Número 12 (jul-dez/09) - Dialogarts - Uerj
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Caderno Seminal Digital - Vol. <strong>12</strong> - Nº <strong>12</strong> - (Jul/Dez - 20<strong>09</strong>). Rio de Janeiro; <strong>Dialogarts</strong>, 20<strong>09</strong>.<br />
ISSN 1806-9142<br />
Semestral<br />
1. Lingüística Aplicada - Periódicos. 2. Linguagem - Periódicos. 3. Literatura - Periódicos.<br />
I. Títulos: Caderno Seminal <strong>Dialogarts</strong>. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />
CONSELHO CONSULTIVO<br />
André Valente (UERJ / FACHA)<br />
Aira Suzana Ribeiro Martins (CPII)<br />
Claudio Cezar Henriques (UERJ / UNESA)<br />
Darcília Marindir Pinto Simões (UERJ / PUC-SP)<br />
Edwiges Guiomar Santos Zaccur (UFF)<br />
Eliane Meneses de Melo (UBC-SP)<br />
Flavio García (UERJ / UNISUAM)<br />
Jayme Célio Furtado dos Santos (SEE-RJ / SME-Macaé)<br />
José Lemos Monteiro (UFC/UECE / NIFOR)<br />
José Luis Jobim (UERJ / UFF)<br />
Magnólia B.B. do Nascimento (UFF)<br />
Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA)<br />
Maria Suzatt Biembengut Santad (UMinho-Pt; PMPFM e FIMI/SP)<br />
Maria Teresa G. Pereira (UERJ)<br />
Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)<br />
Regina Michelli (UERJ / UNISUAM)<br />
Sílvio Santana Júnior (UNESP)<br />
Vilson José Leffa (UCPel-RS)<br />
EDITORIA<br />
Darcília Marindir Pinto Simões<br />
COEDITORIA<br />
Flavio García<br />
PROJETO DE CAPA<br />
Carlos Henrique de Souza Pereira<br />
LOGOTIPO<br />
Gisela Abad<br />
REVISÃO E DIAGRAMAÇÃO<br />
Jordão Pablo Rodrigues de Pão<br />
Thales Ferreira<br />
Flavio García<br />
Publicações <strong>Dialogarts</strong> é um<br />
Projeto Editorial de Extensão<br />
Universitária da UERJ do qual<br />
participam o Instituto de Letras<br />
(Campus Maracanã) e a Faculdade<br />
de Formação de Professores<br />
(Campus São Gonçalo). O<br />
Objetivo deste projeto é promover<br />
a circulação da produção<br />
acadêmica de qualidade, com<br />
vistas a facilitar o relacionamento<br />
entre a Universidade e o contexto<br />
sociocultural em que está inserida.<br />
O projeto teve início em 1994 com<br />
publicações impressas<br />
pela DIGRAF/UERJ. Em 2004,<br />
impulsionado pelas dificuldades<br />
encontradas no momento,<br />
surgiram, com recursos e<br />
investimentos próprios dos<br />
coordenadores do Projeto, as<br />
produções digitais com vista a<br />
recuperar a ritmo de suas<br />
publicações e ampliar a<br />
divulgação.<br />
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ÍNDICE:<br />
ENTRE DITOS, NÃO DITOS E MALDITOS: O INOMINÁVEL NA POESIA DE<br />
HILDA HILST<br />
Geruza Zelnys de Almeida ...................................................................................... 1<br />
O NASCIMENTO DA LITERATURA DO ESPÍRITO DA FICÇÃO: UM ESTUDO<br />
SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE OS CONCEITOS DE FICÇÃO E OS DE<br />
LITERATURA<br />
Júlio França .......................................................................................................... 16<br />
HIPÓTESE DO CULTIVO MIDIÁTICO E A CULTIVAÇÃO DE NOVOS MODOS<br />
DE NARRAR<br />
Kyldes Batista Vicente .......................................................................................... 33<br />
DA MATEMÁTICA PARA O PORTUGUÊS<br />
Patricia Queiroga Gonçalves de Souza Reis .......................................................... 43<br />
Maria Cecilia de Magalhães Mollica ..................................................................... 43<br />
Marisa Beatriz Bezerra Leal .................................................................................. 43<br />
Maria de Fátima Bacelar da Silva ......................................................................... 43<br />
A FORÇA ARGUMENTATIVA DOS NEOLOGISMOS: ESTRATÉGIAS<br />
DISCURSIVAS EM CRÔNICAS DE ARNALDO JABOR<br />
Shirley Lima da Silva Braz ................................................................................... 50<br />
André Crim Valente .............................................................................................. 50<br />
O CONTO MARAVILHOSO “A GUARDADORA DE GANSOS”: FUNÇÃO DAS<br />
PERSONAGENS, SEGUNDO PROPP<br />
Vanilda Salton Köche ........................................................................................... 67
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ENTRE DITOS, NÃO DITOS E MALDITOS:<br />
O INOMINÁVEL NA POESIA DE HILDA HILST<br />
Geruza Zelnys de Almeida *<br />
Resumo: O objetivo deste estudo é analisar a construção na poesia metafísica da escritora brasileira Hilda<br />
Hilst, a partir da física ou da materialidade da linguagem poética. Para isso, analisamos os procedimentos<br />
poéticos que promovem a indissolubilidade entre forma e idéia nos poemas. Os resultados analisados<br />
demonstram que, harmonizando o desejo metafísico com o rigor científico, Hilda torna visível a estrutura<br />
diagramática do pensamento, desenhando a metafísica dentro da física poética – primeiro, através de linhas<br />
ascendentes em busca do sublime e, segundo, por meio de linhas descendentes rumo ao grotesco.<br />
Palavras-Chave: Hilda Hilst, Poesia, Metafísica, Física.<br />
Hilda Hilst (1930-2004) gostava de enfatizar que toda sua obra era uma incansável busca<br />
por Deus e, inclusive na literatura dita pornográfica, observamos que é sempre essa perseguição que<br />
a move. Diz-se perseguição porque Hilda é uma poeta do excesso, que se estende em palavras,<br />
dentro do que Pound (1991) classifica como “bom verbalismo”: atitude que requer o domínio de<br />
uma linguagem extremamente culta.<br />
Nos textos hilstianos, essa característica é intrínseca ao fluxo do pensamento, que nunca é<br />
estático, mas está sempre em movimento à procura da exatidão e das palavras justas. Mas, a que se<br />
deve a exatidão ímpar que acompanha a leitura do invisível-indizível metafísico nesta criação<br />
poética?<br />
Primeiramente, a necessidade de colocar a razão em experimentação, até os limites do<br />
sensível, toma corpo na poesia hilstiana, caracterizando-a como um verdadeiro exercício de<br />
construção do conhecimento. Tão forte é o desejo de dar forma concreta ao pensamento metafísico<br />
que Hilda cria “esquemas” rítmicos, sonoros e visuais para construir uma homologia entre o objeto<br />
da atenção e sua representação, experimentando e modificando os diagramas mentais a fim de testar<br />
hipóteses. É cabível, portanto, dizer que a poeta porta-se como uma cientista à medida que aprimora<br />
e avança nos estudos poético-metafísicos.<br />
Mesmo os físicos da modernidade salientam o parentesco entre o pensamento poético e o<br />
pensamento matemático. Schenberg, no livro Pensando a Física (2001), em sintonia com os<br />
“estados poéticos” valerianos, aponta as quatro fases de uma criação científica: o aparecimento de<br />
uma idéia, seu conseqüente abandono, a solução inesperada e, por fim, o trabalho de<br />
aperfeiçoamento da fórmula matemática. Daí que “as idéias fundamentais da física e da matemática<br />
* Doutoranda no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Professora no curso de<br />
especialização em Literatura da PUC-COGEAE-SP. E-mail para contato: zelnys@hotmail.com
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não são coisas puramente racionais; muitas vezes têm origem misteriosa” (SCHENBERG, 2001:<br />
31).<br />
Entretanto, no espaço informe da poesia, a tentativa de materialização do ser por meio da<br />
palavra poética coloca a autora frente a uma impossibilidade nascida no fracasso da língua para<br />
dizer e/ou presentificar o todo. Em luta contra a falibilidade sígnica, Hilda se mostra insatisfeita<br />
com os nomes, iniciando, assim, um profundo trabalho de re-nomeação do ser no intuito de fundir<br />
palavra-coisa. Para isso, chega às últimas conseqüências mergulhando no sensível para encontrar o<br />
incognoscível por meio da ‘sensualização’ da forma (o movimento erotizante do pensamento) e até<br />
da pornografia vernacular.<br />
Se, para Chang-Tung-Sun, a função de renomear é “discernir o que fica em cima e o que fica<br />
em baixo, determinar o superior e o inferior e distinguir o bem do mal” (Apud CAMPOS, 2000:<br />
194); na poética hilstiana esse procedimento pode ser tomado como a busca humana pelo<br />
conhecimento por meio de uma lógica de purificação conceitual. Explica-se: sendo o nome<br />
carregado de significação simbólica, via de regra ele aponta para um conceito padronizado. Como a<br />
poética hilstiana mira a construção, há a tentativa de purificar os nomes, destituindo-lhes os<br />
significados convencionais e buscando, em novos denominadores, significações novas que,<br />
possivelmente, construirão novos conceitos.<br />
Octávio Paz, em O arco e a lira, afirma que “a primeira coisa que o homem faz diante de<br />
uma realidade desconhecida é nomeá-la, batizá-la [porque] aquilo que ignoramos é o inominado”<br />
(PAZ, 1982: 37). Portanto, se nomear é conhecer, o nomeado, quando se mantém desconhecido ou<br />
inalcançável, reclama uma re-nomeação, nem que seja, ao menos, para criar uma ilusão de<br />
conhecimento que satisfaça o intelecto. Por isso, Hilda tece infinitos nomes à procura da<br />
imagem/idéia inaugural, que a aproxime do ser, re-ordenando e re-criando conceitos, numa tentativa<br />
de conhecer os símbolos pela forma como se indiciam.<br />
Esse procedimento desemboca numa espécie de ritual de cópula imagética, ou seja, o<br />
movimento frenético das imagens funde-as num todo prenhe de significação. Está aí a natureza<br />
erótica da poética hilstiana, uma vez que a busca do erotismo é a fusão e, segundo Bataille,<br />
eliminação dos limites que viola as identidades e possibilita a total comunhão entre um e outro ser<br />
(MORAES, 2002: 50).<br />
Observa-se esse procedimento em Da morte. Odes Mínimas. (2003), tortuoso monólogo<br />
poético – composto de quarenta poemas – dirigido à Morte, ou melhor, à sua “consciência” da<br />
morte:<br />
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Te batizar de novo.<br />
Te nomear num trançado de teias<br />
E ao invés de Morte<br />
Te chamar Insana<br />
Fulva<br />
Feixe de Flautas<br />
Calha<br />
Candeia<br />
Palma, por que não?<br />
Te recriar nuns arco-íris<br />
Da alma, nuns possíveis<br />
Construir teu nome<br />
E cantar teus nomes perecíveis:<br />
Palha<br />
Corça<br />
Nula<br />
Praia<br />
Por que não? (HILST, 2003: I, 29)<br />
Para chegar até o Deus desejado, a poeta busca a morte, estado limítrofe entre corpo e<br />
espírito, abismo entre o ser desejoso e o desejado, procurando conhecê-la em sua singularidade, ou<br />
seja, na inscrição do próprio nome. Insatisfeita com a morte (des)conhecida, a poeta recria a morte-<br />
nome, a partir do material vocabular “perecível” de que dispõe, atribuindo-lhe novas nomenclaturas<br />
e tornando-a, assim, mais atraente. Por meio de atributos imagéticos, sonoros, sensíveis e<br />
intelectivos, fornecidos pelos substantivos ou adjetivos substantivados, funda-se uma morte poética,<br />
na qual as palavras vão se aproximando por suas parecenças e se aglutinando melopaicamente<br />
(fulva/feixe/flauta). Nesses versos monossilábicos, a morte adquire um ritmo dançante que a<br />
sensualiza e a destitui do significante morte, eliminando, assim, o temor contido na construção<br />
anagramática.<br />
Entretanto, o conhecimento integral não cabe ao ser humano e, assim, ao longo da<br />
composição, cria-se um movimento erotizante de aproximação e afastamento que leva à inversão de<br />
papéis: ao invés de ser tomada pela morte, a poeta toma-a sensorialmente: se pensá-la lhe é possível<br />
em vida, senti-la é condição imposta pelo morrer:<br />
Se eu soubesse<br />
Teu nome verdadeiro<br />
Te tomaria<br />
Úmida, tênue (HILST: XIX, 47)<br />
É nesse sentido que o re-conhecimento hipotético se ampara “nuns possíveis” imagético-<br />
sonoro-visuais e não, apenas, abstrato-conceituais. Esses possíveis sugerem a presença da<br />
probabilidade, pois no embate entre imagens convergentes e divergentes pode haver mais de um<br />
ponto de acumulação (SCHENBERG, 2001: 163).<br />
3
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A pergunta “por que não?” reafirma a postura do cientista – e do princípio da incerteza 1<br />
–<br />
disposto a conhecer, materialmente, os domínios da própria metafísica, além de manter acesa a<br />
proposta do encontro, ou ainda, da fusão entre o conhecido e o desconhecido: “Que eu te conheça<br />
lícita, terrena” (HILST: II, 30); “Há milênios te sei / E nunca te conheço.” (HILST: III, 31).<br />
Trazendo a Morte para perto de si, a poeta desfia infinitas redes de significação que vão se<br />
avolumando no poema, desagregando o conceito convencional para a imagem-Morte. Este conceito<br />
primeiro desliza por imagens outras, recebendo pinceladas que redimensionam seu traçado:<br />
Te batizo Ventura<br />
Rosto de ninguém<br />
Morte-Ventura<br />
[...]<br />
Te batizo Prisma, Púrpura<br />
[...]<br />
Te batizo Riso<br />
Rosto de ninguém<br />
Sonido<br />
Altura (HILST: XXIII, 51)<br />
A linha geométrica que se estende infinitamente, em direção ao sublime, encontra-se fadada<br />
ao fracasso de “re-nomear” o que não cabe numa palavra. Como a verdade não se força aos olhos, a<br />
poesia não revela numa palavra toda sua verdade: a morte se mostra na potência da língua que é<br />
impotente para lhe dizer, mas que fixa nesse campo magnético-textual, entre o dito e o não-dito, sua<br />
essencialidade (BADIOU, 2002: 39).<br />
Assim, para se aproximar o máximo possível da “verdade” da Morte, desenha-se um corpo<br />
físico, por meio de inúmeras imagens, na tentativa de traçar um recorte que separe o ser da morte de<br />
seu infinito possível: Cavalinha, Cavalo, Búfalo, e, principalmente, Cobra. A imagem da cobra<br />
aparece nos estudos de Valéry, apontados por Augusto de Campos em Valéry: a serpente e o<br />
2<br />
pensar, associada ao “ícone do pensar” : a serpente pelo aspecto espiralado e pela formação em nós<br />
representa o pensamento em movimento. Bem por isso, na plasticidade dos poemas que compõem<br />
Da morte... construída por meio da fanopéia, cristaliza-se a serpente valeriana esgueirando-se em<br />
contínuos retornos e metamorfoses, provocando na memória as reminiscências de um passado<br />
bíblico:<br />
1<br />
Observa-se que a complexidade da imagem, que não permite resolução exata, nos remete ao “princípio de incerteza”<br />
da Física. Platão dizia que um elemento podia transformar-se em outro, assim, “um poliedro de faces triangulares podia<br />
ter esses triângulos separados e depois juntados novamente numa forma diferente, dando-se então a transmutação dos<br />
elementos” (SCHENBERG, 2001: 28).<br />
2<br />
“A Serpente é, pois, acima de tudo, na simbólica valeriana, o ícone do pensar – uma atividade que ele tentou conduzir<br />
aos limites extremos: ‘Acostumar-se a pensar como a Serpente (penser en Serpent) que se come pela cauda. Pois aí está<br />
toda a questão. Eu ‘contenho’ o que me ‘contém’. E eu sou sucessivamente continente e conteúdo”. (VALERY Apud<br />
CAMPOS, 1984: 11).<br />
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Vinda do fundo, luzindo<br />
Ou atadura, escondendo<br />
Vindo escura<br />
Ou pegajosa lambendo<br />
Vinda do alto<br />
Ou das ferraduras<br />
Memoriosa se dizendo<br />
Calada ou nova<br />
Vinda da coita<strong>dez</strong><br />
Ou régia numas escadas<br />
Subindo<br />
Amada<br />
Torpe<br />
Esquiva<br />
Bem-vinda. 3<br />
(HILST: IV, 32)<br />
Essa imagem erótica, potencializada pela nasalização dos gerúndios e no interior das<br />
palavras, o que dá ao texto um aspecto escorregadio, serpenteia pelos diversos livros da autora, ora<br />
associada à morte, ora à própria palavra poética: duas faces do mesmo ser desejoso do Outro. Isso<br />
pode ser comprovado no poema III de Da Noite, texto que compõe o volume Do Desejo (2004):<br />
Vem dos vales a voz. Do poço.<br />
Dos penhascos. Vem funda e fria<br />
Amolecida e terna, anêmonas que vi:<br />
Corfu. No mar Egeu. Em Creta.<br />
Vem revestida às vezes de aspereza<br />
Vem com brilhos de dor e madrepérola<br />
Mas ressoa cruel e abjeta<br />
Se me proponho ouvir. Vem do Nada.<br />
Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.<br />
E sibilante e lisa<br />
Se faz paixão, serpente, e nos habita. (HILST, 2004: 31)<br />
O poema refere-se à voz ou à palavra do poeta e funda a semelhança morte-serpentepensamento,<br />
no aspecto escorregadio que se move de dentro do ser-poema. Se a imagem da cobra<br />
não aparece mais explicitamente em Da Morte..., o poema Da Noite lançado em 1992, doze anos<br />
após aquele, desenha o que em ícone já se reconhecia.<br />
Mas, chegar à morte é ter o conhecimento, ou seja, a via de acesso ao uno. Como que<br />
repetindo a função bíblico-inaugural de detentora do conhecimento (sophia), a serpente (ophis)<br />
relaciona-se com o proibido e a sua transgressão: a procura pelo conhecimento do sagrado<br />
metafísico (e, conseqüentemente, pelo auto-conhecimento ) nas espirais labirínticas do erótico.<br />
3<br />
Schenberg (2001: 130-1) ressalta a descoberta científica de que o homem possui como que três cérebros: um de réptil,<br />
um de mamífero e um mais racional, que é o córtex cerebral, parecido com um computador. É no cérebro mais antigo,<br />
de réptil, onde ocorrem mais reações químicas e onde estão as idéias mais profundas, além do fomento para a criação<br />
poética e grande parte da matemática.<br />
4<br />
“A serpente come a própria cauda. Mas é só depois de um longo tempo de mastigação que ela reconhece no que ela<br />
devora o gosto de serpente. Ela pára, então... Mas ao cabo de um outro tempo, não tendo nada mais para comer, ela<br />
volve a si mesma... Chega então a ter a sua cabeça em sua goela. É o que se chama ‘uma teoria do conhecimento”<br />
(CAMPOS, 1984: 113).<br />
5<br />
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Todavia, mais do que símbolo, a serpente se desenha iconicamente, serpenteando em<br />
especulações com suas idas e vindas frenéticas. Inscrita nas curvas dessa serpent-penser, o ser<br />
mutante morte é sensualmente corporificado até se dar a fusão dos corpos: “Duas fortes mulheres /<br />
Na sua dura hora.” (HILST: II, 30).<br />
Juntas. Tu e eu.<br />
[...]<br />
Dois cortes.<br />
Duas façanhas.<br />
E uma só pessoa (HILST: XXX, 58)<br />
Tal procedimento visa a antecipar-se ao próprio tempo, por meio do espaço físico do poema,<br />
numa geometria projetiva que abandona distâncias ou ângulos (SCHENBERG, 2001: 102), no<br />
intuito de reconciliar espírito e matéria, razão e sensação: “Como virás, morte minha? [...] Como me<br />
tomarás?” (HILST: V, 33); “Quando é que vem?” (HILST: XXIII, 51).<br />
Desvendar-lhe o “como” é encontrar sua essência, todavia, ainda num espaço impreciso do<br />
tempo. A perseguição se faz em via dupla: da mesma forma que o eu-poético persegue a morte, a<br />
morte o persegue como assinala, em ícone, o verbo no futuro “tomarás”. Mais do que a presença é a<br />
onipresença da morte, a despeito do descascamento imagético que ora satura, ora esvazia a imagem<br />
à medida que vão se sucedendo os nomes: “Brevíssima contração: / Te reconheço, amada” (HILST:<br />
VI, 34).<br />
Por mais que a imagem primeira encapsule outras, ela nunca será “exatamente”. Apenas no<br />
breve momento entre os movimentos de contração e expansão, ou seja, no momento da apreensão<br />
do texto poético, é que a imagem é (o que faz lembrar o instante-já clariceano). Nesse sentido,<br />
pode-se concluir que pensar / reconhecer / amar a própria morte é antecipar-se e morrer quantas<br />
vezes a razão permitir. Tal processo, conseqüentemente, leva ao renascimento proporcional às<br />
mortes ocorridas, graças ao pensamento que não segue uma direção única, mas repensa-se a si<br />
mesmo num fluxo-refluxo, cuja dança o intelecto não pode dar como acabada ou passível de ser<br />
concluída:<br />
Não compreendo. Apenas<br />
Tento<br />
[...]<br />
Somar teu corpo<br />
A meu pensamento (HILST: XXXVII, 65)<br />
A morte, na sua parcela física relacionada ao corpo-matéria, possui também elementos<br />
abstratos relacionados à não-vida e às questões primordiais da metafísica. Daí que, em nome da<br />
fusão do abstrato (pensamento) ao concreto (corpo), a poeta constrói incríveis manobras intelectivas<br />
na caracterização de uma morte, cujo conceito encontra-se entre ambos, ou na relação entre opostos:<br />
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Teu nome é Nada<br />
Um sonhar do universo<br />
No pensamento do homem:<br />
Diante do eterno, nada” (HILST: XX, 48)<br />
Porque é feita de pergunta<br />
De poeira.<br />
Articulada, coesa<br />
Persigo tua cara e carne<br />
Imatéria. (HILST: XIV, 42)<br />
Se infinita sobre a minha Idéia<br />
Se assemelha à Vida (HILST: XVII, 45)<br />
A morte-vida é incitada a pensar-se também, pois é ela quem ressoa como um eco na<br />
imaginação da poeta: “Morte, imagina-te” (HILST: VII, 35). Mas, se a imaginação é da poeta, se o<br />
temor é da poeta, a morte é ela mesma espelhada nas imagens que dançam em sua consciência:<br />
“Morte, te tomo [...] E intensa me retomo sob o sol” (HILST: XXIV, 52)<br />
Juntas. Tu e eu.<br />
[...]<br />
Dois cortes.<br />
Duas façanhas.<br />
E uma só pessoa (HILST: XXX, 58)<br />
Como se observa no desenrolar da análise, o movimento coreográfico de palavras no interior<br />
de outras possibilita os deslocamentos posicionais das imagens suscitadas no poema. Tais imagens<br />
reverberam numa espiral labiríntica, que ora se expande, ora se contrai no raciocínio; ora vai, ora<br />
volta, serpenteando o pensamento e espelhando a imagem da poeta em sua própria construção 5<br />
:<br />
Lenho, olaria, constróis<br />
Tua casa no meu quintal.<br />
E desde sempre te espio<br />
[...]<br />
Vezenquando te volteias<br />
Para que eu não me esqueça. (HILST: VIII, 36)<br />
Rasteja, voa, passeia<br />
Com toda lenteza<br />
Sobre a minha Idéia<br />
Em espiral. (HILST: XVII, 45)<br />
Fatalmente, a idéia da morte que volta a si mesma desemboca na reflexão metalingüística. O<br />
percurso labiríntico, não oferecendo saída, promove, por meio do jogo de espelhos, o encontro com<br />
a própria poesia. A investigação da morte, pretexto para o auto-reconhecer-se da poeta naquilo que<br />
só a ela pertence, torna-se barro edificado no papel:<br />
5<br />
“Como! Isto também sou eu – disse a serpente retorcendo-se para a ponta longínqua de sua cauda, e ela se espantava<br />
de fazê-la remexer-se de tão longe, sua e não sua!” (CAMPOS, 1984: 113).<br />
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Ao invés de Morte<br />
Te chamo Poesia<br />
Fogo, Fonte, Palavra viva.<br />
Sorte. (HILST: XIX, 47)<br />
A Morte, na verdade, figura como o fio condutor do seu ser-pensar e material poetizante<br />
intuitivo submetido ao rigor plástico do raciocínio intelectivo-poético. Portanto, sabendo-se perfil<br />
de um mesmo dracma, a poeta manipula a morte-consciência-poesia, através dos instrumentos da<br />
própria poética:<br />
E minha voz e cantiga?<br />
Meu verso, meu dom<br />
De poesia, sortilégio, vida?<br />
Ah, leva-os contigo.<br />
Por mim. (HILST: XI, 39)<br />
Se a vida e a morte são condições imanentes à própria poesia, ao poeta cabe a utilização<br />
instrumental, o versejar forte, devorador de si mesmo, e, parafraseando Valéry, o pensar levado às<br />
últimas conseqüências:<br />
Lego-te os dentes.<br />
[...]<br />
Minha couraça. Meu bandolim.<br />
Escrita e torso.<br />
[...]<br />
Procura, na minha hora,<br />
Entre sarrafos e palha<br />
O que restou de mim<br />
À tua procura. (HILST: XL, 68)<br />
A partir de dois processos imaginativos diferentes – no qual um vai da palavra à imagem e,<br />
outro, da imagem à expressão verbal – a poeta cria um conceito sensível-inteligível da morte. A<br />
sucessão de nomes/imagens, cada uma englobando e ampliando a anterior, aponta para uma visão<br />
plural e multifacetada do ser num conceito sensível-inteligível que, paradoxalmente, firma sua<br />
precisão nesse ambiente impreciso da poesia.<br />
A paixão especulativa, portanto, conduz o eu-lírico do abstrato (tema) para o concreto<br />
(imagens) e deste para uma subjetividade exasperada, pois que, na tentativa de limitar seu objeto,<br />
amplia-o em demasia desfocando sua forma e visibilidade/dizibilidade. Dessa forma, sob o<br />
invólucro da imaginação, a metafísica se inscreve enquanto morte da própria palavra e contínuo<br />
renascimento vindo de seu infinito possível e de seu inominável imanente e permanente: é a poesia<br />
metafísica de Hilda Hilst tentando traduzir uma totalidade que escapa ao homem e ao poeta.<br />
Conclui-se, então, que o fracasso na presentificação do ser é o sucesso da representação<br />
poética, que se alimenta desse indizível essencial ao ser humano. Mas, essa indizibilidade faz com<br />
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que o inominável continuamente escape-lhe pelos vãos dos dedos. Por isso, a poeta ousa, ainda,<br />
atravessar os limites da idéia em favor das exigências sensórias.<br />
Do erotismo da forma à pornografia vernacular<br />
A busca dos aspectos sensíveis para tornar visível o invisível intensifica-se no volume<br />
Poemas malditos, gozosos e devotos (2005):<br />
É neste mundo que te quero sentir<br />
É o único que sei. O que me resta.<br />
Dizer que vou te conhecer a fundo<br />
Sem as bênçãos da carne, no depois,<br />
Me parece a mim magra promessa.<br />
[...]<br />
Dirás que o humano desejo<br />
Não te percebes as fomes.<br />
Sim, meu Senhor,<br />
Te percebo.<br />
Mas deixa-me amar a ti, neste texto<br />
Com os enlevos<br />
De uma mulher que só sabe o homem. (HILST: VIII, 31)<br />
Abre teus olhos, meu Deus,<br />
Come de mim a tua fome. (HILST: XVII, 53)<br />
Observa-se, no desenrolar dessa composição, a construção do próprio espaço como imagem<br />
da idéia de Deus. Em Newton a concepção de espaço concordava com sua idéia a respeito de figura<br />
divina: para ele, “é como se Deus tivesse órgãos sensoriais, e o espaço fosse exatamente o sensório<br />
de Deus” (SCHENBERG, 2001: 39). No espaço, tanto físico quanto poético, embora haja um<br />
principio causal, é a simultaneidade que prevalece.<br />
Essa postura agressiva da poeta intensifica-se ainda mais no volume Do desejo (2004): o<br />
sexo será continuamente reclamado por se tratar do mais primitivo contato do homem com o outro<br />
e, por isso, essencial para tocar o sensível, o inefável: “Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo. /<br />
Pensá-LO é gozo. Então não sabes? / INCORPÓREO É O DESEJO” (HILST: X, 26); “Extasiada,<br />
fodo contigo / Ao invés de ganir diante do Nada” (HILST: I, 17)<br />
O corpo físico vai se tornando o único lugar possível ao encontro com Deus:<br />
Olhando o meu passeio<br />
Há um louco sobre o muro<br />
Balançando os pés.<br />
Mostra-me o peito estufado de pêlos<br />
E tem entre as coxas um lixo de papéis:<br />
– Procura Deus, senhora? Procura Deus?<br />
E simétrico de zelos, balouçante<br />
Dobra-se num salto e desnuda o traseiro. (HILST: III, Via Espessa, 67)<br />
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A imagem do ânus como o “lugar” físico possível para se construir a idéia do sagrado é uma<br />
constante que reaparece por toda a obra hilstiana e possui grande carga de significação, pois se trata<br />
de um corpo “estranho” nas artes poéticas que abala o espaço impreciso do poema. Entretanto, o<br />
retorno ao corpo físico desnuda um processo metafísico que não busca extrapolar o corpóreo, mas<br />
inscrever-se nele mesmo, reforçando-o através de signos “proibidos”.<br />
A parcela de poemas pornográficos hilstianos é carregada por nomes que, freqüentemente,<br />
não habitam o solo sagrado da “grande poesia” e que, no entanto, ao modo do conceito recriado da<br />
Morte, por meio do movimento que impossibilita a nomeação final do objeto, atingem status<br />
poético. Ou seja, trata-se de uma variante da mesma técnica de enumeração nomeadora, observada<br />
pela perspectiva geometrizante do pensamento que compõe uma linha, ora mirando o sublime, ora o<br />
grotesco.<br />
Todavia, aqui, não se parte de um conceito informe, mas de uma imagem que possui uma<br />
forma físico-concreta. Os lugares mais recônditos do corpo, orifícios ou protuberâncias, desde<br />
sempre escondidos para não se mostrar/revelar, são os espaços mais promissores para a construção<br />
do conhecimento. Isso porque o corpo é o que há de material mais imediato ao homem, é através<br />
dele que o homem se reconhece como indivíduo (MORAES, 2002: 60). Portanto, física e<br />
textualmente, a poeta foca os genitais masculinos e femininos, expondo seus contornos e anomalias,<br />
mais uma vez, na tentativa de delimitar uma forma no espaço.<br />
A metafísica dessa “antipoesia” consiste em virar a poesia ao avesso metafórico, isto é, ao<br />
invés de partir de uma metáfora poética para a coisa em si, usa-se seu nome-mesmo.<br />
Evidentemente, o princípio metafórico encontra-se no interior de todo processo de simbolização<br />
(PAZ, 1982: 41), entretanto, nestes textos, o que se chama não-metáfora ou nome-mesmo é uma<br />
imagem que se pretende estática.<br />
Paul Ricoeur (2000) denomina “metáfora morta” aquela que não se expande em<br />
significação. Ele observa ainda que a usura da metáfora faz com que ela se pareça com o próprio<br />
conceito. Assim, se a metáfora poética causa estranhamento, pois funciona como um véu que<br />
encobre uma imagem primeira (a qual cabe ao leitor des-velar e estabelecer a relação entre ambas),<br />
na pornografia hilstiana ocorre um processo inverso: a poeta dá, de chofre, sem véu, a imagem<br />
primeira em zoom, impossibilitando o des-velamento.<br />
Entretanto, por se tratar do espaço da poesia, o estranhamento persiste, pois a relação insiste<br />
em se materializar a despeito da artimanha poética que entregou o processo concluído. Diz-se<br />
artimanha, porque a poeta quebra com o princípio erótico da poesia, o de não revelar, mas ocultar,<br />
instituindo assim a pornografia da palavra (BARTHES, 1999: 16). A pornografia lingüística, por<br />
sua vez, leva à perda da aura de mistério, a qual coincide com a implosão significativa. Nesse<br />
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contexto, o leitor sente-se privado de “luci<strong>dez</strong> poética”, ou seja, de dispor, analisar, imaginar,<br />
abstrair, dar forma ao pensamento.<br />
Resta-lhe, portanto, persistir na elaboração de um diagrama relacional, pois, mesmo abalado<br />
o processo de investigação metafórica, cumpre-lhe elaborar, a partir dessa imagem primeira, um véu<br />
que a encubra, já que “o objeto idêntico a si mesmo perde a sua realidade” (MORAES, 2002: 69).<br />
O exposto pode ser exemplificado com o poema O reizinho gay de Bufólicas (2002), livro<br />
que complementa a trilogia narrativa pornográfica:<br />
Mudo, pintudão<br />
O reizinho gay<br />
Reinava soberano<br />
Sobre toda a nação.<br />
Mas reinava...<br />
APENAS...<br />
Pela linda peroba<br />
Que se lhe adivinhava<br />
Entre as coxas grossas<br />
Quando os doutos do reino<br />
Fizeram-lhe perguntas<br />
Como por exemplo<br />
Se um rei pintudo<br />
Teria o direito<br />
De somente por isso<br />
Ficar sempre mudo<br />
[...]<br />
E daí em diante<br />
Sempre que a multidão<br />
Se mostrava odiosa<br />
Com a falta de palavras<br />
Do chefe da Nação<br />
O reizinho gay<br />
Aparecia indômito<br />
Na rampa ou na sacada<br />
Com a bronha na mão.<br />
E eram ós agudos<br />
Dissidentes mudos<br />
Que se ajoelhavam<br />
Diante do mistério<br />
Desse régio falo<br />
Que de tão gigante<br />
Parecia etéreo<br />
E foi assim que o reino<br />
Embasbacado, mudo<br />
Aquietou-se sonhando<br />
Com seu rei pintudo.<br />
Mas um dia...<br />
Acabou-se da turba a fantasia<br />
O reizinho gritou<br />
Na rampa e na sacada<br />
Ao meio-dia:<br />
[...]<br />
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E quero sem demora<br />
Um buraco negro<br />
Pra raspar meu ganso.<br />
Quero um cu cabeludo!<br />
[...]<br />
Moral da estória:<br />
A palavra é necessária<br />
Diante do absurdo (HILST: 11-4)<br />
Observa-se que pintudão, peroba, pintudo, bronha são termos não usuais poeticamente e<br />
remetem, apenas, à forma física, ou seja, não se expandem ou encapsulam outros significados.<br />
Nesse sentido, tais termos, se não literais, podem ser considerados primitivos, pois não se bifurcam<br />
para outros campos semânticos, carregando sempre a mesma imagem (pênis). Por isso, esses<br />
significantes sobressaem na leitura e desorientam a apreensão metafórica, pois se “o não-dito da<br />
metáfora é a metáfora usada” (RICOEUR, 2000: 439), eles perderam seu grau de metaforicidade ao<br />
dizer o todo do que representam.<br />
A auto-revelação do poema, ou o pornográfico, ao expor o que deve estar oculto, leva à<br />
mu<strong>dez</strong> da palavra. A metáfora morta, estancada nela mesma, acaba não dizendo nada e instaurando<br />
o vazio de significado. Entretanto, conforme Schenberg, o vazio é o estado fundamental do campo,<br />
pois aponta, tanto para a falibilidade sígnica, quanto para a potência da palavra que não se rende<br />
ante ao continuum do pensamento.<br />
Portanto, reviver a metáfora morta, ou descascá-la em busca de uma imagem outra, é<br />
desmascarar o falso conceito. Cabe ao leitor reavivar o símbolo, num movimento especulativo,<br />
acionando as oposições características da metafísica: sensível/espiritual, sensível/inteligível,<br />
sensível/sentido.<br />
O espaço dessas relações vacila entre a harmonia-desarmonia, porém, é na desarmonia, ou<br />
no caos criador, que a metáfora morta pode ser reavivada. A desarmonia, provocada pela colisão de<br />
opostos lingüísticos – termos no aumentativo e diminutivo (pintudão/reizinho), termos cultos e<br />
chulos (indômito/pintudo) – revelam, através de elementos díspares, um conflito: rei condensa a<br />
semântica da desigualdade, gay condensa a semântica da igualdade. Diante dessa situação, o<br />
reinado dá-se “apenas” e “a(s) penas”, conforme a ênfase adverbial.<br />
Ademais, ao ser surpreendido no final com uma “moral da estória”, o leitor é incitado ainda<br />
mais a “velar para desvelar” e, assim, chegar a um conceito. O “absurdo” é justamente aquilo que<br />
escapa à palavra, o indizível/inominável que não se submete ao dizer/nomear. Portanto, é a<br />
metafísica descendo aos lugares mais baixos para pensar a relação entre a palavra poética e o objeto<br />
de representação.<br />
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Na expectativa de desvendar o enigma poético e se a palavra é “necessária diante do<br />
absurdo”, é preciso se agarrar a uma palavra para organizar o espaço caótico do texto. O verso-<br />
advérbio “APENAS...”, grafado em enfáticas letras maiúsculas e, à primeira vista, desnecessário à<br />
compreensão, sozinho não remete à imagem alguma, mas transforma-se em imagem atrativa, ou<br />
seja, estabelece novas associações significativas: (A)PENAS > penas > pena > pintudão > pinto ><br />
Reizinho > pintudo > ganso. A seqüência garante ao leitor um véu e a possibilidade de retirá-lo.<br />
Todavia, ao esbarrar, novamente, na moral da estória, ele se surpreende com uma ironia sagaz: o<br />
texto é absurdo pelo seu alto grau de evidência.<br />
O leitor, não estando preparado para o óbvio, insiste em atribuir-lhe roupagens<br />
desnecessárias, pois o que depreende da poesia não é um conhecimento extrapoético, mas<br />
intrapoético. É poesia que fala dela mesma e da imanência metafísica na impossibilidade de<br />
nomeação/conhecimento integral, tanto do abstrato quanto do concreto. Talvez por isso, a parcela<br />
pornográfica de Hilda Hilst tenha sido tão pouco entendida: justamente por não ser.<br />
Observa-se, assim, que o espaço do poema configura-se como um campo de batalha para a<br />
linguagem resolver seus conflitos lingüísticos e semânticos. No interior destas “metáforas-mortas”,<br />
é possível observar uma situação poético-físico-textual que rompe com a hierarquia vernacular, em<br />
favor da capacidade lingüística de presentação do mundo. Somada a esta, uma situação de busca<br />
metafísica pelo conhecimento, que não se rende à extrapolação do corpóreo, mas investe no retorno<br />
ao corpo físico, desnudando signos proibidos. Linhas que se cruzam em significação, mas não se<br />
fecham em nenhum significado.<br />
Na arena poética hilstiana, expõe-se o conflito mu<strong>dez</strong> x falo (o pênis desdobrado em língua<br />
fálica, instrumento para a celebração da fecundidade da palavra). Todavia, materializa-se na<br />
anomalia fálica, exposta no poema pelo seu tamanho desproporcional, a impotência da palavra em<br />
dizer o todo. A verdade poética não está no que se fala, mas no que se cala no poema e que traduz a<br />
dialética do procedimento metafísico que é a “ânsia de perseguir a emoção abstrata em termos de<br />
coisas, essa coisificação dos conceitos através dos sentidos” (CAMPOS, 1998: <strong>12</strong>8. Grifos do<br />
autor).<br />
A metáfora morta esconde ao ser exposta: há sempre um buraco, um vazio, uma ausência<br />
que constituem o empreendimento poético, conforme se verifica no fragmento abaixo:<br />
Dissidentes mudos<br />
Que se ajoelhavam<br />
Diante do mistério<br />
Desse régio falo<br />
Que de tão gigante<br />
Parecia etéreo<br />
E foi assim que o reino<br />
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Embasbacado, mudo<br />
Aquietou-se sonhando<br />
Com seu rei pintudo (HILST: <strong>12</strong>)<br />
Embora possam parecer versinhos tolos, o contato primitivo e carnal com o corpo físico-<br />
textual, escancarado em termos considerados marginais na poesia, tem intenção fundadora de<br />
linguagem. Linguagem inaugural fundada/fundida ao corpo como via de acesso ao conhecimento do<br />
mundo. Recriar o sensível carnal destituído do elemento poético, e, a partir daí, provocar a sua<br />
percepção por meio da exploração e investigação do mundo simbólico:<br />
E quero sem demora<br />
Um buraco negro<br />
Pra raspar meu ganso.<br />
Quero um cu cabeludo! (HILST: 14)<br />
Mais uma vez, o cu como o buraco negro cósmico engole tudo que está ao seu redor. O<br />
pornográfico nivela a linguagem, possibilitando o embate entre as palavras e mostrando que, uma<br />
vez no poema, a palavra pornográfica – ou “antipoética” – é parte integrante, regra e não exceção:<br />
“Moral da estória: / A palavra é necessária / Diante do absurdo” (HILST: 14).<br />
Sem a palavra antipoética o poema torna-se mudo, tanto no sentido de inexpressivo, como<br />
no de mudança; seria outro que não ele mesmo. Nesse sentido, se necessária à materialização do<br />
poema, a palavra antipoética já se tornou poética. Assim, partindo do grotesco, visto como elemento<br />
exterior, Hilda Hilst elabora uma revisão conceitual dos “nomes feios” tornando-os nomes poéticos,<br />
ou atribuindo-lhes poeticidade.<br />
A paixão especulativa, na vertente pornográfica, conduz o eu-lírico do concreto (imagens)<br />
ao abstrato (inominável) já que, na tentativa de reduzi-lo a si próprio, aproxima-se em demasiado<br />
desfocando, também, sua visibilidade e dizibilidade. Elabora-se, portanto, um processo análogo ao<br />
processo seguido em Da morte..., porém em direção oposta. Se no primeiro a poeta, a partir de<br />
infinitas imagens, desenha uma linha ascendente em expansão para construir um conceito abstratoconcreto,<br />
aqui, a poeta busca fixar na (pretensa) imobilidade da mesma imagem, um ponto para o<br />
qual tudo converge, construindo um conceito concreto-abstrato que mesmo parecendo dizer, ainda<br />
assim, não diz.<br />
Referências<br />
BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.<br />
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.<br />
CAMPOS, Augusto de. Verso, Reverso, Controverso. São Paulo: Perspectiva, 1988.<br />
______. Paul Valery: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984.<br />
CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: EdUSP, 2000.<br />
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HILST, Hilda. Bufólicas. São Paulo: Globo, 2002.<br />
______. Da Morte. Odes Mínimas. São Paulo: Globo, 2002.<br />
______. Do Desejo. São Paulo: Globo, 2004.<br />
______. Poemas malditos, gozosos e devotos. São Paulo: Globo, 2005.<br />
MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002.<br />
PAZ. Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.<br />
POUND, Ezra. A arte da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1991.<br />
RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000.<br />
SCHENBERG, Mário. Pensando a Física. São Paulo: Landy, 2001.<br />
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O NASCIMENTO DA LITERATURA DO ESPÍRITO DA FICÇÃO:<br />
UM ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE<br />
OS CONCEITOS DE FICÇÃO E OS DE LITERATURA<br />
Júlio França *<br />
Resumo: O ensaio pretende investigar as relações entre os conceitos de ficção e os de literatura, partindo da<br />
hipótese de que somente após os homens reconhecerem algo como sendo da ordem do ficcional – isto é,<br />
somente depois que o entendimento humano concebe a ocorrência de fenômenos cuja característica essencial<br />
é a de situarem-se entre os domínios do real e do falso – faz sentido pensar numa circunscrição específica<br />
dos discursos que chamamos, modernamente, de Literatura. Para tanto, dividiu-se o artigo em três etapas: em<br />
primeiro lugar, descreve-se o conceito operacional de literatura adotado ao longo do trabalho. Em seguida,<br />
apresenta-se uma súmula do percurso da pesquisa, num esforço de mapear o desenvolvimento da reflexão<br />
aqui proposta, a partir da tentativa de identificar a origem da idéia de ficção entre os gregos antigos. Por fim,<br />
toma-se a obra de Luis Costa Lima para uma discussão sobre os conceitos de mímesis e de sua importância<br />
para o desenvolvimento de nossa hipótese inicial.<br />
Palavras-chave: Conceito de Literatura; Ficção; Mímesis.<br />
1. Uma hipótese e um problema conceitual<br />
“A gênese da literatura está ligada ao surgimento da idéia de ficção”. O que poderia<br />
significar uma afirmação hipotética como esta?<br />
A assertiva contém em si dois conceitos por si só problemáticos: “Literatura” e “Ficção”.<br />
Especialmente no que se refere à conceituação da primeira, há, no universo dos estudos literários,<br />
uma “dissonância harmônica” entre os que garantem ser ilegítima qualquer definição – porque<br />
literatura significaria apenas e tão-somente qualquer coisa indicada como tal pelos falantes, não<br />
possuindo nenhum significado essencial para além do consenso de um grupo social, em<br />
determinado momento histórico – e aqueles que <strong>jul</strong>gam impossível uma definição – devido ao<br />
caráter protéico da literatura, sempre insubmissa a categorizações. No uso cotidiano, porém,<br />
domínio da palavra, não do conceito, parece haver um inefável sentido implícito que nos permite<br />
um entendimento comum. Proponho então que, de modo provisório, deixemos em aberto tais<br />
definições e que procuremos elaborá-las ao longo deste ensaio.<br />
Retorno então à nossa hipótese inicial, mas, atento ao problema dos conceitos, reapresento-a<br />
do seguinte modo: “Somente após os homens reconhecerem algo como sendo ficção – isto é,<br />
somente depois que o entendimento humano concebe a ocorrência de fenômenos cuja característica<br />
é situar-se entre os domínios do real e do falso – faz sentido pensar em Literatura”.<br />
* Doutor em Literatura Comparada (UFF), Professor Adjunto de Teoria da Literatura (UERJ).
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Essa nova proposição implica uma primeira determinação de alguns aspectos conceituais.<br />
Por “Ficção”, proponho agora que se compreenda uma classe de objetos e eventos que se<br />
caracterizariam por exigir do sujeito uma transformação em seus processos cognitivos. Estou<br />
postulando que os objetos ou os eventos ficcionais não podem ser compreendidos através das<br />
mesmas categorias a que são submetidos os objetos, os seres, os eventos e os discursos tomados<br />
como descrições da realidade. Caso contrário, deixariam de ser “ficções” para se tornarem ilusões,<br />
enganos, simulacros, mentiras.<br />
Em relação ao conceito de Literatura, submetido, neste primeiro momento, ao de Ficção,<br />
será necessário também um posicionamento: (I) entenderemos Literatura de tal modo que o atributo<br />
“literário” refira-se a algo presente no campo lingüístico? A marca que caracterizaria algum objeto<br />
como sendo “literatura” seria, portanto, efeito de um uso específico da linguagem verbal? (II)<br />
entenderemos a literatura como um comportamento social institucionalizado por alguns códigos de<br />
sentidos? Seria então “literatura” um conceito histórico que englobaria uma determinada prática<br />
cultural, circunscrita a limites espaciais e temporais?<br />
Estaríamos assim diante de uma pergunta tradicional nos estudos literários: a literatura é um<br />
objeto ou uma relação? Ou melhor: a literatura é um objeto que determina uma relação ou viceversa?<br />
Num esforço de simplificação, podemos dizer que mesmo que admitíssemos a existência da<br />
“literariedade”, ou de um uso de linguagem que se poderia chamar de “poético”, ainda teríamos de<br />
lidar com os modos de emprego e com os efeitos deste uso em determinados contextos sociais – o<br />
que nos leva a crer que os termos desta equação não se excluem mutuamente.<br />
Não se quer dizer com isso que tal pergunta seja vã e que o engajamento a uma ou a outra<br />
concepção seja livre de conseqüências teóricas. No comentário preciso de Fortini:<br />
Quando [...] se contesta a existência da literariedade [...] e se conclui que literário é apenas o<br />
que determinadas sociedades definem como tal, pretende-se [...] indicar, por ódio às<br />
investigações essencialistas, a relatividade histórica da noção de literatura. Mas [...] corre-se<br />
o risco de não avaliar o que nela há de comum entre a separação institucional dos textos<br />
literários, por exemplo, do século XIX francês ou inglês e a de épocas e sociedades remotas<br />
ou de culturas diversas. (FORTINI, 1989: 190-1)<br />
Sendo nossa hipótese de trabalho a possível relação entre os “surgimentos” da ficção e da<br />
literatura na Grécia Antiga, parece que estamos alinhados a uma certa concepção essencialista dos<br />
fenômenos literários – fenômenos estes que existiriam independentemente desta ou daquela noção<br />
contida sob o vocábulo “literatura”. Afinal, estamos trabalhando com a idéia de que havia algo que<br />
pode ser chamado de “literatura grega antiga”, mesmo antes da existência do termo.<br />
Posicionamentos como este são alvos de certo tipo de crítica, que <strong>jul</strong>ga serem tais<br />
formulações alheias aos papéis históricos desempenhados pelas experiências culturais relacionadas<br />
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com as chamadas “artes verbais”. Por este prisma, postular a existência de literatura em tempos tão<br />
remotos ignoraria, especialmente, o processo de reconcepção do status dos discursos ocorrido nos<br />
séculos XVIII e XIX (Cf. SOUZA, 2006: 16-7). Há mesmo uma outra orientação para este<br />
problema, baseada numa hipótese de cunho nominalista: Michel Foucault, numa conferência em<br />
1964, argumentava que a “literatura” não é assim tão antiga quanto tendemos a acreditar, mas<br />
“extremamente jovem em uma linguagem bastante velha” (FOUCAULT, 2000: 173). Se há<br />
milênios ocorrem fenômenos de linguagem que nos acostumamos a chamar de “literários”, isso não<br />
evidenciaria a presença de nossa concepção de literatura em momentos históricos tão distantes<br />
quanto a Grécia ou a Roma Clássicas.<br />
O ensaísta situará entre o final do século XVIII e o início do XIX, em torno de nomes como<br />
Chateaubriand e Mme. de Staël, o aparecimento desta forma especial de uso da linguagem. Antes<br />
disso, a acepção clássica de ‘literatura’ apenas designara, no século XVII “a familiaridade de<br />
alguém com a linguagem corrente, com as obras de linguagem” (FOUCAULT, 2000: 140). Em<br />
outras palavras, Foucault afirma que, sendo o termo ‘literatura’ recente, também o seriam os fatos<br />
literários, “razão por que expressões como ‘literatura grega antiga’, mais do que anacronismos,<br />
encerrariam verdadeiros nonsenses ontológicos” (SOUZA, 2006: 23).<br />
Segundo Foucault, apenas quando o homem passa a desacreditar na capacidade de algum<br />
uso da linguagem humana traduzir o inefável, o incognoscível, o sagrado, dá-se a possibilidade do<br />
nascimento de uma consciência crítica a respeito do ser da literatura. A obra literária se esgotava, e<br />
“por razões puramente históricas, a literatura só foi capaz de se dar a si mesma como objeto”<br />
(FOUCAULT, 2000: 141). Teria sido o exato momento em que as normas da retórica e da poética<br />
clássicas caíram em desgraça, e a literatura passou, ela própria, a estar “encarregada de definir os<br />
signos e os jogos pelos quais ela vai ser, precisamente, literatura” (FOUCAULT, 2000: 147).<br />
Percebe-se, na reflexão de cunho nominalista de Foucault, uma estranha visada ontológica<br />
pela qual a literatura só passa a existir quando se constitui um ser autônomo, auto-reflexivo e<br />
autotélico. Tal concepção de literatura é um produto de forças históricas que se fazem bastante<br />
visíveis a partir de meados do século XVIII. O que Foucault parece estar dizendo, de modo<br />
surpreendentemente tautológico, é que a literatura, como a entendemos hoje, existe apenas desde<br />
que a entendemos deste modo... Ou seja, sua convicção de que somente na modernidade a literatura<br />
pode existir justifica-se tão-somente porque seu conceito de literatura é estritamente moderno.<br />
A inconsistência deste argumento revela-se já pela inexatidão de algumas de suas premissas.<br />
Entre elas, uma imprecisão filológica: o termo literatura não é tão recente quanto o filósofo nos faz<br />
supor. A etimologia da palavra leva-nos à língua latina, litteratura, um neologismo para litterae,<br />
coletivo de littera (letra do alfabeto). Litterae significa, a princípio, “carta” e depois, por extensão,<br />
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“qualquer tipo de obra escrita”, além de “instrução, cultura”. Cícero (séculos II-I a.C.) já emprega<br />
tanto litterae quanto litteratura. Quintiliano (séculos I-II d.C.) emprega litteratura no sentido de<br />
conhecimento de ler e escrever. O percurso da palavra estende-se até o século XIV quando litterato<br />
indicava tanto o alfabeto quanto o homem de saber laico, como também qualquer coisa escrita com<br />
letras. O sentido de pessoa culta é conservado durante o Renascimento e será somente entre os<br />
séculos XVIII e XIX, com o advento da cultura romântico-burguesa, que os sentidos de escritos de<br />
imaginação, de invenção, artísticos e de função estética se tornam as principais acepções da palavra<br />
(FORTINI, 1989. passim).<br />
Há ainda outra fragilidade na argumentação de Foucault. Não parece ser correto afirmar que<br />
a desconfiança sobre o caráter “sagrado” da escrita seja um fenômeno exclusivo do século XIX. A<br />
distinção entre litteratura (um conjunto de textos cujo conteúdo refere-se a humanidades em geral)<br />
e scriptura (textos que abrangem tanto a Sagrada Escritura quanto tratados de teor religioso)<br />
remonta a escritores como Tertuliano e Cassiano, do século II d.C.. No Renascimento, a existência<br />
da expressão litterae humanae confirma a permanência de uma separação entre letras seculares e<br />
sagradas (Cf. SOUZA, 2006: 1-3).<br />
Uma terceira inconsistência da hipótese nominalista de Foucault é apontada por Roberto<br />
Acízelo de Souza: tanto a identificação de uma certa modalidade discursiva específica (que hoje<br />
chamamos de “literatura”) quanto as tentativas de se reconhecê-la em termos teóricos e analíticos,<br />
ao contrário do que Foucault postula, são antigas. Tomado o vasto âmbito da linguagem verbal, a<br />
circunscrição “literatura” ou suas, digamos sem muito rigor, equivalências históricas não são,<br />
exatamente, uma invenção de nossos dias. Como exemplo, cita um trecho da Poética, de<br />
Aristóteles, que transcrevo abaixo:<br />
se alguém compuser em verso um tratado de medicina ou de física, esse será vulgarmente<br />
chamado de “poeta”; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a<br />
não ser a metrificação: aquele merece o nome de “poeta”, e este, o de fisiólogo, mais que o<br />
de poeta. Pelo mesmo motivo, se alguém fizer obra de imitação, ainda que misture versos de<br />
todas as espécies [...] nem por isso se lhe deve recusar o nome de “poeta” (ARISTÓTELES:<br />
1991: 202).<br />
Observa-se já em Aristóteles o esforço de se distinguir especificidades discursivas. No caso<br />
em questão, o filósofo encontra na mímesis, mais do que na métrica, o aspecto mais significativo do<br />
tipo de discurso que ele identifica como poiésis. Acízelo nota ainda que a existência de<br />
características específicas a certos modos discursivos “independe da disponibilidade de uma palavra<br />
genérica que os nomeie, contrariando-se assim o pressuposto nominalista de que o designans é no<br />
caso em apreço coextensivo ao designatum” (SOUZA, 2006: 33). Como exemplo, novamente<br />
Aristóteles:<br />
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Mas [...] a arte que apenas recorre ao simples verbo, quer metrificado quer não, e, quando<br />
metrificado, misturando metros entre si diversos ou servindo-se de uma só espécie métrica –<br />
eis uma arte que, até hoje, permaneceu inominada. Efetivamente, não temos denominador<br />
comum que designe os mimos de Sófron e de Xenarco, os diálogos socráticos e quaisquer<br />
outras composições imitativas, executadas mediante trímetros jâmbicos ou versos elegíacos<br />
ou outros versos que tais (ARISTÓTELES: 1991: 201)<br />
Dessa crítica a Foucault, podemos tirar alguns balizamentos importantes para o<br />
desenvolvimento de nosso trabalho. Refiro-me, sobretudo, a como tanto o termo “literatura” quanto<br />
a modalidade discursiva que se destaca dos textos sagrados e religiosos, dos discursos da Verdade<br />
(científicos, filosóficos) e dos discursos pragmáticos gerais têm um longo percurso na cultura<br />
ocidental. Se é correto se duvidar de abordagens que procurem entender, a partir de parâmetros<br />
analíticos e valorativos contemporâneos, produtos discursivos de outros momentos históricos, não é<br />
exato refutar a possibilidade de falarmos em “obras literárias” de períodos como a Grécia Clássica<br />
simplesmente porque seriam concepções anacrônicas à palavra ou ao nosso entendimento<br />
contemporâneo do termo. A conceituação de uma atividade cultural humana não pode ser elaborada<br />
tomando-se exclusivamente a forma atual do objeto, como se esta fosse definitiva, mais<br />
aperfeiçoada ou exata. Entre o conceito teórico e o objeto concreto há de haver uma instância<br />
intermediária de enunciados que postulem, com algum grau de idealização, algum elemento transhistórico,<br />
não como algo fixo, imutável e fora da ação do tempo, mas como algo que, de algum<br />
modo, permanece, ainda que com diferenças, ao longo do tempo. Apenas neste sentido <strong>jul</strong>go<br />
possível uma atividade reflexiva que mantenha uma resistência e uma distância do objeto cultural<br />
concreto. Do contrário, qualquer teoria literária corre o risco de se converter num contínuo<br />
referendar a criação artística de seu tempo, sem condições de criticar o valor de tais práticas.<br />
O entendimento contemporâneo hegemônico de literatura não pode ser privilegiado como<br />
sendo o produto mais bem acabado de uma linha evolutiva conceitual. Ainda que se recuse a<br />
chamar de literários textos produzidos antes da existência da palavra “literatura”, não se pode negar<br />
a existência de uma certa produção discursiva que ocupava, no nosso caso específico, a cultura<br />
grega antiga, um espaço próprio. É este tipo de produção textual, que não se alinha nem com os<br />
discursos religiosos ou sagrados, nem com os discursos da verdade (científica ou filosófica), que<br />
surgirá, assim estamos propondo, a partir do surgimento da idéia de ficção.<br />
Penso ter estabelecido um campo mínimo de trabalho, a partir do qual posso falar agora em<br />
literatura sem tantas ambigüidades conceituais. Reformulo, então, novamente a hipótese inicial:<br />
“Somente após os homens reconhecerem algo como sendo da ordem do ficcional – isto é, somente<br />
depois que o entendimento humano concebe a ocorrência de fenômenos cuja característica essencial<br />
é a de situarem-se entre o domínio do real e do falso – faz sentido pensar numa circunscrição<br />
específica dos discursos que chamaremos, modernamente, de Literatura. Passo então a lidar<br />
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diretamente com a idéia do surgimento da ficção, tentando compreender como ocorreu, entre os<br />
gregos antigos, a transformação no entendimento humano que faz com que determinados discursos<br />
ou objetos sejam apreendidos não mais como elementos da realidade imediata, mas como<br />
construções técnicas que produzem um certo efeito de realidade.<br />
2. Notas de percurso: no rastro da origem da ficção<br />
No livro II da República, na passagem em que se discute o tipo de educação a ser dada aos<br />
guardiães (ginástica, para o corpo, e musiké 1<br />
, para a alma), Sócrates pergunta a Adimanto se ele<br />
considera que se deve incluir o lógos entre os ensinamentos da musiké. Diante do assentimento de<br />
seu interlocutor, Sócrates pondera:<br />
– São duas as espécies de discursos [lógos], a dos verdadeiros e a dos falsos?<br />
– Sim.<br />
– Devemos educá-los [os jovens] com ambos, mas primeiro com os falsos [pseudós]?<br />
– Não estou entendendo o que dizes, disse.<br />
– Não entendes, disse eu, que primeiro contamos mitos às crianças? No seu todo, eles são<br />
mentirosos, mas neles há verdades também. (PLATÃO, 2006: 74)<br />
Sócrates refere-se a uma espécie de lógos que denomina de pseudós. A serena anuência de<br />
Adimanto indica que a idéia de uma região intermediária entre a verdade e a mentira e a aceitação<br />
de um tipo de lógos que não comunica o real já não eram novidades a esta altura do século IV a.C.<br />
Não se tratava, porém, de um tema consolidado e livre de contradições, mas de um elemento central<br />
em uma querela que se arrasta até nossos dias: a diaphorá entre Filosofia e Literatura, o embate, no<br />
campo do lógos, pelo direito e pelo poder de revelar a verdade.<br />
Por tradição, a poesia era uma das detentoras da alétheia<br />
Em sua etimologia, a raiz da palavra lógos, [lég-], remete a dois sentidos do verbo “contar”<br />
em português: I) o de “computar, verificar o número, a quantidade de algo”; II) o de “narrar,<br />
relatar”. Platão propõe um melhor ajuste do significado com a expressão dídonai lógon, algo como<br />
2<br />
. Os filósofos passaram a contestar<br />
essa supremacia, alegando que a verdade revelada pela poesia, por não apresentar a forma de um<br />
discurso argumentativo, estaria num plano além (ou aquém?) dos limites do conhecimento humano.<br />
A “revelação” da poesia não seria um saber efetivo, pois não poderia ser subsumida ao rigor de uma<br />
techné. Para comentadores como Havelock (1996), A República, encenaria justamente o conflito<br />
entre a tradição oral representada pela poesia e a emergência de novos saberes, representados pela<br />
Filosofia. A proposição de Platão é a de que se chamasse de lógos ao discurso filosófico e de<br />
mýthos ao tipo de narrativa presente na poesia (literatura).<br />
1<br />
“Artes das musas” e não simplesmente “música” como aparece na tradução citada. Musiké tem um sentido próximo de<br />
cultura geral.<br />
2<br />
O radical leth significa esquecimento, ocultação. A-leth, portanto, é “aquilo que se desoculta”, “que sai do<br />
esquecimento”, “que se revela”, “revelação”. Geralmente, traduz-se por “verdade”.<br />
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“dar conta de”, “oferecer um discurso justificativo, explicativo e esclarecedor sobre um objeto”,<br />
algo próximo do que hoje entenderíamos por “conceituar”. Já mýthos se manteria como um discurso<br />
predominantemente narrativo. O filósofo reclama assim, para o domínio do lógos, o privilégio de<br />
alcançar a Verdade, enquanto que caberá ao mýthos um estatuto secundário na hierarquia dos<br />
discursos.<br />
Quando Platão, no trecho da República que transcrevemos acima, refere-se aos mitos, tem<br />
em mente obras como a épica homérica. Sabemos, contudo, que nessas epopéias não se distingue<br />
entre mýthos e lógos quando a referência é a idéia de narração. Ora, estamos obrigados então a<br />
atentar para uma desigualdade basilar: a relação que o homem grego do século IV a.C. mantinha<br />
com a Ilíada e a Odisséia era absolutamente distinta do modo como o homem grego do século VIII<br />
a.C. compreendia essas mesmas epopéias. Embora pareça um tanto óbvia, tal diferenciação nem<br />
sempre é suficientemente salientada. Tome-se, como exemplo, Mímesis, a obra clássica de Erich<br />
Auerbach.<br />
No primeiro ensaio, “A cicatriz de Ulisses”, Auerbach (1994) argumenta que a realidade é<br />
percebida nos poemas homéricos através do compartilhamento da excelência da vida heróica, sendo<br />
indiferente, para o leitor, “saber que tudo não passa de lenda, que é tudo mentira” (AUERBACH,<br />
1994: 10). A epopéia homérica, em sua manifestação de alegria pela existência sensível da vida,<br />
substituiria, momentaneamente, a realidade imediata. Seu estatuto é o da verossimilhança e seu<br />
objetivo é encantar através de um apelo estético.<br />
Para o ensaísta, o mundo criado por Homero em suas epopéias é existente por si só. O estilo<br />
homérico caracterizar-se-ia ainda por não deixar nada do que é mencionado na penumbra ou<br />
inacabado, representando sempre “os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as<br />
suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais” (AUERBACH, 1994: 4).<br />
Comparando a épica homérica ao Velho Testamento, Auerbach chama a atenção para a falta de<br />
descrição e de localização espacial do deus no texto bíblico, que “aparece” sempre carente de<br />
forma, apenas como uma voz vinda de algum lugar não explicitado. Isso não seria apenas indicativo<br />
das diferentes noções de divindade na cultura grega antiga e na judaica, mas um sintoma do<br />
“particular modo de ver e de representar” (AUERBACH, 1994: 4) em cada uma dessas sociedades.<br />
Ao contrário do que ocorreria em Homero, haveria, na épica bíblica, uma exigência de<br />
verdade histórica. O texto bíblico pretenderia suplantar a realidade imediata do leitor. Seu estatuto<br />
seria o da verdade única e seu objetivo o de dominar o leitor através de um apelo racional. Em<br />
outras palavras, enquanto a narrativa homérica posicionar-se-ia na fronteira do lendário, o Velho<br />
Testamento mover-se-ia em direção ao relato histórico.<br />
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Auerbach faz notar que, para o leitor as diferenças entre lenda e história são de mais fácil<br />
identificação do que aquelas entre verdade e mentira. Uma lenda se distingue não apenas por seu<br />
conteúdo de caráter fantástico, mas também formalmente, por elementos como a estrutura linear, a<br />
ausência de elementos transversos e de contradições, a ordem simplista etc.<br />
As distinções conteudísticas e formais entre verdade e não-verdade, real e irreal, lenda e<br />
história seriam tão assentes para um grego do século VIII a.C.? A reflexão de Auerbach só faz<br />
sentido se admitirmos que os gregos já haviam passado por marcantes transformações culturais –<br />
em especial, uma reformulação no plano da apreensão da realidade, que lhes teria permitido aceitar<br />
o que chamaremos provisoriamente de pacto ficcional, isto é, a possibilidade de se perceber a<br />
“existência irreal” de algo.<br />
Um dos caminhos investigativos adotados ao longo da pesquisa que originou este ensaio foi<br />
o rastreamento, com Jean Pierre Vernant, da origem da representação figurada entre os gregos. A<br />
capacidade de figuração, lembra-nos o helenista, não seria uma constante universal do homem, mas<br />
uma categoria histórica, que implicaria o desenvolvimento prévio de algumas habilidades e noções:<br />
Trata-se de um quadro mental que, em sua construção, supõe que já se tenham singularizado<br />
e delineado nitidamente, em suas relações mútuas e em sua oposição comum ao real, ao ser,<br />
as noções de aparência, de imitação, de semelhança, de imagem, de simulacro. O advento de<br />
uma plena consciência figurativa opera-se em particular no esforço feito pelos antigos<br />
gregos para reproduzir em uma matéria inerte, graças a artifícios técnicos, o aspecto visível<br />
daquilo que, vivo, manifesta-se imediatamente ao olhar seu valor de beleza – de divina<br />
beleza – como thaûma idésthai, maravilha de se ver. (VERNANT, 1973: 310)<br />
Se tomarmos uma linha cronológica da estatuária grega, observaremos um processo de<br />
transformação que, partindo das simples atualizações simbólicas da divindade, chega à elaboração<br />
da imagem propriamente dita, isto é, da “imagem concebida como um artifício imitativo que<br />
reproduz, na forma de um simulacro, a aparência externa das coisas reais” (VERNANT, 1973: 296).<br />
Vernant identificará o momento em que o símbolo de uma potência do além se transforma em uma<br />
imagem – isto é, numa produção técnica, feita por um especialista que emprega procedimentos<br />
ilusionistas – como a inauguração da categoria do fictício, ou, em outras palavras, da categoria<br />
daquilo que chamamos hoje de arte.<br />
Sob o ponto de vista moderno, o ídolo arcaico, o xóanon, não é uma imagem. Sua forma não<br />
importa tanto quanto sua investidura simbólica. Sua origem mítica é descrita como não tendo sido<br />
fabricado por mãos mortais. Trata-se, sobretudo, de um elemento ritual:<br />
O símbolo não representa o deus, abstratamente concebido em si e para si; não procura<br />
instruir-nos sobre sua natureza. Expressa a potência divina, enquanto manejada e utilizada<br />
por determinados indivíduos, como instrumento de prestígio, meio de domínio e de ação<br />
sobre os outros. (VERNANT, 1973: 301)<br />
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A estátua, entretanto, constitui um modo de representação completamente novo. O símbolo<br />
divino aparece agora parcialmente liberto do ambiente restrito do ritual e se relaciona com a<br />
“descoberta do corpo humano e de uma conquista progressiva de sua forma” (Ibid., p. 303). Ao<br />
contrário do que ocorria com o xóanon, a reprodução do aspecto humano agora é essencial. Mas<br />
como, quando e por que razão se teria dado tal transformação radical?<br />
Vernant indica duas palavras centrais para se fazer uma reflexão sobre a imagem entre os<br />
gregos, ambas etimologicamente relacionadas ao campo semântico da visão e do semblante:<br />
Eídôlon e Eikôn. Os dois termos são empregados desde a idade clássica até a época bizantina para<br />
designar todas as formas de imagens artificialmente fabricadas, bem como as imagens de origem<br />
natural, como os reflexos, as sombras etc.<br />
Alguns especialistas identificam que há uma profunda diferença entre Eídôlon e Eikôn no<br />
que tange a relação da imagem com o seu referencial. Eídôlon seria uma espécie de cópia da<br />
aparência sensível do que é representado, um simulacro voltado exclusivamente ao olhar do<br />
observador, enquanto que Eikôn, uma espécie de transposição da essência voltada para a<br />
inteligência do observador, isto é, uma representação que evocaria uma comparação entre as<br />
qualidades e os valores da representação e do que é representado. Esta distinção seria claramente<br />
intensificada e consagrada no Império Bizantino, quando Eídôlon assume definitivamente seu<br />
caráter negativo em oposição a Eikôn. O Cristianismo medieval confirmará a oposição entre ídolo e<br />
ícone, como forma de demarcar a distinção que lhe interessava entre as estátuas de falsas divindades<br />
e a figura do verdadeiro deus. Esta classificação, contudo, não ocorria entre os gregos.<br />
Na Grécia antiga, três eram os empregos do termo Eídôlon: I) nos aparecimento de caráter<br />
sobrenatural (phásma); II) nas imagens dos sonhos (óneiros); III) na referência às almas dos mortos<br />
(psykhé). Nos três casos, Eídôlon consiste num modo de aparecimento “estranho”, como anota<br />
Vernant: “Ele [o eídôlon] é de fato o aparecer, mas de quem não está presente; sua presença é a de<br />
um ausente. Mas a ausência que o Eídôlon carrega não é totalmente negativa; não é a ausência do<br />
que não existe, de um nada, mas de um ser que não pertence ao nosso mundo” (VERNANT, 1973:<br />
317).<br />
Se o estatuto de Eídôlon em Homero é o da perfeita aparência que conduz ao engano, devese<br />
lembrar também que não há, nos tempos homéricos, uma polarização entre Eídôlon e Eikôn. O<br />
surgimento dos dois termos não é contemporâneo. Eikôn apenas aparece no século V a.C.,<br />
simultaneamente com o grupo de palavras usadas para expressar imitação e simulação: mímos,<br />
mimêma, mimeîsthai, mímesis. Vernant observa que estes termos são empregados em relação às<br />
artes em geral, mas estão particularmente ligados à instauração de um novo tipo de obra, o<br />
espetáculo dramático, cuja originalidade “consiste em presentificar aos olhos do público, para que<br />
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este os veja diretamente em cena, personagens e acontecimentos ‘fictícios’ que a epopéia contava<br />
em forma de relato, em estilo indireto” (VERNANT, 1973: 315). Mímesis passará então a ocupar o<br />
lugar de Eídôlon no sentido de imagem voltada para a aparência visual.<br />
Nossa hipótese de trabalho agora se confunde com a questão formulada por Vernant:<br />
Em que momento ela [a imagem] adquiriu as características que farão com que Platão a<br />
defina como uma ficção, um não-ser, que não possui outra realidade senão a ‘similitude’<br />
com o que não existe: em suma, quando a imagem passou a ser apreendida como um<br />
simulacro, produto ilusório de um artifício imitativo (VERNANT, 1973: 315)<br />
No plano do lógos, a ascensão da sofística e a preocupação manifestada por Platão com a<br />
veracidade e a falsidade discursivas revelam-nos um processo de reestruturação que reavaliou a<br />
potência e a função dos discursos na sociedade grega clássica. Duas obras, com perspectivas<br />
bastante antagônicas, parecem-me emblemáticas desta nova realidade: de um lado, o famoso Elogio<br />
a Helena, em que Górgias (1993), empreendendo algo próximo a uma teoria do discurso, identifica<br />
no lógos a potência divina (dynástes mégas, capaz de realizar theióstata érga). Do outro, a teoria<br />
platônica da imagem sistematizada no Sofista. Nesse diálogo, Platão identifica que a razão do<br />
prestígio granjeado pela sofística encontra-se exatamente no poder de criar ilusões. Os sofistas,<br />
através de uma técnica discursiva, seriam capazes de apresentar, a propósito de tudo, ficções verbais<br />
que dariam a ilusão de se tratarem de verdades sobre todas as coisas. Porém, para demonstrar que<br />
qualquer homem que se <strong>jul</strong>gasse capaz de, através de uma única arte, tudo produzir não fabricaria<br />
senão imitações e homônimos da realidade (Cf. PLATÃO, 1991: 151), o Estrangeiro de Eléia<br />
precisa admitir que uma imagem não pode ter um status pleno de não-ser, isto é, a imagem não é<br />
absolutamente irreal e não-verdadeira – do contrário, como seria possível a enunciação de algo que<br />
simplesmente não é? Platão comete assim o que ele mesmo chama de “parricídio intelectual”,<br />
vendo-se obrigado a discordar da tese da unicidade do ser de seu mestre Parmênides e de<br />
reconhecer a paradoxal possibilidade de existência de um não-ser: o falso lógos.<br />
O modo como Platão ataca o falso lógos e a produção de falsas imagens não atinge apenas<br />
os sofistas, mas também um procedimento fundamental das artes: a mímesis. Não cabe nos limites<br />
deste ensaio uma discussão do conceito de mímesis em Platão, em virtude do caráter contraditório<br />
do tratamento dado pelo filósofo ao tema. Contudo, não é satisfatório lidar com o entendimento de<br />
mímesis como uma mera técnica de imitação – uma suposta herança platônica. Foi nesse ponto que<br />
avaliamos ser produtivo introduzir em nossa investigação os trabalhos de Luís Costa Lima.<br />
3. O problema da mímesis: a revisão de Costa Lima<br />
O trabalho de Luís Costa Lima aqui abordado estrutura-se inicialmente como um projeto de<br />
revisão do conceito renascentista de fenômeno mimético, a fim de combater um conseqüente<br />
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preconceito moderno em relação ao alcance e à funcionalidade da categoria da mímesis para o<br />
pensamento contemporâneo sobre a arte. Sua proposição central é a de que não se deve<br />
compreender a mímesis estritamente como um processo produtor de semelhanças, mas, também e<br />
sobretudo, de diferenças. Ao traduzir mímesis por imitatio, o Renascimento reduziu-a a um processo<br />
de multiplicação de semelhanças – não por acaso, as normas poéticas classicistas submeteram a<br />
produção artística à obediência rígida de modelos. Herdando a tradição deste entendimento redutor<br />
do fenômeno, a era moderna impôs a mímesis a condição de uma antiqualha do pensamento teórico<br />
ocidental. O desdém analítico votado ao tema fez com que fossem obscurecidas marcantes<br />
diferenças epistemológicas entre, por exemplo, as concepções platônica e aristotélica. Para<br />
demonstrar as tensões presentes já na origem do reconhecimento do processo mimético e indicar<br />
assim que, menos que um ato orientado por um desejo de cópia, a mímesis compreende uma fusão<br />
de um modelo com a potencialidade própria do agente mimético, Costa Lima empreenderá um<br />
breve excurso histórico, em busca das primeiras reflexões sobre o tema. Nosso intuito em<br />
acompanhar sua reflexão é o de nos munir com subsídios teóricos que nos permitam avançar em<br />
nossa investigação, tendo sempre em mente que, para o autor, a ficção é o produto direto da<br />
mímesis.<br />
Tomando o trabalho do filólogo Göran Sörbom, o ensaísta experimenta uma pequena análise<br />
da ocorrência do termo mimeisthai e de seus correlatos em autores anteriores a Platão. Sua<br />
conclusão é a de que, em linhas gerais, o tratamento dado ao mímema ressaltava seus traços de<br />
semelhança com o real. Contudo, já neste período, por ele denominado de pré-conceitual, a mímesis<br />
implicava tanto a equivalência quanto a diferença (LIMA, 2000: 297). Isso porque não se deve<br />
entender por “semelhante” apenas uma “réplica” ou uma “cópia”, mas algo que possibilite o<br />
estabelecimento de uma relação de “correspondência”. A título de exemplificação, o ensaísta<br />
comenta os vestígios de supostos procedimentos miméticos que haveria no pitagorismo. Tais<br />
métodos possuiriam uma função terapêutica, isto é, a reprodução de estados e processos anímicos<br />
através da música e da dança produziria uma espécie de medicina da alma. O ato mimético<br />
obedeceria assim a um modelo orgânico e convergiria com os desígnios da Natureza, atuando não<br />
como mera duplicação, mas como um processo que, de algum modo, complementa a realidade,<br />
ainda que sujeita ao jugo estrito das leis naturais. Todavia, neste tipo de mímesis – que ele<br />
denomina “clássica” – mesmo quando o vetor diferença é considerado, ele está subordinado à<br />
semelhança, “embora, em termos aristotélicos, antes homóloga à natura naturans, i. e., produtora de<br />
formas, que à natura naturata, i. e., considerada quanto às formas já produzidas” (LIMA, 2000: 24).<br />
Entre as formas passíveis de serem produzidas pela mímesis, Costa Lima identifica uma que<br />
nos interessa sobremaneira: a imagem ilusória. Referindo-se à célebre anedota acerca da “vitória”<br />
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do pintor Parrhasius sobre Zêuxis, o ensaísta acena para como já se percebera a potência ilusionista<br />
da mímesis, o que seria uma indicação de que “a convergência dos interesses humanos com as<br />
propriedades da natureza” (LIMA, 2000: 300) não seria mais tão plena.<br />
A tensão existente no período pré-conceitual entre a semelhança (o domínio da ilusão) e a<br />
diferença (o domínio da criação) fundaria as duas grandes vertentes gregas de compreensão da<br />
mímesis: a platônica e a aristotélica. Tradicionalmente, Platão encabeçaria uma longa linhagem de<br />
pensadores que desprezariam o fenômeno mimético por <strong>jul</strong>gá-lo apenas reprodutor de aparências<br />
ilusórias, enquanto que Aristóteles corresponderia ao marco zero daqueles que privilegiam o<br />
potencial criativo da mímesis.<br />
Para falar de Platão, Luís Costa Lima remete a um ensaio de Paul Woodruff, em que a<br />
recusa platônica da mímesis é situada em dois planos, um pedagógico e outro ético-epistemológico.<br />
Grande parte da rejeição platônica é motivada por sua desconfiança sobre a pretensa capacidade<br />
cognitiva da mímesis. Sendo uma prática que não conduzia a nenhum conhecimento efetivo, mas<br />
possuidora de uma potência capaz de produzir efeitos pathétikos quase incontroláveis e, sobretudo,<br />
sem nenhum télos que a justificasse, a mímesis não deveria poder ocupar um espaço de destaque no<br />
pensamento platônico.<br />
Já para Aristóteles, importaria menos que a mímesis não fosse uma forma de epistéme – ou<br />
seja, no sentido forte de téchne, uma fonte de conhecimento organizado. O filósofo reconhecia nela<br />
um outro modode potência cognitiva, capaz de abrir uma “segunda porta” de acesso à verdade:<br />
concomitante à filosofia como via de apreensão ao real haveria o que Costa Lima chama de “engano<br />
poético” (LIMA, 2000: 32). Em outras palavras, citando James M. Redfield, diz o ensaísta que o<br />
objeto mimético é um produto de “alguma intuição abrangente, ainda que esquemática, dos padrões<br />
encontrados na experiência” (LIMA, 2000: 32). E complementa mais adiante: “Sem ser didática,<br />
abominando mesmo qualquer didatismo, a obra de arte entretanto ensina. A questão consiste em<br />
saber o que a coletividade em causa se dispõe a aprender com ela.” (LIMA, 2000: 69).<br />
Em Aristóteles, o mímema não está, como em Platão, subordinado ao eidos, mas em ambos<br />
“a mímesis supõe um ato de adequação ou correspondência entre a imagem produzida e algo<br />
anterior – em Platão, anterior e superior – que a guia” (LIMA, 2000: 34). A diferença é que, para o<br />
filósofo de Estagira, entre o objeto mimético e seu correspondente anterior haveria a consideração a<br />
uma dimensão intermediária, a da linguagem, onde atuaria a metáfora. E será justamente a<br />
transformação de sentido operada pelo discurso metafórico que abriria a outra porta para a verdade.<br />
A inserção da metáfora para a compreensão da mímesis torna ainda mais diversos entre si os<br />
enfoques platônico e aristotélico. A produção de sentidos metafóricos depende do estabelecimento<br />
de relações analógicas. E a analogia, por propor um vínculo de semelhança entre duas coisas<br />
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distintas, não é o método mais adequado para se atingir a ousía dos seres ou das coisas. Tal<br />
problema, como vimos anteriormente, já havia sido experimentado por Platão no Sofista, quando o<br />
Estrangeiro de Eléia precisa cometer o “parricídio intelectual” contra Parmênides e abandonar a tese<br />
da unidade do ser para garantir a possibilidade de existência de falsas imagens. A presença da<br />
metáfora no pensamento de Aristóteles inviabiliza assim o potencial cognitivo epistêmico da<br />
mímesis e reforça a necessidade de se admitir a validade de pensar a “dupla entrada que o intrincado<br />
da vida exige” (LIMA, 2000: 36) como forma de garantir a legitimidade criativa do fenômeno<br />
mimético. Costa Lima observa que o modo como os pensadores da Idade Média incorporaram o<br />
pensamento de Aristóteles às doutrinas do Cristianismo é o responsável pela obnubilação, na<br />
história da reflexão sobre a mímesis, da possibilidade da dupla entrada para a verdade, em favor da<br />
unificação de Deus. Afinal: “Como a concepção de um Deus único, onipotente e magnânimo seria<br />
conciliável com a legitimação de um sistema filosófico que acatava a validade do engano, a<br />
suspensão provisória da verdade como maneira de emocionalmente experimentá-la?” (LIMA, 1993:<br />
40).<br />
Completado o percurso do conceito de mímesis na Antigüidade, a que concepção funcional<br />
do fenômeno postula Luís Costa Lima? Mesmo sem se propor defini-la de modo categórico, o<br />
ensaísta arrola algumas características significativas: (I) A mímesis é um fenômeno da existência,<br />
não apenas um conceito operacional; (II) Quando, por razões teóricas, transformamos a mímesis em<br />
conceito, devemos entendê-la como uma noção transversal e transtemporal, válida, por exemplo,<br />
para os dois grandes momentos históricos da literatura e da arte em geral: o período autônomo,<br />
característico da modernidade, e o pré-autônomo; (III) Ainda que o campo da Estética tenha criado<br />
quase um monopólio do debate sobre o tema, a mímesis não é uma especificidade de linguagem<br />
limitada às artes. Não há um discurso específico onde ele opere. Há objetos miméticos artísticos<br />
assim como objetos miméticos cotidianos e tal atributo é definido não pelo tipo de mímesis em si,<br />
mas pelas molduras historicamente configuradas que reconhecem como tais umas e outras; (IV)<br />
Ensaiando uma definição em termos formais e de modo geral, Costa Lima dirá que “a mímesis<br />
supõe a correspondência entre uma cena primeira, orientadora e geral, e uma cena segunda,<br />
particularizada numa obra. Esta encontra naquela os parâmetros que possibilitam seu<br />
reconhecimento e aceitação” (LIMA, 2000: 22). Ele atenta, porém, para que não se confunda “cena<br />
orientadora” com “cena modelar”, pois esta, ao contrário daquela, implicaria um caráter normativo,<br />
inadequado à sua concepção de mímesis. O que o ensaísta entende por “cena primeira” não é uma<br />
cena material, mas um conjunto de parâmetros culturais que guiam o receptor.<br />
A noção de parâmetros culturais remete ao conceito gadameriano de “horizonte”. O<br />
horizonte da experiência é uma limitação histórica, temporal e espacial, das possibilidades de<br />
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entendimento. O horizonte estabeleceria uma certa indução que pertence a toda produção de<br />
enunciados e é inseparável dela, constituindo – como uma modalidade de inteligibilidade já<br />
elucidada – uma espécie de estrutura de antecipação de <strong>jul</strong>gamentos. Os parâmetros culturais são,<br />
para Costa Lima, os responsáveis pelo aparecimento da Verossimilhança. Porém, num modelo de<br />
mímesis em que se destacam os aspectos geradores de semelhança, privilegia-se tão-somente o<br />
aspecto negativo do verossímil, isto é, sua força cristalizadora e resistente a produções que não o<br />
obedeçam. Com isso, o ensaísta pretende que a criação da verossimilhança seja entendida como<br />
uma potência da obra mimética, ressalvando, entretanto, que o mímema não apenas se alimenta da<br />
realidade, mas é também capaz de modificar a própria visão da realidade do espectador.<br />
A verossimilhança incorpora o receptor como elemento ativo do processo mimético. Em<br />
conseqüência, Costa Lima pondera que a mímesis não pode ser pensada exclusivamente no plano do<br />
indivíduo, seja ele o produtor ou o receptor das imagens. O efeito mimético ressoa,<br />
necessariamente, numa coletividade: “Sem visar imediatamente à comunicação, a obra de arte traz<br />
em si aquilo de que a comunicação depende: a comunidade de um código, mesmo que, na obra, haja<br />
do código apenas restos” (LIMA, 2000: 57).<br />
A verossimilhança é, portanto, a manifestação da correspondência entre o mímema e a<br />
classificação social que impulsiona a produção de sentidos. E, como tal, deve manter algum tipo de<br />
relação com aquilo que se convenciona entender por verdade num determinado contexto. Afinal:<br />
se a obra cortar todas as amarras com a verdade – i. e., com o que a sociedade em causa, de<br />
acordo com a “classificação” que a atravessa, toma por verdade –, constituirá, no melhor dos<br />
casos, um mundo paralelo que, não identificável com qualquer aspecto do ‘real’, em<br />
princípio, não permitiria ao leitor nenhuma entrada (LIMA, 2000: 61).<br />
O verossímil possibilita ao mímema, através do aconceitualismo das imagens, uma<br />
perspectivação da verdade, o que faz da obra de arte um produto crítico sem ser didático. Em outras<br />
palavras “a ficção não representa a verdade, mas tem por ponto de partida o que os produtores e<br />
receptores têm por verdade” (LIMA, 2000: 64). Como efeito primário da mímesis, o verossímil<br />
organiza o quadro de expectativas para que da semelhança possa emergir a diferença. E,<br />
finalizando: “a retomada da questão da mímesis supõe, de início, menos um corte com sua<br />
concepção antiga do que o realce do que, nela existente, permanecia recalcado” (LIMA, 2000: 304).<br />
Assimilando a noção de mímesis desenvolvida por Costa Lima, procuraremos, num esforço<br />
de conclusão, relacioná-la com nossa hipótese inicial, devidamente alterada: “Somente após os<br />
homens reconhecerem o objeto mimético como sendo da ordem do ficcional – isto é, somente<br />
depois que o entendimento humano concebe a ocorrência de fenômenos cuja característica essencial<br />
é a de situarem-se entre o domínio do real e do falso – faz sentido se pensar numa circunscrição<br />
específica dos discursos que chamaremos, modernamente, de Literatura”.<br />
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4. Considerações finais<br />
O objetivo deste ensaio foi o de pensar como uma transformação da mentalidade do homem<br />
antigo fez com que a ficção assumisse um papel de destaque na cultura ocidental. Não parecendo<br />
ser a ficção um universal do homem, podemos supor que, na contemporaneidade, estamos<br />
presenciando um esgotamento das fórmulas ficcionais, ou uma mudança radical dos paradigmas de<br />
verossimilhança, talvez pelo enfraquecimento ou mesmo desaparecimento daquelas condições que<br />
foram determinantes para o surgimento da ficção entre os gregos. Abriríamos, deste modo, uma via<br />
de pesquisa que nos possibilitaria refletir sobre as relações existentes, na modernidade, entre a crise<br />
da arte e a crise da ficção.<br />
Para tanto, entender o estatuto do objeto ficcional é uma tarefa premente e incontornável. E<br />
um dos pré-requisitos fundamentais seria conseguir situar, satisfatoriamente, o momento do<br />
aparecimento da ficção entre os gregos. Teria sido, como sugere Vernant, no momento em que a<br />
figura humana deixou de encarnar valores religiosos e passou a “existir em si e por si, em sua<br />
aparência, como um modelo a ser reproduzido” (VERNANT, 1973: 307)? Ou, como também<br />
aponta o helenista, a tragédia foi realmente o marco desta mudança cognitiva e, por conseguinte, o<br />
espectador trágico foi o receptor característico das técnicas ilusionistas miméticas? Afinal, mal<br />
comparando a tragédia ao impacto causado pelo surgimento do cinema no século XX, podemos<br />
dizer que as novidades tecnológicas do espetáculo trágico obrigaram a uma mudança de percepção<br />
para suportar a incrível aparência de realidade das cenas apresentadas e então entendê-las como<br />
fictícias.<br />
Estaríamos dizendo com isso que a Grécia pré-trágica era um mundo sem imagens, em que<br />
os sentidos humanos eram a fonte segura de toda a veracidade? E, por outro lado, o nosso mundo<br />
contemporâneo, saturado de ficções, estaria vivendo uma “sede de real”, por estar incapaz de<br />
compreender o grau de realidade que as imagens carregam? Ou ainda: se não existe, na Grécia<br />
Clássica, objetos com uma teleologia do belo, isto é, objetos com “fins estéticos”, qual seria pois o<br />
télos e a utilidade da obra de ficção? Tais perguntas se multiplicarão em cascata sem que possamos<br />
respondê-las se não enfrentarmos o problema central da natureza das “imagens” ficcionais.<br />
Wolfgang Iser (1996) sugere que a ficção não pode ser compreendida apenas por uma<br />
oposição direta à realidade. O texto ficcional contém elementos da realidade sem que se esgote nele<br />
a descrição deste real. Logo, o componente fictício do texto ficcional não é um fim em si mesmo,<br />
mas é a preparação de uma terceira coisa que mantém com o real e o falso uma relação assombrada<br />
pelo mistério da mímesis, há séculos mal compreendida. Por meio do projeto de revisão de Costa<br />
Lima, observamos como não apenas ele, mas toda uma longa estirpe de filósofos e teóricos da arte<br />
lidam com pretensas teorias da mímesis platônica e aristotélica, sem ter como explicar as<br />
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contradições, na obra de Platão, entre a crítica à aparência e o modelo mimético na teoria das<br />
formas, ou, num filósofo tão atento para a necessidade de se estabelecer definições formais como<br />
Aristóteles, a ausência de um conceito explícito de mímesis.<br />
Uma potência da mímesis, certamente, seria a de causar ilusão, ou seja, um erro de<br />
percepção, fenômeno através do qual uma coisa se faz passar por outra. Note-se, porém, que tal<br />
funcionamento é idêntico ao que geralmente se entende por “representação”, isto é, a instituição de<br />
um representante, de algo que, em determinado contexto, toma o lugar daquilo que representa.<br />
Se, em nossa cultura, a idéia de representação é, se não apreciada, ao menos tolerada ou tida<br />
como estrategicamente útil, poderíamos talvez dizer que a ilusão é a versão historicamente<br />
desvalorizada da representação. O ilusionista possuiria uma intenção dolosa, pois proporia uma<br />
representação sem que o receptor a percebesse como tal. Ocorre, porém, que ambas, ilusão e<br />
representação, são dependentes de uma codificação social. Num exemplo elucidativo:<br />
Para um apreciador europeu do século XIX, a pintura de uma cabana polinésia mais parecia<br />
um borrão sem valor artístico; ao contrário, os primeiros papuas da Nova Guiné a quem se<br />
mostraram fotografias acharam estas imagens estranhas, difíceis de compreender e<br />
esteticamente sem graça – porque muito pouco esquematizadas. (AUMONT, 1995: 105)<br />
As técnicas de produção de imagens não são capazes de substituir por completo aquilo que é<br />
representado e reproduzem apenas parcialmente a realidade. Mesmo porque, como nos lembra<br />
Nelson Goodman, em Languages of art, a noção de imitação simples e pura não faz sentido, pois<br />
não se pode copiar o mundo tal como ele é, simplesmente porque não se sabe como ele é. A imagem<br />
não é, pois, um duplo perfeito do objeto representado, o que significa dizer que a ilusão não é uma<br />
réplica, mas uma duplicação de alguns aspectos da aparência.<br />
Se a criação da ilusão, isto é, de uma representação não percebida como tal pelo receptor,<br />
respeita também a uma convenção, “Realismo ilusório” e “Verossimilhança crítica” seriam pontos<br />
extremos da percepção de imagens ficcionais. Uma imagem dita realista respeitaria ao máximo as<br />
convenções sociais da representação ou retiraria da própria técnica que a produziu sua legitimidade<br />
como expressão do real. O melhor exemplo é a fotografia:<br />
o poder de convicção da fotografia [...] provém do saber implícito ou não que o espectador<br />
tem sobre a gênese dessa imagem [...] Porque sabemos que a imagem fotográfica é uma<br />
marca, um traço automaticamente produzido por procedimentos físico-químicos [...],<br />
acreditamos que ela representa de forma adequada essa realidade e estamos prontos para crer<br />
eventualmente que diz a verdade a seu respeito (AUMONT, 1995: 113).<br />
Por outro lado, uma imagem verossímil seria a de fraco realismo, mantendo com a<br />
compreensão do real apenas algum tipo de relação analógica potencialmente criadora de sentidos<br />
não presentes na cena orientadora do processo mimético. Como propõe Costa Lima: “A experiência<br />
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do ficcional supõe a experimentação do que não se conhece, empreendida a partir do que o produtor<br />
e receptor tomam por verdadeiro.” (LIMA, 2000: 64-5)<br />
Ao longo da história, a literatura já “fingiu” ser a voz do passado, a palavra de Deus, o<br />
espelho da sociedade, a prova científica, a expressão da alma, a revolução do pensamento, a<br />
literatura intentou ser o mundo. O que ela é – entre os extremos da realidade e do mundo paralelo –<br />
depende do papel concedido à imagem ficcional pelo homem. Mas o que ela pode ser – fonte de<br />
conhecimento ou entretenimento barato – é uma potência da mímesis que nunca é suficientemente<br />
avaliada.<br />
Referências<br />
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1991.<br />
AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:<br />
Perspectiva, 1994.<br />
AUMONT, J. A imagem. Campinas: Papirus, 1995.<br />
FORTINI, F. Literatura. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. vol 17. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da<br />
Moeda, 1989. p. 176-199.<br />
FOUCAULT, M. Linguagem e Literatura. In: MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura.<br />
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.<br />
GÓRGIAS. Testemunhos e fragmentos. Lisboa: Colibri, 1993.<br />
HAVELOCK, E. Prefácio a Platão. São Paulo: Papirus, 1996.<br />
LIMA, L. C. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.<br />
PLATÃO. A República. São Paulo: Martins Fontes, 2006.<br />
______. Sofista. São Paulo: Nova Cultural, 1991.<br />
SOUZA, R. A. de. Iniciação aos Estudos Literários. São Paulo: Martins Fontes, 2006.<br />
VERNANT, J. P. Mito e pensamento entre os Gregos. São Paulo: Difel, 1973.<br />
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HIPÓTESE DO CULTIVO MIDIÁTICO E<br />
A CULTIVAÇÃO DE NOVOS MODOS DE NARRAR<br />
Kyldes Batista Vicente *<br />
Resumo: Estudos sobre o impacto da televisão na vida dos telespectadores têm despertado o interesse de<br />
estudiosos da comunicação, da psicologia, da sociologia. Muitos defendem a influência nociva deste meio na<br />
construção do ser humano, na formação da criança. No entanto, muitos estudos também têm mostrado que os<br />
programas televisivos nem sempre são os responsáveis pela formação de opinião. O presente trabalho<br />
pretende discutir aspectos da hipótese do cultivo midiático e do conceito de habitus (em Bourdieu) para<br />
levantar questionamentos acerca da cultivação de novos modos de produzir teledramaturgia. Para isso,<br />
partimos de alguns produtos elaborados sob a direção de Luiz Fernando Carvalho: Os Maias (2001), A Pedra<br />
do Reino (2007) e Capitu (2008). A escolha das minisséries se justifica pelo fato de terem sido produzidas<br />
com um alto padrão e não atingido o índice esperado de audiência.<br />
Palavras-chave: cultivo midiático, teledramaturgia, consumo.<br />
Muitas pesquisas têm se preocupado em observar a influência, o impacto da televisão na<br />
vida dos telespectadores. A hipótese do Cultivo Midiático é uma das teorias utilizadas nos estudos<br />
dos efeitos da televisão. Originário do latim cultivare, o termo cultivar refere-se ao fato de fertilizar<br />
(a terra) pelo trabalho; dar condições para o nascimento e desenvolvimento de (planta). De forma<br />
figurativa, pode ser entendido como procurar formar; desenvolver; aplicar-se ou dedicar-se a;<br />
procurar manter ou conservar; formar, educar ou desenvolver pelo estudo, pelo exercício; formar-se<br />
pela educação; adquirir cultura. Processo de enculturação: “Processo de condicionamento e/ou de<br />
aprendizagem, consciente ou inconsciente, formal ou informal, mediante o qual um indivíduo, no<br />
decorrer da vida, apreende os padrões gerais de sua cultura; socialização.” (Dicionário Aurélio<br />
Eletrônico).<br />
A hipótese do Cultivo Midiático, que para Gerbner e outros (Apud CARDOSO FILHO,<br />
2007) pode ser definida como “um contínuo e dinâmico processo de interação entre mensagens,<br />
audiências e contextos”, foi desenvolvida a partir de um projeto que pretendia entender a forma<br />
como os indivíduos se desenvolviam em ambiente centrado na televisão, expostos a notícias e<br />
conteúdos de violência. Este grupo de pesquisadores defendeu a idéia de que “a realidade<br />
transmitida pela mídia pode influenciar crenças e, consequentemente, a conduta. Eles chamam isso<br />
de ‘levar na corrente’. Em termos de televisão, sugerem que seu conteúdo ‘desenvolve’ as crenças<br />
nas pessoas” (DEFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993: 282-3): a hipótese do Cultivo Midiático está<br />
relacionada à teoria dos efeitos de socialização:<br />
* Mestre em Letras e Linguística (UFG), aluna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura<br />
Contemporâneas – Doutorado (UFBA), professora de Literatura Portuguesa (UNITINS), kyldesv@gmail.com<br />
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Segundo uma perspectiva individual, a socialização equipa-nos para comunicar, pensar e<br />
resolver problemas utilizando técnicas aceitáveis pela sociedade, e, de maneira geral, para<br />
conseguirmos nossas adaptações singulares a nosso ambiente pessoal. Do ponto de vista da<br />
sociedade, a socialização leva seus membros a um conformismo suficiente, de modo a<br />
poderem ser preservadas a ordem social, a previsibilidade e a continuidade. Grifos do autor<br />
(DEFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993: 226)<br />
É a partir da socialização que cada indivíduo estabelece a interiorização de normas, práticas<br />
e valores da sociedade, dos modos de comportamento, estabelecendo formas de pensar e de agir do<br />
grupo em que o indivíduo está inserido. Daí ser considerado um processo de aprendizagem no qual,<br />
por meio da interiorização dessas normas e valores comuns, é estabelecida a integração social.<br />
Nessa perspectiva, um indivíduo já socializado é introduzido em novos setores da sociedade:<br />
na escola, nos grupos de amigos, no trabalho, nas atividades de países visitados, etc. Há uma<br />
aprendizagem das expectativas que a sociedade, ou o grupo social, deposita em nós em relação ao<br />
nosso desempenho. Assim também ocorre nos novos papéis que vamos assumindo nos vários<br />
grupos a que vamos pertencendo e nas diferentes situações em que somos colocados. Com isso, a<br />
assimilação de linguagens, valores, normas, <strong>jul</strong>gamentos permite aos indivíduos a socialização. O<br />
que a antropologia vai chamar de enculturação.<br />
Enculturação esta que Gerbner irá considerar ao ver a televisão como elemento cultivador de<br />
um processo dinâmico e contínuo de efeitos sob os telespectador. A televisão é responsável por<br />
partilhar a maior parte dos referenciais da sociedade contemporânea. Gerbner defende que são os<br />
efeitos a longo prazo e não os efeitos a curto prazo os considerados na análise da hipótese do<br />
Cultivo Midiático. Isso é possível pelo fato de a estrutura dos programas televisivos estar<br />
centralizada em narrativas, o que leva mensagens com relativa coerência ao telespectador. Essas<br />
informações, estruturadas em narrativas, constroem opiniões, juízos de valor e modelos de<br />
comportamento.<br />
Em suas pequisas sobre a hipótese do Cultivo, estudiosos como Chris Segrin, Robin Nabi,<br />
Oscar Gandy Jr., Jonathan Baron aplicaram a “teoria” para buscar respostas a questões relacionadas<br />
à influência a longo prazo da televisão em telespectadores assíduos. Chris Segrin e Robin Nabi<br />
(2002) pesquisaram as expectativas idealizadas sobre o casamento e sobre intenções de casar em<br />
adolescentes, supondo que estes jovens teriam como principal influenciador os programas de<br />
televisão. Neste caso, no entanto, não foi levando em consideração pelas autoras o fato de a<br />
concepção romântica dos adolescente ser gerada por outros atores da sociedade. O efeito a longo<br />
prazo também não foi considerado nesta pesquisa. Já para procurar entender que efeitos são os que<br />
a televisão pode cultivar em seus telespectadores assíduos, Oscar Gandy Jr. e Jonathan Baron<br />
(1998) articulam a hipótese do Cultivo ao Framing.<br />
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O propósito deste texto, no entanto, não é procurar entender a hipótese do Cultivo Midiático.<br />
Neste texto, a partir dos elementos que dão origem às pesquisas que consideram a televisão como<br />
capaz de cultivar determinados hábitos, gostos e/ou valores, objetivamos estender nossa discussão à<br />
idéia de habitus (em Pierre Boudieu).<br />
Como exemplo, tomaremos as minisséries Os Maias, Pedra do Reino e Capitu, produzidas<br />
sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, para tratar desses aspectos de enculturação em alguns<br />
produtos da televisão brasileira. Por trás da leitura de um produto midiático há que se considerar o<br />
valor vinculado àquele produto. O produto e seu valor não podem, no entanto, ser considerados<br />
separados do lugar de onde são gerados: o espaço social. Este é construído para que grupos e<br />
agentes sejam distribuídos em função da posição que ocupa, a partir de seu capital econômico e<br />
cultural.<br />
A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou de gostos) produzidos<br />
pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente e, pela intermediação<br />
desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e de<br />
propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de estilo. (BOURDIEU, 2007: 21)<br />
Bourdieu (2007) completa esta idéia afirmando que estabelecer unidade de estilo das<br />
práticas e dos bens de determinada classe de agentes é uma das funções do habitus, cujo<br />
estabelecimento de um princípio unificador traduz o conjunto das escolhas de pessoas, bens e<br />
práticas.<br />
social.<br />
Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que o operário<br />
come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo,<br />
suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo<br />
ou das atividades correspondentes do empresário industrial. Eles estabelecem as diferenças<br />
entre o que é bom e o mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgar etc.,<br />
mas elas não são as mesmas. (BOURDIEU, 2007: 22)<br />
Essas escolhas, de acordo com Bourdieu, são percebias a partir da percepção de seu espaço<br />
ao serem percebidas por meio dessas categorias sociais de percepção, desses princípios de<br />
visão e de divisão, as diferenças nas práticas, nos bens possuídos, nas opiniões expressas<br />
tornam-se diferenças simbólicas e constituem uma verdadeira linguagem. (BOURDIEU,<br />
2007: 22)<br />
Retomando os elementos da hipótese do Cultivo Midiático, podemos considerar que os<br />
telespectadores da teledramaturgia seriada brasileira foram cultivados a reconhecer algumas marcas<br />
valorativas. Assim, telenovelas e minisséries produzidas pela Rede Globo de Televisão possuem<br />
determinados elementos que se configuram com seu padrão.<br />
Ao partir de elementos da narratividade, a relação temática com o cotidiano, os ideais de<br />
amor, elementos da realidade ligados à ficção, o suspense, os segredos e mentiras fazem da<br />
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narrativa televisiva um espaço de estabelecimento de cumplicidade com o telespectador. Esse<br />
espaço é cultivado gradativamente com apresentação gradual de temas, situações e personagens<br />
polêmicas. Enfim, o habitus do telespectador é cultivado.<br />
O habitus deve ser compreendido como uma gramática gerativa de práticas conformes com<br />
as estruturas objetivas de que ele é produto: a circularidade que preside sua formação e seu<br />
funcionamento explica, por um lado, a produção de regularidades objetivas de<br />
comportamento; por outro, a modalidade de práticas baseadas na improvisação, e não na<br />
execução de regras. Juntando dois aspectos, um objetivo (estrutura) e outro subjetivo<br />
(percepção, classificação, avaliação), pode-se dizer que ele não só interioriza o exterior, mas<br />
também exterioriza o interior. (PINTO, 2000: 38)<br />
É nessa perspectiva que retomamos Bourdieu (2007: 14) ao se referir aos elementos de<br />
produção cultural:<br />
Os campos de produção cultural propõem, aos que neles estão envolvidos, um espaço de<br />
possíveis que tende a orientar sua busca definindo o universo de problemas, de referências,<br />
de marcas intelectuais [...] Esse espaço de possíveis, que transcende os agentes singulares,<br />
funciona como uma espécie de sistema comum de coordenadas que faz com que, mesmo que<br />
não se refiram uns aos outros, os criadores contemporâneos estejam objetivamente situados<br />
uns em relação aos outros.<br />
A produção de teledramaturgia, especialmente a minissérie, teve a sua inauguração em<br />
meados da década de 1980, quando a Rede Globo inaugurou esse novo formato de programa.<br />
Semelhante às novelas, só que mais curtas, geralmente suas produções demandam custos muito<br />
altos. Geralmente são exibidas depois das 22h. É neste horário que a emissora investe em novas<br />
tecnologias, como o uso da filmagem em película. Ao todo, já foram produzidas mais de noventa<br />
minisséries pela emissora. Das minisséries produzidas de 1984 até 2008, trinta e cinco foram feitas<br />
tendo por base textos literários, a maioria de autores do século XIX e alguns considerados clássicos<br />
da literatura contemporânea. Guimarães (2003: 97) afirma que a “ficção televisiva privilegia obras<br />
de narrativa linear e enredo movimentado” em que narrativas “repletas de acontecimentos e<br />
reviravoltas” dão suporte à “forte carga sentimental e melodramática e um pano de fundo composto<br />
de períodos ou episódios históricos relevantes e reconhecíveis pelo espectador”.<br />
Para a minissérie Os Maias (2001), o trabalho de pesquisa da equipe de produção sobre as<br />
obras de Eça de Queirós, sobre o percurso do escritor, o envolvimento dos atores, a presença de<br />
críticos de Eça no contexto da produção de cada capítulo, o investimento, o figurino, a trilha sonora,<br />
enfim, os elementos que transpuseram o romance português do século XIX para a tela brasileira não<br />
deixavam dúvida sobre o sucesso. E mais: a incorporação de outros dois textos do mesmo<br />
romancista: A Relíquia e A Capital dariam ao texto audiovisual mais dinâmica, mais ação que a<br />
televisão requer. As peripécias de Teodorico e de sua Titi, personagens de A Relíquia, adicionam a<br />
comicidade à minissérie. No entanto, a narrativa lenta do romance e do ambiente aristocrata<br />
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português foram incorporados ao texto audiovisual e não agradou ao público. A Folha de São Paulo<br />
publicou, na época, alguns comentários sobre a produção da minissérie:<br />
A minissérie ‘Os Maias’ estréia hoje na Globo com uma missão especial: oferecer biscoito<br />
fino para as massas. A história, baseada no livro homônimo do escritor português Eça de<br />
Queirós, terá 44 capítulos. A direção é de Luiz Fernando Carvalho. A adaptação, de Maria<br />
Adelaide Amaral.<br />
‘Quero fazer uma obra ‘assistível’, mas sem banalizar ou vulgarizar o romance. O maior<br />
objetivo é trazer o público para a minissérie. Não o contrário’, afirma Maria Adelaide<br />
Amaral. [...]<br />
Para Amaral, minisséries são oportunidades raras de realizar um trabalho denso. Geralmente<br />
pode-se gastar três, quatro dias para escrever um capítulo, enquanto um autor de novela tem<br />
apenas um dia.<br />
A diferença de orçamento também garante melhor acabamento. O orçamento médio de um<br />
capítulo de novela é de R$ 100 mil. O de uma minissérie é o dobro: R$ 200 mil. ‘Os Maias’<br />
estourou em 10% esse orçamento e custou quase R$ 10 milhões no total.<br />
É a produção da Globo que passou mais tempo sendo gravada fora do Brasil. Durante seis<br />
semanas, o elenco e a equipe técnica estiveram em várias cidades de Portugal. Tudo para<br />
evitar ao máximo o clima artificial de estúdio. (Christian Klein, Folha Online)<br />
Apesar de sucesso de crítica, o elogiado figurino, a trilha sonora, a audiência não satisfez as<br />
expectativas. Apesar de ser um dos grandes romances da literatura portuguesa, a minissérie Os<br />
Maias recebeu críticas severas de telespectadores e críticos: a reclamação pela irregularidade do<br />
horário de exibição dos capítulos circulou entre as maiores críticas.<br />
Segundo Hélio Guimarães (2003), a adaptadora e o diretor da minissérie atribuíram a baixa<br />
audiência ao estranhamento com a alta qualidade dos capítulos, o que estaria em contraste com a<br />
maioria dos programas televisivos. Já a Academia Brasileira de Letras foi a maior defensora da<br />
minissérie, argumentando sobre a importância da adaptação para despertar para a leitura do livro.<br />
No texto Sobre a Televisão, Bourdieu (1997) aponta os mecanismos de funcionamento do<br />
campo televisivo e seus efeitos. Segundo ele, a lógica de produção televisiva requer produção de<br />
algo que seja extraordinário, desencadeando homogeneidade da produção e pouca autonomia para<br />
seus produtores. Outro efeito ocasionado pela pressão pelo índice de audiência é a urgência, a<br />
rapi<strong>dez</strong>, a velocidade. Esta pressão pelo mercadológico impõe-se também em outros campos por<br />
influência da televisão, principalmente no campo artístico pela lista de best-sellers. No entanto, não<br />
foi isso que aconteceu com a minissérie Os Maias: todo processo de produção obedeceu a um<br />
processo de elaboração e pesquisa da adaptadora, do diretor e dos atores.<br />
Segundo Jauss (1993), o produto cultural é desenvolvido a partir de um horizonte de<br />
expectativas para seus receptores, formadas a partir de um conjunto de padrões que servem como<br />
referência para recusa ou absorção de uma nova obra. A absorção de uma nova obra se dará a partir<br />
da adequação dela ao horizonte de expectativas do receptor.<br />
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Quando um produto é recusado pela audiência, não há adequação entre horizonte e obra.<br />
Assim, é possível que o público realmente tenha estranhado a produção estética, a narrativa, a<br />
linguagem de Os Maias pelo fato deste não ser o padrão das atrações televisivas, o que rompe com<br />
a percepção do telespectador.<br />
Carlos Reis, estudioso de Eça de Queirós, foi convidado pela Rede Globo para dar<br />
assessoria ao elenco e à equipe de produção da minissérie Os Maias. Após “testemunhar o cuidado<br />
quase obsessivo que está a ser posto na reconstituição de cenários, de adereços, de figurinos e de<br />
tudo o mais que pode incutir à realização (de Luiz Fernando Carvalho) uma autenticidade e uma<br />
identificação epocal acentuadíssimas”, publica um texto em que discute alguns dados sobre a<br />
adaptação do romance português para a televisão brasileira:<br />
É claro que, com tudo isto (ou apesar de tudo isto), Os Maias na televisão enfrentam os<br />
riscos de uma missão impossível. Antes de mais, haverá por certo uma resistência inicial do<br />
espectador português (como aconteceu com O Primo Basílio, há anos) relativamente ao<br />
sotaque brasileiro com que nos falarão Afonso da Maia e Eusebiozinho, Maria Eduarda e<br />
Palma Cavalão, Carlos Eduardo e João da Ega; penso, contudo, que a habituação (a<br />
competência narrativa, pode dizer-se) do espectador de telenovelas e de séries brasileiras<br />
rapidamente neutralizará esse handicap. (REIS, 2000)<br />
O professor de literatura da Universidade de Coimbra e autor de inúmeros livros sobre Eça<br />
de Queirós tinha algumas preocupações acerca de como o telespectador iria receber todo o apuro na<br />
reconstituição de uma época: o público iria identificar-se com personagens, ambientes e a narrativa?<br />
Mesmo com a inserção de um enredo cômico, personagens “vistosas” e um elenco experiente,<br />
Carlos Reis temia a recepção do telespectador. No entanto, a astúcia narrativa da adaptadora, a<br />
dedicação dos atores e o obsessivo cuidado da direção não foram suficientes para marcar os índices<br />
esperados de audiência.<br />
Alguns críticos falaram da lentidão narrativa imprimida na minissérie, como uma<br />
reprodução do ritmo romanesco. Outros optaram por desaprovar a junção de outros textos de Eça de<br />
Queirós. Telespectadores reclamaram do horário de exibição, conforme aludido anteriormente. O<br />
que nos interessa, neste trabalho, é apontar essa forma narrativa (tão criticada por muitos) como<br />
uma possível estratégia de habituação do telespectador brasileiro.<br />
Seis anos após a minissérie Os Maias, Luiz Fernando Carvalho traz ao telespectador<br />
brasileiro mais uma minissérie adaptada de uma obra literária: Pedra do Reino (2007). Neste<br />
trabalho, temos indicações de que o diretor traz elementos da teatralidade para a televisão. O texto<br />
de Ariano Suassuna apresenta elementos pouco típicos para a televisão, como podemos ver no<br />
trecho a seguir, publicado à época da exibição da minissérie:<br />
A inovação de “A pedra do reino” não pára por aí. Luiz Fernando Carvalho propõe um novo<br />
formato de teledramaturgia. “Não tem início, meio e fim; cada episódio tem vida própria,<br />
independente, mas, ao mesmo tempo, o conjunto tem uma unidade que faz sentido no<br />
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universo labiríntico do Ariano”, explica. (Entrevista a Carla Meneguini, G1)<br />
Em entrevista a Carlos Helí de Almeida, da JB Online, sobre a microssérie Capitu (2008),<br />
Luiz Fernando Carvalho é questionado sobre a característica de seu trabalho:<br />
audiência:<br />
Você optou por uma narrativa linear. Já andam dizendo que este é o seu trabalho mais<br />
palatável, digerível, ou mesmo popular, apesar dos diálogos do século 19 e as intervenções<br />
do narrador. Considera um elogio?<br />
Não estou correndo atrás de elogios; por outro lado, ainda tenho as costas cheias de<br />
cicatrizes por ter feito A Pedra do Reino como fiz, e, sinceramente, buscava com o romance<br />
de Ariano Suassuna a mesma comunicação que busco agora com Machado de Assis. Não me<br />
guio pelo que é ou não palatável, me guio pela vida, com todos os riscos que isso possa ter.<br />
Às vezes o que produzimos reencontra a vida, outras nem tanto.<br />
Em outro momento, diz que não faz cinema aos quilos e que não está preocupado com a<br />
O Projeto Quadrante foi criado com o objetivo de transpor para a televisão obras literárias<br />
que possibilitem uma reflexão sobre a cultura brasileira – independentemente do retorno em<br />
termos de audiência. Qual o próximo projeto do programa?<br />
Primeiro, permita-me esclarecer uma coisinha: eu recebo a mesma pressão por audiência que<br />
qualquer diretor, certo? Não sou daqueles que fazem fita, a coisa pesa e muito para o meu<br />
lado. E não poderia ser de outro jeito, minha busca é conciliar qualidade, a responsabilidade<br />
cultural que acredito que a televisão ainda precisa abraçar mais e melhor, e a comunicação<br />
de que falo sempre. O resto é balela. Quanto ao Quadrante, seguiremos com Dançar Tango<br />
em Porto Alegre, do Sérgio Faraco, este o Quadrante do Rio Grande do Sul, e depois Dois<br />
Irmãos, do Hatoum. (Entrevista a Carlos Helí de Almeida, JB Online)<br />
A preocupação com a responsabilidade cultural e a qualidade são elementos que prenunciam<br />
uma tentativa de trazer ao telespectador aquilo que “a televisão ainda precisa abraçar melhor”:<br />
OP – O apuro com a experiência visual sempre foi forte em seus trabalhos e se apresenta<br />
mais uma vez aqui. Que cuidados você tomou para não transformar a imagem em fetiche em<br />
Capitu?<br />
Carvalho – Não costumo acreditar em apuros técnicos, muito ao contrário, se o espectador<br />
prestar bem atenção nas minhas imagens vai perceber que, isoladamente, uma a uma, elas<br />
contêm uma enorme quantidade de erros. O que dá algum sentido de beleza a elas é a<br />
montagem e a atuação dos atores. Um intérprete simplesmente bonito não traz em si a<br />
beleza. Uma luz bem posicionada não nos dá naturalmente a atmosfera vital de um instante.<br />
Veja os comerciais de geladeira, estão repletos de azuis brilhantes, tecnicamente muito bem<br />
apurados, mas é um apuro "de plástico" e não um apuro plástico. Por outro lado, poderia até<br />
dizer que o conjunto de imagens que Bentinho reúne e consagra de Capitu acabam por<br />
transformá-la em um fetiche, sim. (O Povo Online)<br />
O sucesso da narrativa serial está na repetição de um esquema, de uma estrutura narrativa.<br />
Os juízos de valor e de gosto do telespectador estão ligados não só à temática apresentada pelo<br />
produto, mas também à estrutura que ela apresenta. No entanto, essa narrativa seriada construída<br />
pela direção de Luiz Fernando Carvalho se vale da autoreferencialidade, mas causa estranhamento.<br />
Trabalha com nossas expectativas cinematográficas, mas trabalha com a ruptura dessas<br />
expectativas: na relação entre imagem e som, na construção da imagem cinematográfica. A obra<br />
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indica seus modos potenciais de leitura, propondo uma leitura estética. A junção de elementos<br />
temáticos, emocionais, estruturais faz desenvolver essa ruptura.<br />
O espectador também torna-se formador da sensibilidade que se tem a partir da relação com<br />
a sociedade. E ainda há que se considerar o contexto social em que é construído, como afirma<br />
Simon Frith (1996):<br />
to undestand cultural value judgements we must look at the social contexts in which they are<br />
made, at the social reasons why some aspects of a sound or spectacle are valued over others;<br />
we must understand the appropriate times and places in which to voice such judgments, to<br />
argue them. (FRITH, 1996: 22)<br />
Os espectadores estariam, então, mais interessados no prazer neobarroco da forma, do que<br />
propriamente do conteúdo da teledramaturgia?<br />
Umberto Eco (1989), no texto O texto, o prazer, o consumo, ao discutir o leitor modelo,<br />
levanta alguns questionamentos acerca do que faz uma obra de sucesso. No texto em questão, Eco<br />
afirma que<br />
Um livro obtém sucesso somente em dois casos: se dá ao público o que ele espera ou se cria<br />
um público que decide esperar o que o livro lhe dá. Ou seja, toda obra ‘pequena’ atende às<br />
solicitações do público que a individualizou, ao passo que toda ‘grande’ obra cria as<br />
solicitações do público que decide formar. (ECO, 1989: 104)<br />
No caso do livro, o autor torna-se um sucesso a partir da sua relação com o público. A<br />
criação literária de José Saramago, por exemplo, ao seu modo, propõe uma ruptura com a<br />
linearidade da produção narrativa. Saramago rompe com alguns elementos da estrutura da narrativa<br />
modificando seu modo narrativo que, para ele, aproxima-se da oralidade. O leitor iniciante de<br />
Saramago estranhará a forma como são apresentadas as personagens e como a inserção dos diálogos<br />
é construída. No entanto, José Saramago estabeleceu uma relação com seu público: cultivou nos<br />
leitores um habitus.<br />
Ao apresentar elementos de análise da recepção de telenovelas, Souza (1998) aponta-nos um<br />
questionamento importante. Segundo ela,<br />
O ritual de consumo das telenovelas estabeleceu-se nos anos 60. Reporta-se, portanto, a um<br />
campo artístico e a um mercado televisivo já constituídos que implicavam a contínua<br />
construção de um público consumidor desse bens simbólicos. Mas, mais do que isso,<br />
reporta-se a emissoras que tinham como prerrogativa básica para os seus projetos de<br />
consolidação e expansão um acompanhamento meticuloso do seu público consumidor. Não<br />
só porque ele deveria existir enquanto tal, mas também porque não poderia morrer, devendo<br />
portanto ser permanentemente construído. Esse processo de construção do público pelas<br />
emissoras (ou por qualquer outra instituição mediática) não é uma particularidade do<br />
momento de constituição do campo artístico; contudo, o estado de campo é um dos<br />
elementos que auxiliam sua compreensão, manutenção e expansão. (SOUZA, 1998: 77)<br />
Isso nos leva a crer que o telespectador sempre foi “acostumado” a consumir determinado<br />
produto. Esse ritual de consumo, como apresenta Souza (1998: 78), parte da construção do espaço<br />
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social, definido por Bourdieu (2007) como “estrutura de posições diferenciadas, definidas, em cada<br />
caso, pelo lugar que ocupam na distribuição de um tipo específico de capital”.<br />
Com isso, levantamos questionamentos acerca de uma tentativa de Luiz Fernando Carvalho<br />
de estabelecer, a partir do cultivo, um novo olhar acerca da direção de produtos televisivos. Nosso<br />
propósito não é afirmar ou negar um possível estabelecimento de um habitus. Ao contrário,<br />
quisemos discutir a presença da constante direção de Luiz Fernando Carvalho, em horário nobre e<br />
com grandes investimentos. Questionar não no sentido da qualidade, mas no aspecto da audiência.<br />
Os produtos divulgados por Carvalho primam pela elaboração, cuidado e respeitabilidade. O padrão<br />
Globo de televisão poderia estar em busca de um novo olhar para seus produtos? Não é gratuita a<br />
presença deste respeitado diretor. A televisão brasileira estaria cultivando novos hábitos nos<br />
consumidores de teledramaturgia? Para ter tal resposta, o tempo deverá ser considerado e só o<br />
futuro negará ou reafirmará o efeito cultivado.<br />
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Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/atualiza/artigos/qtv150<strong>12</strong>0014.htm.<br />
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DA MATEMÁTICA PARA O PORTUGUÊS<br />
Patricia Queiroga Gonçalves de Souza Reis *<br />
Maria Cecilia de Magalhães Mollica<br />
Marisa Beatriz Bezerra Leal<br />
Maria de Fátima Bacelar da Silva<br />
Resumo: Na área de Educação, no que se refere à aplicação de conteúdos escolares, principalmente nos anos<br />
iniciais do Ensino Fundamental, tem-se buscado, segundo Mollica & Leal (20<strong>09</strong>), metodologia pedagógica<br />
que trabalhe conjuntamente com as disciplinas Português e Matemática. Na prática, percebe-se que o<br />
professor parte primeiramente dos conteúdos do Português para depois inserir conhecimentos matemáticos.<br />
O presente trabalho verifica como é possível percorrer o caminho inverso: chegar às habilidades da lectoescritura<br />
a partir da Matemática. Em parceria com a Faculdade de Letras e o Instituto de Matemática, ambas<br />
Unidades da UFRJ , a pesquisa enfocou turmas do Projeto de Letramento de Jovens e Adultos – COPPE,<br />
vinculado à CODEP da Pró Reitoria de Pessoal – PR4, que teve início em 2005 e, até o presente momento, já<br />
encaminhou mais de 90% dos alunos para o ensino regular, mantendo permanente contato com seus<br />
egressos. No estudo, foram aplicadas atividades lúdicas de Matemática e Português, iniciando-se de<br />
conteúdos da Matemática. Todas as propostas pedagógicas valorizaram a oralidade e as experiências de vida<br />
dos educandos – letramento social, sem se descuidar do caráter formativo pertinente ao letramento escolar.<br />
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, Interdisciplinariedade, propostas pedagógicas.<br />
1. Introdução<br />
A interdisciplinaridade vem sendo bastante ressaltada atualmente. Questiona-se cada vez<br />
mais a respeito do hibridismo teórico-metodológico e o fim do ideal de neutralidade e objetividade<br />
em relação à produção de conhecimentos. Moita Lopes (2004) discute os limites das disciplinas ao<br />
ponderar que, na contemporaneidade, é essencial a troca de informações e as contribuições que uma<br />
área pode trazer para a outra.<br />
Assim, os limites entre as disciplinas devem ser apagados sempre que possível numa estreita<br />
interação. Pesquisas que atravessem várias áreas de investigação têm sido bastante valorizadas nos<br />
eventos científicos interdisciplinares, o que causa bastante estranhamento àqueles que seguem<br />
paradigmas tradicionais e se mantêm dentro dos limites disciplinares. A dificuldade de diálogo dos<br />
pesquisadores nas Instituições é supostamente responsável pela manutenção de orientação antiga,<br />
pois “a diferença interroga, assusta e questiona nossas verdades.” (Moita Lopes, 2004: 72.). A<br />
*<br />
Aluna de Graduação em Letras da UFRJ e professora-bolsista do Projeto de Letramento de Jovens e Adultos COPPE /<br />
CODEP<br />
**<br />
Doutora em Linguística, CNpq e professora titular do departamento de Linguística da UFRJ<br />
***<br />
Doutora em Matemática e professora do Instituto de Matemática da UFRJ<br />
****<br />
Graduada em Pedagogia com especialização em magistério e orientação educacional pela ABEU e professora do<br />
Projeto de Letramento de Jovens e Adultos COPPE / CODEP - UFRJ<br />
**<br />
***<br />
****
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capacidade de reinvenção é crucial no mundo da pesquisa, uma vez que as verdades científicas são<br />
possibilidades de tratar certas questões, são efêmeras.<br />
Seguindo o viés contemporâneo, desenvolvemos um trabalho em parceria com a Faculdade<br />
de Letras e o Instituto de Matemática da UFRJ. Tendo em vista propostas pedagógicas que<br />
incentivem o trabalho interdisciplinar entre o Português e a Matemática na Educação de Jovens e<br />
Adultos, mostramos resultados satisfatórios partindo da aplicação de conteúdos que exigem<br />
habilidades matemáticas, seguindo-se aos de Português, situação inversa à prática em que<br />
frequentemente os conhecimentos matemáticos são explorados a partir de atividades de linguagem.<br />
2. Considerações teóricas<br />
Este trabalho, então, pauta-se na defesa de uma reformulação na prática de ensino (Mollica,<br />
2007; Antunes, 2003; Bortoni-Ricardo, 2004), ao valorizar uma ação pedagógica que desconstrói o<br />
paradigma de educação enciclopédica, enlatada. Enfatiza Irandé Antunes (2003) que cabe ao<br />
professor criar, pesquisar, observar, levantar hipóteses, analisar, aprender, reaprender e desprender-<br />
se dos livros didáticos. Os conteúdos têm que ser planejados em vários espaços e formas de<br />
pensamento; deve haver criação de possibilidades com pesquisa, curiosidade, crítica, reflexão.<br />
Nesse quadro, o educador se dispõe a aprender e a construir junto com o aluno. O<br />
sociointeracionismo no ensino-aprendizado (Vigotsky, 1987) apregoa que são igualmente<br />
construtores de significados professor e alunos. Aquele, consciente de sua prática pedagógica,<br />
procura tornar todos colaboradores e participantes; estes, por vez, tornam-se co-autores do seu<br />
aprendizado.<br />
No âmbito da Educação de Jovens e Adultos e de acordo com Paulo Freire, há de se<br />
considerar alguns aspectos fundamentais que definem os alunos de EJA. Segundo Oliveira (1999), é<br />
importante levar em conta a peculiaridade dos alunos quanto à (I) condição de não crianças, (II)<br />
condição de excluídos da escola, (III) condição de membros de determinados grupos culturais.<br />
Acrescentam ainda Mollica & Leal (2008: 99):<br />
Além desses elementos, o alfabetizador deve entender o 3º turno naturalmente e não como<br />
aquele em que realizamos o último trabalho da escola com alunos que estão tendo uma<br />
última oportunidade. Assim, as atividades com alfabetizadores jovens e adultos deverão ser<br />
incorporadas a uma ação educativa interdisciplinar, destinada a um público marcado pela<br />
exclusão, que retorna aos bancos escolares com uma riqueza de conhecimentos matemáticos<br />
e de linguagem. Há que se valorizar os conhecimentos prévios e dar acesso à formaconteúdo<br />
escolar, com o entendimento mais ampliado de um processo maior que envolve o<br />
letramento social e escolar.<br />
Ressaltam as autoras a indissociabilidade entre a linguagem matemática e a língua materna.<br />
A primeira dependente de uma perfeita articulação com o ensino da segunda:<br />
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Segundo Machado (2001), quando se observam os elementos dos dois sistemas<br />
fundamentais para a representação da realidade, o alfabeto e os números, descobre-se que<br />
eles são aprendidos conjuntamente pelos indivíduos antes mesmo de os educandos chegarem<br />
à escola. A matemática tem uma linguagem exclusivamente escrita, entendendo-se aqui, a<br />
alfabetização como o processo de aquisição do código escrito, no qual estão inseridos os<br />
escritos matemáticos e a codificação verbal escrita, cujos processos de leitura e escrita<br />
ultrapassam o nível de mero reconhecimento e representação de letras e números. (Mollica<br />
& Leal, 2008: 101)<br />
Feitas as devidas considerações, cabe lembrar a importância de propostas pedagógicas que<br />
levem em conta o conhecimento que o aprendiz já traz e que deve ser aproveitado no processo de<br />
ensino. Segundo Paulo Freire (1987) não se deve excluir o educando de sua cultura, tampouco<br />
torná-lo um mero depositário da cultura dominante. É preciso valorizar a pedagogia que privilegia o<br />
conhecimento de mundo do aluno e que não separa os conteúdos dos dois campos de conhecimento<br />
conforme advogam Mollica & Leal (2006).<br />
Nessa direção, com o objetivo de trabalhar os conteúdos de Português e de Matemática,<br />
propusemos desenvolver em sala de aula situações que fazem parte do cotidiano dos educandos,<br />
aproveitando-lhes as experiências de vida e os conhecimentos de mundo. Escolhemos como pano de<br />
fundo o supermercado, pois a ida às compras nesse contexto constitui um ato automatizado na vida<br />
das pessoas: os resultados obtidos por Mollica & Leal (20<strong>09</strong>) apontaram na direção de que os<br />
indivíduos, nessa etapa de escolarização, adquirem os produtos sem conhecer a forma de usá-los e<br />
sem se preocupar com as informações contidas nos rótulos.<br />
3. Metodologia<br />
A pesquisa contou com a observação-participativa das pesquisadoras, dados colhidos em<br />
notas de campo, gravações em áudio, fotografias das atividades e entrevistas. O contexto estudado<br />
foi a sala de aula de Ensino Fundamental do Projeto de Letramento de Jovens e Adultos<br />
COPPE/CODEP- PR4 que tem como objetivo promover o acesso de jovens e adultos à escolaridade<br />
básica, em especial os servidores e funcionários da COPPE – UFRJ e seu entorno. Contamos com a<br />
participação de <strong>12</strong> alunos, sendo 4 homens e 8 mulheres. A faixa etária variou entre 38 e 71 anos.<br />
Foram desenvolvidas propostas pedagógicas, que abarcam conhecimentos das duas disciplinas<br />
Português e Matemática, distribuídas em 4 etapas. Em todas elas partiu-se primeiramente dos<br />
conteúdos da Matemática para posteriormente aplicar os de Português – situação contrária à prática<br />
habitual. A seguir, expomos a atividade passo a passo, ressaltando os objetivos de cada tarefa<br />
proposta.<br />
4. Aplicação da atividade:<br />
Durante uma das atividades, os alunos são os funcionários do supermercado. Cada dupla (ou<br />
grupo) de alunos é responsável por uma sessão e deve cumprir as tarefas que o professor (gerente)<br />
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estabelecer. A divisão do trabalho em etapas facilita a aplicação pedagógica, conforme verificado a<br />
seguir:<br />
1ª etapa<br />
Todas as mercadorias encontram-se fora das prateleiras e os alunos devem seguir os<br />
seguintes passos:<br />
a- Observar os produtos que estão com a validade vencida e separar os demais em uma<br />
cesta. Para isso, recorrer a um calendário como material de apoio.<br />
b- As mercadorias que estão dentro do prazo de validade devem ser organizadas no sentido<br />
da esquerda para a direita utilizando a ordem crescente de tamanho.<br />
c- Produtos iguais devem ser dispostos em fileiras e em ordem decrescente de validade para<br />
que, os que estiverem com a validade prestes a vencer, sejam logo consumidos<br />
Nessa etapa, trabalhamos variados conteúdos de Matemática que exigiam habilidades<br />
diferenciadas: as funções dos números (ordenação, quantificação e codificação), lateralidade,<br />
organização de espaço, formas geométricas, unidade de volume e proporcionalidade. Todos os<br />
conteúdos surgiram naturalmente, através de observações feitas a partir do manuseio dos produtos e<br />
a vivência dos alunos participantes. Os conceitos foram explorados e sistematizados somente<br />
através da oralidade. Os cálculos processados ao longo da atividade foram discutidos oralmente<br />
pelos alunos, por vezes com a mediação da professora.<br />
2ª etapa<br />
Os produtos com prazos de validade vencidos, que foram separados numa cesta no início da<br />
primeira etapa, devem ser relacionados em uma tabela para “baixa no estoque” e devolvidos ao<br />
fabricante. A tabela contém duas colunas. Na primeira, sugere-se que sejam anotados os nomes dos<br />
produtos e, na segunda, a data do vencimento, sempre em ordem alfabética. Dessa forma, ingressa-<br />
^L`}data de vencimento. Embora não se possa separar a Matemática da Língua Materna, já que a<br />
Matemática não tem oralidade própria, em nenhum momento do estágio anterior, foram solicitadas<br />
aos alunos a leitura e a escrita do nome dos produtos selecionados: a leitura ocorreu<br />
espontaneamente em alguns casos e, em outros, o ícone da marca dos itens conhecidos pelos alunos<br />
permitiu a identificação sem que a decodificação dos códigos ortográficos fosse realizada.<br />
Importante ressaltar que todos realizaram a leitura dos números na etapa anterior, mesmo quando a<br />
compreensão leitora não foi alcançada: por exemplo, não identificaram que, numa data representada<br />
no formato d/m/a, o número do meio representava o mês do ano.<br />
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3ª etapa<br />
Alguns produtos entraram na promoção e tiveram uma redução de R$ 0,52 (sugestivo).<br />
Esses itens foram identificados com uma etiqueta que deveria registrar o preço promocional e ser<br />
relacionados em uma tabela com nome, preço normal e preço promocional. O objetivo consiste em<br />
exercitar as operações de adição e subtração, bem como a leitura e a escrita do nome dos produtos.<br />
Abaixo, a sugestão para a tabela:<br />
Tabela de reajuste de preços<br />
Os itens abaixo entraram na promoção e tiveram uma redução de preço de R$0,52. Complete o<br />
nome dos produtos e faça o reajuste dos preços na tabela:<br />
NOME DO PRODUTO PREÇO NORMAL PREÇO NA PROMOÇÃO<br />
Sucri _____________<br />
Bolo Anna ____________<br />
____________Elege<br />
Leite em pó Ni___________<br />
{}<br />
________vete Nestlé<br />
Refrigerante Coca-cola de 1 ___<br />
R$ 4,89<br />
R$ 1,89<br />
R$ 2,59<br />
R$ 7,98<br />
R$ 4,59<br />
R$ <strong>12</strong>,89<br />
R$ 2,99<br />
Nessa etapa, novamente a interdisciplinaridade esteve presente. Além de preencher a tabela<br />
com o valor obtido após a realização das operações onde o registro coletivo foi incentivado, os<br />
alunos também trabalharam os conceitos de dígrafo, hiato e encontros consonantais.<br />
4ª etapa<br />
Fazer um exercício de cruzadinha com palavras e conceitos explorados anteriormente que<br />
apresentam, normalmente, um certo grau de dificuldade, seja pela arbitrariedade na escrita, seja<br />
pelo processo de transferência fonético-fonológica da fala para a escrita. A finalidade é a de induzir<br />
o aluno à escrita da palavra segundo a norma culta, uma vez que a cruzadinha apresenta o número<br />
exato de letras que a palavra possui. Observe:<br />
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Exercício de cruzadinhas<br />
1- É um dos ingredientes do strogonoff. 8- Ajuda a dar um cheiro bom ao<br />
banheiro.<br />
2- Usamos para lavar roupas. 9- A mulher usa no seu período<br />
3- É o companheiro do feijão no prato<br />
brasileiro.<br />
menstrual.<br />
10- Para fazer mingau precisamos de<br />
_________.<br />
4- Usamos para lavar os cabelos. 11- É usado para lavar louça.<br />
5- No churrasco temos arroz com ________. <strong>12</strong>- O brasileiro gosta de pão com<br />
____<br />
6- No rodízio de massas temos a ________. 13- É usado para fazer feijoada.<br />
7- Quando acordamos tomamos café com<br />
_______.<br />
Embora a proposta tenha como meta principal a leitura e a escrita na língua materna, a<br />
matemática esteve presentes pois pressupõe-se a contagem das letras das palavras.<br />
5. Considerações finais<br />
No âmbito da interdisciplinaridade, foi possível ratificar que, no processo de ensino-<br />
aprendizado, especialmente em EJA, pouco importa a escolha da disciplina para iniciar-se uma<br />
atividade pedagógica. Especificamente neste texto, comprovamos a viabilidade de proposta<br />
direcionada que atenda às duas áreas de conhecimento iniciando-se pelos conteúdos matemáticos.<br />
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A primeira etapa contemplou a oralidade, ora em voga, mas desprestigiada no ensino de<br />
Matemática. Motivados, os alunos perceberam a necessidade de registrar o que havia sido<br />
anteriormente discutido e o processo da fala para escrita evoluiu de forma natural. Foi possível<br />
perceber também que os alunos não “separaram” as atividades de Matemática das de Português. Os<br />
conteúdos integraram-se de tal forma, que a turma passou a indicar caminhos com diferentes<br />
conteúdos de áreas diversas sem que fosse necessária a existência de uma ordenação prévia. A<br />
integração das disciplinas facilitou a transposição dos conhecimentos advindos do letramento social<br />
para o letramento escolar.<br />
Ressalta-se, antemão, inestimável relevância social neste tipo de atividade, uma vez que,<br />
baseada numa situação cotidiana, supõe-se o compartilhamento dos conhecimentos adquiridos por<br />
parte do alunos com seus pares e familiares.<br />
Referências<br />
ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.<br />
BORTONI-RICARDO, S M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São<br />
Paulo: Parábola Editorial, 2004.<br />
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.<br />
MACHADO, N J. Matemática e língua materna: análise de uma impregnação mútua. São Paulo:<br />
Cortez, 2001.<br />
MOLLICA, M C. Fala, letramento e inclusão social. 2ed. Rio de Janeiro: Contexto, 2007.<br />
MOLLICA, M C & LEAL, M. A Matemática e o Português na Alfabetização de Jovens e Adultos.<br />
Rio de Janeiro: Revista Revej@, 2008.<br />
______. Letramento em EJA. Rio de Janeiro: Parábola Editoral, 20<strong>09</strong>.<br />
MOITA LOPES, L P. Contemporaneidade e construção do conhecimento na área de Estudos<br />
Lingüísticos. Minas Gerais: Revista Scripta, 2004.<br />
OLIVEIRA, M K. de. Jovens e Adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. São Paulo:<br />
Revista Brasileira de Educação- ANPED, 1999.<br />
SOARES, M. Letramento e Escolarização. In: RIBEIRO, V. M. (org.) Letramento no Brasil. São<br />
Paulo: Global Editora, 2003.<br />
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.<br />
Parte desse trabalho foi apresentado na Jornada de Iniciação Científica e Cultural da UFRJ no Instituto de Matemática<br />
e contou com a participação Taísa Guindini Gonçalves e Karine Oliveira Bastos alunas de graduação, respectivamente,<br />
do Instituto de Matemática e da Faculdade de Letras.<br />
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A FORÇA ARGUMENTATIVA DOS NEOLOGISMOS:<br />
ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS EM CRÔNICAS DE ARNALDO JABOR<br />
Shirley Lima da Silva Braz *<br />
André Crim Valente<br />
Resumo: Este artigo visa à análise de neologismos lexicais em algumas crônicas de Arnaldo Jabor, jornalista<br />
cuja escrita é sobremaneira engajada com a política nacional. Essas crônicas foram reunidas no livro<br />
Pornopolítica: paixões e taras na vida brasileira, do qual extraímos o corpus trazido ao final, em forma de<br />
glossário. O corpus em questão se justifica em razão de o próprio ato de escrita consistir numa manifestação<br />
de poder. Ressaltam-se a importância da criação lexical, permeada de ideologia, e os aspectos discursivos<br />
presentes no texto argumentativo desse cronista. O objetivo último consiste em visualizar, em panorama, a<br />
crise nacional na qual estamos imersos, por meio da escolha lexical de um cronista que, hoje, alcança cerca<br />
de 50 milhões de brasileiros na mídia, senão com sua escrita, ao menos com sua atuação na mídia televisiva.<br />
Trata-se, portanto, de material propício para se traçar um paralelo entre política e linguagem, numa<br />
perspectiva discursiva.<br />
Palavras-chave: neologismos lexicais, linguagem midiática, estratégias argumentativas, política nacional.<br />
1. Primeiras Palavras<br />
Assim como o stalinismo apagava fotos, reescrevia textos<br />
para coonestar seus crimes, o governo do Lula está criando<br />
uma língua nova, uma “novi-língua” empobrecedora da<br />
ciência política, uma língua esquemática, dualista, nos<br />
preparando para o futuro político simplista que está se<br />
consolidando no horizonte. Toda a complexidade rica do<br />
país será transformada em uma massa de palavras-de-ordem,<br />
de preconceitos ideológicos. Lula será eleito por uma<br />
oposição mecânica entre ricos e pobres, dividindo o país em<br />
“a favor” do povo e “contra”, recauchutando significados<br />
que não dão mais conta da circularidade do mundo atual.<br />
(Grifos ora apostos.) (JABOR, 2006: 186-7)<br />
De início, fazemos uma remissão à epígrafe. Trata-se de um fragmento do livro<br />
Pornopolítica: paixões e taras na vida brasileira, do jornalista e cronista Arnaldo Jabor. 3<br />
Nela,<br />
algumas temáticas se misturam: política, língua e ideologia. A língua como uma tentativa de<br />
entender/explicar a realidade e até mesmo criá-la.<br />
*<br />
Doutoranda em Língua Portuguesa (UERJ), bolsista CAPES e integrante do GT “Descrição e Ensino de Língua:<br />
pressupostos e práticas”.<br />
**<br />
Pós-Doutor (Universidade do Porto), Professor Adjunto da UERJ, Professor Titular do Instituto Brasileiro de<br />
Mercado de Capitais (IBMEC) e Professor Titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso.<br />
3<br />
A partir deste ponto, para evitar repetição, empregaremos AJ para fazer referência a Arnaldo Jabor.<br />
**
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Neste estudo, a proposta é destacar a importância da escolha lexical na produção de um<br />
texto e analisar os neologismos 4 especificamente nas crônicas de Jabor, porque sua escrita é<br />
sobremaneira engajada com a política nacional. Optamos por trabalhar, em sua maior parte, com o<br />
livro citado porque consiste numa coletânea de crônicas 5<br />
desse polêmico jornalista. A escolha<br />
lexical diz muito de sua obra e visão de mundo. É, portanto, material rico para se traçar uma linha<br />
entre política e linguagem verbal, ou melhor, entre política e léxico, como ora se pretende.<br />
Longe de se tratar de uma análise do livro em questão, tem-se por objetivo tão-somente<br />
“pinçar” neologismos nele encontrados – aí incluídos alguns estrangeirismos, eis que, como<br />
veremos adiante, no curso deste trabalho, deles se socorre o autor para, muitas vezes, expressar a<br />
ideologia subjacente, a do americanismo como um mal; em suas palavras, “a América como nosso<br />
mito de competência”– e outros recursos lingüísticos, como, por exemplo, os oximoros, bem como<br />
examinar a escolha lexical empreendida, e situá-la à luz discursiva.<br />
Algumas palavras como lulo-dirceuzismo, neocinismo, pré-valerioduto, ladrões-teflon,<br />
ladrões-espada, breubas, cornologia, cornidão, logocêntrico, suicídios-bomba, porno-corrupto,<br />
pornopolítica, bunda-rasgada, impicharam, homem-bomba x homem-cool, desalienante,<br />
japorongas, entre outras, inclusive locuções do tipo “recrutas do povo”, “exército democrático”,<br />
“militantes imaginários”, “democracia burguesa”, “revolução corrupta”, “tirania esclarecida”,<br />
“adesão alienada”, estão presentes em sua escrita, servindo de material para nossa análise.<br />
E esse corpus ora em questão – crônicas jornalísticas reunidas em um livro – se justifica em<br />
6<br />
razão de o próprio ato de escrita ser uma manifestação de poder, o poder de expressar ideias.<br />
Imagine, então, se a esse poder se alia a criação de novas palavras, por um enunciador “ousado” que<br />
parece não temer expressar essas ideias e transitar pelo léxico com desenvoltura! Ademais, o corpus<br />
jornalístico – não se deve perder de vista que o livro em questão é uma reunião de crônicas<br />
jornalísticas publicadas – consiste num veículo que aborda assuntos diversos, guarda relação com a<br />
cotidianidade, atinge um grande número de receptores e, segundo André Valente, implica “um<br />
padrão médio de linguagem da nossa sociedade”. 7<br />
4<br />
Os dicionários utilizados como parâmetro para a consideração do que é ou não neologismo, ou seja, nosso corpora de<br />
exclusão, foram o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e o Dicionário Aurélio Século XXI. Também nos serviu de<br />
referência o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), edição 20<strong>09</strong>, de acordo com a Reforma<br />
Ortográfica.<br />
5<br />
Estamos tratando de jornalismo opinativo no gênero “crônica”.<br />
6<br />
Segundo Teun van Dijk, “quanto menos poderosa for uma pessoa, menor o seu acesso às várias formas de escrita e<br />
fala. No fim das contas, os sem-poder ‘não têm nada para dizer’, literalmente, não têm com quem falar ou precisam<br />
ficar em silêncio quando pessoas mais poderosas falam, como no caso das crianças, dos prisioneiros, dos réus e (em<br />
algumas culturas, incluindo algumas vezes a nossa) das mulheres”. (DIJK, T. Discurso e poder. São Paulo: Contexto,<br />
2008. p. 44).<br />
7<br />
VALENTE, A. “Produtividade lexical: criações neológicas”. In: PAULIUKONIS e GAVAZZI (orgs.). Da língua ao<br />
discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. p. <strong>12</strong>9.<br />
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A semântica também é foco deste estudo, pois, como afirma Jabor na epígrafe que abre este<br />
trabalho e no seguinte fragmento: “Com a esquerda no poder, surgiram os ladrões ideológicos: ‘Não<br />
é roubo, não...’, afirmam. ‘Trata-se de ‘desapropriação’ dos burgueses que exploram o povo.’”<br />
Há, portanto, uma manipulação para atenuar o verdadeiro significado oculto em atos socialmente<br />
condenáveis, um verdadeiro desvio de significado e até mesmo uma escolha lexical que tem como<br />
propósito “mascarar” ou, por que não dizer, “maquiar” a situação em que vivemos. 8<br />
Afinal, como<br />
ele mesmo nos diz: “A crise nos inclui na política. Aliás, crise no Brasil é quando a política fica<br />
visível para a população”.<br />
Este, portanto, o objetivo final do presente artigo: visualizar um pouco da crise nacional na<br />
qual estamos imersos por meio da criação/escolha lexical de um cronista que, hoje, alcança cerca de<br />
50 milhões de brasileiros, senão com sua escrita, ao menos com sua atuação na mídia televisiva,<br />
pois, se podemos escolher o que lemos, nem sempre podemos escolher o que vemos, pois a televisão<br />
“invade” nossa vida.<br />
Desse modo, como nosso “tema maior” – se é que assim podemos chamá-lo – é o léxico,<br />
trazemos alguns conceitos teóricos pertinentes à importância da escolha lexical. Logo em seguida, a<br />
questão discursiva, na qual o léxico se insere, pois não há como desvincular o vocábulo do<br />
9<br />
contexto. Por último, alinhamos os neologismos contextualizados.<br />
2. Importância da Criação/Escolha lexical<br />
Aqueles macacos que, na Idade do Gelo, se esconderam numas cavernas sujas pra não<br />
morrer de frio tiveram de inventar a tal da ‘linguagem’ para preencher o vazio entre eles e a<br />
natureza... (JABOR, 2006: 171)<br />
Não se pode negar que as mudanças sociais estão profundamente associadas à criação<br />
lexical, o que, logicamente, motiva relações interdisciplinares. A palavra é um instrumento de<br />
manipulação e nenhuma escolha lexical é gratuita.<br />
A língua, segundo senso comum, serve para nos comunicarmos uns com os outros sobre o<br />
que nos cerca – os objetos, as pessoas, as ideias etc. e também as respectivas relações existentes.<br />
Para tanto, é preciso que recorramos às palavras e que elas expressem as características desses<br />
objetos – se reais ou imaginários, se concretos ou abstratos, se naturais ou artificiais.<br />
Segundo Margarida Basílio, “o léxico é um banco de dados previamente classificados, um<br />
depósito de elementos de designação, o qual fornece unidades básicas para a construção dos<br />
8 O Prof. Helênio Fonseca de Oliveira, em seu artigo “Conflito entre a natureza pejorativa ou meliorativa das escolhas<br />
lexicais e a orientação argumentativa do texto”, examina a natureza desse fenômeno linguístico.<br />
9 Contextualizar neologismos, segundo Maria Aparecida Barbosa, significa verificar “quem criou a nova palavra, em<br />
que universo do discurso foi produzida, em que tempo, em que lugar geográfico e semântico surgiu, para quem foi<br />
criada, como foi criada” (“Da neologia à neologia na literatura”. In: OLIVEIRA e ISQUERDO [orgs.], 2001: 35).<br />
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enunciados” (BASÍLIO, 2005: 9)..E acrescenta: “O léxico, portanto, categoriza as coisas sobre as<br />
quais queremos nos comunicar, fornecendo unidades de designação, as palavras, que utilizamos na<br />
construção dos enunciados” (BASÌLIO, 2005: 9).<br />
Assim, o léxico seria a reunião ou o conjunto dessas palavras que utilizamos para expressar<br />
nossas necessidades, nosso dia-a-dia, nossas relações. Elas repousariam, portanto, no dicionário –<br />
nosso acervo lexical real. Mas como explicar aquelas novas palavras que ainda não estão<br />
dicionarizadas? Não estariam, elas também, incorporadas ao nosso léxico?<br />
A mesma Margarida Basílio nos apresenta a solução, trazendo a noção de léxico externo (ou<br />
real) e léxico mental (ou virtual). Ao primeiro, destinamos as palavras já consagradas pelo uso e já<br />
incorporadas aos dicionários; aos segundos, a potencialidade na criação de novas palavras, ou seja,<br />
a um sistema preexistente – uma série de entradas lexicais – que permite ao usuário criar novas<br />
palavras. Isto porque, como ela explica, a língua obedece a um princípio de economicidade. Não<br />
haveria como um falante “decorar” ou memorizar várias palavras a cada nova situação surgida.10<br />
Margarida Basílio ainda afirma que “o léxico é ecologicamente correto”, fazendo o que ela<br />
chama de “reciclagem”, ou seja, aproveitando palavras já existentes, ou melhor, pedaços de<br />
palavras, para formar outras. Nesse sentido, o processo de formação de palavras utiliza material<br />
lingüístico preexistente na língua. Temos, portanto, os neologismos, ou seja, as novas palavras,<br />
criadas para dar conta de novas situações, novos conceitos, fatos, objetos, assim designadas por um<br />
determinado tempo.<br />
Neste estudo, abordamos prioritariamente – mas não exclusivamente –os neologismos<br />
lexicais da categoria “literários” em crônicas de AJ. 11 Sobre o tema, Michel Rifaterre diz:<br />
O neologismo literário difere profundamente do neologismo na língua. Este é forjado para<br />
exprimir um referente ou um significado novo; seu emprego depende, portanto, de uma<br />
relação entre palavras e coisas, em suma, de fatores não lingüísticos; é, antes de mais nada,<br />
portador de uma significação, e não é necessariamente captado como forma insólita. O<br />
neologismo literário, ao contrário, é sempre captado como uma anomalia e utilizado em<br />
virtude dessa anomalia, às vezes até independentemente de seu sentido. Ele não pode deixar<br />
de chamar a atenção porque é captado em contraste com seu contexto e porque seu emprego,<br />
assim como seu efeito, dependem de relações que se situam inteiramente na linguagem.<br />
(Grifos ora apostos.) (Rifaterre Apud VALENTE, 1989 In AZEREDO, 2000)<br />
E acrescenta, para melhor entendimento do uso desse tipo de neologismo:<br />
10 Margarida Basílio ilustra essa dificuldade fazendo uma analogia com uma lista telefônica. Se não houvesse esse<br />
sistema na língua, teríamos de memorizar as palavras tal como fazemos com números de telefone existentes em uma<br />
lista – não há uma regra, uma previsibilidade.<br />
11 Em crônica recentíssima, datada de 9 de <strong>dez</strong>embro de 2008, publicada no jornal O Globo, AJ justifica a intensa<br />
produtividade lexical da atualidade: “Além da crise econômica e social, vivemos hoje também uma crise lingüística.<br />
Sim, os fatos estão superando as interpretações. O mundo aboliu certezas. E palavras novas gemem por existir.”<br />
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Quer se trate de uma nova palavra, quer de um sentido novo, ou de uma transferência de<br />
categoria gramatical, o neologismo literário suspende o automatismo perceptivo, obriga o<br />
leitor a tomar consciência da forma de mensagem que está decifrando, tomada de<br />
consciência que é própria da comunicação literária. [...] E só se pode analisá-la<br />
descrevendo o funcionamento do neologismo no sistema que constitui o texto. Ele se integra<br />
a esse sistema de significações e formas. [...] Sua própria singularidade não se deve ao seu<br />
isolamento, mas, ao contrário, ao rigor das seqüências semânticas e morfológicas das quais<br />
ele é o ponto de chegada ou de interferência (Rifaterre Apud Valente In: VALENTE, 2007:<br />
25).<br />
Assim é que AJ, quando cria os vocábulos aqui referidos, não se funda propriamente nas<br />
necessidades do dia-a-dia, mas sim num contexto intratextual, em que a criação se circunscreve às<br />
exigências de sua expressividade no texto. É claro que ele recorre a neologismos de língua, ou<br />
culturais, alguns, inclusive, recém-consagrados, como, por exemplo, mensalão, pré-valerioduto etc.<br />
Mas, quando ele cria porno-corrupto, homem-cool, pornopolítica, ladrões-teflon, etc., são usos que<br />
estão adstritos ao texto e que nele devem ser compreendidos – num sentido microdiscursivo, é<br />
claro, porque, num sentido macrodiscursivo, eles devem ser vistos à luz da realidade em que foram<br />
criados, levando em conta, como adverte Maria Aparecida Barbosa, o enunciador, o momento de<br />
criação, o lugar em que foi criado, dentre outros fatores relevantes.<br />
Essas novas palavras – os significantes, pelo processo de neologia lexical, pois, se fosse a<br />
aquisição de significados, estaríamos no campo da neologia semântica – são criadas por derivação e<br />
composição. No primeiro caso, apõem-se principalmente os sufixos, que são de grande<br />
produtividade lexical. Segundo Mattoso Câmara,<br />
a exploração do valor estilístico dos sufixos é bem apreensível na oratória política, no<br />
jornalismo cotidiano e na gíria lato sensu. Uma curiosa conseqüência é a cunhagem de novas<br />
palavras de força expressiva. Encontramo-la na linguagem literária e na linguagem popular.<br />
(CAMARA: 62)<br />
Nas crônicas em questão, encontram-se neologismos como neocinismo, cornologia,<br />
cornidão, entre outros, todos eles em tom jocoso. Sobre o tema, Marcel Cressot observa:<br />
o neologismo, pelo menos na escrita artística, visa igualmente, por substituição do sufixo,<br />
uma adequação do volume ou da ressonância da palavra à ideia. Substituem-se sufixos<br />
insuficientemente expressivos, reduzem-se e alongam-se massas; uma nova forma de<br />
superlativo é representada pelo prefixo ‘super’ [...] são expressões freqüentes na linguagem<br />
jornalística, precisamente com o objetivo de chamar a atenção ou suscitar admiração; há por<br />
vezes neologismos jocosos (chauvinite, heroíte), provando, mais uma vez, que nem todos os<br />
sufixos são elementos puramente gramaticais. [...] É conveniente, aliás, tomar em<br />
consideração a psicologia do neologismo, o desejo que o utente tem desse neologismo.<br />
(Grifos ora apostos.) (CRESSOT, 1947: 79)<br />
Como exemplos do processo de composição, temos: porno-corrupto, homem-cool, pornopolítica,<br />
ladrões-teflon, entre outros.<br />
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Todos, porém, como se encontra na citação de Rifaterre, provocam uma espécie de<br />
“estranhamento” no leitor e clamam por sua participação para decifrar o verdadeiro sentido do<br />
termo, por uma “tomada de consciência”.<br />
Ainda no campo da escolha lexical, registra-se um recurso utilizado por AJ em suas crônicas<br />
para causar impacto no leitor: o coloquialmente conhecido “palavrão”, ou termo com significado<br />
erótico ou obsceno. Senão, vejamos nas seguintes passagens:<br />
Eta garoto bão, espertalhaço!, ou seja, se diante de si e do mundo, puderes enfunar a<br />
barrigona cheia de merda e dizer: ‘Sou ladrão sim, mas quem não é? (JABOR: 13)<br />
Em Celebridade, reparem que os bonzinhos têm até uma certa inatualidade careta. Quem nos<br />
fascina são os filhos-da-puta... Por quê? Bem, porque os psicopatas são nosso futuro. Eles<br />
encarnam a vida moderna, cada vez mais, pois estamos sendo pautados pela luta absurda de<br />
dois psicóticos: Osama de um lado, com seu exército de fanáticos rezando com o rabo para<br />
Deus, e, do outro, a mesma coisa com Bush e seus malucos. Nossa esperança com os EUA<br />
virou pó. (JABOR: 87)<br />
De certa forma, a trepada é a tentativa de encaixe que não acontece nunca, mesmo quando<br />
dá certo.(JABOR: 21)<br />
AJ sente-se muito à vontade com esse recurso ao longo do texto e, do ponto de vista dos<br />
efeitos causados, sem dúvida remete a certa “intimidade” que ensaia com o receptor, como se<br />
estivesse travando um diálogo no “boteco da esquina”, com a liberdade natural, ou melhor dizendo,<br />
com a falta de “freios” naturalmente impostos na linguagem escrita, que, via de regra, exige maior<br />
elaboração. O processo enunciativo de AJ, assim, pela escolha lexical, aproxima a ambos –<br />
enunciador e receptor.<br />
Igualmente a utilização frequente de oximoros no texto revela os paradoxos com que o autor<br />
se depara em seu cotidiano e que transmite em seu discurso. O oximoro é uma figura que consiste<br />
na reunião de palavras contraditórias, um paradoxismo, formando um terceiro conceito que depende<br />
da interpretação do leitor. Como o oximoro normalmente soa absurdo, em um primeiro momento, à<br />
interpretação do receptor, ele se vê forçado a buscar um sentido metafórico e, acima de tudo,<br />
entendê-lo dentro de um contexto macroestrutural. Exemplos no texto:<br />
Procuro com os olhos os bravos soldados do ‘exército democrático’. (JABOR: 28)<br />
[...] e tudo teria de ser sob a batuta quase de uma ‘tirania esclarecida’, que pulasse por cima<br />
da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice... (JABOR:<br />
44)<br />
Jeff é o anti-herói heróico. Jeff conhece a boca do boi, a baba das coisas, a barra-pesada.<br />
(JABOR: 60)<br />
[o papa] Visitou o Chile de Pinochet e o Iraque de Saddam e, ao contrário de ser uma<br />
‘adesão alienada’, foi uma crítica muito mais alta, mostrando-se acima de sórdidas políticas<br />
seculares... (JABOR: 70)<br />
A bomba americana foi uma ‘vitória da ciência’. Hiroshima e Nagasaki dão início à ‘guerra<br />
limpa’, do alto, prefigurando Guerra do Golfo, Afeganistão e Iraque II. (JABOR: 1<strong>09</strong>)<br />
Com Hiroshima, inaugurou-se a ‘guerra preventiva’ de hoje. (JABOR: 1<strong>12</strong>)<br />
Como em seu neto Nelson Rodrigues, há nele uma ‘superficialidade profunda’, muito<br />
atual neste tempo em que os valores idealizados caíram no chão. (JABOR: 202)<br />
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Em texto recentíssimo, AJ explica a utilização recorrente dos oximoros:<br />
Temos de recorrer aos chamados ‘oximoros’. Sabem o que são? O oximoro é a figura<br />
retórica mais útil no mundo atual. Nascem de duas palavras contraditórias que se unem para<br />
chegar a um terceiro sentido. São como bichos de duas cabeças, centauros da sintaxe, para<br />
dar conta da ambivalência do mundo. [...] Podemos falar de um ‘silêncio eloqüente’ ou o<br />
contrário, ‘uma eloqüência muda’, como tantos discursos com que o governo atual nos<br />
afoga.<br />
No texto de AJ, encontramos, também com relativa frequência, estrangeirismos, que<br />
consistem num tipo de neologia por empréstimo ou, como ensina André Valente,<br />
em uma transferência lexical para uma nova língua de um elemento já formado pertencente a<br />
uma língua estrangeira viva (inglês, russo, alemão etc.) ou morta (latim, grego, sânscrito<br />
etc.). Chama-se, às vezes, este tipo de neologia de neologia externa. ‘A neologia de<br />
empréstimo consiste não na criação do signo, mas na sua adoção’ (Louis Gilbert, La<br />
créativité lexicale). (VALENTE, 2007: 24)<br />
Frise-se que, na prática, é comum constatarmos o uso de estrangeirismos como um recurso<br />
de prestígio. Assim é que, por exemplo, no cotidiano, temos sale no lugar de liquidação; na Barra<br />
da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, “New York City Center” para nomear um centro que reúne<br />
lojas comerciais e cinemas; e por aí vai.<br />
Nos textos de AJ, porém, embora não seja raro notar o uso de estrangeirismos com certa<br />
recorrência, nós o vemos quase sempre em tom irônico, <strong>12</strong> como um recurso para expressar sua ideia<br />
de “desprestígio” ao americanismo. Assim, temos: summer-jacket e café society (em “Carnaval é<br />
uma promessa de amor”); conference calls e superstars (“Estamos todos no inferno”); early nothing<br />
e snuff movie (“Viagem ao pornocinema”); suspension of disbelief (“Finalmente veremos a cara suja<br />
do Brasil”); happy end (“A noite em que comentei o Oscar”); bullshit costumeiro e gay power<br />
(“Brokeback é um filme sobre machos”); silent generation (“A América pode voltar aos anos 50”);<br />
morte on delivery, fast, clean (“Hiroshima: a guerra do século XXI”); nightclub e target 13<br />
(“O lobo<br />
com suas grandes asas”); crash, real politik e shit politics (“Viva a catástrofe! Os bons tempos<br />
voltaram!”).<br />
Está claro que se trata de um enunciador muito crítico, que produz seus textos impregnados<br />
de apelo e afetividade, e que constantemente ironiza<br />
14<br />
e contrapõe as culturas norte-americana e<br />
<strong>12</strong> Sobre a ironia, lembramos as palavras de Nilce Sant’Anna Martins: “A ironia, o paradoxo [...] só são apreendidos<br />
pelo receptor se ele atenta para a violação da relação de verdade entre o que o emissor diz literalmente e aquilo de que<br />
ele fala. O conhecimento do referente é indispensável para que se compreenda o sentido que se deve atribuir ao<br />
enunciado. Na ironia, o sentido oposto ao literal. [...] MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística. São Paulo:<br />
T. A. Queiroz, Editor, 2000.<br />
13 “Era uma meta que ele traçava como um target.”<br />
14 Beth Brait, em seu livro A ironia em perspectiva polifônica, observa: “Necessariamente, e aceitando-se que texto e<br />
discurso são processos que implicam produção e recepção, ou seja, sujeitos envolvidos em uma interação, a perspectiva<br />
interessa-se também pelo destinatário, que, assim como seu parceiro, detém diferentes papéis, aparecendo como<br />
receptor, interlocutor, ouvinte, enunciatário, leitor, e cuja função ativa no discurso será participar da dimensão<br />
significativa, na medida em que é o ponto visado pelas estratégias elaboradas pelo produtor.” (p. 14)<br />
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brasileira, e até mesmo o que ele chama de “mito da competência da América”. Sobre o tema,<br />
esclarece Mattoso Câmara:<br />
É igualmente a tonalidade afetiva que torna, às vezes, tão atraente para o sujeito falante ou o<br />
escritor o emprego de um estrangeirismo em que há, por motivos vários, certa vibração<br />
emocional. O critério gramatical de só usar um termo estrangeiro quando falta um vernáculo<br />
com a mesma exata acepção é inoperante do ponto de vista estilístico.<br />
É inútil, por exemplo, reclamar contra o emprego de big no estilo dos nossos anúncios<br />
comerciais. A palavra traz em si aquela sensação da gran<strong>dez</strong>a material que adere à nossa<br />
concepção das coisas norte-americanas, e o comerciante experimentado bem sabe que o<br />
apelo por meio dela tocará mais fundo na alma do público. (Grifos ora apostos.)<br />
Assim é que constatamos um uso estritamente intencional, com intensa carga irônica e<br />
negativa, como nos trechos a seguir transcritos:<br />
A mão displicente do Maurício Marinho pega os três mil reais que surgem no canto do<br />
quadro e ele os embolsa, deixando-a escorregar para dentro do paletó, com a calma de quem<br />
recebe um troco de cafezinho, e o espetáculo shakesperiano de Jefferson na Câmara, com<br />
sua camisa lilás de candomblé, tão Brasil, tão nosso, sua impecável ausência de suor, seu<br />
rosto frio, seus biquinhos, suas mãos ondulantes, suas pausas dramáticas... ahhh... suas<br />
pausas que poucos atores ousariam, longas, criando a suspension of disbelief, a expectativa,<br />
culminando em dedos espetados, sorrisos sardônicos. (JABOR: 83-4)<br />
Tudo bem que são contra a homofobia e todo o bullshit costumeiro. (JABOR: 95)<br />
Auschwitz e Treblinka ainda eram ‘fornos’ da Revolução Industrial, mas Hiroshima<br />
inaugura a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no<br />
furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses e meses do nazismo. O que mais<br />
impressiona em Hiroshima é a eficiência, sem trens de gado humano, a morte on delivery,<br />
fast, clean, anglo-saxônica. A bomba americana foi uma ‘vitória da ciência’ (JABOR: 1<strong>09</strong>)<br />
A real politik virou ‘shit politics’ (JABOR: 207) (Todos os grifos são meus.)<br />
Eles se amontoavam no fundo dos ônibus, em pé, bebiam em bebedouros estragados para<br />
colored, moravam num bairrozinho sujo, perto do braço-do-mar onde os barcos pesqueiros<br />
de camarão fediam. (JABOR: 104)<br />
Fico chocado e apavorado, pois a América pode voltar ao tempo das ‘platitudes’ e da silent<br />
generation, como na época de miss Alden e do meu dentista de olhos amarelos. (JABOR:<br />
107)<br />
Ser desumano é in. (JABOR: 191)<br />
Observe-se, portanto, que, no terceiro fragmento, quando AJ se refere à morte, recorre a<br />
termos da língua inglesa, como se houvesse tamanha identificação ou colagem entre o substantivo<br />
morte e a respectiva adjetivação – on delivery, fast, clean – que não fosse possível usar a língua<br />
portuguesa. Temos, pois, um efeito estilístico muito mais intenso.<br />
3. Escolha Lexical e Questão Discursiva no Texto Argumentativo de AJ<br />
mas até os xingamentos eram previstos na cartilha marxista: acusávamo-nos de ‘hesitantes’<br />
ou ‘radicais’ ou ‘sectários’ ou ‘pequeno-burgueses’ ou ‘alienados’ ou ‘provocadores’ ou<br />
‘obreiristas’ ou ‘aventureiros’ ou ‘liberais’ ou o diabo a quatro. E eu, do meu canto<br />
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neurótico, pensava: ‘Não ocorre a ninguém que há também os invejosos, os ignorantes, os<br />
mentirosos, os paranóicos, os babacas e os FDPs? (JABOR: 213)<br />
O objetivo de toda argumentação, como dissemos, é provocar ou aumentar a adesão dos<br />
espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação eficaz é a que<br />
consegue aumentar essa intensidade de adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a<br />
ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma disposição para<br />
a ação, que se manifestará no momento oportuno. (PERELMAN; OLBRECTHS-TYTECA,<br />
2002: 50)<br />
O desenvolvimento que se estende na multiplicidade discursiva não é só o desenvolvimento<br />
dos conceitos, mas atinge igualmente o elemento da linguagem. É a multiplicidade das<br />
designações possíveis – segundo a diversidade das línguas – o que concede maior potência à<br />
diferenciação conceitual. (GADAMER, 2004: 561)<br />
Não há dúvida de que toda palavra ou locução empregada num texto deve ser examinada no<br />
contexto e de que a escolha lexical define seu rumo. Até então, nada mais do que o óbvio. Como<br />
lembra Maria Aparecida Baccega,<br />
[a palavra] ‘canta’ sempre num salão de baile, onde ‘dança conforme a música’, utiliza-se de<br />
máscaras ou despe-se, permitindo que se veja toda sua beleza. OU seja: a palavra nunca está<br />
só – ela sempre aparece acompanhada. Ela está sempre num discurso, ou seja, é no discurso,<br />
que Pêcheux denomina de formação discursiva, que a palavra assume seu significado. E os<br />
discursos nos quais ela aparece são aqueles que a própria língua permite.<br />
Exemplo claro disso é o emprego de “consciências virginais” por AJ. Sem uma visão do<br />
contexto intra e extradiscursivo, muito se perde de seu sentido.<br />
Trata-se, de fato, da crônica “Maldita seja a pornopolítica”, em que AJ está maldizendo os<br />
políticos. A expressão está inserida no seguinte parágrafo:<br />
Malditas sejam também as ‘consciências virginais’, as mentes ‘puras’ que se escandalizam<br />
com os horrores, mas nada fazem; malditos os alienados e covardes, malditos os limpos, os<br />
não-culpados, os indiferentes, que se acham superiores aos que sofrem e pecam; malditos<br />
intelectuais silenciosos que ficam agarrados em seus dogmas e que preparam a espúria<br />
reeleição dessa gente e a chegada posterior dos populistas e falsos evangélicos mais sórdidos<br />
do país! (JABOR: 229)<br />
Transcrito o parágrafo e estabelecidas as conexões com nosso “conhecimento de mundo”,<br />
fica claro que ele se refere ao episódio do mensalão e ao alegado desconhecimento dos fatos<br />
envolvidos no escândalo pelo presidente Lula.<br />
Ora, nitidamente, em todos os textos observados, dentro do contrato de comunicação<br />
midiático, AJ busca persuadir e seduzir o leitor, com ênfase para a sedução, tendo em vista o amplo<br />
apelo à emotividade do leitor. 15<br />
Ferreira Neves Ribeiro, que assim resume:<br />
E, quando se fala em persuasão e sedução, remete-se a Patrícia<br />
15 Como exemplo, veja-se a seguinte passagem na crônica “Maldita seja a pornopolítica”: “Malditos anos de cara suja,<br />
malditos olhinhos vorazes, malditos espertos fugitivos da cassação; anematizados e desgraçados sejam os que levam<br />
dólares na cueca e, mais que eles, os que levam dólares às Bahamas, malditos os que usam o ‘amor ao povo’ para<br />
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Tanto persuadir como seduzir têm em comum o controle do outro. No entanto, na persuasão<br />
esse controle relaciona-se à razão e, na sedução, à emoção. O princípio da persuasão<br />
fundamenta-se no ato de fazer o outro crer em algo, por meio de um rigor lógico, com vistas<br />
à sua adesão. Já o princípio da sedução é o de dar prazer ao outro, ou seja, o de levá-lo a<br />
experimentar estados emocionais agradáveis que provoquem alterações em seu<br />
comportamento. (RIBEIRO, 2003: <strong>12</strong>2)<br />
AJ traz o leitor para seu universo do discurso, para a sua forma de pensar, senão para fazê-lo<br />
concordar com seus argumentos, ao menos para conclamá-lo a deles discordar com contra-<br />
argumentos à mesma altura. Ou seja, ele exige do leitor um posicionamento ideológico – e, para<br />
tanto, recorre a um léxico que poderia ser chamado de “contundente” (essa é sua escolha). Não há<br />
meias palavras, não há sentidos ocultos, as palavras são proferidas “nua e cruamente”, para causar<br />
impacto, para fazer com que o leitor compartilhe determinadas opiniões. Ainda sobre o tema,<br />
Ingedore Koch sustenta que<br />
o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,<br />
constitui o ato lingüístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma<br />
ideologia, na acepção mais ampla do termo. A neutralidade é apenas um mito: o discurso<br />
que se pretende ‘neutro’, ingênuo, contém também uma ideologia – a de sua própria<br />
objetividade. (KOCH, 2006: 17)<br />
Em AJ, não há ocultamento nem tentativa de mostrar-se neutro. Muito pelo contrário. A<br />
escolha lexical é bastante clara em demonstrar seu posicionamento. Vejamos:<br />
Nunca achei o Dirceu ladrão, apesar de ele não acreditar. Defendi-o até no caso Waldomiro<br />
Diniz, achando que ele tinha sido apenas tolerante com um sem-vergonha ‘útil’. Depois é<br />
que percebi a extensão de seu plano ‘revolucionário’. E ataquei-o, porque ele, do passado<br />
em preto e branco, queria invadir o presente, com uma subversão regressista que nos<br />
jogaria de volta a um tempo morto. [...] Ataquei o Dirceu por seu ‘aventureirismo’,<br />
‘voluntarismo’ e ‘desvio de esquerda’ (para usar a linguagem do PT). Muita gente boa<br />
ainda acha que ‘sempre foi assim’, que Dirceu mereceu a cassação por ‘corrupção’. Mas,<br />
antes, nunca houve uma tentativa de se ‘tomar o Estado’ usando o dinheiro público pelo<br />
‘bem do povo’. Dirceu caiu por mais uma falha de nossa esquerda de trapalhões, como em<br />
63 ou em 68, no Congresso de Ibiúna. (Grifos ora apostos.) (JABOR: 156)<br />
Observem-se os termos em negrito. Não se pode atribuir a escolha a um mero ato não-<br />
intencional. Inevitável lembrarmo-nos das palavras de Ingedore Koch:<br />
Ao produzir um discurso, o homem se apropria da língua, não só com o fim de veicular<br />
mensagens, mas, principalmente, com o objetivo de atuar, de interagir socialmente,<br />
instituindo-se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como interlocutor, o outro, que é,<br />
por sua vez, constitutivo do próprio EU, por meio do jogo de representações e de imagens<br />
recíprocas que entre eles se estabelecem. (KOCH, 2006: 19)<br />
justificar suas ambições fracassadas, malditos severinos que rondam ainda, malditos waldomiros e waldemares que<br />
rondam ainda, malditos dirceus, arroz-de-festa de intelectuais mal-informados (sic), malditos sejam, pois neles há o<br />
desejo de fazer regredir o Brasil para o velho Atraso pustulento, em nome de suas doenças mentais infantis!” (JABOR:<br />
230).<br />
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4. A Questão da Ideologia<br />
A linguagem humana é nosso instrumental número 1 em comunicação. Nesse passo, uma<br />
língua está a serviço de determinada comunidade e dispõe de um mecanismo que propicia a<br />
construção de palavras novas, para atender às necessidades do progresso material e intelectual. As<br />
línguas se modificam no tempo, no espaço geográfico, entre as classes sociais. Com a língua,<br />
movimentam-se o espírito e o intelecto do homem. E, como nos diz José Luiz Fiorin (2005: 16), “é<br />
no nível do discurso que devemos, pois, estudar as coerções sociais que determinam a linguagem”.<br />
As línguas humanas mudam, portanto, porque não consistem em realidades estáticas. Essas<br />
mudanças – em estruturas e palavras que existiam e deixam de existir ou a sua ocorrência<br />
modificada em sua forma, função ou significado – se dão de forma lenta e gradual e não nos damos<br />
conta delas – nossa sensação repousa na permanência, e não na dinamicidade.<br />
Podemos concluir que, dado o nosso recorte, também ele está impregnado da visão de AJ<br />
sobre a sociedade. Não nos esqueçamos de que, para Bakhtin (2004: 15), “todo signo é ideológico;<br />
a ideologia é um reflexo das estruturas sociais; assim, toda modificação da ideologia encadeia<br />
uma modificação da língua” (grifo meu). Exemplos no texto:<br />
O que apavora é que quase expulsaram Clinton por sexo e, hoje, ninguém falou em<br />
impeachment para Bush, um canalha que destruiu o nome da América, dividiu o Ocidente e<br />
criou possibilidades reais de guerra nuclear para os fanáticos. (JABOR: 16-7)<br />
A religião não é o ópio do povo; é a bomba do povo. (JABOR: 16-7)<br />
5. Os Neologismos Contextualizados (Glossário)<br />
O presente corpus contém 41 neologismos, selecionados pelo critério da expressividade –<br />
critério intrinsecamente subjetivo. Optou-se prioritariamente pela inclusão no corpus de neologias<br />
lexicais. Todos os verbetes são organizados na ordem de surgimento nas crônicas e contêm o<br />
respectivo contexto (transcrição do trecho ou frase em que aparece, de modo a guardar unidade de<br />
significação).<br />
Os verbetes identificam os termos neológicos em grifo.<br />
1) Verbete: apaga-a-luz (p. <strong>12</strong>)<br />
Contexto: “se, no fundo do coração, achas que roubar o Estado ou os estados ou as prefeituras ou<br />
os camelôs ou os lixeiros ou os mendigos é, portanto, uma causa nobre e um ato quase<br />
revolucionário, que a mutreta, a maracutaia, a ‘mão grande’, o apaga-a-luz, o ‘me da o meu aí’ têm<br />
algo de transgressão pós-moderna, algo de Robin Hood para si mesmo, como dizes, soltando a<br />
piada ‘ah-ah, roubo dos ricos para o pobre aqui... ah-ah.”<br />
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2) Verbete: impicharam (p. 16)<br />
Contexto: “Foi feio ver o Clinton jurar em close na TV que jamais comera a moça e, dias depois, o<br />
espermatozóide guardado por Linda Tripp vir a público para destruí-lo. Quase impicharam o<br />
homem, e, como a besta careta do Al Gore ficou com medo de defender Clinton na campanha, pois<br />
sua mulher e a América podiam considerá-lo conivente com a sacanagem, Bush foi eleito, com a<br />
fraude do irmãozinho na Flórida.”<br />
3) Verbete: carmens (p. 21)<br />
Contexto: “Outras mulheres me fascinaram pela impossibilidade de atingi-las, as carmens pareciam<br />
minha mãe perdida, e fiquei atraído pelo charme infinito das histéricas.”<br />
4) Verbete: meninas-modelos (p. 24)<br />
Contexto: “E Daniella era branca e bela demais, frágil, dama do círculo dos rapazes ‘finos’ de São<br />
Paulo, o clube dos sedutores milionários que freqüentam em revezamento as meninas-modelos.”<br />
5) Verbete: pegadinhas (p. 26)<br />
Contexto: “E a festa era tão pretensiosa que os ricos ‘finos’ começaram a sabotá-la. Penetras se<br />
organizam em pegadinhas e muitos penetraram não indo.”<br />
6) Verbete: bunda-rasgada (p. 30)<br />
Contexto: “Meu Deus... eu que imaginava os grandes festivais do socialismo com Lenin e Fidel, eu<br />
que era um herói virei um bunda-rasgada!”<br />
Comentário: Alusão ao vocábulo bunda-mole, mais usual.<br />
7) Verbete: frase-provocação (p. 34)<br />
Contexto: “Anos depois me lembraria dela, quando li a frase-provocação de Nelson Rodrigues: ‘A<br />
pior forma de solidão é a companhia de um paulista...”<br />
8) Verbete: tucanos (p. 38)<br />
Contexto: “Escrever o que sobre essa paralisia histórica mundial que finge ser dinâmica, mas<br />
apenas roda no mesmo erro, como um aleijado caído no chão, girando em volta de si mesmo, entre<br />
Bush e Osama, entre Lula e tucanos, entre Garotinhos, Rosinhas, irrelevâncias políticas<br />
regressistas?”<br />
Comentário: Neologia semântica, remetendo aos indivíduos filiados ao Partido Político PSDB.<br />
9) Verbetes: Garotinhos e Rosinhas (p. 38)<br />
Contexto: “Escrever o que sobre essa paralisia histórica mundial que finge ser dinâmica, mas<br />
apenas roda no mesmo erro, como um aleijado caído no chão, girando em volta de si mesmo, entre<br />
Bush e Osama, entre Lula e tucanos, entre Garotinhos, Rosinhas, irrelevâncias políticas<br />
regressistas?”<br />
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10) Verbete: homens-bomba (p. 44)<br />
Contexto: “Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar<br />
e me matar... mas eu posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos homens-bomba. Na favela tem<br />
100 mil homens-bomba... Estamos no centro do Insolúvel, mesmo... Vocês no bem e eu no mal e,<br />
no meio, a fronteira da morte, a única fronteira.”<br />
11) Verbete: microondas (p. 45)<br />
Contexto: “Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no<br />
microondas... ha ha... Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes.”<br />
Comentário: Neologia semântica, eis que microondas, aqui, não tem o sentido original do termo,<br />
mas uma espécie de “aparelho” que os traficantes usam para queimar pessoas que lhes são<br />
contrárias ou prejudiciais, uma justiça manu militari, feita com as próprias mãos. Com esse<br />
significado, não há registro no corpora de exclusão.<br />
<strong>12</strong>) Verbete: pornocinema (p. 49)<br />
Contexto: “Viagem ao pornocinema.”<br />
13) Verbete: pornô-estrelas (p. 52)<br />
Contexto: “[...] já as pornô-estrelas são muitas...”<br />
14) Verbete: desdramatizada (p. 55)<br />
Contexto: “‘É Godard puro o filme pornô...’, me diz, ‘ação desdramatizada, planos saturados...<br />
Veja. ”<br />
15) Verbete: meia-bomba (p. 56)<br />
Contexto: “Na meia-bomba está toda a humanidade.”<br />
Comentários: Com sua capacidade realizada pela metade.<br />
16) Verbete: pornopolítica (p. 57)<br />
Contexto: “A saciedade de todos os desejos chama-se morte. Não mais a morte iminente da guerra<br />
total, mas a morte inscrita em cada objeto, nesta crueza de fim de história em que vivemos – a<br />
pornopolítica.”<br />
17) Verbete: porno-corrupto (p. 58)<br />
Contexto: “Come-se o Brasil como se comem as pornoatrizes. Como no filme pornô, não se<br />
esconde mais nada. O porno-corrupto de hoje é explícito, se orgulha disso, na política ou na<br />
violência.”<br />
Comentários: O uso de “porno” por Jabor serve para mostrar o que os filmes da categoria pornô<br />
fazem: mostram tudo. Dessa forma, o pornocorrupto é aquele que não receia mais esconder a<br />
prática da corrupção; ela está às claras e existe até prazer em mostrá-la.<br />
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18) Verbete: neoconservadores (p. 69)<br />
Contexto: “Senti que o sonho de entendimento socialismo-capitalismo ia ser apenas o triunfo triste<br />
dos neoconservadores.”<br />
Comentários: analogia com o termo neoliberalismo; soa como um oxímoro, com o uso do prefixo<br />
neo- (novo) combinado ao termo conservador (o que é antigo).<br />
19) Verbete: texto-cabeça (p. 76)<br />
Contexto: “Por isso, neste texto-cabeça, nesta faíscade ferradura que me calça os pés, vejo com<br />
esperança e otimismo que muitas novidades que nos parecem detestáveis e prejudiciais podem<br />
trazer novas ideias operativas que ajudarão a reformar o país.”<br />
20) Verbete: monolitismo (p. 80)<br />
Contexto: “Hoje, tanto no fanatismo do Oriente quanto no monolitismo da massificação ocidental,<br />
vemos esse perigo e desejo.”<br />
Comentários: alusão ao vocábulo monolítico (= diz-se de estrutura em que há uma só massa<br />
contínua de material; diz-se do caráter, do sentimento, da crença etc. que não apresenta rupturas,<br />
que é íntegro). 16<br />
21) Verbete: desalienante (p. 93)<br />
Contexto: “Acabou o programa e eu, herói, me ergui, feliz de minha tarefa desalienante. Eu estava<br />
vingado.”<br />
22) Verbete: autoderrisão (p. 96)<br />
Contexto: “Mais tarde, com o tempo, surgiram as ‘bichas loucas’, que se assumiam com um toque<br />
de autoflagelação, de autoderrisão, caricaturas da mãe odiada e amada...”<br />
23) Verbete: suicídios-bomba (p. 100)<br />
Contexto: “Osama pode tudo, pode planejar o que quiser: cartas com antrax, garrafinhas de gás<br />
soltas nas ruas, suicídios-bomba, produtos químicos no metrô.”<br />
24) Verbete: logocêntrico (p. 101)<br />
Contexto: “Osama arrebentou nosso mundo logocêntrico. Nosso projeto foi interrompido pelo<br />
‘intempestivo’, o que está fora do tempo.”<br />
25) Verbete: japoronga (p. 110)<br />
Contexto: “Na ‘luta pela democracia’, rasparam da face da terra os japorongas, seres oblíquos que,<br />
como dizia Truman em seu diário: ‘São animais cruéis, obstinados, traidores.” Seres inferiores de<br />
olhinho puxado podiam ser fritos como shiitakes.”<br />
26) Verbete: cornidão (p. 113)<br />
Contexto: “A cornidão é um sentimento nacional.”<br />
16 Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3 ed. São Paulo: Positivo, 2004, p. 1355.<br />
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27) Verbete: escritores-fantasma (p. 113)<br />
Contexto: “Sou vítima de escritores-fantasmas que se escondem na internet.”<br />
28) Verbete: cornologia (p. 114)<br />
Contexto: “Que vou fazer? Sei que a cornologia é uma ciência respeitável. Conheço vários tipos<br />
famosos de crifrudos, como o ‘corno Papai Noel’ – aquele que não vai embora por causa das<br />
crianças.”<br />
29) Verbete: mensaleiros (p. 116)<br />
Contexto: “Com os mensaleiros se candidatando de novo, com os sanguessugas impunes, com o<br />
PMDB nos Correios, estamos com uma galhada florescente nas cabeças.”<br />
30) Verbete: chefe-suicida (p. <strong>12</strong>9)<br />
Contexto: “O Muhamad Atta, aquele chefe-suicida, estava deitado numa cama de ouro e rubis, com<br />
odaliscas do Catumbi rebolando a dança do ventre...”<br />
31) Verbete: nave-espacial-barraco (p. 137)<br />
Contexto: “E o ônibus parou de rir, o néon se apagou, o halterofilista se amansou e a rua inteira<br />
ficou calma, e ele ficou calmo, e pôde sentar no seu canto de calçada, feliz com a salvação da<br />
família, e pôde transmitir contente para a nave-espacial-barraco...”<br />
32) Verbete: breubas (p. 140)<br />
Contexto: “Há o ladrão com anel de doutor, conhecedor dos meandros, frestas e breubas dos<br />
códigos. Sabe das instâncias infindáveis, sabe dos recursos, agravos, embargos, chicanas. A PF<br />
prende e a lei solta.”<br />
Comentários: Referência ao “breu”, à escuridão, existente na legislação brasileira.<br />
33) Verbete: ladrões-espada (p. 141)<br />
Contexto: “Há os ladrões-espada, competentes, estudiosos, olhados com unção nas churrascarias.<br />
‘Aquele lá é gatuno, cara’, diz o executivo. ‘É... mas é craque, dá nó em pingo d’água’, retruca o<br />
outro com admiração.”<br />
34) Verbete: ladrões-teflon (p. 141)<br />
Contexto: “Há os ladrões populistas, políticos que ‘amam o povo’ e que conseguem ficar sempre<br />
limpinhos. São os ladrões-teflon – nada gruda neles.”<br />
35) Verbete: pré-valerioduto (p. 176)<br />
Contexto: “[...] o honrado Paulo Venceslau, que descobriu o pré-valerioduto há cinco anos em São<br />
José do Rio Preto e foi expulso por Lula [...].”<br />
36) Verbete: neocinismo (p. 185)<br />
Contexto: “Este neocinismo está a desmoralizar as palavras, os raciocínios. A cada cassado<br />
perdoado, a cada negação do óbvio, a cada testemunha muda, aumenta a sensação de que as ideias<br />
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não correspondem mais aos fatos! Pior: que os fatos não são nada – só valem as versões, as<br />
manipulações.”<br />
37) Verbete: lulo-dirceuzismo (p. 186)<br />
Contexto: “No duro, os intelectuais matreiros (onde estão os marxistas de gabinete?) votarão em<br />
Lula de novo e dizem que ‘sempre foi assim’ porque, no duro, eles acham que o lulo-dirceuzismo<br />
estava certo, sim, e que o PT e sua quadrilha fizeram bem em assaltar o Estado para um ‘fim<br />
revolucionário’. Na moita – porque não se declaram –, não são democratas.”<br />
38) Verbete: papai-reaça (p. 2<strong>12</strong>)<br />
Contexto: “No entanto, como era delicioso sentir-se importante, como era bom conspirar contra<br />
tudo, desde o papai-reaça até a invasão do imperialismo ianque.”<br />
39) Verbete: homem-cool (p. 218)<br />
Contexto: “[...] pois Deus já está entre nós armado até os dentes, acaba a fleuma, a displicência<br />
debonnaire, o alívio da caridade ou mesmo a deliciosa sensação da canalhice, acaba a coolness, pois<br />
o homem-bomba desbancou o homem-cool, ficará mais evidente o desejo brutal do egoístas [...].”<br />
Comentários: Referência a Bush.<br />
40) Verbete: valérios (p. 228)<br />
Contexto: “Malditos sejais, carecas sinistros, valérios sem valor, homúnculos dedicados a se<br />
infiltrar nas brechas...”<br />
Comentário: Alusão a Marcos Valério, um dos personagens do escândalo político do valerioduto.<br />
41) Verbete: valerioduto (p. 229)<br />
Contexto: “de onde jorrou o grosso do dinheiro do valerioduto!”<br />
6. Últimas palavras<br />
Arnaldo Jabor é um autor extremamente produtivo do ponto de vista lexical e oferece<br />
manancial para vários estudos nesse campo. Tendo em vista a alta carga argumentativa de seus<br />
textos, ele também atende ao segmento que se volta aos estudos discursivos, ao lançar mão, como<br />
pudemos constatar, de várias estratégias para despertar a atenção do leitor e conclamá-lo a vivenciar<br />
o texto produzido – produção cujo mérito tanto se dirige ao autor (AJ) quanto ao leitor.<br />
Referências<br />
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.<br />
BARBOSA, M A. Da neologia à neologia na literatura. In: OLIVEIRA e ISQUERDO (orgs.). 2001.<br />
BASÍLIO, M. Formação e classes de palavras no português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2005.<br />
CÂMARA JR, J. M. Contribuição à estilística portuguesa. 3ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico,<br />
1978.<br />
CRESSOT, M. O estilo e as suas técnicas. Lisboa: Edições 70, 1947.<br />
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DIJK, T. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2008.<br />
GADAMER, H-G. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.<br />
Petrópolis: Vozes, 2004.<br />
GOMES, W. Transformações da política na era da comunicação de massa. São Paulo: Paulus,<br />
2004.<br />
FARACO, C A. Lingüística histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São Paulo:<br />
Parábola Editorial, 2005.<br />
FIORIN, J L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2005.<br />
JABOR, A. Pornopolítica: paixões e taras na vida brasileira. São Paulo: Objetiva, 2006.<br />
KOCH, I G V. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2006.<br />
OLIVEIRA, H F. Conflito entre a natureza pejorativa ou meliorativa das escolhas lexicais e a<br />
orientação argumentativa do texto. Texto apresentado no IX Fórum de Estudos Lingüísticos da<br />
UERJ – Mesa-redonda: “Estudos Lexicais: temas e problemas”.<br />
PAULIUKONIS, M A L. Ensino do léxico: seleção e adequação ao contexto. In: ______;<br />
GAVAZZI, S (orgs.). Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna,<br />
2005.<br />
PERELMAN, C; OLBRECTHS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. São<br />
Paulo: Martins Fontes, 2002.<br />
RIBEIRO, P F N R. Estratégias de persuasão e de sedução na mídia impressa. In: PAULIUKONIS,<br />
M A L; GAVAZZI, S. Texto e discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.<br />
VALENTE, A. Produtividade lexical: criações neológicas. In: PAULIUKONIS; GAVAZZI (orgs.).<br />
Da língua ao discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.<br />
______. A produtividade lexical em diferentes linguagens. In: AZEREDO, J C (org.), 2000.<br />
______. Neologismos literários em romance de Mia Couto. In: ______ (org.). Língua portuguesa e<br />
identidade: marcas culturais. Rio de Janeiro: Caetés, 2007.<br />
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O CONTO MARAVILHOSO “A GUARDADORA DE GANSOS”:<br />
FUNÇÃO DAS PERSONAGENS, SEGUNDO PROPP<br />
Vanilda Salton Köche *<br />
Resumo: O conto maravilhoso é uma das formas de manifestação literária mais importantes na literatura<br />
universal; arte criativa que representa o mundo, o homem e a vida, através da palavra. É um gênero textual<br />
com o qual o aluno convive desde as séries iniciais e, além disso, é bastante estudado nos Cursos de Letras<br />
do país. Este estudo objetiva analisar o conto “A guardadora de gansos”, dos irmãos Grimm, a partir da<br />
localização das personagens estabelecidas por Propp, em sua obra “A morfologia do conto” (1970). Nessa<br />
análise, foram encontradas treze funções: interdição, afastamento, transgressão, engano, malfeitoria, chegada<br />
incógnita, objeto mágico, reparação, reconhecimento, descoberta, transfiguração, punição e casamento. O<br />
artigo faz parte da pesquisa-ensino intitulada “O ensino da leitura e escrita a partir dos gêneros textuais”,<br />
desenvolvida na Universidade de Caxias do Sul – Campus Universitário da Região dos Vinhedos, cujo<br />
objetivo é investigar os gêneros textuais e sua aplicação no ensino de leitura e produção textual no Ensino<br />
Médio e Superior.<br />
Palavras-chave: Conto maravilhoso; a guardadora de gansos; funções; Propp.<br />
Introdução<br />
O gosto por narrativas nasceu com a humanidade. O contar e o ouvir histórias está<br />
relacionado a um desejo inato no ser humano: o de conhecer. Inicialmente, as narrativas se<br />
realizavam de forma oral, tendo como espaço de registro apenas a memória. Depois, com o advento<br />
da escrita, essas histórias foram registradas no papel.<br />
O conto popular, criado pelo imaginário coletivo, caracteriza-se pelo encantamento,<br />
envolvendo situações em que ocorrem transformações, por algum tipo de magia, que não se<br />
explicam pela razão. Nesse gênero textual, revela-se a inventividade, através de situações extremas,<br />
e toma-se contato com povos, situações e costumes distantes.<br />
Este artigo tem o propósito de analisar o conto maravilhoso intitulado “A guardadora de<br />
gansos”, de Grimm, a partir da localização das funções estabelecidas por Propp (1970). A análise é<br />
relevante por ser o conto maravilhoso uma das formas de manifestação literária mais importantes na<br />
literatura universal; arte criativa que representa o mundo, o homem e a vida, através da palavra. É<br />
ainda um gênero textual trabalhado das séries iniciais à Universidade. Fundamentam este trabalho<br />
os autores Gotlib (1985); Machado (1994) e Propp (1970).<br />
* Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora das disciplina de<br />
“Leitura e Produção Textual”, “Língua Portuguesa para Licenciaturas” e “Leitura e escrita na formação Universitária”<br />
da Universidade de Caxias do Sul – Campus Universitário da Região dos Vinhedos. Subcoordenadora do Curso de<br />
Letras da UCS/CARVI desde 2000. Coordena o Curso de Especialização em Leitura e Produção Textual. É autora do<br />
Livro “Prática textual: atividades de leitura e escrita”, editado pela Vozes. Coordena a pesquisa intitulada o “O ensino<br />
da leitura e produção textual a partir dos gêneros textuais”.
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O conto maravilhoso<br />
O conto maravilhoso propaga-se através do tempo, sem perder sua forma básica. No século<br />
XVII, Perrault reuniu esses contos em um único volume intitulado “Histórias de Mamãe Gansa”.<br />
No século XIX, os irmãos Grimm fizeram um trabalho similar.<br />
Para Propp, conto maravilhoso é, do ponto de vista morfológico, o desenrolar de uma ação<br />
que parte de uma malfeitoria ou falta e passa por funções intermediárias, acabando em casamento<br />
ou em outras funções utilizadas como desfecho (1970: 144).<br />
O espaço em que ocorre a ação no conto maravilhoso é regido por leis sobrenaturais, não<br />
existindo distâncias, e as personagens deslocam-se de um espaço a outro com grande facilidade. O<br />
tempo não é cronológico. Trata-se de um tempo distante do que vivenciamos. Por isso, inicia<br />
geralmente por “Era uma vez”..., “Num tempo distante”..., “Existiu outrora”... Tudo ocorre de<br />
repente, sem referência aos antecedentes dos acontecimentos. Nesse espaço e nesse tempo, habitam<br />
seres maravilhosos, responsáveis pelas transformações provocadas por algum tipo de magia, no<br />
destino das personagens.<br />
As funções das personagens no conto maravilhoso<br />
Para entender o conto maravilhoso, Propp (1970) determinou uma morfologia do conto, ou<br />
seja, ele fez uma descrição, conforme as partes e personagens que o constituem. Encontrou sete<br />
tipos de personagens, cada uma com sua esfera de ação. Essas personagens denominam-se: o<br />
antagonista ou agressor, o doador, o auxiliar, a princesa e seu pai, o mandatário, o herói e o falso<br />
herói. É a partir da análise da ação das personagens, que Propp identifica ações constantes, que<br />
denomina funções. O autor encontrou trinta e uma funções, cuja sucessão é recorrente. Os processos<br />
ou passagens de uma função a outra são os movimentos do conto. Analisá-lo, sob o ponto de vista<br />
morfológico, significa determinar esses movimentos.<br />
Conforme Machado, função é o papel representado pela personagem no desenrolar da ação.<br />
De acordo com as ações e reações das personagens, a história vai evoluindo, acumulando conflitos<br />
até chegar à solução (1994: 48). Para Propp, função é a ação de uma personagem, definida do<br />
ponto de vista de sua significação no desenrolar da intriga (1970: 31). De acordo com Propp, é de<br />
extrema importância o estudo do que fazem as personagens: quem faz e como faz são questões<br />
complementares.<br />
Analisando o conto, Propp estabelece quatro princípios:<br />
1. os elementos constantes e permanentes são as funções das personagens, sejam quais sejam<br />
essas personagens e qual seja a maneira como essas funções são preenchidas, e as funções<br />
são o elemento fundamental do conto;<br />
2. o número de funções presentes é limitado, embora ilimitado seja o número de contos; as<br />
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funções não são todas encontradas num determinado conto, porém, a ausência de uma<br />
função não modifica em nada a estrutura do conto: as outras funções conservam o seu lugar.<br />
3. a sucessão das funções é sempre idêntica, repetindo-se nas diferentes obras;<br />
4. todos os contos maravilhosos pertencem ao mesmo tipo, no que concerne a sua estrutura<br />
(1970: 134).<br />
Sequência de funções determinadas por Propp<br />
engano).<br />
Situação inicial<br />
I. Um dos membros da família afasta-se de casa (definição: afastamento).<br />
II. Ao herói impõe-se uma interdição (definição: interdição).<br />
III. A interdição é transgredida (definição: transgressão).<br />
IV. O agressor tenta obter informações (definido: interrogação).<br />
V. O agressor recebe informações sobre a sua vítima (definição: informação).<br />
VI. O agressor tenta enganar a sua vítima para se apoderar dela ou dos seus bens (definição:<br />
VII. A vítima deixa-se enganar e ajuda assim o seu inimigo sem o saber (definição:<br />
cumplicidade).<br />
malfeitora).<br />
VIII. O agressor faz mal a um dos membros da família ou prejudica-o (definição:<br />
VIII-a. Falta qualquer coisa a um dos membros da família; um dos membros da família<br />
deseja possuir qualquer coisa (definição: falta).<br />
IX. A notícia da malfeitoria ou da falta é divulgada; dirige-se ao herói um pedido ou uma<br />
ordem: este é enviado em expedição ou deixa-se que parta de sua livre vontade (definição:<br />
mediação, momento da transição).<br />
X. O herói-que-demanda aceita ou decide agir (definição: início da ação contrária).<br />
XI. O herói deixa a casa (definição: partida).<br />
XII. O herói passa por uma prova, um questionário, um ataque etc., que o preparam para o<br />
recebimento de um objeto mágico (definição: primeira função do doador).<br />
XIII. O herói reage às ações do futuro doador (definição: reação do herói).<br />
XIV. O objeto mágico é posto à disposição do herói (definição: recepção do objeto mágico).<br />
XV. O herói é transportado, conduzido ou levado perto do local onde se encontra o objetivo<br />
da sua demanda (definição: deslocação no espaço entre dois reinos, viagem com um guia).<br />
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A história<br />
XVI. O herói e seu agressor defrontam-se em combate (definição: combate).<br />
XVII. O herói recebe uma marca (definição: marca).<br />
XVIII. O agressor é vencido (definição: vitória).<br />
XIX. A malfeitoria inicial ou a falta são reparadas (definição: reparação).<br />
XX. O herói volta (definição: volta).<br />
XXI. O herói é perseguido (definição: perseguição).<br />
XXII. O herói é socorrido (definição: socorro).<br />
XXIII. O herói chega incógnito a sua casa ou a outro país (definição: chegada incógnito).<br />
XXIV. Um falso herói faz valer pretensões falsas (definição: pretensões falsas).<br />
XXV. Propõe-se ao herói uma tarefa difícil (definição: tarefa difícil).<br />
XXVI. A tarefa é cumprida (definição: tarefa cumprida).<br />
XXVII. O herói é reconhecido (definição: reconhecimento).<br />
XXVIII. O falso herói ou o agressor, o mau, é desmascarado (definição: descoberta).<br />
XXIX. O herói recebe uma nova aparência (definição: transfiguração).<br />
XXX. O falso herói ou o agressor é punido (definição: punição).<br />
XXXI. O herói casa-se e sobe ao trono (definição: casamento).<br />
“A guardadora de gansos” narra a história de uma princesa que, ao chegar à idade de casar,<br />
teve que viajar para um país estrangeiro, para encontrar seu futuro marido. A mãe deu-lhe joias<br />
preciosas e tesouros, designando uma dama de companhia. Cada uma recebeu um cavalo para a<br />
viagem, sendo que o da princesa chamava-se Falante, uma vez que podia falar. A mãe deu-lhe<br />
também um lenço branco, com três gotas de seu sangue, para a princesa levar consigo, servindo-lhe<br />
de proteção.<br />
Durante a viagem, a princesa teve sede e pediu água à dama de companhia. Essa recusou-se<br />
a atender seu pedido e disse que não seria mais sua criada. Mais tarde, repetiu-se a cena, e quando a<br />
princesa debruçou-se para beber água no rio, deixou cair o lenço dado pela mãe, tornando-se, assim,<br />
frágil e sem forças. A criada aproveitou-se do momento e forçou a princesa a trocar os cavalos e as<br />
roupas, fazendo-a jurar, sob ameaça de morte, que não contaria nada para ninguém da corte real.<br />
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Na chegada, tomaram a criada pela noiva. A verdadeira princesa foi designada para ajudar<br />
um menino, guardador de gansos. A falsa princesa pediu a seu noivo que cortasse a cabeça do<br />
cavalo falante, temendo que ele revelasse sua ação malvada. Isso feito, a cabeça foi colocada sobre<br />
um portão negro, atendendo às súplicas da então guardadora de gansos.<br />
Todas as manhãs, quando a verdadeira princesa e o garoto passavam pelo portão, a cabeça<br />
de Falante lamentava a condição da moça. Esse fato causava estranheza ao menino.<br />
Na colina, o garoto e a princesa guardavam os gansos. Certa vez, ao vê-la desmanchar suas<br />
tranças douradas, o menino quis arrancar-lhe um punhado de seus cabelos. Ela impediu-o,<br />
chamando o vento, que soprou o chapéu dele para longe, obrigando-o a correr atrás. Isso aconteceu<br />
por dias consecutivos.<br />
Intrigado, o menino relatou ao rei as estranhas palavras da cabeça falante, dirigidas à moça.<br />
Então, o rei escondeu-se atrás do portão, observando tudo, e interrogou a pastora princesa que disse<br />
não poder revelar o que estava acontecendo em função de uma promessa, mas aceitou contar tudo à<br />
lareira. O velho rei escondeu-se atrás da mesma, conhecendo toda a verdade.<br />
Depois disso, o rei ofereceu roupas reais à verdadeira princesa, e todos foram convidados<br />
para uma festa. A verdadeira e a falsa princesa sentaram-se ao lado do jovem rei. No final da<br />
refeição, o velho rei perguntou à impostora qual seria a punição para uma pessoa que agisse da<br />
forma pela qual ela agira de fato. Não sabendo que havia sido descoberta, ela respondeu que deveria<br />
ser condenada a morrer na forca, por ser uma criminosa. Então, o rei decretou-lhe a pena, conforme<br />
ela mesma determinara. A aia foi executada, e o jovem rei e a verdadeira princesa casaram-se,<br />
vivendo felizes para sempre.<br />
Localização das funções de Propp no conto “A guardadora de gansos”<br />
Situação inicial<br />
O autor introduz a situação inicial da narrativa, apresentado as personagens: uma rainha<br />
viúva, sua filha, uma princesa lindíssima, que estava prometida a um príncipe de um reino muito<br />
distante, e uma aia escolhida para acompanhar a filha, a fim de ir ao encontro do noivo.<br />
O tempo é referido como “outrora”, sugerindo uma atemporalidade, um tempo distante e não<br />
localizado. O espaço é “trans-real”, isto é, criado pela imaginação do homem, o que se evidencia<br />
pelo uso de expressões como “reino muito distante”:<br />
Existiu outrora uma rainha viúva, mãe de uma filha lindíssima. A jovem estava prometida a<br />
um príncipe de um reino muito distante, e, quando se aproximou a hora do casamento, a<br />
viúva, que adorava a filha, preparou-lhe o enxoval com muito carinho, com as mais belas e<br />
finas roupas, joias e objetos preciosos de ouro e prata, enfim, tudo o que o enxoval de uma<br />
princesa deve ter. E escolheu uma de suas aias para acompanhar a filha e entregá-la nas<br />
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mãos do noivo (GRIMM: 1995: 1).<br />
1. Interdição reforçada por conselho<br />
A interdição reforçada por conselho refere-se ao momento em que a mãe foi ao quarto e,<br />
com a faquinha, deu um corte no dedo até sangrar, deixando cair três gotinhas de sangue em um<br />
lenço, dando-o à filha para servir-lhe de proteção em sua viagem. Esse lenço configura-se como um<br />
amuleto com poderes mágicos e, se bem guardado, a protegeria de todos os males: “Filha querida,<br />
guarde bem este lenço que há de protegê-la durante toda a viagem” (GRIMM, 1995: 2).<br />
2. Afastamento da princesa<br />
O afastamento de uma personagem constitui um dos desencadeadores da ação. A jovem<br />
princesa estava prometida a um príncipe. Chegada a época de casar, ela viaja para ir ao encontro do<br />
noivo. Nessa viagem, ocorrem os fatos que originam a trama do conto.<br />
E com o coração apertado de tristeza, despediram-se uma da outra. A princesa guardou o<br />
lencinho no seio, montou no seu cavalo, que se chamava Falante, porque sabia falar, e,<br />
acompanhada da aia, partiu ao encontro do noivo (GRIMM, 1995: 2).<br />
3. Transgressão da interdição<br />
A transgressão consiste no não atendimento ao conselho recebido pela mãe. A princesa<br />
perde o lenço que a protegeria de todos os males, tornando-se frágil e vítima da malfeitoria da<br />
criada que resolve não mais obedecê-la:<br />
Aconteceu que, por ter se inclinado muito para beber, o lencinho com as gotas de sangue<br />
escapou de seu decote, caiu n'água e foi levado pela correnteza. Ela nem deu por isto tão<br />
angustiada estava. Agora, sem a proteção das gotas de sangue, a jovem princesa estava em<br />
suas mãos, sem poder se defender (GRIMM, 1995: 4)<br />
4. O agressor engana a vítima<br />
O engano é revelado durante a viagem, na qual a aia que acompanhava a princesa, mostra-se<br />
má, ao declarar que não é sua serva: “Por favor, apeie, o meu copo de ouro e traga-me um copo<br />
d’água. / – Se tem sede – respondeu a aia com arrogância – apeie você mesma, abaixe-se e beba.<br />
Não sou sua criada!” (GRIMM, 1995: 2-3).<br />
5. O agressor faz um mal prejudicando o herói<br />
A perda do lenço enfraqueceu a princesa, e a aia tirou partido disso. Forçou-a a trocar os<br />
cavalos e a roupa, fazendo-a jurar que não contaria uma palavra sobre o acontecido. Assim, a<br />
princesa passou a ter o aspecto de criada, e esta de princesa.<br />
– Quem vai montar no Falante sou eu! Você fica com o meu cavalo!<br />
Obrigou-a também a tirar as vestes reais e vestir as dela, roupas simples, bastante usadas, e<br />
ainda, jurar sob ameaça de morte que não diria a ninguém uma palavra sobre o<br />
acontecimento, quando chegassem à corte real (GRIMM, 1995: 5).<br />
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6. Chegada incógnita<br />
A chegada incógnita é representada pela chegada da princesa, como se fosse uma criada, à<br />
casa do rei, onde estava o príncipe. O rei reparou nos gestos finos da moça. Tal observação é um<br />
indício para o futuro reconhecimento. A verdadeira princesa passa a trabalhar como guardadora de<br />
gansos, e a aia assume o seu lugar:<br />
O príncipe veio ao encontro delas e ajudou a aia a descer do cavalo, <strong>jul</strong>gando-a sua noiva.<br />
Depois acompanhou-a pela escadaria acima e entraram no palácio. A pobre princesa ficou no<br />
pátio, como convinha a uma criada. Contudo, o velho rei viu-a da janela e, reparando nos<br />
seus modos finos e na sua beleza, foi aos aposentos e perguntou à falsa noiva quem era<br />
aquela moça que viera com ela e ficara no pátio.<br />
– É apenas uma criada que veio para servir-me durante a viagem – respondeu ela. – Dê-lhe<br />
um serviço qualquer, pois não quero que fique ociosa.[...] E a jovem passou a trabalhar com<br />
o guardador de gansos, que se chamava Conrado (GRIMM, 1995: 5-7).<br />
7. O objeto mágico é posto à disposição do herói<br />
O objeto mágico é constituído pela figura do cavalo Falante, que teve a cabeça cortada a<br />
pedido da impostora, porque temia ser denunciada. Ao saber disso, a princesa pediu ao magarefe<br />
que pendurasse a cabeça do cavalo no portão, localizado na saída da cidade, por onde passava todos<br />
os dias. Na manhã seguinte, quando a princesa e o guardador de gansos atravessaram o portão, a<br />
cabeça mágica falou:<br />
Ai de ti, princesa minha,<br />
pastora que és agora,<br />
se tua mãe soubesse disso,<br />
morreria sem demora! (GRIMM, 1995: 14)<br />
8. A malfeitoria inicial é reparada<br />
A malfeitoria é reparada quando o rei toma conhecimento, por intermédio de Conrado, o<br />
guardador de gansos, das palavras proferidas pela cabeça do cavalo. O rei arguiu a princesa, e ela<br />
disse que nada poderia revelar, pois estava presa a um juramento. Então, o rei aconselhou-a a<br />
desabafar suas mágoas dentro da lareira; e assim ela o fez.<br />
9. O herói é reconhecido<br />
O rei, que, do lado de fora, com o ouvido colado à chaminé da lareira, escutou tudo, tornou a<br />
entrar, pediu à moça que saísse da lareira e ordenou às camareiras que lhe vestissem suas<br />
roupas reais. (GRIMM, 1995: 13)<br />
O reconhecimento do herói dá-se quando o rei chamou o filho e apresentou-lhe sua<br />
verdadeira noiva, contando-lhe toda a verdade a seu respeito. O príncipe fica muito feliz: “Não é<br />
preciso dizer o quanto o rapaz se alegrou, pois, ver e amar a princesa foi coisa de um instante e, na<br />
realidade, a falsa noiva nunca lhe agradou” (GRIMM, 1995: 13).<br />
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10. O herói recebe nova aparência<br />
O herói recebe uma nova aparência em decorrência do reconhecimento de sua verdadeira<br />
identidade. A nova aparência da princesa ocorre pela substituição de suas vestes de criada por<br />
roupas reais. A impostora não a reconhece na festa oferecida pelo rei: “O príncipe ocupou o lugar<br />
de honra, tendo de um lado a princesa, de outro a aia. Esta não sabia que havia sido desmascarada e<br />
não reconheceu a princesa em sua deslumbrante veste real” (GRIMM, 1995: 14).<br />
11. O agressor é desmascarado<br />
A agressora é desmascarada na festa. No final da refeição, o velho rei perguntou à falsa<br />
princesa qual seria o castigo para uma pessoa que tivesse agido de um certo modo, descrevendo o<br />
dela. Ela respondeu que seria a pena de morte. O rei, então, a desmascarou:<br />
<strong>12</strong>. O agressor é punido<br />
E perguntou o que ela achava de uma pessoa que traiu seus amos e assim e tal, contou toda a<br />
história da princesa, como se tivesse acontecido com outra pessoa, em outros tempos, num<br />
outro lugar. E ela respondeu sem titubear:<br />
– Essa pessoa é uma criminosa e merece ser condenada.<br />
– E se você fosse o juiz, que pena lhe daria? – perguntou o rei.<br />
– Pena de morte, é claro! Eu a condenaria a morrer na forca.<br />
Então o rei levantou-se e, perdendo o seu ar jovial, disse com severidade:<br />
Essa pessoa é você (GRIMM, 1995: 15-6).<br />
A aia foi punida. O rei decretou-lhe a pena determinada por ela própria: “Você mesma foi o<br />
juiz, e a pena que escolheu ser-lhe-á aplicada” (GRIMM, 1995: 16).<br />
13. O herói casa-se<br />
Após o desmascaramento e a punição da agressora, volta-se ao equilíbrio inicial da<br />
narrativa, com o desfecho feliz, próprio dos contos de fadas, representado pelo casamento: “e,<br />
semanas depois, realizou-se o casamento do filho do rei com a verdadeira noiva. Nunca houve uma<br />
festa tão linda, nem um casal tão feliz” (GRIMM, 1995: 16).<br />
A análise, de acordo com o modelo estabelecido por Propp, proporcionou a localização de<br />
treze funções no conto. As funções encontradas foram: interdição, afastamento, transgressão,<br />
engano, malfeitoria, chegada incógnita, objeto mágico, reparação, reconhecimento, descoberta,<br />
transfiguração, punição e casamento.<br />
Considerações finais<br />
“A guardadora de gansos” configura-se como um conto maravilhoso por representar uma<br />
situação que transcende a realidade, apresentando os fatos da trama, através da magia e do<br />
encantamento. O lenço da mãe, com as três gotas de sangue, o cavalo Falante, o vento que atende os<br />
pedidos da princesa e a lareira que ouve sua confissão são objetos mágicos que influem no<br />
desenrolar da narrativa, possibilitando um desfecho feliz.<br />
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O espaço também apresenta-se como um elemento maravilhoso, pois não há dificuldades<br />
para o deslocamento da princesa de um reino ao outro, quando vai ao encontro de seu noivo, a<br />
cavalo. Esse espaço não é definido, podendo ser qualquer lugar, o que confere universalidade ao<br />
conto. O tempo, por sua vez, remete a um passado longínquo e não cronológico. É um tempo<br />
distante do vivenciado pelo leitor.<br />
O casamento simboliza a vitória do herói sobre a malfeitoria, representando também uma<br />
volta à estabilidade da situação inicial.<br />
Com esse trabalho, esperamos contribuir com mais uma opção para a análise do conto<br />
maravilhoso para os professores de língua e literatura e, em especial, aos alunos do Curso de Letras.<br />
Referências<br />
GRIMM. A guardadora de Gansos. São Paulo: Ática, 1992.<br />
GOTLIB, N B. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1985.<br />
MACHADO, I A. Literatura e redação. São Paulo: Scipione, 1994.<br />
PROPP, V. Morphologie du conte. Paris: Editions du Seuil, 1970.<br />
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