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Palavras loucas, orelhas moucas – os relatos de viagem - USP

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tempesta<strong>de</strong>s, figuras mitológicas, calmarias, a<br />

solidão no meio do oceano, ou <strong>os</strong> batism<strong>os</strong> d<strong>os</strong><br />

que cruzam a linha do Equador, é invariavelmente<br />

para <strong>de</strong>smontá-l<strong>os</strong> <strong>de</strong> algum modo.<br />

Se parece ver uma “corja <strong>de</strong> tritões”, que<br />

pensa <strong>de</strong>screver com “palavras esdrúxulas,/ e<br />

vers<strong>os</strong> bem esquipátic<strong>os</strong>”, é para, logo <strong>de</strong>pois,<br />

sublinhar que se enganou: “Não são<br />

Tritões, nem Netuno,/ São seis fam<strong>os</strong>as baleias”<br />

(36). Se a noite solitária convida o<br />

missivista a elevadas meditações, é para “assim<br />

poetizando, bafejado pelo relento, embalado<br />

pelo navio” (37) ir adormecendo pr<strong>os</strong>aicamente.<br />

Se chama a atenção para a cerimônia<br />

do batismo no mar é para transformá-la<br />

em “comédia a bordo” (38), com o fito único<br />

<strong>de</strong> tirar dinheiro d<strong>os</strong> viajantes.<br />

Quanto ao período <strong>de</strong> calmaria, registrado<br />

a princípio em vers<strong>os</strong>, acaba por invadir<br />

literalmente o texto, o narrador e seu<br />

interlocutor potencial: “lê bocejando estes<br />

vers<strong>os</strong>, e se dormires, não me darei por enfadado,<br />

porque também estou quase dormitando”<br />

(39). E nem mesmo a tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> dois<br />

dias enfrentada no navio, cuja “horrenda<br />

majesta<strong>de</strong>” parecia pedir “uma <strong>de</strong>scrição<br />

pomp<strong>os</strong>a”, escapa à perspectiva humorística.<br />

Anuncia-se, então, diversas vezes, o relato<br />

do temporal, mas apenas para interrompê-lo,<br />

em seguida, pel<strong>os</strong> mais variad<strong>os</strong> pretext<strong>os</strong>:<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a perda <strong>de</strong> um chapéu do Chile à necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> vê-lo com vagar, para só <strong>de</strong>pois<br />

escrever. E, por fim, quando está para se iniciar<br />

a <strong>de</strong>scrição <strong>–</strong> “Vou escrever a minha tempesta<strong>de</strong>,<br />

enquanto a tenho na cabeça” (40) <strong>–</strong><br />

, avista-se terra e a exp<strong>os</strong>ição fica <strong>de</strong>finitivamente<br />

interrompida: “Ora graças a Deus que<br />

estam<strong>os</strong> no Canal da Mancha!” (41).<br />

Tudo no navio, aliás, é submetido a inclemente<br />

<strong>de</strong>rrisão: o beliche parece “prateleira”, o<br />

pão, um “bolo/ cor <strong>de</strong> tijolo”, o café “suspeito/<br />

<strong>de</strong> favas feito”, a sopa “repugnante”, o “bule<br />

sujo”, as lentilhas duras, <strong>os</strong> franguinh<strong>os</strong> magr<strong>os</strong>.<br />

E o próprio relato, apenas “uma carta<br />

escrita a bordo com o fim <strong>de</strong> matar o tempo” (42).<br />

Três an<strong>os</strong> <strong>de</strong>pois, curi<strong>os</strong>amente no mesmo<br />

ano do lançamento da revista Niterói, o<br />

mesmo Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães publicaria<br />

outra <strong>viagem</strong> humorística, outro texto<br />

com dicção bastante diversa da dominante<br />

em sua obra, o Episódio da Infernal Comé-<br />

REVISTA <strong>USP</strong>, SÃO PAULO (30 ): 9 4 -1 0 7 , J U N H O / A G O S T O 1 9 9 6<br />

dia ou da Minha Viagem ao Inferno.<br />

Nesse caso, as brinca<strong>de</strong>iras começam na<br />

folha <strong>de</strong> r<strong>os</strong>to, na indicação da tipografia responsável:<br />

“Inferno, Rua do Fogo, canto da Rua<br />

do Sabão, 1836”. E continuam no ocultamento<br />

da autoria e na estruturação comicamente especular<br />

do volume, no qual o prólogo, <strong>de</strong> Araújo<br />

Porto-Alegre, funciona, ele também, como<br />

uma <strong>viagem</strong> onírico-infernal, à semelhança da<br />

que seria narrada na primeira seção <strong>–</strong> “Como<br />

me Achei no Inferno” <strong>–</strong> do relato <strong>de</strong> Magalhães.<br />

E como um comentário, cheio <strong>de</strong> cortes<br />

e <strong>de</strong>svi<strong>os</strong>, do próprio processo <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong>ssa<br />

história infernal.<br />

Já o episódio <strong>de</strong> Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães<br />

é, sobretudo, uma sátira a<strong>os</strong> diplomatas representantes<br />

do Império Brasileiro no exterior<br />

e a<strong>os</strong> mecanism<strong>os</strong> usuais <strong>de</strong> avaliação do<br />

mérito intelectual. “No Brasil, como sabes,<br />

qualquer zote um formado doutor se<br />

conceitua”, “Cuidam que no Brasil vale o<br />

talento,/ Que virtu<strong>de</strong>, ou razão! Vejam que<br />

estúrdi<strong>os</strong>”, “Que o pedantismo no Brasil tem<br />

se<strong>de</strong>”, “no Brasil moral é gran<strong>de</strong> asneira,/ E<br />

sem moral se po<strong>de</strong> até ser bispo” (43): suce<strong>de</strong>m-se<br />

<strong>os</strong> comentári<strong>os</strong>, <strong>de</strong>ixando-se patente<br />

que a <strong>viagem</strong> pelo Inferno e a caricatura <strong>de</strong><br />

um diplomata <strong>de</strong>squalificado para seu p<strong>os</strong>to<br />

são, <strong>de</strong> fato, pretext<strong>os</strong> para se falar da vida<br />

burocrático-cultural do país como uma espécie<br />

<strong>de</strong> mundo às avessas. Sobre o que, aliás,<br />

não se <strong>de</strong>ixa qualquer dúvida. “Co’a terra<br />

Inferno é muito parecido”, avisa, <strong>de</strong> saída,<br />

um d<strong>os</strong> <strong>de</strong>môni<strong>os</strong>, “cada nação tem seus representantes”<br />

(44). E exibe, para o viajante,<br />

“do Brasil várias cenas engraçadas,/ tão<br />

burlescas, que ao vê-las tod<strong>os</strong> riam” (45).<br />

Dentre elas a vida e o “fiel retrato” <strong>de</strong> um<br />

diplomata brasileiro, n<strong>os</strong> quais acaba por se<br />

concentrar a Infernal Comédia <strong>de</strong> Gonçalves<br />

<strong>de</strong> Magalhães.<br />

Quanto a<strong>os</strong> Excert<strong>os</strong> das Memórias e Viagens<br />

do Coronel Bonifácio <strong>de</strong> Amarante, <strong>de</strong><br />

Manuel <strong>de</strong> Araújo Porto-Alegre, teriam três<br />

edições no intervalo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z an<strong>os</strong>. A primeira,<br />

em 1848, na revista Íris; a segunda, em livro,<br />

impresso, em 1852, na tipografia <strong>de</strong> Paula Brito;<br />

a terceira, no jornal A Marmota, em 1858.<br />

Aproveitando histórias, das mais diversas fontes,<br />

sobre a China, a Pérsia, sobre experiências<br />

com o magnetismo e o galvanismo, empreen-<br />

36 Doming<strong>os</strong> J<strong>os</strong>é Gonçalves<br />

<strong>de</strong> Magalhães, “Carta ao<br />

Meu Amigo Dr. Cândido<br />

Borges Monteiro”, op. cit.,<br />

p. 339.<br />

37 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 346.<br />

38 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 351.<br />

39 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 343.<br />

40 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 362.<br />

41 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.<br />

42 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 359.<br />

43 Doming<strong>os</strong> J<strong>os</strong>é Gonçalves<br />

<strong>de</strong> Magalhães, Episódio da<br />

Infernal Comédia ou da<br />

Minha Viagem ao Inferno,<br />

Paris, Imprimerie <strong>de</strong><br />

Beauté et Jubin, 1836, pp.<br />

50, 65 e 66.<br />

44 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 32.<br />

45 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 35.<br />

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