Palavras loucas, orelhas moucas – os relatos de viagem - USP
Palavras loucas, orelhas moucas – os relatos de viagem - USP
Palavras loucas, orelhas moucas – os relatos de viagem - USP
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
“Utensíli<strong>os</strong> Indígenas”, litografia do Reise in Brasilien..., <strong>de</strong> Spix e Martius (Munique, 1823-31), Biblioteca Nacional,RJ<br />
pessoa do plural em que são feit<strong>os</strong> <strong>os</strong> registr<strong>os</strong><br />
do percurso, a impressão dominante seria<br />
mesmo a <strong>de</strong> uma quase ausência do<br />
narrador.<br />
No diário <strong>de</strong> Gonçalves Dias, o que mais se<br />
vê, na verda<strong>de</strong>, são indicações <strong>de</strong> dia, hora e<br />
minuto, seguidas <strong>de</strong> mínima informação (partim<strong>os</strong>,<br />
largam<strong>os</strong>, param<strong>os</strong>, chegam<strong>os</strong>) e <strong>de</strong> um<br />
nome <strong>de</strong> lugar (Sítio do Simeão, Povoação da<br />
Velha do Carmo, Igarapé do C<strong>os</strong>me, Ponta do<br />
Castanhal, Barcel<strong>os</strong>, Santa Isabel, e assim por<br />
diante) do itinerário. Convertendo-se muitas<br />
das notas em simples catalogação. Como a das<br />
“4,30'“ do dia 22 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1861: “Partim<strong>os</strong>.<br />
1 paneiro <strong>de</strong> farinha, ov<strong>os</strong>, carne <strong>de</strong><br />
porco” (4). Como a das “10,10'“ do dia 24 do<br />
mesmo mês: “Igarapé do Taburunia/ Turire<br />
pecuma/ Iurupari roca/ Macarabi/ Cauaburi/<br />
Paranaí/ Manacopuru/ Castanheira/ Abadá/<br />
Sítio do Cometá” (5). Ou como a sucessão <strong>de</strong><br />
receitas medicinais registrada no dia 27: “Para<br />
febres: Folhas <strong>de</strong> tamarindo cozidas; toma-se<br />
a infusão quando a febre vai passando. Depois<br />
[palavra ilegível] ponche e abafa-se para suar”;<br />
“Quando há inflamação do baço, aplica-se<br />
sobre a parte emplastro <strong>de</strong> sucuba (leite) polvilhado<br />
com excremento <strong>de</strong> Jacaré (almíscar)”;<br />
“Para <strong>de</strong>sarranjo <strong>de</strong> barriga <strong>de</strong> mulher <strong>–</strong> murta<br />
do campo em banh<strong>os</strong>, cozimento <strong>de</strong> folhas,<br />
REVISTA <strong>USP</strong>, SÃO PAULO (30 ): 9 4 -1 0 7 , J U N H O / A G O S T O 1 9 9 6<br />
tronco e raízes (uma murta que só tem flor,<br />
sem frut<strong>os</strong>)”; “Curando do peito <strong>–</strong> Capim <strong>de</strong><br />
colônia em infusão com uma folha <strong>de</strong> Paga<br />
morioba, açúcar e um ovo batido sobre o qual<br />
se <strong>de</strong>ita o chá fervendo” (6).<br />
Se, como observa Philippe Hamon na sua<br />
Introduction à l’Analyse du Descriptif, a lista<br />
é “a forma simples a que ten<strong>de</strong> muitas vezes<br />
o enunciado <strong>de</strong>scritivo” (7), é exatamente a<br />
esse extremo <strong>de</strong> objetivação que ten<strong>de</strong> o relato<br />
<strong>de</strong> Gonçalves Dias. Inclusive nas<br />
C. J. Martin,<br />
“Vista da Baía<br />
<strong>de</strong> Guanabara<br />
Tomada da Praia<br />
do Russel”, óleo<br />
sobre tela (1850),<br />
coleção Sergio<br />
Fa<strong>de</strong>l, Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro<br />
97