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ENTREVISTA IMAGINÁRIA - Editora Saraiva

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Uma noite, ao caminhar<br />

pela Rua do Ouvidor,<br />

encontrei, diante da entrada<br />

da Livraria Garnier, um senhor<br />

modesto e introvertido,<br />

que eu conheço de vista e de<br />

ouvir falar. Cumprimentoume,<br />

falou do tempo quente e<br />

abafado e pôs-se a andar ao<br />

meu lado. Acabamos por encetar<br />

um diálogo. Aconteceu,<br />

porém, que, devido ao cansaço,<br />

comecei a piscar os olhos<br />

e a lacrimejar após um bocejo<br />

involuntário; tanto bastou<br />

para que ele interrompesse a<br />

conversa e, com um sorriso<br />

fino e quase imperceptível,<br />

fizesse menção de afastarse.<br />

Impedi-o a tempo e pedi<br />

que me perdoasse. Meu novo<br />

companheiro pareceu vencer<br />

a introversão que o fazia<br />

hesitar em continuar a conversa,<br />

explicou-me que não<br />

costumava ficar até tão tarde<br />

<strong>ENTREVISTA</strong> <strong>IMAGINÁRIA</strong><br />

por Vicente Luís de Castro Pereira<br />

MACHADO DE ASSIS<br />

fora de casa e que sua esposa,<br />

D. Carolina, certamente o esperava,<br />

preocupada, na modesta<br />

sala da residência do<br />

casal, no Cosme Velho. Em<br />

razão de compromissos com<br />

o editor, retardara o retorno<br />

para o lar. Sorri compreensivamente,<br />

reconheci, naquele<br />

rosto um tanto inquieto que<br />

me fitava, a fisionomia do<br />

escritor Joaquim Maria Machado<br />

de Assis. Seguimos<br />

por ruas escuras, rompendo<br />

com risos e gracejos o silêncio<br />

que sempre acompanha<br />

o percurso dos solitários. Ao<br />

final do trajeto, convidou-me<br />

a visitá-lo quando quisesse e<br />

autorizou-me a transcrever<br />

trechos de nossa conversa na<br />

coluna de entrevistas do jornal<br />

para o qual trabalho. Segue,<br />

nas próximas páginas,<br />

um pouco do que Machado<br />

disse naquela ocasião.<br />

1


Está ficando tarde.<br />

MACHADO DE ASSIS – Estás com sono?<br />

Não muito, senhor.<br />

MA – Nem eu; conversemos um pouco, então. Que horas<br />

são?<br />

Quase onze.<br />

MA – Falemos como dois amigos sérios. Não que se trate<br />

de algum diálogo sigiloso, desses que as pessoas travam a<br />

portas fechadas e que revelam fatos considerados dignos de<br />

importância. Andemos pelas ruas e conversemos.<br />

[Acompanhei os passos firmes de Machado. Deixei-me ir,<br />

calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em<br />

pouco, havíamos percorrido tantas vielas da cidade, que me<br />

2 3<br />

atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem<br />

me parecia sem destino certo.]<br />

O senhor parece apreciar os passeios pela obscuridade, sempre<br />

à cata do mínimo e do escondido. Confesso ser um ávido leitor<br />

dos seus textos e freqüentemente deparo com passagens surpreendentes<br />

a respeito dos contrastes que impregnam os corações humanos.<br />

Acredito que todos os leitores ficam enredados nas teias<br />

urdidas pelo seu intelecto enigmático de bruxo.<br />

[Insinuei também que sua casa parecia estar muitíssimo<br />

longe, mas o escritor não entendeu ou não me ouviu – se<br />

é que não fingiu uma dessas coisas – e seguiu, apenas comentando<br />

a minha primeira observação. Pela minha parte,<br />

fechei os olhos e deixei-me ir à ventura.]<br />

MA – Ora essa, meu peralta, não estamos a todo o momento<br />

ensaiando o drama tragicômico da existência humana?<br />

O tempo todo não transitamos entre as vias da vida e da<br />

morte, do egoísmo e do interesse, do jogo e do engano? Os<br />

indivíduos comungam, a um só tempo, da transitoriedade<br />

que inutiliza os esforços e da atuação indispensável no palco<br />

da história.<br />

Do mesmo modo que o senhor demonstrou em Memórias póstumas<br />

de Brás Cubas, o primeiro grande romance da nossa literatura?<br />

Acaso a perspectiva do defunto-autor, que narra suas<br />

memórias a partir do além-túmulo, dedicando a obra ao primeiro<br />

verme que se apossou de sua carne, transita pelas vias que o<br />

senhor há pouco mencionou?<br />

MA – Ah! brejeiro! ah! brejeiro! A perspectiva da morte<br />

coloca o meu narrador-protagonista no limiar do ser e do<br />

não-ser. Por meio do processo narrativo, Brás Cubas, ao falar<br />

a partir do eterno presente da vida após a morte, reitera<br />

os fatos que viveu e as ações que praticou. Da distância sobrenatural<br />

que lhe possibilita o desvelamento total de si, o<br />

narrador lança um olhar denso e profundo sobre a realidade,<br />

revelando, com a pena da galhofa a tinta e da melancolia, os<br />

meandros dúbios e volúveis de sua consciência.<br />

As memórias de Brás Cubas estão interligadas com a própria<br />

matéria histórica nacional. Todas as faces do Brasil são revisitadas<br />

no decorrer das confissões do narrador. Até que ponto Brás<br />

Cubas, ao pensar sobre a própria vida, nos faz pensar também<br />

sobre a vida no Brasil?<br />

MA – Brás Cubas nasceu em 1805 e faleceu em 1869. Foi<br />

um menino criado entre a vulgaridade dos caracteres, o amor<br />

das aparências e da matéria, a frouxidão da vontade e a vitória<br />

do capricho. Sua vida transcorreu com a consolidação do sistema<br />

escravista, em uma sociedade de estrutura arcaica – agrária<br />

e patriarcal – e rigidamente dividida e hierarquizada, composta<br />

por uma abastada classe senhorial, por trabalhadores escravos<br />

trazidos à força da África, por agregados interesseiros e por funcionários<br />

públicos oportunistas. Por outro lado, há um desejo<br />

de modernização do país a todo custo. As intrincadas relações<br />

de poder configuram uma nação de futuro incerto. Se, ao final,<br />

Brás Cubas indagasse sobre a finalidade de sua vinda ao<br />

mundo, certamente encontraria, entre as possíveis respostas,<br />

o suplício impingido aos escravos e o sofrimento de Eugênia,


os desejos de glória nunca alcançados e a traição ao marido de<br />

Virgília. Brás Cubas é o homem que viu enlouquecer o amigo<br />

Quincas Borba, mergulhado nos delírios do Humanitismo,<br />

mas também é testemunha de um longo período de nossa história<br />

– que compreende o Primeiro Reinado, a Regência e o<br />

Segundo Reinado –, no qual viveram homens não menos enlouquecidos.<br />

A narração de Brás Cubas questiona e relativiza a consciência, os<br />

fatos históricos e a natureza humana. As reflexões tecidas constituem<br />

um misto de cinismo cético e pessimismo irônico. O humor<br />

de Brás Cubas é sempre fruto do desdém e da zombaria?<br />

MA – O humor irônico é filho do tédio e da melancolia.<br />

Nem mesmo o ambicionado emplasto, cuja criação impregnara<br />

a mente de Brás Cubas como idéia fixa, nos últimos tempos<br />

de vida, seria capaz de livrar a alma humana desses dois dons<br />

amavelmente concedidos por Saturno. Revelar a alma humana,<br />

a partir das digressões de um morto acerca de si mesmo e do<br />

4 5<br />

meio em que viveu, é escancarar para o leitor os aborrecimentos<br />

da vida e o desfecho de tudo em um nada completo. A visão de<br />

Brás Cubas sobre a matéria narrada é relativista e amoral; vingase<br />

dos tormentos humanos por meio da única arma possível<br />

diante da vida: o riso. O contato com a realidade dói e fere. Ao<br />

final do espetáculo, todos partimos decepcionados para o subterrâneo.<br />

Alude-se ao saber humano como a um triste acervo de<br />

misérias ou a uma galeria de heróis fracassados. Lembre-se do<br />

que nos disse Brás Cubas, ao recordar o auge do seu delírio, em<br />

pleno leito de morte: “[...] a vida tinha assim uma regularidade<br />

de calendário, fazia-se a História e a civilização, e o homem, nu<br />

e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio,<br />

a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que<br />

perscruta, e a arte, que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo,<br />

corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera<br />

das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha<br />

a necessidade da vida e a melancolia do desamparo”.<br />

[O passeio parecia-me um tanto extravagante e começava a me<br />

deixar um tanto aturdido. Estava calor e as reflexões do meu interlocutor<br />

começavam a seguir por rumos impalpáveis demais.]<br />

Este é o típico discurso cáustico que corrói toda a inocência. A<br />

vida não é feita para principiantes, muito menos no Brasil. Mas<br />

o sono, irmão da morte, começa a me vencer.<br />

MA – Vejo que a nossa prosa se estendeu mais do que deveria.<br />

É tarde. Precisamos seguir nossos caminhos. Medita bem<br />

a respeito do que te disse, meu jovem, e vê se aprovas. Foi um<br />

debate sobre várias questões de alta transcendência. Guardadas<br />

as proporções, a conversa desta noite vale o Diálogo dos mortos,<br />

de Luciano de Samósata, ou o Secretum, de Petrarca. Lembremonos,<br />

ainda uma vez, das palavras de Brás Cubas: “Grande coisa<br />

é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de<br />

achar as relações das coisas, a faculdade de as comparar e o talento<br />

de concluir! Eu tive essa distinção psíquica; eu a agradeço<br />

ainda agora do fundo do meu sepulcro”. Enfim, vamos para<br />

casa. O que disse? Ah, sim! Podes usar à vontade os trechos<br />

do colóquio que julgares proveitosos. Dedica-os às primeiras<br />

traças que, depois de um século, roerem as páginas da primeira<br />

edição do meu Brás Cubas. Um piparote e adeus!<br />

[Reiterado o convite para que continuássemos a conversar em<br />

outra oportunidade – entre as estantes da Livraria Garnier ou<br />

na sala de visitas do Cosme Velho –, despedimo-nos e eu fiquei<br />

observando meu amigo partir. A verdade é que eu estivera<br />

em contato com um mestre; era o velho colóquio de Adão<br />

e Caim, uma conversa para além das palavras entre a vida e a<br />

vida, o mistério e o mistério. Concluído o diálogo, ele acenou<br />

uma última vez e, com um suspiro, retornou à imortalidade,<br />

dispersando-se na noite e no silêncio.]


DIÁLOGO ENTRE OBRAS CLÁSSICAS DA LITERATURA<br />

BRASILEIRA, PORTUGUESA E UNIVERSAL.<br />

Outros títulos da Coleção CLÁSSICOS SARAIVA<br />

DOM CASMURRO – Machado de Assis<br />

ASSASSINATOS NA RUA MORGUE<br />

E OUTRAS HISTÓRIAS – Edgar Allan Poe<br />

IRACEMA – José de Alencar<br />

O CORONEL CHABERT – Honoré de Balzac<br />

O PRIMO BASÍLIO – Eça de Queirós<br />

SENHORA – José de Alencar<br />

O NAVIO NEGREIRO E OUTROS POEMAS –<br />

Castro Alves<br />

ALBERTO CAEIRO – POEMAS COMPLETOS –<br />

Fernando Pessoa<br />

TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA –<br />

Lima Barreto<br />

O ALIENISTA – Machado de Assis<br />

MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS –<br />

Manuel Antônio de Almeida<br />

AS TREVAS E OUTROS POEMAS – Lord Byron

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