Palavras loucas, orelhas moucas – os relatos de viagem - USP
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apontam sobretudo para o caráter fantasi<strong>os</strong>o<br />
<strong>de</strong> suas viagens, as interpolações do sobrinho,<br />
a duplicação d<strong>os</strong> narradores-viajantes, a<br />
ênfase na <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> d<strong>os</strong> relat<strong>os</strong> quebram<br />
com a autorida<strong>de</strong> exp<strong>os</strong>itiva, com a<br />
dominância da <strong>de</strong>scrição metódica, características<br />
em especial a<strong>os</strong> registr<strong>os</strong> <strong>de</strong> expedições<br />
científicas, e projetam a figura mesma<br />
do narrador, e não as paisagens ou <strong>os</strong> c<strong>os</strong>tumes<br />
<strong>de</strong> que fala, ao primeiro plano <strong>de</strong>sses<br />
Excert<strong>os</strong> das Memórias e Viagens do Coronel<br />
Bonifácio <strong>de</strong> Amarante.<br />
Coisa semelhante ocorreria em A Carteira<br />
<strong>de</strong> Meu Tio e nas Memórias do Sobrinho<br />
<strong>de</strong> Meu Tio, <strong>de</strong> Macedo. Não à toa, aliás,<br />
<strong>de</strong>dica-se boa parte da introdução ao primeiro<br />
livro a uma discussão sobre o “eu”. Discussão<br />
que se, por um lado, chama a atenção<br />
para a centralida<strong>de</strong> da voz do narrador, <strong>de</strong><br />
suas muitas digressões, nessas viagens pela<br />
própria terra, por outro, atribui a essa ênfase<br />
uma função nitidamente crítica: “Eu sigo as<br />
lições d<strong>os</strong> mestres. No pronome EU se resume<br />
atualmente toda política e toda moral: é<br />
certo que estes conselh<strong>os</strong> <strong>de</strong>vem ser praticad<strong>os</strong>,<br />
mas não confessad<strong>os</strong>: bem sei, bem sei,<br />
isso é assim [...]” (54).<br />
“Eu” auto<strong>de</strong>finido, mais adiante, como<br />
aprendiz <strong>de</strong> político, como “sobrinho <strong>de</strong> meu<br />
tio, e mais nada”. E, segundo diz, carinh<strong>os</strong>amente,<br />
o próprio tio, “imp<strong>os</strong>tor e atrevido”. E<br />
cujo itinerário país a<strong>de</strong>ntro, para observá-lo e<br />
verificar, a mando do tio, se a Constituição do<br />
Império era, <strong>de</strong> fato, letra morta, parecia<br />
marcado por <strong>de</strong>sterritorialização semelhante<br />
ao seu prop<strong>os</strong>itado anonimato autoral. Daí<br />
não ser p<strong>os</strong>sível indicar sequer o ponto <strong>de</strong><br />
partida do sobrinho <strong>–</strong> do <strong>–</strong> tio com exatidão,<br />
contrariando a exigência característica às<br />
narrativas <strong>de</strong> <strong>viagem</strong> <strong>de</strong> dad<strong>os</strong> geográfic<strong>os</strong><br />
precis<strong>os</strong>: “a casa <strong>de</strong> meu respeitável tio é uma<br />
espécie <strong>de</strong> velho castelo encantado, cuja situação<br />
geográfica não me é p<strong>os</strong>sível assinalar<br />
precisamente” (55).<br />
É, pois, assim, sem dar nome a<strong>os</strong> lugares<br />
percorrid<strong>os</strong> <strong>–</strong> “o nome é uma voz com que se<br />
encobrem as idéias” (56), diz, a certa altura,<br />
o narrador macediano <strong>–</strong> que, em A Carteira<br />
<strong>de</strong> Meu Tio, exibem-se o <strong>de</strong>scaso à lei, o <strong>de</strong>sprezo<br />
às garantias do cidadão e o <strong>de</strong>sleixo da<br />
administração provincial. E em Memórias do<br />
REVISTA <strong>USP</strong>, SÃO PAULO (30 ): 9 4 -1 0 7 , J U N H O / A G O S T O 1 9 9 6<br />
Sobrinho <strong>de</strong> Meu Tio se fixa nas formas <strong>de</strong><br />
acesso a<strong>os</strong> carg<strong>os</strong> públic<strong>os</strong>, tendo em vista<br />
idêntico quadro político. Tudo isso em meio<br />
a diversas viagens pela própria terra. No primeiro<br />
livro, a cavalo, e em companhia do<br />
Compadre Paciência, homem incorruptível,<br />
espécie <strong>de</strong> avesso <strong>de</strong> tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> que cruzam o<br />
seu caminho. No segundo, percurs<strong>os</strong> interessad<strong>os</strong>,<br />
ligad<strong>os</strong> às tentativas do sobrinhonarrador<br />
<strong>de</strong> se firmar numa carreira política,<br />
que, no entanto, a todo momento, parece escapar-lhe<br />
ao controle.<br />
Viagens, na verda<strong>de</strong> meio sem paisagem,<br />
e muito mais pela vida política do que por um<br />
território propriamente dito, que, todavia, não<br />
<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> registrar vista a rigor pouco variada<br />
(“quer subam uns, quer subam outr<strong>os</strong>, a<br />
cousa anda, pouco mais ou men<strong>os</strong>, sempre do<br />
mesmo modo”) (57), e passível <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação,<br />
em sonh<strong>os</strong>: “parecia-se com o Império<br />
do Brasil, como as duas mã<strong>os</strong> <strong>de</strong> um mesmo<br />
homem” (58). Geografia bastante próxima,<br />
portanto, à do inferno <strong>de</strong> Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães<br />
e, por vezes, das terras longínquas <strong>–</strong><br />
vi<strong>de</strong> <strong>os</strong> comentári<strong>os</strong> do sábio persa sobre o<br />
Brasil ou as p<strong>os</strong>síveis aplicações imperiais da<br />
telegrafia chinesa <strong>–</strong> <strong>de</strong>scritas por Bonifácio e<br />
Tibúrcio <strong>de</strong> Amarante.<br />
Text<strong>os</strong> que se aproximam não só por essa<br />
geografia implícita, ou pelo caráter fantasi<strong>os</strong>o<br />
ou humorístico <strong>de</strong> seus itinerári<strong>os</strong>, pelo tom<br />
satírico ou pela amplificação da voz narratorial,<br />
mas por uma <strong>de</strong>smontagem semelhante d<strong>os</strong><br />
relat<strong>os</strong> <strong>de</strong> <strong>viagem</strong> e por um repertório comum,<br />
<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>stacam aqui dois topoi: o cavalo e<br />
o tio. Não só por sua freqüência, mas por figurarem<br />
respectivamente o próprio processo<br />
narrativo e, pelo avesso, a noção mesma <strong>de</strong><br />
autoria no romantismo brasileiro.<br />
CAVALOS DE PAU<br />
A <strong>de</strong>scrição da montaria é, na verda<strong>de</strong>, quase<br />
obrigatória n<strong>os</strong> relat<strong>os</strong> <strong>de</strong> viagens por terra.<br />
Lembrem-se, nesse sentido, <strong>os</strong> elogi<strong>os</strong> ao burro<br />
Paissandu n<strong>os</strong> Dias <strong>de</strong> Guerra e <strong>de</strong> Sertão, <strong>de</strong><br />
Taunay, as proezas do corcel lituano nas Aventuras<br />
do Barão <strong>de</strong> Münchhausen, ou a transformação,<br />
na Viagem à Roda do Meu Quarto, <strong>de</strong><br />
Xavier <strong>de</strong> Maistre, <strong>de</strong> uma janela em cavalo.<br />
É também como resultado <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong><br />
54 Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo,<br />
A Carteira <strong>de</strong> Meu<br />
Tio, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Tipografia<br />
da Emp. Dous <strong>de</strong> Dezembro,<br />
<strong>de</strong> Paula Brito,<br />
1855, 1 o Folheto, p. 2.<br />
55 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 23.<br />
56 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 79.<br />
57 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 89.<br />
58 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, 2 o Folheto,<br />
p. 61.<br />
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