano Qüinqüenal, projetou um resultado <strong>de</strong> 73,6 milhões <strong>de</strong><br />

toneladas. Entre 1933-1937, o mesmo resultado praticamente: 72,9 milhões<br />

<strong>de</strong> toneladas (Lewin, 1985). Aparent<strong>em</strong>ente, a montanha, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

medonhos estr<strong>em</strong>ecimentos, havia parido um rato.<br />

No capítulo da produção <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> animal, a catástrofe foi ainda maior.<br />

Mikhaïl Cholokhov <strong>de</strong>screveria, <strong>em</strong> obra-prima, as sinistras festas báquicas<br />

<strong>em</strong> que a matança indiscriminada <strong>de</strong> animais assinalou a recusa do mujique<br />

<strong>em</strong> entregar os animais à regência coletiva (estatal) dos colcozes. Todos os<br />

rebanhos sofreram pesadas perdas. E, no entanto, a criação <strong>de</strong> animais, <strong>em</strong><br />

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geral, apresentava, <strong>em</strong> 1928, uma notável recuperação: índice 137, para<br />

uma base = 100, <strong>em</strong> 1913. A partir daí, teve início o <strong>de</strong>clínio: 129, <strong>em</strong><br />

1929; 100, <strong>em</strong> 1930; 93, <strong>em</strong> 1931; 75, <strong>em</strong> 1932; 65, <strong>em</strong> 1933. Ou seja,<br />

no período do I Plano Qüinqüenal, os rebanhos <strong>de</strong>cresceram <strong>em</strong> mais <strong>de</strong><br />

50%. Um cataclisma. A partir <strong>de</strong> então, uma lenta recuperação. Às vésperas<br />

da Segunda Guerra Mundial, <strong>em</strong> 1940, o índice era <strong>de</strong> 114, ainda inferior<br />

<strong>em</strong> cerca <strong>de</strong> 17% ao <strong>de</strong> 1928, o último ano da NEP.<br />

A <strong>de</strong>sorganização da economia agrícola, por mais impressionante que fosse,<br />

<strong>em</strong>pali<strong>de</strong>cia <strong>de</strong> importância diante do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>portação <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />

camponeses, apontados como kulaks, subkulaks, pró-kulaks ou ainda kulakizantes.<br />

Uma engrenag<strong>em</strong> infernal agravada pelo fato <strong>de</strong> que eram bastante fluídos os<br />

contornos do que se <strong>de</strong>sejava efetivamente caracterizar como kulak.<br />

Mas o que era efetivamente um kulak? O termo <strong>de</strong>signava um personag<strong>em</strong><br />

social específico: os camponeses ligeiramente abastados. Chamá-los <strong>de</strong><br />

ricos é quase uma liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, na fronteira do abuso. Na verda<strong>de</strong>,<br />

porém, diferenciavam-se no quadro da al<strong>de</strong>ia russa, marcada pela miséria<br />

e pelo atraso. Tinham um ou dois animais, pequenos exce<strong>de</strong>ntes, regulares,<br />

comercializados no mercado, estoques <strong>de</strong> s<strong>em</strong>entes, alguma poupança,<br />

às vezes, o que lhes permitia <strong>em</strong>prestar aos <strong>de</strong>mais e exercer sobre eles pressão,<br />

quando não violência, para cobrar o <strong>de</strong>vido (kulak = punho). Possuíam,<br />

além disso, algumas letras, ou as tinham através dos filhos, o que lhes acrescentava<br />

prestígio. A massa dos camponeses votava ao kulak sentimentos<br />

ambíguos: freqüent<strong>em</strong>ente inveja (pela posição), ódio (pelos juros cobrados<br />

e pelas exações praticadas), mas também gratidão (pelos eventuais socorros<br />

prestados <strong>em</strong> situações <strong>de</strong> <strong>em</strong>ergência). Por outro lado, é importante não<br />

esquecer que, diante dos “homens da cida<strong>de</strong>”, a al<strong>de</strong>ia e a comuna rural, a<br />

obchina, não raramente apresentavam-se como um bloco, s<strong>em</strong> falhas, um<br />

universo (o mir), ou, num ângulo pejorativo, o patriotismo <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia.<br />

Como categoria específica, os kulaks ganharam força no período anterior<br />

à Primeira Guerra Mundial, sobretudo <strong>de</strong>vido aos incentivos das políticas<br />

agrárias reformistas stolypinianas, impl<strong>em</strong>entadas entre 1906 e 1911.<br />

No entanto, com a vitória da revolução camponesa <strong>de</strong> 1917, sua importância<br />

social e econômica ten<strong>de</strong>u a diminuir, o que foi acentuado pelo processo<br />

arrasador <strong>de</strong> nivelamento por baixo provocado pela guerra civil, entre<br />

1918 e 1920. Ascen<strong>de</strong>ram maciçamente, então, bafejados pela nacionaliza-<br />

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ção e pela redistribuição da terra, os camponeses pobres (bedniaks) e os<br />

camponeses médios (seredniaks). O triunfo do igualitarismo tradicional no<br />

quadro da comuna rural reforçada.<br />

É verda<strong>de</strong> que os anos da NEP haviam relançado as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Mas<br />

ainda era muito difícil, sob qualquer ângulo (contratação <strong>de</strong> assalariados,<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> animais ou <strong>de</strong> máquinas e impl<strong>em</strong>entos agrícolas), falar <strong>de</strong><br />

uma camada <strong>de</strong> camponeses ricos na União Soviética <strong>em</strong> fins dos anos 1920.<br />

Mais uma vez, as <strong>de</strong>cisões políticas prece<strong>de</strong>ram e condicionaram as análises<br />

da estrutura social. Em Moscou, <strong>de</strong>terminava-se o nível <strong>de</strong> coletivização<br />

a ser alcançado <strong>em</strong> cada região, <strong>em</strong> cada distrito. Metas mensais, <strong>de</strong>vidamente<br />

quantificadas, eram fixadas, avaliadas, cobradas. As autorida<strong>de</strong>s locais,<br />

ou os <strong>de</strong>stacamento <strong>de</strong> ferro, enviados das cida<strong>de</strong>s, tinham a obrigação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>skulakizar, s<strong>em</strong> incorrer <strong>em</strong> excessos, naturalmente. Em último caso, e<br />

não eram poucos estes últimos casos, a mera resistência à coletivização já era<br />

suficiente para um camponês ser rotulado como kulak. Caso não fosse possível<br />

enquadrá-lo nos parâmetros econômicos típicos do kulak, s<strong>em</strong>pre era<br />

possível estabelecer uma associação qualquer, o que explica <strong>em</strong> larga medida<br />

o súbito aparecimento <strong>de</strong> uma profusão <strong>de</strong> termos aparentados: subkulak,<br />

pró-kulak, s<strong>em</strong>ikulak, kulak na prática, kulakizante etc. Na verda<strong>de</strong>, estava<br />

sendo apanhada na re<strong>de</strong> da expropriação a multidão dos camponeses médios,<br />

os seredniaks, cujos minúsculos exce<strong>de</strong>ntes faziam falta às agências atacadistas<br />

do Estado.<br />

Assim, a repressão e a <strong>de</strong>portação acabaram atingindo proporções gigantescas.<br />

Fontes russas, <strong>em</strong> avaliações formuladas no início dos anos 1990,<br />

admitiam a hipótese <strong>de</strong> 1 milhão <strong>de</strong> famílias <strong>de</strong>portadas, cerca <strong>de</strong> 5 milhões<br />

<strong>de</strong> pessoas. E o trauma das prisões, da privação dos direitos civis, da<br />

marginalização (inimigos do povo), da separação das famílias, da maldição<br />

do exílio, fenômenos não sujeitos à quantificação. Embora muito reais, nunca<br />

pu<strong>de</strong>ram entrar nos quadros estatísticos.<br />

Tanto sofrimento, e dispêndio <strong>de</strong> energia, violência e subversão <strong>de</strong> tradições,<br />

para tão magros resultados econômicos. Puro <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar <strong>de</strong> paixões irracionais?<br />

Ou seria possível apontar o que o Estado pescou nessa t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>?<br />

Um resultado qualitativo: a erradicação da proprieda<strong>de</strong> privada no campo.<br />

Os pequenos camponeses não estariam mais, <strong>em</strong> cada microoperação econômica,<br />

engendrando o abominável regime capitalista. A “solução final” da<br />

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maldita questão, a morte, afinal, do pequeno camponês, esse sujeito histórico<br />

essencialmente reacionário, o fim da velha comuna rural (obchina), a<br />

liquidação para s<strong>em</strong>pre dos incômodos aliados, o horizonte aberto para a<br />

construção do socialismo num só país.<br />

Em conseqüência, ampliação exponencial da capacida<strong>de</strong> do controle do<br />

Estado. Em cada unida<strong>de</strong> coletivizada, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber “quanto, o<br />

que, como e quando” vão produzir. Se os resultados não aparecer<strong>em</strong>, ai dos<br />

camponeses, porque as cotas obrigatórias e os impostos serão computados<br />

segundo as estimativas oficiais e não <strong>de</strong> acordo com os resultados efetivamente<br />

alcançados. Em qualquer caso, quando e se as metas não eram atingidas,<br />

os responsáveis já estavam <strong>de</strong>finidos: kulaks, ou cúmplices pró-kulaks,<br />

sabotadores, ainda travestidos, camuflados, ocultos, seria preciso <strong>de</strong>snichálos,<br />

sob pena <strong>de</strong> toda a comunida<strong>de</strong> correr o risco da <strong>de</strong>skulakização, porque<br />

a responsabilida<strong>de</strong>, nestes t<strong>em</strong>pos febris, tornou-se novamente coletiva, como<br />

nos t<strong>em</strong>pos do tsarismo.<br />

Além disso, resultados econômicos. Eles seriam alcançados.<br />

O agrupamento <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> pessoas <strong>em</strong> algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhares<br />

<strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s coletivas <strong>de</strong> produção, permitindo um controle preciso,<br />

viabilizou o processo por meio do qual foi possível “espr<strong>em</strong>er” os camponeses,<br />

extraindo <strong>de</strong>les cotas anuais fixas, às vezes ascen<strong>de</strong>ntes, mesmo que a<br />

produção estivesse estagnada ou <strong>em</strong> <strong>de</strong>clínio.<br />

As chamadas entregas obrigatórias para o Estado (cotas mínimas, fixas,<br />

contra pagamento também fixado antecipadamente) registraram curva ascen<strong>de</strong>nte<br />

ao longo dos anos 1930. Em 1928, ainda no quadro das “medidas<br />

<strong>em</strong>ergenciais” então formuladas, atingiram 10,8 milhões <strong>de</strong> toneladas. No<br />

ano seguinte, num aumento abrupto, <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 50%, chegaram a 16,1<br />

milhões. Em 1930, novo salto, para 22,1 milhões; <strong>em</strong> 1931, 22,8 milhões.<br />

Em 1932, 18,5 milhões. Entre 1933 e 1937, a média foi comparativamente<br />

alta, <strong>de</strong> 27,5 milhões <strong>de</strong> toneladas. Em percentuais, <strong>em</strong> relação ao total das<br />

colheitas, a proporção saltou <strong>de</strong> 14,7%, <strong>em</strong> 1928, para 22,4% <strong>em</strong> 1929;<br />

mais <strong>de</strong> 25% <strong>em</strong> 1930; 32,9% <strong>em</strong> 1931; 26,9%; 34,1%, <strong>em</strong> 1933; 38,1%<br />

<strong>em</strong> 1934; 37,8% <strong>em</strong> 1935, chegando a 38% <strong>em</strong> 1940 (Lewin, 1985).<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, voltavam-se a abrir as “hastes da tesoura”: enquanto os<br />

preços agrícolas permaneceram inalterados entre 1928 e 1953, o rublo <strong>de</strong>svalorizou-se<br />

cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z vezes. Assim, segundo os registros oficiais, entre<br />

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1933 e 1938, o custo real médio, por quintal (cerca <strong>de</strong> 60 quilos) <strong>de</strong> grão,<br />

estava <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> 27 rublos. Mas as instituições estatais pagavam aos<br />

colcozes apenas 6 rublos pelo quintal <strong>de</strong> centeio, 9-10 rublos pelo <strong>de</strong> trigo<br />

e 4-5,5 pelo <strong>de</strong> aveia. Depois da guerra, já <strong>em</strong> 1953, as autorida<strong>de</strong>s reconheceram<br />

que os preços oficiais pagavam somente dois quintos do custo da<br />

produção dos cereais e um quarto do custo dos produtos <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> animal.<br />

Apenas essa disparida<strong>de</strong>, repetida ao longo <strong>de</strong> tantos anos, já teria significado<br />

um formidável “tributo”.<br />

Impostos, normais e extraordinários, cotas obrigatórias, multas, aluguéis<br />

<strong>de</strong> máquinas e pagamentos dos serviços prestados pelas Estações <strong>de</strong> Máquinas<br />

e Serviços (MST), equipadas e controladas pelo Estado, <strong>de</strong>terioração<br />

dos termos <strong>de</strong> intercâmbio entre produtos manufaturados e agrícolas, um<br />

arsenal completo <strong>de</strong> medidas para quebrar a espinha do mujique russo,<br />

reduzindo-o <strong>de</strong>finitivamente à condição <strong>de</strong> “servo” das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção.<br />

Na melhor das hipóteses, um cidadão <strong>de</strong> segunda classe.<br />

Estavam asseguradas as bases da “acumulação socialista primitiva”. Permitindo<br />

o abastecimento <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s e parques industriais <strong>em</strong> expansão.<br />

Viabilizando exportações crescentes para pagar, no mercado internacional, as<br />

compras <strong>de</strong> matérias-primas industriais, máquinas e equipamentos, técnicos<br />

e engenheiros, <strong>de</strong> modo a cumprir as metas “nobres” do planos qüinqüenais.<br />

A resistência foi feroz. Individuais, <strong>de</strong>sesperadas. Emboscadas, <strong>em</strong> grupo,<br />

articuladas. Recusas suicidas ao enquadramento. Manifestações cegas.<br />

Matança do gado. Assassinatos <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s. Fugas. Sabotagens às instalações<br />

dos colcozes e às máquinas impostas. Furto <strong>de</strong> cereais. E, quando a<br />

resistência ativa foi abatida, os recursos últimos, a inação, o <strong>de</strong>scaso, o <strong>de</strong>sperdício,<br />

a apatia, o <strong>de</strong>sinteresse.<br />

O campo e o camponês pagaram caro pela rebeldia. A escassez endêmica<br />

combinava-se com surtos brutais <strong>de</strong> total carência, a fome. A <strong>de</strong> 1932-<br />

1933, na Ucrânia, vitimou milhões <strong>de</strong> pessoas, sobretudo as mais vulneráveis,<br />

velhos e crianças. Numa estranha simbiose, combinavam-se a construção<br />

do futuro, o socialismo, com as crises típicas do antigo regime, materializadas<br />

na fome.<br />

As pressões, afinal, tiveram que ser relaxadas. Impôs-se a alternativa <strong>de</strong><br />

conce<strong>de</strong>r a cada mujique um pequeníssimo pedaço <strong>de</strong> terra para cultivo<br />

próprio. O Estatuto dos Colcozes, <strong>em</strong> 1935, admitiu a atribuição <strong>de</strong> lotes,<br />

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não maiores do que um quarto e meio hectare por família. Também foi<br />

reconhecido, a cada família, o direito a uma vaca e a um número especificado<br />

<strong>de</strong> bezerros, porcos e ovelhas, assim como a uma quantida<strong>de</strong> ilimitada<br />

<strong>de</strong> aves (sic). Daí o camponês retiraria parte substancial da sua efetiva r<strong>em</strong>uneração<br />

(sobrevivência). Por outro lado, a partir das brechas dos mercados<br />

livres, eventualmente autorizados, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pagas as cotas e os impostos,<br />

proviria uma fração consi<strong>de</strong>rável do abastecimento da socieda<strong>de</strong>. Assim, <strong>em</strong><br />

1938, <strong>em</strong>bora os pequenos lotes correspon<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> a apenas 3,9% da terra<br />

arada, garantiram, além da sobrevivência dos camponeses, quase meta<strong>de</strong> da<br />

produção total <strong>de</strong> víveres (45%), 52,1% da produção <strong>de</strong> batatas, a maior<br />

parte dos legumes e frutas, quase meta<strong>de</strong> do gado, 71,4% do leite, 70,9%<br />

da carne, 43% da lã...<br />

O aparente paradoxo da disparida<strong>de</strong> entre a produtivida<strong>de</strong> da gran<strong>de</strong><br />

unida<strong>de</strong> coletivizada (na verda<strong>de</strong>, estatizada) e do pequeno lote privado<br />

oferecia a evidência econômica do caráter forçado do processo <strong>de</strong> coletivização.<br />

No mesmo movimento, mostrava o <strong>de</strong>sapego pelo colcoz e a <strong>de</strong>fesa tenaz do<br />

interesse privado, consi<strong>de</strong>rado liquidado pelo discurso oficial da coletivização.<br />

A permanência da mentalida<strong>de</strong> particularista, individual, <strong>de</strong>scompromissada<br />

com os rumos e os interesses gerais da socieda<strong>de</strong>. Como Jonas,<br />

sobrevivendo nas entranhas da baleia. Milhões <strong>de</strong> Jonas, esses camponeses<br />

agarrados aos pequenos lotes concedidos, estranhos no ninho <strong>de</strong>ssas milhares<br />

<strong>de</strong> baleias, os colcozes e os sovcozes criados pelo Estado.<br />

Uma outra função econômica da coletivização e da formidável pressão que<br />

a envolveu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início foi a expulsão dos camponeses da terra. O movimento<br />

tomou tal amplitu<strong>de</strong> que as autorida<strong>de</strong>s foram obrigadas a tomar providências<br />

enérgicas: restabeleceram a tradição abominada dos “passaportes<br />

internos”, outra invenção do regime tsarista, caída <strong>em</strong> <strong>de</strong>suso. Assim, os camponeses<br />

somente podiam <strong>de</strong>ixar o colcoz com autorização, por escrito, da<br />

direção da unida<strong>de</strong>, nomeada pelo Estado. Os camponeses a chamavam,<br />

maliciosamente, <strong>de</strong> carta <strong>de</strong> <strong>em</strong>ancipação, querendo com isso significar que<br />

encaravam a implantação do sist<strong>em</strong>a coletivo <strong>de</strong> produção como equivalente à<br />

restauração do regime da servidão, juridicamente abolido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1861.<br />

Ainda assim, havia aqueles que escapavam das formas <strong>de</strong> produção coletiva.<br />

Em certa medida, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não ultrapassass<strong>em</strong> certos limites, tratava-se<br />

<strong>de</strong> algo <strong>de</strong>sejado pelo Estado, pois o surto industrializante programa-<br />

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do exigia braços, muitos braços. Nas cida<strong>de</strong>s e nos inumeráveis canteiros <strong>de</strong><br />

obras, os mujiques tangidos <strong>de</strong> suas terras representariam mão-<strong>de</strong>-obra resistente<br />

e pouco exigente, <strong>em</strong>bora nada eficaz para efetivar operações minimamente<br />

sofisticadas, pelo menos <strong>em</strong> toda uma primeira fase.<br />

Muitos outros não teriam essa sorte. Supreendidos <strong>em</strong> situação ilegal,<br />

s<strong>em</strong> a <strong>de</strong>vida carta <strong>de</strong> <strong>em</strong>ancipação fornecida pela autorida<strong>de</strong> competente,<br />

caídos nas malhas dos controles s<strong>em</strong> fim, iriam juntar-se aos <strong>de</strong>portados e<br />

aos presos (zeks) <strong>de</strong> toda espécie, que formigavam nos trabalhos forçados <strong>de</strong><br />

abertura <strong>de</strong> canais, construção <strong>de</strong> estradas <strong>de</strong> ferro, exploração <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras<br />

nobres e <strong>de</strong> minas <strong>de</strong> ouro, enfrentando condições insalubres e duríssimas<br />

<strong>de</strong> trabalho <strong>em</strong> regiões <strong>de</strong> clima gelado, inóspitas.<br />

A importância econômica dos trabalhos forçados, reconhecida mais tar<strong>de</strong><br />

pelo próprio governo soviético, é até hoje <strong>de</strong> difícil mensuração. Com o t<strong>em</strong>po,<br />

mesmo os mais inocentes não pu<strong>de</strong>ram continuar ignorando sua existência,<br />

sobretudo <strong>de</strong>pois dos relatos minuciosos e insuportáveis dos anos 1970<br />

(Soljenitsyn, 1975a; 1975b; Chalamov, 1986). A <strong>de</strong>núncia do inenarrável.<br />

Nas fábricas, nas obras <strong>de</strong> infra-estrutura, nos gran<strong>de</strong>s canteiros, construindo<br />

o socialismo soviético, apesar <strong>de</strong>les mesmos, ali estariam os mujiques,<br />

<strong>de</strong>senraizados, expropriados, “tributados”. Transformando a natureza e a<br />

socieda<strong>de</strong>, transformando-se, transformados.<br />

2.2 A INDUSTRIALIZAÇÃO ESTATIZADA: O GRANDE SALTO PARA A FRENTE<br />

Quando Evgeni Preobrazhensky esgrimia com Nikolai Bukharin, nos<br />

anos 1920, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um planejamento mais centralizado<br />

e sist<strong>em</strong>ático da economia, e um investimento prioritário e mais consi<strong>de</strong>rável<br />

no setor industrial, talvez nunca tenha imaginado a natureza que o<br />

processo assumiu, os ritmos.<br />

Um golpe brusco, logo no início, <strong>de</strong>terminou a sorte das pequenas indústrias<br />

e dos serviços privados, <strong>em</strong>purrados para a órbita do Estado. A<br />

combinação <strong>de</strong> pressões fiscais e políticas liquidou os correlatos do kulak<br />

nas cida<strong>de</strong>s: os pequenos <strong>em</strong>presários, o vespeiro <strong>de</strong> atravessadores e<br />

especuladores e a nuv<strong>em</strong> <strong>de</strong> clientes e parasitas que viviam ao redor.<br />

Simultaneamente, o vendaval, num crescendo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1929, quando<br />

foi aprovada a proposta da variante “ótima” para o I Plano Qüinqüenal<br />

(1928-1933).<br />

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Energia, indústria pesada e infra-estrutura <strong>de</strong> transportes receberam a<br />

máxima priorida<strong>de</strong>, 78% dos investimentos totais (Nove, 1990). E esta<br />

alternativa, por sua vez, ainda foi <strong>em</strong>endada, novamente para cima, <strong>em</strong><br />

1932, quando prevaleceu a proposta <strong>de</strong> realizar o Plano Qüinqüenal <strong>em</strong><br />

quatro anos. O voluntarismo <strong>em</strong> estado puro, ignorando todos os limites,<br />

os da natureza e os da condição humana.<br />

Entretanto, a onipotência da vonta<strong>de</strong> recaiu quase exclusivamente sobre<br />

alguns setores, b<strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados: as indústrias <strong>de</strong> construção mecânica, as<br />

que trabalhavam para a <strong>de</strong>fesa, a metalurgia pesada, os transportes – estradas<br />

<strong>de</strong> ferro e canais –, a produção <strong>de</strong> energia elétrica (barragens), a extração<br />

<strong>de</strong> carvão e petróleo, <strong>em</strong> suma, os dinossauros comedores <strong>de</strong> ferro e aço.<br />

No centro das atenções, os chamadas gran<strong>de</strong>s projetos. Por eles, era preciso<br />

tudo fazer: os complexos metalúrgicos <strong>de</strong> Kuznetsk e <strong>de</strong> Magnitogorsk,<br />

as fábricas <strong>de</strong> tratores <strong>de</strong> Kharkov e Tcheliabinsk, as <strong>de</strong> automóveis <strong>de</strong> Moscou<br />

e <strong>de</strong> Nijni-Novgorod, a usina hidrelétrica <strong>de</strong> Dnieprprogress, a estrada <strong>de</strong><br />

ferro estabelecendo a ligação entre o Turquestão e a Sibéria, o Turksib, o<br />

canal Volga–mar Branco. E, como vitrine, a “pirâmi<strong>de</strong>” <strong>de</strong> Stalin: o metrô<br />

<strong>de</strong> Moscou, inaugurado <strong>em</strong> 1935, <strong>de</strong> imponentes e marmóreas estações.<br />

Era preciso realizá-los a qualquer custo. No mais breve prazo. “A técnica<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> tudo, os ritmos tudo <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m”, slogans da época, todo um programa.<br />

Num plano secundário, quando não francamente negligenciados, ficaram<br />

os setores da chamada indústria leve e da construção civil, encarregada<br />

<strong>de</strong> prover, entre outras priorida<strong>de</strong>s, as moradias e a infra-estrutura urbana<br />

para uma população que se concentrava nas cida<strong>de</strong>s a taxas <strong>de</strong> crescimento<br />

geométricas. Com efeito, enquanto a população total evoluía <strong>de</strong> 147 para<br />

170 milhões <strong>de</strong> habitantes (mais cerca <strong>de</strong> 15%), entre 1926 e 1939, a<br />

população urbana, no mesmo período, <strong>de</strong>u um salto <strong>de</strong> 112%, saindo <strong>de</strong><br />

26 para 56 milhões <strong>de</strong> habitantes.<br />

Para essas ativida<strong>de</strong>s econômicas voltadas para o consumo imediato da<br />

população, no entanto, a versão “ótima” do I Plano Qüinqüenal não havia<br />

reservado prognósticos promissores. O que não quer dizer que a indústria<br />

<strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo não tenha progredido, mas os aumentos nesta área<br />

foram amplamente insuficientes <strong>em</strong> relação à <strong>de</strong>manda.<br />

Assim, <strong>em</strong> 1936, apenas 6% <strong>de</strong> “urbanói<strong>de</strong>s” dispunham <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um<br />

quarto para viver, 40% <strong>de</strong> apenas um quarto, 24% <strong>de</strong> parte <strong>de</strong> um quarto,<br />

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5% viviam <strong>em</strong> cozinhas e corredores e 25% alojavam-se <strong>em</strong> dormitórios:<br />

barracas, barracos, tendas etc. Um estado lamentável, é verda<strong>de</strong>, mas seria<br />

um anacronismo compará-lo com o dos trabalhadores da Europa Oci<strong>de</strong>ntal<br />

ou dos Estados Unidos. No exercício <strong>de</strong> qualquer comparação, é preciso<br />

consi<strong>de</strong>rar os índices e o estado existente na Rússia tsarista, antes <strong>de</strong> 1914,<br />

ou <strong>de</strong> países <strong>em</strong> situação análoga, como a Índia ou a Turquia.<br />

Entretanto, apesar <strong>de</strong>sses senões, tomara a imaginação da socieda<strong>de</strong>, e não<br />

gratuitamente, a idéia <strong>de</strong> que houvera um gran<strong>de</strong> salto para a frente. Algo <strong>em</strong><br />

torno <strong>de</strong> 8 mil indústrias tinham surgido ao longo dos anos 1930. Não apenas<br />

um crescimento quantitativo, mas qualitativo, com o surgimento <strong>de</strong> novos setores:<br />

química, eletrotécnica, aeronáutica, automóveis, construção <strong>de</strong> máquinas.<br />

Um tr<strong>em</strong>endo esforço, uma economia “sob comando”, tensa, “mobilizada”,<br />

quase militarizada (Sapir, 1990).<br />

Enquanto isso, na base da socieda<strong>de</strong>, qu<strong>em</strong> eram estes, os trabalhadores<br />

anônimos que construíam o socialismo num só país?<br />

Um turbilhão dominou a trajetória do homo sovieticus nos anos 1930.<br />

Mobilida<strong>de</strong> espacial: do campo para a cida<strong>de</strong>, das áreas tradicionais <strong>de</strong><br />

ocupação para as áreas novas, <strong>de</strong> toda parte para os campos <strong>de</strong> concentração<br />

da Ásia Central e do Gran<strong>de</strong> Norte. Uma socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> movimento, <strong>em</strong><br />

fluxo contínuo. O <strong>de</strong>senraizamento. O exílio.<br />

Mobilida<strong>de</strong> social, nas cida<strong>de</strong>s. “Horizontal”, traduzida nas constantes<br />

mudanças <strong>de</strong> <strong>em</strong>prego, da pequena para a gran<strong>de</strong> indústria, e entre as indústrias,<br />

com altas taxas <strong>de</strong> turn-over (tekuchka – circulação <strong>de</strong> assalariados por<br />

postos <strong>de</strong> trabalho). Da produção para os serviços e vice-versa. “Vertical”, do<br />

aprendizado à chefia, também expressa numa constante evolução, da produção<br />

e dos serviços para a administração, para o partido, para o po<strong>de</strong>r.<br />

Assim, <strong>em</strong> fins dos anos 1920, ainda <strong>em</strong> vigor a NEP, quase 60% dos<br />

trabalhadores encontravam-se <strong>em</strong>pregados <strong>em</strong> pequenas indústrias. Dez anos<br />

<strong>de</strong>pois, 76,5% estavam <strong>em</strong> <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 500 <strong>em</strong>pregados, um terço<br />

<strong>em</strong> fábricas <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 10 mil <strong>em</strong>pregados. Por outro lado, nesse período, foi<br />

extraordinária a marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> ascensão para os chamados praktiki, formados no<br />

batente, e que assumiram freqüent<strong>em</strong>ente, por absoluta falta <strong>de</strong> opções, a<br />

direção <strong>de</strong> serviços e mesmo <strong>de</strong> fábricas. Cerca <strong>de</strong> 650 mil operários <strong>de</strong>ixaram<br />

as fábricas para se tornar <strong>em</strong>pregados, funcionários ou para seguir diferentes<br />

tipos <strong>de</strong> estágios ou cursos. Encetando a progressão dos escalões inferiores<br />

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para os superiores, da periferia para o centro, da base para o topo na escala do<br />

po<strong>de</strong>r. Eram praktiki 89% dos chefes imediatos, 60% dos técnicos <strong>de</strong> todas<br />

as categorias, 41% dos engenheiros e até mesmo 27% dos engenheiros chefes<br />

das fábricas. Em meados dos anos 1930, os praktiki formavam cerca <strong>de</strong> 50%<br />

dos quadros dirigentes nas indústrias (Lewin, 1985).<br />

Mobilida<strong>de</strong>, enfim, nas hierarquias da socieda<strong>de</strong>.<br />

No âmbito da família, hierarquia mais tradicional e nuclear, o<br />

<strong>de</strong>spedaçamento da figura maior do patriarca com a migração maciça das<br />

mulheres para o mercado <strong>de</strong> trabalho. Em 1936, constituíam 40% da força<br />

<strong>de</strong> trabalho, um ano <strong>de</strong>pois representavam 82% dos novos assalariados.<br />

Sobrecarregadas <strong>de</strong> tarefas no quadro da dupla jornada <strong>de</strong> trabalho (doméstica<br />

e profissional), estariam longe do retrato da mulher “<strong>em</strong>ancipada e<br />

feliz” da propaganda oficial, mas só o fato <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> escapado do controle<br />

estrito e estreito <strong>de</strong> pais e maridos já assumia um significado histórico.<br />

Os jovens também se beneficiaram da explosão da rigi<strong>de</strong>z da família tradicional.<br />

Na época, 45% da população da URSS tinham menos <strong>de</strong> 20<br />

anos. Incorporados nas brigadas <strong>de</strong> construção das cida<strong>de</strong>s novas, nas campanhas<br />

<strong>de</strong> alfabetização e <strong>de</strong> instrução, acorreram <strong>em</strong> massa para as organizações<br />

comunistas <strong>de</strong> jovens (Konsomol), generosos e entusiasmados, voluntários.<br />

Imaginavam construir um mundo novo. Na prática, pelo menos,<br />

<strong>em</strong>ancipavam-se da sufocante tutela da família autoritária, na qual predominava<br />

<strong>de</strong> forma incontrastável a autorida<strong>de</strong> do páter-famílias.<br />

Um outro movimento ampliaria as oportunida<strong>de</strong>s: o fantástico <strong>de</strong>senvolvimento<br />

do sist<strong>em</strong>a educacional, combinado com a criação acelerada <strong>de</strong><br />

novos postos <strong>de</strong> trabalho. Novos horizontes para aqueles que <strong>de</strong>sejavam<br />

adquirir conhecimentos. Entre 1928 e 1941, o total <strong>de</strong> diplomados universitários<br />

nos vários ramos da educação nacional saltou <strong>de</strong> 233 mil para<br />

908 mil graduandos. Entre os formandos no nível secundário, os dados<br />

registraram igualmente expressivo crescimento: <strong>de</strong> 288 mil para 1,492<br />

milhão. S<strong>em</strong> contar os milhares que estudavam nos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> educação a<br />

distância e nos cursos <strong>de</strong> extensão, escolas noturnas e faculda<strong>de</strong>s operárias<br />

(rabfaks). O número <strong>de</strong> matrículas nesta última modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino pulou<br />

<strong>de</strong> 50 mil para 285 mil <strong>em</strong> apenas quatro anos, entre 1928 e 1932.<br />

Neste processo, a massa <strong>de</strong> trabalhadores cindiu-se <strong>em</strong> diferenciações internas,<br />

<strong>de</strong>sintegrada <strong>em</strong> camadas: os novos recrutas, recém-chegados, <strong>em</strong> ondas<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

sucessivas, tangidos pela coletivização forçada; os incorporados no processo <strong>de</strong><br />

recuperação <strong>de</strong> meados dos anos 1920; os mais velhos, que sobraram da <strong>de</strong>vastação<br />

da guerra civil e da sucção do aparelho administrativo, civil e militar. S<strong>em</strong><br />

falar nas diferenças geracionais e <strong>de</strong> gênero, ampliando as nuanças. E nos privados<br />

<strong>de</strong> direitos (lichentsy), el<strong>em</strong>entos “estranhos, inimigos do povo”, incorporados<br />

compulsoriamente. Cada uma <strong>de</strong>stas cisões era uma brecha, tornando vulneráveis<br />

as linhas que os operários po<strong>de</strong>riam erguer <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus interesses.<br />

A situação foi agravada com a adoção do salário por peça e dos estímulos<br />

materiais às performances extraordinárias. Novas divisões. Em 1933, 75% dos<br />

trabalhadores eram pagos <strong>de</strong> acordo com normas <strong>de</strong> produção freqüent<strong>em</strong>ente<br />

fixadas <strong>de</strong> forma arbitrária, fora do alcance da gran<strong>de</strong> maioria. Em 1938, 60%<br />

não conseguiram cumprir as normas. O resultado foi a queda do salário médio<br />

real: <strong>em</strong> 1937 correspondia a pouco mais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> do <strong>de</strong> 1928. Enquanto<br />

isso, beneficiando os trabalhadores <strong>de</strong> choque (udarniks), salários diferenciados,<br />

rações especiais e outras benesses extraordinárias, fundamentais <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>s<br />

regidas pela escassez: alojamentos e escolas especiais, colônias <strong>de</strong> férias etc.<br />

A partir do verão <strong>de</strong> 1935, a tendência pareceu consolidar-se com o lançamento<br />

do movimento stakhanovista, do nome do mineiro Aleksei Stakhanov,<br />

<strong>em</strong>érito quebrador <strong>de</strong> recor<strong>de</strong>s e das normas <strong>de</strong> produção nas minas <strong>de</strong> carvão.<br />

Os gran<strong>de</strong>s beneficiários estavam na cúpula da pirâmi<strong>de</strong> social: funcionários<br />

graduados da máquina estatal e do aparelho partidário, dirigentes <strong>de</strong><br />

<strong>em</strong>presas, engenheiros, administradores, pesquisadores, planejadores, oficiais<br />

das forças armadas, professores, médicos e técnicos qualificados. Compreendiam,<br />

segundo diferentes cálculos, <strong>de</strong> 7 milhões a 13 milhões <strong>de</strong> pessoas, ou<br />

seja, entre 4 a 7,5% da população total. Molotov, <strong>em</strong> 1939, falou <strong>de</strong> 9,5<br />

milhões. Quadros do partido, do exército e da polícia (1,5 milhão), chefes <strong>de</strong><br />

<strong>em</strong>presas rurais e urbanas (1,7 milhão), engenheiros e técnicos qualificados<br />

(1 milhão), aí estava o núcleo dos novos gestores, dos que <strong>de</strong>cidiam.<br />

Os novos gestores correspondiam a 21% dos <strong>de</strong>legados ao XVII Congresso<br />

do Partido Comunista da União Soviética, <strong>em</strong> 1934. Cinco anos mais tar<strong>de</strong>,<br />

<strong>em</strong> 1938, quando se reuniu o XVIII Congresso, já seriam 54% dos <strong>de</strong>legados.<br />

Também neste ano, 70% dos novos recrutas originavam-se <strong>de</strong>sse setor,<br />

enquanto os operários, ligados diretamente à produção, não passavam <strong>de</strong> 15%<br />

do total <strong>de</strong> filiados. Nas altas esferas, o partido estimulava o recrutamento. O<br />

inverso também era verda<strong>de</strong>iro: tornou-se difícil ace<strong>de</strong>r a um alto cargo se o<br />

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candidato não possuísse a carteira <strong>de</strong> filiado. Assim, <strong>em</strong> fins dos anos 1930,<br />

97% dos diretores <strong>de</strong> fábricas, 82% dos chefes na construção civil, 40% dos<br />

engenheiros do país pertenciam aos quadros do partido. Enquanto isso, <strong>em</strong><br />

1941, às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial, apenas 6% dos<br />

filiados estariam diretamente vinculados à produção.<br />

Observe-se, fato notável, que quase meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses que ocupavam posições<br />

<strong>de</strong> prestígio e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r era originária <strong>de</strong> famílias operárias ou camponesas.<br />

Alguns falariam <strong>em</strong> “plebeização” do po<strong>de</strong>r. Outros, na <strong>em</strong>ergência<br />

<strong>de</strong> uma “suboficialida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> intelectuais (Malia, 1994).<br />

Em busca do futuro, o salto para a frente promoveu a interpenetração <strong>de</strong><br />

épocas, o entrecruzamento <strong>de</strong> estágios <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. O mujique é<br />

apresentado ao trator norte-americano, cujo <strong>de</strong>senho e cuja concepção foram<br />

adquiridos e adotados, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre com sucesso, consi<strong>de</strong>rando-se a<br />

diferença <strong>de</strong> circunstâncias. O trabalho compulsório combinava-se com a<br />

técnica mais refinada, importada na pessoa <strong>de</strong> engenheiros e técnicos estrangeiros.<br />

Os praktiki e os engenheiros. A marreta tradicional e as máquinas<br />

mais mo<strong>de</strong>rnas, importadas da Al<strong>em</strong>anha e dos Estados Unidos.<br />

Uma socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> movimento, “areias movediças”. Como dar um sentido<br />

a esse moto contínuo? A esse re<strong>de</strong>moinho permanente?<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

CHALAMOV, V. Récits <strong>de</strong> la Kolima. Paris/Fayard, La Découverte, 1986.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 145<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

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146<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 146<br />

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O petróleo do Golfo Pérsico,<br />

ponto-chave da estratégia<br />

global dos Estados Unidos 1<br />

Igor Fuser 2<br />

Igor Fuser<br />

Em cada três barris <strong>de</strong> petróleo existentes no subsolo do planeta como<br />

reservas que po<strong>de</strong>m ser extraídas no futuro, dois estão situados no Oriente<br />

Médio, mais precisamente num restrito grupo <strong>de</strong> seis países: Arábia Saudita,<br />

Irã, Iraque, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Bahrain. O controle <strong>de</strong>ssas<br />

reservas t<strong>em</strong> lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na estratégia do governo <strong>de</strong> George W. Bush<br />

para a consolidação da heg<strong>em</strong>onia mundial dos Estados Unidos. A meta<br />

prioritária da política <strong>de</strong> energia <strong>de</strong> Washington, formulada <strong>em</strong> 2001 por<br />

um grupo <strong>de</strong> trabalho sob a coor<strong>de</strong>nação do vice-presi<strong>de</strong>nte Dick Cheney,<br />

é aumentar a oferta mundial <strong>de</strong> combustíveis por meio <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong>stinadas<br />

a fazer com que os países produtores intensifiqu<strong>em</strong> a exploração das<br />

reservas <strong>de</strong> petróleo e <strong>de</strong> gás natural, passando a exportar esses recursos <strong>de</strong><br />

acordo com a máxima capacida<strong>de</strong> possível. Os Estados Unidos estão dispostos<br />

a fazer uso <strong>de</strong> sua influência para obter a abertura dos recursos energéticos<br />

<strong>de</strong>sses países aos investimentos das <strong>em</strong>presas transnacionais. Para o governo<br />

Bush, mais do que para qualquer um <strong>de</strong> seus antecessores, energia e segurança<br />

são dois conceitos estreitamente associados. Nesse contexto, a invasão<br />

do Iraque faz sentido a partir do objetivo – viável ou não – <strong>de</strong> substituir um<br />

regime hostil por outro, sob influência norte-americana, no país que possui<br />

a segunda maior reserva <strong>de</strong> petróleo do mundo.<br />

1 Este trabalho foi elaborado a partir da dissertação <strong>de</strong> mestrado O petróleo e o envolvimento militar dos<br />

Estados Unidos no Golfo Pérsico (1945-2000), <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Igor Fuser, <strong>de</strong>fendida e aprovada no Programa<br />

<strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> Relações Internacionais Santiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2005, com orientação do professor Luís Fernando Ayerbe.<br />

2 Mestre <strong>em</strong> Relações Internacionais e doutorando <strong>em</strong> ciência política na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />

É professor <strong>de</strong> jornalismo na Faculda<strong>de</strong> Cásper Líbero e autor dos livros México <strong>em</strong> transe (São Paulo,<br />

Scritta, 1995) e Geopolítica – O mundo <strong>em</strong> conflito (São Paulo, Salesiana, 2006).<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

1. BUSH E OS NEOCONSERVADORES<br />

O governo republicano iniciado <strong>em</strong> 2001 adotou um conjunto <strong>de</strong> proposições<br />

que têm como espinha dorsal o uso da força militar para impedir o<br />

surgimento <strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong>safio ao exercício absoluto da supr<strong>em</strong>acia dos<br />

Estados Unidos. Na nova política externa <strong>de</strong> Washington, a coerção passa a<br />

ser encarada, <strong>de</strong> forma cada vez mais explícita, como o caminho para resolver<br />

as mais diversas questões. Nas palavras do vice-presi<strong>de</strong>nte Dick Cheney,<br />

mentor do presi<strong>de</strong>nte <strong>em</strong> assuntos exteriores, “a força faz a diplomacia avançar<br />

<strong>de</strong> um modo mais eficaz”.<br />

As linhas essenciais da política externa <strong>de</strong> George W. Bush tinham sido<br />

lançadas uma década antes, quando Cheney, secretário da Defesa no governo<br />

<strong>de</strong> Bush pai, formou um grupo <strong>de</strong> trabalho, sob a coor<strong>de</strong>nação do então<br />

subsecretário Paul Wolfowitz, para repensar a posição dos Estados Unidos no<br />

cenário mundial após a dissolução da URSS (União das Repúblicas Socialistas<br />

Soviéticas) e a vitória norte-americana na Guerra do Golfo. A versão original<br />

do documento ainda circulava reservadamente entre funcionários graduados<br />

do Pentágono quando uma cópia foi parar <strong>em</strong> po<strong>de</strong>r do The New York<br />

Times, que a publicou, provocando uma gran<strong>de</strong> polêmica. Em sua passag<strong>em</strong><br />

mais importante, o texto <strong>de</strong>finia a priorida<strong>de</strong> da estratégia norte-americana:<br />

148<br />

“Nosso primeiro objetivo é prevenir o ressurgimento <strong>de</strong><br />

um novo rival. Essa é uma consi<strong>de</strong>ração dominante que<br />

permeia a nova estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa regional e requer um<br />

esforço para impedir que alguma potência hostil venha a<br />

dominar alguma região cujos recursos sejam suficientes<br />

para, uma vez consolidado esse controle, gerar um po<strong>de</strong>rio<br />

global” (USA Today e Los Angeles Times, 2004).<br />

O documento afirma, enfaticamente, que os Estados Unidos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> evitar<br />

que os <strong>de</strong>mais países industrializados venham a <strong>de</strong>safiar a li<strong>de</strong>rança norte-americana.<br />

Para isso, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a criação <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong>stinados a dissuadir<br />

“os potenciais competidores <strong>de</strong> sequer aspirar a um papel mais importante<br />

<strong>em</strong> escala regional ou global”. A ameaça <strong>de</strong> “rivais europeus” é<br />

mencionada explicitamente, assim como a da Rússia e a da China. O esbo-<br />

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Igor Fuser<br />

ço elaborado por Wolfowitz também <strong>de</strong>clara que os Estados Unidos <strong>de</strong>v<strong>em</strong><br />

estar preparados para agir unilateralmente <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus interesses,<br />

quando necessário, recorrendo até mesmo a ataques preventivos contra seus<br />

adversários. O rascunho, divulgado s<strong>em</strong> permissão, provocou protestos <strong>de</strong>ntro<br />

e fora dos Estados Unidos. Os críticos, na maioria europeus, mostraram<br />

indignação com o papel auto-atribuído pelos Estados Unidos <strong>de</strong> “polícia do<br />

mundo” e com a subordinação dos aliados a uma posição <strong>de</strong> segunda classe<br />

numa or<strong>de</strong>m mundial dominada pelos norte-americanos. A celeuma levou<br />

o Pentágono a abrandar a versão final do texto, eliminando o apelo ostensivo<br />

à dominação global. O assunto <strong>de</strong>sapareceu com a vitória eleitoral <strong>de</strong><br />

Bill Clinton, mas voltou à tona no final <strong>de</strong> seu governo. Durante a campanha<br />

eleitoral para a escolha <strong>de</strong> seu sucessor, um centro <strong>de</strong> estudos pouco<br />

conhecido lançou, <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2000, o documento Reconstruindo as<br />

<strong>de</strong>fesas da América, que retoma as propostas do esboço do Pentágono <strong>de</strong><br />

1992: “Os Estados Unidos são a única superpotência no mundo. A gran<strong>de</strong><br />

estratégia da América <strong>de</strong>ve ter como meta preservar e ampliar essa posição<br />

vantajosa pelo maior t<strong>em</strong>po possível no futuro”.<br />

O texto foi preparado por um influente grupo <strong>de</strong> estrategistas republicanos<br />

que adotou a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> Projeto por um Novo Século Americano<br />

(Project for the New American Century – PNAC). Entre os integrantes do<br />

PNAC estavam futuros integrantes do governo <strong>de</strong> George W. Bush, como<br />

Dick Cheney (vice-presi<strong>de</strong>nte), Paul Wolfowitz (subsecretário da Defesa e,<br />

no segundo mandato, presi<strong>de</strong>nte do Banco Mundial) e Donald Rumsfeld<br />

(secretário da Defesa). O presi<strong>de</strong>nte do PNAC era William Kristol, o editor<br />

da revista Weekly Standard, o principal reduto das posições políticas<br />

neoconservadoras. Essas propostas se tornaram diretrizes políticas oficiais<br />

após os atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2001, quando Bush, <strong>de</strong>ixando para<br />

trás o período inicial <strong>de</strong> relativa in<strong>de</strong>finição, adotou uma linha <strong>de</strong> conduta<br />

agressiva e <strong>de</strong>claradamente unilateral. A nova estratégia <strong>de</strong> segurança dos<br />

Estados Unidos foi anunciada por Bush <strong>em</strong> julho <strong>de</strong> 2002 e ganhou formato<br />

oficial, dois meses <strong>de</strong>pois, no documento intitulado Estratégia <strong>de</strong> segurança<br />

nacional dos Estados Unidos da América. A Doutrina Bush, aí anunciada,<br />

relega a segundo plano todo o sist<strong>em</strong>a internacional <strong>de</strong> tratados (como<br />

o Protocolo <strong>de</strong> Kyoto sobre o meio ambiente, que Bush renegou logo <strong>de</strong>pois<br />

da posse) e <strong>de</strong> organizações multilaterais que constitu<strong>em</strong> a espinha<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

dorsal da or<strong>de</strong>m mundial estabelecida após a Segunda Guerra Mundial sob<br />

a li<strong>de</strong>rança dos próprios Estados Unidos. Agora, a soberania dos Estados<br />

Unidos se torna mais absoluta do que nunca, ao passo que a dos <strong>de</strong>mais<br />

países, sobretudo daqueles que <strong>de</strong>safi<strong>em</strong> os padrões <strong>de</strong> conduta traçados <strong>em</strong><br />

Washington, é condicionada aos critérios dos Estados Unidos, que po<strong>de</strong>m<br />

revogar esse direito por conta própria (Ikenberry, 2002/2003). O governo<br />

norte-americano reivindica também o direito <strong>de</strong> lançar ataques pre<strong>em</strong>ptivos 3<br />

contra qualquer país hostil que possua “armas <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>em</strong> massa”. No<br />

plano econômico, a nova estratégia <strong>de</strong> segurança nacional também advoga a<br />

maior liberda<strong>de</strong> para os negócios norte-americanos, nos marcos <strong>de</strong> uma<br />

globalização capitalista acelerada: os Estados Unidos vão “usar este momento<br />

<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>” para esten<strong>de</strong>r os “mercados livres e o livre comércio<br />

para cada canto do mundo” e promover a “alocação eficiente <strong>de</strong> recursos e a<br />

integração regional”.<br />

2. O PETRÓLEO DO GOLFO PÉRSICO, PRIORIDADE ESTRATÉGICA<br />

A re<strong>de</strong>finição da estratégia norte-americana trouxe fortes implicações para<br />

o componente energético da política <strong>de</strong> segurança nacional, na medida <strong>em</strong><br />

que as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> segurança e energia estão vinculadas entre si. A<br />

securitização do acesso dos Estados Unidos às fontes <strong>de</strong> energia explica<br />

a ênfase <strong>de</strong>stinada ao Golfo Pérsico nos documentos <strong>de</strong> política externa a<br />

partir da promulgação da Doutrina Carter, no início <strong>de</strong> 1980. Em resposta<br />

à Revolução Islâmica, que <strong>de</strong>rrubou o regime pró-americano do xá Reza<br />

Pahlevi e o substituiu por uma teocracia xiita fort<strong>em</strong>ente hostil aos Estados<br />

Unidos, o presi<strong>de</strong>nte Jimmy Carter anunciou naquela ocasião que os Estados<br />

Unidos consi<strong>de</strong>ravam o Golfo Pérsico uma região <strong>de</strong> seu “interesse vital”<br />

e que estariam dispostos a <strong>de</strong>fendê-la por “todos os meios necessários,<br />

inclusive a força militar” (Carter, 1980).<br />

3 O ataque pre<strong>em</strong>ptivo é a resposta a uma ameaça iminente e que po<strong>de</strong> ser claramente <strong>de</strong>monstrada,<br />

tal como a concentração <strong>de</strong> tropas numa fronteira ou o posicionamento <strong>de</strong> mísseis voltados para<br />

<strong>de</strong>terminada direção. Já a prevenção é uma resposta a uma ameaça que não se manifesta claramente<br />

e que po<strong>de</strong>, na melhor das hipóteses, ser apenas presumida. A invasão do Iraque pelos Estados<br />

Unidos e outros países, <strong>em</strong> 2003, foi tipicamente um ataque preventivo, e não pre<strong>em</strong>ptivo.<br />

150<br />

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Sucessivos documentos oficiais das gestões <strong>de</strong> George Bush (pai) e <strong>de</strong> Bill<br />

Clinton reafirmam os termos da Doutrina Carter – uma diretriz <strong>de</strong> política<br />

externa que já foi classificada como uma Doutrina Monroe específica para o<br />

Oriente Médio. Em agosto <strong>de</strong> 1991, um relatório encaminhado pelo presi<strong>de</strong>nte<br />

Bush (pai) ao Congresso comenta o sucesso dos Estados Unidos <strong>em</strong><br />

reverter a agressão iraquiana ao Kuwait e salienta a “po<strong>de</strong>rosa continuida<strong>de</strong>”<br />

da política norte-americana para a região, que inclui entre as suas preocupações<br />

estratégicas “a manutenção <strong>de</strong> um livre fluxo <strong>de</strong> petróleo” (National<br />

Security Strategy Report, 1991). A política externa do governo Clinton reafirmou<br />

a priorida<strong>de</strong> estratégica para o controle das fontes externas <strong>de</strong> petróleo.<br />

Nesse terreno, praticamente não há diferença entre as concepções dos<br />

governantes <strong>de</strong>mocratas e republicanos. Os partidos e as correntes i<strong>de</strong>ológicas<br />

que passaram pela Casa Branca nas últimas décadas atribuíram importância<br />

central ao Golfo Pérsico e a seus recursos petrolíferos. A diferença<br />

resi<strong>de</strong> na ênfase que os neoconservadores <strong>de</strong>positam no petróleo como ingrediente<br />

da heg<strong>em</strong>onia mundial. Bush filho atribui mais importância ao<br />

controle dos suprimentos <strong>de</strong> petróleo do que seus antecessores.<br />

O documento oficial da Doutrina Bush inclui entre as tarefas da política<br />

externa norte-americana a <strong>de</strong> “realçar a segurança energética”:<br />

“Vamos fortalecer nossa própria segurança energética e a<br />

prosperida<strong>de</strong> compartilhada da economia global trabalhando<br />

com nossos aliados, parceiros comerciais e produtores<br />

<strong>de</strong> energia para expandir as fontes e os tipos <strong>de</strong> energia<br />

disponíveis <strong>em</strong> escala global, especialmente no H<strong>em</strong>isfério<br />

Oci<strong>de</strong>ntal, na África, na Ásia Central e na região do Mar<br />

Cáspio” (The National Security Strategy of the United States<br />

of America, 2002).<br />

A segurança, portanto, só po<strong>de</strong> ser obtida a partir <strong>de</strong> iniciativas estratégicas.<br />

Esse é o ponto central da política norte-americana <strong>de</strong> energia. Na avaliação<br />

do cientista político Michael Klare, as <strong>de</strong>cisões do governo Bush (filho)<br />

relacionadas com instalações militares e com operações bélicas no exterior<br />

revelam a priorida<strong>de</strong> ostensiva para as regiões periféricas que abrigam<br />

reservas significativas <strong>de</strong> petróleo, como o Golfo Pérsico e a Ásia Central.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

“Na prática, está se tornando cada vez mais difícil distinguir as operações<br />

militares dos Estados Unidos concebidas para combater o terrorismo daquelas<br />

concebidas para proteger os recursos <strong>de</strong> energia”, escreveu Klare (2004,<br />

p. 73). Para Andrew Bacevich, um crítico das intervenções militares norteamericanas<br />

no exterior, “o uso do po<strong>de</strong>r das armas para garantir o predomínio<br />

norte-americano no Oriente Médio, especialmente no Golfo Pérsico,<br />

rico <strong>em</strong> petróleo, permanece como a essência da política dos Estados Unidos<br />

para a região” (Bacevich, 2005, p. 201). Avaliação s<strong>em</strong>elhante foi<br />

publicada na revista Foreign Affairs por Kenneth Pollack, um estrategista <strong>de</strong><br />

posições opostas às <strong>de</strong> Bacevich. Pollack se <strong>de</strong>stacou nos meses que prece<strong>de</strong>ram<br />

a invasão do Iraque como um dos mais entusiasmados <strong>de</strong>fensores da<br />

ação militar. Em 2003, logo <strong>de</strong>pois da ocupação daquele país, ele escreveu:<br />

152<br />

“O interesse principal dos Estados Unidos no Golfo Pérsico<br />

resi<strong>de</strong> <strong>em</strong> garantir um fluxo livre e estável do petróleo da<br />

região para o mundo como um todo. [...] O motivo pelo<br />

qual os Estados Unidos têm um interesse legítimo e crítico<br />

<strong>em</strong> ver que o petróleo do Golfo Pérsico continue a fluir<br />

copiosamente e por um preço relativamente barato é simplesmente<br />

que a economia global construída nos últimos<br />

50 anos repousa sobre a fundação <strong>de</strong> um petróleo barato e<br />

abundante. Se essa fundação for r<strong>em</strong>ovida, a economia global<br />

<strong>de</strong>smoronará” (Pollack, 2003).<br />

Como é possível encaixar essa situação vulnerável na imag<strong>em</strong> que as autorida<strong>de</strong>s<br />

dos Estados Unidos tentam construir <strong>de</strong> seu país como um po<strong>de</strong>roso<br />

heg<strong>em</strong>on – uma “hiperpotência”, no neologismo do ex-chanceler francês<br />

Hubert Védrine – capaz <strong>de</strong> usar a força militar para impor suas preferências<br />

<strong>em</strong> qualquer lugar do planeta? Para Klare, a <strong>de</strong>pendência do combustível<br />

importado é o “calcanhar-<strong>de</strong>-aquiles” do império norte-americano. É significativo,<br />

nesse sentido, que o cientista político Michael Ignatieff, no ensaio<br />

<strong>em</strong> que saúda o surgimento <strong>de</strong> um “imperialismo” norte-americano como<br />

algo ao mesmo t<strong>em</strong>po inevitável e positivo no cenário mundial pós-Guerra<br />

Fria, aponte o Golfo Pérsico, <strong>de</strong>vido a suas imensas reservas <strong>de</strong> petróleo,<br />

como “o centro <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> do império” (Ignatieff, 2003). Em resumo, o<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 152<br />

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petróleo do Golfo Pérsico é um instrumento fundamental na conquista e<br />

no exercício da heg<strong>em</strong>onia – justamente o ponto central da chamada Doutrina<br />

Bush.<br />

3. A BUSCA DA “MÁXIMA EXTRAÇÃO”<br />

A primeira missão <strong>de</strong> Cheney como vice-presi<strong>de</strong>nte foi <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r<br />

uma revisão abrangente da política energética dos Estados Unidos. Para<br />

tanto, ele pediu ajuda a James Baker, secretário <strong>de</strong> Estado na gestão <strong>de</strong><br />

Bush pai. Na década <strong>de</strong> 1990, após o <strong>de</strong>ixar o governo, Baker montou<br />

um centro <strong>de</strong> estudos, o James Baker III Institute for Public Policy, <strong>em</strong><br />

Houston. Esse instituto reuniu um grupo <strong>de</strong> especialistas que apresentou,<br />

<strong>em</strong> abril <strong>de</strong> 2001, um relatório intitulado <strong>Política</strong> estratégica <strong>de</strong><br />

energia – Desafios para o século XXI (Strategic Energy Policy..., 2001). O<br />

texto, conhecido como Relatório Baker, serviu <strong>de</strong> base para a elaboração<br />

da política para o setor. O relatório nota que a capacida<strong>de</strong> ociosa da<br />

Organização dos Países Exportadores <strong>de</strong> Petróleo (OPEP), equivalente<br />

<strong>em</strong> 1985 a 25% da <strong>de</strong>manda global, tinha caído <strong>em</strong> 1990 para 8%,<br />

chegando a 2001 com apenas 2% <strong>de</strong>sse total. Nessas condições, “a escassez<br />

é endêmica”. S<strong>em</strong> uma marg<strong>em</strong> a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> disponível,<br />

afirma o estudo, episódios <strong>de</strong> aperto nos suprimentos e <strong>de</strong> alta abrupta<br />

<strong>de</strong> preços continuarão a ocorrer: “O mundo atual está precariamente<br />

próximo <strong>de</strong> utilizar toda sua capacida<strong>de</strong> global disponível <strong>de</strong> produção<br />

<strong>de</strong> petróleo, aumentando os riscos <strong>de</strong> uma crise <strong>de</strong> suprimento com<br />

conseqüências mais graves do que há três décadas”.<br />

A situação no Iraque merece especial atenção no Relatório Baker. As sanções<br />

econômicas ao Iraque, <strong>em</strong> vigor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a invasão do Kuwait <strong>em</strong> 1990,<br />

foram avaliadas como prejudiciais aos interesses dos Estados Unidos. Por<br />

um lado, essas sanções foram apontadas como ineficazes, na medida <strong>em</strong> que<br />

o regime <strong>de</strong> Saddam Hussein se mostrava capaz <strong>de</strong> contornar as restrições<br />

por meio do contrabando, obtendo assim uma receita extra que lhe permitiria,<br />

segundo o relatório, intimidar os países vizinhos e adquirir ou <strong>de</strong>senvolver<br />

“armas <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>em</strong> massa”. Por outro lado, o documento i<strong>de</strong>ntifica<br />

como probl<strong>em</strong>a as restrições ao ingresso do petróleo iraquiano no<br />

mercado internacional e à exploração das imensas reservas existentes naque-<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 153<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

le país, no contexto <strong>de</strong> uma oferta <strong>de</strong> combustível cada vez mais escassa. Em<br />

resumo, os Estados Unidos precisariam do petróleo iraquiano por motivos<br />

<strong>de</strong> segurança econômica, mas, por uma questão <strong>de</strong> segurança política e<br />

militar, não po<strong>de</strong>riam permitir que Saddam <strong>de</strong>senvolvesse sua produção.<br />

S<strong>em</strong> chegar a propor explicitamente o uso da força militar para promover<br />

uma “mudança <strong>de</strong> regime” no Iraque, o relatório esboça um cenário que<br />

<strong>de</strong>ixa pouco espaço para outra opção.<br />

O Relatório Baker serviu <strong>de</strong> base para as discussões <strong>de</strong> outro grupo <strong>de</strong><br />

especialistas, que se reuniu, sob a coor<strong>de</strong>nação do próprio Cheney, para<br />

elaborar uma nova política <strong>de</strong> energia para os Estados Unidos. Essa forçatarefa<br />

produziu um relatório que foi adotado pela Casa Branca como orientação<br />

oficial <strong>em</strong> maio <strong>de</strong> 2001 (Reliable, Affordable, and Environmentally<br />

Sound Energy..., 2001). Em lugar das ações conservacionistas, encaradas<br />

como fúteis ou utópicas, o governo norte-americano adotou na busca da<br />

segurança energética uma política que Michael Klare <strong>de</strong>finiu, <strong>em</strong> seu livro<br />

Blood and Oil, como “a estratégia da máxima extração”. Trata-se, <strong>em</strong> síntese,<br />

<strong>de</strong> garantir uma oferta <strong>de</strong> combustíveis cada vez maior, <strong>de</strong>ntro e fora dos<br />

Estados Unidos, para evitar o duplo risco da escassez e da disparada dos<br />

preços. Escreve Klare:<br />

154<br />

“A estratégia da máxima extração requer que as autorida<strong>de</strong>s<br />

norte-americanas exort<strong>em</strong> os regimes amigos a abrir<br />

seus setores <strong>de</strong> energia aos investimentos <strong>de</strong> companhias<br />

estrangeiras que irão viabilizar o acesso a tecnologias avançadas<br />

<strong>de</strong> perfuração e exploração. [...] Embora essas <strong>em</strong>presas<br />

possam <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhar certas funções, outras tarefas<br />

– incluindo o esforço crítico <strong>de</strong> persuadir os principais<br />

produtores do Golfo Pérsico a abrir seus setores <strong>de</strong> energia<br />

ao investimento <strong>de</strong> fora – teriam <strong>de</strong> caber ao corpo diplomático<br />

e a outras altas autorida<strong>de</strong>s dos Estados Unidos”<br />

(Klare, 2004, p. 83).<br />

A <strong>Política</strong> Nacional <strong>de</strong> Energia, anunciada por Bush no documento que<br />

ficaria conhecido como Relatório Cheney, admite s<strong>em</strong> ro<strong>de</strong>ios que a economia<br />

norte-americana continuará a consumir uma parcela altamente <strong>de</strong>spro-<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 154<br />

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porcional dos recursos naturais do planeta: “Nossa prosperida<strong>de</strong> e nosso<br />

modo <strong>de</strong> vida são sustentados pelo uso <strong>de</strong> energia”, afirma. Em vez <strong>de</strong> uma<br />

redução no consumo <strong>de</strong> combustíveis, o Relatório Cheney <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, <strong>em</strong><br />

primeiro lugar, a redução do crescimento da <strong>de</strong>pendência norte-americana<br />

do petróleo importado por meio do aumento da produção doméstica 4 . Em<br />

segundo lugar, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> constatar que mesmo a exploração <strong>de</strong> áreas atualmente<br />

protegidas por leis ambientais não será suficiente para reduzir essa<br />

<strong>de</strong>pendência, o documento apresenta sua meta mais importante – a busca<br />

<strong>de</strong> fontes adicionais <strong>de</strong> combustível <strong>em</strong> outros lugares do mundo.<br />

O Relatório Cheney não <strong>de</strong>ixa dúvidas sobre o fato <strong>de</strong> que a produção<br />

doméstica <strong>de</strong> petróleo nos Estados Unidos não chegará n<strong>em</strong> perto <strong>de</strong> alcançar<br />

o consumo. O mesmo vale para o gás natural. Portanto, o país terá <strong>de</strong><br />

importar quantida<strong>de</strong>s cada vez maiores <strong>de</strong>sses dois combustíveis essenciais<br />

para a sua economia. Adverte o relatório:<br />

“Nos próximos 20 anos o consumo <strong>de</strong> petróleo dos Estados<br />

Unidos vai crescer 33%, o consumo <strong>de</strong> gás natural<br />

mais <strong>de</strong> 50% e a <strong>de</strong>manda por eletricida<strong>de</strong> crescerá 45%.<br />

Se a produção <strong>de</strong> energia dos Estados Unidos aumentar na<br />

mesma taxa que nos anos 1990, enfrentar<strong>em</strong>os uma <strong>de</strong>fasag<strong>em</strong><br />

cada vez maior” (Reliable, Affordable, and Environmentally<br />

Sound Energy..., 2001).<br />

O texto conclui que, se as tendências atuais for<strong>em</strong> mantidas, os Estados<br />

Unidos importarão dois terços do seu petróleo <strong>em</strong> vinte anos. Descarta-se,<br />

aí, a busca da auto-suficiência norte-americana <strong>em</strong> energia, já tentada, s<strong>em</strong><br />

sucesso, por Nixon e Carter na década <strong>de</strong> 1970. Na visão das autorida<strong>de</strong>s<br />

norte-americanas, os múltiplos laços que ligam os Estados Unidos à economia<br />

mundial tornam irrelevante a idéia <strong>de</strong> garantir os suprimentos <strong>de</strong> ener-<br />

4 O Relatório Cheney toca num t<strong>em</strong>a altamente polêmico, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a exploração das gran<strong>de</strong>s<br />

reservas <strong>de</strong> petróleo existentes na Área Nacional <strong>de</strong> Proteção Ambiental no Ártico, uma imensa<br />

reserva ecológica no Alasca. O movimento ambientalista luta para impedir a instalação <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas<br />

petrolíferas nessa região.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

gia para o mercado interno s<strong>em</strong> levar <strong>em</strong> conta o conjunto do sist<strong>em</strong>a capitalista<br />

mundial.<br />

A solução proposta pelo Relatório Cheney é ganhar acesso, influência e<br />

controle das fontes <strong>de</strong> energia no mundo inteiro. “A segurança energética<br />

nacional <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> suprimentos <strong>de</strong> energia suficiente para dar suporte ao<br />

crescimento econômico norte-americano e global”, afirma (ibi<strong>de</strong>m). A principal<br />

recomendação é um maior envolvimento do governo no esforço para<br />

ampliar a oferta global <strong>de</strong> suprimentos <strong>de</strong> petróleo e <strong>de</strong> gás natural por<br />

meio da “abertura <strong>de</strong> novas áreas para a exploração e o <strong>de</strong>senvolvimento ao<br />

redor do globo”. O documento dá priorida<strong>de</strong> à busca do acesso norte-americano<br />

às fontes <strong>de</strong> petróleo no exterior e sugere que o governo dos Estados<br />

Unidos pressione os países produtores <strong>de</strong> combustíveis a revogar parcial ou<br />

totalmente as leis adotadas no período da nacionalização das concessões<br />

petrolíferas, que estabelec<strong>em</strong> o monopólio <strong>de</strong> seus respectivos Estados nacionais<br />

na exploração das reservas <strong>de</strong> petróleo.<br />

Na essência, o cenário petroleiro internacional – que t<strong>em</strong> no seu centro<br />

os países produtores do Golfo Pérsico – se tornou o terreno para o qual<br />

conflu<strong>em</strong> objetivos fundamentais dos Estados Unidos <strong>em</strong> três campos diferentes:<br />

a segurança energética, a consolidação da heg<strong>em</strong>onia internacional e<br />

os interesses econômicos das <strong>em</strong>presas norte-americanas.<br />

4. A INVASÃO DO IRAQUE<br />

Os documentos sobre política energética elaborados no início do governo<br />

<strong>de</strong> George W. Bush ressaltam o vínculo entre a energia e a estratégia<br />

militar. À medida que se aprofunda a <strong>de</strong>pendência dos Estados Unidos –<br />

e da economia capitalista mundial – <strong>em</strong> relação ao petróleo importado,<br />

aumenta a importância da força militar para garantir os suprimentos <strong>de</strong><br />

combustível <strong>em</strong> quantida<strong>de</strong>s e preços a<strong>de</strong>quados. É nesse contexto que<br />

<strong>de</strong>ve ser entendida a invasão do Iraque. A idéia <strong>de</strong> usar a força militar para<br />

promover uma “mudança <strong>de</strong> regime” no Iraque já vinha sendo acalentada<br />

muito antes dos atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2001 pelos políticos e<br />

estrategistas neoconservadores agrupados no PNAC. Logo após sua formação,<br />

<strong>em</strong> 1997, o PNAC começou a pressionar a Casa Branca por uma<br />

ação militar contra o Iraque. Uma carta enviada por integrantes <strong>de</strong>sse<br />

156<br />

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grupo ao presi<strong>de</strong>nte Clinton <strong>em</strong> janeiro <strong>de</strong> 1998 pe<strong>de</strong> a “r<strong>em</strong>oção do<br />

regime <strong>de</strong> Saddam Hussein do po<strong>de</strong>r”, argumentando que as sanções não<br />

são suficientes para impedir o regime iraquiano <strong>de</strong> produzir “armas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>struição <strong>em</strong> massa”, o que teria “um efeito grav<strong>em</strong>ente <strong>de</strong>sestabilizador<br />

<strong>em</strong> todo o Oriente Médio”. A carta adverte que, se os Estados Unidos não<br />

adotar<strong>em</strong> uma atitu<strong>de</strong> mais agressiva <strong>em</strong> relação ao Iraque, “uma porção<br />

significativa dos suprimentos mundiais <strong>de</strong> petróleo correrá perigo”.<br />

A ascensão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte dos signatários <strong>de</strong>sse texto a altos postos<br />

na administração Bush leva a crer que a guerra dos Estados Unidos contra<br />

o Iraque já estava <strong>em</strong> gestação muito antes dos atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong><br />

set<strong>em</strong>bro. Entre as muitas informações já disponíveis sobre os antece<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>cisão, <strong>de</strong>staca-se o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Paul O’Neill, secretário<br />

do Tesouro durante os dois primeiros anos do governo. Em relato<br />

publicado <strong>em</strong> sua biografia, The Prince of Loyalty (2004), O’Neill revela<br />

que, menos <strong>de</strong> um mês <strong>de</strong>pois da posse na Casa Branca, o presi<strong>de</strong>nte e<br />

seus principais auxiliares já discutiam o uso das armas para <strong>de</strong>por Saddam.<br />

Em outro livro revelador, Contra todos os inimigos... (2004), Richard<br />

Clarke, o principal assessor da Casa Branca para o combate ao terrorismo<br />

no primeiro governo <strong>de</strong> Bush (filho), conta que, no início <strong>de</strong> 2001,<br />

alertou diversas vezes seus superiores sobre o perigo representado pela<br />

Al Qaeda, mas eles não <strong>de</strong>ram importância, pois tinham uma “idéia<br />

fixa” <strong>em</strong> relação ao Iraque. Clarke relata sua participação numa reunião<br />

na Casa Branca, horas <strong>de</strong>pois dos atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro, <strong>em</strong> que<br />

Rumsfeld propunha que se bombar<strong>de</strong>asse o Iraque, apesar <strong>de</strong> saber que a<br />

Al Qaeda – já apontada como o principal suspeito pelo ataque terrorista<br />

– estava instalada no Afeganistão.<br />

Quatro anos após a tomada <strong>de</strong> Bagdá, nenhuma evidência foi encontrada<br />

para dar fundamento às alegações <strong>de</strong> que o regime iraquiano teria<br />

ligações com a Al Qaeda ou com alguma outra organização terrorista internacional<br />

ou, ainda, que mantivesse <strong>em</strong> seu po<strong>de</strong>r ou estivesse <strong>de</strong>senvolvendo<br />

armas proibidas. Ao contrário: as revelações que vieram a público a<br />

partir <strong>de</strong> então suger<strong>em</strong>, isso sim, um esforço <strong>de</strong>liberado dos governos <strong>de</strong><br />

Washington e <strong>de</strong> Londres para manipular informações, ocultando dados<br />

relevantes ou veiculando versões falsas, a fim <strong>de</strong> obter apoio político e<br />

diplomático à guerra e <strong>de</strong> influenciar a opinião pública.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 157<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

5. UMA DISPUTA GLOBAL POR ENERGIA<br />

A questão do acesso e do controle das principais reservas <strong>de</strong> petróleo do<br />

mundo envolve uma questão que transcen<strong>de</strong> a importância puramente econômica<br />

do petróleo como commodity – envolve a disputa pelo po<strong>de</strong>r <strong>em</strong><br />

escala internacional. Se os Estados Unidos preten<strong>de</strong>m manter, como propõe<br />

a Doutrina Bush, uma posição <strong>de</strong> heg<strong>em</strong>onia mundial incontrastável,<br />

uma peça fundamental nesse projeto é sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> influenciar a distribuição<br />

dos suprimentos <strong>de</strong> energia, cada vez mais escassos, aos <strong>de</strong>mais<br />

países do mundo – e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a <strong>de</strong> impedir que esses recursos<br />

caiam <strong>em</strong> mãos <strong>de</strong> potências rivais. Em 1990, quando os Estados Unidos se<br />

preparavam para reverter a invasão do Kuwait na primeira Guerra do Golfo,<br />

Cheney afirmou que o controle sobre o petróleo do Oriente Médio proporciona<br />

a qu<strong>em</strong> o exerce uma “posição <strong>de</strong> força” sobre a economia global.<br />

Michael Klare, ao discutir a dimensão estratégica sobre o controle <strong>de</strong>sses<br />

recursos, ressalta a importância não só do Golfo Pérsico, mas das reservas<br />

petrolíferas das antigas repúblicas soviéticas do mar Cáspio:<br />

158<br />

“Ao permanecer como a potência dominante nessas áreas,<br />

os Estados Unidos po<strong>de</strong>m conseguir mais do que simplesmente<br />

a garantia <strong>de</strong> seu abastecimento futuro. Eles também<br />

po<strong>de</strong>m exercer um certo grau <strong>de</strong> controle sobre os<br />

suprimentos <strong>de</strong> energia <strong>de</strong> outros países importadores <strong>de</strong><br />

petróleo. Na medida <strong>em</strong> que esses países <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da<br />

macrorregião do Golfo–Cáspio para satisfazer suas necessida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> petróleo e <strong>de</strong> gás natural, sua segurança energética<br />

ficará vinculada à presença <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosas forças norte-americanas<br />

nesses locais” (Klare, 2004, p. 152).<br />

A perspectiva <strong>de</strong> aumento da <strong>de</strong>manda mundial por energia, s<strong>em</strong> que as<br />

regiões produtoras sejam capazes <strong>de</strong> ampliar sua oferta no mesmo ritmo, faz<br />

prever o aumento da competição pelo acesso e pelo controle das fontes <strong>de</strong><br />

suprimento. Nesse panorama, o Golfo Pérsico <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha papel estratégico.<br />

Essa região forneceu 75% do petróleo consumido no Japão <strong>em</strong> 2000.<br />

As exportações para a Europa Oci<strong>de</strong>ntal respon<strong>de</strong>m por uma parcela menor<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 158<br />

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do consumo – 45% <strong>em</strong> 2000 –, mas a <strong>de</strong>pendência européia do Golfo<br />

Pérsico <strong>de</strong>ve crescer na medida <strong>em</strong> que se esgot<strong>em</strong> suas próprias reservas no<br />

mar do Norte, atualmente <strong>em</strong> <strong>de</strong>clínio.<br />

Um ator-chave nesse cenário é a China. A rápida expansão <strong>de</strong> sua economia<br />

<strong>de</strong>mandará suprimentos <strong>de</strong> petróleo e <strong>de</strong> gás natural que ultrapassam largamente<br />

a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas reservas domésticas. A China se tornou um importador<br />

bruto <strong>de</strong> petróleo <strong>em</strong> 1993 e, <strong>de</strong> acordo as projeções da Agência<br />

<strong>Internacional</strong> <strong>de</strong> Energia, até 2030 as importações representarão 74% <strong>de</strong> sua<br />

<strong>de</strong>manda. Para se abastecer, a China terá <strong>de</strong> recorrer aos mesmos fornecedores<br />

da Europa Oci<strong>de</strong>ntal, do Japão e, numa escala cada vez maior, dos próprios<br />

Estados Unidos – o Golfo Pérsico, a bacia do mar Cáspio e a África.<br />

Diante <strong>de</strong>ssa dimensão internacional, a invasão do Iraque <strong>em</strong> 2003 po<strong>de</strong><br />

ser interpretada como parte <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> envergadura dos<br />

Estados Unidos para fortalecer sua posição energética global nas próximas<br />

décadas. Na improvável hipótese <strong>de</strong> que os Estados Unidos consigam estabilizar<br />

o Iraque e implantar nesse país um regime sob sua influência, os<br />

norte-americanos ampliarão seu controle político e militar sobre o Golfo<br />

Pérsico e a Ásia Central e dificultarão o ingresso <strong>de</strong> potências rivais nessa<br />

região. Nesse caso, o reforço <strong>de</strong> sua posição heg<strong>em</strong>ônica facilitaria o esforço<br />

<strong>de</strong> convencer os países produtores da região a ampliar as exportações até o<br />

limite <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> – tal como preconiza a política da “máxima extração”<br />

estabelecida no Relatório Cheney – e abrir suas reservas petrolíferas aos<br />

investimentos estrangeiros e, até mesmo, à privatização.<br />

6. A RESISTÊNCIA NACIONALISTA<br />

Mas essa não é uma tarefa fácil. Em seu esforço para garantir o acesso aos<br />

recursos energéticos do Golfo Pérsico – e <strong>de</strong> outras regiões do planeta – por<br />

meio do <strong>em</strong>prego crescente da força militar, os Estados Unidos <strong>de</strong>param<br />

com obstáculos <strong>de</strong> diferentes tipos. Alguns <strong>de</strong>les são <strong>de</strong> natureza estratégica<br />

e política. Outras barreiras têm a ver com o fato <strong>de</strong> que o petróleo é um<br />

recurso natural não-renovável, cuja extração obe<strong>de</strong>ce a limites <strong>de</strong> natureza<br />

física. Conforme a amarga experiência da ocupação do Iraque t<strong>em</strong> <strong>de</strong>monstrado,<br />

a supr<strong>em</strong>acia militar dos Estados Unidos é insuficiente para habilitar<br />

esse país a atingir seus objetivos <strong>de</strong> política externa. Em quatro anos <strong>de</strong><br />

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ocupação, os Estados Unidos per<strong>de</strong>ram mais <strong>de</strong> 3 mil soldados, gastaram<br />

bilhões <strong>de</strong> dólares e viram seu prestígio aos olhos do mundo e, <strong>em</strong> especial,<br />

dos habitantes dos países muçulmanos cair para o patamar mais baixo <strong>em</strong><br />

todos os t<strong>em</strong>pos. Mas não conseguiram estabilizar o Iraque n<strong>em</strong> fazer com<br />

que a produção <strong>de</strong> petróleo iraquiana alcançasse ao menos os níveis anteriores<br />

à invasão.<br />

A inclinação das autorida<strong>de</strong>s norte-americanas a superestimar as possibilida<strong>de</strong>s<br />

do po<strong>de</strong>rio militar – um traço permanente na trajetória dos Estados<br />

Unidos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Segunda Guerra Mundial – t<strong>em</strong> sido apontada por muitos<br />

autores influentes <strong>de</strong>ntro do próprio establishment norte-americano. Um dos<br />

críticos mais <strong>de</strong>stacados é o cientista político Joseph Nye, que integrou o<br />

governo <strong>de</strong> Bill Clinton como subsecretário <strong>de</strong> Defesa. Criador do conceito<br />

<strong>de</strong> soft power (o “po<strong>de</strong>r brando”), Nye adverte contra o risco <strong>de</strong> que a orientação<br />

neoconservadora do governo Bush, ao atribuir ênfase exagerada ao hard<br />

power (o “po<strong>de</strong>r duro”), venha a minar as fontes da influência i<strong>de</strong>ológica dos<br />

Estados Unidos, dificultando a obtenção do apoio <strong>de</strong> governos e <strong>de</strong> povos<br />

estrangeiros às metas da política externa norte-americana. O que liberais como<br />

Nye têm dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> admitir é que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre existe uma coincidência<br />

entre os objetivos dos Estados Unidos e os interesses nacionais dos países<br />

sobre os quais eles exerc<strong>em</strong> ou tentam exercer influência. Na questão do petróleo,<br />

esse conflito é evi<strong>de</strong>nte. É verda<strong>de</strong> que, como <strong>em</strong> toda relação comercial<br />

duradoura, existe um vasto leque <strong>de</strong> interesses comuns entre países produtores<br />

e consumidores. É do interesse mútuo a estabilida<strong>de</strong> do mercado<br />

petroleiro <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> preços que represent<strong>em</strong> um equilíbrio entre as necessida<strong>de</strong>s<br />

dos dois lados. Os exportadores não têm o menor interesse <strong>em</strong> arruinar<br />

as economias <strong>de</strong> seus clientes. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, por que motivo eles<br />

<strong>de</strong>veriam renunciar às vantagens que a posse <strong>de</strong> uma matéria-prima tão preciosa<br />

po<strong>de</strong> proporcionar? Sua lógica, que a OPEP procura traduzir <strong>em</strong> políticas<br />

específicas, rege-se pela busca <strong>de</strong> obter o máximo lucro s<strong>em</strong> prejudicar sua<br />

posição no mercado. Já os países consumidores têm interesse <strong>em</strong> manter os<br />

preços do petróleo elevados apenas num nível suficiente para estimular os<br />

novos <strong>em</strong>preendimentos <strong>de</strong> pesquisa, prospecção e exploração <strong>de</strong> reservas.<br />

A perspectiva <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>fasag<strong>em</strong> crescente entre a <strong>de</strong>manda internacional<br />

<strong>de</strong> petróleo e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> oferta dos países exportadores ten<strong>de</strong> a<br />

acirrar o conflito entre os dois pólos do mercado, sobretudo quando os<br />

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cálculos passam a incluir o esgotamento <strong>de</strong> uma matéria-prima que é a<br />

única ou a principal riqueza dos países on<strong>de</strong> ela se situa. De acordo com<br />

projeções <strong>de</strong> 2001 do Departamento <strong>de</strong> Energia (Departament of Energy<br />

– DoE) dos Estados Unidos, a produção mundial <strong>de</strong> petróleo, para aten<strong>de</strong>r<br />

ao aumento da <strong>de</strong>manda, teria <strong>de</strong> crescer <strong>de</strong> 77 milhões <strong>de</strong> barris/dia<br />

extraídos para 121 milhões <strong>de</strong> barris/dia <strong>em</strong> 2025 – cerca <strong>de</strong> 57% ou 44<br />

milhões <strong>de</strong> barris/dia. O DoE prevê que mais da meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa produção<br />

adicional virá do Golfo Pérsico e que a Arábia Saudita, sozinha, contribuirá<br />

com 12,3 milhões <strong>de</strong> barris/dia, o dobro do petróleo que t<strong>em</strong> extraído<br />

atualmente. Outros gran<strong>de</strong>s exportadores – como o Iraque, a Nigéria e a<br />

Rússia – também terão <strong>de</strong> aumentar sua produção <strong>em</strong> mais <strong>de</strong> 100% nas<br />

próximas duas décadas se quiser<strong>em</strong> dar conta da “tarefa” a eles <strong>de</strong>signada<br />

pelo governo norte-americano e por organizações internacionais como a<br />

Agência <strong>Internacional</strong> <strong>de</strong> Energia (AIE).<br />

O cenário projetado pelo DoE esbarra num probl<strong>em</strong>a que não po<strong>de</strong> ser<br />

resolvido n<strong>em</strong> pelo hard power n<strong>em</strong> pelo soft power: os limites físicos à extração.<br />

Para atingir os 44 milhões <strong>de</strong> barris/dia adicionais, ou ao menos se<br />

aproximar <strong>de</strong>ssa meta, é preciso que as <strong>em</strong>presas petroleiras <strong>de</strong>scubram novas<br />

reservas <strong>de</strong> petróleo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s proporções e que, além disso, ampli<strong>em</strong> –<br />

e muito – a produção dos poços já existentes. No entanto, as <strong>de</strong>scobertas<br />

têm ocorrido num ritmo <strong>de</strong>crescente nas últimas décadas. Novas tecnologias<br />

po<strong>de</strong>m levar à <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> poços menores ainda não <strong>de</strong>tectados após mais<br />

<strong>de</strong> um século <strong>de</strong> procura frenética por petróleo <strong>em</strong> todos os cantos do planeta,<br />

mas dificilmente acharão os poços gigantes indispensáveis ao aumento<br />

do consumo nas taxas previstas.<br />

Mesmo na ausência <strong>de</strong> qualquer obstáculo físico ao cumprimento das<br />

metas <strong>de</strong> produção da Arábia Saudita e dos <strong>de</strong>mais exportadores do Golfo<br />

Pérsico, fatores econômicos e políticos interfer<strong>em</strong> nos cálculos sobre a oferta<br />

futura <strong>de</strong> petróleo.<br />

O governo Bush, ao erigir <strong>em</strong> priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua política externa a estratégia<br />

da “máxima extração” <strong>de</strong> petróleo, leva <strong>em</strong> conta apenas os interesses<br />

norte-americanos. Para os Estados Unidos, país cuja economia está organizada<br />

com base no baixo custo do transporte a longa distância, faz sentido –<br />

<strong>em</strong>bora se possa discutir se esse é o caminho mais sensato – jogar todo o<br />

peso <strong>de</strong> sua influência internacional para garantir combustível abundante e<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

barato pelo maior t<strong>em</strong>po possível. Mas a Casa Branca, evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, não<br />

consultou os principais países exportadores para saber se a “máxima extração”<br />

é a estratégia mais conveniente também para eles.<br />

O mercado dos combustíveis fósseis, como o petróleo e o gás natural, não<br />

se rege totalmente pelas leis econômicas da oferta e da procura. Na maioria<br />

das commodities, uma alta dos preços <strong>em</strong>ite automaticamente um sinal aos<br />

agentes econômicos para que aument<strong>em</strong> a produção, o que leva o mercado<br />

a um novo ponto <strong>de</strong> equilíbrio. Essa regra se aplicou ao mercado petroleiro<br />

enquanto a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> oferta era maior do que a <strong>de</strong>manda – notoriamente,<br />

nas décadas <strong>de</strong> 1980 e 1990, quando a expansão rápida da exploração<br />

fora da OPEP coincidiu com a queda das taxas <strong>de</strong> crescimento da economia<br />

mundial, com a adoção <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> redução do consumo nos<br />

países <strong>de</strong>senvolvidos e com o ingresso <strong>de</strong> combustíveis alternativos, como a<br />

energia nuclear. O resultado foi um longo período <strong>de</strong> preços baixos <strong>de</strong>pois<br />

dos choques do petróleo na década <strong>de</strong> 1970.<br />

O contexto do início do século XXI é muito diferente. Na medida <strong>em</strong><br />

que a indústria petroleira se aproxima do ponto <strong>em</strong> que não será mais possível<br />

aumentar a extração, a alta dos preços se afirma como uma tendência<br />

irreversível. Não é mais possível ocorrer um ajuste pelo lado da <strong>de</strong>manda,<br />

pois não há substitutos viáveis para os <strong>de</strong>rivados do petróleo no setor <strong>de</strong><br />

transportes. Ao contrário do que ocorre <strong>em</strong> outros mercados, que respon<strong>de</strong>m<br />

prontamente às variações <strong>de</strong> preços, o aumento das cotações do petróleo<br />

é insuficiente para fazer com que combustíveis alternativos pass<strong>em</strong> a<br />

abastecer os automóveis, os caminhões e os aviões.<br />

Diante <strong>de</strong>sse pano <strong>de</strong> fundo, não é difícil enten<strong>de</strong>r a impaciência manifestada<br />

<strong>em</strong> documentos do governo norte-americano e <strong>de</strong> organizações sob<br />

sua forte influência, como a AIE e o Fundo Monetário <strong>Internacional</strong> (FMI),<br />

diante dos obstáculos que as políticas nacionalistas vigentes nos maiores<br />

produtores da OPEP apresentam ao ingresso do capital estrangeiro que,<br />

supostamente, aceleraria a exploração <strong>de</strong> suas reservas. Claramente, os Estados<br />

Unidos têm muito mais pressa <strong>em</strong> ver o petróleo jorrando <strong>em</strong> novos<br />

poços nos <strong>de</strong>sertos do Golfo Pérsico do que os proprietários <strong>de</strong>ssa riqueza.<br />

Cruzam-se, aí, duas gran<strong>de</strong>s tendências, com forte potencial explosivo:<br />

<strong>de</strong> um lado, a perspectiva da escassez <strong>de</strong> petróleo nos próximos anos e<br />

décadas <strong>de</strong>ixará os governantes do Golfo Pérsico sob forte pressão externa<br />

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para ajustar suas políticas <strong>de</strong> produção e preço <strong>de</strong> petróleo – e, eventualmente,<br />

as regras relativas aos direitos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> das reservas – aos<br />

interesses dos países consumidores, <strong>em</strong> especial dos Estados Unidos;<br />

por outro lado, esses mesmos governantes não po<strong>de</strong>rão <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />

a importância <strong>de</strong>cisiva do petróleo para a economia <strong>de</strong> seus países e,<br />

mais do que isso, como símbolo da in<strong>de</strong>pendência.<br />

Trata-se <strong>de</strong> um assunto altamente sensível entre as populações dos países<br />

produtores <strong>de</strong> petróleo do Golfo Pérsico. Para se ter uma idéia, o <strong>em</strong>ir<br />

do Kuwait – Estado nacional que <strong>de</strong>ve aos Estados Unidos a sua própria<br />

existência após a guerra <strong>de</strong> 1991 – teve o seu pedido <strong>de</strong> mudança na<br />

Constituição a fim <strong>de</strong> permitir o ingresso <strong>de</strong> capital estrangeiro na exploração<br />

do petróleo <strong>de</strong>rrotado pelo Parlamento do país, um órgão legislativo<br />

com po<strong>de</strong>res muito limitados <strong>em</strong> comparação com seus similares oci<strong>de</strong>ntais.<br />

Qualquer discussão sobre a “abertura” do setor <strong>de</strong> petróleo e <strong>de</strong> gás<br />

natural às <strong>em</strong>presas oci<strong>de</strong>ntais ou sobre a <strong>de</strong>finição das políticas <strong>de</strong> preços<br />

e <strong>de</strong> volume <strong>de</strong> produção <strong>de</strong>sses recursos minerais se dará num contexto<br />

fort<strong>em</strong>ente simbólico. O petróleo está estreitamente associado à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

nacional <strong>de</strong>sses países, <strong>em</strong> processo <strong>de</strong> consolidação. Os Estados<br />

Unidos, <strong>em</strong> sua corrida para garantir o controle do petróleo, corr<strong>em</strong> o<br />

risco <strong>de</strong> ter sua imag<strong>em</strong> cada vez mais associada às piores l<strong>em</strong>branças que<br />

as populações locais guardam dos t<strong>em</strong>pos, não muito distantes, da espoliação<br />

neocolonial <strong>de</strong> seu único recurso valioso pelas gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas<br />

petrolíferas oci<strong>de</strong>ntais. É difícil prever como se dará o choque entre os<br />

interesses dos Estados Unidos e as tendências nacionalistas nos próximos<br />

anos. Mas o fato é que o esforço norte-americano <strong>de</strong> aplicar no Golfo<br />

Pérsico a política da “máxima extração” ocorre <strong>em</strong> um contexto local extr<strong>em</strong>amente<br />

sensível, diante do qual o crescente envolvimento militar dos<br />

Estados Unidos não só po<strong>de</strong> se mostrar ineficaz como po<strong>de</strong> provocar novos<br />

conflitos e acirrar os já existentes.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

BACEVICH, Andrew J. The New American Militarism. Nova York/Oxford,<br />

Oxford University Press, Oxford University Press, 2005.<br />

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Beluce Bellucci<br />

Altos e baixos na África Austral<br />

1. A INTEGRAÇÃO<br />

Beluce Bellucci 1<br />

Des<strong>de</strong> o início do século XIX existiu na África Austral uma virtuosa inserção<br />

na economia-mundo. Seus produtos primários provenientes das minas<br />

e <strong>de</strong> uma agricultura mo<strong>de</strong>rna eram competitivos e as receitas daí<br />

advindas permitiam transferências <strong>de</strong> lucro e importações dos equipamentos<br />

necessários.<br />

A inserção na economia mundial pelas exportações criou re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transportes,<br />

migrações entre as fronteiras, comércio <strong>de</strong> mercadorias e transferências <strong>de</strong><br />

rendas dos migrantes aos países pobres da região. Enfim, produziu um forte<br />

movimento <strong>de</strong> capital, <strong>de</strong> mercadorias e <strong>de</strong> pessoas que permitiu integrar a<br />

região pelo setor mo<strong>de</strong>rno, diferent<strong>em</strong>ente das outras regiões africanas.<br />

Além das questões técnico-econômicas, a integração regional só foi possível<br />

pela política econômica heterodoxa, principalmente da África do Sul,<br />

levada a cabo ao longo do século XX. Essa política <strong>de</strong>dicava parte das receitas<br />

das exportações à redistribuição <strong>de</strong> rendas, à criação do Estado <strong>de</strong> B<strong>em</strong>-<br />

Estar para os brancos, à subvenção <strong>de</strong> produções não-competitivas e ao<br />

incentivo da indústria mediante a substituição <strong>de</strong> importações.<br />

O lucro das exportações era alto porque se baseava na articulação <strong>de</strong> modos<br />

<strong>de</strong> produção entre o setor capitalista e o setor doméstico. O apartheid foi a<br />

mais b<strong>em</strong> acabada expressão <strong>de</strong>ssa articulação, controlando com todo rigor<br />

os locais <strong>de</strong> residência e <strong>de</strong>slocação da população não-branca.<br />

1 Doutor <strong>em</strong> História Econômica pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, pró-reitor <strong>de</strong> graduação e diretor do<br />

CEAA (Centro <strong>de</strong> Estudos Afro-Asiáticos) da Universida<strong>de</strong> Candido Men<strong>de</strong>s, Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Por meio <strong>de</strong>sses mecanismos <strong>de</strong>senvolveu-se a indústria sul-africana, que,<br />

<strong>em</strong>bora não competitiva na economia mundial, tinha um mercado regional<br />

garantido. Nessa condição, <strong>de</strong> impulso das exportações à industrialização<br />

local, a inserção na economia mundial se tornou compatível e compl<strong>em</strong>entar<br />

à regionalização.<br />

A integração regional foi uma política <strong>de</strong> longo prazo <strong>de</strong>senvolvida pela<br />

iniciativa privada com o apoio não pouco conflituoso do Estado sul-africano.<br />

Foi a iniciativa privada sul-africana que construiu infra-estruturas, organizou<br />

o recrutamento e o alojamento dos <strong>em</strong>igrantes etc. Por sua vez, as<br />

instituições governamentais não foram tradicionalmente as instâncias essenciais<br />

da expansão regional da África do Sul. A dinâmica s<strong>em</strong>pre foi a das<br />

<strong>em</strong>presas privadas, que recebiam apoios por acordos pontuais e setoriais da<br />

política heterodoxa do governo (Coussy, 1996).<br />

As instituições regionais surgiram progressivamente:<br />

SACU (Southern African Customs Union) – União Aduaneira da África<br />

Austral, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1910, incluindo África do Sul, Botswana, Lesoto, Suazilândia<br />

e Namíbia;<br />

Zona do Rand, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1910, com os mesmos países;<br />

Fe<strong>de</strong>ração da África Central, <strong>de</strong> 1953 a 1963, incluindo as duas Rodésias<br />

e o Malawi;<br />

SADCC (Southern African Development Coordination Conference) –<br />

Conferência para a Coor<strong>de</strong>nação do Desenvolvimento da África Austral,<br />

que incluía Angola, Botswana, Lesoto, Malawi, Moçambique, Namíbia,<br />

Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue, <strong>em</strong> 1980;<br />

SADC (Southern African Development Community) – Comunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Desenvolvimento para a África Austral, com todos os países da SADCC<br />

mais a África do Sul e as ilhas Maurícias, <strong>em</strong> 1990;<br />

PTA (ou ZTP) (Preferential Tra<strong>de</strong> Area for Eastern and Southern<br />

African States) – Área ou Zona <strong>de</strong> Trocas Preferenciais, incluindo Angola,<br />

Burundi, Camarões, Djibouti, Etiópia, Quênia, Lesoto, Malawi, ilhas<br />

Maurícias, Moçambique, Namíbia, Uganda, Ruanda, Suazilândia,<br />

Somália, Sudão, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue, criada <strong>em</strong> 1981, substituído<br />

pela Comesa;<br />

Comesa (Common Market for Eastern and Southern Africa) – Mercado<br />

Comum da África Austral e Oriental, criado <strong>em</strong> 1994.<br />

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2. ESTRATÉGIAS EM CONFRONTO<br />

Beluce Bellucci<br />

A situação política na África Austral mudou no fim da década <strong>de</strong> 1970 e<br />

no início da década <strong>de</strong> 1980. A política <strong>de</strong> <strong>de</strong>sanuviamento <strong>de</strong> Vorster, na<br />

África do Sul, foi substituída pela “estratégia total” <strong>de</strong> P. W. Botha, para possibilitar<br />

a sobrevivência do apartheid. A in<strong>de</strong>pendência do Zimbábue e a criação<br />

dos países da Linha da Frente numa organização <strong>de</strong> cooperação regional<br />

(SADCC) foram interpretadas por Pretória 2 como uma gran<strong>de</strong> ameaça. Em<br />

conseqüência, iniciou-se uma política <strong>de</strong> <strong>de</strong>sestabilização militar e econômica<br />

consi<strong>de</strong>rável na região, e Moçambique foi especialmente atingido<br />

(Abrahamsson e Nilsson, 1995, p. 8).<br />

O período entre 1983 e 1986 foi marcado <strong>em</strong> Moçambique pela transição<br />

do socialismo ao capitalismo e da política <strong>de</strong>senvolvimentista para as políticas<br />

neoliberais. Foi nesse momento que a guerra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sestabilização levada a cabo<br />

pela África do Sul tomou proporções enormes, atingiu quase todas as regiões do<br />

país e formou bases internas, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a situação econômica se<br />

<strong>de</strong>teriorava a cada dia. A partir <strong>de</strong> 1987, Moçambique adotou o Programa <strong>de</strong><br />

Ajustamento Estrutural do FMI (Fundo Monetário <strong>Internacional</strong>) e do Banco<br />

Mundial. A transição terminou efetivamente <strong>em</strong> 1992, com a assinatura do<br />

acordo <strong>de</strong> paz entre o governo <strong>de</strong> Moçambique e a Renamo (Resistência Nacional<br />

Moçambicana) 3 . Nesse momento instaurou-se um regime que pôs fim ao<br />

monopartidarismo, introduziu a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentação <strong>de</strong> capital e <strong>de</strong><br />

mercadorias e reduziu substancialmente a participação do Estado na economia.<br />

Em fins <strong>de</strong> 1983, a crise financeira obrigou Moçambique a abrir novas<br />

frentes políticas e a aproximar-se mais do Oci<strong>de</strong>nte. As exigências que este<br />

fazia, por meio do Clube <strong>de</strong> Paris, eram no sentido <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento “realista que garantisse os pagamentos internacionais”; que<br />

Moçambique ingressasse no FMI e no Banco Mundial e buscasse uma apro-<br />

2 Pretória é a capital administrativa da África do Sul, on<strong>de</strong> fica o executivo; a Cida<strong>de</strong> do Cabo, a capital<br />

legislativa; e Blo<strong>em</strong>fontein, a judicial.<br />

3 Resistência Nacional Moçambicana, criada pelo governo racista <strong>de</strong> Ian Smith na Rodésia, visava a<br />

<strong>de</strong>sestabilização do governo da Frelimo (Frente <strong>de</strong> Libertação <strong>de</strong> Moçambique) mediante incursões<br />

militares. Passou a ter apoio da África do Sul após a in<strong>de</strong>pendência do Zimbábue, quando intensificou<br />

<strong>em</strong> Moçambique as ações militares. Em 1992 assinou com a Frelimo acordo <strong>de</strong> paz e participou<br />

do processo eleitoral.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

ximação com Pretória. Tal fato conduziria ao Acordo <strong>de</strong> Incomáti, <strong>em</strong> 1984,<br />

<strong>de</strong> não-agressão e boa vizinhança entre os dois governos.<br />

Com o acordo, a Frelimo (Frente <strong>de</strong> Libertação <strong>de</strong> Moçambique) pretendia<br />

evitar os ataques sul-africanos que estavam <strong>de</strong>struindo a economia<br />

moçambicana e normalizar as relações comerciais com esse país, o que substancialmente<br />

era do interesse <strong>de</strong> ambos, enquanto <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> apoiar os<br />

movimentos antiapartheid, com o que esperava atrair novas alianças oci<strong>de</strong>ntais.<br />

O acordo foi cumprido apenas por Moçambique.<br />

Com a retirada do apoio moçambicano, o Congresso Nacional Africano (CNA)<br />

viu-se obrigado a ter maior presença no interior da África do Sul e a intensificar<br />

o trabalho político <strong>de</strong> oposição clan<strong>de</strong>stina. Ao se agregar a isso a <strong>de</strong>rrota militar<br />

sul-africana <strong>em</strong> Angola no Cuíto Canavale, <strong>em</strong> 1987, po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r os <strong>de</strong>slocamentos<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na África Austral que levariam, alguns anos mais tar<strong>de</strong>, ao<br />

fim do apartheid e à ascensão <strong>de</strong> Nelson Man<strong>de</strong>la ao po<strong>de</strong>r.<br />

Em 1984, a Frelimo começou a modificar sua perspectiva socialista, motivada<br />

pela <strong>de</strong>terioração da situação econômica interna. A crise instalava-se <strong>em</strong><br />

todos os seus aspectos. As importações escasseavam, os investimentos reduziam-se,<br />

os produtos <strong>de</strong> consumo básico tornaram-se raros e os <strong>de</strong> luxo <strong>de</strong>sapareciam.<br />

A produção era diminuta, as lojas comerciais estavam vazias, o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> compra se reduzia, enquanto o comércio paralelo, com produtos<br />

contraban<strong>de</strong>ados da África do Sul, e a inflação aumentavam. As políticas socialistas<br />

foram substituídas <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po por políticas liberais.<br />

3. A CONSAS (CONSTELAÇÃO DE ESTADOS DA ÁFRICA AUSTRAL)<br />

No início dos anos 1980, a vida política da África Austral caracterizavase<br />

pela existência <strong>de</strong> duas estratégias opostas, que procuravam incorporar os<br />

Estados da região numa associação econômica para aplicar suas estratégias.<br />

De um lado a Consas, dirigida pela África do Sul, <strong>de</strong> outro a SADCC (Conferência<br />

para a Coor<strong>de</strong>nação do Desenvolvimento da África Austral).<br />

Uma política regional ativa vinha sendo preparada pela África do Sul<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Segunda Guerra Mundial, mas se intensificou sobretudo a partir<br />

dos anos 1970, com a “estratégia total” do governo Botha. Era a resposta do<br />

sist<strong>em</strong>a do apartheid às lutas populares na África do Sul e aos movimentos<br />

<strong>de</strong> libertação na região, e tinha como objetivo prolongar aquele sist<strong>em</strong>a por<br />

168<br />

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Beluce Bellucci<br />

meio da intensificação da repressão interna e <strong>de</strong> uma política externa agressiva<br />

que incluía ações políticas, econômicas e militares.<br />

O estabelecimento <strong>de</strong> uma constelação <strong>de</strong> Estados estava no programa<br />

da “estratégia total” <strong>de</strong> Botha. Já <strong>em</strong> 1977, O Livro Branco sobre a <strong>de</strong>fesa, do<br />

governo sul-africano, expunha os objetivos essenciais do regime e se referia<br />

pela primeira vez à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilizar os recursos políticos, econômicos<br />

e psicológicos, assim como os militares, no processo para garantir e<br />

manter a soberania da autorida<strong>de</strong> do Estado numa situação <strong>de</strong> conflito.<br />

O Livro Branco traçou uma dupla posição no que diz respeito à política<br />

regional, “a estratégia <strong>de</strong> aliar promessas a ameaças”. De um lado, tratava da<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “manter um sólido equilíbrio militar relativamente aos Estados<br />

vizinhos e a outros Estados da África Austral”; por outro, estabelecia como<br />

objetivo “a criação <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e colaboração política e econômica<br />

com os Estados da África Austral”. Enumerava 14 “áreas <strong>de</strong> ação” a ser ativadas,<br />

com ênfase nos serviços <strong>de</strong> transporte, distribuição e telecomunicações.<br />

A concretização da constelação <strong>de</strong> Estados constituiu, portanto, parte da<br />

“estratégia total” do regime do apartheid. O conceito <strong>de</strong> “constelação” foi utilizado<br />

pela primeira vez <strong>em</strong> 1975 por B. J. Vorster, então primeiro-ministro, e<br />

posteriormente por seu sucessor P. W. Botha, <strong>em</strong> 1979, que lhe atribuiu maior<br />

substância, entendida como o estabelecimento <strong>de</strong> “relações mutuamente proveitosas<br />

entre Estados in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, excluindo especificamente a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> relações tipo satélite”. A constelação foi uma tentativa da África do Sul <strong>de</strong><br />

impor sua heg<strong>em</strong>onia na região e reunir os outros Estados numa aliança econômica<br />

e política sob essa heg<strong>em</strong>onia. Ela constituiu uma nova versão, modificada<br />

pela relação <strong>de</strong> forças na região, das políticas regionais seguidas pela África do<br />

Sul <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a União, <strong>em</strong> 1910 (Adam et alii, 1981, p. 66-68).<br />

Antes da Segunda Guerra Mundial, o governo sul-africano tinha ambições<br />

diretamente colonialistas <strong>de</strong> querer “r<strong>em</strong>atar o Estado sul-africano com<br />

fronteiras penetrando profundamente no coração da África”, <strong>em</strong>bora já tivesse<br />

incorporado a Namíbia, com o apoio da Liga das Nações, e induzido<br />

a Grã-Bretanha a renunciar à sua soberania sobre seus antigos High<br />

Commission Territories, atuais Estados <strong>de</strong> Botswana, Lesoto e Suazilândia.<br />

Até então, o governo sul-africano tinha efetuado fortes investimentos nas<br />

Rodésias (atuais Zimbábue e Zâmbia), na Namíbia e no Quênia, assinado<br />

acordos econômicos com as administrações <strong>de</strong> colonos ou com as potências<br />

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coloniais metropolitanas e ainda proposto uma união política aos representantes<br />

políticos dos colonos nas Rodésias.<br />

Com a ascensão do Partido Nacionalista ao po<strong>de</strong>r na África do Sul, <strong>em</strong><br />

1948, os objetivos expansionistas continuaram, mas <strong>de</strong> outra forma. Apesar<br />

do esforço diplomático do governo para fazer da África do Sul a ligação<br />

permanente entre as nações oci<strong>de</strong>ntais e a população da África subsaariana,<br />

as ambições coloniais dos governantes sul-africanos não vingaram. Essa postura<br />

sul-africana fundava-se na idéia <strong>de</strong> que a África do Sul era o<br />

170<br />

“único país na África Austral com civilização branca e com<br />

o direito – <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da sua posição como país <strong>de</strong> brancos<br />

e <strong>de</strong> sua experiência com o probl<strong>em</strong>a dos indígenas e o<br />

probl<strong>em</strong>a dos mestiços – <strong>de</strong> atuar como conselheiro para<br />

os povos dos Territórios Setentrionais” (ibi<strong>de</strong>m).<br />

O que aconteceu, entretanto, foram as in<strong>de</strong>pendências <strong>de</strong> praticamente todos<br />

os países africanos colonizados e os protestos generalizados contra o apartheid,<br />

inclusive nas Nações Unidas. Internamente, foram períodos <strong>de</strong> fortes lutas sociais,<br />

com massacres e avanços significativos na organização do movimento<br />

antiapartheid. Assim, Pretória abandonou a pretensão à colonização <strong>de</strong> novos<br />

territórios e lançou, internamente, o programa <strong>de</strong> bantustanização 4 .<br />

Externamente, procurou aliados nos países vizinhos, e <strong>em</strong> 1971 conseguiu<br />

introduzir o “Diálogo com a África do Sul” na agenda da OUA (Organização<br />

da Unida<strong>de</strong> Africana), com a obtenção <strong>de</strong> seis votos a favor e 28 contra.<br />

Em 1974, com a <strong>de</strong>rrota do regime fascista <strong>em</strong> Portugal, a situação para<br />

a África do Sul mudou <strong>em</strong> função da in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Moçambique e <strong>de</strong><br />

Angola, da constituição <strong>de</strong> governos socialistas e do <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

luta armada no Zimbábue. Foi quando Pretória montou a nova estratégia<br />

para a manutenção <strong>de</strong> sua política, conhecida como Consas.<br />

A diferença entre a Consas e as ofensivas anteriores da África do Sul não<br />

estava nos objetivos, mas na forma <strong>de</strong> atingi-los. Antes procurava influen-<br />

4 Estes (“territórios bantus”) seriam a criação <strong>de</strong> “nações in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes” <strong>de</strong> bases étnicas, <strong>de</strong>ntro da<br />

África do Sul, porém sob a soberania <strong>de</strong>sta, mantendo-os segregados, mas próximos. Diversos foram<br />

criados, mas nenhum <strong>de</strong>les foi reconhecido pela comunida<strong>de</strong> internacional.<br />

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ciar indivíduos que elaboravam as políticas, agora, a estratégia da Consas<br />

consistia <strong>em</strong> influenciar as condições objetivas nas quais se realizavam as<br />

<strong>de</strong>cisões. Pretendia construir relações econômicas que foss<strong>em</strong> favoráveis, pelo<br />

menos aos dirigentes dos Estados africanos visados, para que se convencess<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong> que teriam interesses comuns com a África do Sul. Para isso, propunham<br />

projetos s<strong>em</strong> exigir o engajamento do Estado receptor, visando influenciar<br />

o seu futuro comportamento político (ibi<strong>de</strong>m).<br />

4. ESTADOS-TAMPÕES E BANTUSTÕES<br />

A estratégia da constelação tinha um caráter regional e visava estabelecer<br />

relações particulares entre a República da África do Sul e os vizinhos Estados<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong> modo a reverter ou impedir o crescimento dos movimentos<br />

socialistas e progressistas na região. Pretendia cont<strong>em</strong>plar um agrupamento<br />

<strong>de</strong> Estados <strong>em</strong> torno da África do Sul, reunindo uma população <strong>de</strong><br />

cerca <strong>de</strong> 50 milhões <strong>de</strong> pessoas. Incluía os m<strong>em</strong>bros da União Alfan<strong>de</strong>gária e<br />

da Zona Monetária do Rand, li<strong>de</strong>rada pela África do Sul (Botswana, Lesoto e<br />

Suazilândia), mais o Zimbábue, a Namíbia, o Malawi, a Zâmbia e o Zaire,<br />

além da perspectiva <strong>de</strong> – no conceito <strong>de</strong> “constelação ampla” ou “extensa” –,<br />

se mudass<strong>em</strong> os regimes, absorver Angola, Moçambique e Tanzânia.<br />

Já a “constelação interna” foi a expressão para <strong>de</strong>screver uma estruturação<br />

entre a África do Sul “branca” e os bantustões “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes”. Seria a<br />

forma <strong>de</strong> manter sob o domínio do governo sul-africano esses territórios,<br />

sob a fachada <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> soberanos e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />

A estratégia externa da constelação foi um fracasso para a África do Sul,<br />

que não conseguiu incorporar nenhum Estado in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte visado, e internamente<br />

terminou no acordo entre o Partido Nacional e o Congresso<br />

Nacional Africano, pondo fim ao apartheid e abrindo o caminho para as<br />

eleições multipartidárias, que levaram Man<strong>de</strong>la ao governo nos anos 1990.<br />

O caminho <strong>de</strong>sse fracasso, entretanto, levou o governo sul-africano a promover<br />

a guerra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sestabilização contra Moçambique e a invadir Angola.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, e <strong>em</strong> contrapartida, efetuou-se a articulação dos Estados<br />

da Linha da Frente, envolvendo Moçambique, Angola, Zâmbia, Tanzânia<br />

e Botswana, mais o Zimbábue, recém-in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, que estabeleceram<br />

um agrupamento regional alternativo, a SADCC. Este atraiu os Estados<br />

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visados pela Consas, como Malawi, Botswana, Lesoto e Suazilândia, apesar<br />

das fortes divergências políticas e i<strong>de</strong>ológicas entre os diferentes governos.<br />

Manter a aliança <strong>de</strong>sses nove países na década <strong>de</strong> 1980, quando a África do<br />

Sul avançou violentamente contra Moçambique e Angola, foi fruto da capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> articulação política <strong>de</strong> seus lí<strong>de</strong>res mais influentes, entre os quais<br />

o principal foi o moçambicano Samora Machel.<br />

5. A SADCC (CONFERÊNCIA PARA A COORDENAÇÃO<br />

DO DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL)<br />

A SADCC foi criada <strong>em</strong> abril <strong>de</strong> 1980 <strong>em</strong> Lusaca, <strong>em</strong> oposição à constelação<br />

<strong>de</strong> países proposta pela África do Sul. Participavam nove Estados in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

da África Austral: Angola, Botswana, Lesoto, Moçambique,<br />

Malawi, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. A SADCC, por sua<br />

eficiência, tornou-se ao longo da década <strong>de</strong> 1980 a organização econômica<br />

regional <strong>de</strong> maior importância no contexto africano.<br />

Embora não <strong>de</strong>finisse objetivos i<strong>de</strong>ológicos, tinha claro que romper a<br />

<strong>de</strong>pendência econômica com a África do Sul implicava encontrar alternativas<br />

às relações com esse país, particularmente nas esferas <strong>de</strong> comércio, transporte<br />

e migração da mão-<strong>de</strong>-obra.<br />

A África do Sul foi durante os c<strong>em</strong> últimos anos o pólo central <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

na região. A existência <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> uma população colona<br />

garantiu o afluxo <strong>de</strong> capitais e a estruturação <strong>de</strong> uma economia baseada na<br />

exploração <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra barata. O papel reservado a cada um dos Estados<br />

da região foi fundamentalmente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os fins do século XIX, <strong>de</strong> fornecedor<br />

<strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra e <strong>de</strong> serviços. Desta forma, existe uma especialização<br />

<strong>de</strong> trabalho regional <strong>em</strong> que a RSA [República Sul-Africana] fornece produtos<br />

agrícolas e industriais, compra mão-<strong>de</strong>-obra e utiliza certas infraestruturas<br />

existentes nesses países, sobretudo transportes ferroviários e marítimos.<br />

Os países da região tinham a função <strong>de</strong> fornecer mão-<strong>de</strong>-obra migratória<br />

e comprar mercadorias sul-africanas (Adam et alii, op. cit., p. 73).<br />

Toda a região austral esteve, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX, sob a forte influência<br />

econômica direta britânica, subordinada ao colonialismo da Grã-Bretanha, à<br />

exceção <strong>de</strong> Moçambique e Angola, influenciados por Londres através da política<br />

colonial <strong>de</strong> Portugal.<br />

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O primeiro aspecto <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>pendência regional é a <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> suas<br />

importações e exportações <strong>em</strong> relação à África do Sul.<br />

O segundo aspecto diz respeito ao sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> transporte sul-africano. Quase<br />

meta<strong>de</strong> das exportações e importações <strong>de</strong> cinco países não <strong>de</strong>stinadas à África<br />

do Sul e s<strong>em</strong> proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>sse país passava por seus portos, <strong>de</strong>vendo-se acrescentar<br />

o fluxo com o da própria África do Sul, que era consignado pelos serviços<br />

<strong>de</strong> transporte sul-africanos. Neste aspecto, Moçambique disputava esse<br />

transporte com a África do Sul, ficando com 38% do volume <strong>de</strong> tonelag<strong>em</strong><br />

do tráfego <strong>de</strong> cinco países (Botsuana, Malaui, Suazilândia, Zâmbia e<br />

Zimbábue) contra 48% da África do Sul e 14% da Tanzânia. Malawi e<br />

Suazilândia, entretanto, <strong>de</strong>pendiam dos portos <strong>de</strong> Moçambique <strong>em</strong> 100%<br />

para as suas importações e exportações, enquanto Botsuana e Zimbábue, apenas<br />

25% cada um.<br />

O terceiro aspecto refere-se ao fluxo migratório da mão-<strong>de</strong>-obra para a<br />

África do Sul. Embora, no início dos anos 1980, já tivesse diminuído muito<br />

o número <strong>de</strong> trabalhadores estrangeiros na indústria mineira sul-africana,<br />

aproximadamente 20% do total da força <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> cinco países<br />

continuavam a servir <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra migratória nas minas sul-africanas.<br />

Por outro lado, o relacionamento <strong>de</strong>sses países com o mercado internacional<br />

<strong>de</strong>pendia da exportação <strong>de</strong> produtos cujos mercados não controlavam e eram<br />

dominados por gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas. Assim, os países in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes tinham <strong>de</strong><br />

mudar as relações com a África do Sul, pressionando pelo fim do apartheid, mas<br />

também reestruturar suas próprias economias e ligações com o mercado.<br />

A SADCC propunha coor<strong>de</strong>nar ações com objetivos <strong>de</strong> realizar as seguintes<br />

propostas:<br />

“ redução da <strong>de</strong>pendência econômica, particularmente,<br />

mas não somente, <strong>em</strong> relação à República da África do Sul;<br />

reforço <strong>de</strong> laços para criar uma integração regional eqüitativa<br />

e genuína;<br />

mobilização <strong>de</strong> recursos para promover a impl<strong>em</strong>entação<br />

<strong>de</strong> políticas nacionais, regionais e interestatais; e<br />

ação concertada para assegurar a cooperação internacional<br />

<strong>de</strong>ntro da estratégia <strong>de</strong>sses países para a libertação econômica”<br />

(SADCC, 1980, p. 4-5).<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Além disso, a SADCC previa uma tripla reestruturação: das economias nacionais,<br />

das relações entre as diferentes economias regionais entre si e das relações<br />

<strong>de</strong>las com o exterior, fosse com a África do Sul ou outra fonte <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência.<br />

Não pretendia montar uma estrutura burocrática para a coor<strong>de</strong>nação e avaliava<br />

que havia na região energia e matérias-primas suficientes para “uma revolução<br />

industrial” que tornaria possível seus <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência.<br />

O fato <strong>de</strong> a SADCC ter sido entendida como um veículo positivo <strong>de</strong><br />

combate ao apartheid favoreceu o apoio dos países industrializados às ações<br />

<strong>de</strong> cooperação previstas <strong>em</strong> suas gran<strong>de</strong>s propostas.<br />

O sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> transportes existente na região foi planejado e concebido<br />

no século XX para convergir com o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> escoamento da África do<br />

Sul. As mercadorias do Zimbábue (então Rodésia), por ex<strong>em</strong>plo, para<br />

chegar ao litoral, tinham <strong>de</strong> seguir pela África do Sul, quando o trajeto<br />

mais curto seria o Porto da Beira, <strong>em</strong> Moçambique. Por ser o principal nó<br />

<strong>de</strong> estrangulamento das economias dos países do hinterland, atribuiu-se<br />

como priorida<strong>de</strong> a reestruturação do sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> transportes e comunicações<br />

(SADCC, 1980).<br />

Até a proclamação da <strong>de</strong>claração unilateral <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência da Rodésia<br />

do Sul <strong>em</strong> 1965, aproximadamente 80% do tráfego regional, com exceção<br />

do da África do Sul, passavam pelas re<strong>de</strong>s ferroviárias e portuárias <strong>de</strong> Angola<br />

e <strong>de</strong> Moçambique. Mesmo após o redirecionamento do movimento da<br />

Rodésia para a África do Sul, essa porcentag<strong>em</strong> ficou acima <strong>de</strong> 70% e começou<br />

a cair após a in<strong>de</strong>pendência das colônias portuguesas.<br />

A partir <strong>de</strong> 1977, a “estratégia total” sul-africana <strong>de</strong>finiu como objetivo<br />

central a realização <strong>de</strong> ações econômicas e militares contra os países vizinhos,<br />

incluindo cortar ou dificultar suas vias <strong>de</strong> acesso ao mar.<br />

Por conta disso, o governo <strong>de</strong> Pretória <strong>de</strong>sviou o tráfego Transvaal–Maputo<br />

para portos sul-africanos, contrariando inclusive os setores privados.<br />

Isso tudo se agravou com a in<strong>de</strong>pendência do Zimbábue <strong>em</strong> 1980, quando<br />

as ações para <strong>de</strong>sestabilizar Moçambique passaram a ser coor<strong>de</strong>nadas pelo<br />

exército sul-africano – e <strong>de</strong>pois pela Renamo – e foram intensificadas <strong>em</strong><br />

todas as províncias moçambicanas.<br />

Foi nesse contexto que a SADCC justificou a priorida<strong>de</strong> dada aos projetos<br />

do setor <strong>de</strong> transportes e comunicações e, nele, aos corredores ferroviários,<br />

à produção <strong>de</strong> alimentos e à proteção ambiental. Decidiu-se ainda<br />

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estimular a troca <strong>de</strong> informações sobre as ativida<strong>de</strong>s mineiras, a exploração<br />

<strong>de</strong> bacias hidrológicas, a energia e a agricultura, os probl<strong>em</strong>as relacionados<br />

ao petróleo e os exce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> eletricida<strong>de</strong>. Não po<strong>de</strong>ria ficar <strong>de</strong> fora a<br />

formação <strong>de</strong> quadros, para a qual se previu a impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> cursos e a<br />

elaboração <strong>de</strong> projetos conjuntos.<br />

Na segunda reunião da SADCC, organizações e países internacionais assumiram<br />

o compromisso <strong>de</strong> financiar os projetos apresentados. Mas probl<strong>em</strong>as<br />

po<strong>de</strong>riam vir, pois com a <strong>de</strong>svinculação da África do Sul a integração regional<br />

só seria efetivada se foss<strong>em</strong> impl<strong>em</strong>entadas nos países medidas <strong>de</strong> reestruturação<br />

interna <strong>de</strong> suas economias e <strong>de</strong> suas ligações externas, com a busca <strong>de</strong> parceiros<br />

alternativos para a obtenção <strong>de</strong> insumos que normalmente vinham da<br />

África do Sul. Caso contrário se ficaria refém das intimidações do vizinho.<br />

Entretanto, fatores conjunturais, como as secas na região <strong>em</strong> anos seguidos<br />

na virada da década, obrigaram que importações <strong>de</strong> cereais <strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s<br />

escalas foss<strong>em</strong> provenientes da África do Sul, pois era a única fonte possível<br />

<strong>de</strong> abastecimento rápido e eficaz. Com certeza sabia-se que não se po<strong>de</strong>ria<br />

rapidamente substituir os sul-africanos como parceiros comerciais. Não<br />

obstante todo o sucesso da SADCC, com a ampliação do intercâmbio econômico<br />

e das relações entre seus m<strong>em</strong>bros, a relação dos países da SADCC<br />

com a África do Sul continuou a aumentar. Não pelos caminhos legais, mas<br />

através do comércio ilegal, do contrabando <strong>de</strong> mercadorias pelas fronteiras.<br />

Assim, apesar <strong>de</strong> tudo, a SADCC não permitiu a melhora da situação<br />

econômica <strong>de</strong> seus m<strong>em</strong>bros na década <strong>de</strong> 1980, apesar dos investimentos<br />

realizados, sobretudo, nos transportes e nas comunicações.<br />

No contexto <strong>de</strong> fortes pressões econômicas e políticas, <strong>de</strong> guerra interna e<br />

agressões externas, <strong>de</strong> queda da produção <strong>em</strong> todos os níveis, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> fluxo<br />

<strong>de</strong> migração e <strong>de</strong> penúria <strong>de</strong> parte significativa da população, foi estabelecido<br />

para os países da região o Programa <strong>de</strong> Ajustamento Estrutural, moldado<br />

pelo Banco Mundial e pelo FMI, conformando um novo quadro regional.<br />

6. O NOVO PAPEL DA ÁFRICA DO SUL<br />

Na década <strong>de</strong> 1990 as atenções se voltaram para a África Austral, na<br />

expectativa <strong>de</strong> que as riquezas naturais e sua integração socioeconômica,<br />

junto com o fim do apartheid, trouxess<strong>em</strong> as esperanças <strong>de</strong> que houvesse<br />

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um relançamento da integração regional, s<strong>em</strong> a dominação e a heg<strong>em</strong>onia<br />

da África do Sul, mas s<strong>em</strong> <strong>de</strong>scartar sua fundamental participação. A história,<br />

entretanto, não t<strong>em</strong> sido b<strong>em</strong> assim.<br />

Nas décadas <strong>de</strong> 1960, 1970 e 1980, houve gran<strong>de</strong>s mudanças na conjuntura<br />

regional (in<strong>de</strong>pendência unilateral da Rodésia do Sul; guerras <strong>de</strong><br />

libertação e in<strong>de</strong>pendências <strong>de</strong> Zimbábue, Namíbia, Moçambique e Angola;<br />

implantação <strong>de</strong> regimes socialistas; sanções internacionais e regionais<br />

contra o regime do apartheid etc.) que promoveram na África do Sul um<br />

acirramento das políticas <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> importações para fazer frente à<br />

economia <strong>de</strong> guerra na <strong>de</strong>fesa do apartheid.<br />

De um lado, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa nacional não permitia basear a escolha<br />

<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s produtivas (como química, energia, transportes, comunicações<br />

etc.) <strong>em</strong> critérios <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong>. De outro, houve forte mudança<br />

nos fluxos dos investimentos diretos estrangeiros, que passaram para <strong>em</strong>préstimos<br />

financeiros (<strong>de</strong> maior mobilida<strong>de</strong> ao capital internacional, nos<br />

casos <strong>de</strong> sanções, que as inversões produtivas). Tudo isso fez com que a<br />

África do Sul fortalecesse sua indústria, procurasse reduzir as <strong>de</strong>pendências<br />

externas e diminuísse sua participação na economia-mundo.<br />

A esta estratégia se contrapuseram fatores técnico-econômicos que começaram<br />

a pôr <strong>em</strong> questão o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> industrialização norteado pela substituição<br />

<strong>de</strong> importações. Na década <strong>de</strong> 1970, as forças produtivas que impulsionavam<br />

esse mo<strong>de</strong>lo seriam ultrapassadas pelos novos paradigmas da<br />

acumulação <strong>de</strong> capital.<br />

Vieram somar-se a essas dificulda<strong>de</strong>s aquelas provenientes da luta contra<br />

o apartheid e suas conseqüências: os aumentos <strong>de</strong> salários, os custos<br />

com a segurança, as dificulda<strong>de</strong>s impostas pelos bloqueios etc. Tudo conduziu<br />

a uma <strong>de</strong>gradação dos termos <strong>de</strong> troca, à perda <strong>de</strong> competitivida<strong>de</strong><br />

e à baixa da taxa <strong>de</strong> lucro da economia sul-africana. Conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

houve redução das receitas e, assim, as políticas <strong>de</strong> proteção à indústria<br />

local e <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> importações ficaram difíceis <strong>de</strong> ser<br />

impl<strong>em</strong>entadas. Para buscar divisas, o governo começou a orientar os investimentos<br />

para os setores <strong>de</strong> exportação, o que exigia, então, produtivida<strong>de</strong><br />

e competitivida<strong>de</strong> <strong>em</strong> nível internacional.<br />

Dessa forma, o próprio capital passou a questionar a eficácia da política<br />

<strong>de</strong> subvenção, <strong>de</strong> industrialização e <strong>de</strong> cartelização posta <strong>em</strong> prá-<br />

176<br />

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tica até então pela África do Sul, e abriu brechas importantes para o<br />

fim do apartheid.<br />

A partir <strong>de</strong>sse momento, a inserção mundial se tornou concorrente<br />

da regionalização. A produção para exportação, exigida pela globalização,<br />

passou a concorrer com a substituição <strong>de</strong> importações, comprometendo<br />

a integração regional. A indústria a ser instalada localmente não seria<br />

mais para aten<strong>de</strong>r ao mercado regional, mas para exportação, e segundo<br />

os padrões globais.<br />

Quando Nelson Man<strong>de</strong>la foi eleito presi<strong>de</strong>nte da África do Sul, os países<br />

da região já tinham adotado o programa liberal havia uma década, com o<br />

objetivo <strong>de</strong> preparar a inserção mundial dos países africanos através das<br />

pretensas vantagens comparativas. Para isso seria imprescindível paz, <strong>de</strong>mocracia<br />

e uma economia <strong>de</strong> mercado (muito aberta), como passo inicial para<br />

“melhorar a competitivida<strong>de</strong> e o retorno dos capitais”. Em todos esses países,<br />

os governos <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> falar <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e passaram a se preocupar<br />

com o equilíbrio das contas, com o aumento das exportações, com a<br />

liberda<strong>de</strong> cambial e <strong>de</strong> preços, com as privatizações etc., e a separar o Estado<br />

da economia, como <strong>de</strong>sejavam as instituições internacionais.<br />

Tal foi o caso também do Banco Central e do Ministério das Finanças da<br />

África do Sul, que abandonaram, no pós-apartheid, as políticas heterodoxas<br />

tradicionais e passaram a buscar credibilida<strong>de</strong> para atrair novos capitais. Capitais<br />

esses, agora, para investimentos diretos (e não para <strong>em</strong>préstimos financeiros,<br />

como durante as sanções econômicas), direcionados para os setores <strong>de</strong> exportação,<br />

e não, como tradicionalmente, aos setores <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> importação.<br />

Como a substituição das importações passou a ser concorrente das exportações,<br />

o protecionismo das indústrias locais nos anos 1990 foi alvo <strong>de</strong> críticas<br />

constantes. Conseqüent<strong>em</strong>ente, os aspectos fundamentais que garantiam a<br />

política <strong>de</strong> integração regional <strong>de</strong>sapareceram. As intervenções <strong>de</strong> guerra não<br />

podiam ter lugar num clima <strong>de</strong> paz e a mobilida<strong>de</strong> das pessoas não po<strong>de</strong>ria<br />

ser regulada s<strong>em</strong> o apartheid. O equilíbrio anterior já estava ameaçado.<br />

Os capitais provenientes do setor tradicional (<strong>em</strong> contraposição aos setores<br />

pós-mo<strong>de</strong>rnos) da economia capitalista sul-africana, que ficaram bloqueados<br />

durante os últimos anos do apartheid, partiram, no início dos anos<br />

1990, <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> novos mercados. E naquele momento Moçambique<br />

lhes abriu as portas, após a <strong>de</strong>sregulamentação do comércio e a privatização<br />

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das <strong>em</strong>presas públicas, e promoveu reestruturações que <strong>de</strong>mandavam investimentos<br />

estrangeiros. Como ex<strong>em</strong>plos, po<strong>de</strong>m ser citados a indústria<br />

hoteleira e <strong>de</strong> turismo e alguns setores agrícolas e comerciais.<br />

Assim, o capital sul-africano <strong>em</strong> Moçambique, tal como o português,<br />

<strong>de</strong>slocou-se para aqueles setores que se beneficiavam da ausência <strong>de</strong> controle<br />

e <strong>de</strong> regulamentação estatal, <strong>de</strong> limites para a exploração e da ausência <strong>de</strong><br />

organização sindical – eram eles os restaurantes, as oficinas, os setores <strong>de</strong><br />

serviços. Em setores rurais houve mesmo certo retorno quase às companhias<br />

majestáticas, permitindo um capitalismo selvag<strong>em</strong>.<br />

Enormes áreas vêm sendo <strong>de</strong>stinadas a <strong>em</strong>presas que produz<strong>em</strong> livr<strong>em</strong>ente,<br />

praticamente s<strong>em</strong> controle estatal.<br />

Mas há, paralelamente, naquilo que se po<strong>de</strong> qualificar <strong>de</strong> capital mo<strong>de</strong>rno,<br />

o incr<strong>em</strong>ento dos investimentos nos chamados Corredores 5 , como o da<br />

Beira, que t<strong>em</strong> investido fortes somas na construção <strong>de</strong> oleodutos, ferrovias<br />

e rodovias e na mo<strong>de</strong>rnização dos portos; e os <strong>de</strong> Maputo e Nacala, ambos<br />

para aten<strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> movimentação <strong>de</strong> mercadorias provenientes<br />

e <strong>de</strong>stinadas aos países do hinterland e, também agora, aos investimentos<br />

diretos estrangeiros <strong>em</strong> megaprojetos. Nestes casos, o investimento dá-se<br />

com os mais altos índices <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> e controle, com técnicos e financiamentos<br />

internacionais, tendo relativo reflexo direto na economia<br />

moçambicana, apesar da pouca criação <strong>de</strong> <strong>em</strong>pregos.<br />

A integração regional articulada e <strong>de</strong>sejada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1990 v<strong>em</strong><br />

propiciando o relançamento do capitalismo pela conjunção <strong>de</strong> <strong>de</strong>manda e<br />

oferta <strong>de</strong> investimentos privados, principalmente nos setores <strong>de</strong> turismo,<br />

na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> transportes, nos recursos hídricos e no meio ambiente, s<strong>em</strong> conseqüências<br />

positivas significativas para a população.<br />

Mas, pergunta-se, po<strong>de</strong>ria a África do Sul entrar no processo <strong>de</strong><br />

globalização e ser, ao mesmo t<strong>em</strong>po, um centro promotor da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

e do <strong>de</strong>senvolvimento regional? Seguramente não, pois os sentidos da acumulação<br />

<strong>de</strong> capital, num caso e noutro, são contraditórios e a razão central<br />

dos conflitos atuais na região.<br />

5 Os “corredores” constitu<strong>em</strong> um conceito econômico e social, que faz referência a uma faixa <strong>de</strong><br />

terra que comporta rodovias, ferrovias, <strong>em</strong> alguns casos servidas com oleodutos, e outras ativida<strong>de</strong>s<br />

socio-econômicas, que ligam um porto no litoral <strong>de</strong> Moçambique a países do interior.<br />

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7. A PARTICIPAÇÃO NO MUNDO GLOBALIZADO<br />

Beluce Bellucci<br />

O eixo central da acumulação baseado na transferência <strong>de</strong> renda da socieda<strong>de</strong><br />

doméstica para a socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, que permitiu a integração regional<br />

durante o apartheid, está rompido, <strong>em</strong>bora possa resistir num ou noutro<br />

caso. Isto é, não há condições para que se reproduza <strong>em</strong> larga escala o<br />

processo <strong>de</strong> acumulação que existiu durante o século XX, até porque as<br />

próprias socieda<strong>de</strong>s não po<strong>de</strong>m continuar mais suportando tal exploração.<br />

Por outro lado, as políticas nacionalistas e socialistas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e<br />

<strong>de</strong> acumulação interna, <strong>em</strong> direção a uma socieda<strong>de</strong> industrial mo<strong>de</strong>rna,<br />

<strong>em</strong> que os camponeses seriam transformados <strong>em</strong> trabalhadores assalariados,<br />

fracassaram <strong>de</strong>vido à própria guerra contra o apartheid e, sobretudo, por<br />

ter<strong>em</strong> chegado tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. Surgiram quando a economia-mundo passava<br />

por uma revolução técnico-científica cujo processo <strong>de</strong> globalização não mais<br />

comportava a acumulação baseada na substituição <strong>de</strong> importações como<br />

fator prepon<strong>de</strong>rante. Vale agora a competitivida<strong>de</strong> (via redução <strong>de</strong> custos e<br />

<strong>de</strong> salários) para o mercado internacional, por meio das exportações.<br />

Para a nova competitivida<strong>de</strong>, a capacitação técnico-científica nas localizações<br />

e nos tipos <strong>de</strong> investimento a ser realizados passou a ser mais importante<br />

que a matéria-prima e a mão-<strong>de</strong>-obra.<br />

Os esforços <strong>em</strong>preendidos pelas <strong>em</strong>presas internacionais <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte,<br />

acossadas pela crise e pela concorrência, convergiram no sentido <strong>de</strong> encontrar<br />

fontes alternativas <strong>de</strong> energia, <strong>de</strong> modo a reduzir seu consumo,<br />

como foi o caso do petróleo. Quanto às outras matérias-primas <strong>de</strong> base, as<br />

<strong>em</strong>presas dos países centrais vêm reduzindo seus custos mediante a evolução<br />

científica e tecnológica e substituindo produtos antes provenientes <strong>de</strong><br />

países do Terceiro Mundo por produtos industriais próprios.<br />

O movimento da globalização é exclu<strong>de</strong>nte, “com exceção <strong>de</strong> uns poucos<br />

‘novos países industrializados’, que haviam ultrapassado, antes <strong>de</strong> 1980,<br />

um patamar <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento industrial que lhes permite introduzir<br />

mudanças na produtivida<strong>de</strong> do trabalho e se manter competitivos”, estando<br />

<strong>em</strong> curso “um nítido movimento ten<strong>de</strong>nte à marginalização dos países<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento” (Chesnais, 1996, p. 33). Ao mesmo t<strong>em</strong>po, não são<br />

os países que se beneficiam integralmente <strong>de</strong>ssa dinâmica global, mas setores<br />

da economia mundial. Os países mal situados <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> pesquisa,<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

que já <strong>de</strong> saída não dispõ<strong>em</strong> <strong>de</strong> acúmulos <strong>de</strong> conhecimentos técnico-científicos,<br />

terão muita dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> se inserir na lógica da globalização. Na<br />

região da África Austral, poucos setores do capitalismo têm ou <strong>de</strong>verão ter<br />

esse privilégio, e para isso terão <strong>de</strong> aceitar incondicionalmente as regras do<br />

capital internacional, o que não ocorrerá <strong>em</strong> benefício <strong>de</strong> uma cooperação<br />

regional ou social.<br />

A reorganização econômica na região v<strong>em</strong> recebendo investimentos estrangeiros<br />

<strong>de</strong>snacionalizados. Os investidores são grupos <strong>de</strong> capitais internacionais<br />

<strong>de</strong> diferentes origens. Os IDE (Investimentos Diretos Estrangeiros)<br />

<strong>em</strong> Moçambique têm atraído megaprojetos, como para a produção <strong>de</strong><br />

alumínio, com forte impacto no aumento do PIB (Produto Interno Bruto)<br />

e na balança comercial, mas têm gerado pouco resultado positivo no <strong>em</strong>prego<br />

e na renda dos trabalhadores. Eles transfer<strong>em</strong> ao exterior a produção<br />

física e os lucros obtidos, através <strong>de</strong> baixa <strong>em</strong>pregabilida<strong>de</strong>.<br />

Por outro lado, a política para a criação <strong>de</strong> <strong>em</strong>pregos também <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do<br />

capital internacional, e se configura no sist<strong>em</strong>a EIMI (Exportações da Indústria<br />

<strong>de</strong> Mão-<strong>de</strong>-Obra Intensiva). Essas indústrias baseiam-se <strong>em</strong> processos <strong>de</strong><br />

trabalho geralmente individuais ou familiares e utilizam pouco meios <strong>de</strong> produção<br />

(máquinas <strong>de</strong> costuras, colas etc.). Os trabalhadores receb<strong>em</strong> as matérias-primas<br />

e se limitam a realizar um esforço físico intenso, num processo <strong>de</strong><br />

montag<strong>em</strong>, colag<strong>em</strong>, corte ou costura, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do produto. A <strong>em</strong>presa<br />

<strong>em</strong>pregadora não t<strong>em</strong> capital no país, traz suas matérias-primas para um<br />

ciclo produtivo para ser<strong>em</strong> trabalhadas localmente, e retornam com um produto<br />

acabado para ser vendido no mercado internacional. Têm-se aí as calças,<br />

camisas e gravatas <strong>de</strong> grifes, tênis e sapatos <strong>de</strong> marca e, num processo um<br />

pouco mais sofisticado, os produtos eletroeletrônicos e os informatizados.<br />

São, portanto, processos <strong>de</strong> trabalho individualizados que permit<strong>em</strong> exploração<br />

extra e são extr<strong>em</strong>amente voláteis. Se há qualquer aumento interno no<br />

salário mínimo, ou redução <strong>em</strong> outros países, estas indústrias, por quase não<br />

ter<strong>em</strong> capital fixo, po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>slocadas.<br />

Vistos <strong>em</strong> seu conjunto, os países da região, mesmo aceitando as regras<br />

como vêm fazendo, estão <strong>de</strong>stinados a ser uma espécie <strong>de</strong> reserva para o<br />

capital <strong>de</strong> ponta, enquanto o capitalismo selvag<strong>em</strong> brota nas bordas e brechas,<br />

aproveitando-se do que sobrou do colonialismo, do apartheid e das<br />

guerras internas.<br />

180<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 180<br />

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Beluce Bellucci<br />

Ter que participar da concorrência internacional significa aumentar a<br />

produtivida<strong>de</strong>, pois só assim se reduz os custos unitários. A redução do<br />

custo unitário requer alta tecnologia e/ou aumento da exploração. As<br />

tecnologias requeridas no mundo atual são inexistentes na região, o que<br />

condiciona esses países, quando muito, a permitir instalações complexas<br />

<strong>em</strong> seus territórios, como no caso dos megaprojetos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que garantam<br />

enormes vantagens ao capital, como as isenções <strong>de</strong> taxas e impostos e a<br />

repatriação dos lucros.<br />

Quanto ao aumento da exploração, esta po<strong>de</strong>ria se dar através do aumento<br />

da produtivida<strong>de</strong> do setor <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> bens-salários (maisvalia<br />

relativa), no mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>senvolvimentista, mas isso está fora <strong>de</strong> questão<br />

no quadro globalizante atual. Resta aumentar a exploração reduzindo<br />

absolutamente os salários (aumento <strong>de</strong> horas ou redução monetária),<br />

como prevê a proposta EIMI. Mas é preciso l<strong>em</strong>brar que se trata dos<br />

países com os mais baixos salários do mundo, on<strong>de</strong> a miséria atinge<br />

proporções enormes da população, e qualquer redução <strong>de</strong> salário, ou<br />

manutenção do padrão atual, po<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar à morte parcelas significativas<br />

da socieda<strong>de</strong>.<br />

Neste novo quadro socioeconômico e político se estabeleceram a União<br />

Africana, <strong>em</strong> substituição à Organização da Unida<strong>de</strong> Africana, e a Nova<br />

Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD – New Partnership<br />

for Africa’s Development) 6 , prometendo um novo contexto, o do<br />

Renascimento. São nestas duas organizações que se travam os combates<br />

s<strong>em</strong> fronteiras, não mais entre os movimentos <strong>de</strong> libertação e o colonialismo,<br />

o apartheid e seus oponentes, os capitalistas e os socialistas. Mas pressionados<br />

por grupos <strong>de</strong> sobrevivência, contrabandistas <strong>de</strong> armas, traficantes,<br />

corruptos, religiosos, financistas internacionais e grupos políticos, que<br />

bóiam no caldo r<strong>em</strong>anescente dos Estados do século XX, enquanto os<br />

povos fermentam à espreita <strong>de</strong> nova esperança.<br />

6 O NEPAD é o projeto que os dirigentes africanos adotaram como quadro estratégico para lutar<br />

contra a pobreza e o sub<strong>de</strong>senvolvimento do continente. É a fusão <strong>de</strong> vários programas e iniciativas<br />

<strong>de</strong> chefes <strong>de</strong> Estados africanos que foi incorporada pela 37 ª Cimeira da OUA (Organização da<br />

Unida<strong>de</strong> Africana) <strong>em</strong> Lusaka, <strong>em</strong> julho <strong>de</strong> 2001. No mesmo mês, cinco países africanos apresentaram<br />

o projeto na reunião do G8 <strong>em</strong> Gênova, que <strong>de</strong>cidiu apoiá-lo.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

1. COLONIALISMO<br />

A invasão européia da América (Havas, 1981), que t<strong>em</strong> início com o<br />

chamado <strong>de</strong>scobrimento e é levada adiante com a conquista e a colonização,<br />

fez <strong>de</strong>ste continente um apêndice colonial do <strong>de</strong>senvolvimento capitalista.<br />

Esse processo abrange as viagens exploratórias realizadas entre 1492 e 1519,<br />

a conquista das civilizações da América Central e da cordilheira dos An<strong>de</strong>s<br />

entre 1519 e 1535, e o controle imposto aos então consi<strong>de</strong>rados territórios<br />

marginais entre 1535 e 1580.<br />

A extração <strong>de</strong> metais preciosos a baixo custo para a metrópole é o objetivo<br />

fundamental da exploração das colônias hispano-americanas nos séculos XVI,<br />

XVII e início do XVIII. Para garantir maiores benefícios <strong>de</strong>ste monopólio, a<br />

Coroa espanhola institui a Casa <strong>de</strong> Contratação <strong>de</strong> Sevilha (1503), o Conselho<br />

das Índias (1542) e o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> frotas (1561). E, para satisfazer as necessida<strong>de</strong>s<br />

da produção <strong>de</strong> minérios, surge uma economia <strong>de</strong> apoio quase <strong>de</strong>smonetarizada,<br />

que, por meio da troca, abastece <strong>de</strong> alimentos, tecidos e animais <strong>de</strong> carga as<br />

regiões <strong>de</strong> mineração e as cida<strong>de</strong>s. Essa economia colonial baseia-se na exploração<br />

dos indígenas e dos escravos importados <strong>de</strong> outros continentes.<br />

Após um período <strong>de</strong> escravidão indiscriminada da população indígena,<br />

as “leis novas”, promulgadas <strong>em</strong> 1542 por Carlos III, proíb<strong>em</strong> esse tipo<br />

184<br />

A América Latina na história do<br />

capitalismo 1<br />

Roberto Regalado 2<br />

1 Extraído da obra <strong>de</strong> Roberto Regalado, América Latina entre siglos: dominación, crisis, lucha social y<br />

alternativas políticas <strong>de</strong> la izquierda (Melbourne/Nova York, Ocean Press/La Habana, 2006).<br />

2 Politólogo, m<strong>em</strong>bro fundador do Foro <strong>de</strong> São Paulo. Dirige a Seção <strong>de</strong> Análise da Área América do<br />

Departamento <strong>de</strong> Relações Internacionais do Partido Comunista <strong>de</strong> Cuba e da revista Contexto<br />

Latinoamericano. É autor do livro América Latina entre siglos.<br />

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Roberto Regalado<br />

<strong>de</strong> escravidão e estabelec<strong>em</strong> como única forma autorizada <strong>de</strong> exploração o<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> repartimientos ou encomiendas 3 . A encomienda havia sido até<br />

então a forma <strong>de</strong> exploração aplicada àquelas etnias indígenas que, por<br />

diversas razões, os especialistas <strong>em</strong> direito canônico e <strong>em</strong> teologia aconselhavam<br />

a Coroa a não escravizar. As encomiendas se diferenciavam da escravidão<br />

por não ser<strong>em</strong> permanentes e n<strong>em</strong> <strong>de</strong> direito hereditário, e por<br />

obrigar<strong>em</strong> o encomen<strong>de</strong>ro a “civilizar” e “cristianizar” os indígenas cujo<br />

trabalho explorava.<br />

Ainda que até 1670 continue legal escravizar índios “rebel<strong>de</strong>s” – contrários<br />

à colonização – e até 1810 índios “bárbaros” – acusados <strong>de</strong> atacar povoados<br />

fronteiriços espanhóis –, as “leis novas” afirmam o caráter t<strong>em</strong>poral da<br />

encomienda, suprim<strong>em</strong> os “serviços pessoais”, ratificam a obrigação <strong>de</strong> os<br />

índios pagar<strong>em</strong> “tributos” e preservam a coexistência <strong>de</strong> várias “formas <strong>de</strong><br />

proprieda<strong>de</strong> da terra” na área ocupada pela população encomendada.<br />

Diferent<strong>em</strong>ente das colônias americanas da Grã-Bretanha, Portugal e<br />

França, na América espanhola prevalece a exploração indígena sobre a importação<br />

<strong>de</strong> escravos <strong>de</strong> outros continentes. Isto se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong>, até a<br />

segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII, a Coroa não incentivar a economia <strong>de</strong><br />

plantation, mais vinculada à escravidão africana. Ainda que a partir <strong>de</strong>ste<br />

momento a Espanha multiplique o tráfico, a América espanhola recebe no<br />

total cerca <strong>de</strong> 1,5 milhão <strong>de</strong> escravos durante todo o período colonial (1492-<br />

1810), cifra que representa apenas 12% dos escravos africanos importados<br />

no continente (Hayek, 1990b).<br />

A importação <strong>de</strong> escravos faz parte <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da conquista<br />

e colonização. Quando ocorre a invasão espanhola da América, há na<br />

metrópole escravos <strong>de</strong> diversas origens, inclusive brancos europeus, árabes,<br />

asiáticos e negros africanos. Alguns <strong>de</strong>les foram trazidos para o continente<br />

americano já <strong>em</strong> 1493. Calcula-se que no final do século XVI havia na<br />

Espanha cerca <strong>de</strong> 44 mil escravos, que constituíam 1% da população (Hayek,<br />

1990a). Da mesma forma, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da conquista e colonização, a<br />

3 Repartimiento é o sist<strong>em</strong>a adotado na colonização espanhola das Américas para garantir mão-<strong>de</strong>-obra nas<br />

explorações agrícolas e minerais. Determinado número <strong>de</strong> índios era “repartido” entre os colonizadores<br />

espanhóis; a essa repartição se chamava encomienda, ou seja, estabelecia-se uma relação <strong>de</strong> patrocínio<br />

pela qual os índios <strong>de</strong>viam obediência ao encomen<strong>de</strong>ro “<strong>em</strong> troca” <strong>de</strong> instrução cristã. (N.T.)<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Coroa espanhola proíbe a entrada na América <strong>de</strong> escravos “infiéis”, <strong>de</strong> etnias<br />

“rebel<strong>de</strong>s” ou <strong>de</strong> outros agrupamentos humanos que represent<strong>em</strong> uma ameaça<br />

ao seu domínio. Finalmente, <strong>em</strong> 1542, Carlos III <strong>de</strong>creta que só po<strong>de</strong>m<br />

ingressar na América escravos negros <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> africana, com a especificação<br />

<strong>de</strong> que não sejam originários <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas etnias “guerreiras”.<br />

Menos intensos que na América hispânica são os primeiros anos da conquista<br />

e colonização do Brasil, nome que se origina da ma<strong>de</strong>ira preciosa<br />

<strong>de</strong>nominada pau-brasil, cuja produção <strong>em</strong> larga escala t<strong>em</strong> início já <strong>em</strong><br />

meados do século XVI. A disputa pelo controle do litoral brasileiro pelos<br />

navegantes franceses estimula a colonização portuguesa, iniciada com duas<br />

expedições punitivas <strong>em</strong> 1526 e 1531. Em 1532, a Carta Real <strong>de</strong> D. João<br />

III fixa a divisão do território brasileiro <strong>em</strong> 15 capitanias hereditárias, das<br />

quais apenas sete se constitu<strong>em</strong>. Imediatamente após o fracasso do sist<strong>em</strong>a<br />

<strong>de</strong> capitanias, a Coroa portuguesa reivindica seu direito sobre a totalida<strong>de</strong><br />

do território da colônia, para o qual <strong>de</strong>signa um governador-geral.<br />

Durante o século XVII, o núcleo da economia se <strong>de</strong>sloca para as plantações<br />

<strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar do Norte do Brasil, abastecidas <strong>de</strong> gado e homens<br />

pelo restante da colônia. Essa economia açucareira entra <strong>em</strong> crise após a<br />

<strong>de</strong>rrota da ocupação holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Pernambuco (1630-1654), o que leva<br />

essa potência européia a <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r o cultivo da cana-<strong>de</strong>-açúcar <strong>em</strong> suas<br />

possessões do Caribe, e o mesmo faz<strong>em</strong> a Grã-Bretanha e a França. Diante<br />

da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o Brasil competir neste quesito com as Antilhas, as<br />

regiões marginais da colônia lusitana – <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da economia <strong>de</strong> apoio<br />

ao Norte açucareiro – sobreviv<strong>em</strong> com o comércio <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, ouro e pedras<br />

preciosas obtido por meio da troca com a população indígena, com a<br />

pecuária e a escravidão <strong>de</strong> índios capturados <strong>em</strong> territórios <strong>de</strong> fronteira, a<br />

qual torna-se mais barata que a importação <strong>de</strong> escravos africanos, crescent<strong>em</strong>ente<br />

inacessíveis aos donos <strong>de</strong> engenho.<br />

Nas colônias americanas da Espanha e <strong>de</strong> Portugal coexist<strong>em</strong> cinco formas<br />

<strong>de</strong> produção: a economia <strong>de</strong> subsistência do camponês e a das vilas, a<br />

produção mercantil simples, a escravidão patriarcal e <strong>de</strong> plantation, a produção<br />

agrária feudal ou s<strong>em</strong>ifeudal sob a forma <strong>de</strong> latifúndio e os <strong>em</strong>briões<br />

pré-capitalistas (Heller, 1976). A transformação das relações <strong>de</strong> classe existentes<br />

na América pré-colombiana, assegurada pelo “direito <strong>de</strong> conquista”,<br />

<strong>de</strong>riva da dominação colonial imposta pela Espanha. Surge assim uma or-<br />

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<strong>de</strong>m social heterogênea na qual a supr<strong>em</strong>acia é exercida por agentes do fisco<br />

e por comerciantes peninsulares, encarregados <strong>de</strong> maximizar a transferência<br />

das riquezas para a Coroa, ao passo que os senhores da terra e os proprietários<br />

da mineração são excluídos da circulação monetária. Os principais sujeitos<br />

da exploração colonialista são certamente os africanos e os índios,<br />

submetidos ao aniquilamento étnico e convertidos, por meio <strong>de</strong> formas<br />

variadas e mutantes <strong>de</strong> exploração, <strong>em</strong> classes peculiares da socieda<strong>de</strong> colonial.<br />

Também entre eles se estabelec<strong>em</strong> diferenças sociais: os escravos africanos<br />

constitu<strong>em</strong> o escalão mais baixo da socieda<strong>de</strong> colonial.<br />

A relação econômica entre a Espanha e a América hispânica se transforma<br />

no <strong>de</strong>correr do século XVIII <strong>em</strong> função do surgimento <strong>de</strong> uma zona econômica<br />

<strong>de</strong> apoio à mineração, representada pela agricultura e pela pecuária,<br />

que leva à proclamação das reformas burbônicas <strong>de</strong> 1778 e 1782. Estas<br />

reformas legalizam a importação <strong>de</strong> produtos coloniais, como açúcar e tabaco<br />

<strong>de</strong> Cuba, cacau da Venezuela e <strong>de</strong> Quito, couro do rio da Prata, além <strong>de</strong><br />

metais preciosos, para o mercado espanhol. Também formalizam a exploração<br />

das colônias como mercado <strong>de</strong> consumo. Isso significa que a Espanha<br />

começa a fomentar a economia <strong>de</strong> plantation quando esta já está mundialmente<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>clínio. Enquanto isso, no Brasil do final do século XVIII, o<br />

<strong>de</strong>scobrimento <strong>de</strong> jazidas <strong>de</strong> ouro e diamantes <strong>em</strong> Minas Gerais provoca o<br />

<strong>de</strong>slocamento do centro econômico das plantations do Nor<strong>de</strong>ste para a mineração<br />

do Centro-Sul e estimula o surgimento <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />

econômicas <strong>de</strong> apoio ao setor da mineração, que chega ao seu ápice<br />

entre 1721 e 1870. Este processo corre paralelamente à redução, por parte<br />

da metrópole, da relativa autonomia administrativa e da liberda<strong>de</strong> comercial<br />

das quais a colônia usufruía.<br />

Durante o século XVIII, tanto na América hispânica quanto no Brasil,<br />

formam-se setores criollos 4 <strong>em</strong> processo <strong>de</strong> aburguesamento, interessados na<br />

conquista do acesso direto ao mercado europeu, entre os quais se sobressa<strong>em</strong><br />

fazen<strong>de</strong>iros, estancieiros, pequenos e médios produtores e comerciantes,<br />

intelectuais e artesãos. Esse processo alimenta a s<strong>em</strong>ente da consciência<br />

nacional americana e das idéias <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência sob a influência da Ilus-<br />

4 Criollo: filho e/ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> europeus nascido nas antigas colônias espanholas das Américas. (N.T.)<br />

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tração, da in<strong>de</strong>pendência das 13 colônias inglesas da América do Norte<br />

(1775-1783), da Revolução Francesa (1789), da Revolução Haitiana (1790-<br />

1804) e das guerras européias, <strong>em</strong> particular a ocupação <strong>de</strong> Portugal (1807)<br />

e Espanha (1808) pelos exércitos napoleônicos, que expulsa dos respectivos<br />

tronos as duas monarquias e <strong>de</strong>ixa acéfalos os impérios coloniais ibéricos.<br />

As mudanças ocorridas no sist<strong>em</strong>a comercial espanhol, formalizadas<br />

pelas reformas burbônicas, alteram o status quo tanto na metrópole como<br />

nas colônias. Na Europa, a Espanha fica relegada ao papel <strong>de</strong> intermediária<br />

onerosa entre suas possessões americanas e as nações industriais, <strong>em</strong><br />

particular a Inglaterra. Na América hispânica o monopólio comercial se<br />

esfacela, pois a metrópole, incapaz <strong>de</strong> cumprir os termos da nova relação,<br />

pratica uma intermediação parasitária que encarece a importação das mercadorias<br />

manufaturadas.<br />

Por mais que as reformas burbônicas oper<strong>em</strong> exclusivamente <strong>em</strong> prol da<br />

Espanha e dos espanhóis resi<strong>de</strong>ntes nas colônias, um <strong>de</strong> seus resultados é a<br />

erosão da posição <strong>de</strong> todos os estratos da pirâmi<strong>de</strong> criolla. As novas restrições<br />

entram <strong>em</strong> contradição com a metamorfose pela qual passa a estrutura social<br />

hispano-americana, até então dominada pelos peninsulares (funcionários,<br />

comerciantes e gran<strong>de</strong>s proprietários), pelo clero e pelos latifundiários criollos,<br />

que sufocam os setores protoburgueses <strong>em</strong>ergentes ligados ao comércio exterior<br />

e aos setores rurais oriundos da diversificação da estrutura agrária. No<br />

caso das castas – limitadoras da mobilida<strong>de</strong> dos grupos étnico-sociais <strong>de</strong>dicados<br />

ao trabalho artesanal e a diversos ofícios e <strong>em</strong>pregos <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhados por<br />

brancos pobres, mestiços, mulatos e negros livres –, as reformas criam uma<br />

situação que impossibilita a ascensão não apenas no interior <strong>de</strong> cada uma<br />

<strong>de</strong>las, mas também transfere aos filhos o status alcançado pelos pais. Tudo isso<br />

vai constituindo um caldo <strong>de</strong> cultura para a guerra <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência.<br />

A formação da consciência “nacional” americana e o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

i<strong>de</strong>ologia “nacionalista”, que reflet<strong>em</strong> a cultura e as aspirações políticas,<br />

econômicas e sociais <strong>de</strong> seus portadores, se aceleram com as lutas<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntistas e levam à “formação das nações latino-americanas”. Este é<br />

um processo muito complexo, porque junto às contradições existentes entre<br />

as metrópoles ibéricas e suas respectivas colônias – que se manifestam no<br />

antagonismo entre os peninsulares, encarregados da manutenção do monopólio<br />

comercial, e as camadas criollas altas e médias, interessadas no livre<br />

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comércio – há outras contradições: entre as elites – peninsulares e criollas –,<br />

<strong>de</strong>tentoras do po<strong>de</strong>r econômico, e os escravos negros, a população indígena<br />

e mestiça, e os <strong>de</strong>mais setores produtivos sobre cujos ombros recai o peso da<br />

economia colonial. Por conseguinte, não se trata apenas <strong>de</strong> uma crise da<br />

relação <strong>de</strong> “dominação política e <strong>de</strong> exploração econômica” existente entre<br />

metrópoles e colônias, mas também das “estruturas socioeconômicas coloniais<br />

baseadas na polarização social e na regulamentação racial”.<br />

Seria impossível tentar traçar aqui até mesmo um esboço da guerra <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>pendência hispano-americana. Basta assinalar que a contenda divi<strong>de</strong>-se<br />

<strong>em</strong> duas etapas (<strong>de</strong> 1808 a 1815, e <strong>de</strong> 1816 a 1825) e que são diferentes as<br />

características da luta no México, na América Central e nos atuais territórios<br />

da Venezuela, da Colômbia, do Equador e da Bolívia – on<strong>de</strong> Bolívar é a<br />

principal figura –, e no Chile, na Argentina, no Uruguai e no Paraguai – on<strong>de</strong><br />

a pre<strong>em</strong>inência cabe a San Martín. Em essência, se no México a rebelião<br />

li<strong>de</strong>rada por Miguel Hidalgo e José María Morelos t<strong>em</strong> início como um genuíno<br />

movimento popular, nos <strong>de</strong>mais países da América hispânica ela é<br />

conduzida pelas elites criollas, interessadas na in<strong>de</strong>pendência como forma <strong>de</strong><br />

conservar o status quo socioeconômico. Neste sentido, <strong>de</strong>stacam-se Venezuela<br />

e Nova Granada, até que na segunda etapa da guerra os setores populares se<br />

incorporam ao Exército Libertador, e o próprio Simón Bolívar dá uma guinada<br />

programática antiescravagista e com medidas favoráveis aos humil<strong>de</strong>s. O<br />

enfrentamento entre os dois pólos – o oligárquico e o progressista – é a marca<br />

dos movimentos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntistas no rio da Prata. Já na América Central<br />

predominam as elites criollas aferradas ao po<strong>de</strong>r metropolitano por t<strong>em</strong>er<br />

uma insurreição popular como a que ocorreu no México. Na etapa final das<br />

lutas <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, estas elites mexicanas e centro-americanas se somam<br />

ao processo quando seu <strong>de</strong>senlace torna-se óbvio e inevitável.<br />

A in<strong>de</strong>pendência do Brasil está estreitamente vinculada à invasão francesa<br />

<strong>de</strong> Portugal, pois essa colônia luso-americana foi o lugar <strong>de</strong> refúgio da<br />

corte <strong>de</strong> D. João VI, fato que representa o estabelecimento <strong>de</strong> uma autonomia<br />

virtual, favorável aos interesses da aristocracia criolla. Com o regresso da<br />

corte imperial a Lisboa, e com as tentativas dos liberais portugueses <strong>de</strong><br />

reativar a relação colonial com o Brasil, D. Pedro <strong>de</strong> Bragança, filho do<br />

imperador, apoiado pela aristocracia brasileira, rompe os vínculos com a<br />

metrópole <strong>em</strong> 7 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1822 e se autoproclama imperador do<br />

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Brasil. O novo império brasileiro se consolida <strong>em</strong> 1824, após a <strong>de</strong>rrota das<br />

forças colonialistas portuguesas e da rebelião republicana <strong>de</strong> Pernambuco.<br />

Com a in<strong>de</strong>pendência da América Latina (Hernán<strong>de</strong>z et alii, 1981), essa<br />

região conformada pela antiga América hispânica e pelo Brasil muda seu<br />

status <strong>de</strong> apêndice “colonial” para o <strong>de</strong> apêndice “neocolonial” do capitalismo.<br />

A isso se soma o fracasso dos i<strong>de</strong>ais acalentados por inúmeros patriotas<br />

<strong>de</strong> que a “in<strong>de</strong>pendência” e a “integração política” foss<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos<br />

indissolúveis da <strong>em</strong>ancipação. Sua expressão primeira é o pensamento <strong>de</strong><br />

Bolívar, que i<strong>de</strong>ntifica na unida<strong>de</strong> da América Meridional a condição indispensável<br />

para <strong>de</strong>rrotar o pan-americanismo “monroísta 5 ” – a América para<br />

os (norte) americanos – promovido pelos governantes estaduni<strong>de</strong>nses.<br />

As repúblicas surgidas do fim do império colonial espanhol na América<br />

não têm um <strong>de</strong>senvolvimento econômico e uma estrutura social capitalista<br />

capazes <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> base para integrar e conformar a “unida<strong>de</strong> nacional” <strong>de</strong><br />

regiões tão extensas e distintas. Não só é impossível criar uma nação hispanoamericana<br />

como fracassam até mesmo as tentativas <strong>de</strong> criar unida<strong>de</strong>s estatais<br />

parciais: a Gran<strong>de</strong> Colômbia (Venezuela, Nova Granada e Equador), a<br />

confe<strong>de</strong>ração peruano-boliviana e a Fe<strong>de</strong>ração do Centro da América<br />

(Guat<strong>em</strong>ala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica). O antigo<br />

Vice-Reino do Rio da Prata (Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai) também<br />

se fragmenta. Outro é o curso dos acontecimentos no Brasil, on<strong>de</strong> o<br />

interesse <strong>em</strong> preservar a escravidão leva a aristocracia a dar apoio <strong>de</strong>cisivo às<br />

forças militares do império dos Bragança (1822-1889), as quais consolidam<br />

a unida<strong>de</strong> nacional <strong>em</strong> 1848, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sufocar as guerras civis<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas por vários movimentos separatistas e regionais, entre as quais<br />

se <strong>de</strong>staca a Guerra dos Farrapos (1835-1845), no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

O panorama da in<strong>de</strong>pendência se caracteriza pela fragmentação <strong>em</strong> repúblicas<br />

e pelo enfrentamento entre os territórios e povos com os quais<br />

Bolívar sonhava construir a unida<strong>de</strong> latino-americana. Essas repúblicas nas-<br />

5 Monroísta refere-se à Doutrina Monroe, estabelecida pelo presi<strong>de</strong>nte dos Estados Unidos, James<br />

Monroe, <strong>em</strong> 1823, mediante sua célebre frase: “América para os americanos” – que, na realida<strong>de</strong>,<br />

queria dizer: América Latina para os norte-americanos. Monroe proclamava, assim, que os Estados<br />

Unidos não permitiriam a nenhuma potência européia colonizar ou recolonizar nenhum território<br />

do continente americano.<br />

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c<strong>em</strong> sub<strong>de</strong>senvolvidas, atadas pela <strong>de</strong>pendência econômica, pelo intercâmbio<br />

<strong>de</strong>sigual e pelo endividamento externo a metrópoles neocolonialistas.<br />

Em tais condições, <strong>de</strong>stacam-se a participação do Estado na economia, que<br />

surge como o único ente capaz <strong>de</strong> captar créditos e mobilizar capitais, o uso<br />

do po<strong>de</strong>r político como meio <strong>de</strong> apropriar-se <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s e riqueza, e o<br />

auge da violência e do militarismo (<strong>em</strong> suas variantes <strong>de</strong> ditadura militar e<br />

autoritarismo civil), como mecanismos indispensáveis para conter e reprimir<br />

a irrupção das contradições <strong>de</strong>correntes da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social.<br />

A <strong>de</strong>struição ocasionada pela guerra e a substituição do sist<strong>em</strong>a colonial<br />

espanhol pelo norte-americano ou britânico, conforme o caso, provocam<br />

uma crise econômica que exacerba as contradições inerentes à abolição da<br />

velha or<strong>de</strong>m e o surgimento das novas socieda<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, aqui inclusa<br />

a perseguição à qual são submetidos os funcionários, militares e clérigos<br />

do antigo regime. A violência generalizada e a fragilida<strong>de</strong> estrutural das<br />

novas repúblicas resultam na permanência da militarização, fato que, <strong>de</strong><br />

um lado, se torna el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong>mocratizador, que permite a mobilida<strong>de</strong> social<br />

<strong>de</strong> índios, negros, mestiços e brancos pobres transformados <strong>em</strong> oficiais<br />

dos exércitos insurrectos, e, <strong>de</strong> outro, <strong>em</strong> freio para que essa <strong>de</strong>mocratização<br />

não se estenda além do inevitável. Em tais circunstâncias se estabelece um<br />

equilíbrio <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sfavorável à cida<strong>de</strong> e favorável ao campo, <strong>em</strong> função<br />

da importância adquirida pelas massas rurais na conformação dos exércitos.<br />

Em vez <strong>de</strong> ocupar o lugar privilegiado que os peninsulares monopolizavam<br />

na colônia, as elites criollas urbanas ficaram <strong>em</strong>pobrecidas pela <strong>de</strong>struição <strong>de</strong><br />

suas proprieda<strong>de</strong>s e pela incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> evitar que os britânicos se apropriass<strong>em</strong><br />

do comércio <strong>de</strong> além-mar, o que resultou na perda <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r<br />

político e na diminuição <strong>de</strong> seu status social. Aqueles que antes ocupavam o<br />

topo da pirâmi<strong>de</strong> social criolla tornam-se <strong>em</strong>pregados das estruturas políticoadministrativas,<br />

do exército e dos latifundiários. Em contrapartida, os maiores<br />

vencedores são os latifundiários convertidos <strong>em</strong> generais, e os generais<br />

convertidos <strong>em</strong> latifundiários, cuja posse maior – a terra – não foi <strong>de</strong>struída<br />

pelo conflito, e que sob as novas circunstâncias exerc<strong>em</strong> o controle das massas<br />

camponesas das quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r militar e, por conseguinte, o po<strong>de</strong>r<br />

político. Neste contexto, registra-se a mudança do papel socioeconômico exercido<br />

pela Igreja <strong>de</strong>vido ao seu <strong>em</strong>pobrecimento, à substituição <strong>de</strong> bispos e<br />

sacerdotes fiéis à realeza por patriotas e à subordinação da Igreja ao po<strong>de</strong>r<br />

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civil. Essa metamorfose se compl<strong>em</strong>enta com a limitada ascensão social das<br />

camadas inferiores das cida<strong>de</strong>s e das zonas rurais <strong>de</strong> trabalho livre, com a<br />

obsolescência da escravidão e com a submissão da população negra a novas<br />

formas <strong>de</strong> discriminação e subordinação.<br />

2. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO<br />

O <strong>de</strong>saparecimento dos impérios coloniais da Espanha e <strong>de</strong> Portugal abriu o<br />

caminho para o estabelecimento na América Latina <strong>de</strong> uma nova “forma <strong>de</strong><br />

dominação e exploração”, o “neocolonialismo”, que respon<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

alcançado pelo sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> produção capitalista. Assim como no transcurso dos<br />

séculos XVI, XVII e XVIII o colonialismo havia sido um esteio do processo <strong>de</strong><br />

acumulação originário do capital, da manufatura e do incr<strong>em</strong>ento da indústria<br />

capitalista, no século XIX o neocolonialismo <strong>em</strong>erge como nova forma <strong>de</strong> dominação<br />

e exploração na etapa da Revolução Industrial, e consolida-se paralelamente<br />

à transformação do capitalismo pré-monopolista <strong>em</strong> capitalismo<br />

monopolista. Em essência, “o neocolonialismo foi o fundamento da metamorfose<br />

do capitalismo <strong>de</strong> livre concorrência <strong>em</strong> capitalismo monopolista e, por<br />

conseguinte, do surgimento e <strong>de</strong>senvolvimento do imperialismo”.<br />

O neocolonialismo se caracteriza pela in<strong>de</strong>pendência institucional “formal”<br />

da nova colônia, que camufla a subordinação política e a <strong>de</strong>pendência<br />

econômica <strong>em</strong> relação à metrópole. A gran<strong>de</strong> potência que estabelece a dominação<br />

neocolonial sobre a maioria dos antigos impérios luso e hispanoamericanos,<br />

especialmente na América do Sul, é a Grã-Bretanha. Não<br />

obstante, à medida que seu <strong>em</strong>ergente po<strong>de</strong>rio lhe permite, os Estados<br />

Unidos impõ<strong>em</strong> seu domínio ao México e à América Central. Na América<br />

Latina, o neocolonialismo não é assegurado imediatamente após a conclusão<br />

do processo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência do subcontinente (1825), e sim por volta<br />

<strong>de</strong> duas décadas e meia mais tar<strong>de</strong>. Essa <strong>de</strong>mora se constitui <strong>em</strong> um dos<br />

fatores <strong>de</strong>terminantes das diferenças existentes entre a dominação colonial e<br />

a neocolonial. Após um longo processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> uma “consciência<br />

nacional”, <strong>de</strong> 15 anos <strong>de</strong> guerra contra o colonialismo na América hispânica<br />

e <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 25 anos <strong>de</strong> existência como repúblicas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, não era<br />

possível à América Latina reproduzir com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos<br />

a mesma relação que antes mantinha com as metrópoles ibéricas.<br />

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A <strong>de</strong>mora da Grã-Bretanha <strong>em</strong> consolidar seu domínio neocolonial na<br />

América Latina <strong>de</strong>veu-se ao fato <strong>de</strong> a Revolução Industrial ter açambarcado<br />

quase todos os capitais disponíveis no país até a década <strong>de</strong> 1870. A economia<br />

britânica naquele momento precisava “verter quantida<strong>de</strong>s relativamente<br />

constantes <strong>de</strong> produtos industriais” nos mercados <strong>de</strong> seus sócios comerciais,<br />

enquanto a América Latina permanecia “um mercado com capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> consumo muito variável” (Hernán<strong>de</strong>z, 1984). No que diz respeito aos<br />

Estados Unidos, o atraso <strong>de</strong>rivava do fato <strong>de</strong> o país ter estado imerso até<br />

1853 <strong>em</strong> sua própria expansão territorial. A partir <strong>de</strong>ste ano, o neocolonialismo<br />

torna-se a forma <strong>em</strong>pregada pela potência <strong>em</strong>ergente para impor sua<br />

dominação aos territórios da bacia do Caribe que não po<strong>de</strong> anexar <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong><br />

da resistência <strong>de</strong>ssas nações e da oposição britânica.<br />

O afiançamento da dominação neocolonial britânica na América do<br />

Sul ocorre entre 1850 e 1873. Durante essa etapa amplia-se a <strong>de</strong>manda<br />

européia <strong>de</strong> produtos tradicionais latino-americanos, abre-se o mercado<br />

europeu a seus produtos não-tradicionais e se estabelece um fluxo <strong>de</strong> capitais<br />

que inclui investimentos metropolitanos no comércio e nos transportes,<br />

logo ampliado a outros setores, e créditos aos governos. Ainda que<br />

a crise econômica <strong>de</strong> 1873 retraia as importações européias e interrompa<br />

os créditos dos quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m os governos latino-americanos para funcionar<br />

e saldar as dívidas anteriores, a relação econômica neocolonial consegue<br />

superar esse obstáculo e atingir a maturida<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> 1880,<br />

etapa correspon<strong>de</strong>nte à transformação do “capitalismo <strong>de</strong> livre concorrência”<br />

<strong>em</strong> “capitalismo monopolista”, que t<strong>em</strong> como uma <strong>de</strong> suas características<br />

a exportação <strong>de</strong> capitais.<br />

A relação neocolonial que se consolida a partir <strong>de</strong> 1880 baseia-se <strong>em</strong><br />

uma divisão do trabalho <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da qual a América Latina exporta<br />

matérias-primas e alimentos e importa produtos industriais. Paulatinamente<br />

vai se reduzindo o componente perecível <strong>de</strong>ssa importação <strong>em</strong> favor<br />

<strong>de</strong> bens <strong>de</strong> capital, produtos da nova metalurgia e combustíveis. Na<br />

maturida<strong>de</strong> do neocolonialismo, a divisão do trabalho se modifica <strong>em</strong><br />

favor das potências industriais. Inclusive lá on<strong>de</strong> as elites criollas retêm o<br />

controle da produção primária, a <strong>de</strong>pendência se acentua como resultante<br />

da monopolização financeira, mercantil e tecnológica, ao passo que a<br />

<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> capital no setor primário estimula a penetração externa. O<br />

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mesmo ocorre com a construção <strong>de</strong> estradas <strong>de</strong> ferro, frigoríficos, silos e<br />

usinas açucareiras. Os gran<strong>de</strong>s latifundiários, que se fortaleceram <strong>em</strong> razão<br />

da guerra <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, têm seu po<strong>de</strong>r econômico erodido pelo<br />

papel predominante que assum<strong>em</strong> os investidores e comerciantes metropolitanos.<br />

Com ritmos que variam <strong>de</strong> país a país, vão surgindo classes<br />

médias urbanas que reivindicam cada vez mais e setores operários que<br />

conquistam seu próprio protagonismo social.<br />

Embora os mercados europeus <strong>de</strong> exportação tendam a se diversificar<br />

durante a maturida<strong>de</strong> do neocolonialismo, a Grã-Bretanha se afirma como<br />

a principal fornecedora mercantil da América do Sul e mantém o controle<br />

dos sist<strong>em</strong>as bancário e financeiro sobre os quais se sustenta o comércio da<br />

região com outros países. De modo que ela é a principal metrópole<br />

neocolonial da América Latina quando, <strong>em</strong> 1889-1890, celebra-se a Conferência<br />

<strong>Internacional</strong> Americana <strong>de</strong> Washington, primeira tentativa do<br />

nascente imperialismo norte-americano <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> dominação<br />

continental.<br />

Des<strong>de</strong> a in<strong>de</strong>pendência (1776), os chamados pais-fundadores dos Estados<br />

Unidos da América assentam as bases da expansão territorial e da<br />

dominação colonial e neocolonial características das relações do imperialismo<br />

norte-americano com o restante do continente. Já <strong>em</strong> 1777, o então<br />

<strong>em</strong>baixador Benjamin Franklin promove o assentamento <strong>de</strong> colonos<br />

na Louisiana com fins <strong>de</strong> anexação. Quando, <strong>em</strong> 1809, <strong>em</strong> Quito, se<br />

produz o Primeiro Grito <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência da América Hispânica, os Estados<br />

Unidos já haviam invadido a Flórida oriental (1795), comprado da<br />

França a Louisiana (1803), realizado a primeira tentativa <strong>de</strong> anexação <strong>de</strong><br />

Cuba (1803), atacado, durante anos, os postos espanhóis no rio Gran<strong>de</strong> e<br />

na Louisiana oci<strong>de</strong>ntal, enviado expedições contra o Texas e a Califórnia, e<br />

<strong>de</strong>spojado 20 milhões <strong>de</strong> hectares <strong>de</strong> terra dos indígenas. Quando culminam<br />

as lutas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntistas na América do Sul (1825), já havia ocorrido<br />

a segunda tentativa <strong>de</strong> anexação <strong>de</strong> Cuba e a primeira <strong>de</strong> Porto Rico<br />

(1811); a Espanha já havia entregado a Flórida oci<strong>de</strong>ntal e a oriental<br />

(1819), o México (in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1821) sofria a política <strong>de</strong> “fronteira<br />

móvel”, John Quincy Adams havia promovido um pacto com a Grã-<br />

Bretanha e a França para evitar a libertação <strong>de</strong> Cuba e <strong>de</strong> Porto Rico, e já<br />

havia sido proclama a Doutrina Monroe (1823).<br />

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Até 1825, os Estados Unidos mantiveram uma suposta política <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong><br />

diante da Guerra <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência hispano-americana, que, entretanto,<br />

não os impediu <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r armas e munições à Espanha. Depois<br />

da in<strong>de</strong>pendência latino-americana, ocorr<strong>em</strong> a sublevação do Texas (1832),<br />

o reconhecimento <strong>de</strong> sua in<strong>de</strong>pendência pelo governo dos Estados Unidos<br />

(1837), a “consumação” do “Destino Manifesto” (<strong>de</strong> expansão até o oceano<br />

Pacífico), “legitimado” <strong>em</strong> 1848 com o Tratado <strong>de</strong> Guadalupe–Hidalgo, no<br />

qual o México ce<strong>de</strong> o Texas, o Novo México e a Califórnia. Finalmente, após<br />

a fracassada tentativa do flibusteiro William Walker <strong>de</strong> arrebatar mais territórios<br />

do México, o governo dos Estados Unidos impõe a chamada “compra<br />

<strong>de</strong> Gadsen” (1853), a partir da qual fica estabelecida a atual fronteira entre<br />

os dois países.<br />

Apesar <strong>de</strong> alguns “pioneiros” sonhar<strong>em</strong> com a expansão dos Estados<br />

Unidos não só do Atlântico ao Pacífico, mas também da costa do mar<br />

Ártico até o cabo Horn, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sete décadas <strong>de</strong> conquistas, <strong>de</strong>sapropriações,<br />

compras e anexações, <strong>em</strong> 1853 conclui-se, no que é fundamental, a<br />

conformação da massa territorial da nascente potência, e passa então para<br />

o primeiro plano a disputa da dominação colonial e neocolonial exercida<br />

pela Espanha, pela Grã-Bretanha e por outras metrópoles européias no<br />

resto do continente. A expansão territorial dos Estados Unidos se completa<br />

com a incorporação dos estados do Alasca (comprado da Rússia <strong>em</strong><br />

1867) e do Havaí (anexado <strong>em</strong> 1898 e integrado à União <strong>em</strong> 1990). No<br />

entanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1850, a resistência dos povos mexicano e centro-americano<br />

e a oposição britânica à ocupação e à anexação <strong>de</strong> novos<br />

territórios os obrigam a limitar a ampliação <strong>de</strong> seu domínio principalmente<br />

mediante o neocolonialismo. Essa ampliação, executada por meio<br />

<strong>de</strong> intervenções militares, da imposição <strong>de</strong> governantes e corpos repressivos<br />

submissos, e <strong>de</strong> todo tipo <strong>de</strong> pressões políticas e econômicas, começa<br />

a ser aplicada na bacia do Caribe para logo se esten<strong>de</strong>r para a América do<br />

Sul, na medida <strong>em</strong> que o incr<strong>em</strong>ento do po<strong>de</strong>r do imperialismo norteamericano<br />

lhe permite disputar o controle que sobre essa região exerce o<br />

imperialismo britânico (Hernán<strong>de</strong>z, 2002).<br />

A primeira ingerência do governo estaduni<strong>de</strong>nse na América Latina e no<br />

Caribe é representada pela ajuda dada à França pelo presi<strong>de</strong>nte George<br />

Washington, <strong>em</strong> 1791, para que enfrente o <strong>de</strong>spertar da Revolução Haitiana.<br />

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Apesar da in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>ste país ter se efetivado <strong>em</strong> 1804, as autorida<strong>de</strong>s<br />

dos Estados Unidos só reconheceram a República do Haiti <strong>em</strong> 1862.<br />

No transcurso <strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong> um século, a partir <strong>de</strong> então até a guerra<br />

hispano-cubano-norte-americana, são numerosos os registros <strong>de</strong> atos <strong>de</strong><br />

ingerência e intervenção estaduni<strong>de</strong>nse nas lutas <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência das<br />

nascentes repúblicas latino-americanas e <strong>em</strong> seus assuntos internos. Entre esses<br />

atos <strong>de</strong>stacam-se as violações cometidas por William Walker na América<br />

Central entre 1855 e 1860. O governo dos Estados Unidos recorre<br />

freqüent<strong>em</strong>ente ao argumento da <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> vidas e proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cidadãos<br />

estaduni<strong>de</strong>nses para justificar sua intervenção militar na região.<br />

A principal ação expansionista do imperialismo norte-americano na transição<br />

do século XIX para o século XX é a intervenção na guerra <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />

<strong>de</strong> Cuba contra a Espanha (1898) – que Lenin consi<strong>de</strong>ra a primeira guerra<br />

<strong>de</strong> caráter imperialista –, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da qual rouba do Exército Libertador<br />

a <strong>de</strong>rrota que estava a ponto <strong>de</strong> infligir à metrópole, ocupa Cuba e estabelece<br />

seu domínio colonial sobre Porto Rico, Filipinas e Guam (Huntington, 1994).<br />

Outro acontecimento <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático <strong>de</strong>sse período é a subscrição do Tratado<br />

Hay–Pauncefote entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, que <strong>de</strong>ixa s<strong>em</strong> efeito<br />

acordos anteriores e autoriza os primeiros a construir um canal interoceânico<br />

no istmo centro-americano. Esse tratado representa o reconhecimento implícito<br />

<strong>de</strong> uma divisão das esferas <strong>de</strong> influência dos imperialismos anglo-saxões<br />

no continente: a Grã-Bretanha e outras potências européias aceitam a dominação<br />

estaduni<strong>de</strong>nse sobre as nações latino-americanas ao norte do rio Amazonas,<br />

enquanto os Estados Unidos concordam – momentaneamente – <strong>em</strong><br />

respeitar o status quo das colônias européias do Caribe e o império neocolonial<br />

britânico no restante da América do Sul (Ianni, 1995).<br />

Nos primeiros anos do século XX, o presi<strong>de</strong>nte Theodore Roosevelt (1901-<br />

1909), artífice da política do Big Stick (gran<strong>de</strong> porrete) 6 , elabora, entre<br />

1903 e 1906 (Kanoussi, 1996), o conhecido Corolário Roosevelt da Doutrina<br />

Monroe, que afirma o direito exclusivo do imperialismo norte-americano<br />

<strong>de</strong> praticar a força para obrigar as repúblicas latino-americanas a saldar<br />

6 A política do big stick (gran<strong>de</strong> porrete), do presi<strong>de</strong>nte dos Estados Unidos Theodore Roosevelt<br />

(1901-1909), refere-se à aplicação <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> força, <strong>de</strong> ingerência e intervenção. A frase é <strong>de</strong><br />

T. Roosevelt: “fale suav<strong>em</strong>ente, mas carregue um gran<strong>de</strong> porrete (big stick)”.<br />

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suas dívidas internacionais. Durante seu mandato ocorr<strong>em</strong>: a secessão forçada<br />

do Panamá (1903), que <strong>de</strong>sconhece a negativa da Colômbia à construção<br />

do canal interoceânico; a invasão militar da República Dominicana<br />

(1904), que dá lugar à intervenção alfan<strong>de</strong>gária <strong>de</strong>sse país (1905-1912); a<br />

segunda ocupação <strong>de</strong> Cuba (1906-1909); a interposição da infantaria da<br />

marinha com o propósito <strong>de</strong> obter divi<strong>de</strong>ndos políticos das guerras<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas entre Guat<strong>em</strong>ala e El Salvador (1906), e entre Honduras e<br />

Nicarágua (1907); as ações intervencionistas que levam à renúncia do presi<strong>de</strong>nte<br />

Santos Zelaya na Nicarágua (1909). O sucessor <strong>de</strong> Theodore<br />

Roosevelt, William Taft (1909-1913), protagoniza a intervenção militar<br />

<strong>em</strong> Honduras para <strong>de</strong>rrotar o presi<strong>de</strong>nte Miguel Dávila (1911), a intervenção<br />

militar na Nicarágua para frustrar a rebelião encabeçada por Benjamín<br />

Zeledón (1912), e dá início à política <strong>de</strong> ameaças, pressões e agressões com<br />

vista ao enfraquecimento da Revolução Mexicana (1910-1917).<br />

Entre 1913 e 1921, etapa da chamada “diplomacia missioneira” <strong>de</strong><br />

Woodrow Wilson, com o pretexto <strong>de</strong> “promover a <strong>de</strong>mocracia” e “frear a<br />

penetração al<strong>em</strong>ã”, o governo dos Estados Unidos amplia a ingerência nos<br />

assuntos internos mexicanos, ocupa militarmente o Haiti e intervém na<br />

alfân<strong>de</strong>ga do país (1915-1934), ocupa a República Dominicana (1916-<br />

1924), intervém no Panamá (1918), apóia golpes <strong>de</strong> Estado e ditaduras<br />

civis e militares <strong>em</strong> países da América Central e do Sul, e aproveita-se da<br />

Primeira Guerra Mundial para consolidar seu domínio político, econômico<br />

e militar na bacia do Caribe e para <strong>de</strong>slocar da América do Sul os capitais da<br />

Al<strong>em</strong>anha e <strong>de</strong> seus aliados.<br />

Em <strong>de</strong>corrência do impasse provocado pela Primeira Guerra Mundial, com<br />

a <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> um suposto abandono do intervencionismo e <strong>de</strong> um maior<br />

respeito à soberania das nações latino-americanas, a política dos presi<strong>de</strong>ntes<br />

Warren Harding (1921-1923), Calvin Coolidge (1923-1929) e Herbert<br />

Hoover (1929-1933) durante a <strong>de</strong>nominada “restauração republicana” caracteriza-se<br />

pelo apoio às ditaduras militares – implantadas para conter as<br />

lutas populares <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas pela crise – e por uma política que busca tirar<br />

proveito dos conflitos <strong>de</strong> natureza diversa existentes entre e no interior <strong>de</strong><br />

várias nações. Ao longo <strong>de</strong>sses anos há várias intervenções militares: uma no<br />

Panamá, para reprimir protestos populares (1921); duas <strong>em</strong> Honduras, para<br />

se “interpor” à guerra travada por forças políticas <strong>em</strong> conflito (1923 e 1924);<br />

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e uma na Nicarágua (1926), a qual se transforma <strong>em</strong> enfrentamento contra o<br />

“Pequeño Ejército Loco” do general Augusto C. Sandino.<br />

Em síntese, o imperialismo norte-americano se concentra <strong>em</strong> assegurar<br />

seu domínio político, econômico e militar sobre o México, a América Central,<br />

a franja norte da América do Sul e as nações in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do mar do<br />

Caribe, até que a crise <strong>de</strong> 1929-1933 quebra o sist<strong>em</strong>a colonial britânico e<br />

lhe abre o caminho para os <strong>de</strong>mais países da América Latina. Ainda que a<br />

Gran<strong>de</strong> Depressão golpeie fort<strong>em</strong>ente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha,<br />

seu efeito nas relações das duas potências com a América Latina é diferente.<br />

Isso se <strong>de</strong>ve a que a dominação estaduni<strong>de</strong>nse se baseia mais na proximida<strong>de</strong><br />

geográfica e na força militar – el<strong>em</strong>entos que não se alteram com a crise<br />

–, ao passo que, no caso britânico, a dominação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> manutenção da supr<strong>em</strong>acia comercial e financeira.<br />

Durante o período compreendido entre a Gran<strong>de</strong> Depressão e o final da<br />

Segunda Guerra Mundial transcorre a presidência <strong>de</strong> Franklin Delano<br />

Roosevelt (1930-1945), que aplica a chamada política da boa vizinhança,<br />

durante a qual não se registram intervenções militares norte-americanas na<br />

América Latina e no Caribe. Roosevelt interage tanto com as ditaduras civis<br />

e militares como com os governos liberais constitucionalistas <strong>de</strong> orientação<br />

progressista. A política da boa vizinhança preconiza que o governo dos Estados<br />

Unidos renuncie à intervenção armada contra as repúblicas latinoamericanas.<br />

Essa política começa a ser aplicada <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o imperialismo<br />

norte-americano haver instalado nos governos dos países da bacia do Caribe,<br />

que antes invadia, ditadores e guardas nacionais dóceis, como foi o caso <strong>de</strong><br />

Anastácio Somoza, na Nicarágua, e Rafael Leonidas Trujillo, na República<br />

Dominicana. Essa mudança formal da política neocolonial não abriu mão<br />

das sanções econômicas e políticas. Não obstante, <strong>em</strong>bora tenham sido muitas<br />

as pressões exercidas pelo governo Roosevelt <strong>em</strong> represália à nacionalização<br />

do petróleo mexicano, <strong>de</strong>cretada por Lázaro Cár<strong>de</strong>nas, a situação internacional,<br />

do México e dos próprios Estados Unidos, o impediu <strong>de</strong> recorrer à<br />

usual agressão militar <strong>de</strong> seus pre<strong>de</strong>cessores.<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente da situação <strong>de</strong> cada país, a resposta das classes dominantes<br />

diante da ampliação das lutas populares e das <strong>de</strong>mandas por uma<br />

maior <strong>de</strong>mocratização é a tentativa <strong>de</strong> estabelecer um equilíbrio social por<br />

meio tanto do liberalismo constitucional como da ditadura militar ou civil,<br />

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<strong>em</strong> todos os casos com uma base <strong>de</strong> apoio político sustentada na convergência<br />

<strong>de</strong> interesses dos setores sociais urbanos <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento dos rurais. No<br />

caso dos países <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>senvolvimento político, econômico e social relativo,<br />

tais como Argentina e Chile, on<strong>de</strong> era possível assimilar seletivamente<br />

certas <strong>de</strong>mandas das camadas médias e do proletariado, a resposta foi o<br />

liberalismo constitucional. No entanto, contra o liberalismo conspirava a quase<br />

nula incorporação do campo – <strong>em</strong> que a oligarquia latifundiária conservadora<br />

exercia o controle das massas rurais <strong>em</strong>pobrecidas – à vida políticoeconômica<br />

nacional.<br />

Entre as soluções liberais aplicadas antes e durante a Segunda Guerra<br />

Mundial <strong>de</strong>stacam-se: na Colômbia, os governos <strong>de</strong> Enrique Olaya (1930-<br />

1934) e Alfonso López Pumarejo (1934-1938 e 1942-1946); no México,<br />

o sexênio do governo <strong>de</strong> Lázaro Cár<strong>de</strong>nas (1934-1940) – durante o qual a<br />

política nacionalista revolucionária atingiu o ápice – e o <strong>de</strong> Miguel Ávila<br />

Camacho (1941-1946); no Chile, o governo da Frente Popular, encabeçado<br />

por Pedro Aguirre (1938-1942), e o da Aliança D<strong>em</strong>ocrática, presidido<br />

por Juan Antonio Ríos (1942-1946); na Costa Rica, os governos <strong>de</strong> Ángel<br />

Cal<strong>de</strong>rón (1940-1944) e Teodoro Picado (1944-1948), <strong>de</strong> cuja aliança<br />

participou o Partido Vanguardista Popular (comunista). Por outro lado,<br />

entre os projetos populistas <strong>de</strong>stacam-se: no Brasil, o governo <strong>de</strong> Getúlio<br />

Vargas (1930-1945), <strong>em</strong> particular posteriormente a 1937, ano <strong>em</strong> que<br />

rompe a aliança com o Partido Integralista (fascista); e na Argentina o golpe<br />

<strong>de</strong> Estado (1943), a partir do qual ganha relevância a figura <strong>de</strong> Juan Domingo<br />

Perón, eleito constitucionalmente à presidência <strong>em</strong> 1946. Não é<br />

possível passar ao largo <strong>de</strong> 1944, ano <strong>em</strong> que, na Guat<strong>em</strong>ala, é <strong>de</strong>rrotada a<br />

ditadura <strong>de</strong> Juan José Ubico, o que, um pouco mais tar<strong>de</strong>, abre o caminho<br />

para a fase dos dois governos antiimperialistas encabeçados por Juan José Arévalo<br />

(1945-1950) e Jacobo Arbenz (1951-1954), respectivamente. Para finalizar,<br />

no pós-crise <strong>de</strong> 1929 <strong>de</strong>stacam-se o início das ditaduras <strong>de</strong> Rafael Leonidas<br />

Trujillo, na Republica Dominicana (1931-1960), e o da dinastia implantada<br />

por Anastácio Somoza García (1936-1979), na Nicarágua (Kissinger, 1984).<br />

O imperialismo norte-americano se aproveita do clima internacional existente<br />

antes do início e durante o <strong>de</strong>senrolar da Segunda Guerra Mundial<br />

para frear e reverter a penetração <strong>de</strong> capital europeu na América Latina –<br />

<strong>em</strong> especial al<strong>em</strong>ão e italiano – e para apropriar-se do setor <strong>de</strong> mineração da<br />

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região. Contudo, não se po<strong>de</strong> dizer o mesmo do setor industrial, que permanece<br />

sob o controle das burguesias <strong>de</strong>senvolvimentistas. Até este ponto<br />

havia avançado a dominação política, econômica e militar do imperialismo<br />

norte-americano sobre a América Latina, no momento <strong>em</strong> que o <strong>de</strong>senlace<br />

da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria provocaram mudanças<br />

radicais na situação internacional.<br />

A Segunda Guerra Mundial modifica a configuração <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

relações internacionais que antes havia sido obrigado a acomodar-se com os<br />

resultados da conflagração <strong>de</strong> 1914-1918 e da crise <strong>de</strong> 1929-1933. Entre<br />

esses resultados <strong>de</strong>stacam-se a <strong>de</strong>struição da Europa, a ascensão dos Estados<br />

Unidos à condição <strong>de</strong> primeira potência imperialista mundial, o surgimento<br />

do mundo bipolar, a partir da expansão do socialismo às nações da Europa<br />

Oriental. Desta combinação <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos se origina a Guerra Fria (1946-<br />

1989), ofensiva universal – i<strong>de</strong>ológica, política, econômica, diplomática e<br />

militar – encabeçada pelo imperialismo norte-americano com o intuito <strong>de</strong><br />

“conter o comunismo” e evitar, <strong>em</strong> especial, sua expansão para a Europa<br />

oci<strong>de</strong>ntal, berço das idéias do socialismo e do comunismo, cuja <strong>de</strong>vastação<br />

ameaça servir <strong>de</strong> incentivo à luta popular.<br />

A expressão Guerra Fria é utilizada pela primeira vez por Bernard Baruch,<br />

assessor do presi<strong>de</strong>nte Harry Truman, <strong>em</strong> um discurso pronunciado no dia<br />

16 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1946, <strong>em</strong> Columbia, no estado da Carolina do Sul. Ela é<br />

retomada posteriormente sob a forma <strong>de</strong> título do livro do jornalista Walter<br />

Lippman, e também <strong>em</strong> um famoso discurso do primeiro-ministro britânico<br />

Winston Churchill. Nesse ano, o presi<strong>de</strong>nte Truman promulga a Lei <strong>de</strong> Segurança<br />

Nacional – que dispõe sobre a criação do Conselho <strong>de</strong> Segurança<br />

Nacional e da Agência Central <strong>de</strong> Inteligência (CIA) – e anuncia o lançamento<br />

do Plano para a Reconstrução da Europa, ou Plano Marshall. A partir<br />

<strong>de</strong>ste momento, a noção <strong>de</strong> “segurança nacional” se converte <strong>em</strong> um dogma<br />

inapelável, justificativa para todo tipo <strong>de</strong> ação <strong>de</strong> força interna e externa.<br />

A Guerra Fria se constitui no principal instrumento do imperialismo<br />

norte-americano para ampliar e aprofundar sua dominação na América Latina,<br />

processo que avança mais rápido nos âmbitos político e militar do que<br />

no econômico. Isso se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que a priorida<strong>de</strong> norte-americana é a<br />

reconstrução da Europa oci<strong>de</strong>ntal. Para essa região reorienta o grosso <strong>de</strong><br />

suas exportações <strong>de</strong> capitais, tanto para restabelecer a capacida<strong>de</strong> produtiva<br />

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<strong>de</strong> seu principal parceiro econômico e comercial como para convertê-la <strong>em</strong><br />

um “bastião anticomunista”. De modo que, mesmo que os Estados Unidos<br />

tir<strong>em</strong> partido <strong>de</strong> sua supr<strong>em</strong>acia mundial para expandir a penetração econômica<br />

monopolista na América Latina, os capitais disponíveis para tal <strong>em</strong>preitada<br />

são limitados.<br />

A Doutrina Truman é a encarnação da política da Guerra Fria na América<br />

Latina. Com o pretexto <strong>de</strong> combater a “ameaça do comunismo”, durante<br />

sua presidência (1945-1952), Truman lança uma ofensiva <strong>de</strong>stinada<br />

à <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> todas as forças políticas latino-americanas tidas como<br />

obstáculo à ampliação e ao aprofundamento <strong>de</strong> seu domínio continental.<br />

Essa política se aplica especialmente contra os partidos comunistas e outras<br />

organizações socialistas, progressistas e <strong>de</strong>mocráticas que haviam participado<br />

das chamadas frentes populares antifascistas promovidas pela<br />

União Soviética.<br />

A atuação <strong>de</strong> diversos governos foi conseqüente com a Doutrina Truman:<br />

na Colômbia, os governos <strong>de</strong> Mariano Ospina (1946-1950) e Carlos<br />

Urdaneta (1950-1953); no Brasil, o <strong>de</strong> Eurico Gaspar Dutra (1946-1951);<br />

no Chile, o <strong>de</strong> Gabriel González Vi<strong>de</strong>la (1947-1952); no México, o <strong>de</strong><br />

Miguel Al<strong>em</strong>án (1946-1952); no Equador, o <strong>de</strong> Galo Plaza (1948-1952);<br />

na Costa Rica, os <strong>de</strong> José Figueres (1948-1949) e Otilio Oñate (1949-<br />

1953); no Peru, a ditadura <strong>de</strong> Manuel Odría (1948-1956); e na Venezuela<br />

a ditadura <strong>de</strong> Marcos Pérez Jiménez.<br />

A Guerra Fria na América Latina encontra continuida<strong>de</strong> na política do<br />

presi<strong>de</strong>nte Dwight Eisenhower, cuja principal ação <strong>de</strong> força na região foi<br />

a <strong>de</strong>rrubada do governo <strong>de</strong> Jacobo Arbenz na Guat<strong>em</strong>ala, <strong>em</strong> 1954. Além<br />

do golpe contra Arbenz e <strong>de</strong> sua substituição pela ditadura <strong>de</strong> Carlos<br />

Castillo Armas (1954-1957), Eisenhower também estimulou a queda dos<br />

governos <strong>de</strong> Getúlio Vargas no Brasil (1954), <strong>de</strong> Juan Domingo Perón na<br />

Argentina (1955) e <strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>rico Chaves no Paraguai, dando orig<strong>em</strong> à ditadura<br />

<strong>de</strong> Alfredo Strossner (1956-1989). Ao mesmo t<strong>em</strong>po contribuiu<br />

para <strong>de</strong>bilitar os conteúdos da Revolução Boliviana nos governos <strong>de</strong> Víctor<br />

Paz Estensoro (1952-1956) e <strong>de</strong> Hernán Siles Suazo (1956-1960). Também<br />

neste período t<strong>em</strong> início a ditadura <strong>de</strong> Jean Clau<strong>de</strong> Duvalier no<br />

Haiti. Finalmente, <strong>em</strong> razão do triunfo da Revolução Cubana <strong>em</strong> janeiro<br />

<strong>de</strong> 1959, Eisenhower or<strong>de</strong>na a criação <strong>de</strong> um plano <strong>de</strong> agressão s<strong>em</strong>e-<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

lhante ao <strong>em</strong>pregado contra o governo <strong>de</strong> Arbenz. A execução <strong>de</strong>sse plano<br />

levou, <strong>em</strong> abril <strong>de</strong> 1961, seu sucessor, o presi<strong>de</strong>nte John F. Kennedy, à<br />

<strong>de</strong>rrota na invasão <strong>de</strong> Playa Girón (baía dos Porcos).<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

202<br />

(Tradução Mila Frati)<br />

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Alexandre Fortes<br />

A trajetória do Brasil: construção<br />

nacional e inserção internacional<br />

Alexandre Fortes 1<br />

A reflexão sobre o processo <strong>de</strong> construção nacional do Brasil exige a articulação<br />

<strong>de</strong> vários âmbitos <strong>de</strong> análise. Comentar<strong>em</strong>os aqui algumas questões<br />

que pautam o <strong>de</strong>bate sobre as particularida<strong>de</strong>s da formação social brasileira.<br />

Para efeito didático, as agrupar<strong>em</strong>os <strong>em</strong> quatro campos interligados: a inserção<br />

do Brasil no sist<strong>em</strong>a econômico mundial; a configuração territorial e<br />

populacional; a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural; e a integração social e política.<br />

A discussão sobre a natureza da relação entre o Brasil e a economia mundial<br />

foi intensa ao longo do século XX, particularmente a partir da difusão<br />

das idéias marxistas no país. Posteriormente, aprofundou-se, <strong>em</strong> função do<br />

papel <strong>de</strong>stacado que pensadores brasileiros, como Celso Furtado, tiveram<br />

no <strong>de</strong>senvolvimento da chamada teoria da <strong>de</strong>pendência e do <strong>de</strong>bate que se<br />

seguiu sobre as limitações presentes nessa teoria.<br />

No que diz respeito às forças políticas <strong>de</strong> esquerda, esse <strong>de</strong>bate teve<br />

s<strong>em</strong>pre impacto <strong>de</strong>cisivo, pois a caracterização da economia nacional e <strong>de</strong><br />

sua relação com o sist<strong>em</strong>a capitalista mundial assumia um papel<br />

<strong>de</strong>terminante na <strong>de</strong>finição das opções referentes a programa, estratégia,<br />

política <strong>de</strong> alianças etc. Tomando apenas um ex<strong>em</strong>plo, a avaliação <strong>de</strong> que<br />

o país seria marcado pela sobrevivência <strong>de</strong> “restos feudais”, ou que <strong>de</strong>terminados<br />

setores da burguesia nacional estariam vinculados ao ascen<strong>de</strong>nte<br />

imperialismo norte-americano, enquanto outros representariam os interesses<br />

do <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte imperialismo britânico, teve, por um longo período,<br />

um papel <strong>de</strong>cisivo na justificativa das linhas políticas adotadas pelo Partido<br />

Comunista Brasileiro (PCB).<br />

1 Professor <strong>de</strong> História Cont<strong>em</strong>porânea da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Rural do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Consi<strong>de</strong>ramos que estas discussões foram, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> medida, obscurecidas<br />

pela influência <strong>de</strong> um fenômeno que foi cont<strong>em</strong>porâneo ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

do pensamento marxista na Europa do século XIX e que se estabeleceu<br />

como padrão mundial especialmente a partir do final da Segunda Guerra<br />

Mundial: a naturalização da idéia <strong>de</strong> Estado nacional. Ou seja, a visão <strong>de</strong><br />

que a existência <strong>de</strong> Estados com domínios territoriais mutuamente<br />

exclu<strong>de</strong>ntes, baseados na idéia <strong>de</strong> que representam um povo ou uma cultura<br />

homogêneos (ou a heg<strong>em</strong>onia interna <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado povo sobre “minorias”),<br />

é um resultado “natural” da evolução histórica.<br />

Visto <strong>de</strong>sta perspectiva, o capitalismo, por ex<strong>em</strong>plo, ten<strong>de</strong> a ser compreendido<br />

como um sist<strong>em</strong>a que surge <strong>em</strong> primeiro lugar “<strong>de</strong>ntro dos Estados”,<br />

para a seguir, com base nos graus distintos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, gerar<br />

relações <strong>de</strong> subordinação e hierarquia “entre os Estados”. Assim, economias<br />

nacionais mais <strong>de</strong>senvolvidas ten<strong>de</strong>m a ser vistas como mo<strong>de</strong>los, e as “lacunas”<br />

ou “imperfeições” dos países periféricos diante <strong>de</strong>sses mo<strong>de</strong>los a ser<br />

vistas <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> incompletu<strong>de</strong> do “capitalismo nacional”. Essas abordagens<br />

têm sido criticadas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970, por teorias como as do<br />

“sist<strong>em</strong>a-mundo”, elaboradas inicialmente por Imanuel Wallerstein, e que<br />

tiveram sua versão mais recente sist<strong>em</strong>atizada <strong>em</strong> O longo século XX, <strong>de</strong><br />

Giovanni Arrighi (1997).<br />

Retomando idéias <strong>de</strong> historiadores da “longa duração”, como Fernand<br />

Brau<strong>de</strong>l, a teoria do “sist<strong>em</strong>a-mundo” vê o capitalismo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as origens,<br />

como um sist<strong>em</strong>a internacional cujo <strong>de</strong>senvolvimento implica a própria<br />

criação <strong>de</strong> diferentes mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> “Estado” e “<strong>em</strong>presa” como vetores compl<strong>em</strong>entares.<br />

Estado nacional e corporações multinacionais seriam, portanto,<br />

apenas a versão mais recente <strong>de</strong> uma divisão <strong>de</strong> papéis que, nos séculos<br />

XVII e XVIII, por ex<strong>em</strong>plo, foi <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhada predominant<strong>em</strong>ente por<br />

impérios coloniais e companhias <strong>de</strong> comércio, como as das Índias Oci<strong>de</strong>ntais<br />

e Orientais.<br />

O capitalismo, nessa perspectiva, não é entendido como uma realida<strong>de</strong><br />

estabelecida a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado momento, <strong>em</strong> ruptura com um passado<br />

“feudal” ou “pré-capitalista”, mas sim como um processo marcado pela<br />

tendência progressiva à acumulação ilimitada <strong>de</strong> riquezas e à subordinação<br />

do conjunto das relações sociais à produção e circulação <strong>de</strong> mercadorias. Ele<br />

evolui, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final do século XV, <strong>em</strong> diferentes estágios marcados pela<br />

204<br />

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Alexandre Fortes<br />

expansão <strong>de</strong> esferas econômicas mundiais, integradas por centros heg<strong>em</strong>ônicos<br />

que se suce<strong>de</strong>m <strong>em</strong> distintos momentos (cida<strong>de</strong>s-Estado do norte da Itália,<br />

da Holanda, da Inglaterra, dos Estados Unidos).<br />

Nesse sentido, mais do que olhar a história para pensar as insuficiências<br />

do Brasil como país capitalista, trata-se <strong>de</strong> pensar o papel que ele, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

suas origens, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhou no <strong>de</strong>senvolvimento do capitalismo mundial e<br />

como, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> medida, esse papel moldou os contornos da construção<br />

<strong>de</strong> seu espaço nacional. Não se trata, como apontam os críticos da escola<br />

dos “sist<strong>em</strong>as-mundo”, <strong>de</strong> ignorar ou <strong>de</strong>sprezar a dinâmica interna do país<br />

e seu grau <strong>de</strong> autonomia relativa, mas sim <strong>de</strong> não tomar como ponto <strong>de</strong><br />

partida uma unida<strong>de</strong> nacional que veio a existir <strong>em</strong> função da conjunção <strong>de</strong><br />

interesses e iniciativas que só po<strong>de</strong>m ser compreendidos a partir <strong>de</strong> processos<br />

internacionais.<br />

Portugal, um Estado europeu frágil e periférico, beneficiou-se <strong>de</strong> sua<br />

posição geográfica privilegiada e <strong>de</strong> sua unificação política precoce <strong>em</strong> um<br />

Estado absolutista para lançar-se a um <strong>em</strong>preendimento <strong>de</strong> vanguarda no<br />

final do século XV: a exploração marítima do Atlântico Sul <strong>em</strong> busca das<br />

valiosas rotas que levavam às especiarias do Oriente. Inicialmente, o mo<strong>de</strong>lo<br />

do império colonial português caracterizou-se, portanto, pelo estabelecimento<br />

<strong>de</strong> entrepostos <strong>em</strong> pontos estratégicos ao longo das costas do Brasil,<br />

da África e <strong>de</strong> diversos pontos da Ásia, que forneciam suporte logístico às<br />

rotas comerciais. Alguns <strong>de</strong>sses pontos evoluíram no sentido da colonização<br />

territorial, na medida <strong>em</strong> que existisse a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong><br />

alguma ativida<strong>de</strong> econômica local. No Brasil, apesar da frustração inicial<br />

com a existência <strong>de</strong> minerais preciosos próximos à costa, a exploração do<br />

pau-brasil possibilitou a primeira base para uma presença mais efetiva.<br />

Mas os dois el<strong>em</strong>entos que viabilizaram o aproveitamento do imenso<br />

potencial territorial do Brasil – plenamente percebido poucas décadas após<br />

a “<strong>de</strong>scoberta” – foram a cana-<strong>de</strong>-açúcar e a escravidão africana. Em termos<br />

retrospectivos, essa base econômica po<strong>de</strong> ser facilmente i<strong>de</strong>ntificada como<br />

primária e arcaica, mas não era essa a realida<strong>de</strong> do período. Em primeiro<br />

lugar, na produção açucareira – um dos sist<strong>em</strong>as produtivos mais complexos<br />

do mundo nos séculos XVII e XVIII – po<strong>de</strong>mos já perceber <strong>em</strong> estágio<br />

<strong>em</strong>brionário algumas das características da nova economia que se generalizaria<br />

a partir da Revolução Industrial. De um lado, o surgimento <strong>de</strong> novos<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 205<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

ramos econômicos não apenas a partir da mudança nos métodos <strong>de</strong> produção<br />

<strong>de</strong> mercadorias já existentes, mas sim pela oferta <strong>em</strong> escala crescente <strong>de</strong><br />

mercadorias até então inexistentes, que constitu<strong>em</strong> inicialmente um mercado<br />

<strong>de</strong> elite e, posteriormente, se expan<strong>de</strong>m como bens <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong><br />

massas. De outro, a <strong>de</strong>manda, gerada por esse processo, <strong>de</strong> um fluxo <strong>de</strong> suprimento<br />

<strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra comercializável, livre dos constrangimentos <strong>de</strong><br />

relações costumeiras e direitos tradicionais, inicialmente na forma da escravização<br />

<strong>de</strong> nativos, posteriormente pelo imensamente mais rentável comércio<br />

<strong>de</strong> africanos, finalmente pela criação da proprieda<strong>de</strong> privada da terra e<br />

pela generalização do trabalho livre.<br />

As entradas e ban<strong>de</strong>iras, viabilizadas inicialmente pelo interesse econômico<br />

no mercado <strong>de</strong> escravos indígenas, reverteram por fim na <strong>de</strong>scoberta<br />

<strong>de</strong> jazidas <strong>de</strong> metais preciosos, gerando um avanço no que diz respeito à<br />

maior integração territorial, à urbanização e à diversificação econômica. O<br />

ouro brasileiro financiou a crescente <strong>de</strong>pendência portuguesa <strong>em</strong> relação à<br />

produção manufatureira e ao po<strong>de</strong>rio naval britânicos, e junto com os lucros<br />

da exploração imperialista do algodão indiano contribuiu <strong>de</strong>cisivamente<br />

para a transformação <strong>de</strong> Londres <strong>em</strong> um centro financeiro relevante. Do<br />

ponto <strong>de</strong> vista doméstico, a importância dos novos centros mineradores<br />

levou ao <strong>de</strong>slocamento da capital <strong>de</strong> Salvador para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, numa<br />

posição <strong>de</strong> muito maior centralida<strong>de</strong> <strong>em</strong> relação aos limites territoriais que<br />

passavam a ser renegociados a partir <strong>de</strong> diversos tratados com a Espanha,<br />

substituindo as limitações iniciais, estabelecidas <strong>em</strong> Tor<strong>de</strong>silhas, <strong>em</strong> 1494,<br />

antes portanto da própria chegada dos portugueses à América.<br />

A ocupação efetiva do território, tanto no sentido econômico como no<br />

político, expandiu-se progressivamente para o oeste, à custa do extermínio,<br />

do recuo para o interior ou da <strong>de</strong>sestruturação do modo <strong>de</strong> vida das populações<br />

indígenas. Configurava-se gradualmente a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um país continental,<br />

<strong>em</strong> vez <strong>de</strong> uma mera faixa litorânea. Além disso, as <strong>de</strong>mandas da<br />

produção mineradora e das novas concentrações populacionais geraram o<br />

primeiro esboço do que seria um mercado interno, fosse para as mulas criadas<br />

no Rio Gran<strong>de</strong> no Sul ou para o gado do Piauí. Não surpreen<strong>de</strong>, portanto,<br />

que a primeira manifestação <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque da consciência nacional,<br />

como percepção <strong>de</strong> interesses da Colônia distintos dos da Metrópole, tenha<br />

sido a Inconfidência Mineira.<br />

206<br />

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Alexandre Fortes<br />

Mas se Portugal passava <strong>de</strong> um papel <strong>de</strong>sbravador, nas navegações e na<br />

produção açucareira, a uma tendência à estagnação, perceptível já na <strong>de</strong>pendência<br />

diante da Holanda para o refino do açúcar e <strong>de</strong>pois no escoamento<br />

dos lucros da mineração para os cofres britânicos, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

notável o b<strong>em</strong>-sucedido esforço <strong>de</strong> preservação e consolidação do imenso<br />

território da Colônia por uma tão diminuta Metrópole. O estabelecimento<br />

do governo-geral já <strong>em</strong> 1548, o combate às incursões e ocupações <strong>de</strong> franceses<br />

e holan<strong>de</strong>ses, a <strong>de</strong>struição das missões jesuítas, entre outras iniciativas,<br />

viabilizaram a unida<strong>de</strong> territorial e eliminaram po<strong>de</strong>rosos riscos à soberania<br />

da Coroa. É b<strong>em</strong> verda<strong>de</strong> que Portugal alternou momentos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scentralização e centralização na gestão do Brasil – como continuaria a<br />

ocorrer com o governo central do país após a in<strong>de</strong>pendência –, e que o<br />

po<strong>de</strong>r local era <strong>de</strong>ixado <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> medida nas mãos dos latifundiários, mas<br />

o fato é que, afora revoltas esporádicas <strong>de</strong> pequeno alcance, sua autonomia<br />

permaneceu <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> limites bastante estreitos.<br />

Essa proeza <strong>de</strong> preservação da integrida<strong>de</strong> da Colônia apesar da <strong>de</strong>cadência<br />

da Metrópole, <strong>em</strong> certo sentido, atingiria seu auge quando, <strong>em</strong> 1808,<br />

acossada pela ocupação da Península Ibérica pelas tropas napoleônicas, a<br />

corte portuguesa transferiu-se para o Brasil, elevando-o posteriormente à<br />

condição <strong>de</strong> se<strong>de</strong> do Reino Unido <strong>de</strong> Portugal, Brasil e Algarve. Se <strong>de</strong> um<br />

lado esse movimento, associado à abertura dos portos às nações amigas –<br />

leia-se Inglaterra –, implicava a renúncia final ao monopólio colonial e gerava<br />

a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nação americana que sediava um império ultramarino,<br />

<strong>de</strong> outro garantiu a transição para a in<strong>de</strong>pendência política com a<br />

preservação dos interesses portugueses e, mais uma vez, eliminou qualquer<br />

risco <strong>de</strong> fragmentação, como já se percebia ser a tendência na América Espanhola.<br />

O historiador Kenneth Maxwell apontou como, ao contrário da<br />

imag<strong>em</strong> caricatural <strong>de</strong> D. João VI legada à história, o processo <strong>de</strong> criação do<br />

Reino Unido e as subseqüentes iniciativas que visavam resolver a questão da<br />

Cisplatina (atual República Oriental do Uruguai) e do Amapá, a fim <strong>de</strong><br />

consolidar respectivamente as fronteiras sul e norte, revelam habilida<strong>de</strong> e<br />

discernimento político. Já durante o Império, novas fontes <strong>de</strong> risco à integrida<strong>de</strong><br />

do território seriam eliminadas com o resultado das guerras platinas:<br />

a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> qualquer perspectiva <strong>de</strong> autonomia e fortalecimento do<br />

Paraguai e o surgimento do Uruguai como Estado neutro, interposto entre<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

o Brasil e a Argentina, vista a partir daí pelos nossos militares como única<br />

ameaça potencial na região. A oeste, a obra <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação dos contornos<br />

territoriais seria completada, já na República, pela diplomacia do barão do<br />

Rio Branco.<br />

Entretanto, essa proeza <strong>de</strong> expansão e manutenção <strong>de</strong> território assentava-se<br />

<strong>em</strong> uma base extr<strong>em</strong>amente frágil no que diz respeito às dimensões e<br />

à distribuição populacional. As populações nativas, pela própria característica<br />

<strong>de</strong> seu modo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>dicado à caça, à coleta e à lavoura <strong>de</strong> coivara, não<br />

apresentavam <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> significativa. Além disso, a forma altamente predatória<br />

assumida pela colonização praticamente as dizimou. Aqui o contraste<br />

é total com a dominação espanhola, que praticamente acoplou suas<br />

estruturas políticas às bases anteriormente construídas pelos impérios précoloniais<br />

(inca, maia e asteca) e mostrou-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início zelosa na imposição<br />

<strong>de</strong> limites à exploração da mão-<strong>de</strong>-obra que pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> comprometer a<br />

integrida<strong>de</strong> da população indígena. Além disso, no Brasil, a concentração<br />

populacional limitava-se às áreas das ativida<strong>de</strong>s econômicas principais, e<br />

essas, com a exceção parcial da mineração, tinham caráter extensivo. Ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, pela própria lógica do sist<strong>em</strong>a escravista, havia o t<strong>em</strong>or <strong>de</strong><br />

que o estímulo ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma camada <strong>de</strong> camponeses pu<strong>de</strong>sse<br />

comprometer o sist<strong>em</strong>a, diante da imensa oferta <strong>de</strong> terras virgens.<br />

Por isso, os projetos <strong>de</strong> colonização com base na agricultura familiar foram<br />

<strong>de</strong>senvolvidos <strong>de</strong> forma controlada, ganhando maior fôlego a partir da<br />

chegada das primeiras levas <strong>de</strong> al<strong>em</strong>ães ao Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, <strong>em</strong> 1824,<br />

após experiências fracassadas ou <strong>de</strong> alcance limitado no Espírito Santo e na<br />

serra fluminense. No Sul, e geração após geração, no rumo do Oeste e do<br />

Norte, revelou-se eficaz o assentamento <strong>de</strong> colonos oriundos <strong>de</strong> países com<br />

exce<strong>de</strong>ntes populacionais – como alguns dos Estados que viriam a formar a<br />

Al<strong>em</strong>anha e a Itália, além <strong>de</strong> regiões da Europa Oriental –, num sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong><br />

que as terras são suficientes para uma geração, mas exig<strong>em</strong> que a próxima<br />

<strong>de</strong>sbrave uma nova fronteira. Inicialmente o objetivo maior era formar uma<br />

segunda linha <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa s<strong>em</strong> mexer com os pecuaristas que dominavam a<br />

meta<strong>de</strong> sul do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Posteriormente, o sist<strong>em</strong>a forneceu iniciativa<br />

e mão-<strong>de</strong>-obra barata para a transformação <strong>de</strong> áreas dominadas por<br />

vegetação nativa <strong>em</strong> terra cultivável, a ser posteriormente concentrada nas<br />

mãos <strong>de</strong> uma pequena elite dos agronegócios.<br />

208<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 208<br />

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1. DINAMISMO CAFEEIRO<br />

Alexandre Fortes<br />

A transformação do Brasil no principal produtor mundial <strong>de</strong> café por<br />

quase um século, a partir das experiências <strong>de</strong> plantio iniciadas nas primeiras<br />

décadas do século XIX, <strong>de</strong> um lado consolidou a integração territorial no<br />

centro do país, dada a a<strong>de</strong>quação da terra roxa e do clima dos planaltos ao<br />

cultivo. Numa indicação tanto da clareza <strong>de</strong> intenções por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>ssa<br />

“marcha para o Oeste” quanto da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> romper com a tradicional<br />

orientação no rumo do litoral, é interessante l<strong>em</strong>brar que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Império<br />

já se <strong>de</strong>batia a proposta <strong>de</strong> mudança da capital para uma posição central na<br />

nova configuração territorial do país, algo que apenas se materializaria <strong>em</strong><br />

1960 com a inauguração <strong>de</strong> Brasília.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista populacional, o café gerou maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, tanto<br />

pela concentração <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s plantéis <strong>de</strong> escravos nas várias áreas incorporadas<br />

à sua produção quanto pela expansão <strong>de</strong> núcleos urbanos a ela associada.<br />

Apesar das crises periódicas <strong>de</strong> superprodução, o dinamismo gerado<br />

pela expansão da <strong>de</strong>manda internacional por café, que, <strong>de</strong> moda entre a<br />

boêmia parisiense, se transformou <strong>em</strong> estimulante oficial do mundo industrial,<br />

tornou essa parte do país – do Vale do Paraíba ao oeste Paulista, passando<br />

pelo sul <strong>de</strong> Minas e pelo norte do Paraná, tendo como cabeça o<br />

complexo formado pela cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo e pelo porto <strong>de</strong> Santos – no<br />

cenário do que era, no século XIX, uma agricultura capitalista mo<strong>de</strong>rna,<br />

sobre cujas bases surgiriam, na virada para o século XX, os primeiros núcleos<br />

industriais significativos do país, ainda hoje, e não por coincidência,<br />

concentrados nessa região.<br />

Paradoxalmente, entretanto, esse dinamismo cafeeiro, combinado com<br />

a b<strong>em</strong>-sucedida engenharia política conservadora legada por Portugal, à<br />

qual se adaptou muito b<strong>em</strong> a <strong>em</strong>ergente burguesia nacional, perpetuou<br />

por mais <strong>de</strong> meio século o sist<strong>em</strong>a escravista – <strong>de</strong> 1831 a 1888 –, num<br />

processo <strong>de</strong> “<strong>em</strong>ancipação gradual e controlada”. Isso apesar do combate<br />

ao tráfico, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado pela potência internacional heg<strong>em</strong>ônica, a Inglaterra<br />

– da qual o Brasil in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte herdara o endividamento e a<br />

tutela antes já exercida sobre Portugal –, e da legislação nacional <strong>de</strong><br />

banimento do comércio escravista adotada também sob pressão inglesa<br />

(as famosas leis “para inglês ver”).<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 209<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Nesse quadro, o Brasil se caracterizava por um imenso potencial, tendo<br />

consolidado uma dimensão territorial ímpar na América Latina, <strong>de</strong>senvolvido<br />

um novo núcleo dinâmico integrado ao processo acelerado <strong>de</strong> expansão<br />

do mercado mundial no ritmo ditado pela Revolução Industrial e até<br />

mesmo constituído um mercado doméstico relativamente diversificado. Ficava,<br />

entretanto, cada vez mais <strong>de</strong>fasado <strong>em</strong> relação a dois vetores que <strong>de</strong>finiam<br />

a construção ou reconstrução das nações que disputariam quer a<br />

heg<strong>em</strong>onia, quer, ao menos, um espaço menos periférico no interior do<br />

sist<strong>em</strong>a internacional: a industrialização e a <strong>de</strong>mocratização.<br />

A relativa mo<strong>de</strong>rnização econômica já no final do século XIX, até mesmo<br />

como resultado da exportação <strong>de</strong> lucros exce<strong>de</strong>ntes realizada pela Inglaterra<br />

– e <strong>em</strong> menor escala por alguns países europeus – na forma <strong>de</strong> investimentos<br />

<strong>em</strong> infra-estrutura <strong>em</strong> suas colônias e países periféricos <strong>em</strong> sua área<br />

<strong>de</strong> influência, na verda<strong>de</strong> ampliaria o fôlego da economia cafeeira, renovando<br />

e aprofundando o endividamento e a canalização dos lucros do setor<br />

primário para as importações <strong>de</strong> manufaturados ingleses. Apesar <strong>de</strong> os próprios<br />

cafeicultores ter<strong>em</strong> reinvestido, <strong>em</strong> algumas áreas e setores, parte <strong>de</strong><br />

seus lucros na indústria, a política econômica continuaria orientada predominant<strong>em</strong>ente<br />

para o favorecimento do setor agroexportador.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista político, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final do século XVIII a Europa era<br />

atravessada por ondas <strong>de</strong> processos revolucionários ou por reformas políticas<br />

sob fortíssima pressão das classes populares – tendo cada vez mais<br />

como núcleo a <strong>em</strong>ergente classe operária –, levando à generalização do<br />

Estado liberal e à ampliação progressiva do direito ao voto, e os Estados<br />

Unidos <strong>de</strong>cidiam <strong>de</strong> forma sangrenta seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> capitalismo e os limites<br />

<strong>de</strong> seu fe<strong>de</strong>ralismo com a Guerra Civil (1860-1865). Já o Brasil<br />

permaneceu um Império no continente das Repúblicas, suprimiu movimentos<br />

regionais que apontavam para a maior liberalização política e, <strong>em</strong><br />

alguns casos, para algum protagonismo popular, prolongou a exclusão<br />

estrutural do núcleo <strong>de</strong> sua classe trabalhadora, os escravos, e planejou<br />

perpetuá-la com projetos imigrantistas voltados, entre outros objetivos,<br />

para o branqueamento da população.<br />

Cabe aqui comentar o imbricamento entre os processos econômicos, sociais<br />

e políticos mencionados anteriormente e o aspecto mais propriamente<br />

cultural da construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira. O Brasil, como já aponta-<br />

210<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 210<br />

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Alexandre Fortes<br />

ram pensadores do porte <strong>de</strong> Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda, ocupa um lugar<br />

bastante peculiar no imaginário <strong>de</strong> uma Europa <strong>em</strong> profunda mudança na<br />

virada do século XV para o XVI. A exuberância da natureza tropical brasileira<br />

foi vista por certas correntes teológicas como a realização <strong>de</strong> profecias<br />

sobre a <strong>de</strong>scoberta da existência do paraíso na Terra. Uma das conseqüências<br />

disso, como aponta Marilena Chaui, foi a persistência da visão <strong>de</strong> que aqui<br />

as leis humanas (e portanto os direitos) não se aplicavam, e que a nação<br />

brasileira seria uma <strong>em</strong>anação das características naturais <strong>de</strong> seu território, e<br />

não da soberania <strong>de</strong> seu povo. Nossa própria ban<strong>de</strong>ira até hoje expressa esse<br />

conservadorismo essencialista, mantendo – além das cores da realeza portuguesa<br />

– a alusão a el<strong>em</strong>entos naturais (ouro, matas e céu) e não, como é<br />

característico das repúblicas, a seus princípios políticos constitutivos.<br />

Do mesmo modo, na cultura brasileira as particularida<strong>de</strong>s da constituição<br />

<strong>de</strong> nossa população são <strong>em</strong> geral tratadas pelo prisma <strong>de</strong>ssa celebração<br />

da natureza que, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>stitui a cidadania <strong>de</strong> um protagonismo efetivo<br />

na construção da nação. Isso acontece com o chamado “mito das três<br />

raças” – ou seja, da compl<strong>em</strong>entarida<strong>de</strong> e da harmonia entre brancos, negros<br />

e índios – com o qual <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX literatos, artistas plásticos e<br />

outros expoentes da alta cultura buscam explicar nossa especificida<strong>de</strong> nacional.<br />

Essa visão é compl<strong>em</strong>entada pela celebração da miscigenação e da “doçura”<br />

que teria caracterizado o exercício do po<strong>de</strong>r senhorial português, el<strong>em</strong>entos<br />

presentes, por ex<strong>em</strong>plo, na obra <strong>de</strong> Gilberto Freyre.<br />

É evi<strong>de</strong>nte que as particularida<strong>de</strong>s da forma <strong>de</strong> colonização adotada no<br />

Brasil contribuíram para configurar um perfil populacional ímpar, no qual<br />

a miscigenação tornou-se um fator muito mais expressivo do que no outro<br />

caso conhecido <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> nação cont<strong>em</strong>porânea <strong>de</strong> passado escravocrata:<br />

os Estados Unidos. Essas particularida<strong>de</strong>s inclu<strong>em</strong> a forte <strong>de</strong>sestruturação,<br />

dispersão e afastamento dos gran<strong>de</strong>s centros das populações indígenas, a<br />

introdução <strong>de</strong> contingentes expressivos <strong>de</strong> escravos africanos s<strong>em</strong> um investimento<br />

expressivo na criação <strong>de</strong> condições para sua estabilida<strong>de</strong> e sua reprodução<br />

familiar, b<strong>em</strong> como a imensa sub-representação das mulheres entre<br />

os habitantes <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> européia por praticamente todo o período colonial.<br />

Quando a esse quadro somou-se, especialmente a partir do final do século<br />

XIX, a imigração <strong>de</strong> trabalhadores livres, o padrão brasileiro <strong>de</strong> relações<br />

raciais já estava <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> medida constituído.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 211<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

As infinitas gradações dos tons <strong>de</strong> pele no Brasil não po<strong>de</strong>m, entretanto,<br />

ofuscar a gritante persistência dos mecanismos <strong>de</strong> exclusão e discriminação<br />

baseados na orig<strong>em</strong> racial. N<strong>em</strong> po<strong>de</strong>mos esquecer como foi longa e árdua<br />

a luta que levou da perseguição policial à capoeira, ao samba e aos terreiros<br />

<strong>de</strong> umbanda ao reconhecimento do caráter positivo do sincretismo como<br />

el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> peso <strong>de</strong>cisivo <strong>em</strong> nossa formação cultural, ainda assim s<strong>em</strong><br />

apagar totalmente as marcas do estigma e da folclorização. A celebração da<br />

natureza tropical e <strong>de</strong> nosso povo mestiço no imaginário cultivado pelo<br />

discurso dominante, portanto, mal dissimula a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nação<br />

esquartejada pela reprodução e pelo aprofundamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, pela<br />

naturalização das hierarquias sociais (o famoso “Você sabe com qu<strong>em</strong> está<br />

falando?”, analisado por Roberto da Matta), pela resistência histórica <strong>de</strong><br />

elites patrimonialistas a se submeter n<strong>em</strong> mesmo ao domínio da lei, quanto<br />

mais a qualquer projeto <strong>de</strong> integração nacional que implique redistribuição<br />

<strong>de</strong> renda ou qualquer tipo <strong>de</strong> interferência no po<strong>de</strong>r absoluto do proprietário<br />

<strong>em</strong> “seus” domínios, sejam eles a fábrica, a fazenda ou qualquer outro<br />

espaço <strong>de</strong> exercício do arbítrio privado.<br />

2. A CLASSE OPERÁRIA<br />

O processo <strong>de</strong> formação da classe operária, força motriz da <strong>de</strong>mocratização<br />

e, portanto, do aprofundamento da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre povo e nação, <strong>em</strong><br />

boa parte da Europa – e que tão perto <strong>de</strong> nós quanto na Argentina da virada<br />

do século XIX para o XX exerceu papel muito s<strong>em</strong>elhante –, dar-se-ia no<br />

Brasil num cenário particularmente árduo. Além dos outros efeitos perversos<br />

já apontados anteriormente, a persistência da escravidão nos legou uma<br />

profunda estigmatização contra o trabalho manual. A forma como se <strong>de</strong>u a<br />

integração à economia industrial mundial levou a um contraste acentuado<br />

entre o dinamismo do Centro-Sul, particularmente <strong>de</strong> São Paulo, e o restante<br />

do país, que também se refletia <strong>em</strong> perfis e dimensões tr<strong>em</strong>endamente<br />

díspares da força <strong>de</strong> trabalho. Além disso, num país continental com<br />

variações brutais <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> populacional e com uma infra-estrutura <strong>de</strong>senvolvida<br />

<strong>de</strong> forma tr<strong>em</strong>endamente <strong>de</strong>sigual, além da forte repressão, a<br />

construção <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> processo organizativo nacional dos trabalhadores<br />

enfrentaria gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s para se viabilizar.<br />

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Alexandre Fortes<br />

Voltando a fazer comparações com nossos vizinhos próximos, não havia<br />

paralelo no Brasil para o peso da concentração populacional <strong>de</strong> Buenos<br />

Aires na Argentina, uma cida<strong>de</strong> que, além disso, combinava as funções <strong>de</strong><br />

capital e <strong>de</strong> principal centro econômico, papéis que no Brasil já se encontravam<br />

divididos entre Rio <strong>de</strong> Janeiro e São Paulo. O intenso esforço <strong>de</strong><br />

criação <strong>de</strong> jornais e organizações operárias, ocorrido aqui <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong><br />

1880, resultou <strong>em</strong> alguns movimentos mais expressivos, como as greves<br />

gerais <strong>de</strong> 1917, mas s<strong>em</strong> configurar o movimento operário como um ator<br />

nacional <strong>de</strong> feições claramente reconhecidas e articuladas. Talvez por essa<br />

combinação <strong>de</strong> fatores, e pela força do sist<strong>em</strong>a político oligárquico montado<br />

na República Velha, não houve no Brasil movimentos no sentido da<br />

incorporação das classes populares à política no início do século XX, como<br />

haviam ocorrido, por via revolucionária, no México (com avanços consagrados<br />

na Constituição <strong>de</strong> 1917) e, pela via do voto, na Argentina, com a lei<br />

Saenz Peña <strong>de</strong> 1912. Quando ocorreu movimento <strong>em</strong> sentido s<strong>em</strong>elhante<br />

no Brasil – com a Revolução <strong>de</strong> 1930 –, ele veio na onda dos regimes<br />

antiliberais que se espalharam pelo mundo <strong>em</strong> reação à recessão <strong>de</strong>flagrada<br />

pelo Craque da Bolsa <strong>de</strong> Nova York, <strong>em</strong> 1929, e associado a uma concepção<br />

corporativista <strong>de</strong> vinculação orgânica dos sindicatos ao Estado, sendo o exercício<br />

do voto popular <strong>em</strong> larga escala postergado por mais 15 anos.<br />

Na longa Era Vargas (1930-1954), o país viveu a quebra da heg<strong>em</strong>onia<br />

cafeeira, assistiu ao fortalecimento s<strong>em</strong> prece<strong>de</strong>ntes do governo central, e –<br />

aproveitando a <strong>de</strong>sorganização e o refluxo do comércio internacional e a oportunida<strong>de</strong><br />

para barganhas estratégicas durante a Segunda Guerra Mundial –<br />

lançou as bases para a implantação da indústria pesada. Nela se realizou a<br />

incorporação dos trabalhadores urbanos àquilo que Wan<strong>de</strong>rley Guilherme<br />

dos Santos <strong>de</strong>nominou “cidadania regulada”, ou seja, o acesso a um conjunto<br />

<strong>de</strong> direitos sociais mediado pela vinculação ao mercado <strong>de</strong> trabalho formal,<br />

estritamente regulado e controlado pelo Estado por meio <strong>de</strong> instrumentos<br />

como a carteira <strong>de</strong> trabalho, o imposto sindical e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> intervenção do<br />

Ministério do Trabalho na vida das entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> representação dos interesses<br />

<strong>de</strong> classe. Os trabalhadores rurais permaneceram, <strong>em</strong> linhas gerais, excluídos<br />

mesmo <strong>de</strong>ssa incorporação condicionada e restrita à cidadania.<br />

Com todas as suas limitações, que incluíram o gozo <strong>de</strong> apenas dois anos<br />

<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> legal pela maior força <strong>de</strong> esquerda do país no período – o<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Partido Comunista Brasileiro –, ainda assim a existência <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a<br />

eleitoral <strong>de</strong> massas possibilitou ao menos o tensionamento do caráter do<br />

projeto nacional heg<strong>em</strong>ônico. No chamado período populista, não obstante<br />

certas oscilações conjunturais, a transformação do Brasil <strong>em</strong> uma mo<strong>de</strong>rna<br />

economia industrial consagrou-se como um objetivo nacional, perseguido<br />

pelo Estado – até mesmo por meio <strong>de</strong> uma política externa que se tornava<br />

pouco a pouco mais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte – e pelas classes dominantes. Foi inaugurado<br />

um longo ciclo <strong>de</strong> 50 anos <strong>de</strong> crescimento econômico acelerado s<strong>em</strong><br />

que, entretanto, se verificasse qualquer movimento mais expressivo <strong>de</strong> distribuição<br />

<strong>de</strong> renda, ou seja, com a manutenção das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais,<br />

algo que se esten<strong>de</strong>ria e se aprofundaria durante o “milagre econômico” da<br />

ditadura militar nos anos 1970.<br />

Mas, até 1964, um movimento contra-heg<strong>em</strong>ônico no sentido <strong>de</strong> transformar<br />

o populismo <strong>em</strong> uma <strong>de</strong>mocracia participativa, marcada por reformas<br />

sociais inclusivas, se esboçava tanto <strong>em</strong> segmentos das elites políticas e<br />

intelectuais do país quanto, especialmente, na constituição <strong>de</strong> movimentos<br />

<strong>de</strong> massas na cida<strong>de</strong> e, pouco a pouco, também no campo. A incapacida<strong>de</strong><br />

dos setores mais reacionários das elites nacionais <strong>de</strong> absorver mesmo perdas<br />

e mudanças pontuais e limitadas, assim como a inflexibilida<strong>de</strong> da política<br />

externa do novo império mundial, os Estados Unidos, <strong>em</strong> um mundo marcado<br />

pela Guerra Fria e numa América Latina eletrizada pelas fagulhas da<br />

radicalização da revolução cubana, explicam a <strong>de</strong>sproporção entre a modéstia<br />

do programa reformista que se esboçava no governo João Goulart e a<br />

violência do golpe <strong>de</strong> 1964, inaugurando o mais profundo e longo ciclo <strong>de</strong><br />

ditaduras militares na América Latina.<br />

Os governos militares brasileiros oscilaram entre a busca <strong>de</strong> uma posição<br />

<strong>de</strong> aliados preferenciais do “gran<strong>de</strong> irmão do Norte” e a manutenção <strong>de</strong><br />

uma política externa mais autônoma, rebatizada <strong>de</strong> “pragmatismo ecumênico<br />

e responsável”, entre a ortodoxia monetarista e o <strong>de</strong>senvolvimentismo com<br />

repressão e arrocho salarial do “milagre econômico”, e, <strong>em</strong> linhas gerais,<br />

aprofundaram algumas tendências já presentes no país entre 1930 e 1964.<br />

O Brasil chegou a ocupar a posição <strong>de</strong> oitava economia mundial, urbanizouse<br />

aceleradamente, <strong>de</strong>senvolveu setores <strong>de</strong> ponta na produção industrial,<br />

diversificou sua economia, acelerou a ocupação dos territórios a oeste. Mas<br />

essa gloriosa mo<strong>de</strong>rnização conservadora, coroada pelos projetos megalo-<br />

214<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 214<br />

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Alexandre Fortes<br />

maníacos <strong>de</strong> Itaipu, da Transamazônica e da ponte Rio–Niterói, entre outros,<br />

ruiu estrondosamente com a crise da dívida externa que abalou os<br />

países do terceiro mundo nos anos 1980, a partir da manobra por meio da<br />

qual o Banco Central norte-americano reestruturou sua heg<strong>em</strong>onia sobre o<br />

sist<strong>em</strong>a financeiro internacional, à custa <strong>de</strong> jogar o mundo <strong>em</strong> uma década<br />

<strong>de</strong> recessão.<br />

Na lenta e tortuosa transição para a <strong>de</strong>mocracia, que se fez então inevitável,<br />

um novo Brasil <strong>em</strong>ergiu no cenário público. Um movimento sindical renovado<br />

e ampliado, uma gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentos sociais no campo e na<br />

cida<strong>de</strong>, uma socieda<strong>de</strong> civil galvanizada pelas experiências <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> na<br />

resistência dos “anos <strong>de</strong> chumbo”. O sist<strong>em</strong>a partidário anterior, quaisquer<br />

que sejam as avaliações sobre seus méritos e <strong>de</strong>méritos, não pô<strong>de</strong> ser reeditado<br />

diante do prolongado bipartidarismo oficial e <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>fasag<strong>em</strong> diante daquela<br />

nova realida<strong>de</strong> social. A esquerda, progressivamente fragmentada a partir<br />

do início dos anos 1960, encarava o triplo <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> interpretar as transformações<br />

vividas pelo país, reconstruir bases <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação e, a partir <strong>de</strong><br />

1989, adaptar-se a um mundo que, para o b<strong>em</strong> ou para o mal, <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser<br />

polarizado entre capitalismo e socialismo real.<br />

É nesse cenário que se constrói a experiência <strong>de</strong>mocrática brasileira do<br />

final do século XX, levando a um protagonismo inédito, e até mesmo a<br />

postos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r nacional, as forças políticas construídas com base nos novos<br />

atores sociais que <strong>em</strong>ergiram no final dos anos 1970. De um lado, apesar dos<br />

pesares, uma <strong>de</strong>mocracia muita mais sólida e ampla do que sua pre<strong>de</strong>cessora<br />

no período 1945-1964. A própria simbologia da cidadania foi reapropriada<br />

<strong>de</strong> forma crítica e ativa <strong>em</strong> movimentos como os das Diretas Já e o do<br />

impeachment <strong>de</strong> Collor, dotando a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional <strong>de</strong> um novo sentido.<br />

Por outro lado, uma experiência <strong>de</strong>mocrática da qual se exige o resgate<br />

da dívida social e a construção <strong>de</strong> um novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

num momento histórico <strong>em</strong> que, como afirma Hobsbawm (2001), as<br />

próprias bases sobre as quais se construiu a idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia, como a<br />

soberania nacional, estão <strong>em</strong> questão. Ou, como afirma Naomi Klein<br />

(2001), num cenário <strong>em</strong> que, tendo os movimentos contra-heg<strong>em</strong>ônicos<br />

finalmente logrado a <strong>de</strong>mocratização dos Estados nacionais <strong>em</strong> larga escala,<br />

o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão foi <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> medida subtraído para esferas transnacionais<br />

ou internacionais.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

O Brasil do século XXI terá que se reinventar. Não nos está reservada a<br />

condição <strong>de</strong> paraíso terrestre, n<strong>em</strong> <strong>de</strong> país do futuro. O lugar que vir<strong>em</strong>os<br />

a ocupar num mundo que caminha para turbulências imprevisíveis resultará<br />

do inevitável enfrentamento <strong>de</strong> nossas contradições internas e externas.<br />

Somente assim saber<strong>em</strong>os o quanto nosso imenso potencial como<br />

nação se realizará.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 218<br />

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Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

A política internacional do Brasil<br />

e suas fases<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini 1<br />

A formação social e nacional brasileira teve sua orig<strong>em</strong> na expansão européia<br />

dos séculos XV-XVI através da “<strong>de</strong>scoberta” e da colonização portuguesas.<br />

Durante quase quatro séculos a inserção internacional da região<br />

processou-se por intermédio das potências européias, inicialmente pelo<br />

mercantilismo português e posteriormente via liberalismo inglês. Na passag<strong>em</strong><br />

do século XIX para o XX, contudo, o eixo da diplomacia política e<br />

econômica do Brasil voltou-se para os Estados Unidos, limitando-se predominant<strong>em</strong>ente<br />

ao âmbito h<strong>em</strong>isférico (isto é, restrita às Américas). Des<strong>de</strong> o<br />

início dos anos 1960, na esteira do <strong>de</strong>senvolvimento industrial, a política<br />

exterior brasileira voltou-se para a busca <strong>de</strong> novos espaços mediante a<br />

mundialização e a multilateralização. Sob os efeitos da “globalização”, no<br />

final do século XX o país passou a valorizar o espaço regional latino-americano,<br />

através do Mercosul (Mercado Comum do Sul), ainda que s<strong>em</strong> renunciar<br />

completamente à cooperação com alguns dos espaços planetários<br />

anteriormente atingidos. Esta po<strong>de</strong>rá se afirmar, nos próximos anos, como<br />

uma nova fase das relações do Brasil com o mundo.<br />

A história diplomática tradicional, cujo paradigma foi representado pelo<br />

clássico Manuel historique <strong>de</strong> politique étrangère, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Emile Bourgeois<br />

1 Professor titular <strong>de</strong> Relações Internacionais da UFRGS (Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong><br />

do Sul), doutor <strong>em</strong> História Econômica pela USP (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo), pós-doutorado<br />

<strong>em</strong> Relações Internacionais pela London School of Economics, é pesquisador do Núcleo <strong>de</strong><br />

Estratégia e Relações Internacionais do Instituto Latino-Americano <strong>de</strong> Estudos Avançados da<br />

UFRGS (paulovi@ufrgs.br).<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 219<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

(1892-1898) (datado <strong>de</strong> fins do século XIX), abarcava apenas o estudo das<br />

relações oficiais entre os Estados, expressa na atuação <strong>de</strong> agentes cre<strong>de</strong>nciados<br />

pelos governos. No Brasil, essa tendência atingiu sua forma acabada nas<br />

histórias diplomáticas <strong>de</strong> Hélio Vianna e Delgado <strong>de</strong> Carvalho. Essa abordag<strong>em</strong><br />

ce<strong>de</strong>u lugar à mais complexa História das relações internacionais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

a afirmação dos trabalhos <strong>de</strong> Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle<br />

(1967), nas décadas <strong>de</strong> 1950 e 1960. No Brasil, a nova perspectiva teórica<br />

foi <strong>de</strong>senvolvida a partir dos estudos <strong>de</strong> José Honório Rodrigues, tais como<br />

Brasil e África (1964) e Interesse nacional e política externa (1966).<br />

A “política exterior” envolve aspectos mais <strong>de</strong>terminados no conjunto<br />

das relações internacionais. Ela enfoca a “orientação governamental” <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminado Estado a propósito <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados governos e/ou Estados,<br />

ou ainda regiões, situações e estruturas, <strong>em</strong> conjunturas específicas.<br />

A interação, conflitiva ou cooperativa, das políticas externas <strong>de</strong>ve<br />

ser consi<strong>de</strong>rada parte <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a mundial, constituindo então <strong>em</strong><br />

seu conjunto a “política internacional”.<br />

Na análise da política externa, <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> duas questões <strong>de</strong> fundamental<br />

importância: <strong>em</strong> primeiro lugar, qu<strong>em</strong> a formula; <strong>em</strong> segundo, <strong>de</strong> que<br />

forma ela se articula à política interna. Quanto ao primeiro aspecto, qualquer<br />

estudo <strong>em</strong>pírico mais aprofundado <strong>de</strong>monstra que os rumos e as<br />

<strong>de</strong>cisões da política externa não são <strong>de</strong>finidos pelo conjunto do bloco<br />

social <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que dá suporte a um governo, mas por alguns setores<br />

heg<strong>em</strong>ônicos <strong>de</strong>sse bloco. É preciso consi<strong>de</strong>rar que, graças à porosida<strong>de</strong><br />

do Estado mo<strong>de</strong>rno, lobbies e grupos <strong>de</strong> interesse consegu<strong>em</strong> influir <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>terminadas áreas da política externa.<br />

Durante a fase colonial, o Brasil encontrava-se integrado ao<br />

mercantilismo português. Com o advento do processo <strong>de</strong> <strong>em</strong>ancipação,<br />

nossa “<strong>de</strong>pendência assimétrica” transferiu-se para a órbita do livre-comércio<br />

heg<strong>em</strong>onizado pela Inglaterra. Paralelamente, acentuou-se outra<br />

dimensão das relações internacionais do Brasil: a dos probl<strong>em</strong>as regionais<br />

vinculados à construção do espaço geopolítico e nacional brasileiro, também<br />

enfocada como “questão <strong>de</strong> fronteiras”. Nesse contexto, a rivalida<strong>de</strong><br />

com a Argentina fazia parte <strong>de</strong> uma “relação simétrica”, herdada dos antagonismos<br />

coloniais, a qual se caracterizou como um campo <strong>de</strong> relativa<br />

autonomia para o exercício <strong>de</strong> nossa diplomacia.<br />

220<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 220<br />

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Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

A dupla probl<strong>em</strong>ática da “subordinação unilateral” ao capitalismo<br />

mediterrânico e norte-atlântico e da construção do espaço nacional constituiu<br />

a primeira fase <strong>de</strong> nossas relações exteriores, a qual se esten<strong>de</strong>u por<br />

quatro séculos. Durante o século XIX, esse processo configurou-se como<br />

uma unilateralida<strong>de</strong> sob heg<strong>em</strong>onia inglesa, segundo conceito <strong>de</strong> Werneck<br />

da Silva (1990). Já ao longo das últimas décadas daquele século afirmou-se<br />

gradativamente a influência norte-americana, prenunciando o advento <strong>de</strong><br />

uma nova fase.<br />

A unilateralida<strong>de</strong> durante a heg<strong>em</strong>onia norte-americana representará um<br />

novo período das relações internacionais do Brasil. Nela será concluído o<br />

traçado das fronteiras, o país voltar-se-á para um processo <strong>de</strong> inserção<br />

h<strong>em</strong>isférica e terá início uma vinculação mais estreita da política externa<br />

com o <strong>de</strong>senvolvimento econômico. A gestão Rio Branco (1902-1912) representou<br />

um momento paradigmático <strong>de</strong>ssa fase, pois concluiu a <strong>de</strong>marcação<br />

das fronteiras contestadas e estruturou a chamada “aliança não escrita”<br />

(segundo a clássica expressão <strong>de</strong> Bradford Burns) com os Estados Unidos<br />

da América. Coube a Getúlio Vargas e aos governos populistas dos anos<br />

1950, por sua vez, a vinculação estratégica da política exterior às necessida<strong>de</strong>s<br />

do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico, fenômeno que Amado Cervo<br />

<strong>de</strong>nominou “política externa para o <strong>de</strong>senvolvimento”.<br />

Durante todo esse período, que se esten<strong>de</strong> até o fim da década <strong>de</strong> 1950,<br />

as relações exteriores do Brasil voltaram-se prioritariamente para os Estados<br />

Unidos, <strong>em</strong> busca do status <strong>de</strong> “aliado privilegiado”. Na medida, entretanto,<br />

<strong>em</strong> que essa relação se mostrava insuficiente como apoio ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

industrial, incr<strong>em</strong>entado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 1930, a política<br />

externa brasileira viu-se na contingência <strong>de</strong> alterar seu perfil. A “autonomia<br />

na <strong>de</strong>pendência”, conceito formulado por Gerson Moura (1980),<br />

que Vargas explorou às vésperas da Segunda Guerra Mundial, e o nacionalismo<br />

dos governos populistas dos anos 1950 representaram uma “estratégia<br />

<strong>de</strong> barganha” <strong>em</strong> relação a Washington. Essa barganha visava<br />

re<strong>de</strong>finir os laços <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência diante dos Estados Unidos, <strong>de</strong> forma a<br />

obter apoio ao <strong>de</strong>senvolvimento industrial brasileiro.<br />

A falta <strong>de</strong> uma resposta positiva por parte dos Estados Unidos convenceu<br />

li<strong>de</strong>ranças brasileiras da época da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliar os vínculos<br />

internacionais do Brasil. Fazia-se necessário atuar num plano mundial,<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

escapando à <strong>de</strong>pendência h<strong>em</strong>isférica <strong>em</strong> relação aos Estados Unidos, não<br />

obstante isso permitisse ampliar a própria barganha com esse país. Embora<br />

esse processo começasse a <strong>em</strong>ergir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o segundo governo Vargas,<br />

foi com a <strong>Política</strong> Externa In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte (PEI) <strong>de</strong> Jânio Quadros e João<br />

Goulart, entre 1961 e 1964, que ela se configurou <strong>de</strong> forma explícita <strong>em</strong><br />

nossa agenda diplomática.<br />

Iniciou-se então o terceiro gran<strong>de</strong> período das relações exteriores brasileiras,<br />

o da “multilateralida<strong>de</strong> na fase da crise <strong>de</strong> heg<strong>em</strong>onia no sist<strong>em</strong>a mundial”,<br />

que se esten<strong>de</strong> até a atualida<strong>de</strong>. Aprofundou-se a vinculação da política<br />

exterior com a estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se diversificavam nossos parceiros internacionais. Apesar da<br />

manutenção <strong>de</strong> um “eixo vertical Norte–Sul”, <strong>em</strong> particular as relações com<br />

os Estados Unidos, a diplomacia brasileira passou a atuar também num<br />

“eixo horizontal Sul–Sul” e num “eixo diagonal Sul–Leste” (relações com o<br />

terceiro mundo e com os países socialistas, respectivamente). Isso se tornou<br />

possível tanto pelas necessida<strong>de</strong>s do <strong>de</strong>senvolvimento brasileiro quanto pelo<br />

advento <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a mundial <strong>de</strong> heg<strong>em</strong>onias <strong>em</strong> crescente <strong>de</strong>sgaste.<br />

Embora os três anos iniciais do regime militar tenham sido caracterizados<br />

por um retrocesso ao alinhamento automático com os Estados Unidos e pelo<br />

refluxo a uma diplomacia <strong>de</strong> âmbito h<strong>em</strong>isférico, e a década <strong>de</strong> 1964-1974<br />

fosse marcada pelas “fronteiras i<strong>de</strong>ológicas”, a multilateralida<strong>de</strong> das relações exteriores<br />

e a busca do “interesse nacional do <strong>de</strong>senvolvimento” continuaram a se<br />

aprofundar. Os novos interesses internos então configurados, b<strong>em</strong> como as alterações<br />

do cenário internacional após o primeiro choque petrolífero, permitiram<br />

ao governo Ernesto Geisel ampliar esse processo, através do “pragmatismo responsável<br />

e ecumênico”. N<strong>em</strong> mesmo o fim do regime militar <strong>em</strong> 1985 interrompeu<br />

essa estratégia diplomática, que prosseguiu até 1990.<br />

O Brasil praticava então uma política exterior com o perfil <strong>de</strong> uma potência<br />

média, e <strong>de</strong> abrangência planetária. As vigorosas alterações do cenário<br />

mundial, na passag<strong>em</strong> dos anos 1980 aos 1990, e a implantação <strong>de</strong> um<br />

mo<strong>de</strong>lo inspirado no neoliberalismo com o governo Fernando Collor, entretanto,<br />

configuraram uma crise no processo <strong>de</strong> multilateralização, crise<br />

ainda não superada. Nesse contexto, <strong>em</strong>erge a discussão acadêmica e política<br />

da inserção do Brasil na nova or<strong>de</strong>m mundial pós-Guerra Fria. Trata-se<br />

<strong>de</strong> um novo <strong>de</strong>safio para a política externa brasileira.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 222<br />

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2. A UNILATERALIDADE DURANTE A COLONIZAÇÃO<br />

PORTUGUESA E A HEGEMONIA INGLESA<br />

Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

No tocante à diplomacia brasileira, é necessário estabelecer um marco<br />

fundamental da política externa: seu caráter estrutural e organicamente<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, ainda que logrando relativa autonomia conjuntural e regional.<br />

Segundo José Luiz Werneck da Silva,<br />

“a nossa própria história geral é, por hipótese, um capítulo<br />

da totalida<strong>de</strong> da história do capitalismo oci<strong>de</strong>ntal, norteatlântico-mediterrâneo,<br />

<strong>em</strong> gradativa construção e reconstrução,<br />

na qual totalida<strong>de</strong> a formação brasileira se colocou,<br />

historicamente, numa posição subordinada que cumpre s<strong>em</strong>pre<br />

reavaliar, e superar. Isto se reflete, evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, nas<br />

relações internacionais” (Silva, 1990, p. 25).<br />

A primeira fase da política externa brasileira abarca <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Tratado <strong>de</strong><br />

Tor<strong>de</strong>silhas até o início da gestão do chanceler barão <strong>de</strong> Rio Branco, no<br />

início do século XX. Como se po<strong>de</strong> ver, a existência legal do Brasil (1494)<br />

antece<strong>de</strong> sua existência real (1500). Esse longo período caracterizou-se pela<br />

probl<strong>em</strong>ática dominante da <strong>de</strong>finição do espaço territorial <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro<br />

imperialismo geográfico luso-brasileiro (espécie <strong>de</strong> “<strong>de</strong>stino manifesto”)<br />

e pela <strong>de</strong>pendência primeiramente <strong>em</strong> relação ao mercantilismo português<br />

e, posteriormente, ao capitalismo industrial inglês <strong>em</strong> expansão, <strong>de</strong> viés<br />

liberal-concorrencial. Além dos vínculos com a Europa, a América portuguesa<br />

também manteve relações expressivas com a África, on<strong>de</strong> eram apresados<br />

os escravos que constituíam a mão-<strong>de</strong>-obra das plantations. Assim, a<br />

história econômica elaborou o conceito <strong>de</strong> triângulo comercial atlântico.<br />

De outra parte, durante a fase colonial os conflitos europeus repercutiam<br />

diretamente no Brasil, especialmente no tocante às guerras platinas.<br />

O ciclo do ouro estabeleceu no Brasil do século XVIII os fundamentos<br />

<strong>de</strong> uma divisão da produção entre as diversas regiões, articulando-as<br />

entre si e acentuando o conflito <strong>de</strong> interesses com a metrópole. A crise<br />

do antigo sist<strong>em</strong>a colonial, por seu turno, enfraquecia o mercantilismo<br />

português, subordinando-se cada vez mais ao capitalismo inglês. Esse<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

fenômeno se intensificou na passag<strong>em</strong> do século XVIII para o XIX, com<br />

a Revolução Francesa.<br />

As guerras napoleônicas representaram o apogeu do confronto entre dois<br />

mo<strong>de</strong>los (e dois estágios) <strong>de</strong> capitalismo, o inglês e o francês, na disputa<br />

pela heg<strong>em</strong>onia mundial. Enquanto a França se afirmava na Europa, através<br />

do Bloqueio Continental 2 , a Inglaterra consolidava o seu domínio sobre os<br />

mares e sobre o mundo colonial, isto é, sobre o mercado global. Nesse<br />

quadro, ocorreu a invasão <strong>de</strong> Portugal por Napoleão, e a vinda da corte e da<br />

administração lusitanas para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, sob a proteção da armada<br />

britânica, <strong>em</strong> 1808. A metrópole internalizava-se no Brasil, enquanto os<br />

portos eram abertos ao livre-comércio inglês.<br />

Com o fim da guerra na Europa e a restauração conservadora do Congresso<br />

<strong>de</strong> Viena, a situação se alterou. A constelação <strong>de</strong> Estados conservadores,<br />

da qual Portugal fazia parte, apostava num movimento recolonizador.<br />

Mas a dinastia dos Bragança encontrava-se no Brasil, na América <strong>em</strong> processo<br />

<strong>de</strong> <strong>em</strong>ancipação, e a Inglaterra e os Estados Unidos opunham-se a<br />

qualquer forma <strong>de</strong> reação colonialista, além <strong>de</strong> apoiar o movimento <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />

das possessões ibéricas. O dil<strong>em</strong>a bragantino logo teve <strong>de</strong> ser<br />

resolvido. A Revolução Constitucionalista do Porto, <strong>de</strong> 1820, obrigou D.<br />

João VI a retornar a Portugal.<br />

A conjuntura contraditória entre reacionarismo na Europa, por um lado,<br />

e revolução e livre-comércio na América Latina, por outro, levou os Bragança<br />

a uma solução ousada: dividir os domínios da família <strong>em</strong> dois, o Brasil <strong>de</strong><br />

um lado do Atlântico e o Império português <strong>de</strong> outro (1822). O acordo<br />

entre os dois ramos da dinastia foi avalizado pela Inglaterra (através do<br />

Tratado Luso-Brasileiro <strong>de</strong> 1825), <strong>em</strong> troca <strong>de</strong> um acordo <strong>de</strong> livre-comércio<br />

(renovação do <strong>de</strong> 1810) e do compromisso brasileiro <strong>de</strong> extinguir o<br />

tráfico negreiro. Assim, o I Reinado manteve a diplomacia bragantina e<br />

uma acentuada continuida<strong>de</strong> com a etapa anterior.<br />

É importante <strong>de</strong>stacar que o Brasil, por sua estrutura monárquica e<br />

escravista, procurava capitalizar um papel <strong>de</strong> “Europa nos trópicos”,<br />

2 O bloqueio Continental foi estabelecido por Napoleão, excluindo a Inglaterra do mercado europeu,<br />

que ficava à disposição exclusivamente da França.<br />

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Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

antagonizando-se com as repúblicas formadas na Hispano-América. O Prata,<br />

on<strong>de</strong> prosseguiam as rivalida<strong>de</strong>s entre Brasil e Argentina, b<strong>em</strong> como as<br />

intromissões da Inglaterra e da França representaram a principal área <strong>de</strong><br />

atrito entre o Império e os <strong>de</strong>mais países do continente. Será nesse espaço<br />

que o Brasil <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rá seus interesses com relativa autonomia.<br />

Com a renúncia <strong>de</strong> D. Pedro I e a instalação da Regência <strong>em</strong> 1831,<br />

iniciaram-se lutas <strong>em</strong> torno da heg<strong>em</strong>onia política e econômica entre as<br />

diversas regiões do país. Isso implicou um refluxo da política externa, enquanto<br />

as questões internas adquiriam primazia. No Prata, o Brasil adotava<br />

uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> “neutralida<strong>de</strong> paciente”. Apesar da momentânea aparente<br />

perda <strong>de</strong> importância da diplomacia, foi justamente nessa etapa que se configurou<br />

uma política externa propriamente brasileira, ainda que marcada<br />

por uma herança bragantina. O Conselho <strong>de</strong> Estado constituiu, então, o<br />

primeiro núcleo formulador da diplomacia nacional.<br />

A década <strong>de</strong> 1840 foi marcada pela implantação do II Reinado e pela<br />

consolidação política, econômica e diplomática do novo Estado. A partir<br />

daí abriu-se uma fase <strong>de</strong> reações contra as pressões inglesas pela renovação<br />

do acordo <strong>de</strong> livre-comércio. Em 1844 foram implantadas as Tarifas Alves<br />

Branco, <strong>de</strong> caráter protecionista, provocando a reação <strong>de</strong> Londres através do<br />

Bill Aber<strong>de</strong>en, o qual visava impedir o tráfico <strong>de</strong> escravos. Dessa forma, a<br />

extinção do sist<strong>em</strong>a dos tratados permitiu a criação <strong>de</strong> condições para a<br />

articulação <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> política externa, apesar da persistência <strong>de</strong> uma<br />

relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência assimétrica com a Inglaterra.<br />

Com a década <strong>de</strong> 1850 iniciou-se o apogeu da formação social representada<br />

pela monarquia, o que se refletiu na política externa. Os <strong>de</strong>sacordos<br />

com a Inglaterra atingiram o paroxismo com a questão Christie 3 e a ruptura<br />

das relações diplomáticas entre o Rio <strong>de</strong> Janeiro e Londres, <strong>de</strong> 1863 a 1865.<br />

Obviamente, isso não significou a ruptura das relações comerciais e financeiras,<br />

que permaneceram intensas.<br />

Outra dimensão fortalecida nessa época foi a política <strong>de</strong> força <strong>em</strong> relação<br />

ao Prata. Os interesses diplomáticos, econômicos e políticos levaram o Bra-<br />

3 Christie era o <strong>em</strong>baixador da Inglaterra no Brasil, que negociou <strong>de</strong> forma arrogante um pedido <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>nização pelo saque da carga <strong>de</strong> um navio inglês encalhado no Nor<strong>de</strong>ste. O contencioso levou<br />

à ruptura <strong>de</strong> relações diplomáticas entre os dois países nos anos 1860.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

sil a <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma série <strong>de</strong> intervenções na região: Uruguai <strong>em</strong> 1851;<br />

Argentina <strong>em</strong> 1852; Uruguai <strong>em</strong> 1855-1856; e, finalmente, Uruguai <strong>em</strong> 1864,<br />

já vinculada ao <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento da Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina<br />

e Uruguai) contra o Paraguai, entre 1865 e 1870. Os objetivos do<br />

Sist<strong>em</strong>a do Império no Prata consistiam na <strong>de</strong>fesa dos interesses econômicos,<br />

na livre-navegação, no apoio aos colorados no Uruguai, mas sobretudo<br />

visavam obstaculizar a construção <strong>de</strong> uma Argentina forte, capaz <strong>de</strong> rivalizar<br />

com o Brasil. Esse último princípio também foi aplicado ao Paraguai <strong>de</strong><br />

Solano Lopez.<br />

Após a Guerra do Paraguai, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o Brasil retirou-se <strong>em</strong> 1876, alterouse<br />

profundamente a situação <strong>em</strong> âmbitos nacional, regional e mundial. Com<br />

a transição do escravismo ao trabalho assalariado, entre outros fatores, a<br />

monarquia entrou <strong>em</strong> contínuo <strong>de</strong>clínio, o que trouxe conseqüências negativas<br />

para a política externa. No plano regional, a Argentina <strong>em</strong>ergiu<br />

fortalecida: <strong>em</strong> plena expansão econômica, logo ultrapassou o Brasil <strong>em</strong><br />

dinamismo. Por outro lado, com a expansão das ferrovias brasileiras ao curso<br />

médio dos rios Uruguai, Paraguai e Paraná, a bacia do Prata per<strong>de</strong>u o<br />

interesse estratégico para a diplomacia do país.<br />

A arrancada argentina, por sua vez, vinculou-se também à rearticulação<br />

da economia mundial, com o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento da Segunda Revolução<br />

Industrial. Graças a ela, processava-se uma reorientação profunda nas relações<br />

entre o centro e a periferia do sist<strong>em</strong>a mundial. A Argentina levava<br />

vantagens nesse processo, recebendo capitais, imigrantes e novas<br />

tecnologias, para a<strong>de</strong>quar a estrutura produtiva do país às novas necessida<strong>de</strong>s<br />

da Europa industrial.<br />

Neste contexto, apesar <strong>de</strong> evoluir mais lentamente, o Brasil via a valorização<br />

<strong>de</strong> outros produtos e regiões, b<strong>em</strong> como a configuração <strong>de</strong> novos parceiros<br />

externos. A economia primário-exportadora, orientada ao crescimento<br />

para fora, precisava se mo<strong>de</strong>rnizar e aten<strong>de</strong>r a novas <strong>de</strong>mandas. A cafeicultura,<br />

progressivamente processada por trabalhadores assalariados, b<strong>em</strong> como<br />

a borracha explorada na Amazônia <strong>de</strong>stinavam-se cada vez mais aos mercados<br />

dos <strong>em</strong>ergentes Estados Unidos da América. Reflexo <strong>de</strong>ssa aproximação<br />

foi, inicialmente, o convite do presi<strong>de</strong>nte Grant para que D. Pedro II abrisse<br />

a Centennial Exposition <strong>em</strong> 1876 na Filadélfia, e, posteriormente, a<br />

insistência norte-americana para que o Brasil apoiasse a criação <strong>de</strong> um<br />

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Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

Zollverein 4 nas Américas (União Aduaneira Americana, 1886). Outra questão<br />

que marcou a política exterior brasileira na fase <strong>de</strong> transição da monarquia<br />

à república, apesar do relativo retraimento diplomático, foi o esforço<br />

por continuar <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo as fronteiras contestadas, processo que só culminará<br />

com a gestão Rio Branco, já no início do século XX.<br />

Após 1876, envolvido com seus probl<strong>em</strong>as internos, o Brasil conheceu<br />

um refluxo <strong>em</strong> sua política externa. Igualmente, a proclamação da República<br />

<strong>em</strong> 1889 fez que a ênfase da ação governamental passasse a voltar-se para<br />

os aspectos internos. Apesar disso, <strong>em</strong> função também da ascensão da Argentina<br />

nesse período, a diplomacia brasileira começou a se voltar para os<br />

Estados Unidos da América, que, por seu turno, projetavam então sua economia<br />

para fora, especialmente <strong>em</strong> direção à América Latina.<br />

Apesar das transformações que se operaram ao longo do século XIX, afirmavam-se<br />

alguns el<strong>em</strong>entos estruturais da política externa brasileira. O primeiro<br />

consistia na condição <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> “país novo e atrasado”, graças à<br />

subordinação <strong>de</strong> uma economia primário-exportadora aos centros internacionais<br />

(na época, a Inglaterra heg<strong>em</strong>ônica). Nesse plano, configurava-se uma<br />

“relação político-econômica assimétrica”, pois o Brasil se encontrava <strong>em</strong> posição<br />

<strong>de</strong> flagrante inferiorida<strong>de</strong>. Entretanto, num segundo plano, o país conseguia<br />

<strong>de</strong>senvolver uma diplomacia relativamente autônoma, na forma <strong>de</strong> uma<br />

“relação simétrica <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, representada então pela política no Prata.<br />

É preciso consi<strong>de</strong>rar também que <strong>em</strong> certas conjunturas o Brasil <strong>de</strong>safiava,<br />

ainda que <strong>de</strong> forma parcial, certos aspectos da heg<strong>em</strong>onia inglesa. A<br />

<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados interesses socioeconômicos da elite brasileira fazia a<br />

diplomacia nacional buscar certa marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> manobra, perfilando-se igualmente<br />

aqui uma relativa autonomia. Mas também é necessário observar que<br />

essa mesma elite sofria <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> “síndrome do escravismo”. Para a<br />

manutenção da hierarquia social no país, esse grupo não hesitava <strong>em</strong> se<br />

subordinar a interesses estrangeiros, assumindo conscient<strong>em</strong>ente a posição<br />

<strong>de</strong> sócio menor. Nesse sentido, o potencial diplomático do país resultará,<br />

então, bastante inferior ao volume <strong>de</strong> sua população e <strong>de</strong> seus recursos eco-<br />

4 Zollverein foi a União Aduaneira dos Estados do norte da Al<strong>em</strong>anha, promovida pela Prússia. Na<br />

época era <strong>em</strong>pregada como sinônimo <strong>de</strong> Zona <strong>de</strong> Livre Comércio.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

nômicos, naturais e territoriais. S<strong>em</strong>pre haverá um “perigo interno” a ser<br />

priorizado. Esse el<strong>em</strong>ento persistirá mesmo após a abolição.<br />

Finalmente, é importante salientar outro el<strong>em</strong>ento duradouro da política<br />

internacional do Brasil. Trata-se da tendência <strong>em</strong> se posicionar como<br />

rival dos Estados hispano-americanos. A política heg<strong>em</strong>onista <strong>em</strong> relação<br />

aos vizinhos, a ambição à posição <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança regional, o t<strong>em</strong>or a <strong>de</strong>terminadas<br />

configurações sociais reformistas do republicanismo e do jacobinismo<br />

hispano-americanos e a oposição às tendências integradoras do panamericanismo<br />

<strong>de</strong> orientação bolivarista fizeram muitas vezes o Brasil se associar<br />

às gran<strong>de</strong>s potências contra os países latino-americanos. Assim, o<br />

Brasil será consi<strong>de</strong>rado, e consi<strong>de</strong>rará a si próprio, um “país diferente” do<br />

restante da América Latina.<br />

3. A UNILATERALIDADE SOB HEGEMONIA NORTE-AMERICANA<br />

A segunda fase da política exterior brasileira abrange <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a gestão Rio<br />

Branco (1902-1912) até o fim do governo Juscelino Kubitschek (1956-<br />

1961) e t<strong>em</strong> como t<strong>em</strong>ática principal as relações h<strong>em</strong>isféricas. A inserção<br />

brasileira no sist<strong>em</strong>a interamericano nesta fase caracterizou-se por uma<br />

“aliança não-escrita” com os Estados Unidos, país do qual nossa economia<br />

passou a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r prioritariamente. Durante esse período, variaram as<br />

formas <strong>de</strong>ssa “aliança”: “<strong>de</strong> acordo, s<strong>em</strong>pre que possível”, “nobre <strong>em</strong>ulação”,<br />

“parceiros prediletos” ou “satélites privilegiados”. Entretanto, não se<br />

duvidava <strong>de</strong> que todas essas nuanças se inseriam numa mesma perspectiva,<br />

a <strong>de</strong> que a “aliança” com Washington constituía a espinha dorsal da<br />

política exterior brasileira.<br />

Durante a primeira meta<strong>de</strong> do século XX, como foi ressaltado, a diplomacia<br />

brasileira teve como tendência predominante a inserção no contexto<br />

h<strong>em</strong>isférico, <strong>em</strong> que o eixo principal era a relação com os Estados Unidos.<br />

Não se tratava apenas da <strong>de</strong>pendência <strong>em</strong> relação aos Estados Unidos, mas<br />

do fato <strong>de</strong> o Brasil centrar sua política externa no estreitamento das relações<br />

com Washington, na perspectiva da “aliança não-escrita” concebida durante<br />

a gestão Rio Branco. A <strong>de</strong>pendência, enquanto tal, prosseguiu <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong>ssa fase, mas a tônica não era mais essencialmente a busca <strong>de</strong> uma aproximação<br />

privilegiada com os Estados Unidos. Ao longo <strong>de</strong>ssa fase, houve<br />

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momentos <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> uma relativa “autonomia na <strong>de</strong>pendência”, ou <strong>de</strong><br />

barganha para a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> certos interesses brasileiros, como durante a gestão<br />

Rio Branco e o primeiro governo Vargas.<br />

A gestão Rio Branco (1902-1912) foi marcante, uma vez que nela foram<br />

<strong>de</strong>marcadas vantajosamente as fronteiras amazônicas. Durante o auge do<br />

ciclo da borracha, o conflito do Acre evi<strong>de</strong>nciou a <strong>de</strong>terminação e a continuida<strong>de</strong><br />

da política exterior brasileira. Além disso, Rio Branco <strong>de</strong>senvolveu<br />

uma política <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa dos interesses nacionais numa época <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>vidas ao reor<strong>de</strong>namento mundial. A aliança com os Estados Unidos, a par<br />

da subordinação evi<strong>de</strong>nte, assinalava a busca <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong> barganha,<br />

com vistas ao fortalecimento da posição internacional do Brasil.<br />

O restante da República Velha (1912-1930) e o mandato do presi<strong>de</strong>nte<br />

Dutra (1946-1951) caracterizaram-se, <strong>em</strong> oposição, por uma <strong>de</strong>pendência<br />

relativamente passiva <strong>em</strong> relação aos Estados Unidos. Após a morte <strong>de</strong> Rio<br />

Branco, e sobretudo com a Primeira Guerra Mundial, os interesses norteamericanos<br />

afirmaram-se <strong>de</strong> forma assimétrica. Nos anos 1920, o <strong>de</strong>sgaste<br />

da República cafeeira fez inclusive que a diplomacia brasileira refluísse. A<br />

crise <strong>de</strong> 1929, finalmente, <strong>de</strong>sarticulou ainda mais a capacida<strong>de</strong> do país <strong>de</strong><br />

formular uma política externa mais positiva.<br />

Todavia, <strong>de</strong>vido à ascensão do projeto varguista <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, o<br />

período 1930-1945 pautou-se por uma tentativa consciente <strong>de</strong> tirar proveito<br />

da conjuntura internacional e da re<strong>de</strong>finição da economia brasileira,<br />

pela utilização da política externa como instrumento estratégico para lograr<br />

a industrialização do país. É necessário ressaltar, entretanto, que o estágio<br />

<strong>em</strong>brionário do <strong>de</strong>senvolvimento brasileiro e as escassas possibilida<strong>de</strong>s oferecidas<br />

pelo contexto internacional, a longo e médio prazos, limitaram o<br />

alcance <strong>de</strong>ssa inovação introduzida por Vargas. A diplomacia pendular do<br />

Brasil, entre Washington e Berlim, durante a preparação da Segunda Guerra<br />

Mundial buscava, <strong>em</strong> essência, reativar a velha “aliança privilegiada” com<br />

os Estados Unidos, inovando-a com outras formas <strong>de</strong> cooperação econômica.<br />

Em suma, Vargas ensaiava uma nova política externa <strong>em</strong> uma situação<br />

ainda dominada por velhas estruturas, <strong>de</strong> alcance regional.<br />

A <strong>de</strong>rrubada do ditador estadonovista e o caráter da política externa do<br />

governo Dutra evi<strong>de</strong>nciaram esses el<strong>em</strong>entos limitativos. Além do mais, a<br />

tendência a formas mais ou menos passivas <strong>de</strong> acomodação submissa aos<br />

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Estados Unidos ainda se faria sentir entre 1945 e 1964, especialmente durante<br />

o governo Dutra. Porém, a volta <strong>de</strong> Vargas ao po<strong>de</strong>r vai significar uma<br />

importante mudança. É inegável que ainda iria persistir <strong>em</strong> larga medida a<br />

ilusão <strong>de</strong> que o Brasil po<strong>de</strong>ria, através <strong>de</strong> uma barganha nacionalista, voltar<br />

a lograr estabelecer vínculos privilegiados com os Estados Unidos. A ilusão<br />

persistiu até o final do governo Kubitschek. Mas a situação nos anos 1950<br />

era diferente. O <strong>de</strong>senvolvimento econômico e a progressiva afirmação <strong>de</strong><br />

um novo perfil sociopolítico da socieda<strong>de</strong> brasileira impunham novas <strong>de</strong>mandas<br />

à política exterior.<br />

A década <strong>de</strong> 1950 abria-se com o incr<strong>em</strong>ento da urbanização e da industrialização,<br />

a afirmação <strong>de</strong> uma burguesia industrial, <strong>de</strong> segmentos médios<br />

urbanos, <strong>de</strong> uma jov<strong>em</strong> classe operária e <strong>de</strong> outros trabalhadores urbanos e<br />

rurais. O sist<strong>em</strong>a político tinha <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r à crescente participação popular,<br />

enquanto as contradições da socieda<strong>de</strong> brasileira constituíam um terreno<br />

fértil para os conflitos sociais. Assim, Vargas viu-se na contingência <strong>de</strong><br />

retomar o projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento industrial por substituição <strong>de</strong> importações,<br />

incr<strong>em</strong>entando a indústria <strong>de</strong> base. O setor externo da economia<br />

jogava, neste quadro, um papel fundamental. A obtenção <strong>de</strong> capitais e<br />

tecnologias só po<strong>de</strong>ria ser lograda com o incr<strong>em</strong>ento da cooperação econômica<br />

com a potência então heg<strong>em</strong>ônica do mundo capitalista, os Estados<br />

Unidos. No quadro da Guerra Fria, entretanto, o espaço <strong>de</strong> manobra era<br />

muito limitado para atrair a atenção norte-americana, visando a suplantar o<br />

“<strong>de</strong>scaso” <strong>de</strong> Washington para com a América Latina e, <strong>em</strong> particular, para<br />

com o Brasil.<br />

Foi nesse quadro que Vargas procurou impl<strong>em</strong>entar uma barganha nacionalista,<br />

a qual consistia <strong>em</strong> apoiar os Estados Unidos no plano políticoestratégico<br />

da Guerra Fria <strong>em</strong> troca da ajuda ao <strong>de</strong>senvolvimento econômico<br />

brasileiro. Essa política, ao mesmo t<strong>em</strong>po, fortaleceria a posição interna<br />

do governo, granjeando-lhe apoio <strong>de</strong> diferentes forças políticas domésticas.<br />

As contradições internas cada vez mais pronunciadas e os magros resultados<br />

obtidos no plano externo atingiram um ponto grave, a partir <strong>de</strong> 1953, com<br />

a eleição do republicano Eisenhower. Neste momento, Vargas viu-se na<br />

contingência <strong>de</strong> aprofundar sua barganha diplomática, no intuito <strong>de</strong> reverter<br />

um quadro crescent<strong>em</strong>ente adverso. O probl<strong>em</strong>a, contudo, era que o<br />

cenário internacional não oferecia suficientes alternativas, pois os países so-<br />

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Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

cialistas ainda eram consi<strong>de</strong>rados “inimigos”, a Europa oci<strong>de</strong>ntal e o Japão<br />

mal haviam concluído a reconstrução econômica, enquanto o terceiro mundo<br />

recém-<strong>de</strong>spertava como realida<strong>de</strong> política <strong>de</strong>vido ao <strong>em</strong>brionário estágio<br />

da <strong>de</strong>scolonização. A América Latina, por seu turno, encontrava-se sob forte<br />

pressão dos Estados Unidos, além <strong>de</strong> politicamente bastante dividida.<br />

De qualquer forma, Vargas procurou tirar proveito dos limitados espaços,<br />

além <strong>de</strong> tentar criar outros. Todavia, mesmo esse esboço <strong>de</strong><br />

multilateralização, o qual visava mais a barganha com os Estados Unidos do<br />

que uma nova forma <strong>de</strong> inserção no plano mundial, viu-se obstaculizado<br />

pelos acirrados conflitos internos, <strong>em</strong> que a oposição articulava-se diretamente<br />

com Washington, o que levou ao isolamento do governo e ao suicídio<br />

do presi<strong>de</strong>nte <strong>em</strong> 1954.<br />

A <strong>de</strong>rrubada do governo Vargas e a reação conservadora que se seguiu,<br />

tanto no plano interno como, sobretudo, no externo, evi<strong>de</strong>nciaram que a<br />

barganha nacionalista havia se tornado uma política incômoda para o status<br />

quo internacional heg<strong>em</strong>onizado pelos Estados Unidos. A tentativa precoce<br />

<strong>de</strong> promover uma diplomacia não linearmente subordinada a Washington<br />

se apoiava <strong>em</strong> fatores objetivos <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, e não apenas na vonta<strong>de</strong><br />

política <strong>de</strong> um lí<strong>de</strong>r populista. Por isso significou o esboço <strong>de</strong> uma nova<br />

política externa brasileira, que conhecerá seu amadurecimento com a <strong>Política</strong><br />

Externa In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />

Entre 1954 e 1958, essa linha política conheceu um sério retrocesso,<br />

e houve um autêntico hiato com relação às tendências marcantes do período.<br />

A gestão Café Filho (1954-1955) caracterizou-se pela abertura econômica<br />

absoluta ao capitalismo internacional e pelo retorno do alinhamento<br />

automático <strong>em</strong> relação à diplomacia norte-americana, tal como no governo<br />

Dutra. O projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento foi momentaneamente abandonado<br />

<strong>em</strong> nome <strong>de</strong> um liberalismo econômico extr<strong>em</strong>ado, enquanto a barganha<br />

nacionalista <strong>de</strong>saparecia das palavras e atitu<strong>de</strong>s do governo. Tratava-se da<br />

afirmação da diplomacia da Escola Superior <strong>de</strong> Guerra e <strong>de</strong> sua concepção<br />

<strong>de</strong> segurança e <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Com a ascensão <strong>de</strong> Kubitschek ao po<strong>de</strong>r, <strong>em</strong> 1956, a situação se alterou<br />

<strong>em</strong> certo sentido. O Brasil continuou calcando sua política externa no alinhamento<br />

automático aos Estados Unidos, política concentrada na diplomacia<br />

h<strong>em</strong>isférica. Também prosseguiu a abertura ampla da economia ao<br />

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capital internacional. Contudo, JK retomou o projeto <strong>de</strong> industrialização,<br />

só que agora com base no setor <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo durável para as classes<br />

<strong>de</strong> média e elevada renda. Assim, Kubitschek conseguia conjunturalmente<br />

um espaço <strong>em</strong> que se harmonizavam os interesses da potência heg<strong>em</strong>ônica<br />

e <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> industrialização alterado. É necessário salientar, todavia,<br />

que tal política foi possível, entre outros fatores, pelo retorno pleno da Europa<br />

oci<strong>de</strong>ntal às relações econômicas internacionais, fornecendo alternativas<br />

comerciais e financeiras ao Brasil, s<strong>em</strong> confrontação com Washington.<br />

Esse hiato, com suas duas fases distintas, no entanto, encerrou-se <strong>em</strong><br />

1958, com a retomada da barganha nacionalista por JK <strong>em</strong> termos muito<br />

s<strong>em</strong>elhantes aos <strong>de</strong> Vargas. A crise dos milagrosos “50 anos <strong>em</strong> 5” e <strong>de</strong>terminadas<br />

alterações internacionais, como a criação da Comunida<strong>de</strong> Econômica<br />

Européia, a reeleição <strong>de</strong> Eisenhower num quadro <strong>de</strong> crise e o <strong>de</strong>scontentamento<br />

latino-americano, b<strong>em</strong> como as pressões do Fundo Monetário<br />

<strong>Internacional</strong> (FMI), levaram o governo a retomar uma ativa barganha nacionalista<br />

através da Operação Pan-americana (OPA), que objetivava atrair a<br />

atenção dos Estados Unidos para a América Latina e obter maiores créditos<br />

nos marcos do sist<strong>em</strong>a interamericano, comprometendo a Casa Branca com<br />

um programa multilateral <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico <strong>de</strong> largo alcance.<br />

A OPA pretendia não só incr<strong>em</strong>entar os investimentos nas regiões economicamente<br />

atrasadas do continente, compensando a escassez <strong>de</strong> capitais<br />

internos, mas também promover a assistência técnica para melhorar a produtivida<strong>de</strong><br />

e garantir os investimentos realizados, proteger os preços dos<br />

produtos primários exportados pela América Latina, b<strong>em</strong> como ampliar os<br />

recursos e liberalizar os estatutos das organizações financeiras internacionais.<br />

Ao contrário da Aliança para o Progresso, que priorizava os capitais<br />

privados e as relações bilaterais, a OPA enfatizava a utilização <strong>de</strong> capitais<br />

públicos e a multilateralização das relações interamericanas. Paralelamente,<br />

JK buscou expandir a barganha para a área socialista e terceiro-mundista,<br />

mas <strong>de</strong> forma extr<strong>em</strong>amente acanhada. A economia brasileira se internacionalizava<br />

progressivamente, e os conflitos sociais se exacerbavam, enquanto<br />

as repercussões da Revolução Cubana criavam probl<strong>em</strong>as adicionais. Não<br />

po<strong>de</strong>ndo agir além do que lhe permitiam suas bases <strong>de</strong> sustentação política,<br />

a diplomacia <strong>de</strong> JK permanecerá no meio do caminho, <strong>em</strong>purrando para<br />

seus sucessores <strong>de</strong>cisões que não podia ou não estava disposta a tomar.<br />

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4. A MULTILATERALIDADE DURANTE O DESGASTE<br />

DA HEGEMONIA NO SISTEMA MUNDIAL<br />

Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

A terceira fase da política externa brasileira abarca o período que se inicia<br />

com a <strong>Política</strong> Externa In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e v<strong>em</strong> até nossos dias. As caraterísticas<br />

básicas do período são a multilateralização das relações exteriores e os componentes<br />

i<strong>de</strong>ológicos nacionalistas, com os quais o alinhamento automático<br />

<strong>em</strong> relação aos Estados Unidos passa a ser questionado. Ainda que a <strong>de</strong>pendência<br />

do Norte industrializado persista, o aprofundamento do caráter<br />

multinacional do capitalismo permite a introdução <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos novos.<br />

Conforme Werneck da Silva,<br />

“até este terceiro ‘momento’ o eixo Norte–Sul dominava as<br />

diretrizes que formulavam a nossa política externa, configurando-se<br />

uma <strong>de</strong>pendência tão forte e exclusiva ao mundo<br />

Norte-atlântico nas relações internacionais, que elas ficaram<br />

marcadas pelo traço da unilateralida<strong>de</strong>. Neste terceiro<br />

‘momento’, extr<strong>em</strong>amente polêmico e diversificado nas<br />

nuanças conjunturais, começamos a praticar, no possível,<br />

a multilateralida<strong>de</strong>. Vislumbra-se a primeira oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> horizontalizar (eixo Sul–Sul) ou <strong>de</strong> diagonalizar (eixo Sul–<br />

Leste) nossa política externa, mas isto s<strong>em</strong> negar totalmente<br />

a verticalização (eixo Norte–Sul). Com a horizontalização<br />

passaríamos a valorizar mais as nossas relações com a<br />

América Latina e a África. (...) Ora, para que ocorra este<br />

reposicionamento nos sist<strong>em</strong>as interamericano e mundial,<br />

é preciso discutir a li<strong>de</strong>rança dos Estados Unidos” (Silva,<br />

op. cit., p. 31).<br />

Em 1961 Jânio Quadros e seu chanceler Afonso Arinos lançaram a <strong>Política</strong><br />

Externa In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte (PEI), que tinha como princípios a expansão das<br />

exportações brasileiras para qualquer país, inclusive os socialistas, a <strong>de</strong>fesa<br />

do direito internacional, da auto<strong>de</strong>terminação e a não-intervenção nos assuntos<br />

internos <strong>de</strong> outras nações, uma política <strong>de</strong> paz, <strong>de</strong>sarmamento e<br />

coexistência pacífica, apoio à <strong>de</strong>scolonização completa <strong>de</strong> todos os territó-<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

rios ainda <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e a formulação autônoma <strong>de</strong> planos nacionais <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong> encaminhamento da ajuda externa. A raiz <strong>de</strong> tal diplomacia<br />

se encontrava nas necessida<strong>de</strong>s do <strong>de</strong>senvolvimento brasileiro, que<br />

sinalizavam para a mundialização da política externa, autonomizando-a dos<br />

Estados Unidos, que não contribuíam para a economia nacional, como <strong>de</strong>sejavam<br />

as elites <strong>em</strong> troca <strong>de</strong> seu anterior alinhamento com Washington.<br />

Tentando agradar o capital internacional pelo programa <strong>de</strong> austerida<strong>de</strong>, os<br />

setores populares pela reforma e a pequena-burguesia através da onda moralizadora<br />

com que enfrentava os escândalos <strong>de</strong> corrupção, Jânio Quadros ia na<br />

verda<strong>de</strong> ampliando o <strong>de</strong>scontentamento e a oposição a seu governo. A direita<br />

e os Estados Unidos reprovavam sua política externa, enquanto a esquerda e<br />

os segmentos populares criticavam duramente o programa econômico-financeiro.<br />

Enquanto o presi<strong>de</strong>nte, com seu estilo personalista, se isolava das diversas<br />

forças políticas, os atritos se multiplicavam. As iniciativas para estabelecer<br />

relações diplomático-comerciais com os países socialistas (URSS – União das<br />

Repúblicas Socialistas Soviéticas – e Leste Europeu), o apoio à luta pela in<strong>de</strong>pendência<br />

das colônias africanas <strong>de</strong> Portugal, a <strong>de</strong>fesa da não-ingerência <strong>em</strong><br />

relação à Revolução Cubana, a aproximação e a cooperação com a Argentina<br />

(Tratado <strong>de</strong> Uruguaiana) e a retórica nacionalista e terceiro-mundista <strong>de</strong>scontentaram<br />

Washington e as forças armadas.<br />

Marcado pela suspeição i<strong>de</strong>ológica, o governo Goulart será caracterizado<br />

pela instabilida<strong>de</strong> e pelo imobilismo. No plano diplomático, o novo<br />

chanceler, San Tiago Dantas, aprofundou a PEI como “<strong>de</strong>fesa do interesse<br />

nacional”, voltada para o <strong>de</strong>senvolvimento, a soberania e, explicitamente, a<br />

reforma social. Apesar <strong>de</strong> não conseguir se impl<strong>em</strong>entar plenamente, a PEI<br />

gerou atritos crescentes com os Estados Unidos, <strong>de</strong>vido à recusa brasileira à<br />

expulsão <strong>de</strong> Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) (Punta<br />

<strong>de</strong>l Este, 1962), à política <strong>de</strong> encampação <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas estrangeiras por<br />

Leonel Brizola e outros governadores e à aproximação <strong>em</strong> relação aos países<br />

socialistas (restabelecimento <strong>de</strong> relações com a URSS <strong>em</strong> 1962) e aos países<br />

nacionalistas da América Latina. Além dos caminhos e <strong>de</strong>scaminhos da política<br />

do regime populista preocupar<strong>em</strong> a Casa Branca, a PEI, especialmente,<br />

encontrava-se sob a mira do governo norte-americano.<br />

Com o golpe <strong>de</strong> 1964 t<strong>em</strong> início o regime militar e uma nova fase da<br />

política externa brasileira, a qual, todavia, será marcada por traços <strong>de</strong> conti-<br />

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Paulo Fagun<strong>de</strong>s Visentini<br />

nuida<strong>de</strong>. O governo Castelo Branco (1964-1967) representou um verda<strong>de</strong>iro<br />

recuo, abandonando o terceiro-mundismo, o multilateralismo e a dimensão<br />

mundial da PEI, regredindo para uma aliança automática com os<br />

Estados Unidos e para uma diplomacia <strong>de</strong> âmbito h<strong>em</strong>isférico e bilateral.<br />

O que <strong>em</strong>basava tal política era a geopolítica típica da Guerra Fria, teorizada<br />

pela Escola Superior <strong>de</strong> Guerra, com seu discurso centrado nas fronteiras<br />

i<strong>de</strong>ológicas e no perigo comunista. Em troca da subordinação a Washington<br />

e do abandono da diplomacia <strong>de</strong>senvolvimentista, o Brasil esperava<br />

receber apoio econômico. O chanceler Juracy Magalhães chegou a afirmar<br />

que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Como prova<br />

<strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> ao “gran<strong>de</strong> irmão do norte”, o Brasil rompeu relações com Cuba<br />

<strong>em</strong> maio <strong>de</strong> 1964 e enviou tropas à República Dominicana <strong>em</strong> junho <strong>de</strong><br />

1965 sob ban<strong>de</strong>ira da OEA, on<strong>de</strong> também apoiava os Estados Unidos na<br />

tentativa <strong>de</strong> constituir uma Força Interamericana <strong>de</strong> Defesa.<br />

No governo Costa e Silva (1967-1969), as relações internacionais representaram<br />

uma ruptura <strong>em</strong> relação ao governo anterior, contrariando frontalmente<br />

Washington. A Diplomacia da Prosperida<strong>de</strong> do chanceler Magalhães<br />

Pinto, enquanto política externa voltada para a autonomia e o <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

ass<strong>em</strong>elhava-se muito à PEI, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> fazer referência à<br />

reforma social. Ressaltava que a détente entre os Estados Unidos e a URSS<br />

fazia <strong>em</strong>ergir o antagonismo Norte–Sul, e <strong>em</strong> função disso se <strong>de</strong>finia como<br />

nação do terceiro mundo e propugnava uma aliança com este, visando a<br />

alterar as regras injustas do sist<strong>em</strong>a internacional. Tal foi a tônica na II<br />

UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),<br />

<strong>em</strong> que o discurso do representante brasileiro lhe valeu a indicação<br />

para o recém-criado Grupo dos 77, b<strong>em</strong> como na recusa <strong>em</strong> assinar o Tratado<br />

<strong>de</strong> Não-Proliferação Nuclear (TNP).<br />

Na análise da política externa do regime militar, é possível i<strong>de</strong>ntificar<br />

fases b<strong>em</strong> <strong>de</strong>finidas, com características próprias, apesar da existência <strong>de</strong><br />

diversida<strong>de</strong>s internas e <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados traços comuns entre elas. A primeira<br />

fase, o governo Castelo Branco, constituiu um período atípico, com<br />

alinhamento automático aos Estados Unidos, formalmente segundo a concepção<br />

<strong>de</strong> fronteiras i<strong>de</strong>ológicas da Doutrina <strong>de</strong> Segurança Nacional<br />

antiesquerdista. Houve um nítido refluxo diplomático para o âmbito<br />

h<strong>em</strong>isférico, recuando das iniciativas esboçadas pela <strong>Política</strong> Externa In<strong>de</strong>-<br />

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pen<strong>de</strong>nte, com a primazia da or<strong>de</strong>m interna e do saneamento econômico<br />

nos mol<strong>de</strong>s do FMI. Durante esta fase foi dominante a concepção “liberalimperialista”,<br />

calcada no princípio <strong>de</strong> uma diplomacia inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte (ou<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte). Contudo, é preciso reconhecer que o alinhamento brasileiro<br />

foi menos profundo do que se po<strong>de</strong> pensar, pois muito da subserviência<br />

externa foi resultante <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as internos. Durante a “correção <strong>de</strong> rumos”<br />

<strong>de</strong> Castelo Branco, igualmente estavam sendo lançadas as bases <strong>de</strong> um novo<br />

ciclo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Portanto, muito das características <strong>de</strong> sua política<br />

externa po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado um efeito conjuntural.<br />

A segunda fase foi constituída pelos governos Costa e Silva, da Junta<br />

Militar (agosto a outubro <strong>de</strong> 1969), e Emílio Garrastazu Médici (1969-<br />

1974), caracterizando-se pelo retorno a uma diplomacia voltada para o “interesse<br />

nacional” do <strong>de</strong>senvolvimento, <strong>em</strong>bora ainda marcada por um discurso<br />

aparent<strong>em</strong>ente referenciado às fronteiras i<strong>de</strong>ológicas. Este último aspecto<br />

se <strong>de</strong>veu, sobretudo, a el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> política interna, como os confrontos<br />

abertos com os setores <strong>de</strong> oposição e, inclusive, a luta armada. Consistia,<br />

pois, numa forma <strong>de</strong> legitimação política interna. Iniciando com<br />

uma série <strong>de</strong> confrontos com a Casa Branca (governo Costa e Silva), houve<br />

posteriormente uma relativa marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> iniciativa autônoma nas relações<br />

com os Estados Unidos, mas ainda situadas no âmbito regional. A conjuntura<br />

interna, marcada pela luta contra os grupos <strong>de</strong> esquerda, fez do Brasil<br />

um “probl<strong>em</strong>a” e permitiu certa convergência com Washington, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o “milagre econômico” era impulsionado. Essa “aliança com<br />

autonomia” foi também possível <strong>de</strong>vido ao redimensionamento da estratégia<br />

norte-americana pela administração Nixon–Kissinger, que se apoiava<br />

<strong>em</strong> aliados regionais que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhavam o papel <strong>de</strong> “potência média”.<br />

A terceira fase abrangeu os governos Ernesto Geisel (1974-1979) e João<br />

Figueiredo (1979-1985). O Pragmatismo Responsável retomou as linhas<br />

gerais da <strong>Política</strong> Externa In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e, <strong>em</strong>bora adotasse uma postura<br />

menos politizada e mais conservadora (ausência <strong>de</strong> referência a reformas<br />

sociais internas), avançou muito mais <strong>em</strong> termos práticos. Trata-se do apogeu<br />

da multilateralização e da mundialização da política externa brasileira.<br />

A re<strong>de</strong>mocratização pouco viria a alterar a linha diplomática implantada<br />

por Geisel, <strong>em</strong>bora a segunda meta<strong>de</strong> dos anos 1980 tenha presenciado a<br />

afirmação <strong>de</strong> uma conjuntura internacional adversa, que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bocará na<br />

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“crise do multilateralismo” a partir <strong>de</strong> 1990. Nesta terceira fase, b<strong>em</strong> como<br />

na segunda, prevaleceu a concepção “nacional-autoritária”, <strong>de</strong> viés<br />

autonomista e <strong>de</strong>senvolvimentista.<br />

A política externa do período, salvo o hiato <strong>de</strong> Castelo Branco, apresentava-se<br />

como um instrumento <strong>de</strong> apoio ao <strong>de</strong>senvolvimento econômico<br />

industrial e à construção do status <strong>de</strong> potência média, representando o<br />

ponto alto <strong>de</strong> uma estratégia iniciada com Vargas, mas cujas origens mais<br />

r<strong>em</strong>otas se encontram na i<strong>de</strong>ologia tenentista. Tal política, ao longo do<br />

regime militar, conduziu à busca <strong>de</strong> uma maior autonomia na cena internacional,<br />

produzindo-se um crescente processo <strong>de</strong> multilateralização e<br />

mundialização, <strong>de</strong> dimensão tanto econômica como política. Neste processo,<br />

o país necessitava exportar produtos primários <strong>de</strong> colocação cada<br />

vez mais difícil no mercado mundial, e para tanto as relações com as Europas<br />

capitalista e socialista, com a China Popular e com o Japão foram particularmente<br />

importantes.<br />

Mas a recente industrialização tornava necessário buscar mercados também<br />

para os produtos manufaturados e serviços, e para tanto as relações<br />

com América Latina, África, Oriente Médio e Ásia foram <strong>de</strong>cisivas. Contudo,<br />

o país necessitava também importar capital, tecnologia e máquinas,<br />

fazendo-se necessário manter boas relações com o Norte capitalista, especialmente<br />

com os pólos <strong>em</strong>ergentes europeu e japonês, mas também com<br />

o campo soviético. Com o primeiro choque petrolífero, também a importação<br />

<strong>de</strong> petróleo se tornou uma questão estratégica, implicando um<br />

estreitamento <strong>de</strong> relações com os países produtores, especialmente do<br />

Oriente Médio.<br />

A utilização da política externa como instrumento <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

aliada às conseqüências do <strong>de</strong>sgaste das heg<strong>em</strong>onias no sist<strong>em</strong>a mundial,<br />

configurou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finir as relações com os Estados Unidos,<br />

imprimindo maior autonomia à diplomacia brasileira <strong>em</strong> face do “aliado<br />

privilegiado”. Para escapar à acentuada <strong>de</strong>pendência diante dos Estados<br />

Unidos e para barganhar termos mais favoráveis para essa relação, o Brasil<br />

ampliou sua diplomacia para outros pólos capitalistas (Europa Oci<strong>de</strong>ntal e<br />

Japão), aprofundou sua atuação nas organizações internacionais e buscou<br />

estreitar ou estabelecer vínculos com o terceiro mundo e com o mundo<br />

socialista. Assim, a “verticalida<strong>de</strong> Norte–Sul” passou a coexistir com a<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

“horizontalida<strong>de</strong> Sul–Sul” e a “diagonalida<strong>de</strong> Sul–Leste”. Tratava-se do apogeu<br />

do processo <strong>de</strong> multilateralização.<br />

Ultrapassando a dimensão <strong>de</strong> mero campo <strong>de</strong> barganha, a multilateralida<strong>de</strong><br />

conduziu efetivamente à mundialização da diplomacia brasileira,<br />

introduzindo mudanças qualitativas. Os vínculos com alguns países socialistas,<br />

com a China Popular e com países-chave do Oriente Próximo constituíram<br />

relações autônomas e eqüitativas entre potências <strong>de</strong> porte médio,<br />

contrariando alguns pressupostos <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a internacional sob<br />

heg<strong>em</strong>onia do Norte capitalista e industrial.<br />

Apesar do inegável avanço que essa política representou, ela ficou aquém<br />

<strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s, consi<strong>de</strong>rando-se as brechas existentes no sist<strong>em</strong>a<br />

internacional <strong>de</strong> então e as potencialida<strong>de</strong>s político-diplomáticas do país.<br />

Acreditamos que tal “timi<strong>de</strong>z” se <strong>de</strong>veu principalmente às <strong>de</strong>corrências <strong>de</strong><br />

uma estrutura social profundamente exclu<strong>de</strong>nte, o que limitou e entorpeceu<br />

a ação internacional do país. Aliás, o adjetivo “responsável” agregado ao<br />

pragmatismo também po<strong>de</strong> ser interpretado como um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> política<br />

interna conservadora (mo<strong>de</strong>rnização econômica s<strong>em</strong> reforma social), ao<br />

contrário da <strong>Política</strong> Externa In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, que teria sido “irresponsável”<br />

por associar a diplomacia autônoma a mudanças sociais domésticas. Mais<br />

ainda, muito da mobilização externa <strong>de</strong> recursos se <strong>de</strong>veu à tentativa <strong>de</strong><br />

manter internamente uma pax conservadora. Dialeticamente, era preciso<br />

ser ousado externamente para conservar internamente.<br />

Por outro lado, o elevado grau <strong>de</strong> internacionalização da economia brasileira<br />

fez que muitos setores <strong>em</strong>presariais, governamentais e políticos preferiss<strong>em</strong><br />

apostar <strong>em</strong> vínculos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, inclusive como condição para<br />

manter intocadas as estruturas sociais internas. Além disso, quando as dificulda<strong>de</strong>s<br />

externas cresceram na passag<strong>em</strong> dos anos 1970 para os anos 1980,<br />

muitos tentaram negociar uma acomodação com po<strong>de</strong>r heg<strong>em</strong>ônico, <strong>em</strong><br />

lugar <strong>de</strong> prosseguir numa estratégia autonomista cada vez mais onerosa.<br />

Contudo, é forçoso reconhecer que o paradigma das relações exteriores<br />

<strong>de</strong>dicadas a dar suporte ao <strong>de</strong>senvolvimento econômico-industrial logrou<br />

alcançar gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> seus objetivos. O Brasil, ainda que marcado pelas<br />

<strong>de</strong>ficiências sociopolíticas b<strong>em</strong> conhecidas, converteu-se no único país ao<br />

sul do Equador a possuir um parque industrial completo e mo<strong>de</strong>rno,<br />

posicionando-se entre as <strong>de</strong>z maiores economias do mundo. Este sucesso<br />

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do nacional-<strong>de</strong>senvolvimentismo foi, todavia, obscurecido pelas transformações<br />

do cenário mundial nos anos 1980, b<strong>em</strong> como por suas repercussões<br />

internas. Mesmo assim, o mo<strong>de</strong>lo resistiu durante o primeiro governo<br />

pós-regime militar.<br />

Com o encerramento do regime militar <strong>em</strong> 1985, a política externa da<br />

Nova República apresentou uma evolução singular. O ministro Olavo Setúbal<br />

mostrou-se <strong>de</strong>terminado a romper com a linha diplomática do pragmatismo<br />

responsável e do universalismo. Argumentava que o Brasil era um país oci<strong>de</strong>ntal,<br />

que <strong>de</strong>veria maximizar suas oportunida<strong>de</strong>s individuais, <strong>em</strong> cooperação<br />

com os Estados Unidos, para chegar ao primeiro mundo. Obviamente<br />

sua ênfase foi <strong>de</strong> afastamento do terceiro mundo e <strong>de</strong> suas reivindicações.<br />

Sua política se baseava <strong>em</strong> larga medida na situação internacional, caracterizada<br />

pela relativamente b<strong>em</strong>-sucedida tentativa norte-americana <strong>de</strong> reafirmar<br />

sua li<strong>de</strong>rança, pela crise e pela reforma do socialismo (a ascensão <strong>de</strong><br />

Gorbachov foi praticamente simultânea ao início da Nova República) e<br />

pelas crescentes dificulda<strong>de</strong>s do terceiro mundo, pois <strong>em</strong> 1985, na Reunião<br />

<strong>de</strong> Cúpula do G-7 <strong>em</strong> Cancún, o diálogo Norte–Sul foi abandonado.<br />

Contudo, o Itamaraty resistiu a essa nova orientação, que se ass<strong>em</strong>elhava à<br />

diplomacia <strong>de</strong> Castelo Branco. Assim, no início <strong>de</strong> 1986 o chanceler era<br />

substituído por Abreu Sodré. Uma <strong>de</strong> suas primeiras medidas foi o reatamento<br />

<strong>de</strong> relações diplomáticas com Cuba, que haviam sido até então<br />

obstaculizadas por Setúbal e pelo Conselho <strong>de</strong> Segurança Nacional (CSN).<br />

A cooperação com a URSS cresceu, especialmente com as esperanças <strong>de</strong>spertadas<br />

pela Perestroika, mas logo a crise soviética e a convergência entre<br />

Moscou e Washington frustraram-na. Em relação à China, intensificou-se o<br />

comércio e <strong>de</strong>senvolveram-se projetos tecnológicos, especialmente na área espacial.<br />

Com relação ao terceiro mundo e aos organismos internacionais, Sarney<br />

conservou a mesma linha que se iniciara com Geisel, mantendo atitu<strong>de</strong>s que<br />

lhe valeram até o respeito da esquerda. Com relação à África, ao Oriente<br />

Médio, à Europa Oci<strong>de</strong>ntal e ao Japão, a política foi exatamente igual à do<br />

governo Figueiredo, só que marcada por dificulda<strong>de</strong>s ainda maiores. Também<br />

permaneceu inalterada a diplomacia centro-americana do Brasil, com apoio<br />

ativo ao Grupo <strong>de</strong> Contadora e crítica à atuação dos Estados Unidos.<br />

Quanto mais se estreitavam as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atuação do Brasil no<br />

plano global, mais a América do Sul foi valorizada como alternativa estraté-<br />

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gica, tendo seu eixo centrado na cooperação e na integração com a Argentina,<br />

que vivia probl<strong>em</strong>as s<strong>em</strong>elhantes aos do Brasil. O retorno da <strong>de</strong>mocracia,<br />

com os presi<strong>de</strong>ntes Raúl Alfonsín e José Sarney, se <strong>de</strong>u numa conjuntura<br />

adversa do ponto <strong>de</strong> vista econômico e diplomático. A crise da dívida fez<br />

que os países latino-americanos ficass<strong>em</strong> extr<strong>em</strong>amente vulneráveis às pressões<br />

do FMI e do Banco Mundial, num quadro <strong>de</strong> graves dificulda<strong>de</strong>s econômicas,<br />

enquanto o conflito centro-americano permitia ao governo Reagan<br />

trazer a Guerra Fria para o âmbito h<strong>em</strong>isférico, o que lhe possibilitava também<br />

utilizar instrumentos diplomáticos e militares para exercer uma pressão<br />

supl<strong>em</strong>entar sobre a América Latina. Neste contexto os dois países haviam<br />

a<strong>de</strong>rido ao Grupo <strong>de</strong> Apoio a Contadora e <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado um<br />

acercamento sist<strong>em</strong>ático e institucionalizado.<br />

Em 1985, através da Declaração <strong>de</strong> Iguaçu, foi estabelecida uma comissão<br />

para estudar a integração entre os dois países, e <strong>em</strong> 1986 foi assinada a<br />

Ata para Integração e Cooperação Econômica, que previa a intensificação e<br />

a diversificação das trocas comerciais. Fruto <strong>de</strong>ste esforço, <strong>em</strong> 1988 foi firmado<br />

o Tratado <strong>de</strong> Integração, Cooperação e Desenvolvimento Brasil–Argentina,<br />

que previa o estabelecimento <strong>de</strong> um Mercado Comum entre os dois<br />

países num prazo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos. Por trás <strong>de</strong>ssa cooperação, a par dos fatores já<br />

apontados, estavam a marginalização crescente da América Latina no sist<strong>em</strong>a<br />

mundial, a tentativa <strong>de</strong> formular respostas diplomáticas comuns aos<br />

<strong>de</strong>safios internacionais, a busca <strong>de</strong> compl<strong>em</strong>entarida<strong>de</strong> comercial, a criação<br />

<strong>de</strong> fluxos <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> comércio e um esforço conjunto no campo<br />

tecnológico (particularmente no nuclear) e <strong>de</strong> projetos específicos. Para o<br />

Brasil, especificamente, a integração permitia aumentar a base regional<br />

para a inserção internacional do país, num caminho que conduzirá, <strong>em</strong><br />

1991, à criação do Mercosul.<br />

5. A GLOBALIZAÇÃO E A CRISE DO MODELO<br />

Nos anos 1990, o multilateralismo e o <strong>de</strong>senvolvimentismo entram <strong>em</strong><br />

crise, com o advento das políticas neoliberais, as quais tentam alinhar o<br />

Brasil a uma “or<strong>de</strong>m mundial” estruturalmente instável.<br />

Neste contexto, o Mercosul não constituía um fim <strong>em</strong> si mesmo, n<strong>em</strong> o<br />

aspecto comercial representava o objetivo essencial, mas fazia parte <strong>de</strong> um<br />

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projeto mais abrangente <strong>de</strong> redimensionamento da inserção internacional<br />

dos países da região. Quando os Estados Unidos anunciaram as articulações<br />

para a criação do NAFTA (North American Free Tra<strong>de</strong> Agre<strong>em</strong>ent – Tratado<br />

<strong>de</strong> Livre Comércio da América do Norte) (como reação ao estabelecimento<br />

do Mercosul e da União Européia), o Brasil respon<strong>de</strong>u lançando <strong>em</strong><br />

1993 a iniciativa da ALCSA (Área <strong>de</strong> Livre Comércio Sul-Americana) e<br />

estabelecendo com os países sul-americanos e africanos a Zona <strong>de</strong> Paz e<br />

Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS), numa estratégia <strong>de</strong> círculos concêntricos<br />

a partir do Mercosul.<br />

A primeira iniciativa estimulava as <strong>de</strong>mais nações sul-americanas a se<br />

associar ao Mercosul através da negociação <strong>de</strong> acordos <strong>de</strong> livre comércio<br />

(Venezuela, Bolívia e Chile já negociaram formas <strong>de</strong> associação ao Mercosul).<br />

A criação <strong>de</strong> uma área <strong>de</strong> integração sul-americana, com o Mercosul como<br />

núcleo duro, ampliava a marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> manobra e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resistência<br />

ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atração que o NAFTA exercia sobre os países latino-americanos<br />

individualmente, como no caso do Chile. Além disso, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma integração regional ampliada criou alternativas para que os países do<br />

subcontinente não ficass<strong>em</strong> tão expostos às pressões externas para adotar<br />

planos liberais ortodoxos <strong>de</strong> ajuste, que seriam necessários para manter relações<br />

privilegiadas com os países <strong>de</strong>senvolvidos ou estar <strong>em</strong> condições <strong>de</strong><br />

participar do próprio NAFTA, o que se converteu <strong>em</strong> autêntico “canto da<br />

sereia” para certas nações latino-americanas.<br />

No segundo caso, a idéia era criar outro círculo concêntrico <strong>em</strong> volta do<br />

Atlântico Sul, através da cooperação do Mercosul com a África do Sul pósapartheid<br />

e com os países recent<strong>em</strong>ente pacificados da África Austral. Esse<br />

novo espaço constituiria uma área <strong>de</strong> crescimento econômico, tirando proveito<br />

das compl<strong>em</strong>entarida<strong>de</strong> existentes e potenciais. Além disso, essa iniciativa<br />

ampliaria o quadro <strong>de</strong> cooperação Sul–Sul, além <strong>de</strong> abrir uma rota<br />

permanente para os oceanos Índico e Pacífico, propiciando ainda condições<br />

para a concertação <strong>de</strong> alianças estratégicas com potências médias e/ou mercados<br />

<strong>em</strong>ergentes do terceiro mundo. Este último aspecto parece ser particularmente<br />

importante para a diplomacia brasileira.<br />

O que se <strong>de</strong>seja <strong>de</strong>stacar com isto é que o Brasil passou a ocupar um<br />

espaço <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança regional que, mesmo s<strong>em</strong> <strong>de</strong>sejar, gerou uma frente <strong>de</strong><br />

atrito e competição com os Estados Unidos. Além disso, o Mercosul se<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

tornou um fator <strong>de</strong> atração na cena internacional, <strong>em</strong> face das disputas<br />

entre os blocos do h<strong>em</strong>isfério Norte. Além disso, a implantação do NAFTA<br />

foi acompanhada <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as imprevistos. No dia <strong>em</strong> que entrou <strong>em</strong><br />

vigor, eclodiu o levante zapatista no sul do México, e no final <strong>de</strong> 1994, <strong>em</strong><br />

meio à crise política daquele país (assassinato do candidato oficial à presidência<br />

da República), <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou-se a crise cambial e financeira, com o<br />

“efeito tequila” repercutindo <strong>em</strong> toda a América Latina, reforçando ainda os<br />

setores políticos norte-americanos opostos ao NAFTA. Em nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong><br />

1994, para completar o quadro, os republicanos venceram as eleições<br />

legislativas nos Estados Unidos, tornando ainda mais difícil a aprovação do<br />

fast track, peça-chave para manter os países latino-americanos voltados para<br />

a integração com o Norte. Neste quadro relativamente adverso para a Casa<br />

Branca foi lançada na Cúpula das Américas, realizada <strong>em</strong> Miami <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro<br />

<strong>de</strong> 1994, a iniciativa da Área <strong>de</strong> Livre Comércio das Américas<br />

(ALCA).<br />

Na ótica dos Estados Unidos, era preciso retomar a iniciativa política,<br />

dando uma resposta aos avanços do Brasil/Mercosul e à crise <strong>de</strong> confiança<br />

que a crise mexicana <strong>de</strong>spertava no continente <strong>em</strong> relação à estratégia <strong>de</strong><br />

Washington. Como reação a isso, o Mercosul assinou um acordo marco <strong>de</strong><br />

cooperação com a União Européia <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1995. A estratégia <strong>de</strong><br />

inserção internacional foi centrada no Plano Real, com a atração <strong>de</strong> capitais<br />

estrangeiros via privatizações, causando enormes danos ao patrimônio nacional.<br />

O país se tornou <strong>de</strong>ficitário no comércio exterior <strong>de</strong> forma sist<strong>em</strong>ática,<br />

pela primeira vez na história. O ufanismo liberal-globalista, marcado por<br />

um filo-americanismo caricato, foi irradiado pelo governo <strong>em</strong> direção ao<br />

Itamaraty e à socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> geral.<br />

O segundo mandato <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso (1999-2002),<br />

contudo, coincidiu com o início da instabilida<strong>de</strong> financeira internacional,<br />

que golpeou duramente o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> inserção internacional que vinha<br />

sendo seguido até então. O governo teve <strong>de</strong> alterar rumos e priorizar<br />

a integração sul-americana, enquanto cresciam as pressões norte-americanas<br />

<strong>em</strong> favor da ALCA. Todavia, a eleição <strong>de</strong> George W. Bush e os atentados<br />

<strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2001 <strong>de</strong>slocaram a agenda norte-americana<br />

para fora da região, o que seguramente facilitou certos <strong>de</strong>sdobramentos<br />

políticos que viriam a ocorrer.<br />

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Na América Latina as pressões norte-americanas cresciam, com a<br />

militarização e o avanço da proposta da ALCA, <strong>em</strong> meio à crise do chamado<br />

Consenso <strong>de</strong> Washington (agenda neoliberal para o continente). No México,<br />

encerrou-se a longa era <strong>de</strong> domínio do PRI (Partido Revolucionário<br />

Institucional), com a vitória do pró-norte-americano Vicente Fox. Às pressões<br />

contra Cuba e o regime popular-nacionalista <strong>de</strong> Chávez na Venezuela,<br />

somou-se a proposta do Plano Colômbia <strong>de</strong> combate ao narcotráfico e às<br />

guerrilhas <strong>de</strong> esquerda. Crises <strong>de</strong> governabilida<strong>de</strong> se espalharam pelo <strong>em</strong>pobrecido<br />

continente, especialmente no Peru, na Argentina e na Bolívia. A<br />

Argentina, cujos dirigentes alegavam possuir relaciones carnales com os Estados<br />

Unidos, sofreu um completo colapso econômico-financeiro no final<br />

<strong>de</strong> 2001, s<strong>em</strong> receber nenhum socorro internacional, particularmente dos<br />

Estados Unidos. O neoliberalismo encontrava-se na <strong>de</strong>fensiva, pois, além<br />

da crise econômica, Collor, Salinas <strong>de</strong> Gortary, Menen e Fujimori, antes<br />

apontados como mo<strong>de</strong>los, tornaram-se homens com dívidas a acertar com a<br />

justiça <strong>de</strong> seus países.<br />

Mas o pivô da região era o Brasil. Diante do avanço da ALCA e da crise<br />

do Mercosul, procurou avançar a integração física dos países sul-americanos<br />

(Cúpulas <strong>de</strong> Brasília <strong>em</strong> 2000 e <strong>de</strong> Guayaquil <strong>em</strong> 2002). O país procurava<br />

construir um espaço econômico <strong>de</strong> contrapeso à ALCA, como forma <strong>de</strong><br />

constituir um pólo protagônico para a construção <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a internacional<br />

multipolar. Contudo, o el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong>cisivo foi a eleição presi<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong> 2002,<br />

com a vitória da esquerda com o candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Abriuse<br />

espaço para uma reação <strong>de</strong> caráter tanto social como nacional, que po<strong>de</strong><br />

ter gran<strong>de</strong> influência no fragilizado continente.<br />

O atual curso da política externa brasileira teve início já <strong>em</strong> meados do<br />

segundo governo Fernando Henrique Cardoso. Mas o ex-presi<strong>de</strong>nte não<br />

possuía os requisitos para uma mudança que ultrapassasse um tímido<br />

discurso crítico, o que coube ao atual mandatário. Em primeiro lugar, o<br />

governo Lula <strong>de</strong>volveu ao Itamaraty a posição estratégica que anteriormente<br />

ocupara na formulação e na execução da política exterior do Brasil,<br />

pois FHC dominara a parte política (“diplomacia presi<strong>de</strong>ncial”), o ministro<br />

Malan a agenda econômica internacional, restando ao Ministério das<br />

Relações Exteriores apenas a parte técnico-burocrática das negociações e<br />

receber as críticas.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Evi<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, Lula <strong>de</strong>senvolve uma intensa agenda internacional, mas<br />

como porta-voz <strong>de</strong> um projeto que transcen<strong>de</strong> objetivos <strong>de</strong> projeção pessoal<br />

e a<strong>de</strong>são subordinada à globalização. Aliás, esta é a gran<strong>de</strong> diferença: o<br />

“<strong>de</strong>salinhamento da política” externa <strong>em</strong> relação ao “consenso” liberal norte-atlântico<br />

como forma <strong>de</strong> “recuperar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negociação”. Ao aceitar<br />

previamente os postulados e agendas dos países <strong>de</strong>senvolvidos, não havia<br />

muito o que negociar, apenas adaptar-se (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 1970 FHC criticava<br />

o <strong>de</strong>senvolvimentismo <strong>em</strong> suas conferências nos Estados Unidos). Visto pela<br />

perspectiva do G-7, por que conce<strong>de</strong>r alguma coisa a qu<strong>em</strong> já aceitou seu<br />

projeto? Ironicamente, hoje o Brasil t<strong>em</strong> melhor diálogo com Washington e<br />

uma diplomacia mais respeitada, com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negociação.<br />

Outro ponto importante é que o Brasil age com otimismo e vonta<strong>de</strong><br />

política, criando constant<strong>em</strong>ente fatos políticos na área internacional. Anteriormente<br />

tínhamos uma baixa auto-estima, pois os governos Collor e<br />

Cardoso viam o país como atrasado <strong>em</strong> relação aos ajustes <strong>de</strong>mandados<br />

pelos países ricos. Agora, ao contrário, o país se consi<strong>de</strong>ra protagonista <strong>de</strong><br />

mesmo nível, com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negociação e portador <strong>de</strong> um projeto<br />

que po<strong>de</strong>, inclusive, contribuir para inserir a agenda social na globalização.<br />

Isso capacita o país para iniciativas como o ingresso num Conselho <strong>de</strong><br />

Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) reformado, como<br />

m<strong>em</strong>bro permanente.<br />

Finalmente, o Itamaraty, <strong>em</strong> lugar <strong>de</strong> se concentrar na tentativa <strong>de</strong> cooperação<br />

com países <strong>em</strong> relação aos quais somos secundários e <strong>em</strong> relação a<br />

mercados gran<strong>de</strong>s, mas saturados, buscou os espaços não ocupados. Ao nos<br />

aproximarmos dos vizinhos sul-americanos, especialmente os andinos, da<br />

África Austral, dos países árabes e <strong>de</strong> gigantes como Índia, China e Rússia,<br />

nossa diplomacia logrou um avanço imediato e impressionante, com gran<strong>de</strong>s<br />

perspectivas comerciais. A presença <strong>de</strong> <strong>em</strong>presários e <strong>de</strong> convidados<br />

argentinos na <strong>de</strong>legação presi<strong>de</strong>ncial é uma marca importante na sensibilida<strong>de</strong><br />

da nova diplomacia.<br />

Além disso, a cooperação com esses países permitiu a construção <strong>de</strong> alianças<br />

<strong>de</strong> geometria variável como o G3 e o G20, com influência marcante no<br />

plano global. Em lugar <strong>de</strong> uma diplomacia <strong>de</strong> forte conteúdo i<strong>de</strong>ológico, o<br />

Brasil <strong>de</strong>senvolveu uma postura ativa e pragmática, buscando aliados para<br />

cada probl<strong>em</strong>a, contestando s<strong>em</strong> <strong>de</strong>safiar os gran<strong>de</strong>s (como nas negociações<br />

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comerciais e no caso do <strong>de</strong>srespeito anglo-americano <strong>em</strong> relação à ONU),<br />

respeitando s<strong>em</strong> respaldar a posição <strong>de</strong> países probl<strong>em</strong>áticos como Venezuela,<br />

Cuba, Líbia e Síria, por ex<strong>em</strong>plo.<br />

Enfim, o Brasil <strong>de</strong>senvolveu uma diplomacia própria, a<strong>de</strong>quada à era da<br />

globalização, com um projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento para o país. O probl<strong>em</strong>a<br />

é que ela <strong>de</strong>sperta imensas expectativas, e somente po<strong>de</strong>rá dar resultados se<br />

houver <strong>de</strong>senvolvimento econômico e geração <strong>de</strong> <strong>em</strong>pregos (que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre<br />

estão juntos). Ajustes internos e esqu<strong>em</strong>as externos foram realizados<br />

para tanto, mas variáveis internacionais são importantes. Depen<strong>de</strong>mos ainda<br />

<strong>de</strong> um mundo muito instável para que esse projeto dê resultados positivos.<br />

S<strong>em</strong> crescimento não conseguir<strong>em</strong>os consolidar os gran<strong>de</strong>s avanços logrados<br />

na área sul-americana, base <strong>de</strong> nossa inserção internacional.<br />

Mas é preciso reconhecer que <strong>em</strong> 20 anos ocorreram mudanças políticas<br />

significativas no país. Uma parte importante da socieda<strong>de</strong> “globalizou-se”<br />

(no mau sentido da palavra, isto é, alienou-se) e per<strong>de</strong>u a dimensão nacional.<br />

Quando o governo simplesmente manifesta certos pontos <strong>de</strong> vista, como<br />

<strong>em</strong> relação ao direito <strong>de</strong> dominar o ciclo nuclear (com fins pacíficos), ou<br />

adota medidas <strong>de</strong> soberania, como <strong>em</strong> relação ao probl<strong>em</strong>a da reciprocida<strong>de</strong><br />

no fichamento <strong>de</strong> passageiros norte-americanos, vozes brasileiras se<br />

levantam contra. Isso revela um agudo probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ou a persistência<br />

<strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>. A política econômica, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

<strong>de</strong>monstra como a visão <strong>de</strong> mundo do Consenso <strong>de</strong> Washington contaminou<br />

parte da elite e dos especialistas.<br />

A gran<strong>de</strong> batalha, contudo, é a integração sul-americana, objetivo<br />

prioritário do governo. Recuperar o Mercosul e associá-lo à Comunida<strong>de</strong><br />

Andina é o objetivo estratégico, base da inserção internacional do país<br />

(Costa, 2004), e a alternativa viável à integração h<strong>em</strong>isférica projetada<br />

pela ALCA. Da mesma forma, a cooperação nos campos diplomático, científico,<br />

militar e econômico com os gran<strong>de</strong>s países <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

como Rússia, China, Índia e África do Sul, são uma condição indispensável<br />

para o país se tornar um dos pólos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r num sist<strong>em</strong>a mundial<br />

multipolar e um m<strong>em</strong>bro permanente do Conselho <strong>de</strong> Segurança da ONU.<br />

Pensar gran<strong>de</strong> e agir, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um projeto nacional soberano, é igualmente<br />

um el<strong>em</strong>ento necessário para que o país possa atingir o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico e social.<br />

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246<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 246<br />

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Fátima V. Mello<br />

Rupturas e continuida<strong>de</strong>s da<br />

política comercial do governo Lula<br />

Fátima V. Mello 1<br />

Este artigo propõe uma discussão sobre a política externa na área comercial<br />

do primeiro governo Lula (2003-2006), a partir do ponto <strong>de</strong> vista das<br />

organizações e dos movimentos sociais que atuam nesta área. A atuação<br />

<strong>de</strong>sses movimentos e organizações revela que a política externa brasileira na<br />

área comercial tornou-se objeto <strong>de</strong> forte disputa no âmbito da política nacional,<br />

expondo como as posições negociadoras na arena comercial reflet<strong>em</strong><br />

as opções <strong>de</strong> política interna e a correlação <strong>de</strong> forças doméstica.<br />

Para tal, o artigo apresenta, <strong>em</strong> primeiro lugar, alguns tópicos <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate no<br />

campo analítico, visando reforçar as abordagens que atestam a diluição das fronteiras<br />

entre as políticas externa e interna. A segunda parte do artigo propõe uma<br />

análise da política comercial do primeiro governo Lula segundo as continuida<strong>de</strong>s<br />

e rupturas <strong>em</strong> relação à política do governo anterior, particularmente no<br />

caso das negociações da ALCA (Área <strong>de</strong> Livre Comércio das Américas) e da<br />

Rodada <strong>de</strong> Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio).<br />

1. A DILUIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNA<br />

Acabou-se o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se podia pensar a formulação da política<br />

externa <strong>de</strong> forma dissociada da política doméstica. As posições externas do<br />

Brasil nas negociações internacionais <strong>de</strong> comércio e as opções do país <strong>de</strong><br />

políticas internas não são <strong>de</strong> forma alguma distintas mas estão diretamente<br />

articuladas, ao contrário do que propõe a abordag<strong>em</strong> realista clássica. A<br />

1 Diretora da FASE (Fe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Órgãos para Assistência Social e Educacional) e secretária executiva<br />

da Rebrip (Re<strong>de</strong> Brasileira pela Integração dos Povos).<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

diluição das fronteiras entre o exteno e o interno não significa, no entanto,<br />

que o Estado nacional, o po<strong>de</strong>r e outros el<strong>em</strong>entos estruturais da or<strong>de</strong>m<br />

internacional e que orientam a ação externa das unida<strong>de</strong>s nacionais per<strong>de</strong>ram<br />

valida<strong>de</strong>. Propomos aqui uma análise que seja uma combinação <strong>de</strong><br />

condicionantes externos e internos.<br />

Grosso modo, é sabido que <strong>em</strong> um dos extr<strong>em</strong>os do leque <strong>de</strong> abordagens<br />

sobre as relações internacionais encontra-se o realismo clássico, cujas principais<br />

pr<strong>em</strong>issas seriam o fato <strong>de</strong> não existir autorida<strong>de</strong> acima dos Estados nacionais,<br />

a dimensão absolutamente central do po<strong>de</strong>r, a soberania dos Estados e a<br />

separação entre as esferas doméstica e internacional. As perspectivas realistas<br />

conceb<strong>em</strong>, portanto, as relações internacionais totalmente centradas no Estado,<br />

que por sua vez seria um ator unitário e racional, s<strong>em</strong> conflitos internos<br />

n<strong>em</strong> fragmentações. O interesse nacional seria único, e <strong>de</strong> uma maneira geral<br />

a dimensão <strong>de</strong> política doméstica seria irrelevante para a política internacional,<br />

muito <strong>em</strong>bora autores como Aron consi<strong>de</strong>r<strong>em</strong> importante a dimensão<br />

interna dos Estados e a natureza e a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada uma das unida<strong>de</strong>s do<br />

sist<strong>em</strong>a; Raymond Aron critica a idéia do interesse nacional s<strong>em</strong> conflito,<br />

probl<strong>em</strong>atizando a questão <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> formula o interesse nacional. Stephen<br />

Krasner também argumenta que para que se possa <strong>de</strong>finir o interesse nacional<br />

é necessário olhar para <strong>de</strong>ntro do Estado a fim <strong>de</strong> examinar quais negociações<br />

domésticas são necessárias. A maioria dos autores realistas, entretanto, focaliza<br />

na correlação <strong>de</strong> forças entre Estados e mantém a visão <strong>de</strong> insulamento do<br />

Estado. Este é o caso <strong>de</strong> Kenneth Waltz, que argumenta que o interesse nacional<br />

seria <strong>de</strong>duzido da posição do Estado <strong>em</strong> relação aos <strong>de</strong>mais, ou seja, do<br />

el<strong>em</strong>ento estrutural da posição relativa do Estado.<br />

Se fôss<strong>em</strong>os adotar apenas os dois extr<strong>em</strong>os do espectro <strong>de</strong> abordagens<br />

analíticas sobre relações internacionais, no pólo oposto ao realismo estaria<br />

localizada a perspectiva <strong>de</strong> governo mundial. Os <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong> tal perspectiva<br />

argumentam que há uma mudança qualitativa <strong>em</strong> curso no sist<strong>em</strong>a, e<br />

uma das expressões disso seria a plurida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atores e <strong>de</strong> t<strong>em</strong>as, entre eles a<br />

participação e o peso político crescentes na política internacional <strong>de</strong> atores<br />

não-estatais como as ONGs (Organizações não-governamentais) e os movimentos<br />

sociais. O sist<strong>em</strong>a atual seria caracterizado, portanto, pelo fim da<br />

primazia das questões estratégico-militares, acompanhado da <strong>em</strong>ergência<br />

<strong>de</strong> valores e <strong>de</strong> normas compartilhados por todos os atores do sist<strong>em</strong>a, por<br />

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Fátima V. Mello<br />

forte erosão das soberanias – resultante da intensa aproximação entre política<br />

doméstica e internacional – e por altas dispersão e <strong>de</strong>sagregação do<br />

po<strong>de</strong>r. Segundo tal perspectiva, ao acabar com a primazia dos t<strong>em</strong>as estratégico-militares,<br />

as questões da chamada “baixa política”, relacionadas ao b<strong>em</strong>estar<br />

dos cidadãos, e portanto mais próximas à formulação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas<br />

societais, passam a ser objeto <strong>de</strong> negociação internacional. Além disso, a<br />

natureza “global” dos probl<strong>em</strong>as da atualida<strong>de</strong> resultaria quase que automaticamente<br />

<strong>em</strong> cooperação fundada <strong>em</strong> valores comuns.<br />

Na atualida<strong>de</strong>, <strong>em</strong>bora seja possível i<strong>de</strong>ntificar um grau razoável <strong>de</strong> erosão<br />

dos Estados nacionais no que diz respeito à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formular<strong>em</strong><br />

autonomamente suas políticas diante da inter<strong>de</strong>pendência e da aproximação<br />

crescentes entre política doméstica e internacional, estes continuam<br />

a ser os atores centrais das relações internacionais, cuja configuração, ao que<br />

tudo indica, continuará sendo a <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a interestatal, <strong>em</strong>bora tenda a<br />

incorporar inúmeras e importantes mudanças resultantes <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m<br />

<strong>em</strong> transição. Algumas interpretações suger<strong>em</strong> que, à medida que a idéia <strong>de</strong><br />

um mundo cada vez mais globalizado avança, mais per<strong>de</strong> força, <strong>em</strong> proporção<br />

inversa, o pensamento realista. As evidências, porém, levam a crer que<br />

se faz necessário um exame mais cuidadoso. É verda<strong>de</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, que os<br />

Estados nacionais sofr<strong>em</strong> pressões e condicionamentos externos fortíssimos<br />

advindos do capitalismo globalizado, e que os impactos <strong>de</strong>ssa dinâmica são<br />

<strong>de</strong>vastadores, visto que as agendas <strong>de</strong> política econômica passam a ficar cada<br />

vez mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> condicionamentos externos. O fenômeno da<br />

globalização também <strong>de</strong>safia as pr<strong>em</strong>issas realistas do Estado nacional como<br />

ator unitário, que v<strong>em</strong> per<strong>de</strong>ndo sua exclusivida<strong>de</strong> como ator das relações<br />

internacionais, passando a conviver com a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> novos atores, como<br />

é o caso <strong>de</strong> forças transnacionais <strong>de</strong> elevadíssimo po<strong>de</strong>r (como o capital<br />

financeiro) e <strong>de</strong> outras que atuam no campo da normativida<strong>de</strong> e da construção<br />

<strong>de</strong> valores e <strong>de</strong> regras a ser observados por todas as unida<strong>de</strong>s do<br />

sist<strong>em</strong>a, como por ex<strong>em</strong>plo as ONGs e os movimentos sociais. O reconhecimento<br />

<strong>de</strong>ssas evidências não resulta, entretanto, na conclusão <strong>de</strong> que haveria<br />

um grave comprometimento das capacida<strong>de</strong>s do Estado-nação; diante<br />

<strong>de</strong>sse contexto, ocorre uma perda <strong>de</strong> autonomia dos Estados nacionais <strong>em</strong><br />

relação à socieda<strong>de</strong>, porém não necessariamente perda <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> (Risse-<br />

Kappen, 1995).<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Se a erosão dos Estados nacionais não v<strong>em</strong> se confirmando como tendência<br />

absoluta, por outro lado po<strong>de</strong>-se afirmar que há aspectos do paradigma<br />

realista que estão sendo fort<strong>em</strong>ente colocados <strong>em</strong> questão pelo fenômeno da<br />

globalização. Este é o caso da pr<strong>em</strong>issa da separação entre política interna e<br />

política externa. A idéia clássica <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> internacional na qual as<br />

unida<strong>de</strong>s se inter-relacionam s<strong>em</strong> interferir nos assuntos internos das outras<br />

já não existe no cenário atual (Lyons e Mastanduno, 1995).<br />

Tal interação entre o doméstico e o internacional já havia sido proposta por<br />

Putnam <strong>em</strong> seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> dois níveis (Putnam, 1988), que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

a integração entre política doméstica e internacional, mas com a manutenção,<br />

no entanto, da unida<strong>de</strong> negociadora centrada no Estado. Embora reiterando<br />

a centralida<strong>de</strong> (porém não a exclusivida<strong>de</strong>) do Estado nacional – o<br />

Estado continua a ser o mediador entre o interno e o externo, e t<strong>em</strong> <strong>de</strong> enfrentar<br />

o probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> compatibilizar as negociações internacionais com as<br />

dinâmicas domésticas –, estes mo<strong>de</strong>los interativos traz<strong>em</strong> implícita a idéia <strong>de</strong><br />

que os Estados não possu<strong>em</strong> mais o controle total n<strong>em</strong> do ambiente internacional<br />

n<strong>em</strong> do doméstico. Putnam trabalha, portanto, com a idéia <strong>de</strong> jogos<br />

<strong>em</strong> dois níveis, que integram a dinâmica doméstica com a política internacional,<br />

e com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> combinar a dimensão estrutural com o processo<br />

<strong>de</strong>cisório, mantendo a unida<strong>de</strong> negociadora centrada no Estado, ou seja, é o<br />

Estado que negocia com a socieda<strong>de</strong> e faz toda a mediação.<br />

Autores como Skidmore e Hudson (1993) organizam esta discussão segundo<br />

as dimensões estatal e societal. No caso da dimensão estatal, a política<br />

externa é distinta da política doméstica, dado que a primeira trata do interesse<br />

nacional, que por sua vez trata da sobrevivência do Estado. Neste caso, a<br />

política externa não está sujeita à politização ou a diferentes pontos <strong>de</strong> vista,<br />

pois supostamente ninguém po<strong>de</strong> ser contra a <strong>de</strong>fesa da sobrevivência do<br />

Estado, que se trata do b<strong>em</strong> público. A política externa, portanto, não faria<br />

parte do conflito doméstico, caracterizando-se por ser uma política <strong>de</strong> Estado<br />

que está acima dos conflitos da socieda<strong>de</strong>. Já a dimensão societal é resultante<br />

<strong>de</strong> interesses particulares da socieda<strong>de</strong>, e é articulada à idéia <strong>de</strong> que a política<br />

externa t<strong>em</strong> impactos diferenciados na socieda<strong>de</strong>. Ou seja, há políticas que<br />

beneficiam <strong>de</strong>terminados setores, enquanto outros são prejudicados. Essa<br />

abordag<strong>em</strong> t<strong>em</strong> como foco a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> examinar a política externa <strong>em</strong><br />

sua relação com a socieda<strong>de</strong>. Na verda<strong>de</strong>, t<strong>em</strong>as como agenda econômico-<br />

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comercial, meio ambiente, direitos humanos aproximam a política doméstica<br />

da política externa, ocorrendo assim uma politização <strong>de</strong>sta última.<br />

As abordagens do tipo realista-estrutural não são a<strong>de</strong>quadas, portanto,<br />

para a análise da política externa brasileira recente na área comercial, pois<br />

essas perspectivas part<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma avaliação sobre as opções disponíveis para<br />

<strong>de</strong>terminado Estado nacional, <strong>de</strong> acordo com sua posição relativa <strong>de</strong>ntro do<br />

sist<strong>em</strong>a internacional. Assim, para um país periférico e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte como o<br />

Brasil, restaria uma marg<strong>em</strong> muito limitada <strong>de</strong> opções, pois são poucos os<br />

seus recursos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r para tentar alterar a chamada geografia comercial, ou<br />

seja, as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que organizam as negociações <strong>de</strong> comércio no<br />

sist<strong>em</strong>a internacional atual. No entanto, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar as limitações<br />

estruturais do Brasil no sist<strong>em</strong>a intenacional, é preciso reconhecer que<br />

o país tornou-se um ator central no concerto <strong>de</strong> países que formam o núcleo<br />

duro do processo <strong>de</strong>cisório sobre o comércio mundial. As motivações e as<br />

ferramentas negociadoras serão discutidas na próxima seção.<br />

2. POLÍTICA COMERCIAL DO PRIMEIRO GOVERNO LULA:<br />

CONTINUIDADES E RUPTURAS COM O PERÍODO ANTERIOR<br />

Des<strong>de</strong> 2003, o Brasil passou a integrar o núcleo <strong>de</strong>cisório <strong>de</strong> dois processos<br />

<strong>de</strong> negociação comercial: a ALCA (Área <strong>de</strong> Livre Comércio das Américas) e a<br />

Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio). Estes dois processos,<br />

somados ao investimento na integração da América do Sul, formam o<br />

coração da política externa do primeiro governo Lula na área comercial.<br />

Uma das principais rupturas <strong>em</strong> relação à política externa do período anterior<br />

se fez sentir logo no primeiro ano do governo Lula, <strong>em</strong> 2003, quando os<br />

negociadores brasileiros atuaram <strong>de</strong> forma coor<strong>de</strong>nada <strong>em</strong> duas frentes para,<br />

por um lado, esvaziar as negociações para a formação da ALCA e, por outro, na<br />

reunião ministerial da OMC <strong>em</strong> Cancún, no México, para formar uma coalizão<br />

<strong>de</strong> países <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento – o G20 – com o intuito <strong>de</strong> tentar equilibrar e<br />

<strong>de</strong>sbloquear as complicadas negociações da Rodada <strong>de</strong> Doha (Mello, 2007).<br />

2.1 A RODADA DE DOHA E A CRIAÇÃO DO G20<br />

As iniciativas tomadas pelo governo brasileiro na reunião ministerial <strong>de</strong><br />

Cancún <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser analisadas tomando-se como pano fundo o el<strong>em</strong>ento<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

estrutural que orienta o Brasil no âmbito da OMC: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Rodada Uruguai<br />

os governos brasileiros vêm buscando, primeiro no GATT (Acordo<br />

Geral <strong>de</strong> Tarifas e Comércio) e posteriormente na OMC, a liberalização do<br />

comércio agrícola. A priorida<strong>de</strong> dos diversos governos brasileiros s<strong>em</strong>pre foi<br />

a busca <strong>de</strong> ampliação do acesso aos mercados <strong>de</strong> produtos agrícolas nos<br />

Estados Unidos e na União Européia, mediante redução <strong>de</strong> barreiras tarifárias<br />

e não-tarifárias, eliminação dos subsídios à exportação e redução substancial<br />

do apoio doméstico nesses países. Para tanto, o Brasil atuava essencialmente<br />

através <strong>de</strong> uma coalizão <strong>de</strong> países agroexportadores (<strong>de</strong>senvolvidos e<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento) conhecida como Grupo <strong>de</strong> Cairns. Des<strong>de</strong> o seu início,<br />

o governo Lula não <strong>de</strong>ixou dúvidas sobre o seu compromisso e sobre a<br />

priorida<strong>de</strong> que daria à OMC e a uma solução para a Rodada <strong>de</strong> Doha. Em<br />

sua percepção, o âmbito multilateral seria mais favorável ao Brasil porque<br />

ali a configuração <strong>de</strong> forças seria melhor do que nos acordos regionais e<br />

bilaterais, nos quais o Brasil teria que, isoladamente, medir forças com Estados<br />

Unidos e União Européia (Rebrip, 2006).<br />

O novo governo, portanto, investiu seu esforço negociador <strong>em</strong> viabilizar<br />

os interesses comerciais da agricultura exportadora (o chamado agronegócio<br />

ou agricultura patronal) por meio do avanço da Rodada <strong>de</strong> Doha. Esta<br />

priorida<strong>de</strong> negociadora<br />

252<br />

O ESVAZIAMENTO DA ALCA<br />

O acordo que resultou no esvaziamento da ALCA foi realizado na reunião<br />

ministerial <strong>de</strong> Miami, <strong>em</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2003. Elaborada pela então co-presidência<br />

Brasil–Estados Unidos, a Declaração Ministerial indicava que a partir daquela<br />

reunião a ALCA seria negociada <strong>em</strong> dois pisos: 1) um piso mínimo, ou seja, uma<br />

base comum aos 34 países, <strong>em</strong> que seriam incluídas obrigações <strong>em</strong> todos os<br />

t<strong>em</strong>as que s<strong>em</strong>pre existiram nas negociações da ALCA (acesso a mercados, agricultura,<br />

serviços, investimentos, compras governamentais, proprieda<strong>de</strong> intelectual,<br />

política <strong>de</strong> concorrência, subsídios, antidumping e direitos compensatórios,<br />

e solução <strong>de</strong> controvérsias). A reunião <strong>de</strong> Miami, no entanto, não <strong>de</strong>finiu o grau<br />

<strong>de</strong> compromisso a ser assumido pelos 34 países <strong>em</strong> cada um <strong>de</strong>sses t<strong>em</strong>as e adiou<br />

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Fátima V. Mello<br />

“reflete o imenso peso que t<strong>em</strong> o agronegócio na estrutura <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r político na socieda<strong>de</strong> brasileira – expresso, entre outros<br />

ex<strong>em</strong>plos, na bancada ruralista e na incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os<br />

governos <strong>em</strong> resolver o probl<strong>em</strong>a histórico-estrutural que marca<br />

mais fort<strong>em</strong>ente a socieda<strong>de</strong> brasileira que é o latifúndio.<br />

Nenhum outro setor econômico t<strong>em</strong> tamanha relação orgânica<br />

com as estruturas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no Brasil. Em nome da liberalização<br />

agrícola o Brasil s<strong>em</strong>pre concordou <strong>em</strong> fazer concessões nas<br />

outras áreas <strong>de</strong> negociação, a ex<strong>em</strong>plo das concessões <strong>em</strong> proprieda<strong>de</strong><br />

intelectual (TRIPS) na Rodada Uruguai para conseguir<br />

um pífio acordo agrícola, e (na Rodada <strong>de</strong> Doha) acenou<br />

com concessões <strong>em</strong> NAMA e <strong>em</strong> serviços” (Rebrip, 2006).<br />

Outro fator importante a ser assinalado sobre a formação da posição<br />

negociadora do Brasil na OMC durante o governo Lula é a abertura à<br />

participação <strong>de</strong> organizações, <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> movimentos sociais nas instâncias<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>bate acerca da formação das posições negociadoras, o que<br />

permite até mesmo o ingresso <strong>de</strong>sses atores nas <strong>de</strong>legações oficiais <strong>de</strong><br />

governo durante reuniões ministeriais. De fato, o governo Lula avançou<br />

como nunca <strong>em</strong> relação à transparência e à inclusão <strong>de</strong>sses atores no<br />

essas <strong>de</strong>cisões substantivas para uma posterior reunião; 2) um segundo piso, <strong>em</strong><br />

que os países po<strong>de</strong>riam assumir níveis distintos <strong>de</strong> compromissos adicionais no<br />

âmbito da ALCA, por meio <strong>de</strong> acordos bilaterais e/ou plurilaterais. Po<strong>de</strong>-se afirmar<br />

que <strong>em</strong> Miami, pela primeira vez, os Estados Unidos abriram mão – pelo<br />

menos t<strong>em</strong>porariamente – <strong>de</strong> sua proposta <strong>de</strong> ALCA abrangente, ou seja, <strong>em</strong> que<br />

todos os 34 países <strong>de</strong>veriam estabelecer compromissos plenos <strong>em</strong> todas as áreas<br />

<strong>em</strong> negociação. Isso foi consi<strong>de</strong>rado uma <strong>de</strong>rrota t<strong>em</strong>porária da política externa e<br />

<strong>de</strong> comércio do governo George W. Bush, mas que <strong>em</strong> seguida foi compensada<br />

pelo avanço <strong>de</strong> acordos bilaterais <strong>de</strong> livre comércio (algo como mini-ALCAs) com<br />

Colômbia, Peru, países da América Central e República Dominicana, além <strong>de</strong><br />

um acordo para a liberalização <strong>de</strong> investimentos com o Uruguai, <strong>em</strong> uma clara<br />

tentativa <strong>de</strong> isolar e fragmentar o Mercosul.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

<strong>de</strong>bate interno <strong>de</strong> formação da posição brasileira. O fato <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> sido<br />

incluídos no jogo não significa, no entanto, <strong>de</strong> forma alguma, que o<br />

governo tenha adotado as posições <strong>de</strong>sses setores sociais. Embora haja<br />

canais <strong>de</strong> diálogo, as divergências <strong>de</strong>stes <strong>em</strong> relação à posição do governo<br />

na OMC e <strong>em</strong> outras negociações comerciais são conhecidas e<br />

explicitadas <strong>de</strong> forma permanente.<br />

Ainda há que se mencionar que, diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> outros governos, no<br />

governo Lula sentam-se à mesa <strong>de</strong> negociações também ministérios (como<br />

o do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e outros) mais sensíveis<br />

às reivindicações dos movimentos sociais. A combinação <strong>de</strong> pressões a partir<br />

da socieda<strong>de</strong> civil e <strong>de</strong>sses ministérios t<strong>em</strong> garantido alguns (pequenos)<br />

avanços nas posições negociadoras do país, por ex<strong>em</strong>plo na <strong>de</strong>fesa da agricultura<br />

familiar e camponesa diante das ameaças do “livre comércio” – como<br />

é o caso <strong>de</strong> algumas sinalizações <strong>de</strong> apoio do governo brasileiro ao t<strong>em</strong>a das<br />

salvaguardas para produtos especiais e medidas <strong>de</strong> trato especial e diferenciado<br />

para os produtos da agricultura familiar.<br />

Apesar <strong>de</strong>ssas novida<strong>de</strong>s, o governo Lula <strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> à política comercial<br />

dos governos anteriores <strong>em</strong> um aspecto fundamental, que é a<br />

centralida<strong>de</strong> do objetivo <strong>de</strong> liberalização do comércio agrícola. Lula buscou<br />

a liberalização através <strong>de</strong> uma nova política <strong>de</strong> alianças na OMC, <strong>em</strong> que a<br />

importância do Grupo <strong>de</strong> Cairns na estratégia brasileira <strong>de</strong>u lugar a uma<br />

254<br />

DIVERGÊNCIAS NA OMC<br />

As divergências <strong>em</strong> curso na Rodada <strong>de</strong> Doha são amplas e traduz<strong>em</strong> diferenças<br />

políticas <strong>em</strong> relação às concepções sobre o peso e a autonomia que <strong>de</strong>ve<br />

ter a política internacional diante das políticas domésticas. Ou seja, diverg<strong>em</strong><br />

sobre o grau <strong>de</strong> autonomia que a esfera da política nacional <strong>de</strong>ve, ou po<strong>de</strong>, ter<br />

<strong>em</strong> relação à economia e ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório das instituições internacionais que,<br />

no caso da OMC, espelham os interesses <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas globais. As divergências<br />

nas negociações da OMC envolv<strong>em</strong> muitos probl<strong>em</strong>as, e talvez um dos mais<br />

difíceis <strong>de</strong> ser equacionado diga respeito às negociações sobre acesso a mercados<br />

<strong>em</strong> que, <strong>de</strong> um lado, os chamados países <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento priorizam a<br />

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Fátima V. Mello<br />

nova aliança com as maiores economias do mundo <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

resultando na criação do G20, no qual se <strong>de</strong>stacavam Brasil, África do Sul,<br />

Índia e China (Rebrip, 2006). A aposta brasileira na formação do G20<br />

buscou aten<strong>de</strong>r, portanto, a dois objetivos da política externa: um, mais<br />

ligado aos interesses econômicos do setor agroexportador, <strong>de</strong> ampliar os<br />

mercados para os produtos do agronegócio e das gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas a ele<br />

vinculadas; e outro, <strong>de</strong> natureza política, <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rar uma coalizão <strong>de</strong> países<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> forma a buscar uma alteração na correlação <strong>de</strong> forças<br />

no sist<strong>em</strong>a internacional, que primeiro passasse pela <strong>de</strong>mocratização das<br />

negociações na OMC, para <strong>de</strong>pois ir produzindo efeitos <strong>em</strong> outras instâncias<br />

do sist<strong>em</strong>a internacional.<br />

Na prática, a iniciativa <strong>de</strong> criação do G20 e toda a movimentação cujo<br />

ápice se produziu na reunião ministerial <strong>de</strong> Cancún teve um resultado político<br />

da mais alta relevância: produziu uma quebra do ambiente existente<br />

até 2002 no sist<strong>em</strong>a multilateral <strong>de</strong> comércio, alterando assim a balança <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r e o processo <strong>de</strong>cisório na OMC. Este é um fato muito relevante se<br />

levamos <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração que até então o núcleo formado pelos países do<br />

Norte mantinha um padrão extr<strong>em</strong>amente fechado <strong>em</strong> relação ao processo<br />

<strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões, caracterizado pelos chamados Green Rooms, quando<br />

os países <strong>de</strong>senvolvidos, <strong>em</strong> momentos-chave, se fechavam para <strong>de</strong>cidir<br />

os rumos das negociações e os <strong>de</strong>mais países ficavam do lado <strong>de</strong> fora aguar-<br />

ampliação <strong>de</strong> suas exportações agrícolas para os mercados do Norte e, <strong>de</strong> outro,<br />

os chamados países <strong>de</strong>senvolvidos concentram-se no interesse <strong>de</strong> expansão dos<br />

negócios <strong>de</strong> suas <strong>em</strong>presas na área <strong>de</strong> serviços (financeiros, telecomunicações,<br />

<strong>de</strong> água, energia, audiovisual etc.), <strong>de</strong> seus bens industrializados e <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong><br />

intelectual. Des<strong>de</strong> a VI Reunião Ministerial da OMC, realizada <strong>em</strong> Hong<br />

Kong <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2005, o foco da disputa e das inúmeras tentativas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sbloqueio das negociações está situado nas barganhas cruzadas entre agricultura,<br />

serviços, proprieda<strong>de</strong> intelectual e NAMA (Non-Agricultural Market<br />

Access); trata-se do acordo para a redução <strong>de</strong> tarifas <strong>de</strong> importação <strong>de</strong> produtos<br />

industrializados e da liberalização do comércio <strong>de</strong> produtos florestais como<br />

ma<strong>de</strong>ira e pesca, entre outros.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 255<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

dando as <strong>de</strong>cisões. O resultado do “<strong>em</strong>pate” inaugurado <strong>em</strong> Cancún é que<br />

hoje há diversas coalizões <strong>de</strong> países (além do G20, o G90, o G33, entre<br />

outras cuja formação se dá <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> interesses mais imediatos e<br />

conjunturais) que se reún<strong>em</strong> <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> agendas comuns.<br />

O investimento no G20 passou a ser objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate interno no Brasil:<br />

256<br />

“o agronegócio inicialmente se opôs à nova estratégia do<br />

governo brasileiro. Para alguns lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong>ste setor a<br />

relativização da centralida<strong>de</strong> do acesso a mercados era uma<br />

inaceitável concessão 2 . O governo, contudo, conseguiu rapidamente<br />

convencer o agronegócio <strong>de</strong> que o G20 era na realida<strong>de</strong><br />

a maneira mais eficaz <strong>de</strong> conseguir uma liberalização<br />

agrícola nas áreas possíveis (subsídios). Já as organizações da<br />

socieda<strong>de</strong> civil consi<strong>de</strong>raram o surgimento do G20 como<br />

uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, por um lado, alterar a correlação <strong>de</strong><br />

forças na OMC com uma nova configuração mais favorável<br />

aos países <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e, por outro lado, como uma<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> bloquear as negociações. Nosso apoio ao<br />

G20 se <strong>de</strong>u pela percepção <strong>de</strong> que através <strong>de</strong>le seria possível<br />

sinalizar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nova ‘geografia política’, porém<br />

ainda insuficiente para os movimentos sociais, já que a<br />

coalizão se propunha a disputar o jogo <strong>de</strong>ntro dos parâmetros<br />

do livre comércio, e nunca enunciou o interesse <strong>em</strong> lançar<br />

as bases <strong>de</strong> novos paradigmas. As organizações da socieda<strong>de</strong><br />

civil brasileira avaliaram e compreen<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início os<br />

limites e oportunida<strong>de</strong>s do G20. Na disputa doméstica, algumas<br />

organizações e movimentos sociais reforçaram a<br />

mudança na configuração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, apostando, diferent<strong>em</strong>ente<br />

do governo, no fracasso da Rodada. Outras também<br />

utilizaram a criação do G20 para aprofundar a disputa doméstica<br />

com o agronegócio, como foi o caso <strong>de</strong> setores da<br />

2 A criação do G20 viabilizou-se <strong>em</strong> ampla medida pela aliança entre Brasil e Índia, e por isso a agenda<br />

da coalizão inclui tanto o pilar <strong>de</strong> interesse do Brasil – eliminação <strong>de</strong> subsídios e <strong>de</strong> apoio<br />

doméstico – quanto o <strong>de</strong> interesse da Índia – políticas <strong>de</strong> apoio ao <strong>de</strong>senvolvimento rural.<br />

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Fátima V. Mello<br />

agricultura familiar que viram na ascensão da discussão do<br />

trato especial e diferenciado no G20 uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

lutar contra o agronegócio, e para que o governo brasileiro<br />

adotasse uma posição inédita <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> produtos especiais<br />

e mecanismos <strong>de</strong> salvaguardas especiais. Em ambos os<br />

casos, entretanto, estas organizações e movimentos brasileiros<br />

s<strong>em</strong>pre tiveram consciência <strong>de</strong> que se tratava <strong>de</strong> um<br />

grupo pragmático e pró-acordo” (Rebrip, 2006).<br />

De sua parte, o governo Lula vê <strong>em</strong> seu papel no G20 uma forma <strong>de</strong> se<br />

legitimar como ator político relevante no sist<strong>em</strong>a global, sendo esta coalizão<br />

uma ferramenta central <strong>de</strong> fomento das relações Sul–Sul a partir <strong>de</strong> interesses<br />

econômicos comuns. Essa busca <strong>de</strong> legitimação explica, inclusive, a insistência<br />

do Brasil <strong>em</strong> querer <strong>de</strong>stravar a Rodada <strong>de</strong> Doha a qualquer custo, quando<br />

todos os sinais apontam para obstáculos praticamente intransponíveis.<br />

2.2 O ESVAZIAMENTO DAS NEGOCIAÇÕES DA ALCA<br />

Lula inseriu sua política <strong>de</strong> comércio <strong>em</strong> uma visão geopolítica <strong>de</strong> mudança<br />

<strong>de</strong> eixo da política externa brasileira para o Sul, ao contrário do governo<br />

anterior <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso, que centralizava sua estratégia externa<br />

na ALCA e nas relações com os Estados Unidos e a União Européia.<br />

Neste sentido, o esvaziamento das negociações da ALCA talvez seja o símbolo<br />

mais importante das rupturas realizadas pela política externa do governo Lula.<br />

Somado a uma percepção <strong>de</strong> que um alinhamento tão subordinado aos Estados<br />

Unidos não correspon<strong>de</strong>ria a uma trajetória <strong>de</strong> longa data da política<br />

externa brasileira caracterizada por manter um pluralismo pragmático nas<br />

relações internacionais, a <strong>de</strong>cisão pelo investimento no esvaziamento das negociações<br />

ocorreu também porque passou a haver, no setor exportador ligado<br />

ao agronegócio, a forte convicção <strong>de</strong> que não haveria obtenção <strong>de</strong> ganhos <strong>de</strong><br />

acesso ao mercado agrícola dos Estados Unidos por meio da ALCA.<br />

A estratégia <strong>de</strong> esvaziamento também respon<strong>de</strong>u aos fortes anseios vindos<br />

da opinião pública brasileira, que foi convocada pelos movimentos sociais<br />

através da Campanha Brasileira Contra a ALCA a resistir ao avanço das<br />

negociações (Mello, 2007). Jamais um acordo comercial atingiu um grau<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>bate público tão amplo como foi o caso da ALCA. Uma ampla campa-<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

nha nacional contra a ALCA formou-se, reunindo igrejas, pastorais, sindicatos,<br />

partidos políticos, ONGs, movimentos <strong>de</strong> mulheres, <strong>de</strong> estudantes,<br />

camponeses, urbanos, <strong>de</strong> professores, <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa da saú<strong>de</strong> pública. Essa campanha<br />

realizou um s<strong>em</strong>-número <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> informação e capacitação<br />

junto a grupos <strong>de</strong> base sobre os potenciais impactos que o ingresso do Brasil<br />

na ALCA po<strong>de</strong>ria produzir no cotidiano da população, restringindo o acesso<br />

a serviços essenciais, anulando direitos conquistados, ampliando as<br />

privatizações e o controle <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas estrangeiras sobre setores-chave <strong>de</strong><br />

nossa economia, voltando a agricultura ainda mais para o mercado externo,<br />

limitando a capacida<strong>de</strong> do governo <strong>de</strong> formular políticas públicas soberanas<br />

e atrelando o país aos interesses dos Estados Unidos.<br />

Foi realizado um intenso processo <strong>de</strong> mobilização – incluindo passeatas,<br />

marchas e outras ações <strong>de</strong> massas – que culminou na realização, no ano <strong>de</strong><br />

2002, <strong>de</strong> um plebiscito <strong>em</strong> que a pergunta era se o Brasil <strong>de</strong>veria integrar a<br />

ALCA, tendo-se alcançado um total <strong>de</strong> 10 milhões <strong>de</strong> votos contrários. Esse<br />

amplo esforço dos movimentos sociais brasileiros <strong>de</strong> politização do <strong>de</strong>bate<br />

sobre a ALCA se somou a um esforço similar <strong>em</strong> diversos países das Américas,<br />

consolidando uma Aliança Social Continental, uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s com<br />

abrangência do Canadá ao Uruguai, unida <strong>em</strong> torno do objetivo comum <strong>de</strong><br />

lutar contra a ALCA a partir do fortalecimento e da ampliação das resistências<br />

no interior <strong>de</strong> cada país.<br />

Esse processo <strong>de</strong> mobilização da opinião pública punha ênfase nos impactos<br />

que um acordo como a ALCA produziria nas políticas e nos direitos no interior<br />

do país, expondo claramente os nexos entre as opções externas e as políticas<br />

domésticas. O argumento utilizado era <strong>de</strong> que, ao contrário do que afirmavam<br />

representantes dos governos do continente americano sobre a limitação das<br />

negociações da ALCA à criação <strong>de</strong> uma área <strong>de</strong> livre comércio, o que estava <strong>em</strong><br />

jogo na verda<strong>de</strong> era a manutenção, ou não, e com que abrangência, da prerrogativa<br />

regulatória e do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório dos Estados nacionais. As regras <strong>em</strong> negociação<br />

protegeriam os investidores privados <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento das conquistas <strong>de</strong><br />

movimentos sociais por todo o continente americano, que haviam conseguido<br />

assegurar, <strong>em</strong>bora freqüent<strong>em</strong>ente s<strong>em</strong> a <strong>de</strong>vida impl<strong>em</strong>entação, alguns direitos,<br />

normas e regulações no âmbito das legislações nacionais.<br />

As re<strong>de</strong>s que formam a Aliança Social Continental e a Campanha Brasileira<br />

contra a ALCA ressaltavam também a natureza anti<strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong><br />

258<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 258<br />

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Fátima V. Mello<br />

acordos como a ALCA, que obe<strong>de</strong>c<strong>em</strong> a um padrão <strong>de</strong> negociação e aprovação<br />

<strong>em</strong> que as socieda<strong>de</strong>s não são consultadas e <strong>em</strong> que não há transparência.<br />

No caso da ALCA, a divulgação dos rascunhos dos textos dos grupos <strong>de</strong><br />

negociação – que foi o resultado <strong>de</strong> incansáveis pressões <strong>de</strong> organizações<br />

sociais e sindicais <strong>de</strong> todo o continente – não foi suficiente para alterar o<br />

caráter fechado que caracterizou o processo negociador. As negociações eram<br />

levadas a cabo por setores dos po<strong>de</strong>res executivos, <strong>em</strong> consultas com setores<br />

<strong>em</strong>presariais, restando aos Parlamentos o papel <strong>de</strong> meros ratificadores ao<br />

final do ciclo negociador (Mello, 2002). A permeabilida<strong>de</strong> entre o interno<br />

e o externo, portanto, é diretamente condicionada pela questão <strong>de</strong>mocrática.<br />

O jogo <strong>de</strong> pressões entre interesses múltiplos e freqüent<strong>em</strong>ente antagônicos<br />

só po<strong>de</strong> ocorrer <strong>em</strong> um ambiente <strong>em</strong> que haja a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

disputar na esfera pública os rumos da formação das posições negociadoras.<br />

3. POR UMA EFETIVA DEMOCRATIZAÇÃO DOS<br />

PROCESSOS DECISÓRIOS EM POLÍTICA COMERCIAL<br />

Além dos riscos econômicos, acordos visando a liberalização comercial, como<br />

é o caso da ALCA, das regras negociadas na OMC e <strong>de</strong> outros acordos como o<br />

Mercosul–União Européia, também ten<strong>de</strong>m a colocar <strong>em</strong> risco a consolidação<br />

da <strong>de</strong>mocracia <strong>em</strong> um país como o Brasil. A dinâmica negociadora <strong>de</strong>sses acordos<br />

permite que a diplomacia atue <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> um suposto interesse nacional,<br />

como se este fosse único e a socieda<strong>de</strong> não fosse permeada <strong>de</strong> conflitos <strong>de</strong> interesses.<br />

Ainda que o governo Lula tenha criado mecanismos <strong>de</strong> acesso a informações<br />

e <strong>de</strong> ampliação da transparência, as negociações <strong>de</strong>sses acordos segu<strong>em</strong><br />

com um padrão bastante fechado, concentrado no po<strong>de</strong>r Executivo, contando<br />

com o Parlamento apenas marginalmente para ratificar o processo ao seu final,<br />

e com instâncias <strong>de</strong> consulta à socieda<strong>de</strong> que se limitam a informar <strong>de</strong> forma<br />

superficial sobre as negociações <strong>em</strong> curso, s<strong>em</strong> recolher propostas a ser <strong>de</strong> fato<br />

processadas e incorporadas à formação da posição negociadora. Experiências <strong>de</strong><br />

instâncias como a Senalca e Seneuropa 3 têm precisamente esta limitação na<br />

3 Trata-se <strong>de</strong> instâncias – criadas no âmbito do Ministério das Relações Exteriores – <strong>de</strong> informação<br />

e consulta sobre as negociações da ALCA e do acordo União Européia–Mercosul, reunindo setores<br />

<strong>em</strong>presariais, representantes <strong>de</strong> ministérios, parlamentares e alguns sindicatos e ONGs.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 259<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

orig<strong>em</strong> <strong>de</strong> sua criação. A formação das posições negociadoras ainda reflete <strong>de</strong><br />

forma preocupante o jogo <strong>de</strong> pressões exercido <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> gabinetes e <strong>em</strong> reuniões<br />

e conversas informais, por parte <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> <strong>em</strong>presários e lobistas<br />

que integram o fechado clube que se sente dono do po<strong>de</strong>r no país.<br />

Um passo importante, portanto, para que se possa formular políticas<br />

comerciais e <strong>de</strong> integração alternativas e <strong>de</strong>mocráticas é o estabelecimento<br />

<strong>de</strong> uma relação direta e institucionalizada entre as políticas interna e externa.<br />

Uma política comercial <strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong>ve ser necessariamente permeável<br />

à socieda<strong>de</strong>, dialogando com a correlação <strong>de</strong> forças e os conflitos domésticos,<br />

e colocando limites à autonomia estatal nas negociações.<br />

260<br />

“Mecanismos <strong>de</strong> controle político externos à agência diplomática<br />

são imprescindíveis para a conciliação, <strong>em</strong> contextos<br />

<strong>de</strong>mocráticos, dos recursos <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> representação<br />

necessários à credibilida<strong>de</strong> da política externa<br />

junto aos interlocutores e parceiros externos” (Lima, 2000).<br />

Em décadas anteriores a política externa brasileira se<br />

“ancorava ora no i<strong>de</strong>ário do nacional-<strong>de</strong>senvolvimentismo,<br />

do mo<strong>de</strong>lo substitutivo <strong>de</strong> importações, ora nas doutrinas<br />

dos regimes militares, como a diplomacia do interesse nacional,<br />

o pragmatismo responsável <strong>de</strong> Geisel ou o chamado<br />

universalismo <strong>de</strong> Figueiredo. Em um contexto <strong>de</strong> total distinção<br />

entre política interna e externa, o Brasil reprimia as<br />

<strong>de</strong>mandas por <strong>de</strong>mocracia e justiça <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas fronteiras,<br />

enquanto pregava no plano internacional uma <strong>de</strong>mocratização<br />

das relações Norte–Sul, o direito ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

do Terceiro Mundo e a tentativa <strong>de</strong> diversificar as<br />

relações comerciais <strong>de</strong> forma a não ficar na <strong>de</strong>pendência<br />

exclusiva dos Estados Unidos” (Mello, 2000-2001).<br />

Já nos anos 1990, ocorre a falência da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formulação <strong>de</strong> projetos<br />

nacionais <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência do chamado Consenso <strong>de</strong> Washington e <strong>de</strong><br />

seu receituário <strong>de</strong> abertura comercial e financeira indiscriminada.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 260<br />

5/6/2007, 12:41


Fátima V. Mello<br />

Nos dias <strong>de</strong> hoje, a América do Sul vive um ambiente <strong>de</strong> quebra <strong>de</strong><br />

heg<strong>em</strong>onia do pensamento único, que t<strong>em</strong> se traduzido na eleição <strong>de</strong> governos<br />

mais sensíveis às aspirações populares. Tendo acumulado vitórias resultantes<br />

<strong>de</strong> anos <strong>de</strong> lutas e mobilizações populares, a região está pouco a<br />

pouco conquistando a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar seu projeto <strong>de</strong> futuro, combinando<br />

<strong>de</strong>mocracia com projetos soberanos e integrados. A região vive um<br />

momento histórico novo, e o Brasil t<strong>em</strong> um importante peso específico na<br />

conformação <strong>de</strong>ssa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> futuro. Na atualida<strong>de</strong>, a política externa<br />

brasileira para a América do Sul e para as <strong>de</strong>mais regiões não precisa mais<br />

ser refém, <strong>de</strong> um lado, <strong>de</strong> projetos do tipo Brasil Potência n<strong>em</strong>, por outro<br />

lado, se ren<strong>de</strong>r aos esqu<strong>em</strong>as <strong>de</strong> acordos <strong>de</strong> livre comércio. Um caminho<br />

novo para a política externa passa, necessariamente, pela combinação entre<br />

<strong>de</strong>mocratização substantiva no plano doméstico, um projeto nacional <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento sustentável e um Estado mediador entre o interno e o<br />

externo que mantenha sua capacida<strong>de</strong> mas <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser autônomo <strong>em</strong> relação<br />

aos conflitos <strong>de</strong> interesses existentes na socieda<strong>de</strong>.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 261<br />

5/6/2007, 12:41<br />

261


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262<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 262<br />

5/6/2007, 12:41


Ana Maria Stuart<br />

Integração regional e construção<br />

da <strong>de</strong>mocracia na América do Sul<br />

Ana Maria Stuart 1<br />

O objetivo do presente trabalho é relacionar a questão da integração regional<br />

com a construção da <strong>de</strong>mocracia na América do Sul, com base na experiência<br />

européia <strong>de</strong> combate às assimetrias regionais. Por que fazer essa relação?<br />

Por um lado, por enten<strong>de</strong>r que o processo <strong>de</strong> integração europeu enfrentou<br />

o <strong>de</strong>safio da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre seus países e regiões com propostas<br />

audaciosas que, ao longo <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> políticas públicas,<br />

mostraram resultados positivos. A mobilização <strong>de</strong> sujeitos políticos locais,<br />

regionais e nacionais, <strong>em</strong> interação com as instituições da União, para aplicar<br />

os Fundos Estruturais e <strong>de</strong> Coesão permitiu a geração <strong>de</strong> interesses e<br />

valores comuns, contribuindo para <strong>de</strong>mocratizar o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões na<br />

esfera do regionalismo.<br />

Por outro, pela convicção <strong>de</strong> que o processo <strong>de</strong> integração da América do<br />

Sul enfrenta <strong>de</strong>safios similares, centrados no probl<strong>em</strong>a da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> seus países e regiões <strong>em</strong> escala muito maior por razões<br />

históricas, agravados pela generalizada situação <strong>de</strong> <strong>em</strong>pobrecimento dos países<br />

sul-americanos nas últimas décadas.<br />

Isso posto, trata-se <strong>de</strong> refletir sobre a relação entre regionalismo e<br />

<strong>de</strong>mocracia à luz do processo <strong>de</strong> integração mais b<strong>em</strong>-sucedido – o<br />

Mercosul (Mercado Comum do Sul) – que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003, entrou <strong>em</strong> fase<br />

<strong>de</strong> consolidação <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> integração alternativo àquele<br />

construído nos anos 1990, quando ficara submetido à lógica caprichosa<br />

das crises econômico-financeiras que abalaram os países-m<strong>em</strong>bros. As<br />

1 Professora <strong>de</strong> Relações Internacionais da Unesp-Franca, m<strong>em</strong>bro titular do Gacint/USP (Grupo <strong>de</strong><br />

Análise da Conjuntura <strong>Internacional</strong>), pesquisadora do Ce<strong>de</strong>c (Centro <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> Cultura Cont<strong>em</strong>porânea)<br />

e coor<strong>de</strong>nadora da Assessoria <strong>Internacional</strong> do Partido dos Trabalhadores.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 263<br />

5/6/2007, 12:41<br />

263


<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

soluções encontradas para os diversos impasses surgidos ao longo do<br />

processo <strong>de</strong> integração europeu po<strong>de</strong>m servir como inspiração para a<br />

resolução <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> natureza similar no Mercosul. Assim, este<br />

trabalho visa <strong>de</strong>stacar o t<strong>em</strong>a da integração regional na busca <strong>de</strong> coesão<br />

econômico-social como condição para a <strong>de</strong>mocratização do processo <strong>de</strong><br />

integração. Visa também contribuir para o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

integração regional da América do Sul com políticas públicas e instituições<br />

a serviço da resolução das gran<strong>de</strong>s pendências históricas no plano<br />

do <strong>de</strong>senvolvimento e da <strong>de</strong>mocracia.<br />

O objetivo é assentar bases para um programa <strong>de</strong> pesquisa que facilite o<br />

<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> um projeto alternativo <strong>de</strong> integração sul-americana, com base<br />

no Mercosul, aprofundado institucionalmente e alargado pela via da aproximação<br />

com os países da Comunida<strong>de</strong> Andina <strong>de</strong> Nações.<br />

Em primeiro lugar, é necessário precisar os objetivos do Mercosul <strong>em</strong><br />

termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>mocracia, recuperando, assim, o elo perdido<br />

ao longo <strong>de</strong> décadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarticulação <strong>de</strong> projetos nacionais; <strong>em</strong><br />

segundo, <strong>de</strong>bruçar-se sobre uma agenda consistente. Nesse sentido, os<br />

Objetivos 2004-2006, apresentados pelo governo brasileiro na Cúpula<br />

<strong>de</strong> Assunção (junho <strong>de</strong> 2003), constituíram um guia para a<br />

impl<strong>em</strong>entação das mudanças necessárias para a transformação do processo<br />

<strong>de</strong> integração. A mudança cont<strong>em</strong>pla a tendência à autonomia<br />

como condição <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia, incorporando o direito à igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

oportunida<strong>de</strong> e à diversida<strong>de</strong> cultural. A coesão econômico-social, como<br />

objetivo da luta contra as assimetrias, é consi<strong>de</strong>rada condição para a<br />

construção do regionalismo <strong>de</strong>mocrático.<br />

1. MUDANÇAS NA PERSPECTIVA DO REGIONALISMO E DA DEMOCRACIA<br />

O primeiro projeto <strong>de</strong> integração latino-americana surgiu<br />

concomitant<strong>em</strong>ente ao europeu, nos anos posteriores à Segunda Guerra<br />

Mundial, fundado pela Comissão Econômica para a América Latina e o<br />

Caribe (CEPAL), <strong>em</strong> torno do objetivo do <strong>de</strong>senvolvimento industrial. Não<br />

se trata aqui <strong>de</strong> fazer o relato <strong>de</strong>sse projeto n<strong>em</strong> <strong>de</strong> aprofundar as causas<br />

<strong>de</strong>terminantes dos fracassos das experiências vinculadas a esse período. Apenas<br />

quer<strong>em</strong>os registrar a convicção <strong>de</strong> que a interrupção <strong>de</strong>sse processo teve<br />

264<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 264<br />

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Ana Maria Stuart<br />

relação com as carências <strong>de</strong>mocráticas nas socieda<strong>de</strong>s e com a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong><br />

regimes ditatoriais 2 .<br />

Pensar o probl<strong>em</strong>a <strong>em</strong> termos sul-americanos t<strong>em</strong> como fundamento a interpretação<br />

das mudanças ocorridas nas décadas <strong>de</strong> 1980 e 1990 e a i<strong>de</strong>ntificação<br />

<strong>de</strong> entraves <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> processos específicos pelos quais passaram <strong>de</strong>terminados<br />

países e que abalaram significativamente o arcabouço integracionista<br />

latino-americano. Em especial, é importante mencionar a <strong>de</strong>cisão do México <strong>de</strong><br />

iniciar um processo <strong>de</strong> abertura econômica pautado pela relação especial com<br />

os Estados Unidos. Como conseqüência da crise da dívida externa do início da<br />

década <strong>de</strong> 1980, esse país <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>u uma mudança <strong>de</strong> rumo da política<br />

externa, iniciada por Miguel <strong>de</strong> la Madrid e consolidada por Carlos Salinas <strong>de</strong><br />

Gortari, com a assinatura do NAFTA (North American Free Tra<strong>de</strong> Agre<strong>em</strong>ent<br />

– Tratado <strong>de</strong> Livre Comércio da América do Norte) <strong>em</strong> 1991. Essa opção<br />

mexicana teve impacto profundo nas relações interamericanas, que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />

processos <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência do po<strong>de</strong>r colonial, tinham se <strong>de</strong>senvolvido pelo prisma<br />

da dualida<strong>de</strong> América anglo-saxã/América Latina. Enten<strong>de</strong>r a importância<br />

<strong>de</strong>ssa mudança no contexto das relações latino-americanas e h<strong>em</strong>isféricas obriga a<br />

repensar o regionalismo no continente sobre bases distintas. Houve vários trabalhos<br />

que caracterizaram as etapas do regionalismo e colocaram a década <strong>de</strong> 1980<br />

como divisor <strong>de</strong> águas entre o “regionalismo romântico” e o “regionalismo pragmático”,<br />

inaugurado <strong>em</strong> meados dos anos 1980 com o início dos novos processos<br />

<strong>de</strong> integração no continente. Não é objetivo do presente trabalho tratar das mudanças<br />

ocorridas no projeto do regionalismo nas Américas, t<strong>em</strong>a muito abordado<br />

ao longo das décadas <strong>de</strong> 1980 e 1990 e sobre o qual existe uma excelente literatura<br />

que apresenta as diversas reflexões sobre o t<strong>em</strong>a 3 . Mas é importante registrar<br />

esse dado da mudança nas relações continentais <strong>de</strong>pois da entrada do México na<br />

“geografia política” da América do Norte 4 . Houve, a partir da década <strong>de</strong> 1990,<br />

2 Raúl Prebisch, na etapa final da sua vida, faz uma reflexão centrada na questão <strong>de</strong>mocrática,<br />

dimensão que teria sido subestimada pela geração “cepalina”: “Yo he llegado a la conclusión <strong>de</strong> que<br />

el proceso <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratización es incompatible en la América Latina com el régimen vigente <strong>de</strong><br />

acumulación <strong>de</strong> capital y distribución <strong>de</strong>l ingreso. Deb<strong>em</strong>os buscar nuevas fórmulas <strong>de</strong> transformación<br />

profunda <strong>de</strong> la sociedad en nuestro continente”. Citado por Esthela Gutiérrez Garza (1994).<br />

3 Esses <strong>de</strong>bates originaram importantes obras editadas pelo Grupo Editor Latinoamericano (GEL),<br />

no marco do Programa <strong>de</strong> Estudios Conjuntos sobre las Relaciones <strong>Internacional</strong>es <strong>de</strong> América<br />

Latina (RIAL) e dos Programas <strong>de</strong> FLACSO (Faculda<strong>de</strong> Latino-americana <strong>de</strong> Ciências Sociais).<br />

4 Para <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong>sse processo, consultar Rojas et alii (1991).<br />

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uma re<strong>de</strong>finição dos blocos unindo o regionalismo à geografia, e <strong>em</strong> especial às<br />

diferentes posições sobre a nova proposta h<strong>em</strong>isférica lançada pelos Estados Unidos:<br />

a ALCA (Área <strong>de</strong> Livre Comércio das Américas).<br />

Foi lugar-comum caracterizar a década <strong>de</strong> 1980 como a década perdida<br />

para a América Latina, do ponto <strong>de</strong> vista do <strong>de</strong>senvolvimento econômico.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista político, porém, foi a década da recuperação do regime<br />

<strong>de</strong>mocrático para a maioria dos países da região. Em particular, foi a década<br />

da aproximação do Brasil e da Argentina, que <strong>em</strong> 1985 assinaram a Ata <strong>de</strong><br />

Iguaçu, inaugurando um novo processo <strong>de</strong> integração, formalizado no Tratado<br />

<strong>de</strong> Assunção, <strong>de</strong> 1991. Já a década <strong>de</strong> 1990, sob a égi<strong>de</strong> dos governos<br />

neoliberais, terminou com um saldo <strong>de</strong> perdas econômicas – aumento da<br />

pobreza da população e da vulnerabilida<strong>de</strong> econômica dos países – e políticas<br />

– instabilida<strong>de</strong> social crescente e perda <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> nas instituições<br />

<strong>de</strong>mocráticas. Essas mudanças, vinculadas aos padrões político-econômicos<br />

consolidados após a queda do Muro <strong>de</strong> Berlim, tiveram amplo impacto nos<br />

Estados e nas socieda<strong>de</strong>s da América do Sul (Lozano, 2000). Os benefícios<br />

do tan<strong>de</strong>m mercado/<strong>de</strong>mocracia, prometidos pelos i<strong>de</strong>ólogos do mo<strong>de</strong>lo<br />

neoliberal não se verificaram na prática; pelo contrário, a América Latina<br />

apresentou os níveis mais altos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social no mundo 5 .<br />

É verda<strong>de</strong> que a questão da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> é fenômeno antigo nessa parte<br />

do continente. Cantegriles, villas miserias e favelas acompanharam o processo<br />

<strong>de</strong> urbanização e industrialização, e uma ampla literatura refletiu o <strong>de</strong>bate<br />

entre funcionalistas e marxistas <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> uma explicação para esse<br />

fenômeno. No entanto, essa rica produção teórica muitas vezes subvalorizou<br />

o papel da política 6 . Nos últimos anos, as teorias sociais sustentadas na<br />

pr<strong>em</strong>issa da priorida<strong>de</strong> do espaço global sobre o espaço regional contribuíram<br />

para reforçar a idéia <strong>de</strong> pertença a um sist<strong>em</strong>a e a uma or<strong>de</strong>m como<br />

única via possível <strong>de</strong> inserção internacional 7 .<br />

5 Para uma análise b<strong>em</strong> documentada sobre o t<strong>em</strong>a, ver Dupas (1999).<br />

6 Madueño (2000), <strong>em</strong> seu instigante artigo “La construccíon <strong>de</strong> la cultura a través <strong>de</strong> los actores”,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a superação do legado cultural das ciências sociais latino-americanas: “Ten<strong>em</strong>os un arsenal<br />

teórico constreñido por las gran<strong>de</strong>s teorias evolucionistas, orgánicas o mecanicistas, incluyendo las<br />

propuestas <strong>de</strong> marxismo autóctono y <strong>de</strong>l estructural-funcionalismo predominante”.<br />

7 A história teria chegado ao fim sob o pressuposto do acesso ao “espírito universal” no sentido<br />

hegeliano. Ver Fukuyama (1992).<br />

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Na perspectiva do presente trabalho, a questão da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, social e<br />

territorial, merece ser revisitada <strong>em</strong> relação à questão da <strong>de</strong>mocracia e do<br />

regionalismo. O regresso da teoria política como teoria social permite vislumbrar<br />

os processos e as mudanças que vêm ocorrendo no plano das socieda<strong>de</strong>s<br />

e dos Estados. A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> histórica dos <strong>de</strong>senvolvimentos sociais humanos<br />

mostrou que o mundo conquistado pelos europeus se compunha <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s<br />

e <strong>de</strong> nações muito diversas. A incorporação <strong>de</strong>las à dinâmica do sist<strong>em</strong>a<br />

colonial não significou a perda <strong>de</strong> suas características autóctones, e os processos,<br />

longe <strong>de</strong> homogeneizar as socieda<strong>de</strong>s e ten<strong>de</strong>r à igualda<strong>de</strong> política e social,<br />

mantiveram e/ou aprofundaram as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.<br />

Esse contexto marcou o <strong>de</strong>senvolvimento dos Estados e das socieda<strong>de</strong>s e,<br />

<strong>em</strong> particular, contribuiu para dificultar as propostas <strong>de</strong> regionalismo<br />

surgidas do projeto cepalino. Recent<strong>em</strong>ente, no <strong>de</strong>bate travado sobre<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, mostrou-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abrir novas<br />

perspectivas que incorpor<strong>em</strong> a diversida<strong>de</strong>, escondida pelo prisma da<br />

linearida<strong>de</strong> histórica própria do pensamento positivista. O dualismo primitivo/civilizado<br />

influenciou as elites sul-americanas que importaram essa<br />

visão <strong>de</strong> mundo, impedindo uma leitura integrada da própria realida<strong>de</strong>,<br />

con<strong>de</strong>nada à segregação <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s/territórios consi<strong>de</strong>rados “arcaicos”.<br />

Assim, os gran<strong>de</strong>s centros urbanos ficaram <strong>de</strong> costas para o próprio território,<br />

vinculados aos gran<strong>de</strong>s centros <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r mundial, mercado das matérias-primas<br />

cuja exportação trazia riqueza para as elites, excluindo as maiorias<br />

do <strong>de</strong>senvolvimento e do progresso (ver Stuart, 1989).<br />

Por que essa reflexão, aqui e agora? Por enten<strong>de</strong>r que essa tarefa histórica<br />

não cumprida pelos Estados nacionais po<strong>de</strong> ser assumida nesta nova etapa<br />

da integração com base no projeto do Mercosul, ampliado e aprofundado.<br />

2. CONSTRUINDO UMA PERSPECTIVA DE REGIONALISMO<br />

DEMOCRÁTICO: A QUESTÃO DA SOBERANIA E DA AUTONOMIA<br />

Há uma extensa literatura produzida na América do Sul que <strong>de</strong>senvolve o<br />

t<strong>em</strong>a da autonomia. O’Donnell e Linck colocaram o centro nas condições estruturais<br />

da <strong>de</strong>pendência, entendida como resultado da exploração e da acumulação<br />

tecnológica dos países centrais, entre outros fatores <strong>de</strong>terminantes (ver<br />

O’Donnell e Linck, 1973). Outros autores <strong>de</strong>finiram as nações com potencia-<br />

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lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia como aquelas que têm os recursos para impor severas<br />

penalida<strong>de</strong>s aos que venham a transgredir esse atributo, mantendo a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação no plano interno e ampla marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> manobra no<br />

plano internacional (ver Jaguaribe, 1979). Neste artigo, a tentativa é relacionar<br />

a autonomia à questão do regionalismo e, <strong>de</strong> acordo com esse enfoque, especificar<br />

a importância da <strong>de</strong>mocracia para sua realização 8 .<br />

No contexto da realida<strong>de</strong> dos países da América do Sul, a questão da<br />

autonomia po<strong>de</strong> ser analisada numa tríplice perspectiva. Em primeiro lugar,<br />

como princípio que sustenta a regra <strong>de</strong> não-intervenção <strong>em</strong> assuntos<br />

internos dos Estados 9 . Em segundo, como condição do Estado-nação para<br />

articular e alcançar metas políticas <strong>de</strong> maneira in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. E <strong>em</strong> terceiro<br />

como interesse objetivo dos Estados junto aos interesses <strong>de</strong> sobrevivência e<br />

b<strong>em</strong>-estar econômico da socieda<strong>de</strong>. Na reflexão que guia este trabalho, esse<br />

último significado é o mais operativo para vincular a questão da autonomia<br />

ao regionalismo e à <strong>de</strong>mocracia.<br />

Combinando as dimensões da prática e da teoria, Juan Carlos Puig 10<br />

produziu extensa obra no campo do direito internacional, da política e das<br />

relações internacionais. Seu pensamento original articulou-se <strong>em</strong> torno da<br />

questão da autonomia. Puig analisa a “comunida<strong>de</strong> internacional” como<br />

socieda<strong>de</strong> internacional que apresenta similarida<strong>de</strong>s com as socieda<strong>de</strong>s nacionais,<br />

se observada a tendência à centralização da tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões<br />

(Puig, 1980). Suas idéias críticas do positivismo foram precursoras <strong>de</strong> análises<br />

críticas cont<strong>em</strong>porâneas:<br />

268<br />

“El positivismo es una doctrina apta para situaciones históricas<br />

consolidadas y ten<strong>de</strong>ncialmente statuquistas, como fue,<br />

por ej<strong>em</strong>plo, el siglo XIX (...) Pero, para bien o para mal,<br />

vivimos un mundo en que asistimos a profundos y vertiginosos<br />

cambios (...)” (Puig, ibi<strong>de</strong>m, p. 65).<br />

8 Para uma completa apresentação da questão da autonomia na política exterior, da ótica das teorias<br />

<strong>de</strong> relações internacionais, consultar Tokatlian e Carvajal (2000).<br />

9 O “direito público americano” foi celeiro <strong>de</strong> doutrinas internacionais, incorporadas ao direito<br />

internacional público, centradas na <strong>de</strong>fesa da autonomia.<br />

10 O argentino Juan Carlos Puig foi professor <strong>de</strong> Direito <strong>Internacional</strong> Público, autor <strong>de</strong> vasta obra<br />

e ministro <strong>de</strong> Relações Exteriores do governo Cámpora (1973). Faleceu <strong>em</strong> Caracas <strong>em</strong> 1989.<br />

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Na sua obra há uma crítica aos enfoques teóricos tradicionais da disciplina<br />

das relações internacionais, segundo ele tributários das concepções<br />

“atomistas” da comunida<strong>de</strong> internacional, nos quais o po<strong>de</strong>r é baseado somente<br />

na força material e cuja perspectiva gira <strong>em</strong> torno do predomínio<br />

absoluto das gran<strong>de</strong>s potências.<br />

Em sua concepção, a busca da autonomia transcen<strong>de</strong> os marcos jurídicos<br />

do Estado:<br />

“(...) como <strong>de</strong>terminados tratados preservan (y aún<br />

incr<strong>em</strong>entan) la autonomia, o sea la capacidad <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisión<br />

propia <strong>de</strong>l Estado, aunque signifiquen una limitación a su<br />

‘soberania’ formal y normativa (por ej<strong>em</strong>plo, tratados <strong>de</strong><br />

integración autonomistas), no si<strong>em</strong>pre el mantenimiento <strong>de</strong><br />

la ‘soberania’ significa en el fondo una mayor autonomia”<br />

(ibi<strong>de</strong>m, p. 105).<br />

Puig enten<strong>de</strong> que a justiça é uma “categoria planetária”:<br />

“(...) lo que ocurre, en primer término, es que la soberania<br />

<strong>de</strong>l Estado, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente formal, no <strong>de</strong>scribe la<br />

realidad <strong>de</strong>l régimen internacional. Para los Estados<br />

pertenecientes a un bloque, el criterio supr<strong>em</strong>o no es el<br />

<strong>de</strong> la impermeabilidad <strong>de</strong>l Estado-nación, sino la impermeabilidad<br />

<strong>de</strong>l bloque. Lo cual no quiere <strong>de</strong>cir que la<br />

autonomia, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l bloque, y hasta la secesión, no sean<br />

juridicamente posibles” (ibi<strong>de</strong>m, p. 105).<br />

Essa reflexão completa-se com uma valoração do regionalismo como instrumento<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento integrado numa perspectiva <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong><br />

estratégica:<br />

“La integración en sí misma tampoco es autonomizante. En el<br />

fondo es instrumental, y su sentido <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>l objetivo<br />

que se fije. Tal vez porque los objetivos no fueron propiamente<br />

autonómicos es que no han avanzado <strong>de</strong>cididamente los<br />

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procesos <strong>de</strong> integración en América Latina. Y por eso también<br />

sea posible que pretensiones autonomistas, ineludibl<strong>em</strong>ente<br />

competitivas en lo económico y en lo estratégico con las naciones<br />

industrializadas, no puedan sostenerse en América Latina sin<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarrollo interno congruentes y sin estar afincadas<br />

en una solidaridad estratégica, que no ocasional y especulativa,<br />

com países que aspiran a lo mismo” (ibi<strong>de</strong>m, p. 154-155).<br />

A consi<strong>de</strong>ração da autonomia como t<strong>em</strong>a vinculado à política e à <strong>de</strong>mocracia,<br />

diferent<strong>em</strong>ente da soberania, que é atributo <strong>de</strong> natureza jurídica,<br />

permite avançar para a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> sua realização além das fronteiras<br />

do Estado-nação. Autonomia e <strong>de</strong>pendência são categorias opostas<br />

para observar uma mesma realida<strong>de</strong>, na qual é impossível encontrá-las <strong>em</strong><br />

estado absoluto. Numa perspectiva crítica, como a que guia este trabalho,<br />

o conceito <strong>de</strong> autonomia não está restrito, como na ciência política clássica,<br />

ao estudo do Estado, já que exist<strong>em</strong> outros planos <strong>de</strong> autonomia regional<br />

e da socieda<strong>de</strong> civil com implicações nas relações internacionais 11 .<br />

A questão da soberania, portanto, <strong>de</strong>ve ser abordada, numa superação<br />

dos marcos teóricos clássicos, como vinculada à questão da autonomia e da<br />

<strong>de</strong>mocracia. Stephen Krasner (1999) <strong>de</strong>finiu a soberania estatal como<br />

“constructo hipócrita”. Na ánalise, Krasner aponta o processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong>sse atributo com base na observação das assimetrias <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r, o que torna cada vez mais inconsistente o mo<strong>de</strong>lo westfaliano 12 . A<br />

situação <strong>de</strong> “hipocrisia organizada” se coloca no cenário internacional quando<br />

as regras são obe<strong>de</strong>cidas <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminadas circunstâncias e <strong>em</strong> outras<br />

simplesmente ignoradas. S<strong>em</strong> dúvida, este trabalho aponta os mesmos probl<strong>em</strong>as<br />

já observados por Puig quando diferenciava a autonomia da soberania.<br />

No caso das <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> Estados que compromet<strong>em</strong> parte <strong>de</strong> sua soberania<br />

<strong>em</strong> processos <strong>de</strong> integração regional, como na União Européia e no<br />

Mercosul, é possível interpretar essas <strong>de</strong>cisões como plenamente autônomas.<br />

Nos processos <strong>de</strong> integração entre países <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, a cessão<br />

11 Para ampliar essa perspectiva, ver Díaz-Polanco (1994).<br />

12 Termo utilizado para caracterizar o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Estados, consolidado no cenário internacional pelo<br />

Tratado <strong>de</strong> Westfália, <strong>de</strong> 1648.<br />

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<strong>de</strong> soberania po<strong>de</strong> ser analisada como via <strong>de</strong> resistência autônoma aos imperativos<br />

da globalização ou às imposições dos Estados mais po<strong>de</strong>rosos.<br />

O <strong>de</strong>safio é aprofundar conceitos. O cruzamento da “<strong>de</strong>sconstrução” do<br />

conceito clássico <strong>de</strong> soberania e da “reconstrução” do conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia<br />

vinculado à autonomia constitui o núcleo <strong>de</strong>ssa transformação. As incertezas<br />

colocadas pela globalização, principalmente no plano econômicofinanceiro,<br />

motivam a busca <strong>de</strong> novos marcos institucionais para a<br />

impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> políticas públicas. Para muitos, o regionalismo <strong>de</strong>mocrático<br />

é a resposta. A construção <strong>de</strong> uma política regional com o objetivo<br />

<strong>de</strong> atenuar as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s entre sub-regiões e países, potencializando a<br />

região como um todo no cenário mundial, constitui uma opção política. O<br />

vetor da integração econômica é consi<strong>de</strong>rado um meio para atingir tais fins.<br />

3. OS AVANÇOS NA POLÍTICA DE INTEGRAÇÃO REGIONAL<br />

Existe ampla literatura <strong>de</strong>scritiva, analítica e reflexiva sobre os primeiros<br />

<strong>de</strong>z anos do Mercosul, cujo aporte é base para as linhas que se segu<strong>em</strong> 13 .<br />

Serão apontadas principalmente as carências <strong>de</strong>sse processo no plano da<br />

busca <strong>de</strong> coesão econômico-social e da representação dos po<strong>de</strong>res regionais<br />

e locais, visualizados como componentes necessários <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>mocrático.<br />

O processo <strong>de</strong> integração na América do Sul foi iniciado na década <strong>de</strong><br />

1980, à luz da aproximação bilateral entre Brasil e Argentina. A<br />

re<strong>de</strong>mocratização dos regimes políticos nesses países foi uma das causas<br />

importantes da mudança da tendência histórica <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong> que marcou<br />

as relações Brasil–Argentina no plano regional e h<strong>em</strong>isférico.<br />

A vinculação <strong>de</strong> interesses dos atores da transição <strong>de</strong>mocrática no Brasil e<br />

na Argentina foi <strong>de</strong>cisiva para iniciar uma política <strong>de</strong> convergência <strong>em</strong> momentos<br />

<strong>em</strong> que o governo <strong>de</strong> Raúl Alfonsin sofria a ameaça <strong>de</strong> golpes militares<br />

e José Sarney se esforçava para legitimar seu governo <strong>de</strong>pois da morte<br />

do presi<strong>de</strong>nte eleito Tancredo Neves.<br />

13 Três obras tratam apropriadamente <strong>de</strong> um amplo leque <strong>de</strong> questões vinculadas aos <strong>de</strong>safios atuais<br />

do Mercosul: Bernal-Meza (2000); Lima e Me<strong>de</strong>iros (2000); e Sierra (2001).<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

Na década <strong>de</strong> 1990 houve um mudança <strong>de</strong> rumo nesse processo, que<br />

abandonou as características <strong>de</strong> integração compl<strong>em</strong>entar, gradual e setorial<br />

para adotar um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> integração que passou a privilegiar as relações<br />

comerciais, no marco da perspectiva chamada <strong>de</strong> “regionalismo aberto”.<br />

As conseqüências da impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo no Mercosul, <strong>em</strong> especial<br />

o aprofundamento do processo <strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e riqueza<br />

nas sub-regiões mais <strong>de</strong>senvolvidas do eixo São Paulo–Buenos Aires, não<br />

levavam a consi<strong>de</strong>rar necessário abordar o t<strong>em</strong>a das disparida<strong>de</strong>s sub-regionais<br />

no Mercosul.<br />

O processo <strong>de</strong> integração do Cone Sul foi construído seguindo o mo<strong>de</strong>lo<br />

intergovernamental e <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar com<br />

instituições supranacionais representativas dos diversos setores sociais e<br />

políticos. Estes optaram por organizar-se informalmente e atuar como<br />

associações <strong>de</strong> interesses regionais, marginalizadas do processo <strong>de</strong> tomada<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões 14 .<br />

Preten<strong>de</strong>mos discutir esse mo<strong>de</strong>lo e contribuir para a elaboração <strong>de</strong><br />

uma proposta institucional que permita a <strong>de</strong>fesa dos direitos e interesses<br />

envolvidos pela integração e abra perspectivas ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> todos<br />

os países e <strong>de</strong> todas as sub-regiões, <strong>em</strong> especial daquelas que apresentam<br />

índices socioeconômicos muito inferiores à média regional.<br />

A contribuição da experiência da União Européia, centrada no <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> políticas públicas para diminuir as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong> servir<br />

como inspiração para resolver o probl<strong>em</strong>a das assimetrias existentes no<br />

Mercosul. Não se trata <strong>de</strong> transportar o mo<strong>de</strong>lo mas <strong>de</strong> estudar a própria<br />

realida<strong>de</strong> focalizando o objetivo da coesão regional, como meio para envolver<br />

a participação <strong>de</strong> agentes locais e regionais no processo <strong>de</strong> integração.<br />

Como já foi dito anteriormente, os processos <strong>de</strong> integração regional, a<br />

partir dos anos 1990, ficaram sujeitos a imperativos exógenos que imprimiram<br />

uma dinâmica centralizadora, por um lado, com conseqüências<br />

homogeneizadoras <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> políticas econômico-financeiras e, por outro,<br />

fragmentadora das socieda<strong>de</strong>s e dos territórios, que sofreram os impactos do<br />

abandono das políticas públicas por parte dos Estados. A proposta é a reto-<br />

14 Para um estudo sobre os atores do Mercosul, ver Hirst (1996), especialmente o Capítulo IV.<br />

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mada <strong>de</strong>ssas políticas nos marcos do bloco regional, com base nos interesses<br />

e valores endógenos, isto é, gerados pelas socieda<strong>de</strong>s civis e políticas nas<br />

diferentes instâncias subnacionais <strong>em</strong> interação com os Estados nacionais.<br />

As vicissitu<strong>de</strong>s que sofreu o Mercosul na década <strong>de</strong> 1990 e inícios do<br />

século XXI, submetido ao vaivém das conjunturas dos governos do Brasil e<br />

da Argentina, obrigou os governos iniciados no ano <strong>de</strong> 2003 (Lula no Brasil,<br />

Nestor Kirchner na Argentina) a começar a discussão sobre o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

integração adotado. O Mercosul passou a ser consi<strong>de</strong>rado um instrumento<br />

<strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e riqueza para suas nações e seus povos, passível <strong>de</strong><br />

enfrentar os <strong>de</strong>safios colocados pelo processo <strong>de</strong> globalização econômicofinanceira.<br />

Viu-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reformular as pr<strong>em</strong>issas do projeto <strong>de</strong><br />

integração, gerando normas e instituições com base nos interesses e valores<br />

criados na interação <strong>de</strong> seus Estados e socieda<strong>de</strong>s <strong>em</strong> suas múltiplas dimensões.<br />

O controle das políticas dirigidas ao aumento da coesão econômica e<br />

social, mediante a constituição <strong>de</strong> uma instância institucional representativa<br />

dos governos locais e regionais, constituiu uma estratégia a<strong>de</strong>quada para<br />

a construção <strong>de</strong> um regionalismo <strong>de</strong>mocrático.<br />

O Mercosul, segundo o Tratado <strong>de</strong> Assunção que o constituiu, nasceu<br />

com vocação referenciada no mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> integração europeu: constituir um<br />

mercado comum, com perspectivas comunitárias. Entretanto, durante a<br />

primeira década, apesar do intenso crescimento do comércio intra-regional<br />

e do conseqüente aumento da inter<strong>de</strong>pendência entre os países, assistiu-se<br />

a uma prolongada seqüência <strong>de</strong> crises que colocaram <strong>em</strong> risco a continuida<strong>de</strong><br />

do projeto. A <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> institucional do mo<strong>de</strong>lo regional do Mercosul<br />

foi responsável pela <strong>de</strong>crescente credibilida<strong>de</strong> do processo.<br />

Além das assimetrias entre países, causa das severas críticas apresentadas<br />

pelos governos <strong>de</strong> Uruguai e Paraguai, também o Brasil e a Argentina sofr<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong> graves distorções que afetam o funcionamento do sist<strong>em</strong>a fe<strong>de</strong>rativo<br />

<strong>em</strong> ambos os países. O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> políticas ativas <strong>de</strong> coesão<br />

econômico-social permitiu uma distribuição eqüitativa dos benefícios e custos<br />

do processo.<br />

Quais são os instrumentos disponíveis para enfrentar essas disparida<strong>de</strong>s<br />

que atentam contra a constituição do mercado comum? No Mercosul não<br />

existia nenhum regime, mecanismo ou instituição que tivesse por objetivo<br />

central a resolução <strong>de</strong>ssa questão vital para todo o processo <strong>de</strong> integração,<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

principalmente <strong>em</strong> países on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e sub-regionais<br />

impe<strong>de</strong>m o avanço da <strong>de</strong>mocracia (ver Nun, 2001). Consi<strong>de</strong>ra-se que a<br />

aprovação dos Fundos <strong>de</strong> Convergência Estruturais (Foc<strong>em</strong>) permitirá<br />

viabilizar projetos que atendam às necessida<strong>de</strong>s do <strong>de</strong>senvolvimento regional<br />

e local, com representação <strong>de</strong> seus agentes no processo <strong>de</strong>cisório, como<br />

se impl<strong>em</strong>enta na União Européia.<br />

Na União Européia, a política <strong>de</strong> Fundos Estruturais foi iniciada <strong>em</strong> 1975 e<br />

consolidada com a criação dos Fundos <strong>de</strong> Coesão após intensa pressão dos países<br />

menos <strong>de</strong>senvolvidos, como Irlanda, Grécia, Portugal e, principalmente,<br />

Espanha. Hoje, constitu<strong>em</strong> instrumentos que os Estados-m<strong>em</strong>bros, <strong>em</strong> estreita<br />

colaboração com as autorida<strong>de</strong>s regionais, utilizam para fomentar o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

e reduzir as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s entre as regiões e os grupos sociais.<br />

Quais são as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> impl<strong>em</strong>entar uma proposta similar no<br />

Mercosul?<br />

A primeira observação que cabe colocar refere-se à inexistência <strong>de</strong> um orçamento<br />

comunitário no Mercosul. Há estudos que apresentam propostas viáveis<br />

para o financiamento <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> apoio ao crescimento econômico e<br />

social, a projetos <strong>de</strong> infra-estrutura física e <strong>de</strong> reconversão produtiva, auxílio<br />

às pequenas e médias <strong>em</strong>presas e diminuição <strong>de</strong> disparida<strong>de</strong>s sociais e subregionais.<br />

Para a realização <strong>de</strong>sse projeto <strong>de</strong> integração é necessário contar<br />

com instituições representativas dos po<strong>de</strong>res sub-regionais e locais para que o<br />

<strong>de</strong>senho das políticas e a distribuição dos recursos cont<strong>em</strong> com a participação<br />

dos cidadãos. Dessa forma será possível exercer um controle <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong>ssas<br />

políticas, já que a centralização t<strong>em</strong> <strong>de</strong>monstrado uma tendência à malversação<br />

<strong>de</strong> recursos. A governabilida<strong>de</strong> regional conjugaria assim a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> compatibilizar a “cláusula <strong>de</strong>mocrática” 15 com a criação das condições<br />

socioeconômicas que dariam conteúdo e viabilida<strong>de</strong> a longo prazo à <strong>de</strong>mocracia.<br />

Nesse sentido, a proposta <strong>de</strong> criar instituições que control<strong>em</strong> <strong>de</strong>mocraticamente<br />

a alocação <strong>de</strong>sses recursos é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância.<br />

A introdução <strong>de</strong> uma agenda política e social sofre forte resistência <strong>de</strong><br />

setores conservadores que vê<strong>em</strong> o Mercosul como uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

15 Esse compromisso consta na Declaração presi<strong>de</strong>ncial sobre cláusula <strong>de</strong>mocrática no Mercosul<br />

(San Luis, 1996, e Ushuaia, 1998).<br />

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mercado e nada mais. Esses setores <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m um Mercosul com formato<br />

<strong>de</strong> “área <strong>de</strong> livre comércio”, compatível com a constituição da ALCA.<br />

4. MERCOSUL: UMA NOVA AGENDA<br />

Em primeiro lugar, os novos governos do Brasil e da Argentina consi<strong>de</strong>raram<br />

que o Mercosul dos anos 1990, plataforma para a abertura<br />

indiscriminada das economias, <strong>de</strong>via mudar com base numa visão diferente<br />

sobre a integração, baseada <strong>em</strong> projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento com políticas<br />

públicas ativas, com o objetivo <strong>de</strong> realizar a passag<strong>em</strong> do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

integração negativa para outro <strong>de</strong> integração positiva (ver Merkel, 1999).<br />

Já na primeira visita <strong>de</strong> Lula à Argentina como presi<strong>de</strong>nte eleito, <strong>em</strong><br />

nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2002, mencionou-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar ao espírito do<br />

PICE (Programa <strong>de</strong> Integración Comercial y Económica) assinado pelos<br />

presi<strong>de</strong>ntes Sarney e Alfonsín nos anos 1980, programa que iniciou uma<br />

aproximação inédita dos dois países <strong>em</strong> todas as áreas da produção, do trabalho<br />

e do conhecimento 16 .<br />

O que significava retomar o espírito do PICE? Principalmente, centrar o<br />

projeto nas potencialida<strong>de</strong>s da compl<strong>em</strong>entação produtiva, da<br />

impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> políticas comuns <strong>de</strong> reconversão econômica e do estabelecimento<br />

<strong>de</strong> instituições e regulamentos-marco que permitiss<strong>em</strong> a implantação<br />

do mercado comum com livre circulação <strong>de</strong> pessoas, bens, capitais e<br />

serviços num prazo <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po razoável.<br />

Nesse sentido, uma leitura atenta dos acontecimentos e dos discursos dos<br />

presi<strong>de</strong>ntes Lula, Nestor Kirchner, Tabaré Vázquez e Hugo Chávez permite<br />

vislumbrar mudanças significativas na política para o Mercosul e a região sulamericana.<br />

Para ilustrar essa pr<strong>em</strong>issa, vamos comentar o documento apresentado<br />

pelo governo brasileiro na primeira reunião da Cúpula do Mercosul<br />

(Assunção, junho <strong>de</strong> 2003) posterior à tomada <strong>de</strong> posse dos presi<strong>de</strong>ntes Lula<br />

e Kirchner. Nesse documento, conhecido como Objetivos 2004-2006, ficaram<br />

estampadas as metas <strong>de</strong> aprofundamento e ampliação do Mercosul.<br />

16 Nos marcos <strong>de</strong>sse acordo assinaram-se, primeiro, 24 protocolos setoriais e, posteriormente,<br />

outros 24 abrangendo todas as áreas.<br />

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Como já foi assinalado, a generalizada situação <strong>de</strong> <strong>em</strong>pobrecimento dos<br />

países sul-americanos nas últimas duas décadas agravaram a crônica condição<br />

<strong>de</strong> fragmentação social e territorial, aumentando os bolsões <strong>de</strong> exclusão<br />

<strong>em</strong> todos os países. A consciência da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma resposta regional<br />

para uma realida<strong>de</strong> que exige intervenções profundas <strong>de</strong> políticas públicas<br />

motivou a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> abandonar a tese soberanista para assumir a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> compartilhar a soberania com os países vizinhos num processo <strong>de</strong><br />

construção <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> autônoma além das fronteiras dos Estados.<br />

O objetivo <strong>de</strong> consolidar o processo <strong>de</strong> integração, submetido até 2002 à<br />

lógica das crises econômico-financeiras que afetaram os países-m<strong>em</strong>bros,<br />

está presente <strong>em</strong> cada um dos itens da proposta, intitulada “Programa para<br />

a consolidação da União Aduaneira e para o lançamento do Mercado Comum”,<br />

apresentada pelo governo brasileiro na mencionada reunião <strong>de</strong> Cúpula<br />

do Mercosul. A primeira parte apresenta o “Programa político, social e<br />

cultural”. A construção <strong>de</strong> uma nova institucionalida<strong>de</strong> é um dos gran<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>safios do Mercosul e, nesse sentido, a aprovação do Parlamento, já inaugurado<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2006, constitui a consecução <strong>de</strong> um dos objetivos<br />

mais relevantes para a <strong>de</strong>mocratização do bloco regional.<br />

A segunda parte da proposta brasileira trata do “Programa da União Aduaneira”.<br />

Neste capítulo, a questão da coesão econômico-social e territorial,<br />

isto é, o combate às assimetrias, é consi<strong>de</strong>rada um princípio basilar da<br />

integração. A experiência européia neste campo, já mencionada anteriormente,<br />

<strong>de</strong>ve inspirar as políticas públicas específicas para garantir a aproximação<br />

das regiões e dos países <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômicosocial.<br />

Nesse sentido, os Fundos <strong>de</strong> Convergência Estrutural para o Mercosul<br />

(Foc<strong>em</strong>), também aprovados <strong>em</strong> fins <strong>de</strong> 2005, significam um avanço relevante<br />

no cumprimento dos Objetivos 2004-2006.<br />

A terceira parte da proposta trata do “Programa <strong>de</strong> base para o Mercado<br />

Comum”, cont<strong>em</strong>plando a livre circulação da mão-<strong>de</strong>-obra e a promoção dos<br />

direitos dos trabalhadores. Na quarta seção do documento, chamada <strong>de</strong> “Programa<br />

da nova integração”, a ênfase é colocada na “integração produtiva avançada”<br />

e na “integração física”. Este último objetivo constitui um dos pilares<br />

da construção da Comunida<strong>de</strong> Sul-americana <strong>de</strong> Nações.<br />

As negociações <strong>em</strong> torno <strong>de</strong>sse programa não foram simples porque enfrentaram<br />

interesses constituídos na <strong>de</strong>fesa do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Mercosul centrado<br />

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no comércio e regido pelos imperativos do mercado. As resistências <strong>de</strong> setores<br />

dominantes vinculados às <strong>em</strong>presas multinacionais provocaram impasses<br />

que os governos conseguiram superar, dada a <strong>de</strong>terminação política. Nesse<br />

sentido, as linhas estratégicas lançadas nas <strong>de</strong>clarações conjuntas Lula–<br />

Kirchner (“Consenso <strong>de</strong> Buenos Aires”, outubro <strong>de</strong> 2003, e “Ata <strong>de</strong><br />

Copacabana”, fevereiro <strong>de</strong> 2004) mostram que a relação Brasil–Argentina<br />

constitui o eixo estruturante do novo Mercosul.<br />

Em 2003, juntamente com essas medidas <strong>de</strong> aprofundamento do<br />

Mercosul, foram tomadas <strong>de</strong>cisões para proce<strong>de</strong>r à ampliação do processo<br />

<strong>de</strong> integração. Nesse sentido, as perspectivas abertas pela viag<strong>em</strong> do presi<strong>de</strong>nte<br />

Lula ao Peru e à Venezuela durante aquele ano tiveram como objetivo<br />

avançar rapidamente no acordo Mercosul–CAN (Comunida<strong>de</strong> Andina <strong>de</strong><br />

Nações) para constituir a Comunida<strong>de</strong> Sul-americana <strong>de</strong> Nações. Nascida<br />

<strong>em</strong> Cuzco <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2004, seus objetivos são aprofundar o diálogo<br />

político, fomentar acordos comerciais e, principalmente, impl<strong>em</strong>entar a<br />

integração da infra-estrutura física. Para ilustrar este ponto, é importante<br />

mencionar os avanços na construção do corredor biooceânico 17 e nas negociações<br />

sobre o chamado “anel energético” 18 .<br />

“O Brasil não quer heg<strong>em</strong>onia, quer cooperação”, <strong>de</strong>clara reiteradamente<br />

o presi<strong>de</strong>nte Lula para afastar as prevenções dos que <strong>de</strong>sconfiam <strong>de</strong> interesses<br />

egoístas por parte do Estado brasileiro, s<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>r que para o atual<br />

governo os interesses nacionais e regionais são inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e estão imbricados.<br />

A construção <strong>de</strong> um novo projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, sustentável<br />

e com justiça social, será possível se soubermos plasmar os interesses<br />

nacionais numa escala regional. Hoje, com a integração da Venezuela, o<br />

Mercosul constitui o núcleo principal <strong>em</strong> torno do qual se consolidará a<br />

integração sul-americana.<br />

17 Conjunto <strong>de</strong> obras públicas transfonteiriças visando a cominucação entre países <strong>de</strong> costa atlântica<br />

com os países banhados pelo Oceano Pacífico. Há avanços importantes nos projetos aprovados<br />

pelos governos do Brasil e do Peru.<br />

18 Projeto discutido por Venezuela, Brasil e Argentina para construir um gasoduto atravessando esses<br />

países e que interligaria também com a Bolívia. Na I Cúpula Energética da América do Sul (Margarita,<br />

Venezuela, março <strong>de</strong> 2007) foi formado o Conselho Energético, constituído pelos ministros <strong>de</strong> área<br />

dos países m<strong>em</strong>bros da Comunida<strong>de</strong> Sul-Americana <strong>de</strong> Nações para estudar o planejamento das<br />

obras energéticas que servirão todos os países da região.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

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y políticas exteriores comparadas. Buenos Aires, Grupo Editor<br />

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Perspectivas <strong>de</strong>l Estado multiétnico”. In MARINI, R. M. e MILLÁN,<br />

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p. 163-190.<br />

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e o futuro do capitalismo. São Paulo, Paz e Terra, 1999.<br />

FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. Nova York,<br />

The Free Press, 1992.<br />

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La teoria social latinoamericana. 3 tomos. México, UNAM, 1994.<br />

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KRASNER, Stephen. Sovereignty: Organised Hypocricy. Princeton University<br />

Press, 1999.<br />

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do século XXI. São Paulo/Buenos Aires, Cortez/CLACSO, 2000.<br />

LOZANO, Claudio (comp.). D<strong>em</strong>ocracia, Estado y <strong>de</strong>sigualdad. Buenos Aires,<br />

Eu<strong>de</strong>ba, 2000.<br />

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MERKEL, Wolfgang. “Legitimacy and D<strong>em</strong>ocracy: Endogenous Limits<br />

of European Integration”. In ANDERSON, Jeffrey J. (ed.). Regional<br />

Integration and D<strong>em</strong>ocracy. Oxford, Rowman & Littlefield<br />

Publishers, 1999.<br />

NUN, José. D<strong>em</strong>ocracia. Buenos Aires, Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 2001.<br />

O’DONNELL, Guillermo e LINCK, Delfina. Depen<strong>de</strong>ncia y autonomia.<br />

Buenos Aires, Amorrortu, 1973.<br />

278<br />

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PUIG, Juan Carlos. Doctrinas internacionales y autonomia latinoamericana.<br />

Caracas, Universidad Simón Bolívar, 1980.<br />

ROJAS, Jauberth; RODRIGO, H. et alii. La triangulación Centroamérica–<br />

México–EUA. San José <strong>de</strong> Costa Rica, Dei, 1991.<br />

SIERRA, Gerónimo <strong>de</strong> (comp.). Los rostros <strong>de</strong>l Mercosur. El difícil camino <strong>de</strong><br />

lo comercial a lo societal. Buenos Aires, CLACSO, 2001.<br />

STUART, Ana Maria. O bloqueio da Venezuela <strong>em</strong> 1902: suas implicações nas<br />

relações internacionais da época, com especial atenção às posições do Brasil<br />

e da Argentina. Dissertação <strong>de</strong> Mestrado, USP, São Paulo, 1989.<br />

TOKATLIAN, Juan Gabriel e CARVAJAL, Leonardo H. “Autonomia e<br />

política exterior: un <strong>de</strong>bate abierto, un futuro incierto”. Trabalho apresentado<br />

no Primeiro Workshop sobre “El estado <strong>de</strong>l <strong>de</strong>bate<br />

cont<strong>em</strong>poráneo en Relaciones <strong>Internacional</strong>es”. Universida<strong>de</strong> Torcuato<br />

Di Tella, Buenos Aires, 27 e 28 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2000.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

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SÉCULO XX: FICÇÃO, POESIA, ENSAIO<br />

Livros indicados 1<br />

Livros indicados<br />

IMPERIALISMO E COLONIALISMO<br />

1. Joseph Conrad, O coração das trevas, Porto Alegre, L&PM, 1998. Conto<br />

ex<strong>em</strong>plar sobre o colonialismo na África.<br />

2. Joseph Conrad, Nostromo, São Paulo, Companhia das Letras, 2007.<br />

Um aventureiro no Caribe, um golpe militar, uma revolução separatista e o<br />

imperialismo inglês.<br />

3. T. E. Lawrence, Os sete pilares da sabedoria, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record,<br />

2000. Como a Inglaterra manipulou a revolta árabe contra a Turquia no<br />

final da Primeira Guerra Mundial.<br />

4. Nadine Gordimer, O engate, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.<br />

A sina <strong>de</strong> um imigrante ilegal árabe na África do Sul.<br />

5. E. M. Forster, Uma passag<strong>em</strong> para a Índia, São Paulo, Globo, 2005.<br />

Choques na Índia ocupada pelos ingleses.<br />

6. Octavio Paz, Labirinto da solidão, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Paz e Terra,<br />

2006. Os conflitos inerentes à conquista na América Latina e as mentalida<strong>de</strong>s<br />

resultantes.<br />

7. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, São Paulo, Companhia das<br />

Letras, 1997. As relações entre anti-s<strong>em</strong>itismo, imperialismo e o nascimento<br />

do totalitarismo.<br />

1 Lista elaborada com a colaboração <strong>de</strong> Walnice Nogueira Galvão, professora titular <strong>de</strong> Teoria<br />

Literária e Literatura Comparada da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

PRIMEIRA E SEGUNDA GUERRAS MUNDIAIS<br />

8. Kafka, O processo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. O pesa<strong>de</strong>lo<br />

do totalitarismo que se avizinhava.<br />

9. Elie Wiesel, A noite, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ediouro, 2001. R<strong>em</strong>iniscências<br />

<strong>de</strong> um sobrevivente dos campos <strong>de</strong> concentração nazistas.<br />

10. Primo Lévi, É isto um hom<strong>em</strong>?, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rocco, 2000. Meditação<br />

do autor sobre sua experiência enquanto ju<strong>de</strong>u num campo <strong>de</strong> concentração.<br />

11. Erich Maria R<strong>em</strong>arque, Nada <strong>de</strong> novo no front, Porto Alegre, L&PM,<br />

2004. A Primeira Guerra Mundial vista das trincheiras.<br />

12. Norman Mailer, Os nus e os mortos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record, 1992.<br />

Um test<strong>em</strong>unho sobre a Segunda Guerra Mundial no Pacífico.<br />

13. John Hersey, Hiroshima, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.<br />

Uma das primeiras reportagens feitas no local on<strong>de</strong> explodiu a primeira<br />

bomba atômica, nos estertores da Segunda Guerra Mundial.<br />

14. James Clavell, Xogum, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nórdica, 1986. Amplo panorama<br />

histórico e cultural do passado do Japão, cujo autor é um sobrevivente<br />

<strong>de</strong> campos <strong>de</strong> concentração japoneses na Segunda Guerra.<br />

ESTADOS UNIDOS<br />

15. Norman Mailer, Os exércitos da noite, Lisboa, Dom Quixote, 1997. O<br />

movimento pacifista-hippie contra a guerra do Vietnã nos Estados Unidos.<br />

16. Dee Brown, Enterr<strong>em</strong> meu coração na curva do rio, Porto Alegre,<br />

L&PM, 2003. Crônica do extermínio dos índios peles-vermelhas nos Estados<br />

Unidos.<br />

17. Toni Morrison, O olho mais azul, São Paulo, Companhia das Letras,<br />

2003. A intolerância racial encarniçada contra uma menina negra.<br />

18. John dos Passos, Trilogia U.S.A. (Paralelo 42, 1919 e Dinheiro graúdo),<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rocco, s.d. Nos três livros, a Primeira Guerra e seus efeitos<br />

na transformação dos Estados Unidos <strong>em</strong> potência mundial.<br />

19. Haley Alex, Autobiografia <strong>de</strong> Malcolm X, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record, 1992. O<br />

gran<strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r Black Power que enfrentou todos os po<strong>de</strong>res e morreu assassinado.<br />

REVOLUÇÕES<br />

20. John Reed, Dez dias que abalaram o mundo, São Paulo, Global, 1978.<br />

Jornalista norte-americano presencia o <strong>de</strong>slanchar da Revolução Russa.<br />

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Livros indicados<br />

21. Edmund Wilson, Rumo à Estação Finlândia, São Paulo, Companhia<br />

das Letras, 2006. Quadro histórico da Revolução Russa através <strong>de</strong> suas<br />

principais figuras.<br />

22. Leon Trotsky, Minha vida, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Paz e Terra, 1969. Um dos<br />

dois lí<strong>de</strong>res da Revolução Russa conta sua trajetória.<br />

23. Victor Serge, M<strong>em</strong>órias <strong>de</strong> um revolucionário, São Paulo, Companhia<br />

das Letras, 1987.<br />

24. Alexan<strong>de</strong>r Isaievitch Soljenitzyn, Arquipélago Gulag, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Biblioteca do Exército, 1976. O sist<strong>em</strong>a concentracionário criado por Stalin.<br />

25. Aldous Huxley, Admirável mundo novo, São Paulo, Globo, 2001.<br />

Uma fantasia pr<strong>em</strong>onitória <strong>de</strong> entre-guerras sobre o futuro da humanida<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos totalitários.<br />

26. Martin Bernal, “Mao e a Revolução Chinesa”. In Eric J.<br />

Hobsbawm (org.), História do marxismo, vol. 8, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Paz e<br />

Terra, 1985, p. 375-417.<br />

27. Ernest H<strong>em</strong>ingway, Por qu<strong>em</strong> os sinos dobram, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Bertrand<br />

Brasil, 2004. Um combatente escreve sobre a guerra civil espanhola.<br />

28. Nikolai Ostrovski, Assim foi t<strong>em</strong>perado o aço, São Paulo, Expressão<br />

Popular, 2003. Ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> romance proletário e do “realismo socialista”<br />

que vigorou na União Soviética.<br />

29. George Orwell, A revolução dos bichos, Companhia das Letras, 2007.<br />

Nesta fábula, os animais tomam o po<strong>de</strong>r e o que <strong>de</strong>veria ser uma socieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mocrática se transforma <strong>em</strong> um regime totalitário.<br />

30. Jung Chang, Cisnes selvagens, São Paulo, Companhia das Letras, 1994.<br />

A Revolução Chinesa através da história <strong>de</strong> três gerações.<br />

31. Anatoli Ribakov, Os filhos da rua Arbat, São Paulo, Difusão Cultural,<br />

1990.<br />

DIÁSPORAS CONTEMPORÂNEAS<br />

32. Arundathi Roy, O <strong>de</strong>us das pequenas coisas, São Paulo, Companhia<br />

das Letras, 2004. A vida cotidiana entre gente simples do sul da Índia.<br />

33. Uzodinma Iweala, Feras <strong>de</strong> lugar nenhum, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira,<br />

2006. Um menino africano é recrutado para matar nas guerras civis.<br />

34. Paulina Chiziane, Ventos do Apocalipse, Lisboa, Caminho, 1999. A vida<br />

tribal <strong>em</strong> Moçambique interrompida pelo caos que a guerra civil instaurou.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

35. Jhumpa Lahiri, Intérprete <strong>de</strong> males, São Paulo, Companhia das Letras,<br />

2001. Contos sobre as agruras da vida <strong>de</strong> imigrantes indianos <strong>em</strong> NovaYork.<br />

36. Hanin Kureishi, No colo do pai, São Paulo, Companhia das Letras,<br />

2006. Um expatriado paquistanês conta a história <strong>de</strong> sua família, entre<br />

Karashi e Londres.<br />

AMÉRICA LATINA<br />

37. Valle-Inclán, Tirano Ban<strong>de</strong>ras, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 1976.<br />

Inaugurou um gênero: o romance <strong>em</strong> que o protagonista é um ditador<br />

latino-americano.<br />

38. Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano <strong>de</strong>l tabaco y el azúcar, Caracas,<br />

Biblioteca Ayacucho, 1978. O Gilberto Freyre do Caribe, criador do conceito<br />

<strong>de</strong> “transculturação” e pioneiro dos estudos afrocubanos.<br />

39. Ernesto “Che” Guevara, De moto pela América do Sul, São Paulo, Sá<br />

Editora, 2003. Viag<strong>em</strong> iniciática para conhecer <strong>de</strong> perto o continente.<br />

40. Miguel Ángel Astúrias, Week-end na Guat<strong>em</strong>ala, São Paulo, Expressão<br />

Popular, 2007. Os meandros da intervenção dos Estados Unidos no<br />

Caribe, <strong>em</strong> 1954.<br />

41. Alejo Carpentier, O reino <strong>de</strong>ste mundo, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização<br />

Brasileira, 1985. A Revolução Haitiana e o reinado <strong>de</strong> seu auto-proclamado<br />

monarca, o ex-escravo Henri Cristophe.<br />

42. Mariano Azuela, Los <strong>de</strong> abajo, Madri, Mestas Ediciones, 2003. Um<br />

olhar interno sobre os inícios da Revolução Mexicana.<br />

43. Juan Rulfo, Pedro Páramo e Chão <strong>em</strong> Chamas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record,<br />

2005. Ficção indigenista mexicana.<br />

44. José María Arguedas, Os rios profundos, São Paulo, Companhia das Letras,<br />

2005. Os conflitos gerados pela exploração que assola os índios peruanos.<br />

45. José Carlos Mariátegui, Sete ensaios <strong>de</strong> interpretação da realida<strong>de</strong><br />

peruana, São Paulo, Alfa-Omega, 2004. Um intelectual que luta pelo socialismo<br />

discute as relações entre cultura e política, tendo como t<strong>em</strong>a<br />

central o indigenismo.<br />

46. Gabriel García Márquez, C<strong>em</strong> anos <strong>de</strong> solidão, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record,<br />

1997. Romance inaugurador do boom hispano-americano do realismo mágico.<br />

47. Manuel Scorza, Bom dia para os <strong>de</strong>funtos, São Paulo, Círculo do Livro,<br />

1979. Uma companhia <strong>de</strong> mineração expropria a terra dos camponeses no Peru.<br />

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Livros indicados<br />

BRASIL<br />

48. Guimarães Rosa, Gran<strong>de</strong> sertão: veredas, 19. ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova<br />

Fronteira, 2001. O regime do coronelato <strong>em</strong> alta literatura.<br />

49. Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, Os sertões, edição Crítica <strong>de</strong> Walnice Nogueira<br />

Galvão, São Paulo, Ática, 1999. Epopéia da Guerra <strong>de</strong> Canudos.<br />

50. Gilberto Freyre, Casa Gran<strong>de</strong> & Senzala, São Paulo, Global, 2006.<br />

Um exame das relações entre senhores e escravos no regime patriarcal.<br />

51. Sergio Buarque <strong>de</strong> Holanda, Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia<br />

das Letras, 2006. Um estudo comparativo entre as colonizações espanhola<br />

e portuguesa.<br />

52. Antonio Candido, <strong>Formação</strong> da literatura brasileira, 10. ed. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Ouro Sobre Azul, 2007. Como os brasileiros realizaram seu projeto<br />

<strong>de</strong> possuir uma literatura in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />

53. Caio Prado Jr., <strong>Formação</strong> do Brasil cont<strong>em</strong>porâneo, São Paulo, Brasiliense,<br />

1996. Análise dos principais el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> nosso passado colonial que moldaram<br />

a nação.<br />

54. Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Macunaíma, Belo Horizonte, Villa Rica, 1997.<br />

Neste carro-chefe <strong>de</strong> nosso mo<strong>de</strong>rnismo, o protagonista <strong>de</strong>ixa a floresta<br />

amazônica e parte para a metrópole industrial.<br />

ENSAIO<br />

55. E. Hobsbawm, A era dos extr<strong>em</strong>os – O breve século XX, São Paulo, Companhia<br />

das Letras, 1999. Tratado das linhas <strong>de</strong> força que <strong>de</strong>finiram o século.<br />

56. Susan Sontag, Diante da dor dos outros, Companhia das Letras, 2003.<br />

Avaliação das fotografias <strong>de</strong> atrocida<strong>de</strong>s com que a mídia nos bombar<strong>de</strong>ia.<br />

57. Edward M. Said, Orientalismo, São Paulo, Companhia das Letras,<br />

1990. A construção do “Oriente” como projeção negativa do Oci<strong>de</strong>nte.<br />

58. Fernando A. Novais e Nicolau Sevcenko (orgs.), História da vida privada<br />

no Brasil, vol. 3, República: da Belle Époque à Era do Rádio, São Paulo,<br />

Companhia das Letras, 1998. Panorama das contradições entre esfera pública<br />

e esfera privada na República Velha.<br />

POESIA<br />

59. Jorge Luis Borges, Fervor <strong>de</strong> Buenos Aires. In Obras completas <strong>de</strong> Jorge<br />

Luis Borges, vol. I, São Paulo, Globo, 1998. O poeta escreve sobre sua cida<strong>de</strong>.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

60. Pablo Neruda, Canto geral, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Bertrand Brasil, 2002.<br />

Poesia libertária, <strong>de</strong> protesto contra a injustiça social no continente latino-americano.<br />

61. Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Nova reunião, Rio <strong>de</strong> Janeiro, José<br />

Olympio, 1983. A evolução do poeta através <strong>de</strong> seus principais livros.<br />

62. José Martí, Versos singelos, Porto Alegre, SBS, 1997. A veia lírica do<br />

precursor da Revolução Cubana.<br />

63. T. S. Eliot, Obra completa, vol. I, Poesia, São Paulo, Arx, 2004. Visão<br />

<strong>de</strong>sencantada dos <strong>de</strong>scaminhos do século XX.<br />

64. Saint-John Perse, Anábase, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 1979. O<br />

poeta francês medita sobre o valor da poesia <strong>em</strong> nosso t<strong>em</strong>po.<br />

65. Maiakovski – Po<strong>em</strong>as, tradução <strong>de</strong> Haroldo <strong>de</strong> Campos, Boris<br />

Schnai<strong>de</strong>rman e Augusto <strong>de</strong> Campos, São Paulo, Perspectiva, 2006. O poeta<br />

da Revolução Russa.<br />

66. Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu e Elegias <strong>de</strong> Duíno, Petrópolis, Vozes,<br />

2006. O poeta <strong>de</strong>scortina os novos t<strong>em</strong>pos com apreensão e <strong>de</strong>sconfiança.<br />

67. Bertold Brecht, Po<strong>em</strong>as 1913-1956, São Paulo, Editora 34, 2004.<br />

Gran<strong>de</strong> poesia política.<br />

68. Konstantinos Kavafis, Po<strong>em</strong>as, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 1990.<br />

O poeta da <strong>de</strong>cadência canta <strong>em</strong> grego as glórias do passado e sua cida<strong>de</strong><br />

egípcia, Alexandria.<br />

69. e. e. cummings, Po<strong>em</strong>as, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Francisco Alves, 1999. A<br />

discussão da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> através das imagens poéticas.<br />

286<br />

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Filmes indicados 1<br />

Filmes indicados<br />

OS GRANDES TEMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />

1. Sob a névoa da guerra (The Fog of War). EUA, 2003, dir.: Errol Morris,<br />

95 min. Documentário sobre Robert McNamara, um dos estrategistas dos<br />

Estados Unidos como superpotência, entre os anos 1940 e 1970.<br />

2. Terra <strong>de</strong> ninguém (No Man’s Land). Bósnia-Herzegovina/Eslovênia/Itália/<br />

França/Inglaterra/Bélgica, 2001, dir.: Danis Tanovic, 98 min. Filme que,<br />

a partir <strong>de</strong> uma situação dramática envolvendo dois soldados inimigos <strong>em</strong><br />

uma trincheira, probl<strong>em</strong>atiza o papel da mídia e da ONU na crise da Bósnia.<br />

3. A Batalha <strong>de</strong> Argel (La Battaglia di Algeri). Itália, 1966, dir.: Gillo<br />

Pontecorvo, 121 min. Filme clássico que leva para as telas a luta pela in<strong>de</strong>pendência<br />

argelina dos anos 1950, e a conseqüente repressão francesa, ancorado<br />

na visão marxista <strong>de</strong> imperialismo e <strong>de</strong>scolonização.<br />

4. Babel (Babel). EUA/México/França, 2006, dir.: Alejandro González<br />

Iñárritu, 143 min. A partir <strong>de</strong> dramas individuais entrecruzados, ambientados<br />

nos Estados Unidos, no México, no Marrocos e no Japão, o filme<br />

tenta <strong>de</strong>monstrar a assimetria e as injustiças da globalização.<br />

5. Corações e mentes (Hearts and Minds). EUA, 1974, dir.: Peter Davis,<br />

112 min. Documentário realista e impactante sobre a tragédia da guerra do<br />

Vietnã, sobretudo seus efeitos sobre o povo daquele país asiático que <strong>de</strong>rrotou<br />

os Estados Unidos numa das piores guerras do século XX.<br />

6. O bom pastor (The Good Shepherd). EUA, 2006, dir.: Robert De<br />

Niro, 167 min. A partir <strong>de</strong> uma visão shakesperiana <strong>de</strong> luta pelo po<strong>de</strong>r, o<br />

1 Lista elaborada com a colaboração <strong>de</strong> Marcos Napolitano, professor <strong>de</strong> história da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

São Paulo.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

filme encena a trajetória <strong>de</strong> criação da CIA e a inserção dos Estados Unidos<br />

na política mundial.<br />

7. Exílios (Exils). França/Japão, 2004, dir.: Tony Gatlif, 104 min. Dois<br />

jovens franceses, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> argelina, faz<strong>em</strong> o caminho oposto das migrações<br />

cont<strong>em</strong>porâneas, saindo da Europa para a Argélia, e <strong>de</strong>param-se com<br />

situações e pessoas que faz<strong>em</strong> pensar sobre as questões i<strong>de</strong>ntitárias do<br />

mundo cont<strong>em</strong>porâneo.<br />

8. Boa noite e boa sorte (Good Night, and Good Luck). EUA, 2005,<br />

dir.: George Clooney, 93 min. Filme que se passa durante o macartismo,<br />

perseguição aos comunistas e simpatizantes ocorrida nos anos 1950 nos<br />

Estados Unidos, narrando a história <strong>de</strong> um jornalista que resiste à censura<br />

e ao cabotinismo.<br />

9. Um filme falado (Um filme falado). Portugal/França/Itália, 2003, dir.:<br />

Manoel <strong>de</strong> Oliveira, 96 min. Bela metáfora fílmica sobre a crise e o papel da<br />

civilização oci<strong>de</strong>ntal no mundo cont<strong>em</strong>porâneo.<br />

10. O senhor das armas (Lord of War). EUA/França, 2005, dir.: Andrew<br />

Niccol, 122 min. Misturando drama familiar e aventura, o filme narra a<br />

trajetória <strong>de</strong> um mercador <strong>de</strong> armas s<strong>em</strong> escrúpulos ou i<strong>de</strong>ologia, que se<br />

aproveita das contradições, dos conflitos e das insanida<strong>de</strong>s constituintes da<br />

própria geopolítica mundial.<br />

11. Uma verda<strong>de</strong> inconveniente (An Inconvenient Truth). EUA, 2006,<br />

dir.: Davis Guggenheim, 100 min. Apesar <strong>de</strong> ser um <strong>de</strong>scarado marketing<br />

pessoal <strong>de</strong> Al Gore para a próxima corrida presi<strong>de</strong>ncial norte-americana, o<br />

filme mapeia os principais <strong>de</strong>safios ambientais do mundo.<br />

MOVIMENTOS CONTRA A GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL<br />

12. O que você faria? (El Método). Argentina/Espanha/Itália, 2005,<br />

dir.: Marcelo Piñeyro, 115 min. No mesmo momento <strong>em</strong> que ocorre<br />

um protesto antiglobalização <strong>em</strong> Madri, um grupo <strong>de</strong> candidatos a um<br />

<strong>em</strong>prego numa gran<strong>de</strong> corporação multinacional compete por uma vaga<br />

<strong>de</strong> executivo.<br />

13. O jardineiro fiel (The Constant Gar<strong>de</strong>ner). Al<strong>em</strong>anha/Inglaterra, 2005,<br />

dir.: Fernando Meirelles, 129 min. Numa narrativa próxima da aventura, o<br />

filme <strong>de</strong>nuncia a ação <strong>de</strong> laboratórios multinacionais da área médica na África,<br />

abordando t<strong>em</strong>as como miséria, corrupção, tráfico <strong>de</strong> influência, globalização.<br />

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Filmes indicados<br />

14. Pão e rosas (Bread and Roses). Inglaterra/França/Al<strong>em</strong>anha/Espanha/<br />

Itália/ Suíça, 2000, dir.: Ken Loach, 110 min. Numa perspectiva <strong>de</strong> esquerda,<br />

o filme narra as <strong>de</strong>sventuras <strong>de</strong> uma imigrante mexicana <strong>em</strong> Los<br />

Angeles, <strong>em</strong> sua luta por melhores condições <strong>de</strong> vida e trabalho.<br />

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA EUROPA<br />

15. Metrópolis (Metropolis). Al<strong>em</strong>anha, 1927, dir.: Fritz Lang, 153 min.<br />

Clássico do cin<strong>em</strong>a mundial, é uma alegoria da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> capitalista e<br />

<strong>de</strong> seus dil<strong>em</strong>as, expressão <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po que viu nascer o nazismo.<br />

16. Roma, cida<strong>de</strong> aberta (Roma, Città Aperta). Itália, 1945, dir.: Roberto<br />

Rossellini, 100 min. Clássico do neo-realismo italiano que po<strong>de</strong> ser visto<br />

como uma homenag<strong>em</strong> à resistência contra o nazismo e ao nascimento <strong>de</strong><br />

uma nova Europa no pós-1945.<br />

17. Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia). Inglaterra, 1962, dir.: David<br />

Lean, 210 min. Biografia <strong>de</strong> um agente inglês, T. E. Lawrence, que tinha a<br />

missão <strong>de</strong> reunir as tribos árabes contra o Império Otomano durante a<br />

Primeira Guerra Mundial.<br />

18. Cruzada (Kingdom of Heaven). Inglaterra/Espanha/EUA/Al<strong>em</strong>anha,<br />

2005, dir.: Ridley Scott, 145 min. Épico que permite pensar as origens do<br />

choque entre o Oci<strong>de</strong>nte e o Islã, b<strong>em</strong> como as trocas culturais entre estas<br />

duas gran<strong>de</strong>s civilizações.<br />

19. Elizabeth (Elizabeth). Inglaterra, 1998, dir.: Shekhar Kapur, 124<br />

min. Numa narrativa centrada nos dramas pessoais da famosa rainha inglesa,<br />

o filme permite alguma reflexão sobre o nascimento da geopolítica no<br />

período do Absolutismo.<br />

20. Danton – O processo da revolução (Danton). França/Polônia/Al<strong>em</strong>anha<br />

Oci<strong>de</strong>ntal, 1983, dir.: Andrzej Wajda, 136 min. Além <strong>de</strong> retratar o<br />

processo político que culminou na morte <strong>de</strong> George Danton, protagonista<br />

da Revolução Francesa, o filme radicaliza o questionamento sobre a questão<br />

da revolução e seus legados, no mundo mo<strong>de</strong>rno.<br />

21. 1900 (Novecento). Itália/França/Al<strong>em</strong>anha Oci<strong>de</strong>ntal/EUA, 1976,<br />

dir.: Bernardo Bertolucci, 315 min. Épico sobre a história italiana e européia.<br />

22. O Leopardo (Il Gattopardo). Itália/França, 1963, dir.: Luchino<br />

Visconti, 187 min. Clássico sobre o processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização italiana no<br />

século XIX e as mudanças sociais e políticas advindas.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

23. Os companheiros (I Compagni). Itália/França/Iugoslávia, 1963, dir.:<br />

Mario Monicelli, 130 min. Um dos melhores filmes sobre o nascimento<br />

do movimento operário e as dificulda<strong>de</strong>s cotidianas do operariado na era<br />

das fábricas.<br />

24. Sacco e Vanzetti (Sacco e Vanzetti). Itália/França, 1971, dir.: Giuliano<br />

Montaldo, 120 min. Drama sobre a morte <strong>de</strong> dois militantes anarquistas<br />

italianos, nos Estados Unidos dos anos 1920.<br />

25. Europa (Europa). Dinamarca/Suécia/França/Al<strong>em</strong>anha/Suíça, 1991,<br />

dir.: Lars von Trier, 112 min. Metáfora da reconstrução da Europa no<br />

pós-Guerra, a partir <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> amor entre um norte-americano e<br />

uma al<strong>em</strong>ã.<br />

26. Arquitetura da <strong>de</strong>struição (Un<strong>de</strong>rgångens Arkitektur). Suécia, 1989,<br />

dir.: Peter Cohen, 119 min. Documentário sobre a visão <strong>de</strong> mundo dos nazistas,<br />

responsável pela estetização da política e suas conseqüências trágicas.<br />

27. Billy Elliot (Billy Elliot). Inglaterra/França, 2000, dir.: Stephen<br />

Daldry, 110min. Comédia dramática sobre uma família operária, envolvida<br />

numa longa greve contra o governo <strong>de</strong> Margareth Tatcher na Inglaterra<br />

dos anos 1980, enquanto seu caçula tenta se transformar <strong>em</strong> bailarino<br />

profissional.<br />

28. O corte (Le Couperet). Bélgica/França/Espanha, 2005, dir.: Costa-<br />

Gravas, 122 min. Saga <strong>de</strong> um ex-executivo <strong>de</strong>s<strong>em</strong>pregado na tentativa <strong>de</strong> se<br />

recolocar no mercado <strong>de</strong> trabalho.<br />

29. Segunda-feira ao Sol (Los Lunes al Sol). Espanha/França/Itália, 2002,<br />

dir.: Fernando León <strong>de</strong> Aranoa, 113 min. Num tom <strong>de</strong> comédia dramática,<br />

o filme mostra os efeitos que o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego <strong>em</strong> massa t<strong>em</strong> sobre o cotidiano<br />

dos operários <strong>de</strong> um estaleiro.<br />

30. Nossa música (Notre Musique). França/Suíça, 2004, dir.: Jean Luc-<br />

Godard, 76 min. Filme ambientado durante a guerra da Bósnia, com apelo<br />

pacifista que se articula com a questão do reconhecimento da alterida<strong>de</strong><br />

como base da paz.<br />

ÍNDIA<br />

31. Gunga Din (Gunga Din). EUA, 1939, dir.: George Stevens, 117 min.<br />

Filme clássico, totalmente eurocêntrico, que narra a tentativa <strong>de</strong> um indiano<br />

<strong>de</strong> ser reconhecido como soldado a serviço do Império Britânico na Índia.<br />

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Filmes indicados<br />

32. Passag<strong>em</strong> para a Índia (A Passage to India). Inglaterra/EUA, 1984,<br />

dir.: David Lean, 163 min. Filme romântico que probl<strong>em</strong>atiza o contato<br />

cultural entre ingleses e indianos.<br />

33. Um casamento à indiana (Monsoon Wedding). Índia/EUA/França/<br />

Itália/ Al<strong>em</strong>anha, 2001, dir.: Mira Nair, 114 min. A partir <strong>de</strong> uma cerimônia<br />

nupcial, o filme retrata a complexa socieda<strong>de</strong> indiana.<br />

34. Gandhi (Gandhi). Inglaterra/Índia, 1982, dir.: Richard Attenborough,<br />

188 min. Épico biográfico sobre a vida do gran<strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r da in<strong>de</strong>pendência<br />

da Índia.<br />

ÁSIA<br />

35. Anna e o rei (Anna and the King). EUA, 1999, dir.: Andy Tennant,<br />

148 min. Drama ligeiro que permite alguma percepção sobre o choque<br />

cultural causado pelo imperialismo europeu na Ásia, b<strong>em</strong> como<br />

sobre as disputas entre França e Inglaterra pelo domínio do continente<br />

no século XIX.<br />

36. T<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong> sobre a Ásia (Potomok Chingis-khana). União Soviética,<br />

1928, dir.: Vsevolod Pudovkin, 125 min. Clássico do cin<strong>em</strong>a épico soviético,<br />

sobre a revolução socialista na Mongólia.<br />

37. Indochina (Indochine). França, 1992, dir.: Regis Wargnier, 157 min.<br />

Drama histórico sobre a presença francesa na Indochina.<br />

38. O americano tranqüilo (The Quiet American). EUA/Al<strong>em</strong>anha/Austrália,<br />

2002, dir.: Phillip Noyce, 101 min. Aventura ambientada no Vietnã<br />

dos anos 1950, quando os Estados Unidos começaram a substituir a França<br />

na política <strong>de</strong> contenção do comunismo na região.<br />

39. O último imperador (The Last Emperor). China/Inglaterra/França/<br />

Itália, 1987, dir.: Bernardo Bertolucci, 165 min. Biografia do último imperador<br />

chinês, cujo drama pessoal se confun<strong>de</strong> com a história da China no<br />

século XX.<br />

40. Platoon (Platoon). EUA, 1986, dir.: Oliver Stone, 120 min. Drama<br />

<strong>de</strong> guerra sob a perspectiva liberal, centrado nas <strong>de</strong>sventuras dos soldados<br />

norte-americanos no Vietnã.<br />

41. Os boinas ver<strong>de</strong>s (The Green Berets). EUA, 1968, dir.: John Wayne e<br />

Ray Kellogg, 141 min. Aventura sobre as tropas <strong>de</strong> elite norte-americanas,<br />

numa perspectiva <strong>de</strong> direita sobre a geopolítica da região.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 291<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

42. Apocalypse Now (Apocalypse Now). EUA, 1979, dir.: Francis Ford<br />

Coppola, 153 min. Épico sobre a guerra do Vietnã consi<strong>de</strong>rado por muitos<br />

o melhor filme <strong>de</strong> guerra <strong>de</strong> todos os t<strong>em</strong>pos.<br />

43. Balzac e a costureirinha chinesa (Xiao Cai Feng/Balzac et la Petite<br />

Tailleuse Chinoise). França/China, 2002, dir.: Sijie Dai, 110 min. Dois<br />

jovens são punidos com um exílio interno numa al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> agricultores durante<br />

a Revolução Cultural chinesa, nos anos 1960.<br />

44. Osama (Osama). Afeganistão/Países Baixos/Japão/Irlanda/Irã, 2003,<br />

dir.: Siddiq Barmak, 83 min. Drama que narra as <strong>de</strong>sventuras <strong>de</strong> uma menina<br />

que finge ser hom<strong>em</strong> para po<strong>de</strong>r participar da vida social e cultural do<br />

Afeganistão dominado pelos talibãs.<br />

45. A caminho <strong>de</strong> Kandahar (Return to Kandahar). Canadá, 2003, dir.:<br />

Paul Jay e Nelofer Pazira, 65 min. Uma viag<strong>em</strong> pelo Afeganistão do Talibã.<br />

RÚSSIA: REVOLUÇÃO E MODERNIZAÇÃO<br />

46. Guerra e paz (War and Peace). Itália, 1956, dir.: King Vidor, 208<br />

min. Épico hollywoodiano sobre a história russa do século XIX, baseado no<br />

livro clássico <strong>de</strong> Leon Tolstoi.<br />

47. Doutor Jivago (Doctor Zhivago). EUA, 1965, dir.: David Lean, 197<br />

min. Visão liberal do processo revolucionário e da construção do socialismo<br />

na União Soviética.<br />

48. Outubro (Oktyabr). União Soviética, 1928, dir.: Sergei M. Eisenstein<br />

e Grigori Aleksandrov, 103 min. Visão oficial bolchevique da Revolução<br />

Russa, <strong>em</strong> seus aspectos políticos e geopolíticos.<br />

49. Arca russa (Russkiy Kovcheg). Rússia/Al<strong>em</strong>anha, 2002, dir.: Aleksandr<br />

Sokurov, 96min. A partir <strong>de</strong> uma visita ao famoso museu Hermitage, <strong>em</strong> São<br />

Petersburgo, o filme narra a história russa e seus dil<strong>em</strong>as.<br />

50. A<strong>de</strong>us, Lenin! (Good Bye Lenin!). Al<strong>em</strong>anha, 2003, dir.: Wolfgang Becker,<br />

121 min. Comédia sobre o fim do comunismo na Al<strong>em</strong>anha (Oriental), consegue<br />

abordar <strong>de</strong> maneira criativa as contradições <strong>de</strong> ambos os sist<strong>em</strong>as.<br />

ORIENTE E INTERVENÇÃO NORTE-AMERICANA<br />

51. Syriana – A indústria do petróleo (Syriana). EUA, 2005, dir.: Stephen<br />

Gaghan, 126 min. Filme instigante e crítico sobre os jogos geopolíticos e os<br />

interesses corporativos no Oriente Médio.<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 292<br />

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Filmes indicados<br />

52. Paradise Now (Paradise Now). Palestina/França/Al<strong>em</strong>anha/Países Baixos/Israel,<br />

2005, dir.: Hany Abu-Assad, 90 min. Filme ousado e polêmico<br />

sobre os últimos momentos <strong>de</strong> dois homens-bomba palestinos, divididos<br />

entre angústias pessoais e dil<strong>em</strong>as políticos.<br />

53. Fahreinheit 11 <strong>de</strong> Set<strong>em</strong>bro (Fahreinheit 9/11). EUA, 2004, dir.:<br />

Michael Moore, 122 min. Documentário que, apesar do tom sensacionalista<br />

e b<strong>em</strong>-humorado, toca <strong>em</strong> questões cruciais da política <strong>de</strong> George W.<br />

Bush para o Oriente Médio.<br />

54. O tigre e a neve (La Tigre e la Neve). Itália, 2005, dir.: Roberto<br />

Benigni, 114 min. O filme é uma das primeiras ficções cin<strong>em</strong>atográficas<br />

ambientadas durante a invasão do Iraque pelos Estados Unidos.<br />

55. O caminho para Guantanamo (The Road to Guantanamo). Inglaterra,<br />

2006, dir.: Michael Winterbottom e Mat Whitecross, 95 min.<br />

Docudrama que narra acontecimentos reais, baseado <strong>em</strong> relatos <strong>de</strong> prisioneiros<br />

políticos da base norte-americana <strong>de</strong> Guantanamo, acusados <strong>de</strong> pertencer<strong>em</strong><br />

ao Talibã e à Al Qaeda.<br />

ÁFRICA<br />

56. Em minha terra (Country of My Skull). Inglaterra/Irlanda/África do<br />

Sul, 2004, dir.: John Boorman, 103 min. Drama sobre o processo <strong>de</strong> reconciliação<br />

pós-apartheid na África do Sul.<br />

57. Um grito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> (Cry Freedom). Inglaterra, 1987, dir.: Richard<br />

Attenborough, 157 min. Cinebiografia do militante antiapartheid Stephen<br />

Biko, morto pela repressão.<br />

58. Hotel Ruanda (Hotel Rwanda). EUA/Inglaterra/Itália/África do Sul,<br />

2004, dir.: Terry George, 121 min. Durante a guerra civil <strong>de</strong> Ruanda,<br />

quando as etnias dos tutsis e dos hutus se enfrentaram, com um saldo <strong>de</strong> 1<br />

milhão <strong>de</strong> mortos, um gerente <strong>de</strong> hotel tenta salvar o máximo <strong>de</strong> vidas,<br />

enquanto o Oci<strong>de</strong>nte abandona o país à sua própria sorte.<br />

AMÉRICA LATINA<br />

59. Diários <strong>de</strong> motocicleta (Diarios <strong>de</strong> Motocicleta). Argentina/EUA/Cuba/<br />

Al<strong>em</strong>anha/México/Inglaterra/Chile/Peru/França, 2004, dir.: Walter Salles,<br />

126 min. Road movie sobre a viag<strong>em</strong> sentimental e política do jov<strong>em</strong> Che<br />

Guevara pela América Latina nos anos 1950.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 293<br />

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<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional<br />

60. Queimada! (Queimada). Itália/França, 1969, dir.: Gillo Pontecorvo,<br />

115 min. Filme que sintetiza, <strong>de</strong>ntro dos cânones do marxismo mais<br />

esqu<strong>em</strong>ático, o processo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência das ex-colônias americanas, tutelado<br />

pela Inglaterra, e sua inserção no capitalismo liberal do século XIX.<br />

61. Desaparecido – Um gran<strong>de</strong> mistério (Missing). EUA, 1982, dir.: Costa-Gavras,<br />

122 min. Clássico sobre o golpe do Chile e a participação dos<br />

Estados Unidos.<br />

62. A batalha do Chile – 3 vols. (La Batalla <strong>de</strong> Chile: La Insurrencción <strong>de</strong><br />

la burguesia; La Batalla <strong>de</strong> Chile: El Golpe <strong>de</strong> Estado; La Batalla <strong>de</strong> Chile:<br />

El Po<strong>de</strong>r Popular). Cuba/França/Venezuela; Cuba/Chile/França; Cuba/Chile/<br />

Venezuela, 1975/1977/1979, dir.: Patricio Guzmán, 191/90/100 min.<br />

Documentário sobre o governo Allen<strong>de</strong> e as contradições entre capitalismo<br />

e socialismo na América do Sul.<br />

63. M<strong>em</strong>órias do sub<strong>de</strong>senvolvimento (M<strong>em</strong>órias <strong>de</strong>l Sub<strong>de</strong>sarrollo). Cuba,<br />

1968, dir.: Tomás Gutiérrez Alea, 97 min. Clássico do cin<strong>em</strong>a latino-americano,<br />

retrata o olhar amargo e irônico <strong>de</strong> um burguês que resolve ficar <strong>em</strong><br />

Cuba após a revolução <strong>de</strong> 1959.<br />

64. Kamchatka (Kamchatka). Argentina/Espanha, 2002, dir.: Marcelo<br />

Piñeyro, 105 min. A repressão na Argentina a partir da visão <strong>de</strong> um menino<br />

que t<strong>em</strong> os pais perseguidos.<br />

BRASIL: CONSTRUÇÃO NACIONAL E INSERÇÃO INTERNACIONAL<br />

65. Mauá: o imperador e o rei. Brasil, 1999, dir.: Sérgio Rezen<strong>de</strong>, 135<br />

min. Melodrama sobre a história do Barão <strong>de</strong> Mauá e seus projetos<br />

capitalistas para um Brasil agrário e escravista do século XIX.<br />

66.Bye Bye Brasil. Brasil, 1979, dir.: Cacá Diegues, 110 min. Uma<br />

caravana circense percorre o Brasil profundo nos anos 1970 e test<strong>em</strong>unha<br />

o processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização conservadora patrocinado pelo<br />

regime militar.<br />

67. For All: O trampolim da vitória. Brasil, 1997, dir.: Luiz Carlos<br />

Lacerda e Buza Ferraz, 95 min. Filme leve e b<strong>em</strong> ambientado sobre a<br />

presença norte-americana <strong>em</strong> Natal, durante a Segunda Guerra Mundial.<br />

68. O Velho: a história <strong>de</strong> Luis Carlos Prestes. Brasil, 1997, dir.: Toni Venturi,<br />

105 min. Documentário biográfico sobre o lí<strong>de</strong>r comunista Luis Carlos<br />

Prestes, com imagens inéditas do seu exílio <strong>em</strong> Moscou.<br />

294<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 294<br />

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Filmes indicados<br />

A POLÍTICA INTERNACIONAL DO BRASIL<br />

69. Lost Zweig (Lost Zweig). Brasil, 2003, dir.: Sylvio Back, 115 min.<br />

Investigando o misterioso pacto suicida do famoso escritor al<strong>em</strong>ão, dissi<strong>de</strong>nte<br />

do nazismo, exilado no Brasil nos anos 1930, o filme aborda os complexos<br />

jogos da política externa do Estado Novo getulista.<br />

70. Jango (Jango). Brasil, 1984, dir.: Silvio Tendler, 117 min.<br />

Documentário sobre o governo João Goulart e as razões que levaram ao<br />

golpe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> 1964, incluindo a <strong>Política</strong> Externa In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />

71. Estado <strong>de</strong> sítio (État <strong>de</strong> Siège). França, Al<strong>em</strong>anha Oci<strong>de</strong>ntal, Itália,<br />

1972, dir.: Costa-Gavras, 115 min. Drama político ambientado durante o<br />

seqüestro do cônsul brasileiro pelos tupamaros no Uruguai, <strong>em</strong> 1971, permitindo<br />

refletir sobre a participação da ditadura brasileira nas políticas<br />

anticomunistas da Guerra Fria.<br />

CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA DO SUL<br />

72. A história oficial (La Historia Oficial). Argentina, 1985, dir.: Luis<br />

Puenzo, 112 min. Melodrama pr<strong>em</strong>iado, que teve o mérito <strong>de</strong> ser um dos<br />

primeiros filmes a representar a ditadura argentina e seus efeitos sobre a<br />

vida pública e privada.<br />

73. M<strong>em</strong>ória do saque (M<strong>em</strong>oria <strong>de</strong>l Saqueo). Suíça/França/Argentina,<br />

2004, dir.: Fernando E. Solanas, 120 min. Documentário sobre a era Men<strong>em</strong><br />

na Argentina e a revolta popular que <strong>de</strong>rrubou o governo <strong>de</strong> Fernando <strong>de</strong> La<br />

Rua, <strong>em</strong> 2001.<br />

74. A revolução não será televisionada (Chavez: Insi<strong>de</strong> the Coup). Irlanda/<br />

Países Baixos/EUA/Al<strong>em</strong>anha/Finlândia/Inglaterra, 2003, dir.: Kim Bartley<br />

e Donnacha O’Briain, 74 min. Documentário sobre a tentativa <strong>de</strong> golpe <strong>de</strong><br />

Estado na Venezuela, contra Hugo Chaves, <strong>em</strong> 2001, com cenas incríveis<br />

captadas <strong>de</strong>ntro do palácio presi<strong>de</strong>ncial.<br />

75. Entreatos (Entreatos). Brasil, 2004, dir.: João Moreira Salles, 115 min.<br />

Documentário que acompanhou a intimida<strong>de</strong> da campanha presi<strong>de</strong>ncial que<br />

levaria o ex-operário Luis Inácio da Silva ao governo fe<strong>de</strong>ral, <strong>em</strong> 2002.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 295<br />

5/6/2007, 12:41<br />

295


Fundação Perseu Abramo<br />

Rua Francisco Cruz, 224<br />

04117-091 – São Paulo – SP<br />

Fone: (11) 5571-4299<br />

Fax: (11) 5571-0910<br />

Correio Eletrônico: internacional@fpabramo.org.br<br />

Na Internet: http://www.fpa.org.br<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> formação <strong>em</strong> política internacional foi impresso<br />

na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo pela Gráfica Bartira, que também<br />

forneceu os fotolitos <strong>de</strong> capa e <strong>de</strong> miolo, <strong>em</strong> junho<br />

<strong>de</strong> 2007. O texto foi composto <strong>em</strong> AGaramond no corpo<br />

11,5/15. A capa foi impressa <strong>em</strong> papel Carta Íntegra<br />

220g; o miolo foi impresso <strong>em</strong> Offset 75g.<br />

<strong>Curso</strong> <strong>de</strong> <strong>Formação</strong> <strong>em</strong> <strong>Política</strong> <strong>Internacional</strong>.<strong>p65</strong> 296<br />

5/6/2007, 12:41

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