ENTREVISTA IMAGINÁRIA - Editora Saraiva
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Está ficando tarde.<br />
MACHADO DE ASSIS – Estás com sono?<br />
Não muito, senhor.<br />
MA – Nem eu; conversemos um pouco, então. Que horas<br />
são?<br />
Quase onze.<br />
MA – Falemos como dois amigos sérios. Não que se trate<br />
de algum diálogo sigiloso, desses que as pessoas travam a<br />
portas fechadas e que revelam fatos considerados dignos de<br />
importância. Andemos pelas ruas e conversemos.<br />
[Acompanhei os passos firmes de Machado. Deixei-me ir,<br />
calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em<br />
pouco, havíamos percorrido tantas vielas da cidade, que me<br />
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atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem<br />
me parecia sem destino certo.]<br />
O senhor parece apreciar os passeios pela obscuridade, sempre<br />
à cata do mínimo e do escondido. Confesso ser um ávido leitor<br />
dos seus textos e freqüentemente deparo com passagens surpreendentes<br />
a respeito dos contrastes que impregnam os corações humanos.<br />
Acredito que todos os leitores ficam enredados nas teias<br />
urdidas pelo seu intelecto enigmático de bruxo.<br />
[Insinuei também que sua casa parecia estar muitíssimo<br />
longe, mas o escritor não entendeu ou não me ouviu – se<br />
é que não fingiu uma dessas coisas – e seguiu, apenas comentando<br />
a minha primeira observação. Pela minha parte,<br />
fechei os olhos e deixei-me ir à ventura.]<br />
MA – Ora essa, meu peralta, não estamos a todo o momento<br />
ensaiando o drama tragicômico da existência humana?<br />
O tempo todo não transitamos entre as vias da vida e da<br />
morte, do egoísmo e do interesse, do jogo e do engano? Os<br />
indivíduos comungam, a um só tempo, da transitoriedade<br />
que inutiliza os esforços e da atuação indispensável no palco<br />
da história.<br />
Do mesmo modo que o senhor demonstrou em Memórias póstumas<br />
de Brás Cubas, o primeiro grande romance da nossa literatura?<br />
Acaso a perspectiva do defunto-autor, que narra suas<br />
memórias a partir do além-túmulo, dedicando a obra ao primeiro<br />
verme que se apossou de sua carne, transita pelas vias que o<br />
senhor há pouco mencionou?<br />
MA – Ah! brejeiro! ah! brejeiro! A perspectiva da morte<br />
coloca o meu narrador-protagonista no limiar do ser e do<br />
não-ser. Por meio do processo narrativo, Brás Cubas, ao falar<br />
a partir do eterno presente da vida após a morte, reitera<br />
os fatos que viveu e as ações que praticou. Da distância sobrenatural<br />
que lhe possibilita o desvelamento total de si, o<br />
narrador lança um olhar denso e profundo sobre a realidade,<br />
revelando, com a pena da galhofa a tinta e da melancolia, os<br />
meandros dúbios e volúveis de sua consciência.<br />
As memórias de Brás Cubas estão interligadas com a própria<br />
matéria histórica nacional. Todas as faces do Brasil são revisitadas<br />
no decorrer das confissões do narrador. Até que ponto Brás<br />
Cubas, ao pensar sobre a própria vida, nos faz pensar também<br />
sobre a vida no Brasil?<br />
MA – Brás Cubas nasceu em 1805 e faleceu em 1869. Foi<br />
um menino criado entre a vulgaridade dos caracteres, o amor<br />
das aparências e da matéria, a frouxidão da vontade e a vitória<br />
do capricho. Sua vida transcorreu com a consolidação do sistema<br />
escravista, em uma sociedade de estrutura arcaica – agrária<br />
e patriarcal – e rigidamente dividida e hierarquizada, composta<br />
por uma abastada classe senhorial, por trabalhadores escravos<br />
trazidos à força da África, por agregados interesseiros e por funcionários<br />
públicos oportunistas. Por outro lado, há um desejo<br />
de modernização do país a todo custo. As intrincadas relações<br />
de poder configuram uma nação de futuro incerto. Se, ao final,<br />
Brás Cubas indagasse sobre a finalidade de sua vinda ao<br />
mundo, certamente encontraria, entre as possíveis respostas,<br />
o suplício impingido aos escravos e o sofrimento de Eugênia,