A MENOR DISTÂNCIA ENTRE DOIS MUNDOS - Programa de Pós ...
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A <strong>MENOR</strong> <strong>DISTÂNCIA</strong> <strong>ENTRE</strong> <strong>DOIS</strong> <strong>MUNDOS</strong>:<br />
um estudo sobre a representação do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez<br />
Patrícia <strong>de</strong> Miranda Iorio<br />
Número <strong>de</strong> volumes: 1<br />
Tese <strong>de</strong> Doutorado apresentada ao <strong>Programa</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Pós</strong>-Graduação em Ciência da Literatura da<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro como<br />
quesito para a obtenção do Título <strong>de</strong> Doutor<br />
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada)<br />
Orientadora: Profª. Doutora Beatriz Resen<strong>de</strong><br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Março, 2010
A <strong>MENOR</strong> DISTÄNCIA <strong>ENTRE</strong> <strong>DOIS</strong> <strong>MUNDOS</strong><br />
um estudo sobre a representaÅÇo do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez<br />
PatrÉcia <strong>de</strong> Miranda Iorio<br />
Orientadora: Professora Doutora Beatriz Resen<strong>de</strong><br />
Tese <strong>de</strong> Doutorado submetida ao <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> PÑs-GraduaÅÇo em CiÖncia da Literatura<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para<br />
a obtenÅÇo do tÉtulo <strong>de</strong> Doutor em CiÖncia da Literatura (Literatura Comparada).<br />
Examinada por:<br />
_________________________________________________<br />
Presi<strong>de</strong>nte, Profa. Doutora Beatriz Resen<strong>de</strong> – Letras – UFRJ<br />
_________________________________________________<br />
Profa. Doutora Pina Maria Arnoldi Coco – Letras – PUC-Rio<br />
________________________________________________<br />
Prof. Doutor Marildo Josà Nercolini – Estudos <strong>de</strong> MÉdia e PPGCOM – UFF<br />
________________________________________________<br />
Prof. Doutor Fre<strong>de</strong>rico <strong>de</strong> GÑes – Letras – UFRJ<br />
________________________________________________<br />
Profa. Doutora Cristiane Costa – ECO – UFRJ<br />
________________________________________________<br />
Prof. Doutor Renato Cor<strong>de</strong>iro Gomes, Letras – PUC-Rio, Suplente<br />
_______________________________________________<br />
Profa. Doutora HeloÉsa Buarque <strong>de</strong> Hollanda, ECO – UFRJ, Suplente<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
MarÅo <strong>de</strong> 2010<br />
2
Ao meu pai Olyntho (in memoriam),<br />
com quem adoraria ter compartilhado mais esta aventura intelectual.<br />
Ao meu marido Vitor e às minhas Marias, Clara e Isabel,<br />
parceiros e interlocutores amorosos e pacientes.<br />
3
AGRADECIMENTOS<br />
Escrever esta tese foi um gran<strong>de</strong> prazer. Do <strong>de</strong>safio intelectual ao cumprimento <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>adlines, do garimpo <strong>de</strong> informaÅâes ä tela em branco, da análise das telenovelas ä entrevista<br />
com a autora, da solidÇo da escrita ao diálogo com a orientadora ─ tudo teve sabor <strong>de</strong><br />
aventura. Desnecessário mencionar a <strong>de</strong>lÉcia que foi <strong>de</strong>sbravar os caminhos da telenovela e<br />
viajar na imaginaÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez.<br />
Passada a adrenalina, assentada a poeira, à hora <strong>de</strong> fechar a contabilida<strong>de</strong>: como<br />
retribuir a inspiraÅÇo, a sabedoria, o estÉmulo, o interesse, a paciÖncia, a compreensÇo, a<br />
escuta, os comentários e as crÉticas que tanto me ajudaram a chegar atà aqui? Resta-me a<br />
gratidÇo, humil<strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> que nada fiz sozinha. Sei que tudo o que disser aqui será<br />
incapaz <strong>de</strong> expressá-la. Sei tambàm que será impossÉvel listar todos aqueles que, <strong>de</strong> alguma<br />
forma, <strong>de</strong>ixaram sua contribuiÅÇo.<br />
Incalculável à minha dÉvida <strong>de</strong> gratidÇo com a Profå. Drå. Beatriz Resen<strong>de</strong>, orientadora<br />
<strong>de</strong>sta tese: pelo entusiasmo com que abraÅou meu projeto; pela firmeza e coragem com que o<br />
conduziu no terreno das Letras; pela tenacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas observaÅâes; pela confianÅa em<br />
minha capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizaÅÇo; pela generosida<strong>de</strong>, pelo <strong>de</strong>safio intelectual e, principalmente,<br />
pela alegria que foi trabalharmos juntas.<br />
Aos professores do <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> PÑs-GraduaÅÇo em CiÖncia da Literatura/Literatura<br />
Comparada da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>vo o meu<br />
crescimento intelectual e o polimento <strong>de</strong> minha formaÅÇo. Ao Prof. Dr. Eduardo Portella,<br />
agra<strong>de</strong>Åo por ter permitido que compartilhasse <strong>de</strong> suas idàias e por ter sido, para minha grata<br />
surpresa, um interlocutor afiado em telenovela. Ao Prof. Dr. Eduardo Coutinho, minha<br />
gratidÇo pela competÖncia com que me apresentou os novos <strong>de</strong>safios da Literatura Comparada<br />
e pelo interesse no folhetim televisivo. Ao Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins, agra<strong>de</strong>Åo o exemplo<br />
<strong>de</strong> serieda<strong>de</strong> e o contraponto inteligente, sempre na <strong>de</strong>fesa da indignaÅÇo como combustÉvel<br />
para a transformaÅÇo.<br />
Agra<strong>de</strong>Åo tambàm ä Profå. Drå. Cristiane Costa e ao Prof. Dr. Fre<strong>de</strong>rico <strong>de</strong> GÑes pelos<br />
comentários e sugestâes oferecidas no exame <strong>de</strong> qualificaÅÇo. Prof. Fre<strong>de</strong>rico, especialmente,<br />
merece ainda minha gratidÇo por ter me socorrido tantas vezes com orientaÅâes virtuais. Aos<br />
dois e tambàm ä Profå. Drå. Pina Coco e ao Prof. Dr. Marildo Nercolini, meus agra<strong>de</strong>cimentos<br />
por aceitarem participar <strong>de</strong>sta banca e enriquecer este trabalho com suas contribuiÅâes.<br />
Aos funcionários da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, sou grata pela ajuda incansável na<br />
orientaÅÇo dos muitos e intrincados caminhos da burocracia acadÖmica.<br />
4
Devo especial agra<strong>de</strong>cimento ä Coor<strong>de</strong>naÅÇo <strong>de</strong> AperfeiÅoamento <strong>de</strong> Pessoal <strong>de</strong> NÉvel<br />
Superior: sem o apoio financeiro da Capes, a <strong>de</strong>dicaÅÇo exclusiva a esta empreitada teria sido<br />
impossÉvel.<br />
A Gloria Perez, minha mais sincera gratidÇo pela generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me receber por duas<br />
vezes, conce<strong>de</strong>ndo-me ao todo seis horas <strong>de</strong> entrevista, num momento especialmente <strong>de</strong>licado<br />
<strong>de</strong> sua vida. Agra<strong>de</strong>Åo tambàm o carinho, a paciÖncia e o material cedido para a pesquisa.<br />
A todas as pessoas com quem informalmente troquei i<strong>de</strong>ias sobre telenovela sou grata<br />
pelo exercÉcio intelectual.<br />
Aos meus sobrinhos Leonardo Santos e Guilherme Miranda, ambos com <strong>de</strong>z anos, sou<br />
grata por diferentes motivos: o primeiro ce<strong>de</strong>u-me um <strong>de</strong> seus brinquedos, um gravador<br />
digital, para que pu<strong>de</strong>sse registrar a entrevista com Gloria Perez; o segundo encantou-me com<br />
seu inesperado interesse sobre a tese e com a soluÅÇo encontrada para sua inesgotável<br />
curiosida<strong>de</strong>: “Tia Tita, <strong>de</strong>pois que for publicado, vocÖ me <strong>de</strong>ixa ler o seu trabalho?”<br />
Aos meus irmÇos, cunhados, parentes e amigos, agra<strong>de</strong>Åo o interesse, a preocupaÅÇo e<br />
a torcida. ès amigas Maria Ängela Bekenn, Isabelle Petit e Ängela Batalha, especialmente,<br />
sou grata pelo entusiasmo com que acompanharam todos os passos <strong>de</strong>sta aventura. è amiga<br />
Lilian Nabuco agra<strong>de</strong>Åo as intermináveis discussâes sobre novela e o sempre bem-vindo<br />
contraponto. Ao meu cunhado Carlos Henrique Santos, agra<strong>de</strong>Åo o clipping interessado <strong>de</strong><br />
material pertinente. Ao meu cunhado Fabio Iorio, um irmÇo que a vida me <strong>de</strong>u, minha<br />
gratidÇo pelo estÉmulo, inteligÖncia e disponibilida<strong>de</strong>, sempre.<br />
Aos meus pais, minha eterna gratidÇo por terem feito do saber um valor para mim. A meu<br />
pai Olyntho, que me <strong>de</strong>ixou nos momentos finais <strong>de</strong>ssa empreitada, agra<strong>de</strong>Åo os muitos exemplos<br />
<strong>de</strong> vida: simplicida<strong>de</strong>, correÅÇo, elegência, gentileza e dignida<strong>de</strong>. A minha mÇe Marly, sou grata<br />
pela energia contagiante, pela disponibilida<strong>de</strong> em ajudar e pelas oraÅâes permanentes.<br />
ès minhas Marias, Clara e Isabel, amores da minha vida, agra<strong>de</strong>Åo por iluminarem os<br />
meus dias, por me fazerem rir e chorar, por me beijarem tanto e me elegerem tantas vezes a<br />
melhor mÇe do mundo. Obrigada pelas inëmeras interrupÅâes, pela paciÖncia e pela<br />
compreensÇo. A Maria Clara, minha gratidÇo pela escuta <strong>de</strong>dicada e crÉtica <strong>de</strong> muitos<br />
capÉtulos. A Maria Isabel agra<strong>de</strong>Åo a assessoria na dolorosa tarefa <strong>de</strong> cortar palavras.<br />
Ao Vitor, parceiro maior <strong>de</strong>sta aventura, cëmplice e artÉfice da minha volta aos meios<br />
universitários <strong>de</strong>pois dos muitos anos <strong>de</strong>dicados prioritariamente ä maternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vo muito:<br />
o amor incondicional, a parceria intelectual, o estÉmulo, a compreensÇo, a <strong>de</strong>dicaÅÇo, a<br />
solidarieda<strong>de</strong>, a crÉtica. Em todos estes anos, a vida e o amor nos fizeram parceiros em tudo.<br />
A Deus agra<strong>de</strong>Åo os <strong>de</strong>safios colocados em meu caminho e a serenida<strong>de</strong> para enfrentá-los.<br />
5
DÄcris-moi ton harem, je te dirai qui tu es.<br />
Fatema Mernissi<br />
“E eu viajo para conhecer a minha geografia”<br />
Um louco,<br />
in Marcel Réja, L’art chez les fous.<br />
“O homem que consi<strong>de</strong>ra a sua pÉtria acolhedora<br />
Ä apenas um terno principiante; aquele para quem qualquer solo<br />
Ä como o seu solo natal Ä jÉ forte; mas Ä perfeito<br />
aquele para quem o mundo inteiro Ä uma terra estrangeira”.<br />
Erich Auerbach<br />
6
RESUMO<br />
IORIO, PatrÉcia <strong>de</strong> Miranda. A <strong>MENOR</strong> DISTÄNCIA <strong>ENTRE</strong> <strong>DOIS</strong> <strong>MUNDOS</strong>: um estudo<br />
sobre a representaÅÇo do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2010.<br />
Tese (Doutorado em Letras) – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2010.<br />
Este estudo tem por objetivo analisar a representaÅÇo do Eu e do Outro em duas<br />
telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez que tratam <strong>de</strong> diferenÅas culturais: “O Clone”, <strong>de</strong> 2001/2002, e<br />
“Caminho das índias”, <strong>de</strong> 2009, ambas exibidas no horário nobre da TV Globo. A observaÅÇo<br />
tem como foco tanto o Outro-estrangeiro, apresentado atravàs dos nëcleos muÅulmano e<br />
indiano resi<strong>de</strong>ntes no Marrocos e na índia da ficÅÇo, como o Outro-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo,<br />
configurado pelas personagens brasileiras que encarnam o drama da <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica e<br />
da doenÅa mental. Pela perspectiva dos estudos <strong>de</strong> cultura, este trabalho explora a telenovela<br />
em várias dimensâes: apresenta suas caracterÉsticas enquanto gÖnero narrativo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> sua<br />
importência enquanto veÉculo <strong>de</strong> narrativida<strong>de</strong> do real, reconhece sua condiÅÇo <strong>de</strong> produto da<br />
indëstria cultural e discute sua aceitaÅÇo como arte. Os mundos muÅulmano e indiano das<br />
telenovelas estudadas sÇo observados a partir dos conceitos <strong>de</strong> representaÅÇo, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e<br />
alterida<strong>de</strong>, tendo como referÖncia as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> “comunida<strong>de</strong> imaginada”, “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural”<br />
“cultura hÉbrida” e “orientalismo”, <strong>de</strong>fendidas por Benedict An<strong>de</strong>rson, Stuart Hall, Nàstor<br />
GarcÉa Canclini e Edward Said, respectivamente. A análise da obra <strong>de</strong> Gloria Perez pela via<br />
da narrativida<strong>de</strong> textual e cÖnica revela uma linhagem que entrelaÅa sua construÅÇo ficcional<br />
com as contribuiÅâes <strong>de</strong> GlÑria Magadan e Janete Clair, configurando suas telenovelas como<br />
narrativas <strong>de</strong> autoria feminina. “O Clone” e “Caminho das índias” mostram-se telenovelas<br />
construÉdas no respeito ä diversida<strong>de</strong> e no compromisso com a transformaÅÇo do cotidiano.<br />
Palavras-chave: Telenovela. RepresentaÅÇo. Narrativa. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Alterida<strong>de</strong> (Brasil).<br />
7
ABSTRACT<br />
IORIO, PatrÉcia <strong>de</strong> Miranda. A <strong>MENOR</strong> DISTÄNCIA <strong>ENTRE</strong> <strong>DOIS</strong> <strong>MUNDOS</strong>: um estudo<br />
sobre a representaÅÇo do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2010.<br />
Tese (Doutorado em Letras) – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2010.<br />
The purpose of this study is to analyze the representation of Self and Other in two Gloria<br />
Perez’s telenovelas that <strong>de</strong>al with cultural differences: “The Clon”, of 2001/2002, and “India,<br />
a love story”, of 2009, both showed on prime time at Globo TV. The observation focuses on<br />
both the foreigner-Other, as it is presented in the Muslim and Indian groups that live on the<br />
fictitious Marroco and India, and the within-self-Other, as it is showed through the drama of<br />
the drug-addicted and mental disturbed characters. Through the perspective of the Culture<br />
Studies, this research explores telenovela in several dimensions: it presents its characteristics<br />
as a narrative gen<strong>de</strong>r, it <strong>de</strong>fends its importance as a vehicle of dissemination of reality<br />
narrativety, it recognizes its condition as a product of Cultural Industry, and it discusses its<br />
acceptance as a form of art. The Muslim and Indian worlds as shown on the analyzed<br />
telenovelas are observed through the concepts of “representation”, “i<strong>de</strong>ntity” and “otherness”,<br />
taking as reference the i<strong>de</strong>as of “imagined community”, “cultural i<strong>de</strong>ntity”, “hybrid culture”<br />
and “orientalism”, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>d by Benedict An<strong>de</strong>rson, Stuart Hall, Nàstor GarcÉa Canclini e<br />
Edward Said, respectively. The analysis of Gloria Perez work through its textual and scenic<br />
narrativety reveals a connection of her fictional pieces with the contributions of previous<br />
writers GlÑria Magadan and Janete Clair, presenting her telenovelas as a narrative of women<br />
signature. “The Clon” and “India, a love story”, appear as being telenovelas built on respect<br />
for diversity and on its compromise with day-life transformation.<br />
Key-words: Telenovela. Representation. Narrative. I<strong>de</strong>ntity. Otherness (Brazil).<br />
8
1 INTRODUÇÃO<br />
SUMÁRIO<br />
2 A TELENOVELA E OS ESTUDOS DE CULTURA<br />
2.1 TELENOVELA BRASILEIRA E REALISMO<br />
2.2 “BRASILIDADE” EM QUESTîO<br />
3 A TELENOVELA ENQUANTO GÊNERO NARRATIVO<br />
3.1 ORIGEM DO FOLHETIM<br />
3.2 FOLHETIM NO BRASIL<br />
3.3 DO FOLHETIM IMPRESSO è RADIONOVELA E è TELENOVELA<br />
3.4 CAMINHOS DA TELENOVELA NO BRASIL<br />
3.5 O PODER DA OBRA ABERTA<br />
3.6 A NARRATIVIDADE<br />
3.7 UMA NARRATIVA POPULAR<br />
4 A NARRATIVIDADE COMO TECNOLOGIA COGNITIVA DO REAL<br />
4.1 NASCIDOS EM BORDïIS ─ O FILME<br />
4.2 BRISKI, A INTELECTUAL ENGAJADA<br />
4.3 AVIJIT, O ARTISTA REVOLTADO<br />
4.4 A MERCADORIA E O AFETO: O CAMINHO POSSíVEL E A AUTONOMIA<br />
5 A TELENOVELA ENQUANTO ARTE<br />
5.1 A ARTE TRADICIONAL<br />
5.2 A ARTE NA PñS-MODERNIDADE<br />
5.3 MAIS QUE MERCADORIA<br />
5.4 A ARTE DA TELENOVELA<br />
6 NARRATIVAS SOBRE MUNDO MUÇULMANO<br />
6.1 JORNALISMO E TELEDRAMATURGIA: NATUREZA DA NARRATIVA<br />
6.2 O MUóULMANO E O ISLAMISMO EM VEJA<br />
6.3 O MUóULMANO E O ISLAMISMO EM “O CLONE”<br />
6.4 NARRATIVAS EM PERSPECTIVA<br />
6.5 O OUTRO POR ELE MESMO<br />
6.6 IDENTIDADES EM JOGO<br />
7 NARRATIVAS SOBRE O MUNDO INDIANO<br />
7.1 DUAS NARRATIVAS FICCIONAIS<br />
7.2 O TEMPO NARRATIVO<br />
7.3 A CARTOGRAFIA DE DUAS íNDIAS<br />
7.4 A íNDIA FORA DAS TELAS<br />
7.5 A VIDA INDIANA NA FICóîO<br />
7.6 DUAS ESTïTICAS PARA A íNDIA<br />
8 DUAS TELENOVELAS, UM OLHAR SOBRE A REPRESENTAÇÃO<br />
8.1 GLñRIA-JANETE-GLORIA, UMA LINHAGEM NO FOLHETIM TELEVISIVO<br />
8.2 <strong>ENTRE</strong> <strong>MUNDOS</strong> DIFERENTES<br />
9
8.3 <strong>ENTRE</strong> A FANTASIA E O REAL<br />
8.4 UMA ASSINATURA FEMININA<br />
10 CONCLUSÄO<br />
11 REFERÅNCIAS<br />
12 ANEXO A - <strong>ENTRE</strong>VISTA COM GLORIA PEREZ<br />
13 ANEXO B – CAPÉTULO 1 DE “CAMINHO DAS ÉNDIAS”<br />
10
1 INTRODUÇÃO<br />
A distância entre nós. TÉtulo <strong>de</strong> um dos romances <strong>de</strong> sucesso da escritora indiana-<br />
americana Thrity Umrigar, a expressÇo soa como emblema em tempos <strong>de</strong> ressaca da<br />
globalizaÅÇo: as “promessas do universalismo abstrato” 1 provaram-se <strong>de</strong>cepcionantes ─ há<br />
mais tensÇo, “confrontaÅÇo e diálogo” do que “fusÇo, coesÇo e osmose”. Reconhecer as<br />
diferenÅas e pensar o diferente num mundo <strong>de</strong> fronteiras fluidas e porosas, on<strong>de</strong> as interseÅâes<br />
e as fecundaÅâes interculturais ten<strong>de</strong>m ä construÅÇo da multiculturalida<strong>de</strong>, requer cada vez<br />
mais redimensionar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> distência, esse afastamento que ao mesmo tempo nos faz<br />
vizinhos e nos impâe a condiÅÇo <strong>de</strong> estrangeiros.<br />
Distência. EspaÅo entre dois mundos. Perto. Longe. Igual. Diferente. Familiar.<br />
Estranho. Eu. Outro. Inëmeros <strong>de</strong>sdobramentos do tema ganharam foco na literatura, no<br />
cinema, na televisÇo, no jornalismo, na polÉtica e nas CiÖncias Sociais, produzindo<br />
estranhamento e encantamento, rejeiÅÇo e fascÉnio; explorando a curiosida<strong>de</strong>, cultivando o<br />
encontro <strong>de</strong> diferenÅas, apostando na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trocas, muitas vezes valendo-se do<br />
exÑtico, outras, do caricato. O “diferente” ganhou todo tipo <strong>de</strong> porta-voz, interlocutor,<br />
mediador, embaixador. Mas tambàm tomou a palavra, falou <strong>de</strong> si e por si, rejeitou o olhar<br />
alheio, pregou a aproximaÅÇo, o sincretismo, a revoluÅÇo, a intransponibilida<strong>de</strong> pacÉfica das<br />
diferenÅas culturais, polÉticas, econòmicas, estàticas, religiosas. Algumas distências foram<br />
encurtadas, outras, estendidas. Entendimento, intolerência, conflito, acomodaÅÇo: resultados<br />
das variadas escalas <strong>de</strong> medida usadas para dimensionar o espaÅo entre mundos distantes<br />
tornados prÑximos pela lÑgica da globalizaÅÇo. Tecnicamente integrado, sem fronteiras, e<br />
povoado por seres em fascinante liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento, o territÑrio globalizado, como<br />
figura <strong>de</strong> retÑrica, <strong>de</strong>nota a utopia da harmonia universal que ardilosamente suprime as<br />
distências, os <strong>de</strong>sencontros e as tragàdias experimentadas pelos cada vez mais numerosos<br />
exilados transitÑrios, navegantes <strong>de</strong> mares <strong>de</strong>sconhecidos e viajantes virtuais das estradas<br />
midiáticas e tecnolÑgicas.<br />
No universo narrativo <strong>de</strong> Gloria Perez, representante feminina <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no seleto e<br />
majoritariamente masculino panteÇo <strong>de</strong> autores brasileiros <strong>de</strong> telenovela <strong>de</strong> horário nobre 2 ,<br />
uma nova cartografia <strong>de</strong> folhetim vem redimensionando as enormes distências que<br />
1 LAPLANTINE & NOUSS, 1997, apud. CANCLINI, 2008, p. XVI.<br />
2 A publicaÅÇo Autores: histórias da teledramaturgia, editada pela TV Globo/Editora Globo, reproduziu os<br />
<strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>zesseis autores contemporêneos <strong>de</strong> renome da emissora, <strong>de</strong>ntre os quais figuram apenas duas<br />
mulheres: Gloria Perez e Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral, esta ëltima mais conhecida por seu trabalho em minisàries do<br />
que em telenovelas.<br />
11
aparentemente separam o Eu do Outro. Em linhas sinuosas, rocambolescas, suas telenovelas<br />
percorrem a menor distência entre mundos afastados e <strong>de</strong>sconhecidos que, estranhamente, se<br />
tornam familiares: oferecem atalhos, passagens secretas e <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> rota que parecem<br />
aproximar do Brasil os distantes Marrocos e índia. Mais que isso: tal qual um Pedro ôlvares<br />
Cabral pÑs-mo<strong>de</strong>rno, Gloria Perez tem tomado o caminho do Oriente em busca <strong>de</strong> fascÉnio (a<br />
nova especiaria dos tempos midiáticos) para <strong>de</strong>saguar, por forÅa das correntes atravessadas do<br />
folhetim, num Brasil que se oferece a ser re<strong>de</strong>scoberto. Como num curto-circuito <strong>de</strong> GPS (a<br />
nova bëssola por satàlite), a autora faz Oriente e Oci<strong>de</strong>nte coincidirem numa mesma<br />
coor<strong>de</strong>nada terrestre: telenovela <strong>de</strong> horário nobre, Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong> TelevisÇo, Brasil.<br />
“O Clone” e “Caminho das índias”, sucessos estrondosos <strong>de</strong> pëblico, marcam a<br />
retomada da essÖncia do folhetim e inauguram a utilizaÅÇo do Outro estrangeiro como<br />
contraponto temático ─ nÇo apenas como “colorido” <strong>de</strong> capÉtulos iniciais, mas como um dos<br />
eixos que sustentam toda a narrativa. Entrincheirada no domÉnio da ficÅÇo televisiva, limitada<br />
pela natureza popular do gÖnero telenovela e restrita a uma linguagem que <strong>de</strong>ve aten<strong>de</strong>r com<br />
eficácia tanto a elite quanto os analfabetos brasileiros e ainda a populaÅÇo estrangeira que<br />
assiste ao folhetim em outros paÉses, a narrativa <strong>de</strong> Gloria Perez tem feito muito mais do que<br />
problematizar o Brasil contemporêneo, gran<strong>de</strong> trunfo das telenovelas mo<strong>de</strong>rnas: “O Clone” e<br />
“Caminho das índias” tÖm contribuÉdo, sobretudo, para a problematizaÅÇo da alterida<strong>de</strong> e seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos, questÇo <strong>de</strong> fundamental importência para o mundo globalizado e foco<br />
central dos Estudos Culturais e PÑs-Coloniais.<br />
Pelo novo fòlego que vem conferindo ao gÖnero supostamente esgotado, Gloria Perez<br />
conquistou um lugar <strong>de</strong>finitivo na histÑria da telenovela brasileira. Alàm <strong>de</strong> combinar a<br />
discussÇo <strong>de</strong> questâes sociais ao fascÉnio resultante da excelente comunicaÅÇo ficcional que<br />
herdou <strong>de</strong> Janete Clair, a discÉpula confessa da mestra das telenovelas brasileiras ainda<br />
adicionou ao cal<strong>de</strong>irÇo da “Maga das Oito” (como Janete era conhecida) um ingrediente prÑprio<br />
dos tempos sem fronteiras: a curiosida<strong>de</strong> sobre outras culturas. (Neste aspecto, especificamente,<br />
e na fertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua imaginaÅÇo criativa, a autora <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
parece revelar tambàm traÅos do DNA pioneiro <strong>de</strong> outra GlÑria, a Magadan.) Na luneta atravàs<br />
da qual enquadra um Outro geograficamente distante e comercialmente prÑximo, Gloria Perez<br />
displicentemente interpâe um espelho e inverte o jogo, propondo ao pëblico um olhar<br />
estrangeiro sobre si mesmo. Quem seria o Eu e quem seria o Outro quando se <strong>de</strong>sloca a<br />
perspectiva? O que à “natural”, familiar, e o que à estranho quando a cultura à posta em xeque?<br />
Embora sua trajetÑria na telenovela brasileira venha <strong>de</strong> longa data ─ Gloria Perez<br />
comeÅou como colaboradora <strong>de</strong> Janete Clair em “Eu Prometo”, <strong>de</strong> 1983, novela que, com a<br />
12
morte da titular, foi obrigada a concluir sozinha; assinou no ano seguinte “Partido Alto” com<br />
Aguinaldo Silva e iniciou carreira solo em 1987 com “Carmem”, na já extinta Re<strong>de</strong> Manchete<br />
─, foi em 2001 que a autora embarcou em sua primeira viagem ao Oriente, trazendo com<br />
gran<strong>de</strong> sucesso o universo muÅulmano do Marrocos para as tramas folhetinescas. O sàculo<br />
XXI parecia inaugurar um novo tempo e a autora, fascinada pelos <strong>de</strong>safios que a tecnologia e<br />
a ciÖncia impâem ä vida humana, escrevia uma novela que pu<strong>de</strong>sse discutir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sob a<br />
forja das artificialida<strong>de</strong>s criadas pelo “progresso”: a possibilida<strong>de</strong> da clonagem humana, que<br />
permite ao homem brincar <strong>de</strong> Deus, criando seres ä sua imagem e semelhanÅa, mas <strong>de</strong>sligado<br />
da Natureza; e a globalizaÅÇo, que obriga a tradiÅÇo a confrontar a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, muitas vezes<br />
a partir do <strong>de</strong>senraizamento das culturas. Detinha-se nos novos conflitos àticos da reproduÅÇo<br />
humana e nos confrontos culturais que se avizinhavam com a globalizaÅÇo dos mercados ─<br />
inclusive a globalizaÅÇo do prÑprio mercado das telenovelas, cada vez avanÅando mais sobre<br />
territÑrios estrangeiros. Diante da constataÅÇo <strong>de</strong> que o folhetim televisivo era entÇo, como<br />
ainda à, o maior produto <strong>de</strong> exportaÅÇo da TV Globo, Gloria Perez escrevia “O Clone”, uma<br />
trama baseada em dois nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo, um ambientado no bairro carioca <strong>de</strong> SÇo CristÑvÇo,<br />
Brasil, e outro na labirÉntica Medina <strong>de</strong> Fez, no Marrocos, sem sequer imaginar que estava<br />
gestando um dos maiores sucessos da teledramaturgia mo<strong>de</strong>rna brasileira.<br />
NÇo era apenas uma novela que, para encantar o pëblico, gravava suas cenas iniciais<br />
numa cida<strong>de</strong> estrangeira atà que a personagem protagonista voltasse ao Brasil. NÇo. “O<br />
Clone” manteve, durante todos os seus 221 capÉtulos exibidos por oito meses e meio, uma<br />
narrativa dividida entre duas culturas e voltada para a construÅÇo <strong>de</strong> uma ponte <strong>de</strong><br />
compreensÇo entre estes dois universos. A temática muÅulmana, consi<strong>de</strong>rada uma temerida<strong>de</strong><br />
antes da estreia da telenovela, acabou por revelar-se um “achado”: em uma coincidÖncia<br />
assustadora, a novela estreou menos <strong>de</strong> um mÖs <strong>de</strong>pois do dramático episÑdio <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong><br />
setembro, e a ficÅÇo acabou servindo <strong>de</strong> contraponto ao noticiário mundial sobre o terrorismo.<br />
Oportuna e encantadora, a versÇo <strong>de</strong> Gloria Perez sobre o mundo muÅulmano nÇo sÑ rompeu<br />
o preconceito dos que temiam a rejeiÅÇo do pëblico por uma temática tÇo distante, diferente e<br />
<strong>de</strong>sconhecida dos brasileiros 3 , como atingiu uma audiÖncia màdia superior ao exigido pela<br />
emissora (e seu ëltimo capÉtulo conseguiu 62 pontos <strong>de</strong> màdia, o que à um excelente Éndice),<br />
elevando <strong>de</strong>finitivamente a autora ao primeiro time <strong>de</strong> teledramaturgos da TV Globo e<br />
consagrando o sucesso do melodrama folhetinesco.<br />
3 A autora já havia rompido tal preconceito anteriormente, quando escreveu “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, novela exibida<br />
em 1995: com enorme sucesso <strong>de</strong> audiÖncia, tratou do entÇo obscuro universo cigano e das possibilida<strong>de</strong>s da<br />
Internet, recurso tecnolÑgico pouco conhecido no Brasil äquela àpoca.<br />
13
Depois <strong>de</strong> assinar a telenovela “Amàrica”, <strong>de</strong> 2005, sobre o mundo dos ro<strong>de</strong>ios e a<br />
imigraÅÇo ilegal, e a minissàrie “Amazònia, <strong>de</strong> Galvez a Chico Men<strong>de</strong>s”, exibida em 2007,<br />
sobre a histÑria da conquista do Acre como territÑrio brasileiro, a autora estreou “Caminho<br />
das índias”, no inÉcio <strong>de</strong> 2009, reforÅando a tendÖncia <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> outras culturas, um dos<br />
traÅos <strong>de</strong> sua assinatura como teledramaturga 4 . A partir da histÑria <strong>de</strong> amor impossÉvel entre<br />
uma moÅa <strong>de</strong> casta e um “intocável”, e apoiada na relaÅÇo comercial entre uma empresa<br />
brasileira e suas parceiras indianas, a trama narra uma sàrie <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong>sencontros<br />
amorosos, profissionais, culturais, àticos e religiosos que permitem uma viagem pelos<br />
costumes da índia e do Brasil. Como em “O Clone”, a totalida<strong>de</strong> dos capÉtulos <strong>de</strong> “Caminho<br />
das índias” se apoiou em dois nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo: um em Jaipur, capital do RajastÇo, na<br />
Repëblica da índia, e outro no Rio <strong>de</strong> Janeiro, Brasil. Desta vez, no entanto, nÇo houve<br />
coincidÖncia. A temática da novela flagrantemente veio a reboque da ascensÇo da índia ä<br />
esfera dos BRICs 5 , grupo <strong>de</strong> paÉses emergentes na economia mundial que tem estreitado as<br />
relaÅâes polÉticas e comerciais entre aquele paÉs e o Brasil. (A prÑpria autora afirma ter<br />
escolhido a índia como foco <strong>de</strong> sua novela durante a MIPCOM, feira internacional realizada<br />
em Cannes para que tevÖs <strong>de</strong> todo o mundo apresentem seus produtos, on<strong>de</strong> teve contato com<br />
a pujanÅa da cultura do paÉs 6 .) Para alàm do exotismo e do mistàrio evocados pelo imaginário<br />
da índia no cenário internacional, o paÉs tem li<strong>de</strong>rado o noticiário mundial com expectativas<br />
<strong>de</strong> sua promissora economia.<br />
Diversos motivos tÖm levado o mundo capitalista a eleger alguns paÉses do mundo<br />
oriental como foco <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse do mercado global. Des<strong>de</strong> os atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong><br />
setembro, das guerras que os suce<strong>de</strong>ram e da ascensÇo da índia ao seleto grupo das economias<br />
emergentes, o mundo do jornalismo, da arte, da cultura, da <strong>de</strong>coraÅÇo, da moda e do<br />
entretenimento vem sendo invadido por um Oriente suficientemente maleável, capaz <strong>de</strong> se<br />
ajustar äs mais diferentes exigÖncias mercadolÑgicas. Depen<strong>de</strong>ndo da imagem que se quer<br />
ven<strong>de</strong>r, o Oci<strong>de</strong>nte oferece o Oriente “inimigo impiedoso”, o que pratica religiâes<br />
4 Gloria Perez rejeita os rÑtulos que possam reduzir sua dramaturgia a um tema, como as diferenÅas culturais, por<br />
exemplo. Prefere dizer que à o novo que lhe inspira: imaginar os tipos <strong>de</strong> drama que “serÇo vividos pelas<br />
geraÅâes futuras em funÅÇo dos avanÅos tecnolÑgicos, cada vez mais rápidos”. In Autores: histórias da<br />
dramaturgia, 2008, p. 481.<br />
5 O acrònimo BRIC, criado em 2001 pelo economista Jim O’Neill, <strong>de</strong>staca o Brasil, a Rëssia, a índia e a China<br />
como paÉses que, pelas mais recentes projeÅâes <strong>de</strong>mográficas e mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> acumulaÅÇo <strong>de</strong> capital e crescimento<br />
<strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong>, ten<strong>de</strong>m a superar em conjunto, em menos <strong>de</strong> 40 anos, a economia dos G6, grupo que reëne<br />
Estados Unidos da Amàrica, JapÇo, Alemanha, Reino Unido, FranÅa e Itália.<br />
6 PEREZ, 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009. Entrevista ao Canal Extra (“NamastÖ Brasil”). DisponÉvel em:<br />
.<br />
14
“inaceitáveis”, o que tem matrizes culturais “estranhas”, ou o que à “frágil” e precisa <strong>de</strong><br />
“tutor” externo, ou ainda aquele que, graÅas ä perspectiva <strong>de</strong> tornar-se uma das maiores forÅas<br />
mundiais, à “fashion 7 ”, oculta talentos insuspeitados e grita, libertariamente, contra as forÅas<br />
<strong>de</strong> opressÇo polÉtica, cultural, racial, sexual e religiosa. O fato à que a mÉdia oci<strong>de</strong>ntal, porta-<br />
voz do sistema capitalista, tem feito do Oriente um rentável produto <strong>de</strong> consumo. Nas<br />
prateleiras <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>roso supermercado, estÇo expostos lado a lado o fanatismo religioso <strong>de</strong><br />
Bin La<strong>de</strong>n e a riqueza da arte afegÇ; os avanÅos cientÉficos do mundo árabe e a opressÇo<br />
feminina expressa em burkas e cÑdigos <strong>de</strong> obediÖncia; o colorido e o brilho das sedas que<br />
embrulham as mulheres em sáris indianos preciosos e a sujeira <strong>de</strong> um Ganges milagroso que<br />
banha as esperanÅas <strong>de</strong> um povo e os mortos a càu aberto.<br />
No rastro dos atentados ao World Tra<strong>de</strong> Center e da estreia <strong>de</strong> “O Clone” no Brasil,<br />
várias faces da cultura muÅulmana vieram ä tona, invadindo o noticiário, a vitrine <strong>de</strong> livrarias,<br />
a indëstria <strong>de</strong> eventos festivos (vi<strong>de</strong> a sëbita procura por tendas árabes, a contrataÅÇo <strong>de</strong><br />
danÅarinas do ventre para “<strong>de</strong>corar” festas temáticas e a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>manda por fantasias <strong>de</strong><br />
odalisca), os documentários <strong>de</strong> tevÖ e as telas <strong>de</strong> cinema (vi<strong>de</strong> “Paradise Now”, do palestino<br />
Hany Abu-Assad, lanÅado em 2005, ficÅÇo que acompanha o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> dois homens-bomba<br />
recrutados para um ataque suicida, e que recebeu uma indicaÅÇo ao Oscar <strong>de</strong> Melhor Filme<br />
Estrangeiro, alàm <strong>de</strong> ter conquistado vários prÖmios, como o Globo <strong>de</strong> Ouro <strong>de</strong> Melhor Filme<br />
Estrangeiro, o European Film Awards <strong>de</strong> Melhor Roteiro e o In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt Spirit Awards <strong>de</strong><br />
Melhor Filme Estrangeiro).<br />
Igualmente, no rastro da ascensÇo da índia ao grupo dos BRIC’s e da estreia <strong>de</strong><br />
“Caminho das índias”, tudo o que tem origem indiana foi ungido pelo toque encantado da<br />
mÉdia. Como disse a jornalista Cora RÑnai em sua coluna semanal no Segundo Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> O<br />
Globo 8 , “tornou-se impossÉvel entrar em qualquer livraria sem encontrar logo ali, no balcÇo da<br />
frente, pequenas coleÅâes <strong>de</strong>dicadas ao paÉs”. Ela mesma confessava ter sucumbido ä febre da<br />
literatura indiana: “Do alto da minha mesinha <strong>de</strong> cabeceira quase vinte livros me<br />
contemplam”. De naturezas diversas, as obras que trazem a índia como tema e ocupam espaÅo<br />
7 Ao mesmo tempo em que a estàtica indiana torna-se fashion na moda, na <strong>de</strong>coraÅÇo e na gastronomia em todo<br />
o mundo, a índia se consagra tambàm como um mercado fashion. Em outubro <strong>de</strong> 2007, a ediÅÇo brasileira da<br />
Vogue comemorava em matària <strong>de</strong> duas páginas o lanÅamento da revista na índia com a seguinte afirmaÅÇo:<br />
“Quando a bÉblia fashion Vogue se instala em um novo paÉs, à sinal que [sic.] o mercado <strong>de</strong> luxo <strong>de</strong>finitivamente<br />
chegou por lá”. E completa: “No rastro da migraÅÇo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s marcas como Chanel, Hermös e Jimmy Choo, a<br />
Con<strong>de</strong> Nast lanÅa sua Vogue índia convicta <strong>de</strong> que à apenas questÇo <strong>de</strong> (pouco) tempo para que milhares <strong>de</strong><br />
indianas aposentem seus saris e kurtas e saiam em busca <strong>de</strong> novas aventuras no campo do estilo ─ cá entre nÑs,<br />
coragem para cometer extravagências nÇo vai faltar, muito menos po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> consumo, já que o paÉs vem<br />
galopando rumo ao topo do mundo”. OVERMEER, outubro <strong>de</strong> 2007, pp. 33.<br />
8 RñNAI, 7/05/2009, Segundo Ca<strong>de</strong>rno, O Globo, p. 8.<br />
15
majoritário nas vitrines das livrarias brasileiras sÇo narrativas que revelam certamente os<br />
efeitos dos Estudos PÑs-coloniais na libertaÅÇo das vozes que durante tanto tempo quedaram<br />
subjugadas pela cultura dominante europàia ─ inglesa, no caso. Mais do que trazer ä tona a<br />
versÇo do mundo silenciada pelo imperialismo, muitos <strong>de</strong>stes livros trazem a versÇo feminina<br />
do Oriente, revelando uma dimensÇo inesperada do olhar da mulher sobre a cultura indiana. A<br />
visÇo <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong>stas autoras, manifesta <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> confinamento ao segundo plano<br />
da vida cultural em seu paÉs, on<strong>de</strong> eram muitas vezes proibidas <strong>de</strong> expressar-se, possibilita a<br />
<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> nuances riquÉssimas e <strong>de</strong>sconhecidas <strong>de</strong>ste novo cenário.<br />
Tambàm o cinema foi surpreendido com um relato feminino sobre a índia, inovador<br />
no formato (um documentário subjetivo, em narrativa engajada) e no foco (as crianÅas filhas<br />
<strong>de</strong> prostitutas), lanÅado por uma fotÑgrafa inglesa estreante na indëstria cinematográfica.<br />
“Nascidos em bordàis”, <strong>de</strong> Zana Briski e Ross Kauffman, ganhou o Oscar <strong>de</strong> melhor<br />
documentário em 2005, categoria que lhe ren<strong>de</strong>u tambàm o prÖmio do National Board of<br />
Review e dos Los Angeles Film Critics. O filme da inglesa Briski, que conquistou o mundo<br />
com as tristes imagens da antiga colònia da Inglaterra, foi eleito ainda o melhor documentário<br />
pelo jëri popular no Sundance Film Festival, em 2004. Cinco anos <strong>de</strong>pois, pouco antes da<br />
estreia <strong>de</strong> “Caminhos das índias”, novo filme sobre o paÉs, novamente dirigido por um inglÖs,<br />
ganhava os holofotes da mÉdia: “Quem quer ser um milionário?”, do cineasta Danny Boyle,<br />
totalmente rodado na índia e com atores indianos, sagrou-se vencedor <strong>de</strong> oito Oscar, inclusive<br />
o <strong>de</strong> melhor filme e melhor diretor.<br />
Indiscutivelmente, as novas regras do jogo da polÉtica e da economia mundial fizeram<br />
do Oriente uma peÅa <strong>de</strong> fundamental importência. Para alàm da curiosida<strong>de</strong> que Gloria Perez<br />
afirma sentir pelos povos árabes e indianos, nÇo terá sido por mero capricho que a autora<br />
elegeu o Marrocos e a índia como <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> uma viagem fascinante pelas culturas<br />
muÅulmana e hindu. Potencialmente, a simples escolha <strong>de</strong>stes paÉses como locaÅÇo e<br />
contraponto para a cultura brasileira já garante para suas telenovelas um alcance incalculável<br />
<strong>de</strong> pëblico e um faturamento altÉssimo em exportaÅÇo. NÇo se po<strong>de</strong> esquecer que a telenovela<br />
hoje no Brasil movimenta nÇo sÑ o mercado interno com a venda vigorosa <strong>de</strong> espaÅo<br />
publicitário, merchandising e produtos com a marca da trama, mas tambàm fatura no mercado<br />
externo com sua exportaÅÇo, replicando em culturas as mais diversas o forte impacto que<br />
exerce no pëblico brasileiro e funcionando como um eficiente porta-voz da cultura nacional<br />
no exterior. Desnecessário lembrar que, alàm do valor <strong>de</strong> exportaÅÇo das telenovelas, tal<br />
iniciativa ainda ren<strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong> divisa para o paÉs, capitalizada sob a forma <strong>de</strong><br />
“embaixada” e propaganda do jeito <strong>de</strong> ser brasileiro junto ao mercado global. Apesar do alto<br />
16
investimento na produÅÇo <strong>de</strong>stas obras <strong>de</strong> ficÅÇo televisiva, nÇo há como negar que seu po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> comunicaÅÇo garante rendimentos <strong>de</strong> amplo espectro.<br />
A longevida<strong>de</strong> do gÖnero no Brasil ─ a <strong>de</strong>speito dos sucessivos anëncios <strong>de</strong> sua morte<br />
─, os altÉssimos Éndices <strong>de</strong> audiÖncia e a fortÉssima cotaÅÇo no mercado internacional há muito<br />
fazem da telenovela uma narrativa que tem conquistado pëblicos <strong>de</strong> todas as classes sociais e<br />
ida<strong>de</strong>s, resistindo ao tempo e cruzando fronteiras culturais. Alguns personagens e tramas<br />
marcam àpoca, ditam moda, introduzem bordâes, alteram o comportamento do pëblico, forÅam<br />
o mercado a se a<strong>de</strong>quar a novos padrâes <strong>de</strong> consumo. Numerosas revistas sÇo editadas tendo as<br />
telenovelas, seus autores e atores como foco, assim como à crescente o nëmero <strong>de</strong> blogs e sites<br />
sobre o assunto. Os <strong>de</strong>sfechos das tramas chegam mesmo a ganhar <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>,<br />
conquistando espaÅo na primeira página <strong>de</strong> jornais como se fatos fossem. Isso sem contar a<br />
proliferaÅÇo do gÖnero em boa parte das emissoras nacionais, ocupando gran<strong>de</strong> espaÅo em suas<br />
gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> programaÅÇo e criando a prática da “reserva <strong>de</strong> atores” para produÅâes futuras (<strong>de</strong><br />
modo a impedir sua escalaÅÇo em outras produÅâes ou mesmo sua evasÇo para a emissora<br />
concorrente), e investimento maciÅo em tecnologia, cenografia e figurino.<br />
Com uma histÑria que se confun<strong>de</strong> com a histÑria da televisÇo no Brasil ─ a primeira<br />
telenovela, “Sua vida me pertence”, <strong>de</strong> Walter Foster, foi veiculada na TV Tupi em<br />
1951/1952, pouco mais <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong>pois da inauguraÅÇo da televisÇo no paÉs ─ e com uma<br />
trajetÑria que vem atravessando quase 60 anos <strong>de</strong> transformaÅâes polÉticas, sÑcio-econòmicas<br />
e culturais, a ficÅÇo televisiva brasileira nÇo sÑ conquistou um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na cultura<br />
nacional como tambàm se tornou referÖncia internacional <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> em termos <strong>de</strong> narrativa<br />
ficcional e produÅÇo. Mais que um produto bem sucedido <strong>de</strong> mÉdia, tornou-se fenòmeno<br />
sÑcio-cultural e riquÉssimo objeto <strong>de</strong> investigaÅÇo para aqueles que percebem no gosto das<br />
massas uma importante abertura para o conhecimento <strong>de</strong> um povo e sua cultura. Apesar das<br />
polÖmicas sobre o esgotamento do gÖnero e sobre a “qualida<strong>de</strong>” literária da narrativa, a<br />
telenovela inegavelmente se firmou como “um dos mais importantes e amplos espaÅos <strong>de</strong><br />
problematizaÅÇo do Brasil, das intimida<strong>de</strong>s privadas äs polÉticas pëblicas” 9 , sintetizando o<br />
pëblico e o privado, o polÉtico e o domàstico, a notÉcia e a ficÅÇo, convenÅâes formais do<br />
documentário e do melodrama. Como escreve Jesës MartÉn-Barbero, “à nas telenovelas e<br />
programas dramáticos que o paÉs se relata e se <strong>de</strong>ixa ver” 10 .<br />
Encantei-me com elas ainda menina, talvez pelo simples fato <strong>de</strong> ter nascido mulher no<br />
paÉs da telenovela. Naquele tempo, as ficÅâes televisivas seriadas ainda eram vistas como<br />
9 “RepresentaÅÇo”. DisponÉvel em: .<br />
10 MARTíN-BARABERO e REY, 2001, p. 161.<br />
17
entretenimento raso, <strong>de</strong>stinado ao consumo frÉvolo <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>socupadas e alienadas.<br />
Assistir a telenovelas nÇo era coisa que homem fizesse impunemente. Do encantamento<br />
adolescente, fui me dando conta, já estudante <strong>de</strong> Jornalismo, do gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> comunicaÅÇo<br />
das tramas folhetinescas e do quanto aquela narrativa atualizada diariamente funcionava como<br />
ponto <strong>de</strong> contato entre os diferentes estratos da populaÅÇo brasileira, estabelecendo uma troca<br />
possÉvel entre a elite e a populaÅÇo carente, a crianÅa e o idoso, o intelectual e os milhâes <strong>de</strong><br />
analfabetos. Po<strong>de</strong>rosa em sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer esta inusitada ligaÅÇo entre pÑlos tÇo<br />
opostos e eficaz em seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “agendar” as conversas <strong>de</strong> brasileiros do Oiapoque ao ChuÉ,<br />
a telenovela logo <strong>de</strong>spertou minha atenÅÇo por seu potencial <strong>de</strong> mobilizaÅÇo das massas:<br />
vivÉamos sob a ditadura militar e, num Brasil cuja governabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendia da construÅÇo <strong>de</strong><br />
um projeto <strong>de</strong> naÅÇo, nÇo se podia abrir mÇo da telenovela como instrumento polÉtico. NÇo foi<br />
por outro motivo que muitos dramaturgos <strong>de</strong> esquerda, diante do silÖncio imposto pela<br />
censura a seus textos teatrais, correram para a televisÇo, assumiram pseudònimos, e passaram<br />
a assinar telenovelas, fazendo-as abandonar o dramalhÇo cartático (que muitas vezes foi<br />
acusado <strong>de</strong> servir apenas para distrair a populaÅÇo dos horrores da ditadura) para adotar, nas<br />
entrelinhas, o tom <strong>de</strong> manifesto polÉtico.<br />
Encantei-me novamente e <strong>de</strong> forma diferente pela telenovela quando tive que ficar<br />
dois anos sem ela: um curso <strong>de</strong> Mestrado em Jornalismo na Southern Illinois University me<br />
levaria a viver por dois anos nos Estados Unidos, e a experiÖncia particular <strong>de</strong><br />
interculturalida<strong>de</strong> acabaria me conduzindo a tomar a ficÅÇo seriada como objeto <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong><br />
minha dissertaÅÇo. Interessava-me, naquele momento, <strong>de</strong> que maneira as culturas brasileira e<br />
norte-americana <strong>de</strong>ixavam sua marca na estàtica <strong>de</strong> produtos midiáticos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
repercussÇo, como as telenovelas e as soap operas. Os cÑdigos culturais manifestos nos<br />
diversos discursos ─ o enredo, as personagens, o cenário, a ediÅÇo <strong>de</strong> imagens, a mësica, o<br />
“espetáculo” e a representaÅÇo da vida ─ eram o foco do estudo comparativo entre a<br />
telenovela brasileira “Roque Santeiro” (entÇo recàm veiculada com extraordinário sucesso) e<br />
a soap opera norte-americana “Dallas” (produÅÇo que ganhou o mundo no formato seriado).<br />
O suporte teÑrico eram as concepÅâes <strong>de</strong> drama <strong>de</strong> AristÑteles (espetáculo cartático,<br />
“alienante”) e <strong>de</strong> Bertolt Brecht (teatro àpico, social e politicamente “conscientizante”). A<br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo da telenovela e da soap opera enquanto mero entretenimento ou veÉculo <strong>de</strong><br />
conscientizaÅÇo foi possÉvel atravàs da análise do conjunto <strong>de</strong> elementos que compunham a<br />
dramaturgia televisiva nas duas produÅâes e da maneira pela qual cada cultura emergia<br />
atravàs <strong>de</strong>stes elementos. Alàm <strong>de</strong> contar com o acompanhamento <strong>de</strong> duas codificadoras do<br />
material analisado como forma <strong>de</strong> garantir imparcialida<strong>de</strong>, fui honrada com a contribuiÅÇo<br />
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valiosÉssima do Prof. Dr. K. S. Sitaram 11 , professor da Escola <strong>de</strong> Rádio e TelevisÇo da<br />
Southern Illinois University at Carbondale, um indiano naturalizado americano cujas<br />
observaÅâes a respeito dos capÉtulos que compunham a amostra <strong>de</strong> cada um dos programas<br />
introduziram novas nuances culturais ao estudo. O trabalho acabou se revelando um<br />
interessante passaporte para as culturas brasileiras e norte-americanas, alàm <strong>de</strong> um <strong>de</strong>talhado<br />
roteiro para <strong>de</strong>sbravar as especificida<strong>de</strong>s da teledramaturgia produzida no Brasil e nos Estados<br />
Unidos naquele momento.<br />
Passados 18 anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a dissertaÅÇo <strong>de</strong> mestrado e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> minha volta ao Brasil, on<strong>de</strong><br />
acabei por constituir famÉlia e retomar minha carreira <strong>de</strong> professora universitária (lecionei na<br />
PontifÉcia Universida<strong>de</strong> CatÑlica do Rio <strong>de</strong> Janeiro por 14 anos, sempre ä frente da disciplina<br />
“Sistemas <strong>de</strong> ComunicaÅÇo”, cujo programa conduzi como uma viagem por diferentes<br />
culturas), as telenovelas ainda permaneciam no foco <strong>de</strong> minha atenÅÇo, os cruzamentos<br />
interculturais e o multiculturalismo tambàm persistiam como preferÖncia <strong>de</strong> abordagem, mas<br />
havia agora um novo olhar. O fenòmeno midiático já havia sido suficientemente explorado.<br />
Se as pesquisas sobre telenovelas apenas engatinhavam quando iniciei o mestrado, em 1985,<br />
<strong>de</strong> lá para cá o paÉs dos folhetins televisivos tinha passado a contar com o trabalho <strong>de</strong><br />
investigaÅÇo sistemática do Centro <strong>de</strong> Pesquisa sobre Telenovela da Escola <strong>de</strong> ComunicaÅÇo e<br />
Artes da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> SÇo Paulo. Funcionando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1992 com o objetivo <strong>de</strong> legitimar a<br />
ficÅÇo televisiva como objeto cientÉfico, muito tinha sido feito ao longo <strong>de</strong>ste perÉodo para<br />
comprovar a legitimida<strong>de</strong> e a valida<strong>de</strong> das investigaÅâes acadÖmicas acerca do gÖnero<br />
ficcional como produto <strong>de</strong> mÉdia, o que impulsionou significantemente o nëmero <strong>de</strong><br />
publicaÅâes no Brasil sobre a telenovela brasileira e latinoamericana.<br />
Neste momento em que a mÉdia está tÇo fortemente marcada pelo puramente visual e<br />
tÇo impregnada <strong>de</strong> realismo documental, as tramas <strong>de</strong> Gloria Perez <strong>de</strong>spertam meu olhar para<br />
o novo: muito mais do que um po<strong>de</strong>roso produto <strong>de</strong> mÉdia, a telenovela se revela hoje como a<br />
maior veiculadora <strong>de</strong> narrativas. Ancorada numa narrativa que se afirma como ficÅÇo, que<br />
resgata a vigÖncia do pacto ficcional e da alegoria, a dramaturgia da discÉpula <strong>de</strong> Janete Clair<br />
renova o gÖnero telenovela. Sua fÑrmula parece misturar com sabedoria e sensibilida<strong>de</strong> traÅos<br />
11 K. S. Sitaram à fundador da Intercultural and Development Communication Division da International<br />
Communications Association, da qual foi presi<strong>de</strong>nte entre 1970-1972; foi jornalista e oficial do ministro <strong>de</strong><br />
Information and Broadcasting na índia; e autor <strong>de</strong> livros como Foundations of Intercultural Communication<br />
(Columbus, Ohio: C.E. Merril Pub. Co., 1976), Culture and Communication: A World View (New York:<br />
McGraw-Hill, 1970) e co-editor, com Michael Prosser, <strong>de</strong> Civic Discourse: Multiculturalism, Cultural Diversity,<br />
and Global Communication (volume 1) e <strong>de</strong> Civic Discourse: Intercultural, International, and Global Media<br />
(volume 2) (Greenwitch, CT: Ablex, 1999). Mais recentemente publicou o artigo “South Asian Theories of<br />
Speech Communication: Origins and applications in Ancient, Mo<strong>de</strong>rn, and Postmo<strong>de</strong>rn Times” no Human<br />
Communication: A Journal of the Pacific and Asian Communication Association (volume 7, 2004, pp. 83-101).<br />
19
valiosos <strong>de</strong> nosso passado literário, temáticas <strong>de</strong> algumas telenovelas pioneiras e inquietaÅâes<br />
que marcam as publicaÅâes contemporêneas. Gloria Perez resgata a essÖncia feminina do<br />
romance epistolar do sàculo VIII, revisita a emoÅÇo sequenciada do folhetim francÖs que<br />
encantou gran<strong>de</strong>s nomes da literatura brasileira do sàculo XIX, retoma o valor da imaginaÅÇo<br />
explorado nas primeiras telenovelas brasileiras, avanÅa sobre o imaginário da globalizaÅÇo<br />
presente em gran<strong>de</strong> parte das obras editadas neste inÉcio <strong>de</strong> sàculo XXI, dialoga com a estàtica<br />
narrativa das mÉdias eletrònicas, assimila a pauta do jornalismo na discussÇo <strong>de</strong> questâes<br />
fundamentais da vida mo<strong>de</strong>rna, explora o fascÉnio pelas imagens e ainda acomoda as<br />
imposiÅâes da regÖncia do mercado, como o “merchandising social” e a interferÖncia do gosto<br />
popular manifesto nas pesquisas <strong>de</strong> opiniÇo.<br />
Tais observaÅâes impuseram-me uma guinada acadÖmica: a perspectiva do Jornalismo<br />
e da ComunicaÅÇo Social, com sua exigÖncia “cientÉfica” <strong>de</strong> carregar sentido do emissor ao<br />
receptor, nÇo mais dava conta <strong>de</strong> <strong>de</strong>scortinar o que me interessava ver. Era preciso treinar o<br />
olhar sob a lÑgica do sensÉvel: converter o objetivo em subjetivo, o tàcnico em estàtico;<br />
acolher a forma e a matària do verbo pelo espÉrito; sorver e organizar o mundo pelos sentidos.<br />
Refugiei-me na Literatura: o Doutorado em Letras me abriu novas portas <strong>de</strong> percepÅÇo.<br />
Voltei-me para a telenovela disposta a mapear-lhe a narrativida<strong>de</strong>. Se o que Gloria Perez faz à<br />
Literatura ou literatura, <strong>de</strong>ixo a questÇo como entretenimento duradouro para os guardiâes do<br />
cênone. Importa-me aqui sua habilida<strong>de</strong> em contar histÑrias. Entrecortada em capÉtulos diários<br />
que se esten<strong>de</strong>m por mais <strong>de</strong> oito meses, a escritura da autora nÇo tem o ritmo alucinante dos<br />
vi<strong>de</strong>oclips, nÇo explora cenas <strong>de</strong> sexo nem se apoia no suspense da revelaÅÇo <strong>de</strong> um crime,<br />
ingredientes que tradicionalmente potencializam o interesse do pëblico. Embora a temática <strong>de</strong><br />
“O Clone” e <strong>de</strong> “Caminho das índias” introduza surpreen<strong>de</strong>nte fascÉnio junto ä audiÖncia, ela<br />
parece ser apenas a cereja da poÅÇo mágica da nova “Maga das Oito”. Para alàm do tema, sua<br />
forÅa se sustenta mesmo na narrativa, no “como” a trama se <strong>de</strong>sdobra pelos nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo.<br />
Conhecer a forma com que os recursos textuais e cÖnicos sÇo utilizados por Gloria Perez na<br />
construÅÇo <strong>de</strong> suas histÑrias ─ eis o caminho original que ouso percorrer neste trabalho, na<br />
esperanÅa <strong>de</strong> contribuir para a acolhida do universo da telenovela no campo das Letras.<br />
O entusiasmo <strong>de</strong> falar do novo, no entanto, esbarra na solidÇo da falta <strong>de</strong> interlocutores<br />
(bibliografia especÉfica) e no receio <strong>de</strong> ser traÉda pela precipitaÅÇo. Como pon<strong>de</strong>ra Beatriz<br />
Resen<strong>de</strong> 12 (para <strong>de</strong>pois subverter o ensinamento do senso comum), a tendÖncia normal seria<br />
apelar para a prudÖncia, “<strong>de</strong>ixar passar algum tempo antes <strong>de</strong> se ocupar do novo,<br />
12 RESENDE, 2008, p. 8.<br />
20
especialmente quando se trata <strong>de</strong> literatura, a arte que continua ligada a suportes que se<br />
querem duráveis, transmissÉveis <strong>de</strong> geraÅÇo em geraÅÇo [...]”. Entretanto, a prÑpria autora<br />
concorda que ocupar-se do presente à um imperativo em se tratando <strong>de</strong> “literatura televisiva”<br />
ou <strong>de</strong> telenovela, essa arte ligada a um suporte nada durável ─ a televisÇo. Apesar da<br />
intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu efeito sobre o pëblico e da profusÇo <strong>de</strong> comentários que suscita durante sua<br />
exibiÅÇo, a telenovela, dada a natureza do veÉculo que a transmite e dado o formato “fatiado”<br />
<strong>de</strong> sua emissÇo, constitui uma narrativa extremamente fugaz, sendo praticamente esquecida<br />
com a estreia do folhetim seguinte. Desse modo, nÇo há tempo para prudÖncias. Por outro<br />
lado, sendo a narrativida<strong>de</strong> das telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez o novo <strong>de</strong> que me ocupo aqui, e<br />
tomando como objeto <strong>de</strong> análise (por forÅa da semelhanÅa estàtica entre elas) obras exibidas<br />
em dois diferentes momentos (“O Clone”, em 2001/2002 e “Caminho das índias”, em 2009,<br />
ao longo <strong>de</strong>ste estudo), nÇo se po<strong>de</strong> dizer que houve precipitaÅÇo: <strong>de</strong> certa forma este trabalho<br />
<strong>de</strong>u lugar ä prudÖncia, <strong>de</strong>ixando passar algum tempo para que a prÑpria novida<strong>de</strong> narrativa da<br />
autora se consolidasse.<br />
O tom terroso <strong>de</strong> “O Clone” já estava esmaecido na memÑria volátil do pëblico<br />
quando, em 2005, voltei meus olhos para a forÅa narrativa <strong>de</strong> Gloria Perez. GraÅas ä<br />
“generosida<strong>de</strong>” do site da novela, que äquela altura ainda mantinha seus capÉtulos disponÉveis<br />
para acesso, pu<strong>de</strong> retomar o contato com a escritura cÖnica da autora e reafirmar minha<br />
intenÅÇo <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>sta ficÅÇo televisiva o foco <strong>de</strong> minha tese <strong>de</strong> Doutorado. Naquele<br />
momento, o Oriente presente nos inëmeros tÉtulos expostos nas livrarias do paÉs (muitos <strong>de</strong>les<br />
assinados por mulheres, como A distância entre nós e O livreiro <strong>de</strong> Cabul, lanÅados no Brasil<br />
em 2006, escritos por Thrity Umrigar e õsne Seierstad, respectivamente) e no documentário<br />
<strong>de</strong> Zana Briski sobre as crianÅas <strong>de</strong> bordàis oferecia-se como um interessante contraponto<br />
para meu estudo, já que pretendia analisar a narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “O Clone” como ponto <strong>de</strong><br />
partida para o estudo da representaÅÇo do Outro na teledramaturgia (no caso, a representaÅÇo<br />
da cultura muÅulmana diante da brasileira). Tal corpus já me parecia suficientemente legÉtimo<br />
quando fui surpreendida pela notÉcia da estreia, em 2009, <strong>de</strong> “Caminho das índias”, telenovela<br />
que reafirmaria a autora como contadora <strong>de</strong> histÑrias sobre o Outro e que revigoraria, no<br />
ëltimo ano <strong>de</strong> minha pesquisa <strong>de</strong> tese, o peso e a consistÖncia <strong>de</strong> sua assinatura sobre meu<br />
objeto <strong>de</strong> estudo. O fato <strong>de</strong> Gloria Perez ter escrito uma segunda novela tendo o Outro oriental<br />
como foco e o fato <strong>de</strong> ela ser mais uma voz feminina neste vasto cenário <strong>de</strong> vozes que falam<br />
do Oriente (embora ela, diferente da maioria, tenha um olhar estrangeiro sobre estas culturas)<br />
fazem com que “O Clone” e “Caminho das índias” se materializem como um corpus <strong>de</strong><br />
estudo nÇo sÑ original como oportuno.<br />
21
Assim, a partir da observaÅÇo da narrativida<strong>de</strong>, este trabalho tem por objetivo<br />
examinar <strong>de</strong> que modo a representaÅÇo do Eu e do Outro à construÉda nas telenovelas<br />
brasileiras “O Clone” e “Caminho das índias”, exibidas no horário nobre da Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong><br />
TelevisÇo. Alàm disso, no contexto da pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> as narrativas retomam seu<br />
lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, on<strong>de</strong> tudo tem <strong>de</strong> contar uma histÑria, este estudo preten<strong>de</strong>, atravàs da<br />
análise <strong>de</strong>stas duas obras da dramaturgia seriada televisiva, discutir o lugar do intelectual<br />
contemporêneo e as possibilida<strong>de</strong>s da narrativa que se apresentam como relato feminino <strong>de</strong><br />
ficÅÇo e marca autoral <strong>de</strong> Gloria Perez.<br />
As telenovelas serÇo tratadas aqui em sua completu<strong>de</strong>, respeitando a natureza da TV<br />
como suporte e a natureza do gÖnero enquanto obra aberta e seriada, e levando em conta o<br />
papel das telenovelas na cultura brasileira. Como se trata <strong>de</strong> uma narrativa televisiva, tanto os<br />
elementos textuais quanto os cÖnicos serÇo observados com o intuito <strong>de</strong> extrair sinais que<br />
possam indicar as mëltiplas linguagens que concorrem para a representaÅÇo do Outro em “O<br />
Clone” e “Caminho das índias”, bem como para a representaÅÇo do Eu brasileiro/carioca. A<br />
análise da subjetivida<strong>de</strong> e da alterida<strong>de</strong> na narrativa ficcional <strong>de</strong> Gloria Perez será atravessada<br />
pela observaÅÇo dos elementos que i<strong>de</strong>ntificam sua assinatura como mulher, revelando a voz<br />
autoral feminina em traÅos inconfundÉveis.<br />
Enten<strong>de</strong>r a complexida<strong>de</strong> que envolve os cruzamentos multiculturais das narrativas da<br />
dramaturga requer conhecer a trajetÑria das telenovelas no contexto acadÖmico, rever a<br />
histÑria do gÖnero no Brasil e discutir os fundamentos dos argumentos que anunciam sua crise<br />
e sua morte iminente. Requer tambàm situar suas diferentes temáticas no contexto histÑrico-<br />
polÉtico brasileiro; discutir o binòmio criaÅÇo/<strong>de</strong>manda na cultura <strong>de</strong> mercado; e analisar o<br />
papel do autor/intelectual no cenário da arte contemporênea, sobretudo na arte <strong>de</strong> massa<br />
veiculada em mÉdia comercial. Embora nÇo caiba aqui estudar a recepÅÇo das narrativas<br />
televisivas junto a seu pëblico, nÇo se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> investigar a participaÅÇo da audiÖncia<br />
nos rumos da trama e em que medida esta caracterÉstica da obra aberta interfere na concepÅÇo<br />
autoral. ï preciso conhecer, sobretudo, as exteriorida<strong>de</strong>s do Oriente e os estudos sobre o<br />
Orientalismo 13 e sobre os movimentos pÑs-coloniais que tentam resgatar a voz feminina e o<br />
direito <strong>de</strong> o Outro falar <strong>de</strong> si; discutir os conceitos “Eu” e “Outro”, “Subjetivida<strong>de</strong>” e<br />
“Alterida<strong>de</strong>”, “RepresentaÅÇo” e “I<strong>de</strong>ntificaÅÇo”; e ainda explorar as construÅâes acerca da<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “autor” e <strong>de</strong> “narrativa como histÑria”.<br />
13 Termo cunhado por Edward Said em livro do mesmo nome (SAID, Orientalismo, 1979).<br />
22
A fundamentaÅÇo <strong>de</strong> tais discussâes se servirá do pensamento <strong>de</strong> autores como Ismael<br />
Fernan<strong>de</strong>s, Josà Marques <strong>de</strong> Melo, Jesës MartÉn-Barbero, Artur da Távola, Esther Hamburger<br />
e Maria Immacolata Vassalo Lopes (sobre telenovela); Antonio Gramsci, Michel Foucault,<br />
Albert Camus e Edward Said (sobre o intelectual/autor); Jesës MartÉn-Barbero, Nàstor GarcÉa<br />
Canclini, Stuard Hall, Armand e Michele Mattelart, Fredric Jameson, Jean-FranÅois Lyotard,<br />
Jaques Ranciöre, Andreas Huyssen, Raymond Williams, Walter Benjamin e Hegel (sobre arte,<br />
cultura <strong>de</strong> massa e realismo na pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>); Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Jean<br />
Paul Sartre, Umberto Eco, Bertolt Brecht e Wofgang Iser (sobre narrativa ficcional/folhetim);<br />
e AristÑteles, Michel Foucault, Tzvetan Tudorov, Edward Said, Gayatri Spivak, Homi Bhabha<br />
e Anya Looba (sobre representaÅÇo).<br />
Para alàm do suporte teÑrico <strong>de</strong>stes autores, a observaÅÇo da narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “O<br />
Clone” e “Caminho das índias” será apoiada em dois registros <strong>de</strong> Gloria Perez: um pëblico,<br />
expresso em seu blog “De tudo um pouco”, e outro particular, concedido a mim em seis horas<br />
<strong>de</strong> entrevista. Devo dizer que tal material consistiu um universo riquÉssimo <strong>de</strong> informaÅâes,<br />
especialmente sobre sua ëltima novela, uma vez que a simultaneida<strong>de</strong> entre a exibiÅÇo <strong>de</strong><br />
“Caminho das índias” e este estudo <strong>de</strong>ixou-me sem interlocutores confiáveis com quem<br />
dialogar sobre a obra. Certa <strong>de</strong> que uma telenovela hoje, na era das comunicaÅâes digitais,<br />
nÇo se resume ao que vai pela tela ─ ultrapassa a dimensÇo televisiva na antecipaÅÇo dos<br />
capÉtulos pelos jornais e publicaÅâes especializadas e na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso ao site do<br />
folhetim para informaÅâes adicionais ─, nÇo me furtei a incorporar o blog da novelista como<br />
um caminho novo e legÉtimo para alcanÅar sua obra. Mais que isso, ao perceber a forte<br />
incidÖncia <strong>de</strong> erro e informaÅÇo truncada no noticiário <strong>de</strong> telenovela, fiz questÇo <strong>de</strong> tomar a<br />
palavra da autora em primeira mÇo.<br />
Acredito que, percorrido este caminho teÑrico, A menor distância entre dois mundos:<br />
um estudo sobre a representação do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez po<strong>de</strong>rá<br />
sintetizar um complexo e rico recorte <strong>de</strong> nosso tempo e da cultura brasileira. Primeiro, porque,<br />
no universo ficcional televisivo, dominado pela narrativa masculina, ele oferece o olhar <strong>de</strong><br />
uma mulher sobre culturas orientais. Segundo, porque, tendo sido o Oriente sempre visto<br />
pelas lentes do Oci<strong>de</strong>nte, numa Ñtica que revela a relaÅÇo assimàtrica <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre<br />
“dominador” e “subalterno” (embora muitas <strong>de</strong>stas culturas ditas subalternas tenham<br />
recentemente conquistado voz prÑpria), este estudo permite questionar se uma leitura<br />
brasileira do Oriente po<strong>de</strong> ser construÉda a <strong>de</strong>speito do tradicional ranÅo do imaginário criado<br />
pela dominaÅÇo. Terceiro, porque, ao contrapor a representaÅÇo do Outro em relaÅÇo ä<br />
representaÅÇo do Eu, o trabalho possibilita investigar a legitimida<strong>de</strong> da tÇo <strong>de</strong>cantada (e ao<br />
23
mesmo tempo questionada) “brasilida<strong>de</strong>” como marca registrada das telenovelas brasileiras.<br />
Quarto, porque, num momento em que a retÑrica da globalizaÅÇo preconiza as trocas culturais<br />
e em que o jornalismo mundial focaliza o Oriente como o lugar do terrorismo, das potÖncias<br />
econòmicas emergentes e das práticas sociais, polÉticas e religiosas estranhas ao Oci<strong>de</strong>nte, o<br />
estudo <strong>de</strong>sta narrativa autoral permitirá a comparaÅÇo entre o discurso “real” e o discurso<br />
ficcional do Outro oriental, alàm da investigaÅÇo das intencionalida<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>olÑgicas <strong>de</strong> cada<br />
um na construÅÇo da cooperaÅÇo intercultural. E, por ëltimo, embora nÇo menos importante,<br />
porque, em meio äs inquietaÅâes sobre a morte da arte e sobre o predomÉnio da estàtica <strong>de</strong><br />
mercado, esta tese po<strong>de</strong>rá oferecer um viàs para a discussÇo do lugar do consumo e do gosto<br />
da massa na re<strong>de</strong>finiÅÇo dos limites do “Belo”. Enfim, a análise da narrativa ficcional no<br />
êmbito dos folhetins seriados exibidos na mÉdia <strong>de</strong>ve permitir o questionamento <strong>de</strong> alguns<br />
conceitos caros ä Literatura e alargar os horizontes das Letras na percepÅÇo do <strong>de</strong>slocamento<br />
<strong>de</strong> suas fronteiras, trazendo contribuiÅâes para a correlaÅÇo interdisciplinar com os Estudos<br />
Culturais em seus <strong>de</strong>bates sobre pÑs-colonialismo, diferenÅas culturais e o sentido da cultura<br />
na dominante pÑs-mo<strong>de</strong>rna.<br />
Desnecessário lembrar que, neste final da primeira dàcada do sàculo XXI, a aca<strong>de</strong>mia<br />
insiste na <strong>de</strong>fesa da multidisciplinarida<strong>de</strong>, no questionamento dos cênones, na convergÖncia<br />
dos gÖneros, na valorizaÅÇo dos pequenos relatos e das narrativas populares, e atà mesmo na<br />
constataÅÇo <strong>de</strong> que a arte já se ren<strong>de</strong>u ä inevitabilida<strong>de</strong> do mercado 14 . E à justamente este o<br />
contexto que faz da telenovela um tema tratável no universo da Literatura: há muito que a<br />
pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, enquanto condiÅÇo cultural da socieda<strong>de</strong> pÑs-industrial, tem <strong>de</strong>fendido a<br />
i<strong>de</strong>ia da flui<strong>de</strong>z, da interpenetraÅÇo, da convergÖncia, da multidisciplinarida<strong>de</strong> e da entropia<br />
na <strong>de</strong>sconstruÅÇo da Verda<strong>de</strong> e da HistÑria; nos cÉrculos acadÖmicos, os Estudos Culturais<br />
incorporaram práticas da cultura <strong>de</strong> um povo como “manifestaÅâes <strong>de</strong> uma cultura inserida<br />
em um espaÅo simbÑlico <strong>de</strong> luta” 15 e vÖm promovendo o diálogo entre saberes atà entÇo<br />
fechados em seus compartimentos disciplinares. Como comemora Ortiz 16 , “Os Estudos<br />
Culturais caracterizam-se por sua dimensÇo multidisciplinar, a quebra [e nÇo o fim,<br />
observação nossa] das fronteiras tradicionalmente estabelecidas nos <strong>de</strong>partamentos e nas<br />
universida<strong>de</strong>s”. Assim à que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita polÖmica sobre o lugar da fronteira entre a<br />
literatura e a cultura <strong>de</strong> massa, sobre a distência entre a arte e a indëstria cultural, o<br />
14 Há quase 30 anos, Canclini já dizia ser impossÉvel dissociar as obras <strong>de</strong> suas condiÅâes materiais <strong>de</strong> produÅÇo,<br />
<strong>de</strong> sua circulaÅÇo e <strong>de</strong> seu consumo, já que no sistema capitalista, “as obras <strong>de</strong> arte, como todos os bens, sÇo<br />
mercadorias”. CANCLINI, 1980, p. 24.<br />
15 ORTIZ, disponÉvel em: . Acesso em 25 maio 2009.<br />
16 ORTIZ, loc. cit..<br />
24
compartimento on<strong>de</strong> a intelectualida<strong>de</strong> vinha preservando do contágio o “Belo” do “lixo” tem<br />
dado mostras <strong>de</strong> permeabilida<strong>de</strong>. Tendo adquirido porosida<strong>de</strong>, a fronteira entre a escritura<br />
literária, antes confinada aos escaninhos da “arte elevada”, e o folhetim televisivo, entregue<br />
ao consumo fácil das massas, permite hoje o cruzamento inevitável <strong>de</strong> ambos e a visualizaÅÇo<br />
da cultura em sua totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scontÉnua. Resultado da <strong>de</strong>scompartimentalizaÅÇo do<br />
conhecimento, as manifestaÅâes culturais <strong>de</strong> diferentes matizes e origens, a <strong>de</strong>speito da<br />
resistÖncia dos nëcleos entrincheirados sob o escudo da estàtica “elevada”, passaram a<br />
integrar a pauta <strong>de</strong> pesquisa dos meios acadÖmicos com igual <strong>de</strong>senvoltura e dignida<strong>de</strong> 17 , na<br />
medida em que expressam os gostos e as referÖncias <strong>de</strong> estratos da socieda<strong>de</strong>: “o universo da<br />
cultura passou a ser percebido como uma encruzilhada <strong>de</strong> intenÅâes diversas, como se<br />
constituÉsse um espaÅo <strong>de</strong> convergÖncia <strong>de</strong> movimentos e ritmos diferenciados (...)” e o povo,<br />
no contexto das práticas culturais, passou a ser entendido nÇo apenas como um receptor, mas<br />
tambàm como um “produtor da cultura” 18 .<br />
Para <strong>de</strong>sespero dos puristas, no capitalismo tardio, pÑs-industrial, pÑs-mo<strong>de</strong>rno, o que<br />
iguala a arte <strong>de</strong> elite ä arte <strong>de</strong> massa e ä arte popular à a conversÇo <strong>de</strong> tudo em mercadoria e a<br />
sua exposiÅÇo, enquanto produto, nas inëmeras e atraentes vitrines dos shopping centers da<br />
cultura. Na Literatura, a quebra das fronteiras e das hierarquias entre gÖneros literários, sua<br />
convergÖncia com outras modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> narrativas ─ como a jornalÉstica (<strong>de</strong> “informaÅÇo”) e<br />
a folhetinesca (<strong>de</strong> “mero entretenimento”) ─, e a coisificaÅÇo <strong>de</strong> livros, jornais, revistas e<br />
telenovelas em produtos <strong>de</strong> mercado banalizaram, como veremos mais adiante, alguns <strong>de</strong> seus<br />
conceitos fundadores, como a aura da obra, a autonomia da criaÅÇo e a genialida<strong>de</strong> do autor.<br />
Por hora, basta a convicÅÇo <strong>de</strong> que a telenovela no Brasil à, <strong>de</strong> fato, a maior veiculadora <strong>de</strong><br />
narrativas <strong>de</strong> ficÅÇo. E a suposiÅÇo <strong>de</strong> que as telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, especialmente, sÇo<br />
uma fonte <strong>de</strong> narrativida<strong>de</strong> fàrtil, renovável e inesgotável.<br />
17 Muitos se surpreen<strong>de</strong>ram quando o filÑsofo marxista Leandro Kon<strong>de</strong>r <strong>de</strong>dicou o espaÅo <strong>de</strong> sua coluna no<br />
Jornal do Brasil no dia 28 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009 para comentar as telenovelas. “NÇo po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sprezar as<br />
telenovelas”, alertou. “A novela <strong>de</strong> televisÇo à, provavelmente, a produÅÇo literária que mais amplamente<br />
consegue sensibilizar o pëblico popular”, completou. In, KONDER, 2009, p. L6.<br />
18 ORTIZ, disponÉvel em: . Acesso em 25 maio 2009.<br />
25
2 A TELENOVELA E OS ESTUDOS DE CULTURA<br />
NÇo foi senÇo a partir dos anos 1980 que os dramas seriados televisivos passaram a ser<br />
consi<strong>de</strong>rados temas dignos <strong>de</strong> análise pelos cientistas sociais. A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> sua popularida<strong>de</strong><br />
junto ä audiÖncia e <strong>de</strong> sua importência como um significativo fenòmeno <strong>de</strong> cultura <strong>de</strong> massa,<br />
durante longo perÉodo <strong>de</strong> tempo os folhetins televisivos permaneceram confinados ä categoria<br />
das irrelevantes formas <strong>de</strong> comunicaÅÇo e arte.<br />
Em artigo <strong>de</strong> 1972, o pesquisador norte-americano Nathan Katzman 19 registrava que,<br />
curiosamente, nenhuma pesquisa havia sido publicada atà entÇo sobre seriado televisivo nos<br />
Estados Unidos. O <strong>de</strong>sdàm com o qual a teledramaturgia era vista comeÅou se dissipar apenas<br />
nos anos 1970, quando teorias estruturalistas e semiÑticas comeÅaram a inspirar discursos<br />
estàticos sobre cinema e televisÇo 20 .<br />
Tanto nos Estados Unidos, on<strong>de</strong> a primeira telenovela foi exibida em 1950 (“The first<br />
hundred years”) como no Brasil, on<strong>de</strong> o gÖnero estreou no ano seguinte (“Sua vida me<br />
pertence”), as CiÖncias Sociais custaram a reconhecer que, nÇo apenas como produto da mÉdia<br />
<strong>de</strong> massa, mas como fenòmeno social, a análise do drama seriado po<strong>de</strong>ria oferecer uma<br />
abertura para a compreensÇo dos conflitos e contradiÅâes da socieda<strong>de</strong>. Embora houvesse<br />
produÅÇo <strong>de</strong> telenovelas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1951 no Brasil, e embora se possa registrar aqui e ali alguma<br />
iniciativa esparsa <strong>de</strong> tomá-las como objeto digno <strong>de</strong> pesquisa cientÉfica, sÑ em 1992, com a<br />
criaÅÇo do Nëcleo <strong>de</strong> Pesquisa em Telenovelas da Escola <strong>de</strong> ComunicaÅÇo e Artes da USP, o<br />
trabalho foi sistematizado no paÉs. Primeiro grupo acadÖmico do mundo formado com o<br />
objetivo <strong>de</strong> pesquisar e documentar a produÅÇo da telenovela, o NPTN hoje reëne trabalhos<br />
sobre a histÑria e os antece<strong>de</strong>ntes do gÖnero; a autoria, a linguagem e a relaÅÇo com o cinema;<br />
a seleÅÇo <strong>de</strong> elenco; a influÖncia da tecnologia na produÅÇo; as relaÅâes <strong>de</strong> novelas e<br />
minissàries com a polÉtica, com o cotidiano, com a religiÇo, questâes raciais e <strong>de</strong> movimentos<br />
sociais; a recepÅÇo do pëblico infantil e o uso da telenovela na pedagogia, entre outros 21 .<br />
Hoje, apesar do preconceito que ainda persiste, o drama televisivo seriado à visto<br />
como uma expressÇo da cultura em que à gerado, um dos canais atravàs dos quais a socieda<strong>de</strong><br />
expressa e apren<strong>de</strong> seus cÑdigos. Atravàs da análise <strong>de</strong> sua estrutura, <strong>de</strong> sua narrativa e <strong>de</strong> sua<br />
produÅÇo, à possÉvel investigar o sistema <strong>de</strong> valores <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, suas crenÅas, sua<br />
19 KATZMAN, 1972, p.200.<br />
20 ALLEN, 1985, pp. 11-12.<br />
21 TELES, disponÉvel em: . Acesso em 22 maio 2009.<br />
26
linguagem silenciosa e sua dimensÇo oculta 22 , e o modo como o grupo social está organizado.<br />
Segundo MartÉn-Barbero e Rey,<br />
[...] a telenovela tem a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> revelar a cartografia dos sentimentos tanto<br />
como as tensâes do social, as proprieda<strong>de</strong>s da imaginaÅÇo cultural como as<br />
aspiraÅâes secretas e explÉcitas das pessoas que a acompanham com fervor.<br />
Contribui para criar ─ como escreve Cabrera Infante ─ os “càus imaginários” <strong>de</strong><br />
nossos dias 23 .<br />
Dado que, como diz Sitaram e Cog<strong>de</strong>ll 24 , cada “comunicaÅÇo humana à fortemente<br />
relacionada äs referÖncias culturais do comunicador e <strong>de</strong> sua audiÖncia [tradução nossa]”, os<br />
produtos culturais <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> tambàm revelam a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong>sta socieda<strong>de</strong>.<br />
Sendo assim, e a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> o gÖnero se mostrar cativante e popular em diferentes pontos do<br />
planeta, os estudiosos sobre telenovela ten<strong>de</strong>m a concordar que nÇo se po<strong>de</strong> tomar o drama<br />
seriado televisivo como uma forma universal <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> massa, como um gÖnero encapsulado<br />
em si mesmo. Um fenòmeno sÑ po<strong>de</strong> ser entendido se observado no contexto particular do<br />
qual <strong>de</strong>riva. Vinculado a diferentes variáveis culturais, ele <strong>de</strong>ve ser visto sob as luzes <strong>de</strong> suas<br />
prÑprias raÉzes histÑricas, <strong>de</strong> sua heranÅa literária e <strong>de</strong> seu contexto sÑcio-polÉtico.<br />
Embora i<strong>de</strong>ntificadas sob o selo genàrico <strong>de</strong> novelas latino-americanas, produzidas em<br />
intensida<strong>de</strong> e responsáveis por altÉssimas audiÖncias em seus paÉses <strong>de</strong> origem, as telenovelas<br />
realizadas no Brasil, Màxico, Venezuela e Colòmbia carregam distinÅâes estàticas, <strong>de</strong><br />
narrativa, <strong>de</strong> conteëdo e <strong>de</strong> produÅÇo. MartÉn-Barbero e Rey i<strong>de</strong>ntificam pelo menos dois<br />
mo<strong>de</strong>los dominantes no mercado latino-americano <strong>de</strong> telenovelas: o tradicional, encontrado<br />
nas produÅâes mexicanas e venezuelanas; e o mo<strong>de</strong>rno, associado äs produÅâes brasileiras<br />
(segundo os autores, as telenovelas colombianas teriam construÉdo uma narrativa mediadora<br />
entre os dois mo<strong>de</strong>los) 25 . O mo<strong>de</strong>lo tradicional, explicam, “dá forma a um gÖnero sério [grifo<br />
dos autores], no qual predomina a inclinaÅÇo trágica”: somente os sentimentos e as paixâes<br />
primordiais sÇo postos em imagem, os conflitos <strong>de</strong> parentesco assumem papel central, “a<br />
estrutura dos estratos sociais à cruamente maniqueÉsta e os personagens sÇo puros signos”,<br />
“excluindo do espaÅo dramático toda ambiguida<strong>de</strong> ou complexida<strong>de</strong> histÑrica e neutralizando,<br />
com frequÖncia, as referÖncias <strong>de</strong> lugar e <strong>de</strong> tempo” 26 . Já o mo<strong>de</strong>lo mo<strong>de</strong>rno à aquele que,<br />
sem romper completamente o esquema melodramático, incorpora “um realismo que<br />
possibilita a ‘cotidianizaÅÇo da narrativa’ e o encontro do gÖnero com a histÑria e com<br />
22 Linguagem Silenciosa e DimensÇo Oculta sÇo tÉtulos <strong>de</strong> duas obras <strong>de</strong> Edward T. Hall, 1965 e 1966.<br />
23<br />
MARTíN-BARBERO e REY, 2001, p. 174.<br />
24<br />
SITARAM E COGDELL, 1976, p. 1.<br />
25<br />
MARTIN-BARBERO e REY, op. cit., p. 120.<br />
26<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 120 e 121.<br />
27
algumas matrizes culturais do Brasil”: os “personagens se libertam, em alguma medida, do<br />
peso do <strong>de</strong>stino e, afastando-se dos gran<strong>de</strong>s sÉmbolos, se aproximam das rotinas cotidianas e<br />
das ambiguida<strong>de</strong>s da histÑria, da diversida<strong>de</strong> das falas e dos costumes” 27 . Enquanto o primeiro<br />
compensa o esquematismo com “a espessura da cenografia, o luxo da <strong>de</strong>coraÅÇo e a sofisticaÅÇo<br />
do vestuário”, o segundo abre brechas na rigi<strong>de</strong>z dos esquemas e nas ritualizaÅâes para os<br />
“imaginários <strong>de</strong> classe e territÑrio, <strong>de</strong> gÖnero e geraÅÇo, ao mesmo tempo que se exploram<br />
possibilida<strong>de</strong>s expressivas abertas pelo cinema, pela publicida<strong>de</strong> e pelo vi<strong>de</strong>oclip” 28 .<br />
2.1 TELENOVELA BRASILEIRA E REALISMO<br />
NÇo sÇo poucos os estudos que <strong>de</strong>stacam a telenovela brasileira do conjunto das<br />
congÖneres latino-americanas pela presenÅa <strong>de</strong> “realismo”. Tal singularida<strong>de</strong> marca dois<br />
importantes momentos da teledramaturgia brasileira: primeiramente, no inÉcio dos anos 1970,<br />
quando as telenovelas abandonaram a prática <strong>de</strong> importaÅÇo <strong>de</strong> textos, roteiristas e diretores<br />
latino-americanos, substituÉram os cenários remotos por tramas ambientadas no Brasil, e<br />
privilegiaram a linguagem coloquial e o tempo contemporêneo, conquistando autonomia<br />
estilÉstica em relaÅÇo ä produÅÇo estrangeira 29 ; e mais recentemente, a partir <strong>de</strong> meados dos<br />
anos 1980, quando o folhetim seriado televisivo passou a introduzir referÖncias aos fatos da<br />
vida polÉtica, social e cultural do paÉs, tentando manter a ficÅÇo em sintonia com a realida<strong>de</strong>,<br />
fazendo referÖncias ao que está nos jornais ─ “um filme recàm-lanÅado, um cantor da moda,<br />
um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> carro do ano” 30 , uma passeata, um escêndalo polÉtico, uma campanha nacional.<br />
De acordo com o teÑrico da comunicaÅÇo Muniz Sodrà 31 , “a telenovela brasileira à um dos<br />
melhores exemplos <strong>de</strong>sse drama especificamente televisivo em que se percebe o imaginário<br />
comandado pelo princÉpio <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> ou pelo real histÑrico”: neste gÖnero, o texto à<br />
“pontilhado <strong>de</strong> alusâes a situaÅâes reais contemporêneas e mesmo condicionado por tais<br />
situaÅâes, que vÇo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> fatos noticiosos atà livros ou filmes em <strong>de</strong>staque”. Ainda hoje,<br />
afirmam os estudos, o que i<strong>de</strong>ntifica e mesmo distingue a telenovela brasileira como original<br />
no cenário internacional à o fato <strong>de</strong> sua narrativa estar carregada <strong>de</strong> “realismo” e <strong>de</strong> apresentar<br />
marcas explÉcitas <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”.<br />
27<br />
MARTíN-BARBERO e REY, 2001, p. 120 e 121.<br />
28<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 121.<br />
29<br />
HAMBURGER, 2005, pp. 84-120; BORELLI e RAMOS, 1989, pp. 80-108; MATTELART e MATTELART,<br />
1989, p. 31.<br />
30<br />
KEHL, Maria Rita, in COSTA, SIMùES e KEHL, 1986, p. 281.<br />
31 SODRï, 1984, p. 79.<br />
28
ï preciso, no entanto, investigar a natureza <strong>de</strong>stes dois termos. Aplicado<br />
indistintamente aos dois momentos <strong>de</strong>scritos acima, “realismo”, neste contexto, encerra<br />
diferentes idàias: no primeiro momento, quando da substituiÅÇo do formato estrangeiro por<br />
uma narrativa brasileira, “realismo” significa aproximaÅÇo da realida<strong>de</strong> brasileira na<br />
ambientaÅÇo, na temática e na linguagem; no segundo momento, quando da adiÅÇo <strong>de</strong> agendas<br />
polÉticas e sociais ao enredo da ficÅÇo, “realismo” significa presenÅa da realida<strong>de</strong> factual<br />
brasileira na trama, ou seja, a inclusÇo <strong>de</strong> fatos e temas presentes no noticiário nacional.<br />
Enquanto no primeiro caso, as personagens circulam por uma cida<strong>de</strong> brasileira ou por uma<br />
locaÅÇo que recria uma cida<strong>de</strong> brasileira (fictÉcia ou nÇo), experimentam uma realida<strong>de</strong><br />
verossÉmil e usam a linguagem tÉpica dos diferentes estratos sociais locais, no segundo, alàm<br />
<strong>de</strong> transitarem num universo consi<strong>de</strong>rado tipicamente brasileiro, elas participam <strong>de</strong><br />
manifestaÅâes pëblicas e eventos reais, contracenam com figuras pëblicas reais ou comentam<br />
fatos noticiados na mÉdia nacional no dia seguinte <strong>de</strong> sua divulgaÅÇo. Como, <strong>de</strong> modo geral,<br />
as telenovelas latino-americanas passaram todas por uma fase <strong>de</strong> nacionalizaÅÇo que vai <strong>de</strong><br />
fins dos anos 1970 atà inÉcio dos anos 1990, tornando-se fortes instrumentos <strong>de</strong><br />
reconhecimento sociocultural e <strong>de</strong>slocando drasticamente a atà entÇo dominante presenÅa dos<br />
seriados norte-americanos, o “realismo” que se atribui äs produÅâes brasileiras como traÅo<br />
distintivo em relaÅÇo äs suas congÖneres na regiÇo refere-se, sobretudo, ä incorporaÅÇo das<br />
agendas do jornalismo nas tramas, e nÇo ä ambientaÅÇo. Ao comentar os fatos do noticiário, e<br />
mesmo tomar parte neles, as telenovelas brasileiras, dizem os estudiosos, acrescentam<br />
atualida<strong>de</strong> a uma ambientaÅÇo já carregada <strong>de</strong> “referÖncias nacionais”. A combinaÅÇo dos dois<br />
tipos <strong>de</strong> realismo concorreria para promover na audiÖncia uma sensaÅÇo <strong>de</strong> pertencimento ao<br />
universo da trama que sÑ acentuaria os efeitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo.<br />
No Brasil, as telenovelas, ao lado do Carnaval e do futebol, ten<strong>de</strong>m a ser vistas como<br />
alegorias da socieda<strong>de</strong> brasileira: ora exageram ora simplificam seletivamente a realida<strong>de</strong><br />
empÉrica como forma <strong>de</strong> apresentar uma narrativa que seja divertida <strong>de</strong> assistir. Como<br />
genuÉno produto da mÉdia <strong>de</strong> massa, <strong>de</strong>vem servir ao gosto popular, valendo-se <strong>de</strong> estratàgias<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo voltadas ao homem màdio e reproduzindo sua realida<strong>de</strong>: “Meus personagens<br />
sÇo gente comum, sem gran<strong>de</strong>s vòos...”, afirmou em 1976 a telegramaturga Janete Clair,<br />
falecida em 1983. Segundo <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Ivani Ribeiro, importante autora <strong>de</strong> telenovelas<br />
(tambàm já falecida), em 1979,<br />
O que importa à uma histÑria que corresponda, <strong>de</strong> certa forma, ao que acontece na<br />
vida real. O telespectador gosta <strong>de</strong> ver-se i<strong>de</strong>ntificado com as histÑrias e os locais<br />
29
<strong>de</strong> minhas novelas. Por isso, todas elas se passam no Brasil e todas contÖm<br />
conflitos que se enquadram em nossa àpoca 32 .<br />
Ao retratar o cotidiano do brasileiro comum, suas aspiraÅâes e conflitos, acredita-se<br />
que as telenovelas brasileiras favoreÅam a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo horizontal do pëblico com os<br />
habitantes do folhetim eletrònico. Ao mesmo tempo, com base na máxima criada pelo<br />
executivo da TV Globo Josà Bonifácio Sobrinho e <strong>de</strong>pois alar<strong>de</strong>ada pelo carnavalesco<br />
JoÇozinho Trinta <strong>de</strong> que “pobre gosta <strong>de</strong> luxo; quem gosta <strong>de</strong> misària à intelectual”, era<br />
preciso que o brasileiro comum passasse a ser representado entÇo por uma versÇo <strong>de</strong> si mesmo<br />
mais afinada com o mo<strong>de</strong>lo civilizatÑrio vigente: o homem urbano e mo<strong>de</strong>rno, o profissional<br />
liberal bem vestido que circula em ambientes finamente <strong>de</strong>corados e cultiva a cultura<br />
“elevada”. Neste esforÅo <strong>de</strong> promover nÇo sÑ a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo, mas tambàm, e principalmente,<br />
a projeÅÇo, a elite foi humanizada, o pobre, glamourizado, e a favela, eliminada dos cenários<br />
<strong>de</strong> telenovela, com rarÉssimas exceÅâes. Atualmente, o universo árido, nada glamouroso e<br />
muitas vezes violento das favelas tem ficado restrito ao que à exibido fora da TV Globo 33 , nas<br />
emissoras que comeÅam a investir mais pesadamente em telenovela, como a Record e o SBT.<br />
Para alguns autores, a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo parece ser a chave do sucesso dos dramas<br />
televisivos. Piemme, por exemplo, acredita que à impossÉvel assistir ao folhetim eletrònico<br />
sem algum tipo <strong>de</strong> envolvimento pessoal: “Assistir ao seriado à muito mais do que<br />
compartilhar os sentimentos dos personagens, discutir sua motivaÅÇo psicolÑgica e sua<br />
conduta, <strong>de</strong>cidir se está certo ou errado, em outras palavras, ‘viver seu mundo’” 34 [tradução<br />
nossa]. Edmonson 35 <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que esta participaÅÇo imaginativa proporcionada pela<br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo leva a uma “aceitaÅÇo renovada da prÑpria vida da audiÖncia” [tradução nossa],<br />
um fenòmeno conhecido como catarse. Segundo Muniz Sodrà, a “vinculaÅÇo da linguagem do<br />
vÉ<strong>de</strong>o ao real histÑrico indica que a simulaÅÇo televisiva sÑ à efetiva se o medium sabe captar<br />
traÅos caracterÉsticos <strong>de</strong> seu pëblico, para bem realizar o ‘contato’” 36 . Para a psicanalista<br />
Maria Rita Kehl, um “autor <strong>de</strong> novela nÇo po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar as <strong>de</strong>mandas inconscientes <strong>de</strong> seu<br />
pëblico: o espectador vÖ novela entre outras coisas (ou principalmente?) para liberar essas<br />
32 RIBEIRO apud ORTIZ, 1989, p. 70.<br />
33 Depois do sucesso da novela <strong>de</strong> enredo realista “Vidas Opostas”, <strong>de</strong> MarcÉlio Moraes, exibida na TV Record<br />
em 2007 (que falava da violÖncia no Rio, mostrava a aÅÇo do tráfico <strong>de</strong> drogas nos morros e a corrupÅÇo na<br />
polÉcia, alàm <strong>de</strong> crÉticas ä má distribuiÅÇo <strong>de</strong> renda no paÉs), a TV Globo, emissora on<strong>de</strong> o dramaturgo trabalhou<br />
durante anos, resolveu investir na produÅÇo do seriado policial “ForÅa-tarefa”, com cenas <strong>de</strong> aÅÇo e violÖncia.<br />
Nas telenovelas da emissora, no entanto, essa violÖncia nÇo tem lugar. Seja em seriado ou em telenovela, a<br />
violÖncia mostrada na TV Globo nem <strong>de</strong> longe lembra o realismo <strong>de</strong> “Vidas Opostas”, novela responsável por<br />
fazer a Record bater a programaÅÇo da lÉ<strong>de</strong>r <strong>de</strong> audiÖncia no ranking do IBOPE.<br />
34 PIEMME, J.-M., 1975, p. 114.<br />
35 EDMONSON, M. e ROUNDS, 1973, p. 182.<br />
36 SODRï, 1984, p. 80.<br />
30
<strong>de</strong>mandas” 37 . Assim, segundo ela, os “autores e diretores <strong>de</strong> telenovelas passam a falar cada<br />
vez mais em realismo, realida<strong>de</strong> brasileira, vida real, procurando imitar em suas obras as<br />
aparÖncias da realida<strong>de</strong> e favorecendo ainda mais a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo emocional dos espectadores<br />
com os dramas vividos na tela” 38 .<br />
O realismo nas telenovelas tem sido consi<strong>de</strong>rado, portanto, uma eficaz estratàgia <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo (atravàs da qual permite que o pëblico se veja no cotidiano das personagens) e<br />
tambàm um sofisticado instrumento <strong>de</strong> projeÅÇo (no qual o espectador vÖ seus <strong>de</strong>sejos<br />
inconscientes reproduzidos na vida glamourizada da elite).<br />
2.2 “BRASILIDADE” EM QUESTîO<br />
Para muitos autores, aquilo que confere realismo ao folhetim eletrònico brasileiro à o<br />
que eles chamam <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”, uma categoria tÇo genàrica quanto equivocada em sua<br />
pretensÇo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o que traduz o Brasil. A <strong>de</strong>speito da atual ina<strong>de</strong>quaÅÇo <strong>de</strong> seu<br />
emprego (como veremos adiante), a expressÇo se consolidou como caráter constitutivo da<br />
telenovela brasileira e conquistou estudiosos, leigos e profissionais da área, como o (já<br />
falecido) dramaturgo Dias Gomes 39 que, em entrevista <strong>de</strong> 1985, afirmou que a forÅa do<br />
gÖnero no paÉs residia em oferecer ä audiÖncia uma narrativa em que os personagens sÇo<br />
“pura essÖncia <strong>de</strong> brasilida<strong>de</strong>”.<br />
O termo, que passou a ser utilizado a partir da estreia <strong>de</strong> “Beto Rockfeller” (novela <strong>de</strong><br />
Bráulio Pedroso que foi ao ar pela TV Tupi <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1968 a novembro <strong>de</strong> 1969),<br />
pretendia marcar a inauguraÅÇo <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> ficÅÇo televisiva mais prÑxima da realida<strong>de</strong><br />
brasileira. Alguns fatores contribuÉram para o fato <strong>de</strong> esta telenovela ter ficado consagrada por<br />
revelar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional: a novida<strong>de</strong> do vi<strong>de</strong>otape permitiu que a encenaÅÇo per<strong>de</strong>sse seu<br />
tom <strong>de</strong>masiado dramatizado, herdado das radionovelas e dos teleteatros; a adoÅÇo <strong>de</strong><br />
linguagem coloquial nos diálogos levou ä introduÅÇo <strong>de</strong> gÉrias e expressâes do cotidiano; sua<br />
ambientaÅÇo em um bairro <strong>de</strong> SÇo Paulo nacionalizava a trama, abandonando o cenário latino<br />
ou europeu; a utilizaÅÇo <strong>de</strong> notÉcias jornalÉsticas como foco do comentário dos personagens<br />
aproximou a realida<strong>de</strong> fictÉcia da realida<strong>de</strong> cotidiana dos telespectadores; e, por fim, a<br />
introduÅÇo <strong>de</strong> um novo tipo <strong>de</strong> herÑi ─ errante, urbano, disposto a vencer na vida para alàm<br />
do Bem e do Mal ─ trazia ä tona o brasileiro màdio, seus dramas e aspiraÅâes. Beto<br />
37 KEHL, 1986, p. 286.<br />
38 Ibi<strong>de</strong>m, p. 291.<br />
39 GOMES apud. CASTELO e AJUZ, 1985, p. 38.<br />
31
Rockfeller, o protagonista, era “um indivÉduo <strong>de</strong> origem mo<strong>de</strong>sta, habitante da cida<strong>de</strong>, sujeito<br />
a erros, cheios <strong>de</strong> dëvidas, inseguro, buscando estima, pondo em prática todos os seus<br />
recursos <strong>de</strong> astëcia para subir na escala social” 40 . Por permitir ä socieda<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> entÇo<br />
o seu reconhecimento a partir dos personagens-tipo representados na ficÅÇo, a telenovela<br />
entrou para a histÑria do gÖnero no paÉs como a primeira a trazer traÅos <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”, uma<br />
representaÅÇo que buscava sintetizar a essÖncia do que à ser brasileiro e do que à o Brasil.<br />
Criado na forja do espÉrito polÉtico da àpoca, o conceito <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>” nÇo mais faz<br />
sentido hoje, embora ainda seja evocado muitas vezes como traÅo distintivo da telenovela<br />
brasileira em relaÅÇo äs suas congÖneres estrangeiras. Se o Brasil que <strong>de</strong>u origem a Beto<br />
Rockfeller dava seus primeiros e sombrios passos no regime ditatorial e se os militares <strong>de</strong><br />
entÇo empreendiam esforÅos para a unificaÅÇo dos brasileiros em torno <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong><br />
naÅÇo, conclamando a populaÅÇo ä militência do nacionalismo 41 , era natural que a idàia <strong>de</strong><br />
brasilida<strong>de</strong> evocasse um valor a ser exaltado, amplificando temas nacionais como progresso,<br />
crescimento, mo<strong>de</strong>rnizaÅÇo e educaÅÇo. Nada mais oportuno e conveniente para o i<strong>de</strong>ário do<br />
golpe militar <strong>de</strong> 1964 no Brasil do que a exaltaÅÇo do pertencimento, um valor cultivado pela<br />
Sociologia na primeira meta<strong>de</strong> do sàculo XX 42 . Mais do que nunca, naquele perÉodo <strong>de</strong><br />
exceÅÇo, era o paradigma da unicida<strong>de</strong> sujeito/naÅÇo que iria garantir a governabilida<strong>de</strong> e<br />
<strong>de</strong>finir o papel <strong>de</strong>sejável (e supostamente previsÉvel) dos brasileiros na socieda<strong>de</strong>. Era preciso<br />
exacerbar o vÉnculo clássico <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre o sujeito e a estrutura: como diz Stuart Hall,<br />
ao estabilizar tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
torna “ambos reciprocamente mais unificados e predizÉveis” 43 .<br />
A “brasilida<strong>de</strong>” inaugurada com Beto Rockfeller foi ganhando novos contornos com o<br />
correr dos anos e, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> finda a ditadura, nÇo havia mais como dissociar a vida da<br />
ficÅÇo televisiva da vida dos brasileiros. Hall explica:<br />
40<br />
“O Cinema Novo e a Telenovela no Brasil”. DisponÉvel em: . Acesso em 23<br />
abr. 2009.<br />
41<br />
Em sua pesquisa sobre a presenÅa <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>” nas HistÑrias em Quadrinho, Marcelo Marat afirma que<br />
“1964 trouxe nÇo sÑ os militares, como tambàm os militantes do nacionalismo nas HQs. Fosse no humor, no<br />
terror ou na aventura, os herÑis precisavam ter sua brasilida<strong>de</strong> bem exposta e atà exaltada nas histÑrias.” In<br />
GUIMARîES (Org.), 2005, p. 12.<br />
42<br />
Embora refletisse a complexida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna (notadamente na primeira meta<strong>de</strong> do sàculo XX) que<br />
o gerou, o conceito <strong>de</strong> sujeito sociolÑgico ainda serviria <strong>de</strong> inspiraÅÇo ao i<strong>de</strong>ário daquilo que hoje, olhando<br />
retrospectivamente, chamamos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia (perÉodo iniciado a partir da segunda meta<strong>de</strong> do sàculo<br />
XX). A ausÖncia <strong>de</strong> ruptura entre os dois perÉodos (que justifica inclusive a rejeiÅÇo do termo “pÑs-mo<strong>de</strong>rno” por<br />
muitos) fez com que o alcance <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sujeito avanÅasse para alàm da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e continuasse em<br />
vigor ainda hoje, quando se constata a presenÅa <strong>de</strong> um sujeito <strong>de</strong>scentrado <strong>de</strong> sua suposta matriz social e cultural.<br />
A idàia do sujeito sociolÑgico repercutiu, por exemplo, como foi mostrado, na fundamentaÅÇo polÉtica do Golpe<br />
Militar <strong>de</strong> 1964 no Brasil e na consolidaÅÇo da “brasilida<strong>de</strong>” como traÅo estàtico da telenovela brasileira durante<br />
toda a segunda meta<strong>de</strong> do sàculo XX e inÉcio do sàculo XXI.<br />
43<br />
HALL, 2005, p. 12.<br />
32
O fato <strong>de</strong> que projetamos a ‘nÑs mesmos’ nessas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais, ao mesmo<br />
tempo [sic] que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte <strong>de</strong> nÑs’,<br />
contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que<br />
ocupamos no mundo social e cultural. 44<br />
Assim, a telenovela passou a exercer um papel <strong>de</strong> fundamental importência na<br />
representaÅÇo da socieda<strong>de</strong> brasileira no meio televisivo.<br />
[...] Os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> homem e mulher, <strong>de</strong> relacionamentos, <strong>de</strong> organizaÅÇo familiar e<br />
social sÇo amplamente divulgados e constantemente atualizados pela telenovela para<br />
todo o territÑrio nacional. Ela estabelece padrâes com os quais os telespectadores nÇo<br />
necessariamente concordam mas que servem como referÖncia legÉtima para que eles se<br />
posicionem e dá visibilida<strong>de</strong> a certos assuntos, comportamentos, produtos e nÇo a<br />
outros. O vestuário, a <strong>de</strong>coraÅÇo, as gÉrias e as mësicas que cada telenovela lanÅa<br />
transmitem uma certa noÅÇo do que à ser contemporêneo. Personagens usam telefones<br />
sem fio, celulares, faxes, computadores, trens, helicÑpteros, aviâes, meios <strong>de</strong><br />
comunicaÅÇo e <strong>de</strong> transporte que atualizam <strong>de</strong> modo recorrente os padrâes vigentes na<br />
socieda<strong>de</strong>. 45<br />
A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira traduzida nas telenovelas pela representaÅÇo “brasilida<strong>de</strong>”, no<br />
entanto, tornou-se conceito sem correspondÖncia teÑrica no contexto da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia.<br />
De acordo com Hall, a concepÅÇo do sujeito sociolÑgico, na qual as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais<br />
surgem do “[...] ‘pertencimento’ a culturas àtnicas, raciais, linguÉsticas, religiosas e, acima <strong>de</strong><br />
tudo, nacionais”, <strong>de</strong>u lugar ao sujeito “pÑs-mo<strong>de</strong>rno”, aquele que nÇo tem “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> fixa,<br />
essencial ou permanente”, uma vez que o prÑprio processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo tornou-se “mais<br />
provisÑrio, variável e problemático” 46 , formado e transformado continua e historicamente pela<br />
globalizaÅÇo. O autor reitera sua <strong>de</strong>fesa:<br />
A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> plenamente unificada, completa, segura e coerente à uma fantasia. Ao<br />
invàs disso, ä medida em [sic.] que os sistemas <strong>de</strong> significaÅÇo e representaÅÇo<br />
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcertante e<br />
cambiante <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s possÉveis, com cada uma das quais po<strong>de</strong>rÉamos nos<br />
i<strong>de</strong>ntificar ─ ao menos temporariamente. 47<br />
Apesar disso, ainda hoje se verifica, nos estudos sobre telenovela, a utilizaÅÇo do<br />
paradigma da unicida<strong>de</strong> sujeito/naÅÇo justamente para reforÅar aquilo que se consolidou como<br />
sua marca distintiva: a “brasilida<strong>de</strong>”, sua configuraÅÇo como dramaturgia tipicamente<br />
brasileira. Embora tanto estudiosos quanto leigos percebam e discutam o caráter mëltiplo e<br />
fragmentado do indivÉduo e da socieda<strong>de</strong>, parece ser difÉcil <strong>de</strong>svencilhar-se da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
44 HALL, 2005, pp. 11-12.<br />
45 “RepresentaÅÇo”. DisponÉvel em: . Acesso<br />
em 7 jul. 2009.<br />
46 HALL, op. cit., p. 12.<br />
47 Ibi<strong>de</strong>m, p. 13.<br />
33
pertencimento nacional como balizadora da análise da telenovela. DifÉcil <strong>de</strong>sfazer-se <strong>de</strong><br />
elementos que durante anos foram percebidos como “genuÉnos” da cultura nacional. DifÉcil<br />
explicar a originalida<strong>de</strong> da telenovela brasileira e seu lugar diferenciado no cenário latino-<br />
americano e mesmo mundial sem o conceito da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, plena e totalizante.<br />
Reavaliá-la no êmbito da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia requer o aparato <strong>de</strong> novos instrumentos teÑricos<br />
capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar a percepÅÇo da “brasilida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> outrora para o lugar fluido da<br />
representaÅÇo das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s construÉdas, das “coletivida<strong>de</strong>s imaginadas” 48 , com as quais os<br />
sujeitos agora fragmentados mantÖm vÉnculos apenas transitÑrios e nas quais se reconhecem<br />
apenas temporariamente. Segundo Andreas Huyssen, “Numa era <strong>de</strong> estruturas supranacionais<br />
emergentes, o problema da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional está sendo cada vez mais discutido em termos<br />
<strong>de</strong> memÑria cultural ou coletiva, ao invàs <strong>de</strong> em termos <strong>de</strong> uma suposta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> naÅÇo e<br />
do Estado baseada na linhagem <strong>de</strong> sangue ou mesmo <strong>de</strong> cidadania” 49 .<br />
Assim, com o impacto da globalizaÅÇo sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural nacional, cai por<br />
terra o trunfo da “brasilida<strong>de</strong>” como recurso teÑrico <strong>de</strong> representaÅÇo <strong>de</strong> uma lealda<strong>de</strong><br />
nacional ä “essÖncia” do brasileiro, e ganha <strong>de</strong>staque a discussÇo das representaÅâes sociais e<br />
culturais como construÅâes problematizadoras das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s provisÑrias. Para alàm <strong>de</strong> uma<br />
entida<strong>de</strong> polÉtica, a naÅÇo à uma comunida<strong>de</strong> simbÑlica que se <strong>de</strong>sloca ao sabor dos mëltiplos<br />
discursos que, a cada momento, dÇo sentido e organizam a concepÅÇo que os sujeitos tÖm <strong>de</strong><br />
si mesmos. ï um sistema <strong>de</strong> representaÅÇo que, atravàs <strong>de</strong> numerosas narrativas, tenta<br />
costurar as novas e mutantes i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s como “hÉbridos culturais”, sobreposiÅâes <strong>de</strong><br />
diferenÅas. Enquanto narrativas, os discursos que expressam as representaÅâes culturais, como<br />
observa Homi Bhabha, guardam suas origens “nos mitos do tempo e efetivam plenamente<br />
seus horizontes apenas nos olhos da mente” 50 .<br />
Constantemente perturbados pela diferenÅa, os cÑdigos que as representaÅâes culturais<br />
oferecem como guia a ser compartilhado pelos sujeitos ten<strong>de</strong>m a ser multimodulados e<br />
instáveis, e colocam em movimento significados capazes <strong>de</strong> fazer sentido em leituras cada vez<br />
mais plurais. ï com este olhar multifacetado e liberto da centralida<strong>de</strong> subjacente ä i<strong>de</strong>ia clássica<br />
<strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>” que pretendo observar as telenovelas “O Clone” e “Caminho das índias”, <strong>de</strong><br />
Gloria Perez, disposta a seguir as pistas <strong>de</strong> sua narrativa ficcional e os <strong>de</strong>sdobramentos do<br />
sistema <strong>de</strong> representaÅÇo oferecido pela autora em suas leituras do Eu e do Outro.<br />
48 ANDERSON, 1989.<br />
49 HUYSSEN, 1996, p. 15.<br />
50 BHABHA, apud. HALL, 2005, p. 51.<br />
34
3 A TELENOVELA ENQUANTO GÊNERO NARRATIVO<br />
Folhetinesco. O adjetivo acompanha o drama seriado televisivo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascedouro:<br />
ao invàs <strong>de</strong> qualificar a narrativa segundo o gÖnero que inspirou seus traÅos, <strong>de</strong> honrar a<br />
heranÅa <strong>de</strong>ixada pelo folhetim do sàculo XIX nas obras <strong>de</strong> sucesso que atravessaram o sàculo<br />
seguinte e ainda hoje encantam milhâes <strong>de</strong> pessoas no mundo, o termo apenas contamina a<br />
telenovela com seu tom pejorativo, empanando-lhe o brilho e questionando-lhe o valor, numa<br />
prova <strong>de</strong> que o pedantismo <strong>de</strong> outrora ainda estigmatiza as narrativas populares, con<strong>de</strong>nando-<br />
as ao rol insidioso da “baixa literatura”. Se a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha dos cênones e<br />
orgulha-se <strong>de</strong> dar voz äs periferias e aos relatos populares, soa ina<strong>de</strong>quado insistir na<br />
reproduÅÇo <strong>de</strong> uma hostilida<strong>de</strong> cultivada no passado ao sabor das <strong>de</strong>marcaÅâes exclu<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
uma elite que sÑ via “qualida<strong>de</strong>” no que era produzido pela “alta cultura”. Assim, mais que<br />
percorrer aqui os já conhecidos caminhos que fizeram da telenovela um gÖnero narrativo e<br />
recuperar suas raÉzes no folhetim, espero justamente po<strong>de</strong>r mostrar que a forÅa do drama<br />
fatiado na televisÇo e aquilo que lhe permitiu fòlego para chegar renovado ao sàculo XXI<br />
estÇo precisamente na repaginaÅÇo orgulhosa <strong>de</strong> sua matriz folhetinesca. Folhetinesca!<br />
3.1 ORIGEM DO FOLHETIM<br />
Remonta ao sàculo XVIII a matriz mais remota da telenovela enquanto gÖnero narrativo:<br />
o drama burguÖs, forma literária que elevou o homem comum ä condiÅÇo <strong>de</strong> personagem,<br />
trazendo ä tona os aspectos cotidianos da famÉlia e do lar, fazendo da ficÅÇo, com base na<br />
verossimilhanÅa, um espelho da realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>spertando a empatia e a compaixÇo dos leitores<br />
da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O teatro burguÖs inspiraria <strong>de</strong>sdobramentos estàticos, num longo percurso que<br />
chegaria atà os dias <strong>de</strong> hoje, <strong>de</strong>terminando uma combinaÅÇo singular <strong>de</strong> elementos colhidos em<br />
diferentes gÖneros literários na configuraÅÇo do que conhecemos como telenovela.<br />
Um <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>sdobramentos do drama burguÖs foi o melodrama. Mais ao final do<br />
sàculo XVIII, a crònica da burguesia passou a incorporar o espÉrito do entretenimento<br />
catártico e adotou o melodrama como estàtica para atrair o pëblico. GÖnero <strong>de</strong> excesso <strong>de</strong><br />
real, expressionismo da imaginaÅÇo moral, como <strong>de</strong>fine Peter Brooks 51 , o melodrama<br />
explorou a prosa numa linguagem popular; valorizou o tempo presente; intensificou os vÉcios<br />
51 BROOKS, 1995.<br />
35
e virtu<strong>de</strong>s dos personagens; investiu no sentimentalismo para falar do e para o homem comum<br />
(o proletariado) atravàs do sofrimento, da alegria, do suspense, do mistàrio, da surpresa e da<br />
intriga. O objetivo do melodrama era impressionar e comover o espectador atravàs do<br />
exagero, expressando as marcas do sentimento e da sensibilida<strong>de</strong>. Essa sensibilida<strong>de</strong> que era<br />
“sempre aliada a uma visÇo e uma proposta didáticas e morais” 52 .<br />
Outro <strong>de</strong>sdobramento do drama burguÖs que teve papel <strong>de</strong>cisivo na composiÅÇo da<br />
estrutura da telenovela latino-americana e brasileira foi o folhetim. Influenciado pela estàtica<br />
<strong>de</strong> entretenimento do melodrama, o folhetim surgiu no sàculo XIX na Europa, corrigindo os<br />
excessos que eram consi<strong>de</strong>rados efeitos <strong>de</strong> apelo fácil e gratuito ao espectador. Assim como o<br />
melodrama buscava atrair mais pëblico para o teatro, o folhetim nasceu do interesse em<br />
incrementar a venda diária <strong>de</strong> jornais. A RevoluÅÇo Burguesa <strong>de</strong> 1830, “ao chamar um<br />
nëmero muito maior <strong>de</strong> cidadÇos ä vida polÉtica”, havia alargado o cÉrculo eleitoral e criado<br />
“uma nova classe <strong>de</strong> assinantes” 53 para o jornal. Sintonizado com as mudanÅas da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />
o folhetim a<strong>de</strong>quava a linguagem literária e jornalÉstica a um novo tipo <strong>de</strong> pëblico.<br />
Naquele momento, no Velho Continente, as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicaÅÇo se ampliavam, a<br />
populaÅÇo se alfabetizava e os primeiros jornais <strong>de</strong>stinados ä venda em massa ganhavam as<br />
ruas, na esteira das novida<strong>de</strong>s que davam mais agilida<strong>de</strong> ä impressÇo e permitiam<br />
transmissibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informaÅâes ä distência. Como <strong>de</strong>finiu o entÇo “prosador novato”<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, em uma <strong>de</strong> suas colaboraÅâes para a revista O Espelho: revista <strong>de</strong><br />
literatura, modas, indústrias e arte no ano <strong>de</strong> 1858, o jornal era “o gran<strong>de</strong> veÉculo do espÉrito<br />
mo<strong>de</strong>rno” 54 . E o folhetim, um dos gÖneros jornalÉsticos mo<strong>de</strong>rnos que inaugurava uma nova<br />
entida<strong>de</strong> literária.<br />
Le feuilleton nasceu na FranÅa como novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris. Tratava-se inicialmente <strong>de</strong> um<br />
espaÅo <strong>de</strong>dicado ao entretenimento no rodapà da primeira página do jornal, um “espaÅo vale-<br />
tudo”, on<strong>de</strong> se podia abrigar todas as formas e modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “diversÇo escrita”: “[...] se<br />
contam piadas, se fala <strong>de</strong> crimes e <strong>de</strong> monstros, se propâem charadas, se oferecem receitas <strong>de</strong><br />
cozinha ou <strong>de</strong> beleza”, “se criticam as ëltimas peÅas, os livros recàm-saÉdos” e tambàm se<br />
treina a narrativa <strong>de</strong> ficÅÇo, abrigando textos <strong>de</strong> “mestres ou noviÅos do gÖnero” e fatiando ä<br />
moda inglesa a narrativa em sàries, “se houver mais textos e menos coluna” 55 . Com o tempo,<br />
52 MEYER, 1993, p. 62.<br />
53 Expressâes extraÉdas do prospecto <strong>de</strong> lanÅamento do jornal Le Siècle, <strong>de</strong> 1û <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1836, publicaÅÇo que<br />
<strong>de</strong>dicou lugar <strong>de</strong> honra ao folhetim por perceber as vantagens financeiras que tal inovaÅÇo jornalÉstica ren<strong>de</strong>ria,<br />
isso sem contar que a exaltaÅÇo <strong>de</strong>ste espaÅo <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e recreaÅÇo no jornal era vista por seus sÑcios tambàm<br />
como uma “missÇo altamente civilizadora”. Apud MEYER, 1998, p. 115 e 116.<br />
54 ASSIS, apud. MEYER, op. cit., p. 110.<br />
55 MEYER, op. cit., p. 114.<br />
36
o espaÅo no rez-<strong>de</strong>-chaussée do jornal foi <strong>de</strong>ixando para as seÅâes internas <strong>de</strong>nominadas<br />
agora <strong>de</strong> Varieda<strong>de</strong>s o “pout-pourri <strong>de</strong> assuntos”, o “sarrabulho lÉtero-jornalÉstico” 56 , como o<br />
<strong>de</strong>finiu Martins Pena, e fixando na primeira página o gÖnero do “continua amanhÇ”, que tanta<br />
expectativa passou a suscitar nos leitores. Com alguns ajustes na receita, passava a ser servido<br />
aos cada vez mais famintos assinantes o prato principal do jornal diário, o folhetim-romance,<br />
as fatias diárias <strong>de</strong> ficÅÇo seriada, que em seguida se transformariam no Folhetim, com<br />
maiëscula. O sucesso da fÑrmula junto aos assinantes do jornal acabou <strong>de</strong>terminando a<br />
substituiÅÇo da publicaÅÇo fatiada <strong>de</strong> romances pela publicaÅÇo <strong>de</strong> narrativas já<br />
confeccionadas para a apresentaÅÇo seriada. As histÑrias concebidas sob as novas condiÅâes<br />
<strong>de</strong> corte passaram a incorporar dois recursos literários como estratàgia para contornar o fluxo<br />
intermitente da narrativa: o suspense, para manter o interesse do leitor na continuaÅÇo do dia<br />
seguinte, e a redundência, para reavivar a memÑria do que havia sido lido na vàspera ou para<br />
esclarecer o leitor que estava pegando o “bon<strong>de</strong> andando”. Estruturada em capÉtulos “a per<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> vista” que sempre terminam “<strong>de</strong> forma a excitar ao máximo a curiosida<strong>de</strong> do leitor”, a<br />
narrativa folhetinesca se alimentava, segundo Pina Coco 57 , <strong>de</strong> “uma outra lÑgica, emocional,<br />
semelhante ä dos sonhos, on<strong>de</strong> as contradiÅâes sÇo aceitas e tudo à possÉvel”, a <strong>de</strong>speito da<br />
verossimilhanÅa.<br />
O novo romance, segundo Meyer, pedia “a construÅÇo <strong>de</strong> tipos fortes e facilmente<br />
i<strong>de</strong>ntificáveis, sentimentos em branco e preto, amor e Ñdio, pureza e perversÇo, espichamentos<br />
ou ressurreiÅâes a pedido etc” 58 . Autores franceses como Honorà <strong>de</strong> Balzac, Eugöne Sue,<br />
Alexandre Dumas, pai, Fràdàric Soulià, Paul Fàval, Ponson Du Terrail, Berthet, Souvestre e<br />
Montàpin consagraram a escrita seriada e inspiraram escritores em todo o mundo que, com<br />
suas “máquinas <strong>de</strong> sonhar”, alimentaram o imaginário dos que já sabiam ler e dos que sÑ<br />
sabiam ouvir 59 .<br />
Em 1836, antes mesmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarcar no Brasil como literatura seriada <strong>de</strong> rodapà, o<br />
Feuilleton já era anunciado na publicaÅÇo brasileira O Chronista como uma revoluÅÇo. Um <strong>de</strong><br />
seus editores, o jornalista e romancista Justiniano Josà da Rocha, comemorava:<br />
[...] abenÅoada invenÅÇo periÑdica; filho mimoso <strong>de</strong> brilhante imaginaÅÇo, que trajas<br />
ricas galas, que te cobres <strong>de</strong> jÑias preciosas, tu, que distrais a virgem <strong>de</strong> seus<br />
melancÑlicos pensares, o jovem estudioso <strong>de</strong> seus cálculos dinheirosos, o <strong>de</strong>socupado<br />
proprietário <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>scanso insÉpido, o ar<strong>de</strong>nte ambicioso <strong>de</strong> seus planos ilusÑrios, tu<br />
que fazes esquecer o trabalho ao pobre, tu que fazes esquecer o Ñcio ao rico, permite,<br />
56 ExpressÇo <strong>de</strong> Martins Pena apud. MEYER, 1998, p. 114 .<br />
57 COCO, 1990, p. 16.<br />
58 MEYER, 1998, p. 117.<br />
59 Ibi<strong>de</strong>m, p. 122.<br />
37
3.2 FOLHETIM NO BRASIL<br />
oh! permite, duen<strong>de</strong> da civilizaÅÇo mo<strong>de</strong>rna, que nosso proselitismo te procure<br />
sectários em o nosso Brasil ─ que à digno <strong>de</strong> adorar-te. 60<br />
A novida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna que encantava o “plurifocado <strong>de</strong>stinatário” francÖs nÇo tardaria a<br />
chegar ä Corte brasileira. Já consagrado dramaturgo, Alexandre Dumas, pai, inaugurou a<br />
ponte literária folhetinesca com o Brasil pouco tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> estrear no romance-folhetim<br />
com “Le Capitaine Paul”, publicado como fora escrito, em fatias, no Le Siècle entre maio e<br />
junho <strong>de</strong> 1838, “arrastando com ele mais <strong>de</strong> 5.000 novos assinantes” para o jornal. No Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, apenas trÖs meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua publicaÅÇo francesa 61 , “Le Capitaine Paul” ganhou<br />
as páginas do carioca Echo Français reproduzido no original e abriu as portas para o gÖnero<br />
no Jornal do Commercio 62 , on<strong>de</strong> foi publicado pela primeira vez traduzido para o portuguÖs<br />
como “O capitÇo Paulo”. Segundo Meyer, esta quase concomitência entre as publicaÅâes<br />
francesa e brasileira, resultado <strong>de</strong> uma fina sintonia com o que a moda europàia fazia ecoar<br />
mundo afora, se repetiria com outros tÉtulos “gloriosos” como “Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Monte Cristo”,<br />
tambàm <strong>de</strong> Dumas, pai, e “Mistàrios <strong>de</strong> Paris” e “Ju<strong>de</strong>o Errante”, <strong>de</strong> Eugöne Sue, dois autores<br />
gigantes no gÖnero folhetinesco, companheiros do gran<strong>de</strong> Ponson <strong>de</strong> Terrail na genialida<strong>de</strong><br />
que o fez produzir o càlebre “As aventuras <strong>de</strong> Rocambole”, lanÅado no Jornal do Commercio<br />
com estardalhaÅo em 1859, relanÅado posteriormente algumas vezes e eternizado enquanto<br />
estilo “rocambolesco” nas narrativas <strong>de</strong> folhetim que ganharam o mundo e perduram atà hoje<br />
em diferentes vertentes. A repercussÇo na Corte em nada <strong>de</strong>ixava a <strong>de</strong>ver ä coqueluche que os<br />
folhetins causaram na iluminada Paris: “Estrondoso sucesso aqui, traduzido pelos anëncios <strong>de</strong><br />
página inteira, repetidas chamadas, retomada em fascÉculos, reediÅâes dos mesmos,<br />
imediatamente esgotados, filas para comprá-los etc” 63 . Inicialmente publicado na seÅÇo <strong>de</strong><br />
Varieda<strong>de</strong>s e, <strong>de</strong>pois, acolhido com honra no rodapà dos jornais e periÑdicos brasileiros, o<br />
romance traduzido aos poucos abre espaÅo para as produÅâes nacionais, moldadas já aos<br />
cortes cotidianos.<br />
60 MEYER, 1998, pp. 120-121.<br />
61 Segundo Meyer, o jornal Echo Français pertencia ao mesmo dono do Jornal do Commercio carioca, o exlivreiro<br />
franÅÖs exilado no Rio Pierre Plancher ─ daÉ a agilida<strong>de</strong> na traduÅÇo e publicaÅÇo da versÇo em<br />
portuguÖs da ficÅÇo <strong>de</strong> Dumas, que viria a <strong>de</strong>tonar a “revoluÅÇo folhetinesca (o vero Folhetim) entre nÑs, o<br />
criador do padrÇo pelo qual todos os outros vÇo se reger”. MEYER, ibi<strong>de</strong>m, pp. 133 e 135.<br />
62 Ibi<strong>de</strong>m, p. 136.<br />
63 MEYER, loc. cit.<br />
38
No Jornal do Commercio, os folhetins escritos por brasileiros proliferaram na<br />
esteira das novelas traduzidas: em 1839, por exemplo, sÇo publicados “A ressurreiÅÇo do<br />
amor: Chronica Rio Gran<strong>de</strong>nse”, assinada pelo pseudònimo Hum Rio Gran<strong>de</strong>nse,<br />
“ReligiÇo, amor e pátria”, <strong>de</strong> Pereira da Silva, “A paixÇo dos diamantes”, <strong>de</strong> Justiniano<br />
Josà da Rocha, “O Engeitado” [sic], <strong>de</strong> Paula Brito 64 . No ano seguinte estourou “A<br />
Moreninha”, <strong>de</strong> Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo, primeiro gran<strong>de</strong> sucesso do folhetim<br />
brasileiro. O Öxito <strong>de</strong> pëblico consagrava a fÑrmula do romance seriado eximiamente<br />
explorada pelo autor nesta obra: sentimentalismo ao gosto popular; linguagem simples e<br />
clara; diálogos ágeis, äs vezes sem a interferÖncia do narrador (conferindo teatralida<strong>de</strong>);<br />
herÑi romêntico <strong>de</strong> princÉpios morais; protagonista feminina como personificaÅÇo do mito<br />
brasileiro (“moreninha”); personagens principais planos para dar <strong>de</strong>staque ä aÅÇo;<br />
personagens secundários tipificados para retratar a socieda<strong>de</strong> burguesa da capital do<br />
Impàrio; ambientaÅÇo que valoriza os elementos urbanos em contraponto com os<br />
elementos naturais; valorizaÅÇo dos elementos culturais da naÅÇo brasileira. NÇo ä toa,<br />
Macedo à consi<strong>de</strong>rado um dos fundadores do romance no Brasil.<br />
Entre 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1852 e 31 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1853, sob o pseudònimo <strong>de</strong> Um<br />
Brasileiro, Manuel Antònio <strong>de</strong> Almeida publicou suas “MemÑrias <strong>de</strong> um Sargento <strong>de</strong><br />
MilÉcias” fatiadas na seÅÇo humorÉstica dominical intitulada Pacotilha do Correio Mercantil<br />
(um dos principais jornais da àpoca), reunidas posteriormente sob a forma <strong>de</strong> livro em dois<br />
volumes (um publicado no final <strong>de</strong> 1854 e outro no inÉcio <strong>de</strong> 1855). O emprego <strong>de</strong> linguagem<br />
jornalÉstica ─ simples e direta ─, a apropriaÅÇo dos fraseados populares colhidos nas ruas, a<br />
opÅÇo pelas personagens comuns vindas das classes màdia e baixa, a construÅÇo <strong>de</strong> um anti-<br />
herÑi (nem vilÇo nem herÑi-romêntico, alguàm entre o pÉcaro e o malandro) e a ambientaÅÇo<br />
da trama longe dos cenários aristocráticos permitiram ao autor <strong>de</strong> “MemÑrias” retratar a<br />
realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma àpoca (o narrador está no presente, mas a aÅÇo se dá no “tempo do rei”,<br />
perÉodo sob o comando <strong>de</strong> D. JoÇo VI) sem as distorÅâes costumeiras do Romantismo,<br />
valendo-se do humor para compor uma crònica <strong>de</strong> costumes realista. A composiÅÇo <strong>de</strong>sta<br />
narrativa em sequÖncia para ser publicada semanalmente (sempre aos domingos, no caso)<br />
obrigou-o a temperar o enredo melodramático com os ingredientes sabiamente usados, já há<br />
muito, por Scheraza<strong>de</strong>: Manuel Antònio <strong>de</strong> Almeida abusou do suspense, do mistàrio e da<br />
aventura, cozinhando a aÅÇo com peripàcias e reviravoltas que prometiam se consumar no<br />
capÉtulo seguinte e mantendo acesa a curiosida<strong>de</strong> do leitor atà o <strong>de</strong>sfecho final 65 .<br />
64 MEYER, 1998, p. 137.<br />
65 JAROUCHE, 2007, pp. 28 e 50.<br />
39
O formato folhetim seduziu mais um jornalista que viria a se <strong>de</strong>stacar como<br />
importante escritor brasileiro: Josà <strong>de</strong> Alencar, cronista <strong>de</strong> jornal que se tornaria gran<strong>de</strong> nome<br />
da prosa romêntica no paÉs, estreou como folhetinista no Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro com<br />
“Cinco Minutos”, em 1856. No ano seguinte, publicou tambàm em capÉtulos diários “A<br />
Viuvinha” e “O Guarani”, obra com a qual ganhou notorieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>spertando gran<strong>de</strong><br />
entusiasmo entre os apreciadores das letras. Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Taunay, em suas reminiscÖncias,<br />
registrou o impacto que tal “novida<strong>de</strong> emocional” causou nos “cÉrculos femininos da<br />
socieda<strong>de</strong> fina e no seio da mocida<strong>de</strong>”:<br />
Relembrando, sem gran<strong>de</strong> exageraÅÇo, o càlebre verso: “Tout Paris pour Chimöne a<br />
les yeux <strong>de</strong> Rodrigue”, o Rio <strong>de</strong> Janeiro em pÖso, para assim dizer, lia o Guarani e<br />
seguia comovido e enleado os amòres tÇo puros e discretos <strong>de</strong> Peri e Ceci e com<br />
estremecida simpatia acompanhava, no meio dos perigos e ardis dos bugres selvagens,<br />
a sorte vária e periclitante dos principais personagens do cativante romance, vazado<br />
nos mol<strong>de</strong>s do indianismo <strong>de</strong> Chateaubriand e Fenimore Cooper, mas cujo estilo à tÇo<br />
caloroso, opulento, sempre terso, sem <strong>de</strong>sfalecimento e como perfumado pelas flores<br />
exÑticas das nossas virgens e luxuriantes florestas. Quando a SÇo Paulo chegava o<br />
correio, com muitos dias <strong>de</strong> intervalo entÇo, reuniam-se muitos e muitos estudantes<br />
numa “repëblica”, em que houvesse qualquer feliz assinante do Diário do Rio, para<br />
ouvirem, absortos e sacudidos, <strong>de</strong> vez em quando, por elàtrico frÖmito, a leitura feita<br />
em voz alta por alguns <strong>de</strong>les, que tivesse ÑrgÇo mais forte. E o jornal era <strong>de</strong>pois<br />
disputado com impaciÖncia e pelas ruas se via agrupamentos em torno dos fumegantes<br />
lampiâes da iluminaÅÇo pëblica <strong>de</strong> outrora ─ ainda ouvintes a cercarem ávidos<br />
qualquer improvisado leitor. 66<br />
VÖ-se pela <strong>de</strong>scriÅÇo acima que o encantamento dos folhetins junto ao pëblico nÇo se<br />
limitava aos assinantes dos jornais em cujas páginas eram publicados: as narrativas se<br />
replicavam tanto entre os letrados que muitas vezes liam as histÑrias a partir <strong>de</strong> exemplares<br />
emprestados (a ponto <strong>de</strong> este hábito ameaÅar a estrutura <strong>de</strong> assinatura dos veÉculos ─ os<br />
jornais nÇo eram vendidos em bancas nesta àpoca) como entre a maioria analfabeta que<br />
acompanhava <strong>de</strong> ouvido as aventuras e peripàcias, graÅas ä boa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um leitor paciente.<br />
Tal alcance comprova a eficácia <strong>de</strong> uma narrativa concebida com o objetivo <strong>de</strong> atrair leitores<br />
para o jornal. O veÉculo mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong>via falar em especial äs massas urbanas e os textos ali<br />
publicados <strong>de</strong>viam ser consumÉveis por uma ampla faixa <strong>de</strong> pëblico. Submetidas ä lÑgica do<br />
mundo industrial mo<strong>de</strong>rno entÇo em vigÖncia, as fatias da ficÅÇo seriada <strong>de</strong>viam levar em<br />
conta a efemerida<strong>de</strong> da vida ëtil <strong>de</strong> um jornal diário, a atualida<strong>de</strong> e a instantaneida<strong>de</strong> da<br />
comunicaÅÇo jornalÉstica, a a<strong>de</strong>quaÅÇo da linguagem ao pëblico leitor e a limitaÅÇo do volume<br />
<strong>de</strong> texto ao espaÅo disponÉvel na página. Nas linhas do folhetim, tais caracterÉsticas<br />
jornalÉsticas equivaleriam a 1) criaÅÇo <strong>de</strong> pendÖncias (suspenses e complicaÅâes na aÅÇo) a<br />
66 ReproduÅÇo <strong>de</strong> citaÅÇo feita por Cavalcanti ProenÅa em sua introduÅÇo ä ediÅÇo Aguilar da Obra completa <strong>de</strong><br />
Josà <strong>de</strong> Alencar (Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1959, v. 1, p. 26) colhida em MEYER, 1998, pp. 131-132.<br />
40
serem resolvidas posteriormente como forma <strong>de</strong> expandir da duraÅÇo diária do capÉtulo; 2)<br />
permanente apresentaÅÇo <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s que garantissem o frescor da trama; 3) uso <strong>de</strong><br />
linguagem simples, direta e coloquial, reproduzindo as falas das pessoas comuns; e 4)<br />
exploraÅÇo da redundência, da repetiÅÇo, da adjetivaÅÇo, do uso <strong>de</strong> clichÖs e frases feitas<br />
como recurso dramático e estratàgia para preencher o espaÅo previsto para o capÉtulo do dia.<br />
Embora ocupasse lugar privilegiado no rodapà da primeira página, a vizinhanÅa com<br />
os espaÅos <strong>de</strong>stinados ä crònica e äs notÉcias factuais certamente contaminou em alguma<br />
medida o folhetim com as condicionantes da “noticiabilida<strong>de</strong>”: a novida<strong>de</strong>, o vulto, a<br />
proximida<strong>de</strong> e a relevência, convertidos pelo dicionário folhetinesco em originalida<strong>de</strong>,<br />
exagero melodramático, verossimilhanÅa e forÅa pedagÑgica. A proximida<strong>de</strong> que os<br />
assinantes mantinham com o jornal, expressando sua opiniÇo, cobrando imparcialida<strong>de</strong> ou<br />
coerÖncia polÉtica do veÉculo se reproduziu tambàm na relaÅÇo entre o folhetim e seus leitores:<br />
segundo Eliana Fochi, o leitor do romance <strong>de</strong> folhetim<br />
[...] está presente, participando do <strong>de</strong>senvolvimento da obra, seja <strong>de</strong> forma esporádica<br />
e explÉcita, pela correspondÖncia que troca com o folhetinista e por meio da qual<br />
consegue interferir nos caminhos da intriga e nos <strong>de</strong>stinos dos personagens, seja <strong>de</strong><br />
forma sistemática e subjacente, por constituir o “perfil” <strong>de</strong>finido do leitor para o qual<br />
e a partir do qual existe o periÑdico. 67<br />
Embora o <strong>de</strong>senrolar da trama do folhetim nÇo fosse composto <strong>de</strong> partes autònomas e sim<br />
orientadas pela tensÇo do final, sua estrutura episÑdica, construÉda e divulgada em partes,<br />
permitia esta participaÅÇo do leitor e sua configuraÅÇo hoje como obra aberta. A estratàgia <strong>de</strong><br />
provocar o sobressalto, fazer o corte “na hora mais in<strong>de</strong>vida” e adiar sempre a conclusÇo<br />
permitia ao leitor, fisgado pelo prazer da curiosida<strong>de</strong>, manifestar-se sugerindo caminhos para<br />
a trama. Ponson Du Terrail, o mago do folhetim mo<strong>de</strong>rno francÖs que enca<strong>de</strong>ava aventuras<br />
sem fim, foi forÅado pelo apelo dos leitores a “ressuscitar n vezes seu Rocambole” 68 .<br />
Assim como a aproximaÅÇo estilÉstica do melodrama com o romance <strong>de</strong> folhetim<br />
permitiu, como diz Fochi, o vÉnculo dos artifÉcios da trama lacrimosa com os da rocambolesca<br />
e a incorporaÅÇo <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s teatrais, sua proximida<strong>de</strong> fÉsica com o jornalismo permitiu a<br />
“prontidÇo <strong>de</strong> uma escrita” que acabou por reforÅar sua vocaÅÇo para a teatralida<strong>de</strong> atravàs da<br />
opÅÇo pelo fluxo do diálogo e pelo entremeio sumário 69 . Assim, do cruzamento da linguagem<br />
jornalÉstica com a linguagem da ficÅÇo, entrelaÅadas pela lÑgica do consumo e do<br />
67 FOCHI, disponÉvel em:<br />
, p. 2. Acesso em 17 jul. 2009.<br />
68 MEYER, 1998, p. 122.<br />
69 FOCHI, op. cit., pp. 4-5.<br />
41
entretenimento e pela missÇo pedagÑgica, consolidou-se, ao sabor da gran<strong>de</strong> aceitaÅÇo<br />
popular, a narrativa <strong>de</strong> folhetim ─ hÉbrida o suficiente para ser con<strong>de</strong>nada pelos crÉticos<br />
puristas ä condiÅÇo <strong>de</strong> subliteratura, para ser explorada por escritores sensibilizados com o<br />
novo universo realista em plena vigÖncia do Romantismo, para ser abraÅada por leitores<br />
letrados como novida<strong>de</strong> literária e para ser celebrada pelos analfabetos como passaporte para<br />
o mundo da literatura.<br />
Mais que uma simples tàcnica <strong>de</strong> publicaÅÇo fracionada <strong>de</strong> histÑrias 70 , o folhetim,<br />
segundo Ana Lëcia Reis e Cláudia Braga, alterou profundamente as caracterÉsticas do<br />
romance enquanto gÖnero literário 71 : a elevaÅÇo da aÅÇo (os fatos narrativos) ä condiÅÇo <strong>de</strong><br />
protagonista da histÑria, o <strong>de</strong>sdobramento da aÅÇo em uma ca<strong>de</strong>ia vertiginosa <strong>de</strong> eventos (as<br />
peripàcias) e a construÅÇo <strong>de</strong> numerosas subtramas <strong>de</strong>ixavam a caracterizaÅÇo das<br />
personagens em segundo plano. NÇo que elas fossem menores; eram menos i<strong>de</strong>alizadas e mais<br />
tipificadas, na medida certa para dar andamento ä aÅÇo. Eram tambàm personagens mais<br />
prÑximas ao homem comum, urbano, entida<strong>de</strong>s facilmente passÉveis <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo: segundo<br />
Meyer, herÑis romênticos, mosqueteiros e vingadores, herÑis canalhas, mulheres fatais e<br />
sofredoras, crianÅas trocadas, raptadas, abandonadas, ricos maldosos e pobres honestos 72 . No<br />
folhetim (e <strong>de</strong>pois na telenovela, como se verá), se as personagens sÇo tipificadas, os temas<br />
sÇo codificados: Artur da Távola 73 i<strong>de</strong>ntifica-os como mitos ─ os suplÉcios (Prometeu,<br />
Têntalo e SÉsifo), Eros e Psique, Cin<strong>de</strong>rela, e SansÇo e Dalila; Cristiane Costa 74 , como<br />
ingredientes romênticos ─ obstáculos, triêngulos amorosos, ruptura com a or<strong>de</strong>m social e<br />
sonhos <strong>de</strong> ascensÇo. Mas, acima do tema, da aÅÇo e das personagens, havia o jogo. NÇo sÑ<br />
pelo ritmo, mas precisamente e sobretudo pelo corte, a narrativa <strong>de</strong> folhetim enfeitiÅava o<br />
leitor com o que a crÉtica Liliane Durand-Dessert chama <strong>de</strong> “erotizaÅÇo do texto” 75 : “manipula<br />
com habilida<strong>de</strong> a dialàtica do <strong>de</strong>sejo e do obstáculo, do algoz e da vÉtima, do mestre e do<br />
escravo...”<br />
NÇo admira que, ao longo do tempo e a <strong>de</strong>speito da preconceituosa qualificaÅÇo <strong>de</strong><br />
“literatura industrial”, o romance-folhetim tenha seduzido letrados e analfabetos, e atà mesmo<br />
70 ï preciso <strong>de</strong>stacar que a publicaÅÇo fracionada <strong>de</strong> uma histÑria e sua publicaÅÇo em jornais e periÑdicos nÇo fazem<br />
da obra um folhetim. Como à o caso <strong>de</strong> “Quincas Borba”, <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, publicado quinzenalmente em A<br />
Estação entre os anos <strong>de</strong> 1886 e 1891, com interrupÅâes, e muitas vezes i<strong>de</strong>ntificado equivocadamente como<br />
folhetim: como afirma Marlyse Meyer, estudiosa do gÖnero, “nÇo à, nunca foi, um romance-folhetim” (MEYER,<br />
1996, p. 16.).<br />
71 REIS e BRAGA, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 21 jul. 2009.<br />
72 MEYER, 1998, p. 122.<br />
73 TôVOLA, 1996, p. 28.<br />
74 COSTA, 2000, pp. 19-29, 31.<br />
75 DURAND-DESSERT apud. MEYER, op. cit., p. 78.<br />
42
autores da “alta cultura”, como Graciliano Ramos, James Joyce e Robert Louis Stevenson 76 . E<br />
que tenha transbordado para outros suportes e atravessado escolas literárias, permitindo a<br />
sucessivas geraÅâes este fascinante mergulho no mundo da fantasia. Sempre conduzido pelo<br />
gosto popular, o folhetim chegaria com fòlego renovado ao sàculo XX, pronto para se a<strong>de</strong>quar<br />
äs especificida<strong>de</strong>s do rádio e da televisÇo.<br />
3.3 DO FOLHETIM IMPRESSO è RADIONOVELA E è TELENOVELA<br />
Muitos autores acreditam que, na Amàrica Latina e no Brasil, o percurso do romance-<br />
folhetim apresentado nas entÇo estreantes mÉdias eletrònicas tenha sido trilhado a partir do<br />
mo<strong>de</strong>lo norte-americano das soap operas. Dramas seriados <strong>de</strong> ficÅÇo transmitidos pelo rádio<br />
ou pela televisÇo, as soap operas foram inicialmente exibidas em horário diurno, sob o<br />
patrocÉnio <strong>de</strong> fabricantes <strong>de</strong> sabÇo (soap), e estruturadas em comeÅo e fim, com um meio<br />
expansÉvel que permitia seu <strong>de</strong>sdobramento em inëmeras subtramas, enredando o pëblico em<br />
inëmeros conflitos e permitindo seu envolvimento com as personagens.<br />
As radio soap operas surgiram durante a Gran<strong>de</strong> DepressÇo americana como um<br />
modo <strong>de</strong> entreter as massas que nÇo podiam se valer do teatro ou do cinema, nem mesmo<br />
pagar por revistas: as novelas radiofònicas eram distraÅÇo a baixo custo. Mas eram tambàm,<br />
sobretudo, o resultado <strong>de</strong> uma estratàgia <strong>de</strong>senvolvida por agÖncias <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong> para<br />
<strong>de</strong>senvolver programas <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> como um meio <strong>de</strong> assegurar aos patrocinadores que<br />
“milhâes <strong>de</strong> americanos estavam ouvindo <strong>de</strong>terminados programas em horários especÉficos e<br />
com habitual frequÖncia [tradução nossa]” 77 . Já em 1929, a novela “Amos and Andy”,<br />
transmitida pela WGN, havia se tornado um fenòmeno do rádio, com uma audiÖncia semanal<br />
estimada em 40 milhâes <strong>de</strong> ouvintes americanos 78 . Em 1930, “Painted Dreams”, consi<strong>de</strong>rada<br />
a primeira soap opera americana, foi transmitida durante um ano, em episÑdios <strong>de</strong> quinze<br />
minutos por dia, seis dias por semana (exceto domingo). Contava a singela e domàstica<br />
histÑria <strong>de</strong> uma mulher irlan<strong>de</strong>sa, seu lar, sua filha e a amiga <strong>de</strong> sua filha. SÑ mais tar<strong>de</strong>, por<br />
volta <strong>de</strong> 1959 foi que o rádio passou a transmitir dramas mais pesados, combinando crime e<br />
violÖncia. Em gran<strong>de</strong> parte, as radio soap operas traziam o germe <strong>de</strong> dois gÖneros bastante<br />
populares nos Estados Unidos: os romances domàsticos femininos que haviam gozado <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> sucesso no fim do sàculo XIX e inÉcio do sàculo XX, e o vau<strong>de</strong>ville, espetáculo teatral<br />
76 MEYER, 1998, p. 16.<br />
77 ALLEN, 1985, p. 103.<br />
78 Ibi<strong>de</strong>m, p. 104.<br />
43
<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s conduzido como mero entretenimento comercial. Do primeiro, o folhetim<br />
radiofònico teria herdado sua condiÅÇo <strong>de</strong> arte feminina e a estrutura narrativa continuada<br />
(embora no rádio a exacerbaÅÇo do “expansÉvel meio” tenha levado a histÑria a adiar<br />
in<strong>de</strong>finidamente o seu fim, o que o distanciaria do romance); do segundo, teria se valido da<br />
curta duraÅÇo <strong>de</strong> cenas e <strong>de</strong> seu caráter <strong>de</strong> entretenimento puro, fácil <strong>de</strong> digerir.<br />
No final <strong>de</strong> 1950, a soap opera “The First Handred Years” inauguraria o gÖnero na<br />
televisÇo, aproveitando que a entÇo sensÉvel queda na audiÖncia das emissoras <strong>de</strong> rádio<br />
facilitaria a transferÖncia do investimento dos patrocinadores para a programaÅÇo <strong>de</strong> tevÖ. Os<br />
15 minutos <strong>de</strong> episÑdio do formato dos primeiros anos logo se mostraram insuficientes para<br />
correspon<strong>de</strong>r ä expectativa da audiÖncia: em 1965 os episÑdios diários dobrariam <strong>de</strong> tamanho<br />
e no inÉcio dos anos 1970 já chegavam a uma hora <strong>de</strong> duraÅÇo. As TV soap operas, tanto as<br />
diurnas como as do prime time (horário nobre, que vai das 20h äs 23h), já haviam se tornado<br />
um vÉcio! 79 Em 1980, “Dallas”, produÅÇo da CBS que havia estreado dois anos antes no<br />
horário nobre, atingiu uma audiÖncia estimada em 83 milhâes <strong>de</strong> americanos, performance<br />
que garantiu sua exportaÅÇo para inëmeros paÉses.<br />
Com base na longa tradiÅÇo latino-americana <strong>de</strong> divulgar histÑrias em formato seriado<br />
no rádio e nos jornais, há quem, como Tunstall 80 , discor<strong>de</strong> da suposta relaÅÇo entre as<br />
radionovelas e as radio/TV soap operas. Outro argumento: embora as mulheres tenham sido<br />
um significativo segmento da audiÖncia <strong>de</strong> massa, as telenovelas, diferentemente das soap<br />
operas, nÇo foram produzidas para satisfazer o gosto feminino e sim para agradar a todos os<br />
segmentos da audiÖncia em potencial da televisÇo. Tanto que, com o tempo, a TV Globo, a<br />
maior veiculadora <strong>de</strong> telenovelas brasileiras, acabou sendo obrigada a <strong>de</strong>sdobrar o folhetim<br />
televisivo em diferentes linguagens e estilos, <strong>de</strong> modo a aten<strong>de</strong>r os diferentes tipos <strong>de</strong> pëblico,<br />
<strong>de</strong> acordo com a faixa etária:<br />
ès 18 horas eram transmitidas tramas água-com-aÅëcar que reproduziam a literatura<br />
clássica brasileira para os jovens; äs 19 horas, comàdias romênticas; äs 20 horas,<br />
horário nobre, eram discutidos assuntos mais complexos, temas sociais que tinham<br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo do pëblico, e äs 22 horas, eram reservadas as crÉticas e reflexâes<br />
sociais. 81<br />
Como assinalava o Latin American Daily Post em 1981, as telenovelas brasileiras sÇo um<br />
gÖnero singular, diferente das soap operas norte-americanas tambàm pelo fato <strong>de</strong> nÇo serem<br />
“um produto <strong>de</strong> ambiÅÇo limitada, produzido com baixo orÅamento e dirigido äs donas-<strong>de</strong>-<br />
79 ALLEN, 1985, pp. 249-250.<br />
80 TUNSTALL, 1977, p. 197.<br />
81 FERNANDES, 1987, pp. 131-132.<br />
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casa [tradução nossa]” 82 . Tais argumentos fazem recair somente sobre o folhetim a origem<br />
das radio e telenovelas. Mais especificamente, segundo Cristiane Costa, a telenovela seria um<br />
fenòmeno <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa genuinamente latinoamericano que teria em seu DNA a<br />
marca precisa da influÖncia do que Marlyse Meyer i<strong>de</strong>ntifica como a terceira fase do<br />
romance-folhetim, aquela que se <strong>de</strong>dica aos “dramas da vida”, tambàm <strong>de</strong>finida como<br />
“<strong>de</strong>sgraÅa pouca à bobagem”. A primeira fase, que vai <strong>de</strong> 1836 a 1859, chamada <strong>de</strong> folhetim<br />
romêntico ou <strong>de</strong>mocrático, e a segunda fase, <strong>de</strong> 1851 a 1871, conhecida como rocambolesca,<br />
nÇo teriam <strong>de</strong>ixado traÅos tÇo expressivos na telenovela do continente como a fase <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira,<br />
que vai <strong>de</strong> 1871 a 1914: “EmoÅÇo a qualquer preÅo, imagens violentas que saltam do<br />
noticiário para a ficÅÇo, temas como amor, Ñdio, paixÇo, ciëme, <strong>de</strong>sejo, ganência, ambiÅÇo,<br />
morte, crime, luxëria, loucura” 83 ; “e no final, recompensa para os bons, puniÅÇo para os<br />
maus” 84 ─ o indispensável happy end.<br />
No Brasil, assim como o romance <strong>de</strong> rodapà havia sido um indiscutÉvel fenòmeno <strong>de</strong><br />
leitura nos jornais do sàculo XIX, os folhetins radiofònicos ou as radionovelas<br />
potencializaram a audiÖncia do novo veÉculo <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa nos anos 1950. O<br />
colorido vocal e as nuances <strong>de</strong> interpretaÅÇo contribuÉram para conferir ainda mais<br />
dramaticida<strong>de</strong> e teatralida<strong>de</strong> a narrativas que materializavam, atravàs do trabalho <strong>de</strong> bons<br />
atores e <strong>de</strong> efeitos sonoros, o que ia pela imaginaÅÇo dos ouvintes. Inicialmente, como no<br />
jornal, as radionovelas no Brasil reproduziam adaptaÅâes <strong>de</strong> textos estrangeiros, sobretudo<br />
franceses e cubanos. “O Direito <strong>de</strong> Nascer”, do cubano Felix Caignet, transmitida em 1951,<br />
ficou trÖs anos no ar pela Rádio Nacional, conquistando estrondoso sucesso <strong>de</strong> pëblico, e foi<br />
posteriormente adaptada para a televisÇo em trÖs diferentes versâes, transmitidas<br />
simultaneamente pela TV Tupi e TV Rio entre <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1964 e agosto <strong>de</strong> 1965, e, mais<br />
tar<strong>de</strong>, pela Re<strong>de</strong> Tupi entre julho <strong>de</strong> 1978 e maio <strong>de</strong> 1979, e pelo SBT entre maio e outubro <strong>de</strong><br />
2001. O sucesso no Brasil apenas reproduzia a repercussÇo que o texto alcanÅara na regiÇo: a<br />
radionovela “O Direito <strong>de</strong> Nascer” foi o maior fenòmeno <strong>de</strong> audiÖncia em toda a Amàrica<br />
Latina. O formato folhetim radiofònico nÇo tardaria a conquistar autores nacionais como<br />
Oduvaldo Vianna, pai, (autor <strong>de</strong> 75 novelas para a Rádio Nacional!), Amaral Gurgel, Gilberto<br />
Martins, Dias Gomes, Mario Lago, Mário Brassini, Janete Clair e Ivani Ribeiro.<br />
82 Latin American Daily Post, outubro <strong>de</strong> 1981, página nÇo disponÉvel.<br />
83 COSTA, 2000, p. 45.<br />
84 MEYER, 1996, quarta capa.<br />
45
3.4 CAMINHOS DA TELENOVELA NO BRASIL<br />
Com o advento da televisÇo, o folhetim logo incorporaria a dimensÇo visual do novo<br />
veÉculo, introduzindo novas narrativas e novos cÑdigos <strong>de</strong> percepÅÇo que ampliariam ainda<br />
mais sua forÅa dramática: os temas e a estàtica do rádio foram adaptados, obrigando autores,<br />
atores, diretores e tàcnicos a encontrar linguagem prÑpria. Diferentemente das soap operas<br />
americanas, cujos capÉtulos iam ao ar diariamente no perÉodo diurno e semanalmente durante<br />
o prime time, e cuja duraÅÇo podia se esten<strong>de</strong>r infinitamente 85 , as telenovelas brasileiras<br />
sempre foram construÉdas com a perspectiva do final e logo perceberam que teriam que<br />
investir em periodicida<strong>de</strong> mais estreita se quisessem pren<strong>de</strong>r o telespectador e forjar novo<br />
hábito. Se as primeiras produÅâes iam ao ar duas ou trÖs vezes por semana por apenas 20<br />
minutos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1963 as telenovelas no Brasil passaram a adotar o formato atual <strong>de</strong> exibiÅÇo<br />
diária, <strong>de</strong> segunda a sábado. E há muito que tÖm em màdia oito ou 10 meses <strong>de</strong> duraÅÇo 86 , o<br />
que totaliza <strong>de</strong> 180 a 200 capÉtulos, nëmero já consi<strong>de</strong>rado elevado para os padrâes nacionais.<br />
O alto custo dos televisores no inÉcio dos anos 1950 <strong>de</strong>terminou uma audiÖncia <strong>de</strong><br />
elite, que a princÉpio resistia em aceitar o gÖnero “barato e popular” trazido do rádio. Com a<br />
introduÅÇo <strong>de</strong> uma estratàgia comercial-publicitária para a televisÇo, emissoras foram<br />
estimuladas a cooptar a a<strong>de</strong>sÇo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s nomes do teatro nacional, forjando assim a quebra<br />
da resistÖncia inicial das elites e ampliando sua frente junto äs camadas populares. Com o<br />
tempo e a adoÅÇo <strong>de</strong> temas “sàrios” nas tramas, a telenovela tornou-se o programa favorito da<br />
famÉlia brasileira 87 . Tal transformaÅÇo no comportamento da audiÖncia reflete os caminhos<br />
por que passou a dramaturgia brasileira no perÉodo.<br />
Durante os anos 1950 e 1960, as narrativas das telenovelas eram impregnadas da<br />
estàtica do rádio e do teatro, e foram levadas a cabo por escritores e atores <strong>de</strong> renome no<br />
teatro. Os textos, em sua maioria, eram traduzidos e adaptados, muitos <strong>de</strong>les a partir <strong>de</strong><br />
85 A americana “The Guiding Light” à a mais longa soap opera produzida na histÑria da televisÇo e do rádio. Foi<br />
veiculada primeiramente na Rádio NBC entre janeiro <strong>de</strong> 1937 e novembro <strong>de</strong> 1946; passou para a Rádio CBS<br />
em junho <strong>de</strong> 1947, on<strong>de</strong> ficou atà junho <strong>de</strong> 1956; em junho <strong>de</strong> 1952 passou a ser exibida diurnamente na TV<br />
CBS (simultaneamente ä transmissÇo pela rádio da emissora); e em 18 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009 exibiu seu ëltimo<br />
capÉtulo. Ao longo <strong>de</strong>stes 72 anos, mais <strong>de</strong> 15.700 episÑdios foram ao ar. Atores foram substituÉdos, personagens<br />
foram envelhecendo e a trama foi ganhando diferentes contornos para se a<strong>de</strong>quar äs transformaÅâes vividas pela<br />
audiÖncia, inicialmente constituÉda apenas por donas-<strong>de</strong>-casa. Ver e<br />
tambàm .<br />
86 Ressalve-se que as primeiras telenovelas brasileiras nÇo eram exibidas diariamente (sÑ em 1963 foi ao ar a<br />
primeira novela diária, “2-54 99 Ocupado”, <strong>de</strong> Dulce Santucci, na TV Excelsior) e duravam nÇo mais que quatro<br />
ou seis semanas. Mas, a partir <strong>de</strong> 1963, o formato que tem sido adotado no paÉs consiste em 50 minutos <strong>de</strong> drama<br />
veiculado durante seis dias por semana por um perÉodo <strong>de</strong> oito a <strong>de</strong>z meses.<br />
87 ARAüJO, 1983, página nÇo disponÉvel.<br />
46
originais da consagrada autora exilada cubana GlÑria Magadan (inicialmente contratada pela<br />
TV Tupi e, ao final <strong>de</strong> 1965, pela TV Globo), sem qualquer compromisso com a realida<strong>de</strong><br />
nacional e impregnados do estilo “<strong>de</strong>sgraÅa pouca à bobagem”. Magadan, exÉmia arquiteta do<br />
folhetim latinoamericano, <strong>de</strong>fendia a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o brasileiro à um povo muito pouco<br />
romêntico, indiferente äs tramas dramáticas, e por isso suas novelas nÇo tratavam da realida<strong>de</strong><br />
local: preferia alimentá-lo <strong>de</strong> melodrama e romantismo, ambientando suas tramas em<br />
localida<strong>de</strong>s distantes do Brasil, como a Espanha, a Rëssia e o Oriente Màdio 88 .<br />
A partir <strong>de</strong> 1966, autores brasileiros como Ivani Ribeiro e Raimundo Lopes comeÅam<br />
a introduzir narrativas ambientadas em cenário local, histÑrias como “Almas <strong>de</strong> Pedra” (1966,<br />
TV Excelsior) ou “Re<strong>de</strong>nÅÇo” (1966-1968, TV Excelsior). Nesta àpoca, embora o universo<br />
fantasioso <strong>de</strong> Magadan ainda fosse marcante, a opÅÇo <strong>de</strong> alguns autores pelos temas nacionais<br />
se por um lado contribuÉa para a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo do pëblico com o “projeto mo<strong>de</strong>rnizante do<br />
‘milagre brasileiro’” 89 , por outro dava inÉcio a alguns embates com o regime militar: por<br />
discutir problemas polÉticos, “A ponte dos suspiros”, novela <strong>de</strong> 1969 exibida äs 19 horas pela<br />
TV Globo e escrita por Dias Gomes sob o pseudònimo <strong>de</strong> Stela Cal<strong>de</strong>rÑn, acabou censurada e<br />
con<strong>de</strong>nada a ser exibida mais tar<strong>de</strong>, obrigando a emissora a <strong>de</strong>stinar o horário das 22 horas<br />
para telenovelas “mais experimentais” (cabe <strong>de</strong>stacar que a abordagem <strong>de</strong> temas consi<strong>de</strong>rados<br />
<strong>de</strong>licados para o momento em “A ponte dos suspiros” sÑ foi possÉvel graÅas a uma guinada<br />
radical na trama introduzida pelo autor logo apÑs a <strong>de</strong>missÇo da entÇo supervisora GlÑria<br />
Magadan). A patrulha da censura aos textos da teledramaturgia exigiu prudÖncia: sutileza e<br />
emprego <strong>de</strong> metáforas foram as armas <strong>de</strong> autores que nÇo se contentavam apenas em ambientar<br />
sua trama no Brasil. A partir <strong>de</strong> 1970, a chamada “dramaturgia do regime”, que produziu tramas<br />
para os horários anteriores ao das 22 horas, passou a enfatizar problemas existenciais apoiando-<br />
se no chamado “dramalhÇo” como forma <strong>de</strong> evitar confrontos com a ditadura.<br />
Expoente <strong>de</strong>sta vertente catártica, Janete Clair, que havia assessorado Magadan e<br />
<strong>de</strong>spertado o ciëme da supervisora com seu talento, passou a assumir, soberana, o processo <strong>de</strong><br />
nacionalizaÅÇo das telenovelas no horário das 20 horas, contribuindo para a conquista da<br />
li<strong>de</strong>ranÅa da TV Globo junto a audiÖncia e para o estabelecimento <strong>de</strong> um padrÇo nacional <strong>de</strong><br />
telenovelas. Segundo Muniz Sodrà 90 , foi durante este perÉodo que teve inÉcio a cobranÅa da<br />
intelectualida<strong>de</strong> brasileira sobre o papel educativo e a funÅÇo cultural da televisÇo como meio<br />
88 PIQUEIRA, 2008, disponÉvel em:<br />
, p. 2. Acesso em 6 nov. 2009.<br />
89 COSTA, 2000, p. 71.<br />
90 SODRï, 1984, p. 110.<br />
47
<strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa. Tal pressÇo teria <strong>de</strong>terminado uma nova orientaÅÇo no estilo da<br />
produÅÇo das telenovelas: a televisÇo abandonava o velho mo<strong>de</strong>lo mexicano-argentino<br />
melodramático e retomava a linha <strong>de</strong> caracterizaÅâes culturais brasileiras, tendo ä frente a TV<br />
Tupi como forte concorrente äs produÅâes da TV Globo. As telenovelas “Beto Rockfeller”<br />
(1968/69, TV Tupi), <strong>de</strong> Bráulio Pedroso, e “Assim na Terra como no Càu” (1970/71, TV<br />
Globo), <strong>de</strong> Dias Gomes, foram os marcos <strong>de</strong>sta revoluÅÇo. Como diz Sodrà, a primeira,<br />
especialmente, inaugurou a telenovela enquanto gÖnero especificamente televisivo e <strong>de</strong>u<br />
inÉcio ao know-how brasileiro na produÅÇo do gÖnero.<br />
A partir <strong>de</strong> 1975, <strong>de</strong> modo a acomodar as exigÖncias da censura e a nova Önfase na<br />
abordagem nacional <strong>de</strong> temas, a telenovela soube encontrar porto seguro na literatura<br />
nacional: em diferentes horários, o gÖnero explorou com maestria os romances <strong>de</strong> autores<br />
brasileiros como Jorge Amado, Martins Pena, Josà <strong>de</strong> Alencar, Joaquim Manoel <strong>de</strong> Macedo e<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, garantindo uma resposta positiva tanto dos censores como do pëblico. ï<br />
preciso <strong>de</strong>stacar que um pouco antes disso, ainda em plena vigÖncia do dramalhÇo, alguns<br />
autores nacionais <strong>de</strong> renome, muitos <strong>de</strong>les vindos do teatro, conseguiram, como diz Lauro<br />
Càsar Muniz 91 , emplacar “produtos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> na TV”, especialmente no horário mais<br />
tardio (horário nobre e faixa das 22 horas). Segundo ele, a teledramaturgia ofereceu “textos<br />
primorosos”, como “O Bem-Amado” (<strong>de</strong> Dias Gomes, em 1973), “O Rebu” (<strong>de</strong> Bráulio<br />
Pedroso, em 1974), “Escalada” (do prÑprio Lauro Càsar Muniz, em 1975), “Pecado Capital”<br />
(<strong>de</strong> Janete Clair, em 1975), “Gabriela” e “Nina” (ambas <strong>de</strong> Walter George Durst, a primeira<br />
exibida em 1975 e a segunda, em 1977). Já em 1979, como diz Dias Gomes, a sëbita<br />
interrupÅÇo da censura permitiu o abandono das metáforas e, ao mesmo tempo, instaurou um<br />
“estado <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> no processo criativo dos autores nacionais”, levando as telenovelas a<br />
enfrentar duras crÉticas e discussâes antecipando o fim do gÖnero 92 . Nos anos 1980, chegou-se<br />
a <strong>de</strong>cretar que a telenovela estava com os dias contados no Brasil e que o gÖnero seria logo<br />
substituÉdo por formatos mais curtos e mo<strong>de</strong>rnos.<br />
Neste contexto, a estreia <strong>de</strong> “Roque Santeiro” em junho <strong>de</strong> 1985, <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
ter tido sua produÅÇo abortada pela censura, foi recebida como um “milagre”: sua narrativa<br />
carregada <strong>de</strong> humor, <strong>de</strong> crÉtica social e <strong>de</strong> crÉtica polÉtica revigorou o gÖnero, trazendo <strong>de</strong><br />
volta ä mesa <strong>de</strong> jantar dos brasileiros um Brasil rural ameaÅado pelo progresso, pelo<br />
coronelismo e pela dificulda<strong>de</strong> da Igreja CatÑlica em acomodar sua vertente progressista no<br />
91 JACINTHO, disponÉvel em:<br />
, <strong>de</strong> 25/05/03. Acesso em 28 set. 2008.<br />
92 “As telenovelas pe<strong>de</strong>m socorro”. Folha <strong>de</strong> S. Paulo, 1û <strong>de</strong> abril, 1985.<br />
48
universo dos exploradores da fà. A extraordinária popularida<strong>de</strong> alcanÅada pela trama das 20<br />
horas (o IBOPE chegou a registrar cem por cento <strong>de</strong> audiÖncia!) estava calcada na mesma<br />
estratàgia que fizera <strong>de</strong> “Beto Rockfeller” um marco na televisÇo brasileira: a assim chamada<br />
“brasilida<strong>de</strong>”. Ao procurar eliminar qualquer caracterÉstica que pu<strong>de</strong>sse expressar uma cultura<br />
importada e ao investir em uma linguagem que refletisse a cultura brasileira (na performance<br />
dramática dos atores, no estilo da narrativa, no comportamento das personagens, na<br />
cenografia, na parÑdia aos fatos reais), “Roque Santeiro” investiu nos traÅos <strong>de</strong> localida<strong>de</strong><br />
para garantir i<strong>de</strong>ntificaÅÇo. è receita básica <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”, Dias Gomes adicionou, a tÉtulo<br />
<strong>de</strong> promover entretenimento em larga escala, doses generosas <strong>de</strong> fantasia e realismo mágico,<br />
renovando no pëblico o gosto pela viagem possÉvel ao mundo da ficÅÇo, e oferecendo o<br />
humor com distanciamento crÉtico como substituto ao drama catártico. Neste entre-lugar on<strong>de</strong><br />
repousa Asa Branca (a cida<strong>de</strong> fictÉcia da novela) e por on<strong>de</strong> passeiam Santinhas e lobisomens,<br />
atores e prostitutas, padres e coronàis, “Roque Santeiro” restabelece o novo na telenovela<br />
brasileira e abre caminho para mais um longo capÉtulo na histÑria do gÖnero no paÉs.<br />
“Pantanal”, <strong>de</strong> Benedito Ruy Barbosa, exibida em 1990 pela TV Manchete, <strong>de</strong>stacou-<br />
se nesta nova fase da telenovela brasileira pela trama rural simples com Önfase na cultura<br />
popular e no folclore, pelo ritmo lento e contemplativo, e pela elevaÅÇo da natureza ä<br />
condiÅÇo <strong>de</strong> personagem. “O Clone” (2001/2002, TV Globo), <strong>de</strong> Gloria Perez, foi outro<br />
marco da teledramaturgia brasileira já em sua fase industrial: diferente do universo ficcional<br />
da maioria das produÅâes nacionais, a narrativa resgatou com forte apelo popular o<br />
melodrama folhetinesco, combinando peripàcias resultantes dos (<strong>de</strong>s)encontros culturais com<br />
merchandising 93 social, discussÇo <strong>de</strong> temas cientÉficos e fantasia.<br />
3.5 O PODER DA OBRA ABERTA<br />
Apesar da alar<strong>de</strong>ada queda em seus Éndices <strong>de</strong> audiÖncia, fruto da concorrÖncia com as<br />
novas mÉdias (internet, DVD e TV a cabo) 94 , o nëmero <strong>de</strong> domicÉlios brasileiros sintonizados<br />
93 Embora o termo merchandising social tenha se cristalizado como uma marca <strong>de</strong> Gloria Perez, o uso da palavra<br />
merchandising nÇo me parece apropriado: sugere uma ferramenta <strong>de</strong> marketing quando a autora já <strong>de</strong>monstrou,<br />
<strong>de</strong>ntro e fora <strong>de</strong> suas tramas, seu compromisso com as campanhas que promove. Ao que parece, as novelas à que<br />
servem <strong>de</strong> veÉculo para a divulgaÅÇo <strong>de</strong> suas campanhas, e nÇo o contrário.<br />
94 De acordo com Renata Pallottini, a queda na audiÖncia das novelas globais tem sido registrada há cerca <strong>de</strong> 11<br />
anos e coinci<strong>de</strong> com a expansÇo da TV paga e da internet resi<strong>de</strong>ncial. “Se nos anos 1990 era comum as novelas<br />
das oito marcarem 60 pontos, no inÉcio da dàcada <strong>de</strong> 2000, elas passaram a fazer 50 pontos. Agora, já à um alÉvio<br />
para a emissora quando uma novela tem 40 pontos <strong>de</strong> audiÖncia.” PALLOTTINI, In: “AudiÖncia das telenovelas<br />
49
nos dramas seriados ainda à prova contun<strong>de</strong>nte do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> comunicaÅÇo das histÑrias<br />
contadas em fatias seriadas pela televisÇo. Especialmente em se tratando das tramas exibidas<br />
no horário nobre da TV Globo.<br />
Mesmo consi<strong>de</strong>rando que as diferentes metodologias empregadas na contabilizaÅÇo da<br />
audiÖncia pelo IBOPE ao longo do tempo dificultam a comparaÅÇo entre os Éndices das<br />
telenovelas (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1991/92, por exemplo, a audiÖncia passou a ser medida em tempo real),<br />
nÇo se po<strong>de</strong> discutir a magnitu<strong>de</strong> da penetraÅÇo das telenovelas no Brasil. Quatro momentos<br />
distintos dÇo a medida da forÅa <strong>de</strong> sua narrativida<strong>de</strong>: “sabe-se, por exemplo, que um capÉtulo<br />
<strong>de</strong> “IrmÇos Coragem”, <strong>de</strong> Janete Clair, foi mais visto que a vitÑria do Brasil sobre a Itália na<br />
final da Copa do Mundo <strong>de</strong> 1970, um dia antes” 95 , diz Renata Pallottini, pesquisadora ligada<br />
ao Nëcleo <strong>de</strong> Pesquisa em Telenovela da USP; “Roque Santeiro”, <strong>de</strong> Dias Gomes, exibida<br />
entre 1985 e 1986, chegou a alcanÅar cem por cento <strong>de</strong> audiÖncia; “O Clone”, <strong>de</strong> Gloria Perez,<br />
exibida entre 2001 e 2002, foi consi<strong>de</strong>rada a novela <strong>de</strong> “maior audiÖncia global dos ëltimos<br />
anos, alcanÅando, em màdia, 47 pontos no IBOPE, o que correspon<strong>de</strong> a mais <strong>de</strong> 2 milhâes <strong>de</strong><br />
TVs ligadas na Gran<strong>de</strong> SÇo Paulo”, sendo que seu ëltimo capÉtulo alcanÅou “a incrÉvel marca<br />
<strong>de</strong> 62 pontos màdios <strong>de</strong> audiÖncia, cerca <strong>de</strong> 3 milhâes <strong>de</strong> TVs ligadas em SÇo Paulo), com<br />
pico <strong>de</strong> 68” 96 ; e “Caminho das índias”, tambàm <strong>de</strong> Gloria Perez, atingiu em seu ëltimo<br />
capÉtulo uma màdia <strong>de</strong> 79% (com picos <strong>de</strong> 81%) <strong>de</strong> share, ou seja, <strong>de</strong> porcentagem dos<br />
aparelhos ligados que assistiam a novela, e 55 pontos (com picos <strong>de</strong> 59) em SÇo Paulo, o que<br />
equivale a mais <strong>de</strong> trÖs milhâes <strong>de</strong> domicÉlios (cada ponto equivale a cerca <strong>de</strong> 56.000<br />
domicÉlios) na cida<strong>de</strong> sintonizados na trama. Isso sem contar o nëmero <strong>de</strong> acessos pela<br />
internet, on<strong>de</strong> nÇo sÑ se podia assistir aos capÉtulos como obter informaÅâes sobre os rumos<br />
do <strong>de</strong>sfecho: sÑ no dia 9 <strong>de</strong> setembro, dois dias antes do final <strong>de</strong> “Caminhos”, foram<br />
registrados 2.757.183 acessos! O ëltimo capÉtulo da trama registrou ainda um tipo curioso <strong>de</strong><br />
superaÅÇo <strong>de</strong> Éndices: o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Economia <strong>de</strong> O Globo trazia, no dia 16 <strong>de</strong> setembro, a<br />
informaÅÇo <strong>de</strong> que a audiÖncia recor<strong>de</strong> <strong>de</strong> “Caminho das índias” tinha alterado atà a curva do<br />
consumo <strong>de</strong> energia do paÉs, configurando um fenòmeno que ocorre sempre que o Brasil<br />
interrompe a rotina e para em frente da TV, como nos finais <strong>de</strong> Copa do Mundo e, em menor<br />
intensida<strong>de</strong>, nos finais <strong>de</strong> novela. Segundo o jornal, “nos oito minutos seguintes ä <strong>de</strong>spedida<br />
na Globo”, disponÉvel em: ,<br />
<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2008. Acesso em 14 jul. 2009.<br />
95 PALLOTTINI, In: “AudiÖncia das telenovelas na Globo”, disponÉvel em:<br />
,<br />
<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2008. Acesso em 14 jul. 2009.<br />
96 “ConheÅa os sucessos e fracassos das telenovelas da Globo”, 16 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2003, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 14 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009.<br />
50
<strong>de</strong> Maya e Raj”, o consumo <strong>de</strong> energia do paÉs <strong>de</strong>u um saldo <strong>de</strong> 4.200 MW: “ï como se todo<br />
o Gran<strong>de</strong> Rio se acen<strong>de</strong>sse ao mesmo tempo” 97 .<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do universo ficcional e do estilo narrativo do teledramaturgo, e a<br />
<strong>de</strong>speito das concessâes que cada autor venha a fazer aos <strong>de</strong>sejos da audiÖncia, aos interesses<br />
econòmicos da emissora e do anunciante, ou aos caprichos da socieda<strong>de</strong>, o fato à que a<br />
telenovela brasileira, em pleno sàculo XXI, ainda paralisa o paÉs com suas histÑrias.<br />
No inÉcio <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009, as tevÖs Globo, SBT e Record exibiam, juntas, sete<br />
telenovelas (uma a menos que em 2006) em diferentes horários (“MalhaÅÇo”, “ParaÉso”,<br />
“Caras e Bocas”, “Caminho das índias” 98 , “Ven<strong>de</strong>-se um vàu <strong>de</strong> noiva”, “Bela, a feia” e<br />
“Po<strong>de</strong>r paralelo”, quatro <strong>de</strong>las em horário nobre, sustentando a gra<strong>de</strong> da programaÅÇo. Para<br />
um gÖnero ameaÅado <strong>de</strong> morte por suposto esgotamento do folhetim, o nëmero <strong>de</strong> produÅâes<br />
em exibiÅÇo impressiona. NÇo apenas a quantida<strong>de</strong> impressiona, como pontuou o crÉtico <strong>de</strong><br />
cinema Ricardo Calil em 2006, “mas tambàm o fato <strong>de</strong> que algumas <strong>de</strong>las vÖm batendo<br />
recor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> audiÖncia para seus horários ou emissoras, como ‘Páginas da vida’, a [entÇo]<br />
recàm-terminada ‘Cobras & lagartos’ e ‘Vidas opostas’ (maior IBOPE para uma estràia na<br />
Record)” 99 . Alàm da quantida<strong>de</strong> e da popularida<strong>de</strong> das narrativas da teledramaturgia brasileira<br />
registradas naquele ano, Calil <strong>de</strong>stacava ainda a ambiÅÇo das produÅâes, especialmente em<br />
emissoras sem tradiÅÇo <strong>de</strong> telenovelas como a Ban<strong>de</strong>irantes e a Record. Sabe-se que o màtodo<br />
<strong>de</strong> aferiÅÇo <strong>de</strong> audiÖncia nÇo à o mesmo da àpoca <strong>de</strong> ouro das telenovelas e que hoje a<br />
competiÅÇo das mÉdias eletrònicas pela atenÅÇo do pëblico dispersou sensivelmente o outrora<br />
cativo telespectador <strong>de</strong> drama seriado, mas se registra ainda um investimento maciÅo no setor,<br />
investimento certamente calcado na gran<strong>de</strong> penetraÅÇo do produto no mercado.<br />
Como entÇo tais evidÖncias da saë<strong>de</strong> das telenovelas convivem com o diagnÑstico <strong>de</strong> que<br />
elas estariam morrendo por saturaÅÇo do mo<strong>de</strong>lo? Embora tenha um dia chegado a concordar com<br />
Pignatari em suas previsâes apocalÉpticas para o gÖnero, Ester Hamburger hoje reconhece que “ï<br />
incrÉvel que, em um mundo com tantas opÅâes, como a internet e a TV a cabo, a novela ainda<br />
ocupe espaÅo tÇo gran<strong>de</strong> na vida nacional. E nÇo há sinais <strong>de</strong> que isso irá mudar tÇo cedo” 100 .<br />
Uma das principais razâes que explicam a resistÖncia da telenovela no Brasil, segundo ela, à o<br />
fato <strong>de</strong> seu formato permitir uma a<strong>de</strong>quaÅÇo <strong>de</strong> seu conteëdo ao pëblico:<br />
97 “Mais um recor<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caminho: consumo <strong>de</strong> energia”, in “De tudo um pouco”, disponÉvel em:<br />
. Postagem <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009. Acesso em 16 set. 2009.<br />
98 A novela “Viver a vida”, <strong>de</strong> Manoel Carlos, estreou em 14 <strong>de</strong> setembro.<br />
99 CALIL, disponÉvel em: . Acesso em 16 jul. 2009.<br />
100 HAMBURGER apud CALIL, loc. cit.<br />
51
Como os folhetins <strong>de</strong> jornal do sàculo 19 da qual <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>, a novela po<strong>de</strong> se moldar<br />
<strong>de</strong> acordo com a resposta do pëblico e po<strong>de</strong> fazer uma crònica muito imediata <strong>de</strong> seu<br />
tempo. O final <strong>de</strong> ‘Cobras & Lagartos’, em que Foguinho abre uma barraquinha <strong>de</strong><br />
profiteroles e cidra, à um comentário muito preciso sobre o aumento do consumo na<br />
classe baixa. Nesse sentido, a novela à um formato proto-interativo. 101<br />
Esta sintonia entre o conteëdo abordado e o gosto do pëblico, resultante da natureza da<br />
telenovela como obra aberta, tem se revelado tanto mais apurada quanto mais sofisticados e<br />
complexos se tornam os instrumentos <strong>de</strong> aferiÅÇo da pesquisa <strong>de</strong> opiniÇo. Sendo essa narrativa<br />
construÉda ao longo da exibiÅÇo da ficÅÇo televisiva seriada, seu <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>sfecho<br />
sofrem influÖncias dos acontecimentos reais, do comportamento e da opiniÇo da audiÖncia<br />
(apurados em pesquisas permanentes e em entrevistas com grupos <strong>de</strong> discussÇo), dos valores<br />
da socieda<strong>de</strong> e atà mesmo do <strong>de</strong>sempenho dos atores. ï precisamente por esta razÇo que a<br />
telenovela muitas vezes ten<strong>de</strong> a ser tomada nÇo como um texto <strong>de</strong> autor, mas como uma<br />
“bricolagem estàtica” 102 , um conjunto hÉbrido <strong>de</strong> conexâes comerciais, sociais, morais, polÉticas<br />
e artÉsticas. Alci<strong>de</strong>s Nogueira, autor <strong>de</strong> 13 novelas da TV Globo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1984, concorda:<br />
Na televisÇo, como a novela à uma obra aberta, o texto está sujeito a interferÖncias do<br />
diretor, do ator, do cenÑgrafo, do diretor <strong>de</strong> arte, do iluminador, <strong>de</strong> todo mundo ─ e,<br />
mais ainda, ä gran<strong>de</strong> interferÖncia do pëblico. O pëblico, <strong>de</strong> certa forma, à autor <strong>de</strong><br />
novela. Ele acaba conduzindo a histÑria. Se ele nÇo está assimilando a trama, se nÇo<br />
está gostando do enredo, <strong>de</strong> um personagem, <strong>de</strong> um nëcleo, <strong>de</strong> uma situaÅÇo, vocÖ<br />
acaba embarcando na opiniÇo <strong>de</strong>le, porque a novela à um entretenimento lëdico, que<br />
envolve interativida<strong>de</strong>. 103<br />
Mesmo assim ─ e diferentemente do cinema, cuja “autoria” se concentra na figura do<br />
diretor ─, telenovela tem autor: à ele quem <strong>de</strong>lineia o perfil da obra e assume o controle sobre<br />
a narrativa (uma novela <strong>de</strong> Manoel Carlos em nada se parece com uma <strong>de</strong> Gilberto Braga,<br />
assim como as <strong>de</strong> Gloria Perez diferem radicalmente das <strong>de</strong> Benedito Ruy Barbosa). Sendo<br />
uma obra para a televisÇo, simultaneamente textual e imagàtica, a autoria do produto final<br />
teoricamente chega a ser compartilhada com o diretor, pois à a fina sintonia entre ele e quem<br />
escreve a histÑria que garante ä novela sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> em relaÅÇo ä imaginaÅÇo do criador.<br />
Segundo Manoel Carlos, autor <strong>de</strong> 17 telenovelas: “Quanto a novela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um script, ou<br />
seja, quando ela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser literatura ─ com ou sem aspas ─ e passa a ser imagem, ela ganha<br />
a autoria do diretor. Trata-se <strong>de</strong> uma co-autoria” 104 .<br />
101 HAMBURGER apud. CALIL, disponÉvel em: . Acesso em<br />
16 jul. 2009.<br />
102 SODRï, 1999, p. 157.<br />
103 MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, pp. 135-136.<br />
104 MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 102.<br />
52
Embora alguns autores cheguem a afirmar que o diretor seja um co-autor, na prática<br />
raramente ele à lembrado pelo pëblico. O fato <strong>de</strong> o autor eventualmente trabalhar com<br />
colaboradores (que fazem as escaletas 105 , escrevem alguns diálogos ou mesmo se<br />
responsabilizam por certos nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo) nÇo diminui sua assinatura autoral. Eles<br />
reconhecem a importência da parceria (Gilberto Braga, por exemplo, admite que nÇo gosta <strong>de</strong><br />
fazer escaleta e que sempre apela para os colaboradores quando tem crianÅa em cena: “Sou<br />
pàssimo para criar histÑria para crianÅa” 106 ), mas muitos assumem para si o texto final como<br />
forma <strong>de</strong> garantir uma unida<strong>de</strong> narrativa e estilÉstica ─ prática que reforÅa a tese <strong>de</strong> que<br />
telenovela à obra <strong>de</strong> autor. Atà porque, por mais que a imagem seja fundamental na construÅÇo<br />
do po<strong>de</strong>r comunicativo <strong>de</strong> uma telenovela, à o texto que dá suporte ä sua existÖncia: “A novela<br />
comeÅa a partir <strong>de</strong> um bom argumento e da maneira como vocÖ estrutura esse argumento”;<br />
“Sem um bom argumento, nÇo se faz nada”, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Miguel Falabela 107 , autor <strong>de</strong> trÖs<br />
telenovelas. Como diz Aguinaldo Silva, autor <strong>de</strong> 13 folhetins televisivos, uma das<br />
caracterÉsticas mais marcantes da telenovela à justamente a forÅa do texto: “Novela à diálogo o<br />
tempo inteiro. Há poucas cenas <strong>de</strong> aÅÇo pura” 108 . ï por isso que Manoel Carlos, mesmo<br />
trabalhando com colaboradores e reconhecendo diplomaticamente a co-autoria do diretor, à<br />
categÑrico: “Eu sou o autor, sou o responsável por tudo que está sendo dito” 109 .<br />
Tendo o eixo narrativo em suas mÇos, o autor sabe que sua trama tem <strong>de</strong> agradar ä<br />
emissora e ao pëblico e que, eventualmente, terá <strong>de</strong> fazer concessâes aos interesses externos e<br />
ä preferÖncia da audiÖncia. As alteraÅâes que se fizerem necessárias, no entanto, nÇo <strong>de</strong>vem<br />
trair a sinopse, muito embora se saiba que muitos finais <strong>de</strong> novela sÇo modificados em funÅÇo<br />
da preferÖncia do pëblico. Em 1967, por exemplo, o expediente <strong>de</strong> Janete Clair, chamada äs<br />
pressas pela entÇo supervisora GlÑria Magadan para salvar a novela “Anastácia, a mulher sem<br />
<strong>de</strong>stino”, escrita por Emiliano QueirÑz, tornou-se emblemático <strong>de</strong> quÇo drástica po<strong>de</strong> ser uma<br />
intervenÅÇo quando os Éndices <strong>de</strong> audiÖncia <strong>de</strong>spencam sem parar. Tantas eram as<br />
personagens criadas pelo autor no <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> melhorar a trama, que Janete nÇo teve outro<br />
recurso senÇo comeÅar do zero: um terremoto matou gran<strong>de</strong> parte das personagens, inclusive<br />
(por <strong>de</strong>scuido!) aquele que sabia o segredo central da histÑria, obrigando a novela a dar um<br />
salto <strong>de</strong> vinte anos na aÅÇo, numa retomada que contava apenas com quatro personagens.<br />
Mais recentemente, uma explosÇo num shopping em “Torre <strong>de</strong> Babel”, novela <strong>de</strong> SÉlvio <strong>de</strong><br />
105 Escaleta à a relaÅÇo e o enca<strong>de</strong>amento das cenas <strong>de</strong> um capÉtulo.<br />
106 BRAGA apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, p. 414.<br />
107 FALABELA apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 210.<br />
108 SILVA apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, p. 79.<br />
109 CARLOS apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 102.<br />
53
Abreu, exibida em 1999, foi um recurso dramático que, embora previsto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o roteiro<br />
original, revelou-se oportuno quando o pëblico, a imprensa e a Igreja comeÅaram a se<br />
manifestar contra a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o autor exibir cenas <strong>de</strong> sexo entre duas personagens<br />
femininas. Embora a trama já apresentasse um casal <strong>de</strong> làsbicas (segundo o autor, muito bem<br />
aceito pelos espectadores), a veiculaÅÇo na imprensa <strong>de</strong> que uma <strong>de</strong>las morreria (o que já<br />
estava previsto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sinopse), <strong>de</strong> que a outra teria sua amiza<strong>de</strong> com uma terceira mulher<br />
i<strong>de</strong>ntificada como um caso <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> que haveria cenas <strong>de</strong> sexo entre elas (informaÅÇo<br />
inverÉdica, <strong>de</strong> acordo com o autor) e <strong>de</strong> que estas cenas envolveriam as personagens das<br />
atrizes Silvia Pfeifer e GlÑria Menezes (o pëblico nÇo tolerou o boato <strong>de</strong> que a consagrada<br />
atriz namoraria outra mulher, diz o autor), nÇo <strong>de</strong>ixou a Silvio <strong>de</strong> Abreu outra saÉda senÇo<br />
fazer com que o primeiro casal <strong>de</strong> homossexuais morresse na explosÇo. Se a manifestaÅÇo da<br />
audiÖncia forÅou a alteraÅÇo na trama, neste caso, segundo ele, ainda foi possÉvel preservar a<br />
mensagem original <strong>de</strong> mostrar o preconceito contra o homossexualismo.<br />
A morte <strong>de</strong> Rafaela e Leila, as duas unidas, foi a melhor soluÅÇo. Ao sacrificá-las<br />
juntas, clamando contra o preconceito, como foi feito na cena, nÇo traÉ minha i<strong>de</strong>ia,<br />
respeitei a escolha sexual <strong>de</strong>las e fiz com que as personagens virassem dois sÉmbolos<br />
da intolerência contra o homossexualismo feminino na televisÇo. 110<br />
Gloria Perez 111 <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a importência <strong>de</strong> se “ler” a audiÖncia, mas adverte que o autor,<br />
no entanto, nÇo po<strong>de</strong> se ren<strong>de</strong>r äs soluÅâes oferecidas pelo pëblico:<br />
Quando vocÖ escreve uma cena, está, ao mesmo tempo, construindo uma emoÅÇo em<br />
quem assiste. Se nÇo emocionou, eu mudo a forma <strong>de</strong> contar. NÇo adianta mudar a<br />
histÑria, porque, se ela continuar sendo contada <strong>de</strong> um jeito pouco atraente, nÇo vai<br />
interessar do mesmo jeito. EntÇo, nÇo à que o pëblico <strong>de</strong>termine o caminhar da<br />
histÑria, nem ele quer isso. O indivÉduo à criativo; as plateias, nÇo. As plateias pensam<br />
nas soluÅâes que já viram, e, quando a trama segue o caminho que elas querem, acaba<br />
sendo tachada <strong>de</strong> previsÉvel e chata. O pëblico gosta <strong>de</strong> ser surpreendido, faz parte do<br />
jogo, e cabe ao autor surpreendÖ-lo.<br />
Na obra aberta, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auscultar permanentemente os humores do pëblico e<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar com precisÇo capilar aquilo que o <strong>de</strong>sagrada permite ao autor e ä audiÖncia uma<br />
experiÖncia <strong>de</strong> interativida<strong>de</strong> que inexiste em outras obras. De um lado, o teledramaturgo<br />
percebe os ajustes que se fazem necessários para o sucesso da trama; <strong>de</strong> outro, a plateia<br />
percebe seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> participaÅÇo e fica gratificada por exercer seu direito <strong>de</strong> opinar e<br />
interferir <strong>de</strong>mocraticamente. Como diz Artur da Távola, “Se por um lado limita o produto<br />
artÉstico a sua eficácia mercadolÑgica, por outro <strong>de</strong>mocratiza a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicaÅÇo,<br />
110 ABREU apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 315.<br />
111 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, pp. 480-481.<br />
54
porque sai do amanho exclusivo do artista, ausculta o universo conceitual do pëblico e lhe<br />
obe<strong>de</strong>ce” 112 . Seja silenciosamente atravàs dos Éndices <strong>de</strong> audiÖncia, seja em entrevistas nos<br />
grupos <strong>de</strong> discussÇo, seja atravàs <strong>de</strong> carta dirigida ä emissora ou ao autor, o espectador<br />
acredita que será ouvido. Em carta dirigida ä autora da novela “Amàrica”, Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s<br />
Oliveira, uma assÉdua espectadora, escreve: “Eu te imploro, Gloria Perez, <strong>de</strong>ixa este casal (Sol<br />
e Ed) terminar junto no final. Eu peÅo atà que <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>re uma carta que man<strong>de</strong>i mais no<br />
princÉpio da novela [...] pedindo para a Sol ficar com o TiÇo” 113 .<br />
Como a telenovela à escrita em fatias, sua unida<strong>de</strong> à o capÉtulo e nÇo a obra ─ esta,<br />
como diz Távola, quando se completa, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir, <strong>de</strong>saparece! 114 SÑ se tem olhos para a<br />
novela seguinte. Na mÉdia, nem sequer o tÇo esperado ëltimo capÉtulo à comentado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
sua exibiÅÇo. No instantêneo e na fugacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada capÉtulo, o pëblico vai acompanhando a<br />
trama com a velocida<strong>de</strong> lenta da realida<strong>de</strong> que se pâe em cena a cada dia. Ele sabe que, entre<br />
uma fatia e outra, o <strong>de</strong>stino reserva surpresas äs personagens e à aÉ que se dispâe a colaborar<br />
com o autor. De sua parte, o dramaturgo, ao <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar inëmeras subtramas, <strong>de</strong>ixa espaÅo<br />
para mëltiplas e inesperadas reviravoltas. Como diz Falabela, o autor <strong>de</strong> novelas à um<br />
“blefador por natureza” 115 , alguàm que tem <strong>de</strong> ter sempre um ás ─ ou vários ases ─ na manga.<br />
Embora os teledramaturgos tenham controle sobre a histÑria que narram, nem sempre o<br />
mesmo ocorre em relaÅÇo aos <strong>de</strong>sdobramentos diários. Gloria Perez, por exemplo, ao explicar<br />
a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever uma novela a quatro mÇos (no caso, “Partido Alto”, com Agnaldo<br />
Silva) revela a relaÅÇo <strong>de</strong> cada autor com o todo e com as partes da telenovela: “Agnaldo<br />
precisava saber o que ia acontecer com os personagens, ter o mapa nas mÇos, e eu nÇo sei<br />
trabalhar assim. NÇo faÅo escaleta. Gosto quando <strong>de</strong>sligo o computador sem ter i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
como, no dia seguinte, vou solucionar o gancho que <strong>de</strong>ixei” 116 . “Diante do papel em branco,<br />
viajo. Vou sentindo a pulsaÅÇo, o ritmo das cenas” 117 , completa. Tal abertura para as<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criaÅÇo resgata o espÉrito do folhetim: a telenovela, embora seja escrita com<br />
a perspectiva <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sfecho, o longo tempo <strong>de</strong> duraÅÇo da trama permite que seja conduzida<br />
como uma “obra em progresso”, diferentemente das minissàries, por exemplo, cuja produÅÇo<br />
se dá a partir <strong>de</strong> um texto acabado. Como diz Gloria Perez,<br />
A novela à folhetim, uma histÑria pensada para ser contada em extensÇo, nÇo em<br />
profundida<strong>de</strong>. VocÖ precisa bolar uma trama que tenha muitas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
112<br />
TôVOLA, 1996, p. 8.<br />
113<br />
OLIVEIRA, in: Revista da TV, O Globo, 25 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2005, p. 22.<br />
114<br />
TôVOLA, 1996, p. 22.<br />
115<br />
FALABELA apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 210.<br />
116<br />
PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, p. 437.<br />
117 Ibi<strong>de</strong>m, p. 480.<br />
55
<strong>de</strong>sdobramento. ï uma obra aberta, nÇo se po<strong>de</strong> trabalhar seu conjunto. VocÖ nÇo a<br />
visualiza inteira, a nÇo ser <strong>de</strong>pois que ela saiu do ar. NÇo há tempo <strong>de</strong> polimento como<br />
na minissàrie. A arte do novelista está em pren<strong>de</strong>r a atenÅÇo do espectador <strong>de</strong> modo<br />
que ele volte no dia seguinte para assistir ao <strong>de</strong>sdobramento da histÑria. Sendo assim,<br />
cotidiana, a novela compete com muitas coisas ─ nÇo sÑ com o que as outras<br />
emissoras apresentam, mas com a prÑpria vida. ï uma visita que chega, o telefone que<br />
toca, alguàm que bate ä porta ou puxa uma conversa. VocÖ briga com isso o tempo<br />
inteiro. EntÇo, tem que lanÅar mÇo <strong>de</strong> apelos sensacionalistas para evitar que o pëblico<br />
se distraia e <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> prestar atenÅÇo no que vocÖ está contando. ï mais ou menos<br />
como contar uma histÑria comprida numa sala on<strong>de</strong> há pessoas <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s ─<br />
crianÅas, adolescentes, adultos, velhos. VocÖ tem que saber misturar temperos,<br />
sabores e cores que atraiam e prendam a atenÅÇo <strong>de</strong> todas aquelas pessoas <strong>de</strong><br />
interesses tÇo diversos. Já a minissàrie tem um pëblico diferente, com outra postura<br />
diante do programa. Nela, nÇo po<strong>de</strong>mos sacrificar a coerÖncia em prol do sensacional.<br />
O que na minissàrie seria um erro na novela à um acerto. 118<br />
Segundo Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral, escritora que tem seis novelas em seu currÉculo, mas<br />
que manifesta sua preferÖncia pelas obras em que há mais “tempo <strong>de</strong> polimento”, como as<br />
minissàries, os textos para o teatro e os romances, a diferenÅa entre a minissàrie e a novela “à<br />
mais ou menos a diferenÅa entre o artesanato e o produto industrializado” 119 . Isto porque a<br />
primeira ten<strong>de</strong> a ser mais bem cuidada, permitindo uma pesquisa mais aprofundada e um<br />
domÉnio sobre a completu<strong>de</strong> da obra; já a segunda à produzida em ritmo industrial: “os<br />
autores das novelas das oito escrevem 40 laudas por dia durante seis dias na semana” 120 .<br />
O volume da produÅÇo diária e a premÖncia com que os capÉtulos sÇo concebidos, se<br />
revelam o esquema industrial das telenovelas, mostram sobretudo a prepon<strong>de</strong>rência das fatias<br />
sobre a completu<strong>de</strong> da obra. Se a cada dia a sequÖncia <strong>de</strong> cenas <strong>de</strong>ve pren<strong>de</strong>r a atenÅÇo da<br />
audiÖncia para que ela nÇo mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> canal, os ganchos (pendÖncias) <strong>de</strong>ixados pelo autor ao longo<br />
do capÉtulo, o gancho da cena final, principalmente, tÖm a incumbÖncia <strong>de</strong> fisgar a curiosida<strong>de</strong> do<br />
espectador, fazendo-o <strong>de</strong>sejar voltar no dia seguinte. Depen<strong>de</strong>ndo do dia da semana em que o<br />
capÉtulo será exibido, a aÅÇo anda mais rapida ou lentamente: à preciso nÇo “queimar” revelaÅâes<br />
em dia <strong>de</strong> audiÖncia sabidamente mais baixa, como aos sábados, por exemplo. O tempo da<br />
narrativa, no entanto, à marcado nÇo somente pelo texto do autor como tambàm pelos recursos<br />
audiovisuais e cÖnicos: äs aÅâes e diálogos das personagens, juntam-se as imagens que,<br />
sublinhadas pela trilha sonora, indicam a ambiÖncia, a passagem <strong>de</strong> tempo, a mudanÅa <strong>de</strong> locaÅÇo,<br />
o estado psicolÑgico <strong>de</strong> quem está em cena, e juntam-se ainda as cenas em flashback evocadas<br />
como lembranÅas saudosas e projeÅâes da imaginaÅÇo das personagens, trechos das apresentaÅâes<br />
<strong>de</strong> mësica, teatro e cinema mencionadas na trama, e cenas complementares que nada acrescentam<br />
ä trama senÇo pelo fato <strong>de</strong> conferir-lhes colorido adicional.<br />
118 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, pp. 460-461.<br />
119 AMARAL apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 163.<br />
120 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit..<br />
56
A cada capÉtulo e ao longo da divisÇo da trama em capÉtulos, mais importante do que a<br />
histÑria que se tem a contar, à como se vai contar essa histÑria: à a narrativida<strong>de</strong> que constitui a<br />
forÅa da telenovela. Alàm da fina sintonia que a obra aberta mantàm com seu pëblico, o que faz<br />
o gÖnero resistir aos tempos, äs novas mÉdias e linguagens à a forma <strong>de</strong> contar a histÑria,<br />
construir as personagens, conduzir seus <strong>de</strong>stinos, entrelaÅar as tramas, dominar a curiosida<strong>de</strong> e<br />
as emoÅâes do pëblico e seduzi-lo com fatias <strong>de</strong> conflitos e intrigas em permanente pendÖncia.<br />
3.6 A NARRATIVIDADE<br />
Num paÉs como o Brasil, em que a palavra escrita encontra tÇo poucos leitores entre a<br />
massa <strong>de</strong> analfabetos, a telenovela se inscreve como a maior veiculadora <strong>de</strong> narrativas.<br />
Particularmente neste mundo <strong>de</strong> urgÖncias, <strong>de</strong> exposiÅÇo crua <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s ─ reais, virtuais,<br />
mediadas ou presenciais ─, o telespectador, ao <strong>de</strong>ixar-se levar pelos meandros <strong>de</strong> uma<br />
histÑria, pelas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> suas versâes, pelas nuances <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e pela magia do<br />
<strong>de</strong>svendamento dos acontecimentos futuros, parece querer resgatar em si uma condiÅÇo<br />
humana ancestral <strong>de</strong> apreensÇo cognitiva do mundo pelos mitos. (Atà mesmo o jornalismo e o<br />
filme documentário tÖm recorrido ä narrativida<strong>de</strong>: tudo tem <strong>de</strong> contar uma histÑria!) Na<br />
televisÇo, o folhetim alcanÅa ainda mais potÖncia com a dimensÇo imagàtica da narrativa e<br />
com o recurso <strong>de</strong> sublinhar a dramaticida<strong>de</strong> atravàs da intervenÅÇo da trilha sonora e dos<br />
efeitos <strong>de</strong> ediÅÇo. Mas, se por um lado a dramaticida<strong>de</strong> e o mergulho na imaginaÅÇo<br />
proporcionam o resgate do mito junto a um pëblico saturado pela hiper-realida<strong>de</strong> pÑs-<br />
mo<strong>de</strong>rna, por outro, o cruzamento da narrativa ficcional da telenovela com a realida<strong>de</strong><br />
jornalÉstica tem sido festejado como um tempero bem ao gosto da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia: o<br />
hibridismo estilÉstico que justapâe dialeticamente os opostos. Cada vez mais o que tem<br />
<strong>de</strong>stacado a telenovela brasileira no mercado internacional à o fato <strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> factual,<br />
matària-prima dos jornais, se interpâe no universo ficcional, numa interpenetraÅÇo <strong>de</strong> gÖneros<br />
que fundou a categoria “novela-verda<strong>de</strong>” 121 .<br />
Enquanto obra narrativa, a telenovela compartilha com o texto jornalÉstico e com o<br />
folhetim os mesmos elementos estruturais e estilÉsticos: parte dos questionamentos prÑprios<br />
do lead ─ quem?, que?, quando?, on<strong>de</strong>?, por que?. Tal motivaÅÇo, no entanto, quando<br />
submetida äs condicionantes do drama enquanto gÖnero literário, produz respostas cuja<br />
121 Samira Youssef Campe<strong>de</strong>lli classifica as telenovelas em “folhetim melodramático”, “folhetim exÑtico”,<br />
“telenovela alternativa”, que cria o clima psicolÑgico, “telenovela chanchada” e “novela-verda<strong>de</strong>”. In: CAMPE-<br />
DELLI, 1985.<br />
57
teatralida<strong>de</strong> mantàm a telenovela e o folhetim distantes do texto jornalÉstico (embora este<br />
tenha cada vez mais tentado explorar os recursos do drama para fixar a atenÅÇo do pëblico nos<br />
fatos que anuncia). Na telenovela como no folhetim impresso, um narrador onisciente,<br />
enquanto observador externo, narra na terceira pessoa uma sàrie <strong>de</strong> acontecimentos (enredo,<br />
<strong>de</strong>sdobrado em subtramas, com comeÅo, meio e fim, num <strong>de</strong>senrolar progressivo) que se<br />
apresentam atravàs da aÅÇo <strong>de</strong> personagens fictÉcios num tempo cronolÑgico (presente, mas<br />
repleto <strong>de</strong> flashbacks) e num espaÅo situado no entre-lugar da ficÅÇo (um mundo imaginário,<br />
criado, apesar das referÖncias ä realida<strong>de</strong>) que, mais que pano <strong>de</strong> fundo, se pâe a serviÅo da<br />
unida<strong>de</strong> estàtica, <strong>de</strong> uma visÇo artÉstica da vida. Na tensÇo entre o real e o imaginário, a<br />
telenovela se faz obra literária na medida em que “<strong>de</strong>srealiza o real concreto” e cria<br />
mimeticamente a realida<strong>de</strong>.<br />
Narrativa concebida para ser encenada e exibida segundo os cÑdigos televisivos, a<br />
telenovela, diferentemente do filme ou do romance, nÇo conta com a amplitu<strong>de</strong> da tela (que<br />
amplifica a forÅa da imagem em <strong>de</strong>trimento do texto e que favorece as cenas <strong>de</strong> aÅÇo) nem<br />
com o po<strong>de</strong>r evocativo e a perenida<strong>de</strong> das palavras impressas em papel (que estimula a<br />
imaginaÅÇo do leitor e permite a releitura, respectivamente). Nela, texto e imagem caminham<br />
juntos, o segundo dando vida e sublinhando o primeiro. O enquadramento mais fechado,<br />
exigÖncia da tela pequena, favorece a sequÖncia <strong>de</strong> diálogos e o foco nos rostos que falam. A<br />
velocida<strong>de</strong> dos cortes, prÑpria da mensagem televisiva; a alternência entre nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo,<br />
requisito da narrativa fatiada; e a intermitÖncia entre cenas dramáticas e còmicas, recurso para<br />
captar a atenÅÇo dispersa do pëblico <strong>de</strong> televisÇo ─ tais caracterÉsticas, se por um lado agitam<br />
em <strong>de</strong>masia com o objetivo <strong>de</strong> impedir a mudanÅa <strong>de</strong> canal, por outro impâem a urgÖncia e a<br />
fugacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma narrativa que nÇo po<strong>de</strong> ser retomada. DaÉ seu caráter reiterativo: texto,<br />
imagem e trilha sonora reiteram a todo tempo o que já foi dito, reforÅam uma i<strong>de</strong>ia, um traÅo<br />
da personalida<strong>de</strong> da personagem, uma passagem <strong>de</strong> seu passado, um laÅo <strong>de</strong> parentesco, um<br />
fato importante. ï preciso repetir sempre ao espectador que nÇo ouviu, que chegou atrasado,<br />
que já esqueceu, que à distraÉdo, que pegou a novela pelo meio. Embora hoje seja possÉvel<br />
pela Internet assistir novamente <strong>de</strong>terminadas cenas ou recuperar o capÉtulo perdido, para a<br />
gran<strong>de</strong> maioria da populaÅÇo, a exibiÅÇo <strong>de</strong> uma fatia da novela à ënica e irrecuperável, sem<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> releitura.<br />
Alàm da reiteraÅÇo, outros recursos concorrem para facilitar a captaÅÇo e o<br />
entendimento da histÑria. A linguagem simples e coloquial, as frases curtas e o uso <strong>de</strong> gÉrias<br />
tornam a trama palatável e enfática: segundo Artur da Távola, “ou o personagem ‘fala’ como<br />
58
o espectador ou este o rejeitará, e ä obra” 122 . A opÅÇo por temas codificados, personagens<br />
tipificados e narrativas romênticas impregnadas <strong>de</strong> realismo apela <strong>de</strong> forma simbÑlica,<br />
arquetÉpica, para os conflitos fundamentais do ser, para os estereÑtipos e para a<br />
emocionalida<strong>de</strong>, instrumentos cognitivos do homem. Atemporal e apolÉtica, a essÖncia da<br />
telenovela está ao alcance <strong>de</strong> qualquer um.<br />
Embora elaborada para funcionar como uma comunicaÅÇo <strong>de</strong> amplo espectro,<br />
atingindo diferentes segmentos da populaÅÇo, a narrativa da telenovela brasileira nÇo<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha <strong>de</strong> sua dimensÇo popular. Sabe que, para alàm do espectador analfabeto ou letrado,<br />
existe um pëblico expert em telenovela: a longa relaÅÇo da audiÖncia com a linguagem e o<br />
universo do folhetim televisivo exige da narrativa uma intrincada combinaÅÇo <strong>de</strong><br />
superficialida<strong>de</strong> e complexida<strong>de</strong>. A rejeiÅÇo do pëblico a personagens rasos, como vilâes e<br />
mocinhos construÉdos segundo as categorias mau-mau e bom-bom, sem nuances <strong>de</strong> caráter, à<br />
prova cabal <strong>de</strong> que nÇo há mais lugar para simplificaÅâes dramáticas. Se, por um lado, fatos e<br />
personagens <strong>de</strong>vem ser verossÉmeis, guardar semelhanÅas com a realida<strong>de</strong>, por outro, a trama<br />
nÇo po<strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r em realismos: enquanto entretenimento, a telenovela, revelando sua<br />
complexa alquimia entre ficÅÇo e realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve dar lugar ä fantasia e ao sensacional. Texto,<br />
direÅÇo <strong>de</strong> imagem, direÅÇo <strong>de</strong> arte, cenografia, sonoplastia e interpretaÅÇo <strong>de</strong>vem estar em<br />
fina sintonia <strong>de</strong> modo a materializar o que foi concebido pelo autor e permitir que a narrativa<br />
emocione a audiÖncia. A narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da combinaÅÇo <strong>de</strong> fatores que ultrapassam o<br />
roteiro: a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do ator ao modo <strong>de</strong> agir e falar da personagem, a plasticida<strong>de</strong> das<br />
imagens, a precisÇo dos cortes, a qualida<strong>de</strong> tàcnica <strong>de</strong> som e imagem, a a<strong>de</strong>quaÅÇo da trilha<br />
sonora, a concepÅÇo dos cenários e dos figurinos... Mais que verossÉmil, a narrativa tem <strong>de</strong> ser<br />
fiel ä verda<strong>de</strong> da cena.<br />
Por mais que o universo televisivo imponha novas dimensâes e <strong>de</strong>safios ä narrativa <strong>de</strong><br />
telenovela, a qualida<strong>de</strong> do folhetim eletrònico resi<strong>de</strong> precisamente no respeito ä sua matriz<br />
folhetinesca, no equilÉbrio dinêmico entre a verossimilhanÅa e o rocambolesco, o romêntico e<br />
o “<strong>de</strong>sgraÅa pouca à bobagem”, a crònica social e o “happy end”.<br />
3.7 UMA NARRATIVA POPULAR<br />
Nesta rápida viagem pelos pontos que marcaram a dramaturgia seriada <strong>de</strong> televisÇo no<br />
Brasil, nota-se que a a<strong>de</strong>sÇo maciÅa da audiÖncia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inÉcio (ou seja, a partir da<br />
122 TôVOLA, 1996, p. 18.<br />
59
popularizaÅÇo do aparelho televisor), a corrida <strong>de</strong> anunciantes em atrelar o nome da empresa<br />
ao programa <strong>de</strong> sucesso, e o <strong>de</strong>senvolvimento tecnolÑgico (aparecimento do vi<strong>de</strong>otape,<br />
portabilida<strong>de</strong> do equipamento e agilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong> ediÅÇo e transmissÇo <strong>de</strong> sinal <strong>de</strong> TV)<br />
impulsionaram a criaÅÇo <strong>de</strong> estàtica singular para a telenovela, a experimentaÅÇo <strong>de</strong> uma<br />
temática mais ousada e a ruptura com mo<strong>de</strong>los tradicionais norte-americanos e<br />
latinoamericanos.<br />
Embora os encontros e <strong>de</strong>sencontros amorosos, a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> secreta e a<br />
mobilida<strong>de</strong> social sejam temas recorrentes nas telenovelas brasileiras, a partir da dàcada <strong>de</strong><br />
1970, a crÉtica social comeÅou a ganhar espaÅo, com a introduÅÇo <strong>de</strong> temas polÖmicos como<br />
exploraÅÇo imobiliária, corrupÅÇo, coronelismo, drogas, preconceito racial, <strong>de</strong>semprego,<br />
barriga <strong>de</strong> aluguel e clonagem humana, libertando o folhetim televisivo do estilo dramalhÇo<br />
mexicano, cubano e argentino que serviu <strong>de</strong> inspiraÅÇo para as tramas brasileiras atà meta<strong>de</strong><br />
dos anos 1960. Mais que mero entretenimento, as telenovelas passaram a encerrar<br />
contun<strong>de</strong>nte crÉtica social e <strong>de</strong> costumes, apresentando i<strong>de</strong>ias prÑprias do Brasil mo<strong>de</strong>rno e<br />
industrial (oposiÅÇo <strong>de</strong> classe, <strong>de</strong> gÖnero e <strong>de</strong> meio ─ rural e urbano) e abordando questâes <strong>de</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong> social (como inclusÇo social, respeito aos idosos e cidadania).<br />
Atravàs do entrelaÅamento dos <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> personagens fictÉcios, pinceladas <strong>de</strong><br />
realida<strong>de</strong> ganhavam corpo na referÖncia a figuras pëblicas e a fatos cotidianos estampados nos<br />
jornais da vida real, fazendo da telenovela uma po<strong>de</strong>rosa crònica da atualida<strong>de</strong>. Alàm disso, a<br />
exploraÅÇo <strong>de</strong> valores caros ao <strong>de</strong>senvolvimento brasileiro e ä mo<strong>de</strong>rnizaÅÇo do paÉs (durante<br />
os anos que cobriram boa parte do perÉodo <strong>de</strong> ditadura militar no Brasil) e o investimento em<br />
tramas que evocassem as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia e liberda<strong>de</strong> (durante o perÉodo seguinte)<br />
permitiram a utilizaÅÇo da telenovela como forte instrumento <strong>de</strong> educaÅÇo cÉvica e moral.<br />
Como bem traduz Gloria Perez, “Se vocÖ faz um paÉs inteiro discutir com quem vai ficar a<br />
mocinha, tambàm po<strong>de</strong> fazer todo mundo discutir algo que mu<strong>de</strong> a vida das pessoas” 123 .<br />
Os caminhos percorridos pela telenovela brasileira atà aqui ─ seja em sua fase<br />
embrionária, quando os televisores eram raros artigos <strong>de</strong> luxo e a imagem era novida<strong>de</strong>, seja<br />
na atual fase digital, quando as narrativas po<strong>de</strong>m ser acompanhadas pelas telas reduzidas <strong>de</strong><br />
um aparelho celular e disputam atenÅÇo com todo tipo <strong>de</strong> mÉdia ─ comprovam a forÅa <strong>de</strong> sua<br />
narrativida<strong>de</strong> e sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encantar geraÅâes atravàs dos tempos. As inëmeras<br />
produÅâes que foram ao ar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “Sua Vida me Pertence” reproduzem o percurso cumprido<br />
123 PEREZ, 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009, Canal Extra. DisponÉvel em:<br />
.<br />
Acesso em 25 jul. 2009.<br />
60
por sua matriz literária: como o folhetim, amargam a crÉtica por sua narrativa popular (como<br />
se o popular nÇo pu<strong>de</strong>sse ter qualida<strong>de</strong>!), cativam nomes importantes da literatura e da<br />
dramaturgia nacional, provocam a curiosida<strong>de</strong> do pëblico com pendÖncias diárias em suas<br />
tramas, mostram-se sintonizadas com o gosto da audiÖncia e com os temas em voga e, acima<br />
<strong>de</strong> tudo, oferecem um mergulho envolvente no mundo da ficÅÇo. Conflitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />
amores impossÉveis, triêngulos amorosos e mobilida<strong>de</strong> social; ciëme, traiÅÇo, intriga;<br />
corrupÅÇo, po<strong>de</strong>r, honestida<strong>de</strong>, ingenuida<strong>de</strong>; personagens comuns, “gente como a gente”,<br />
burgueses, operários, milionários, herÑis e anti-herÑis, a gran<strong>de</strong> vÉtima, o “bandido sedutor”, a<br />
gran<strong>de</strong> mÇe, o homem honrado, a mulher lutadora, o sonhador, o <strong>de</strong>svalido; <strong>de</strong>stinos<br />
entrecruzados, fatalida<strong>de</strong>s, casualida<strong>de</strong>s; <strong>de</strong>sencontros, mal entendidos, reviravoltas;<br />
suspense, humor, drama, tragàdia: com uma pitada <strong>de</strong> realismo, gran<strong>de</strong>s doses <strong>de</strong><br />
verossimilhanÅa e o toque mágico da fantasia, eis o universo narrativo da telenovela brasileira<br />
no que ela tem <strong>de</strong> melhor ─ sua natureza folhetinesca!<br />
61
4 A NARRATIVIDADE COMO TECNOLOGIA COGNITIVA DO REAL<br />
Embora o vÉnculo narrativo da telenovela remeta äs origens impressas do folhetim e<br />
do romance ─ matrizes literárias cujo po<strong>de</strong>r estava na aventura da imaginaÅÇo proporcionada<br />
pela palavra escrita ─, a forÅa do drama seriado televisivo se funda na sintonia do encontro da<br />
comunicaÅÇo textual com a imagàtica. O texto, que nÇo se sustenta sozinho enquanto obra,<br />
enquanto peÅa literária, à concebido para ser transfigurado em imagem sonora: ele inspira e dá<br />
corpo ä imagem, se materializa em diálogos dramatizados, cenários, figurinos,<br />
enquadramentos, movimentos <strong>de</strong> cêmera e trilha musical. Texto e imagem: à sÑ na fusÇo<br />
<strong>de</strong>stas duas narrativas que a telenovela se dá a conhecer. Observar esta dupla narrativida<strong>de</strong><br />
requer treinar o olhar para encontrar o horizonte on<strong>de</strong> o domÉnio da literatura à invadido pela<br />
narrativa visional, oferecendo uma representaÅÇo mëltipla da realida<strong>de</strong>. Se na telenovela a<br />
alma da narrativa à textual e sua face à imagàtica ─ o que exige cumplicida<strong>de</strong> entre autor e<br />
diretor, subordinaÅÇo perfeita da estàtica visual ao universo imaginário do texto ─, que<br />
recursos teria a narrativa visional para apreen<strong>de</strong>r o real quando a imagem comanda a<br />
narrativida<strong>de</strong> (relegando a textualida<strong>de</strong> ä condiÅÇo <strong>de</strong> quase legenda) e para criar o ficcional<br />
quando a imagem capta o factual? A investigaÅÇo do po<strong>de</strong>r imagàtico da narrativida<strong>de</strong><br />
visional oferece um rico caminho para o estudo da telenovela.<br />
A elevaÅÇo da imagem ä condiÅÇo <strong>de</strong> dominante da cultura pÑs-mo<strong>de</strong>rna fez da<br />
narrativida<strong>de</strong> audiovisual a chave para a cogniÅÇo do real. Tendo como sua matriz cultural o<br />
entretenimento, a imagem ─ quer em sua apreensÇo fiel do real ou em versÇo estetizada <strong>de</strong>le<br />
─ parece ter o dom <strong>de</strong> converter tudo em espetáculo <strong>de</strong> fácil digestÇo. Assim à que, por seu<br />
po<strong>de</strong>r contagiante <strong>de</strong> enredar os homens em histÑrias, a dramatizaÅÇo do real prÑpria da<br />
narrativa audiovisual tem impregnado <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong>s imaginárias universos que sempre<br />
construÉram sua existÖncia sobre os pilares da objetivida<strong>de</strong> e da isenÅÇo. Tanto o jornalismo<br />
como o filme-documentário vÖm servindo, na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia, narrativas cada vez mais<br />
romanescas, prÑximas da fábula e do mito (do chamado interesse humano, enfim) ─<br />
narrativas que se apoiam em recursos literários como a teatralida<strong>de</strong> da linguagem, o uso <strong>de</strong><br />
diálogos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriÅÇo da cena, e a troca do “empenho da verda<strong>de</strong> pelo da<br />
verossimilhanÅa” 124 . No jornalismo, sob a legenda do New Journalism, fizeram escola o fait<br />
divers e os features, <strong>de</strong>fendidos bravamente por Tom Wolfe e Gay Talese. No filme-<br />
documentário, ganharam <strong>de</strong>staque produÅâes que questionam a isenÅÇo do olhar e provam que<br />
124 SODRï, 1996, p. 148.<br />
62
todo documento parte <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista, oferece uma versÇo da realida<strong>de</strong> 125 , como os<br />
filmes <strong>de</strong> Michael Moore e a versÇo engajada <strong>de</strong> Zana Briski sobre os “Nascidos em bordàis”,<br />
narrativa documentária subjetiva, carregada <strong>de</strong> impressâes e emoÅâes da narradora.<br />
Assim como na ficÅÇo, na narrativa da soft news (notÉcia <strong>de</strong> interesse humano, em<br />
contraponto com a hard news, estritamente factual) e do documentário subjetivo, o mundo<br />
vivido tambàm à construÉdo. NÇo se traduz na simples sequÖncia <strong>de</strong> acontecimentos, mas se<br />
revela pela narrativida<strong>de</strong>, pela expressÇo do discurso resultante <strong>de</strong> uma escolha, <strong>de</strong> uma<br />
construÅÇo. A expressÇo <strong>de</strong> tal construÅÇo se assume como voz particular (autoral, em certa<br />
medida), afirmaÅÇo subjetiva sobre a realida<strong>de</strong>; conta uma histÑria cujos elementos (trama,<br />
personagens e estrutura narrativa) cada vez mais se organizam <strong>de</strong> modo a atingir o pëblico<br />
usando os recursos literários que cativam a emoÅÇo. A prática <strong>de</strong> construir o mundo vivido<br />
parece concordar com Jacques Ranciöre: “o real precisa ser ficcionado para ser pensado” 126 .<br />
Para o filÑsofo francÖs, “Escrever a histÑria e escrever histÑrias pertencem a um mesmo<br />
regime <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>” 127 assim como “o testemunho e a ficÅÇo pertencem a um mesmo regime<br />
<strong>de</strong> sentido” 128 . Assim, por exemplo, o cinema-documentário, que se <strong>de</strong>dica ao “real”, à capaz<br />
<strong>de</strong> uma “invenÅÇo ficcional mais forte que o cinema <strong>de</strong> ‘ficÅÇo’”: isto porque, segundo<br />
Ranciöre, o cinema “eleva a sua maior potÖncia o duplo expediente da impressÇo muda que<br />
fala e da montagem que calcula as potÖncias <strong>de</strong> significência e os valores <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>” 129 .<br />
Talvez pela saturaÅÇo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> exposta em sua crueza em imagens captadas<br />
por todo tipo <strong>de</strong> cêmera domàstica e em reality shows, jornalistas e documentaristas estejam<br />
tentando resgatar o humano da dimensÇo pasteurizada das massas. Talvez <strong>de</strong>sejem que suas<br />
histÑrias assim estetizadas, narradas sob o signo da versÇo subjetiva da verda<strong>de</strong>, dos vestÉgios<br />
e resÉduos da verda<strong>de</strong>, possam tocar o real <strong>de</strong> forma mais significativa e mais reveladora.<br />
A retÑrica do jornalismo factual e o registro impassÉvel <strong>de</strong> imagens que cruamente<br />
expâem a realida<strong>de</strong> nÇo mais dÇo conta <strong>de</strong> inspirar a compaixÇo, a indignaÅÇo, a revolta e o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanÅa. Mero espetáculo embrulhado para presente pelos meios <strong>de</strong> comunicaÅÇo,<br />
a realida<strong>de</strong> já nÇo se dá a ver diante <strong>de</strong> olhos tÇo acostumados ä estàtica formal da dor e da<br />
125 No Festival Internacional <strong>de</strong> Documentários “ï Tudo Verda<strong>de</strong>”, uma das tendÖncias que vem se firmando à a<br />
produÅÇo <strong>de</strong> documentários subjetivos, on<strong>de</strong>, como diz Consuelo Lins (co-autora do livro Filmar o real, sobre o<br />
documentário brasileiro contemporâneo), “o motivo da realizaÅÇo do documentário <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a alterida<strong>de</strong><br />
clássica para se relacionar a aspectos da experiÖncia pessoal e da subjetivida<strong>de</strong> dos prÑprios realizadores” (LINS<br />
apud. GONTIJO, 2008, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 30<br />
jul. 2009.<br />
126 RANCI†RE, 2005, p. 58.<br />
127 RANCI†RE, loc. cit.<br />
128 Ibi<strong>de</strong>m, p. 57.<br />
129 RANCI†RE, loc. cit.<br />
63
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. A angëstia e a perplexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outrora, elementos geradores da coragem <strong>de</strong><br />
transformaÅÇo e do experimentalismo, foram substituÉdas pela indiferenÅa e pela acomodaÅÇo,<br />
frutos <strong>de</strong> uma solitária consciÖncia <strong>de</strong> que nÇo se po<strong>de</strong> alterar o mundo.<br />
Com a queda do Muro <strong>de</strong> Berlin, o fim das utopias e o fim da histÑria, mergulhamos no<br />
<strong>de</strong>sencanto, na apatia. O agravamento das tensâes <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m, ao invàs <strong>de</strong> trazer ä tona<br />
nosso vigor <strong>de</strong> transformaÅÇo, faz sucumbir o impulso inovador na indëstria do <strong>de</strong>sênimo. A<br />
“causa” que nos movia entÇo agora se per<strong>de</strong> por trás da tàcnica que tudo po<strong>de</strong>. Se a insatisfaÅÇo<br />
e a indignaÅÇo ampliavam os horizontes e impunham saltos no escuro na busca por liberda<strong>de</strong> e<br />
igualda<strong>de</strong>, a aceitaÅÇo das leis do mercado restringe iniciativas ä lÑgica do lucro, ä<br />
previsibilida<strong>de</strong> da estatÉstica e ä seguranÅa do “novo” sem risco. Na flui<strong>de</strong>z da ambiguida<strong>de</strong>, no<br />
labirinto da multiplicida<strong>de</strong>, na permeabilida<strong>de</strong> entre fronteiras e conceitos, na efemerida<strong>de</strong> do<br />
presenteÉsmo, e na confusÇo entre o Mesmo, o Outro e o Duplo, a pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> instala o<br />
vale-tudo da conjunÅÇo do que se supâe oposto. Neste cenário em que os homens foram<br />
igualados como mero consumidores, em que as diferenÅas se acomodam em favor da<br />
padronizaÅÇo, em que o novo nada inaugura, em que a tàcnica reproduz o real e esgota o<br />
possÉvel, os experimentalismos per<strong>de</strong>m seu horizonte <strong>de</strong> transcendÖncia e superaÅÇo.<br />
A aceitaÅÇo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que caminha a <strong>de</strong>speito da vonta<strong>de</strong> dos sujeitos e a<br />
consciÖncia da insignificência das aÅâes humanas fazem da acomodaÅÇo uma experiÖncia<br />
trágica: vivemos marcados pela fatalida<strong>de</strong>, pela fortuna e pelo <strong>de</strong>stino. O contraste cada vez<br />
mais exposto entre a riqueza e a pobreza, entre o dominador e o subalterno, entre o consumo e<br />
a misària sÇo amortecidos pela indiferenÅa da constataÅÇo. As tàcnicas tradicionais <strong>de</strong><br />
reproduÅÇo do real nos mantÖm igualmente prÑximos e alheios äs <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s: o que<br />
somos, o que fomos, o que po<strong>de</strong>mos ser e o que po<strong>de</strong>mos fazer sÇo questâes que se dissipam<br />
diante do espetáculo produzido para entreter. Nele, purgamos a culpa coletiva do capitalismo<br />
que fez <strong>de</strong> nÑs objeto <strong>de</strong> experiÖncia e nos con<strong>de</strong>nou a viver no mundo dos shopping centers,<br />
no qual afeto, compaixÇo e revolta sÇo mercadorias com prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> vencido. Na<br />
hegemonia da objetivida<strong>de</strong>, que usa e abusa da razÇo instrumental, as subjetivida<strong>de</strong>s parecem<br />
perturbar a compreensÇo do real. Assim a cultura oci<strong>de</strong>ntal, em sua lÑgica do progresso<br />
tàcnico e cientÉfico, selou a impermeabilida<strong>de</strong> afetiva, con<strong>de</strong>nando a estàtica e a poàtica ä<br />
estetizaÅÇo para consumo ligeiro.<br />
Como mercadorias, consumimos igualmente as imagens da guerra e as aÅâes<br />
humanitárias <strong>de</strong>stinadas a aplacar a dor por ela causada. NÇo passam <strong>de</strong> cenas que <strong>de</strong>sfilam<br />
diante <strong>de</strong> nossos olhos indiferentes ao que ainda à humano. Na superfÉcie nos comovemos e<br />
no consumo praticamos a tele-compaixÇo: comprar a camiseta do projeto humanitário à o<br />
64
modo pÑs-mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar afeto ─ nÇo o afeto da esfera da subjetivida<strong>de</strong>, mas o afeto<br />
<strong>de</strong> resultado, interessado no “lucro” simbÑlico, aquele que cola nossa imagem a um produto<br />
“do bem”, “agregando-nos valor”.<br />
Neste contexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sênimo e apatia, <strong>de</strong> crise dos experimentalismos, que papel<br />
<strong>de</strong>sempenham o intelectual e o artista? Como romper o limite da mercadoria e do consumo e<br />
promover transformaÅÇo e libertaÅÇo? Que contribuiÅâes po<strong>de</strong>m oferecer a razÇo e o sensÉvel<br />
na emergÖncia das i<strong>de</strong>ias? Que caminhos a narrativida<strong>de</strong> aponta para tocar a verda<strong>de</strong> dos<br />
homens?<br />
Uma boa pista para estas respostas po<strong>de</strong> ser encontrada no documentário engajado<br />
“Nascidos em Bordàis”. A análise da narrativa subjetiva <strong>de</strong> um filme supostamente concebido<br />
para ser objetivo, a observaÅÇo do afeto como medida para a cogniÅÇo do real e a <strong>de</strong>scriÅÇo do<br />
papel da cineasta em sua tentativa <strong>de</strong> mudar o cotidiano abrem as portas para a compreensÇo<br />
da narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gloria Perez em suas telenovelas. Para alàm do fato <strong>de</strong> a documentarista e<br />
a novelista abordarem em suas obras os invisÉveis da índia, parece-me significativo que<br />
ambas sejam mulheres, que se mostrem comprometidas com as causas que exploram, que se<br />
voltem para o Outro estrangeiro e diferente com a disposiÅÇo <strong>de</strong> ouvi-lo e fazer ecoar sua voz,<br />
que se <strong>de</strong>ixem conduzir pela subjetivida<strong>de</strong> na construÅÇo <strong>de</strong> suas narrativas, que suas histÑrias<br />
se alimentem da urgÖncia e do imprevisÉvel, que saibam contornar os caprichos do mercado<br />
para levar adiante a proposta <strong>de</strong> tocar o que à humano e inspirar nele o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanÅa...<br />
4.1 NASCIDOS EM BORDïIS ─ O FILME<br />
O documentário “Nascidos em bordàis”, filme <strong>de</strong> estreia dos diretores Ross Kauffman<br />
e Zana Briski, produzido na índia em 2004, explora o real e o possÉvel no universo tÇo<br />
violento quanto invisÉvel dos filhos <strong>de</strong> prostitutas da ôrea da Luz Vermelha <strong>de</strong> Calcutá. Lá,<br />
estÇo presentes a con<strong>de</strong>naÅÇo e o enfrentamento do <strong>de</strong>stino, a arte como libertaÅÇo, o artista<br />
como um ser revoltado, o <strong>de</strong>svelamento da auto-percepÅÇo, a tàcnica como mediadora do<br />
olhar, e a cultura da mercadoria como uma realida<strong>de</strong> inescapável. Sem apresentar rupturas<br />
estàticas, o filme marca o contraste entre o olhar profissional captado pela cêmera<br />
cinematográfica dos diretores e o olhar inocente das crianÅas que pela primeira vez<br />
empunham uma cêmera fotográfica. Cinema e fotografia dialogam para apresentar o novo: a<br />
realida<strong>de</strong> que agora se revela mutável.<br />
65
O filme à resultado <strong>de</strong> um projeto pessoal da fotÑgrafa inglesa baseada em Nova<br />
Iorque Zana Briski. Seu interesse pela índia, mais particularmente pela violÖncia<br />
experimentada pelas mulheres indianas, levou-a, em 1995, a produzir um ensaio sobre o<br />
infanticÉdio feminino. TrÖs anos <strong>de</strong>pois, Briski estava <strong>de</strong> volta ao paÉs para dar inÉcio ao seu<br />
projeto <strong>de</strong> fotografar e filmar as prostitutas do distrito da Luz Vermelha, em Calcutá.<br />
Apesar da ilegalida<strong>de</strong> da prostituiÅÇo na índia, as autorida<strong>de</strong>s nÇo a reprimem, e mais<br />
<strong>de</strong> sete mil mulheres e meninas trabalham como prostitutas em Sonagachi, a maior e mais<br />
pobre área <strong>de</strong> bordàis <strong>de</strong> Calcutá. No distrito da Luz Vermelha, se a <strong>de</strong>gradaÅÇo humana<br />
chegou a nÉveis intoleráveis para estas mulheres, a situaÅÇo à ainda pior para seus filhos, que<br />
nascem con<strong>de</strong>nados a um <strong>de</strong>stino inescapável: tais crianÅas, por condiÅÇo <strong>de</strong> nascimento, sÇo<br />
colocadas num sistema <strong>de</strong> castas no qual a mulher à obrigada a assumir a prostituiÅÇo como<br />
forma <strong>de</strong> ajudar no sustento da famÉlia e pagar por sua criaÅÇo. Em incontáveis cubÉculos<br />
escuros e sujos, num amontoado <strong>de</strong> objetos, gentes e ratos, vivem meninos e meninas <strong>de</strong> todas<br />
as ida<strong>de</strong>s que nÇo tÖm alternativa senÇo esperar na porta ou brincar no telhado enquanto suas<br />
avÑs e mÇes trabalham. Muitos ficam responsáveis pela cobranÅa dos clientes ou pelo<br />
comàrcio <strong>de</strong> bebidas. Alàm disso, ainda cabe äs meninas fazer limpeza na “casa” <strong>de</strong> outras<br />
prostitutas e retirar do ënico poÅo local a água para o abastecimento do bor<strong>de</strong>l.<br />
O filme, todo narrado pela fotÑgrafa, comeÅa com uma explicaÅÇo sobre um <strong>de</strong>svio <strong>de</strong><br />
rota: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita negociaÅÇo com proprietários dos bordàis, cafetâes, policiais, polÉticos<br />
locais e o sindicato do crime organizado, Briski consegue autorizaÅÇo para morar no bor<strong>de</strong>l e<br />
fotografar as prostitutas, mas acaba se envolvendo com as crianÅas e, sensibilizada com o<br />
<strong>de</strong>stino <strong>de</strong>las, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ensinar-lhes fotografia. Diante da mudanÅa <strong>de</strong> planos, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> arriscar-se<br />
pela primeira vez com uma cêmera <strong>de</strong> filmagem, convoca Ross Kauffman para co-assinar as<br />
filmagens e encomenda a ele a aquisiÅÇo <strong>de</strong> máquinas fotográficas para as crianÅas.<br />
Munidas <strong>de</strong> cêmeras 35mm, as mais simples do mercado, “tia Zana”, como à chamada<br />
carinhosamente pelas crianÅas, reëne o grupo em uma sala improvisada e lhes ensina os<br />
rudimentos da fotografia: luz, enquadramento, composiÅÇo, ponto <strong>de</strong> vista. A i<strong>de</strong>ia nÇo à<br />
propriamente ensinar; Briski espera proporcionar aos filhos <strong>de</strong> prostitutas uma oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> olhar a realida<strong>de</strong> com seus prÑprios olhos (e nÇo com os olhos da tradiÅÇo local) e<br />
expressar o que veem atravàs da fotografia. De inÉcio, apenas duas liÅâes simples: como<br />
empunhar a cêmera e nÇo ter pressa para fotografar (“Quando segurar a cêmera, olhe com<br />
calma. Se nÇo está bem certinho aqui [no visor], eu me movimento para que tudo <strong>de</strong>ntro do<br />
enquadramento fique bonito, e aÉ eu tiro a foto”, orienta a fotÑgrafa.). Como qualquer crianÅa<br />
que ganha um brinquedo novo, os alunos <strong>de</strong> Briski vÇo para as ruas e becos <strong>de</strong> Sonagachi e<br />
66
disparam suas cêmeras. Enfrentam a falta <strong>de</strong> jeito com o equipamento e o constrangimento<br />
diante da reaÅÇo dos passantes (“Eles dizem coisas maldosas; querem saber como<br />
conseguimos as cêmeras”). Depois, diante da folha <strong>de</strong> contato, comentam o resultado,<br />
explicam a motivaÅÇo <strong>de</strong> cada foto e ouvem as observaÅâes da professora. A primeira <strong>de</strong>las à<br />
no sentido <strong>de</strong> libertar os fotÑgrafos-mirins da estàtica da TV, atravàs da qual conhecem o<br />
mundo fora dos limites do distrito da Luz Vermelha, e da estàtica dos retratistas, que<br />
registram com enquadramento ënico o busto dos habitantes dos bordàis. Os olhos quase<br />
virgens <strong>de</strong>stes fotÑgrafos-mirins foram capazes, ao longo do projeto, <strong>de</strong> filtrar, com a alegria e<br />
a objetivida<strong>de</strong> das crianÅas, a realida<strong>de</strong> dos bordàis 130 , <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> fora a escuridÇo das vielas<br />
e quartos sujos e avermelhados para realÅar o colorido <strong>de</strong> um cotidiano agora iluminado pela<br />
esperanÅa e pelo novo.<br />
No filme, as aventuras das crianÅas sÇo intercaladas com cenas dos prostÉbulos<br />
colhidas por cêmeras escondidas (“Tudo aqui à ilegal. ï perigoso filmar <strong>de</strong>ntro dos bordàis;<br />
mantÉnhamos a filmadora voltada para baixo para disfarÅar”, explica a diretora) e<br />
<strong>de</strong>poimentos pessoais dos alunos, colhidos já no final da experiÖncia, quando os laÅos <strong>de</strong><br />
confianÅa com a professora estavam sedimentados. Neles, sÇo apresentados os lares das<br />
crianÅas, suas relaÅâes familiares com a mÇe e a avÑ, seu trabalho quase escravo, suas<br />
reflexâes sobre a vida nos bordàis e suas aspiraÅâes. “ï preciso aceitar que a vida à dura e<br />
dolorosa”, diz Kochi, 10 anos. “Quero tirar Puja daqui, porque, quando crescer, vai ser<br />
prostituta, irá para a rua, usará drogas e roubará dinheiro das pessoas”, diz Gour, 13,<br />
preocupado com o futuro da amiga. “Em nosso quarto, as bebidas sÇo vendidas logo <strong>de</strong><br />
manhÇ; os homens bebem e vÇo ter as garotas. Alguns bebem e nÇo pagam. Preciso ir atrás<br />
<strong>de</strong>les e ser duro. Porque isso à tudo que temos”, diz Avijit, 11.<br />
Nos <strong>de</strong>poimentos, o encantamento com a fotografia revela diferentes engajamentos na<br />
arte: “Posso tirar foto <strong>de</strong> alguàm que foi embora, que morreu ou <strong>de</strong>sapareceu. E tenho algo<br />
para o qual posso olhar pelo resto <strong>de</strong> minha vida” (Avijit). “Quando eu tenho a cêmera em<br />
minhas mÇos, eu me sinto feliz. Eu sinto que estou apren<strong>de</strong>ndo alguma coisa... que posso ser<br />
alguàm” (Suchitra, 14). “Preciso ganhar dinheiro com o bordado e as fotos. Preciso ganhar a<br />
vida, cuidar <strong>de</strong> minha irmÇ e <strong>de</strong> mim” (Tapasi, 11). “Quero ser fotÑgrafo para mostrar como<br />
as pessoas vivem nesta cida<strong>de</strong>. (...) Quero mostrar o comportamento do homem” (Gour).<br />
“Essa à uma boa foto. Dá uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> como as pessoas vivem, embora ela dÖ uma sensaÅÇo<br />
<strong>de</strong> tristeza. ï difÉcil olhar, mas à necessário porque à verda<strong>de</strong>” (Avijit).<br />
130 Para ver as fotos das crianÅas, ver .<br />
67
Em dois anos <strong>de</strong> aulas <strong>de</strong> fotografia, a experiÖncia com as crianÅas nascidas em<br />
bordàis acaba ultrapassando os limites da área da Luz Vermelha em passeios fotográficos que<br />
proporcionam aos alunos o conhecimento <strong>de</strong> outros lugares e realida<strong>de</strong>s. Acaba extrapolando<br />
tambàm a proposta <strong>de</strong> libertaÅÇo atravàs da arte, já que Briski se engaja na luta para<br />
encaminhar seus fotÑgrafos a uma instituiÅÇo <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> Calcutá, invariavelmente um<br />
internato. Seus esforÅos esbarram nÇo sÑ no preconceito das escolas que nÇo aceitam filhos <strong>de</strong><br />
prostitutas, como na burocracia indiana, na falta <strong>de</strong> documentaÅÇo das crianÅas, na exigÖncia<br />
<strong>de</strong> testes <strong>de</strong> HIV e na resistÖncia das famÉlias que, apesar <strong>de</strong> reconhecer a boa intenÅÇo da<br />
iniciativa, tÖm dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar seus filhos livres para assumir um futuro mais promissor<br />
fora da tradiÅÇo dos bordàis.<br />
A experiÖncia com as crianÅas nascidas em bordàis, nesse ponto, extrapola a lÑgica dos<br />
documentários, na qual os fatos <strong>de</strong>vem falar por si e as imagens <strong>de</strong>vem ser registradas para<br />
efeito <strong>de</strong> constataÅÇo. O engajamento afetivo <strong>de</strong> Briski com as crianÅas faz a documentarista<br />
interferir no <strong>de</strong>senrolar dos fatos, nÇo sÑ na busca por instruÅÇo como tambàm na arrecadaÅÇo<br />
<strong>de</strong> fundos para garantir um futuro mais digno para os meninos e meninas do projeto.<br />
Ao perceber a qualida<strong>de</strong> das fotos produzidas pelas crianÅas, algumas <strong>de</strong>las, segundo<br />
sua percepÅÇo, alcanÅando nÉvel artÉstico, a cêmera do documentário <strong>de</strong>ixa a índia para seguir<br />
Briski atà Nova Iorque, on<strong>de</strong> ela consegue que as fotos dos filhos das prostitutas <strong>de</strong> Calcutá nÇo<br />
sÑ sejam expostas em duas galerias e leiloadas na Sotheby’s, como tambàm ilustrem o<br />
calendário da Anistia Internacional. “A i<strong>de</strong>ia à tirar as crianÅas dos bordàis”, explica a fotÑgrafa.<br />
O esforÅo acaba atraindo para o projeto a contribuiÅÇo do fotÑgrafo Robert Pedge, dono da<br />
agÖncia Contact Press Images, <strong>de</strong> Nova Iorque, que vai atà Calcutá olhar <strong>de</strong> perto o trabalho<br />
das crianÅas. De lá, diante do talento <strong>de</strong> Avijit, um menino que já colecionava prÖmios com seus<br />
<strong>de</strong>senhos e pinturas, o fotÑgrafo se mobiliza no sentido <strong>de</strong> obter a indicaÅÇo do jovem artista<br />
para compor um jëri <strong>de</strong> crianÅas do mundo todo que, a cada ano, examina mais <strong>de</strong> quatro mil<br />
fotos na World Press Photo Foundation, em AmsterdÇ. “Avijit tem talento natural”, comemora.<br />
Briski consegue ainda que a livraria Oxford, <strong>de</strong> Calcutá, exponha as fotos das crianÅas<br />
invisÉveis da índia: pela primeira vez numa livraria, os jovens artistas assinam suas fotos, dÇo<br />
entrevista ä imprensa e recebem o reconhecimento e o afago dos convidados. O repÑrter <strong>de</strong><br />
tevÖ encerra a matària da exposiÅÇo com uma frase <strong>de</strong> apoio ä iniciativa <strong>de</strong> buscar “educaÅÇo<br />
<strong>de</strong>cente e uma chance <strong>de</strong> conhecer o mundo fora do distrito da Luz Vermelha”.<br />
O filme segue com a ida das meninas para o internato e sua <strong>de</strong>spedida das famÉlias, a<br />
aceitaÅÇo dos meninos na escola Future Hope (<strong>de</strong>stinada a meninos em condiÅâes difÉceis), a<br />
dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter passaporte para Avijit ir a AmsterdÇ e a <strong>de</strong>pressÇo do artista-mirim diante<br />
68
da notÉcia da morte <strong>de</strong> sua mÇe numa “explosÇo na cozinha” (cÑdigo para acobertar o<br />
assassinato <strong>de</strong> mulheres por seu rufiÇo atravàs <strong>de</strong> incÖndios domàsticos). Termina com um<br />
reencontro da documentarista com seus protegidos alguns anos mais tar<strong>de</strong> e a constataÅÇo <strong>de</strong><br />
que muitos tinham, por vonta<strong>de</strong> prÑpria ou <strong>de</strong>terminaÅÇo da famÉlia, <strong>de</strong>ixado a escola. O<br />
trabalho da fotÑgrafa, no entanto, nÇo tinha sido <strong>de</strong> todo em vÇo: diferentemente <strong>de</strong> suas<br />
colegas, Kochi optou por ficar no internato, Tapasi fugiu <strong>de</strong> casa e foi para uma escola<br />
feminina, e Avijit, que estava <strong>de</strong>sanimado com os estudos, voltou <strong>de</strong> AmsterdÇ para a Future<br />
Hope. Ainda em Sonagachi, Gour sonha com a universida<strong>de</strong>.<br />
“Nascidos em Bordàis” ganhou o Oscar <strong>de</strong> melhor documentário em 2005, categoria que<br />
lhe ren<strong>de</strong>u tambàm o prÖmio do National Board of Review e dos Los Angeles Film Critics. Foi<br />
eleito ainda o melhor documentário pelo jëri popular no Sundance Film Festival, em 2004.<br />
4.2 BRISKI, A INTELECTUAL ENGAJADA<br />
Zana Briski à uma profissional da fotografia que faz arte com sua cêmera. Como<br />
fotÑgrafa, está engajada no uso da arte para a <strong>de</strong>nëncia social. Quer dar visibilida<strong>de</strong> (esta<br />
categoria tÇo importante nesse mundo <strong>de</strong> imagens) ä realida<strong>de</strong> invisÉvel e violenta do ser<br />
humano. Escolhe como foco as mulheres e, por extensÇo, as crianÅas. Como cenário, a índia,<br />
uma terra <strong>de</strong> contrastes, que <strong>de</strong>sponta como fornecedora mundial <strong>de</strong> tecnologia <strong>de</strong> informaÅÇo<br />
e, ao mesmo tempo, figura como o segundo paÉs mais afetado pela Aids. A fotÑgrafa que<br />
mora em Nova Iorque escolhe como màtodo <strong>de</strong> trabalho o exÉlio: no caso <strong>de</strong> “Nascidos em<br />
Bordàis”, Briski se muda para o distrito da Luz Vermelha e fica morando com as prostitutas<br />
durante anos (a projeto original <strong>de</strong> fotografar as mulheres se inicia em 1998 e a escola <strong>de</strong><br />
fotografia com as crianÅas dura <strong>de</strong> 2002 a 2003).<br />
Muitos dirÇo tratar-se <strong>de</strong> mais uma investida arrogante do i<strong>de</strong>ário imperialista (Zana à<br />
inglesa <strong>de</strong> origem) sobre uma cultura subalterna. Ruy Gardnier, crÉtico da revista <strong>de</strong> cinema<br />
Contracampo, se alinha nesta fileira:<br />
Um filme sobre como uma documentarista, dotada <strong>de</strong> todas as verda<strong>de</strong>s egocÖntricas e<br />
etnocÖntricas sobre como dar liberda<strong>de</strong> aos outros, vai num paÉs "exÑtico e atrasado"<br />
para com a arte (a fotografia, o cinema) salvar quem ainda po<strong>de</strong> ser salvo do mar <strong>de</strong><br />
lama: as pobres criancinhas. Há um quÖ <strong>de</strong> Michael Moore (a professora-cineasta<br />
lutando contra a burocracia terceiromundista e preconceituosa da índia para tirar os<br />
vistos <strong>de</strong> raÅÇo <strong>de</strong> seus alunos), como há um nojento fedor <strong>de</strong> autopromoÅÇo (as<br />
crianÅas sendo entrevistadas pela televisÇo indiana dizendo como tudo que a tia Zana<br />
ensina vai direto pro càrebro, como ela à boazinha e atenciosa, etc.) nessa enquete<br />
69
assistencialista que tenta aplacar a culpa social atravàs <strong>de</strong> saÉdas voluntaristas que<br />
"fazem a diferenÅa". 131<br />
A trajetÑria <strong>de</strong> sucesso do documentário em mostras competidoras <strong>de</strong> cinema parece<br />
confirmar sua vocaÅÇo para esta estàtica humanitária-salvacionista tÇo cara ao mercado das<br />
emoÅâes superficiais, as “emoÅâes-pipoca”.<br />
Talvez seja <strong>de</strong>masiado simplista <strong>de</strong>ixar-nos convencer pela lÑgica do <strong>de</strong>sencanto que<br />
<strong>de</strong> tudo <strong>de</strong>sconfia, como se nÇo houvesse mais lugar para os arroubos da subjetivida<strong>de</strong> ou para<br />
o <strong>de</strong>sgoverno da vonta<strong>de</strong>. Se o impulso obrigatÑrio da visibilida<strong>de</strong> faz tudo parecer auto-<br />
promoÅÇo, e se toda aÅÇo contra a misària e a opressÇo cai na vala negra do assistencialismo,<br />
<strong>de</strong> que nos servem a <strong>de</strong>nëncia e o engajamento? NÇo seria o ceticismo a <strong>de</strong>sculpa racional<br />
para a acomodaÅÇo? NÇo estaria mais uma vez a razÇo dando uma rasteira na subjetivida<strong>de</strong>,<br />
con<strong>de</strong>nando ä impureza os (<strong>de</strong>s)mandos da consciÖncia?<br />
Se para Antonio Gramsci qualquer pessoa po<strong>de</strong> ser um intelectual 132 , Briski, com sua<br />
cêmera, certamente se enquadraria em um dos graus <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> em que um intelectual<br />
<strong>de</strong>sempenha sua funÅÇo:<br />
A ativida<strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong>ve distinguir-se em graus, mesmo do ponto <strong>de</strong> vista<br />
intrÉnseco; graus que nos momentos <strong>de</strong> extrema oposiÅÇo indicam uma autÖntica<br />
diferenÅa qualitativa: no mais alto grau, <strong>de</strong>vem pòr-se os criadores das várias ciÖncias,<br />
da filosofia, da arte, etc.; no mais baixo, os 'administradores' e divulgadores mais<br />
mo<strong>de</strong>stos da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumulada. 133<br />
NÇo chega a ser uma criadora da arte nem tampouco uma mo<strong>de</strong>sta divulgadora da<br />
riqueza intelectual. Mas em algum lugar nesta escala está prevista a funÅÇo intelectual<br />
<strong>de</strong>sempenhada pela professora <strong>de</strong> fotografia dos filhos das prostitutas que, em seu<br />
espontaneÉsmo educador, se faz agente da socieda<strong>de</strong> civil na práxis da arte como instrumento<br />
<strong>de</strong> libertaÅÇo. Se nÇo chega a produzir elementos <strong>de</strong> construÅÇo <strong>de</strong> uma contra-hegemonia, sua<br />
coragem e sensibilida<strong>de</strong> produzem uma obra que <strong>de</strong>sperta a consciÖncia e aponta para um<br />
mundo melhor. Como diz Huyssen, rompe “a torre <strong>de</strong> marfim da arte” e contribui para uma<br />
“mudanÅa do cotidiano” 134 .<br />
No caso <strong>de</strong> “Nascidos em Bordàis”, a iniciativa inicial <strong>de</strong> Briski nÇo era tirar as<br />
crianÅas dos prostÉbulos. Sua aÅÇo inicial como fotÑgrafa da realida<strong>de</strong> das prostitutas<br />
<strong>de</strong>spertou nas crianÅas a curiosida<strong>de</strong> pela fotografia e levou-a a sugerir as aulas como uma<br />
131 GARDNIER, “Nascidos em Bordàis”. DisponÉvel em: .<br />
Acesso em 23 jan. 2007.<br />
132 GRAMSCI, 1978, p. 346.<br />
133 Ibi<strong>de</strong>m, p. 349.<br />
134 HUYSSEN, 1996, p. 116.<br />
70
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proporcionar, pela lente da cêmera, uma perspectiva para ver fora da tradiÅÇo<br />
trágica dos <strong>de</strong>stinos imutáveis, um olhar diferenciado sobre a realida<strong>de</strong> em que viviam. Das<br />
trocas que se estabeleceram a partir <strong>de</strong>stes contatos tàcnicos e afetivos à que surgiu o <strong>de</strong>sejo<br />
manifesto das crianÅas <strong>de</strong> estudar para nÇo repetir a trajetÑria <strong>de</strong> suas mÇes e avÑs. Vieram<br />
<strong>de</strong>las o pedido <strong>de</strong> ajuda e a indicaÅÇo da escola como caminho. Ao <strong>de</strong>sempenhar casualmente<br />
a funÅÇo <strong>de</strong> intelectual, Brisk nÇo po<strong>de</strong> ser confundida com o orientalista <strong>de</strong>scrito por Said:<br />
nÇo se porta como um sujeito transcen<strong>de</strong>ntal kantiniano para quem o outro à apenas matària<br />
<strong>de</strong> conhecimento, nem como uma representante da cultura imperialista (ela à inglesa e as<br />
crianÅas, indianas) disposta a pòr em prática sua missÇo civilizadora, subordinando o<br />
colonizado como alguàm incapaz <strong>de</strong> construir seu prÑprio percurso histÑrico.<br />
Briski <strong>de</strong>sempenha entÇo o papel do professor como intelectual. De acordo com a<br />
pensadora argentina Beatriz Sarlo 135 , à prÑprio da ativida<strong>de</strong> intelectual do professor<br />
questionar o que “parece inscrito na natureza das coisas” com o objetivo <strong>de</strong> mostrar que “as<br />
coisas nÇo sÇo inevitáveis”. Como diz Raymond Williams a propÑsito da diferenÅa entre a<br />
tragàdia aristotàlica, que con<strong>de</strong>na o herÑi ao seu <strong>de</strong>stino, e o teatro didático <strong>de</strong> Brecht, que<br />
aponta para uma mudanÅa, “Temos <strong>de</strong> enxergar nÇo apenas que o sofrimento po<strong>de</strong> ser<br />
evitado, mas tambàm que ele nÇo tem, necessariamente, <strong>de</strong> nos esmagar” 136 . Segundo Sarlo, a<br />
“<strong>de</strong>snaturalizaÅÇo” daquilo que oprime os indivÉduos à a forma pela qual o intelectual<br />
expressa seu compromisso polÉtico.<br />
Como professora ou documentarista, Briski parece motivada pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
solidarieda<strong>de</strong> e fraternida<strong>de</strong> num momento em que a acomodaÅÇo faz crer que um outro<br />
mundo nÇo à possÉvel. A pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> nem se sabe ao certo que mundo seria este. Talvez<br />
a documentarista faÅa parte, guardada a limitaÅÇo <strong>de</strong> alcance <strong>de</strong> sua aÅÇo, daquele tipo <strong>de</strong><br />
intelectual que ainda se alimenta <strong>de</strong> utopias. E pela lente <strong>de</strong> sua cêmera tenha aprendido a<br />
enfrentar os obstáculos <strong>de</strong> olhos postos em outro mundo possÉvel. Foi isso que tentou ensinar<br />
a seus alunos.<br />
4.3 AVIJIT, O ARTISTA REVOLTADO<br />
Ao contrário das oito crianÅas envolvidas no projeto <strong>de</strong> Briski, Avijit, <strong>de</strong> 11 anos, já<br />
chegou artista. Sentado no chÇo do quarto on<strong>de</strong> vive com a avÑ prostituta e o pai drogado,<br />
135 SARLO, 1999.<br />
136 WILLIAMS, 2002, p. 262.<br />
71
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito pequeno projetava em papel a vida fora dos bordàis. De sua paleta já quase sem<br />
tinta, pintava as cores do mundo que lhe chegava pela tevÖ: telhados vermelhos, árvores em<br />
diferentes tons <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>, gente em trajes oci<strong>de</strong>ntais e càu azul. A alegria <strong>de</strong> suas pinturas e a<br />
beleza <strong>de</strong> seu traÅo ren<strong>de</strong>ram-lhe inëmeros prÖmios, medalhas que a avÑ coleciona orgulhosa<br />
num armário abarrotado <strong>de</strong> coisas.<br />
“Eu gosto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar porque quero expressar o que tenho em mente. Quero expressar<br />
o meu pensamento usando as cores”, diz o pequeno artista. As cores e formas do pensamento<br />
<strong>de</strong> Avijit nÇo estÇo em Sonagachi; elas projetam um mundo que sÑ ele vÖ, o mundo melhor<br />
que sÑ à possÉvel em sua mente.<br />
Quando Briski pâe em suas mÇos uma cêmera fotográfica, ele <strong>de</strong>scobre um outro<br />
veÉculo para sua arte e uma Sonagachi que precisa ser vista. Sua primeira investida no mundo<br />
da fotografia ren<strong>de</strong>u um excelente material. Atà mesmo a pequena Shanti, 11, percebe que sÇo<br />
<strong>de</strong> Avijit as melhores fotos. A professora se surpreen<strong>de</strong>:<br />
Adoro isto porque à um auto-retrato, mas vocÖ tambàm po<strong>de</strong> ver a rua, o ambiente<br />
on<strong>de</strong> ele está. Os <strong>de</strong>talhes, as janelas, as persianas, os fios... Tantos êngulos diferentes.<br />
Coisas na frente e atrás. Homens dormindo, andando e muito mais. Uma folha <strong>de</strong><br />
contato muito boa.<br />
Diante dos elogios, Avijit sorri, mas está sàrio a maior parte do tempo. O olhar duro,<br />
inquieto e äs vezes perdido, revela nÇo sÑ a dor das crianÅas que, pela violÖncia, sÇo obrigadas<br />
a amadurecer antes da hora, mas a angëstia do artista que se sabe maior que seu tempo: “Eu<br />
queria ser màdico; entÇo eu quis ser artista. Agora eu quero ser fotÑgrafo. NÇo há uma coisa<br />
chamada ‘esperanÅa’ em meu futuro”.<br />
Suas circunstências <strong>de</strong> vida parecem mesmo nÇo cre<strong>de</strong>nciá-lo para “essa coisa<br />
chamada esperanÅa” ─ muito menos parecem reservar-lhe qualquer futuro.<br />
Mas a fotografia já espreitava Avijit. Do armário <strong>de</strong> prÖmios do neto, a avÑ saca uma<br />
foto amarelada do bebÖ Avijit; o menino exibe, orgulhoso, sua foto com a mÇe, mulher nova e<br />
bonita que mora na “vila”, fora <strong>de</strong> Sonagachi. “Ninguàm se importa com ela”, lamenta o filho<br />
que se diverte lembrando-se da mÇe que lhe acenou com estudos em Londres. “Mal temos<br />
dinheiro para viver, quanto mais para estudar”, comenta. O pai já foi homem forte, <strong>de</strong> bater<br />
em muitos, <strong>de</strong> fama corrida <strong>de</strong> bravo. Hoje, à um trapo humano, esquálido, o rosto encovado<br />
<strong>de</strong> tanto fumar haxixe. “Meu pai era um homem bom. Minha mÇe partiu e ele fuma o dia todo,<br />
por isso ninguàm presta atenÅÇo em meu pai. Mesmo assim eu tenho que gostar <strong>de</strong>le, ao<br />
menos um pouco”, conta o menino que à obrigado a ser bravo com os clientes que nÇo pagam<br />
pela bebida vendida em seu quarto-casa.<br />
72
O orgulho <strong>de</strong> assinar suas fotos como artista reconhecido, a alegria <strong>de</strong> ver suas obras<br />
expostas na cida<strong>de</strong> natal e em Nova Iorque, a surpresa <strong>de</strong> ter seu nome estampado na primeira<br />
página do principal jornal da índia, e o sonho <strong>de</strong> ser indicado para o jëri <strong>de</strong> crianÅas <strong>de</strong><br />
AmsterdÇ parecem apenas fazer parte <strong>de</strong> um roteiro trágico que prepara a dor que nÇo se po<strong>de</strong><br />
explicar nem expressar em cores. Avijit nÇo chora diante da notÉcia da morte da mÇe. Mais<br />
que a perda afetiva <strong>de</strong> alguàm que sÑ existia no retrato que ele vai guardar para o resto da<br />
vida, a intuiÅÇo lhe avisava sobre a violÖncia do <strong>de</strong>stino nos bordàis. Talvez nem tenha<br />
chegado a saber que sua mÇe fora queimada num “aci<strong>de</strong>nte” forjado por seu rufiÇo. Nem teria<br />
como se indignar com o <strong>de</strong>scaso da polÉcia que sequer investiga casos como o <strong>de</strong>la. Avijit<br />
apenas se <strong>de</strong>ixa sucumbir pela angëstia que lhe corrÑi a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo. NÇo estuda para os<br />
exames do colàgio, falta äs aulas <strong>de</strong> fotografia, <strong>de</strong>ixa os rolos <strong>de</strong> filme fora da cêmera.<br />
Mais do que <strong>de</strong>primido, o pequeno artista está revoltado. Como sugere o ensaio <strong>de</strong><br />
Camus 137 , o homem revoltado à aquele que diz nÇo: ele nega alguma coisa porque antes ele<br />
afirma algo que lhe à negado. A revolta, entÇo, à positiva, ativa, se dá em favor <strong>de</strong> princÉpios<br />
que transcen<strong>de</strong>m o indivÉduo, que reclamam valores comuns a outros homens: frente a um<br />
mundo repleto <strong>de</strong> absurdos, a revolta, em vez <strong>de</strong> romper com limites, afirma o direito do<br />
homem e estabelece os limites da opressÇo. Avijit sempre fez <strong>de</strong> sua arte um instrumento da<br />
revolta contra a violÖncia, a injustiÅa e a falta <strong>de</strong> esperanÅa da invisibilida<strong>de</strong> da vida <strong>de</strong><br />
mulheres e crianÅas con<strong>de</strong>nadas ao vermelho angustiante dos bordàis. Mas a morte da mÇe<br />
havia <strong>de</strong>generado seu espÉrito revoltado em um espÉrito ressentido, e Avijit agora experimenta<br />
a negaÅÇo absoluta, a aniquilaÅÇo total, o niilismo.<br />
Briski sabe que Avijit está no limite: apela para o Future Hope acolhÖ-lo como aluno,<br />
ren<strong>de</strong>-se a um pistolÇo para conseguir o passaporte para AmsterdÇ.<br />
Avijit agora está <strong>de</strong> roupa nova, mala na mÇo e, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um táxi amarelo rumo ao<br />
aeroporto, pe<strong>de</strong> para o motorista ir com calma, pois um aci<strong>de</strong>nte o impediria <strong>de</strong> realizar seu<br />
sonho. No ar, vendo a imensidÇo do càu e na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> colocar o rosto para fora da<br />
janela (como fizera no ònibus que o <strong>de</strong>ixara pela primeira vez diante do mar), renasce a alma <strong>de</strong><br />
fotÑgrafo. Pela lente da cêmera, registra tudo o que vÖ pela frente, sempre em enquadramentos<br />
inusitados. No aviÇo, no aeroporto, nas ruas <strong>de</strong> AmsterdÇ, na World Press Photo Foundation.<br />
Em sua retina, guarda tambàm a composiÅÇo das fotos que tem que julgar: no olhar do outro, as<br />
emoÅâes do menino afloram em explicaÅâes estàticas. Um exercÉcio <strong>de</strong> ver a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
137 CAMUS, 1999.<br />
73
outrem. Ver outras vidas filtrando realida<strong>de</strong>s e possibilida<strong>de</strong>s. Avijit está impregnado <strong>de</strong> arte.<br />
Ainda traz a revolta, a indignaÅÇo com a injustiÅa, mas a fotografia à uma esperanÅa.<br />
Na volta <strong>de</strong> AmsterdÇ, o pequeno artista ingressa na Future Hope, nome significativo<br />
para a escola do menino revoltado que superou o ressentimento e enfrenta seu <strong>de</strong>stino trágico<br />
na busca do possÉvel.<br />
4.4 A MERCADORIA E O AFETO: O CAMINHO POSSíVEL E A AUTONOMIA<br />
Inegável a aÅÇo libertadora da arte na dimensÇo existencial das crianÅas nascidas em<br />
bordàis. Na dimensÇo material, entretanto, os caminhos da transcendÖncia artÉstica foram<br />
obrigados a um <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> sobrevivÖncia: motivada nÇo apenas pelo talento expresso nas<br />
obras, mas pela consciÖncia do apelo que fotos-<strong>de</strong>-filhos-<strong>de</strong>-prostitutas-indianas tÖm no<br />
mercado da solidarieda<strong>de</strong>, Briski nÇo se furtou a vendÖ-las como mercadoria para garantir äs<br />
crianÅas a autonomia financeira necessária para escapar do <strong>de</strong>stino.<br />
Talvez a conversÇo <strong>de</strong> arte em mercadoria tenha sido menos traumática neste caso<br />
particular por se tratar <strong>de</strong> arte fotográfica, um gÖnero prÑprio para a reproduÅÇo, no qual seu<br />
valor <strong>de</strong> exibiÅÇo se sobrepâe ao valor <strong>de</strong> culto. Se, quando surgiu, a fotografia foi, como diz<br />
Walter Benjamin, “a primeira tàcnica <strong>de</strong> reproduÅÇo verda<strong>de</strong>iramente revolucionária” 138 , hoje,<br />
ela se dissolve na versatilida<strong>de</strong> da imagem, a forma mais <strong>de</strong>senvolvida <strong>de</strong> mercadoria.<br />
Ao ven<strong>de</strong>r as fotos das crianÅas para ilustrar o calendário da Anistia Internacional, por<br />
exemplo, Briski se ren<strong>de</strong> ao mundo da publicida<strong>de</strong>, ao mundo da mercadoria mais<br />
sentimental. A visibilida<strong>de</strong> e os dÑlares obtidos com a operaÅÇo serviram nÇo sÑ para garantir<br />
a sobrevivÖncia dos jovens artistas, mas tambàm para “agregar valor” inestimável <strong>de</strong><br />
solidarieda<strong>de</strong> ä instituiÅÇo. A transformaÅÇo da arte em mercadoria parece impor-se hoje<br />
como condiÅÇo inescapável <strong>de</strong> sobrevivÖncia do artista e <strong>de</strong> exibiÅÇo da obra que, <strong>de</strong> outra<br />
forma, sucumbiria sem a vitrine indispensável da visibilida<strong>de</strong> nesse mundo da imagem e da<br />
super-exposiÅÇo. Dos bordàis mais pobres <strong>de</strong> Calcutá, invisÉveis numa índia que trata com<br />
indiferenÅa suas mulheres ilegais, as fotos dos alunos <strong>de</strong> Briski ganham o mundo com uma<br />
simples ida a Nova Iorque, a capital dos shopping centers da fraternida<strong>de</strong> prête-à-porter.<br />
Se a visibilida<strong>de</strong>, essa categoria do mundo da racionalida<strong>de</strong> funcional, ajuda a<br />
arrecadar fundos para a educaÅÇo das crianÅas, à o afeto, essa categoria do mundo das<br />
subjetivida<strong>de</strong>s, que lhes garante autonomia. NÇo foram somente as aulas <strong>de</strong> fotografia que<br />
138 BENJAMIN, 1980, p. 10.<br />
74
libertaram os filhos <strong>de</strong> prostitutas <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>stinos: foi, sobretudo, a relaÅÇo afetuosa<br />
construÉda pela fotÑgrafa que cativou nas crianÅas a confianÅa, a crenÅa na esperanÅa possÉvel<br />
e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanÅa.<br />
Neste sentido, a intelectual-professora Zana Briski pò<strong>de</strong> trazer o novo para seus alunos<br />
sob a forma <strong>de</strong> futuro. E seu filme pò<strong>de</strong> inovar a linguagem do documentário pela<br />
impregnaÅÇo do afeto: mais que a constataÅÇo, a sequÖncia <strong>de</strong> cenas constrÑi uma narrativa<br />
que revela o engajamento, a participaÅÇo e a aÅÇo efetiva da fotÑgrafa. Talvez esse impulso<br />
inovador <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o subjetivo se impor num terreno tradicionalmente ocupado pela<br />
objetivida<strong>de</strong> tenha sido fruto <strong>de</strong> uma autonomia prÑpria do estreante, um vigor que se funda<br />
apenas na vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer diferente, fora das amarras das fÑrmulas já estabelecidas. O<br />
“documentário engajado” <strong>de</strong> Briski traz a costura afetiva <strong>de</strong> imagens e discursos. A opÅÇo<br />
pelo afeto como ponto <strong>de</strong> vista nÇo perturba a percepÅÇo clara das coisas, nÇo reduz a<br />
compreensÇo do real, nÇo simplifica nem se <strong>de</strong>ixa escorregar na pieguice. Numa estàtica<br />
feminina, com <strong>de</strong>svelo materno e disciplina <strong>de</strong> professora primária, o filme cuida para que os<br />
vetores no sentido da vida possam oferecer a liberda<strong>de</strong> pela percepÅÇo simbÑlica dos laÅos<br />
verda<strong>de</strong>iramente solidários. Com acolhimento, Briski permite que seus alunos vejam com<br />
outros olhos a realida<strong>de</strong> hostil do mundo em que vivem. O <strong>de</strong>spertar para o compromisso <strong>de</strong><br />
assumir as rà<strong>de</strong>as da histÑria e do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> suas vidas resulta em mera consequÖncia <strong>de</strong>sse<br />
olhar crÉtico. A abordagem <strong>de</strong>licada <strong>de</strong> Briski nÇo diminui a crueza da injustiÅa e da<br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Ao contrário, alimenta <strong>de</strong> poesia o sonho <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> das crianÅas.<br />
A <strong>de</strong>speito da padronizaÅÇo exigida pela lÑgica da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massa, o filme segue<br />
indiferente ä estàtica do documentário tradicional. Tanto quanto na arte das crianÅas, a<br />
autonomia se dá pela espontaneida<strong>de</strong> e pelo afeto. Talvez esteja aÉ a inovaÅÇo <strong>de</strong> “Nascidos em<br />
Bordàis”: sem rupturas ou gran<strong>de</strong>s saltos estàticos, apenas introduz a subjetivida<strong>de</strong> no reino da<br />
racionalida<strong>de</strong> documentarista. Enquanto filme, repete o valor consagrado no projeto<br />
humanitário sincero: impâe-se como uma brecha que <strong>de</strong>ixa entrever um horizonte <strong>de</strong> esperanÅa<br />
na revisÇo crÉtica da tradiÅÇo. ï como a foto <strong>de</strong> Avijit. O menino po<strong>de</strong>ria apenas ter enquadrado<br />
a janela suja do bor<strong>de</strong>l com a luz <strong>de</strong> fora enchendo <strong>de</strong> um amarelo triste o interior do còmodo.<br />
Mas nÇo. O pequeno artista escolheu dar um passo atrás e abrir o foco apenas o suficiente para<br />
<strong>de</strong>ixar ver a ràstia <strong>de</strong> luz limpa e brilhante que passava pela fresta da porta entreaberta.<br />
75
5 A TELENOVELA ENQUANTO ARTE<br />
Com raras exceÅâes, o mundo acadÖmico torce o nariz para a telenovela: artigo <strong>de</strong><br />
consumo da cultura <strong>de</strong> massa, sem po<strong>de</strong>r criativo (apenas repetitivo) e sem valor artÉstico;<br />
mero entretenimento <strong>de</strong>stinado a a<strong>de</strong>strar autoritariamente as reaÅâes do espectador, a<br />
atrofiar-lhe a imaginaÅÇo e a espontaneida<strong>de</strong>. Assim, con<strong>de</strong>nada pelo suposto “espÉrito<br />
elevado” ao limbo das narrativas <strong>de</strong> segunda classe, a dramaturgia televisiva sucumbe no<br />
purgatÑrio da indëstria cultural como produto barato, peÅa <strong>de</strong> liquidaÅÇo: exposta em<br />
prateleira atraente (a mÉdia), oferecida quase <strong>de</strong> graÅa (programaÅÇo da tevÖ aberta) e pronta<br />
para agradar o gosto do freguÖs (aten<strong>de</strong>r a uma <strong>de</strong>manda massiva), poucos se arriscam a<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r sua qualida<strong>de</strong>. No Brasil, exaltam-na por sua gran<strong>de</strong> penetraÅÇo popular, por ter<br />
conquistado o mercado externo, por se manter viva apesar nos inëmeros prenëncios <strong>de</strong><br />
falÖncia, por provocar polÖmicas, mobilizar a opiniÇo pëblica, ser o cartÇo <strong>de</strong> visitas da maior<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> televisÇo do paÉs. Todos estes màritos, no entanto, nÇo tÖm sido capazes <strong>de</strong> outorgar-<br />
lhe a honra <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada obra <strong>de</strong> arte.<br />
Mesmo na baixa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, quando se constata a perda das referÖncias, a ruptura <strong>de</strong><br />
fronteiras estilÉsticas e o hibridismo como justaposiÅÇo dos contrários; mesmo na era das<br />
tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo, quando a arte per<strong>de</strong> seu valor <strong>de</strong> culto, sua aura e sua autenticida<strong>de</strong>, e<br />
a verda<strong>de</strong> nÇo passa <strong>de</strong> uma ilusÇo virtual; mesmo na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, quando tudo se<br />
submete ao mercado e ä fruiÅÇo do instantêneo, dos estereÑtipos e do espetáculo ― mesmo<br />
neste momento em que a nova histÑria volta-se äs narrativas dos atores anònimos, aos<br />
vestÉgios da verda<strong>de</strong>, aos <strong>de</strong>talhes mÉnimos da vida ordinária, impondo a revisÇo <strong>de</strong> conceitos,<br />
dogmas e cênones, ainda há quem se julgue curador da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> arte e quem cultive o “Belo”,<br />
reservando um altar para obras cuja autorida<strong>de</strong> seja confirmada pela presenÅa tradicional do<br />
po<strong>de</strong>r criativo, do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> testemunho histÑrico (“hic et nunc” do original), da genialida<strong>de</strong>,<br />
do valor <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong>, do valor <strong>de</strong> mistàrio, da I<strong>de</strong>ia.<br />
5.1 A ARTE TRADICIONAL<br />
Para os admiradores das “belas-letras”, telenovela à um produto <strong>de</strong> mÉdia <strong>de</strong>stinado ao<br />
consumidor da indëstria cultural: nÇo requer <strong>de</strong>le concentraÅÇo, promove apenas distraÅÇo.<br />
Esta literatura tida como “menor”, pronta para ser usada, para ser fruÉda, consumida, <strong>de</strong> fácil<br />
“leitura” e digestÇo, mero entretenimento, distingue-se por completo, na visÇo aristotàlica e na<br />
76
visÇo do beletrista, da literatura-arte, aquela que faz a linguagem, e da Ñpera, a obra <strong>de</strong> arte<br />
total, na qual o teatro (a representaÅÇo presentificada diante da plateia), o texto e a mësica<br />
celebram o sublime.<br />
Segundo Walter Benjamin, a questÇo se fundamenta nas condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo:<br />
enquanto produto da indëstria cultural, a telenovela teria na reproduÅÇo o elemento fundador<br />
que sustenta seu valor <strong>de</strong> exibiÅÇo; já a literatura “plena” e o teatro, enquanto arte, teriam na<br />
autenticida<strong>de</strong> a confirmaÅÇo <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> sua presenÅa histÑrica, com valor <strong>de</strong> culto.<br />
Se por um lado reconhece seu potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratizaÅÇo estàtica, por outro Benjamin<br />
constata que a reproduÅÇo tàcnica torna sem sentido a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>: como diferenciar<br />
o original da cÑpia se o que a tàcnica proporciona à a re-produÅÇo e nÇo a falsificaÅÇo? Para o<br />
autor, a obra reproduzida, multiplicada em cÑpias, nÇo tem “a ënica apariÅÇo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong><br />
longÉnqua, por mais prÑxima que ela esteja” 139 : sem aura, ela se imporia como uma forma<br />
original <strong>de</strong> arte, fora do conceito tradicional <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte; e sem vestÉgios <strong>de</strong> sua presenÅa<br />
histÑrica, transformaria o evento produzido apenas uma vez em fenòmeno <strong>de</strong> massas.<br />
Descolada do “hic et nunc” do original, a reproduÅÇo tàcnica conquistaria in<strong>de</strong>pendÖncia e se<br />
aproximaria do pëblico, indo buscá-lo em casa, e abrindo mÇo da reverÖncia exigida pela obra<br />
<strong>de</strong> arte tradicional. O problema nÇo estaria na infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> com relaÅÇo ao conteëdo da obra<br />
“original” (“Po<strong>de</strong> ser que as novas condiÅâes assim criadas pelas tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo, em<br />
paralelo, <strong>de</strong>ixem intacto o conteëdo da obra <strong>de</strong> arte” 140 ). De acordo com Benjamin, no i<strong>de</strong>ário<br />
tradicional, a falta da “unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua presenÅa no prÑprio local on<strong>de</strong> se encontra” (do “hic et<br />
nunc”) torna a obra <strong>de</strong> reproduÅÇo vulnerável justamente naquilo que lhe confere autorida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> arte: a autenticida<strong>de</strong>.<br />
O que caracteriza a autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma coisa à tudo aquilo que ela contàm e à<br />
originalmente transmissÉvel, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua duraÅÇo material atà seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> testemunho<br />
histÑrico. Como este prÑprio testemunho baseia-se naquela duraÅÇo, na hipÑtese da<br />
reproduÅÇo, on<strong>de</strong> o primeiro elemento (duraÅÇo) escapa aos homens, o segundo ― o<br />
testemunho histÑrico da coisa ― fica i<strong>de</strong>nticamente abalado. Nada <strong>de</strong>mais,<br />
certamente, mas o que fica assim abalado à a prÑpria autorida<strong>de</strong> da coisa. 141<br />
Ao associar-se a uma realida<strong>de</strong> fugidia que po<strong>de</strong> se reproduzir in<strong>de</strong>finidamente, a<br />
reproduÅÇo tàcnica per<strong>de</strong>ria, assim, sua unida<strong>de</strong> e duraÅÇo. Per<strong>de</strong>ria, por conseguinte, seu<br />
valor <strong>de</strong> culto, resultante <strong>de</strong> sua posiÅÇo inatingÉvel enquanto imagem. Mas, ganharia,<br />
entretanto, uma dimensÇo social: ao possibilitar a multiplicaÅÇo <strong>de</strong> si mesma, permite a<br />
139 BENJAMIN, 1980, p. 9.<br />
140 Ibi<strong>de</strong>m, p. 7.<br />
141 Ibi<strong>de</strong>m., p. 8.<br />
77
<strong>de</strong>mocratizaÅÇo <strong>de</strong> acesso ao seu conteëdo ou como diz Umberto Eco, “o acesso das classes<br />
subalternas ä fruiÅÇo dos bens culturais” 142 .<br />
O fenòmeno, segundo Eco, produziria a estandardizaÅÇo da percepÅÇo: “O alinhamento<br />
da realida<strong>de</strong> pelas massas, o alinhamento conexo das massas pela realida<strong>de</strong>, constituem um<br />
processo <strong>de</strong> alcance in<strong>de</strong>finido, tanto para o pensamento, como para a intuiÅÇo” 143 . De acordo<br />
com Benjamin, diante <strong>de</strong> uma reproduÅÇo tàcnica, nÇo se à mais <strong>de</strong>safiado pelo enigma da<br />
I<strong>de</strong>ia, pelo espÉrito do “Belo”; a funÅÇo artÉstica da obra parece mero acessÑrio ä sua condiÅÇo<br />
<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> exibÉvel. Enquadrada tradicionalmente a partir <strong>de</strong> sua funÅÇo alegÑrica e<br />
simbÑlica e <strong>de</strong> seu caráter imanente (“A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-<br />
nos outra coisa” 144 ), a obra <strong>de</strong> arte nÇo fala <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> dada. Segundo Martin Hei<strong>de</strong>gger,<br />
A verda<strong>de</strong>, como clareira e ocultaÅÇo do ente, acontece na medida em que se poetiza.<br />
Toda arte, enquanto <strong>de</strong>ixar-acontecer da adveniÖncia da verda<strong>de</strong> do ente como tal, à<br />
na sua essência Poesia. A essÖncia da arte, na qual repousam simultaneamente a obra<br />
<strong>de</strong> arte e o artista, à o pòr-em-obra-da-verda<strong>de</strong>. A partir da essÖncia poetante da arte<br />
acontece que, no meio do ente, ela erige um espaÅo aberto, em cuja abertura tudo se<br />
mostra <strong>de</strong> outro modo que nÇo o habitual. 145 [grifos do autor]<br />
Neste espaÅo aberto pela obra <strong>de</strong> arte, o ser, <strong>de</strong> acordo com o autor, vÖ-se diante <strong>de</strong> um<br />
“abismo intranquilizante” que subverte o famÉliar, faz a histÑria comeÅar <strong>de</strong> novo e <strong>de</strong>sperta o<br />
povo para a sua tarefa. ï neste “pòr-em-obra-da-verda<strong>de</strong>” que o “Belo” se instauraria, um<br />
belo cujo valor estaria mais no <strong>de</strong>spertar que promove do que no que sua essÖncia possa ter <strong>de</strong><br />
sagrado. DaÉ a importência social da arte: segundo Benjamin, quando a obra <strong>de</strong> arte per<strong>de</strong> sua<br />
aura, seu valor <strong>de</strong> culto, compensa essa ruptura do elo remoto com a religiÇo com a<br />
capacida<strong>de</strong> emancipatÑria que a reprodutibilida<strong>de</strong> proporciona. A tradicional discussÇo sobre<br />
a arte aurática e a arte “menor” se funda na constataÅÇo <strong>de</strong> Benjamin <strong>de</strong> que “Na medida em<br />
que diminui a significaÅÇo social <strong>de</strong> uma arte, assiste-se, no pëblico, a um divÑrcio crescente<br />
entre o espÉrito crÉtico e o sentimento <strong>de</strong> fruiÅÇo” 146 . Para ele, nas obras <strong>de</strong> reproduÅÇo, o<br />
pëblico, “pela virtualida<strong>de</strong> imediata <strong>de</strong> seu caráter coletivo”, reage maciÅamente ao que à<br />
exibido, nÇo separando a crÉtica da fruiÅÇo. Atà porque, na velocida<strong>de</strong> imposta pela tàcnica,<br />
nÇo há tempo para a contemplaÅÇo: as imagens se suce<strong>de</strong>m <strong>de</strong> tal modo que o olho, na<br />
tentativa <strong>de</strong> fixá-las, vÖ-se atropelado pela sequÖncia seguinte.<br />
142 ECO, 1998, p. 11.<br />
143 Ibi<strong>de</strong>m, p. 10.<br />
144 HEIDEGGER, 1977, p.13.<br />
145 Ibi<strong>de</strong>m, p. 58.<br />
146 BENJAMIN, 1980, p. 21.<br />
78
Por mais que as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger e Benjamin sobre o caráter sublime da obra <strong>de</strong> arte<br />
tenham se consagrado como referÖncia mo<strong>de</strong>lar, nÇo se po<strong>de</strong> ignorar que elas foram<br />
concebidas num momento em que as entÇo novas tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo inauguravam<br />
ameaÅas aos conceitos fundadores da arte, como autenticida<strong>de</strong> e originalida<strong>de</strong>, cristalizados<br />
durante sàculos pelos “espÉritos elevados” guardiâes do cênone. (O prÑprio Benjamin, mais<br />
tar<strong>de</strong>, em suas Passagens 147 , iria reavaliar suas observaÅâes sobre a reproduÅÇo tàcnica,<br />
obtidas com base no uso que o fascismo fez do cinema, para incorporar a dimensÇo<br />
mercadoria.) Nesse sentido, à preciso contextualizar o conceito <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte e repensá-lo a<br />
partir do nosso tempo, atualizando-o. NÇo estamos, como aqueles autores, diante do advento<br />
do cinema falado, surpresos com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> registrar, por meio da tàcnica, fragmentos<br />
da realida<strong>de</strong>, e assustados com o “autoritarismo” da imagem. Nem mesmo percebemos a<br />
reproduÅÇo como uma novida<strong>de</strong>, uma interposiÅÇo ameaÅadora entre o autÖntico e o exibido.<br />
Vivemos no mundo da tàcnica, experimentamos a realida<strong>de</strong> atravàs <strong>de</strong> intermediaÅâes<br />
midiáticas, numa apreensÇo inevitavelmente virtual do real. Os mais jovens sequer seriam<br />
capazes <strong>de</strong> conceber a vida sem tais aparatos. A massa nem mesmo se dá conta <strong>de</strong> que à por<br />
meio da tàcnica que o real se dá a conhecer. Como diz Huyssen, se nos anos 1920, “as<br />
tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo punham em xeque a tradiÅÇo cultural burguesa; hoje elas confirmam o<br />
mito do progresso tecnolÑgico em todos os nÉveis” 148 . Por outro lado, os intelectuais alertam<br />
para o fato <strong>de</strong> que tudo sÇo versâes, relatos mediados por outrem. De tal forma nosso tempo<br />
se ren<strong>de</strong>u äs reproduÅâes tàcnicas que atà mesmo o real se dá ao capricho <strong>de</strong> se fazer<br />
acontecer a tempo <strong>de</strong> ser transmitido em horário nobre.<br />
Neste tempo <strong>de</strong> imagens vertiginosas, <strong>de</strong> performances e instalaÅâes que se querem<br />
instantêneas e fugazes, <strong>de</strong> apreensÇo do real pelo virtual (ou da justaposiÅÇo <strong>de</strong> mëltiplas<br />
versâes do real), <strong>de</strong> <strong>de</strong>scràdito do original em favor da versÇo patrocinada, <strong>de</strong> clonagens e<br />
manipulaÅÇo da matriz genàtica, <strong>de</strong> fruiÅÇo e consumo, <strong>de</strong> niilismo e hedonismo ― nesse<br />
tempo <strong>de</strong> “simulacros e simulaÅÇo”, temos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar as alteraÅâes inevitavelmente<br />
impostas pela tàcnica em nossa percepÅÇo e constatar que nÇo mais se sustenta a noÅÇo <strong>de</strong><br />
autenticida<strong>de</strong> sobre a qual se fundou o conceito tradicional <strong>de</strong> arte. Brecht, <strong>de</strong>fensor da arte<br />
transformadora, antecipando o enfraquecimento das forÅas <strong>de</strong> resistÖncia artÉstica diante das<br />
pressâes do mercado do espetáculo, chegou mesmo a sugerir a a<strong>de</strong>quaÅÇo do conceito aos<br />
novos paradigmas como forma <strong>de</strong> qualificar uma outra realida<strong>de</strong> a partir da indëstria cultural<br />
e preservar a integrida<strong>de</strong> da arte tradicional:<br />
147 BENJAMIN, 2007.<br />
148 HUYSSEN, 1996, p. 113.<br />
79
Des<strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong> arte se torna mercadoria, essa noÅÇo (<strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte) já nÇo se<br />
lhe po<strong>de</strong> mais ser aplicada; assim sendo, <strong>de</strong>vemos, com prudÖncia e precauÅÇo ― mas<br />
sem receio ― renunciar ä noÅÇo <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte, caso <strong>de</strong>sejemos preservar sua funÅÇo<br />
<strong>de</strong>ntro da prÑpria coisa como tal <strong>de</strong>signada. [...] essa virada nÇo à gratuita, ela conduz<br />
a uma transformaÅÇo fundamental do objeto e que apaga seu passado a tal ponto, que,<br />
caso a nova noÅÇo <strong>de</strong>va reencontrar seu uso ― e por que nÇo? ― nÇo evocará mais<br />
qualquer das lembranÅas vinculadas ä sua antiga significaÅÇo. 149<br />
Ainda havia, na constataÅÇo do dramaturgo, a certeza <strong>de</strong> que, no seio da indëstria<br />
cultural, a arte se tornaria mercadoria. Havia tambàm a preocupaÅÇo <strong>de</strong> que “as novas tàcnicas<br />
artÉsticas levariam a uma eliminaÅÇo da cultura burguesa” 150 .<br />
5.2 A ARTE NA PñS-MODERNIDADE<br />
Fruto <strong>de</strong> outro tempo, Ranciöre discorda da tese benjaminiana: “As artes mecênicas<br />
induziriam, enquanto artes mecânicas [grifo do autor], uma modificaÅÇo <strong>de</strong> paradigma<br />
artÉstico e uma nova relaÅÇo com seus temas” 151 . Ele sugere que se tome a questÇo ao inverso,<br />
pois à o fato <strong>de</strong> o tema do anònimo tornar-se arte e ser <strong>de</strong>positário do belo no regime estàtico<br />
das artes que faz <strong>de</strong> sua reproduÅÇo tàcnica uma arte:<br />
Para que as artes mecênicas possam dar visibilida<strong>de</strong> äs massas ou, antes, ao indivÉduo<br />
anònimo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto à, <strong>de</strong>vem primeiro ser<br />
praticadas e reconhecidas como outra coisa, e nÇo como tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo e<br />
difusÇo. 152<br />
Para que um dado modo <strong>de</strong> fazer tàcnico ─ um uso das palavras ou da cêmera ─ seja<br />
qualificado como pertencendo ä arte, à preciso primeiramente que seu tema o seja. [...]<br />
A revoluÅÇo tàcnica vem <strong>de</strong>pois da revoluÅÇo estàtica. Mas a revoluÅÇo estàtica à<br />
antes <strong>de</strong> tudo a glÑria do qualquer um [grifo do autor] ─ que à pictural e literária,<br />
antes <strong>de</strong> ser fotográfica ou cinematográfica. 153<br />
Ranciöre, entÇo, reconfigura a <strong>de</strong>finiÅÇo <strong>de</strong> arte no bojo da revoluÅÇo estàtica que trocou<br />
a escala <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za da tradiÅÇo representativa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s personagens e acontecimentos<br />
pelos subterrêneos da vida ordinária protagonizada pelo anònimo perdido nas massas, pelas<br />
“testemunhas mudas” da “nova histÑria” 154 . Mais que a autenticida<strong>de</strong> e a originalida<strong>de</strong>, a arte<br />
na pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> se funda na escolha do banal como tema, esse banal que se torna “belo<br />
149 BRECHT apud. BENJAMIN, 1980, p. 12.<br />
150 HUYSSEN, 1996, p. 115.<br />
151 RANCI†RE, 2005, p. 45.<br />
152 Ibi<strong>de</strong>m, p. 46.<br />
153 Ibi<strong>de</strong>m, p. 47-48.<br />
154 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 59-60.<br />
80
como rastro do verda<strong>de</strong>iro” 155 . Na literatura, segundo o filÑsofo francÖs, a nova<br />
ficcionalida<strong>de</strong>, a nova maneira <strong>de</strong> contar histÑrias <strong>de</strong>ixa para trás o enca<strong>de</strong>amento causal<br />
aristotàlico das aÅâes para investir na or<strong>de</strong>naÅÇo <strong>de</strong> signos que dÇo sentido “ao universo<br />
‘empÉrico’ das aÅâes obscuras e dos objetos banais” 156 . Ranciöre explica:<br />
A soberania estàtica da literatura nÇo à, portanto, o reino da ficÅÇo. ï, ao contrário, um<br />
regime <strong>de</strong> indistinÅÇo ten<strong>de</strong>ncial entre a razÇo das or<strong>de</strong>naÅâes <strong>de</strong>scritivas e narrativas<br />
da ficÅÇo e as or<strong>de</strong>naÅâes da <strong>de</strong>scriÅÇo e interpretaÅÇo dos fenòmenos do mundo<br />
histÑrico e social. 157<br />
A revoluÅÇo estàtica transforma radicalmente as coisas: o testemunho e a ficÅÇo<br />
pertencem a um mesmo regime <strong>de</strong> sentido. De um lado, o “empÉrico” traz as marcas<br />
do verda<strong>de</strong>iro sob a forma <strong>de</strong> rastros e vestÉgios. “O que suce<strong>de</strong>u” remete pois<br />
diretamente a um regime <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, um regime <strong>de</strong> mostraÅÇo [grifo do tradutor, do<br />
neologismo francÉs “monstration”] <strong>de</strong> sua prÑpria necessida<strong>de</strong>. Do outro, “o que<br />
po<strong>de</strong>ria suce<strong>de</strong>r” nÇo tem mais a forma autònoma e linear da or<strong>de</strong>naÅÇo <strong>de</strong> aÅâes. A<br />
“histÑria” poàtica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> entÇo, articula o realismo que nos mostra os rastos poàticos<br />
inscritos na realida<strong>de</strong> mesma e o artificialismo que monta máquinas <strong>de</strong> compreensÇo<br />
complexas. 158<br />
Desobrigada <strong>de</strong> toda e qualquer regra e hierarquia (<strong>de</strong> temas, gÖneros e manifestaÅâes<br />
artÉsticas), a arte no que Ranciöre chama <strong>de</strong> regime estàtico das artes à singular e nÇo se<br />
submete a nenhum critàrio pragmático <strong>de</strong>ssa singularida<strong>de</strong>. Regras e hierarquias sÇo<br />
condicionantes do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> arte tradicional, esta arte que se impâe como revelaÅÇo, que<br />
busca uma Beleza I<strong>de</strong>alizada, que à dona <strong>de</strong> uma essÖncia invariável, que transcen<strong>de</strong> as<br />
transformaÅâes histÑricas e as diferenÅas culturais. Regras e hierarquias sÇo frutos <strong>de</strong> um<br />
mo<strong>de</strong>lo autoritário e elitista <strong>de</strong> arte que serviu a um dado momento histÑrico em que o<br />
impàrio dos gran<strong>de</strong>s era a dominante. Segundo Nàstor GarcÉa Canclini,<br />
Essa universalida<strong>de</strong> abstrata nunca existiu na realida<strong>de</strong> e sÑ alcanÅou certa vigÖncia,<br />
nos ëltimos sàculos, pela imposiÅÇo dos padrâes estàticos europeus e norteamericanos<br />
aos paÉses <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Junto com a dominaÅÇo econòmica, os paÉses<br />
imperialistas impuseram sua concepÅÇo estàtica a quase todas as culturas<br />
contemporêneas [...]. 159<br />
Para o autor, nÇo faz sentido cultuar a originalida<strong>de</strong> e a apariÅÇo ënica na era das<br />
reproduÅâes tàcnicas:<br />
155 RANCI†RE, 2005, p. 50.<br />
156 Ibi<strong>de</strong>m, p. 55.<br />
157 RANCI†RE , loc. cit.<br />
158 Ibi<strong>de</strong>m, p. 57.<br />
159 CANCLINI, 1980, p. 8.<br />
Os inumeráveis procedimentos para a reproduÅÇo maciÅa das mensagens (fotografia,<br />
cinema, televisÇo, cassetes, gravadores, fotocopiadoras, vi<strong>de</strong>otapes, etc.) converteram<br />
num capricho luxuoso e anacrònico a exigÖncia <strong>de</strong> que as obras <strong>de</strong> arte sejam ënicas e<br />
81
irrepetÉveis. O acesso maciÅo ao consumo da arte, possÉvel graÅas aos novos meios <strong>de</strong><br />
comunicaÅÇo, e a extensÇo da criativida<strong>de</strong> estàtica ao <strong>de</strong>senho, ä moda, ä vida<br />
cotidiana tornam insustentável a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> sua autonomia e da genialida<strong>de</strong><br />
excepcional dos criadores. 160<br />
Assim, entre o “sublime” da arte tradicional e o “banal” do regime estàtico das artes,<br />
Canclini toma o fenòmeno artÉstico como manifestaÅÇo <strong>de</strong> um processo social e<br />
comunicacional on<strong>de</strong> o autor, a obra, os difusores e o pëblico compâem um todo que se<br />
articula segundo as condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo e recepÅÇo da obra. Segundo o autor, nÇo se po<strong>de</strong><br />
separar as obras das forÅas econòmicas em que sÇo geradas, ignorando que elas sÇo<br />
“produzidas, distribuÉdas e vendidas”. Mais que representar as relaÅâes <strong>de</strong> produÅÇo, a arte as<br />
realiza: “o modo <strong>de</strong> representaÅÇo, <strong>de</strong> figuraÅÇo, <strong>de</strong> composiÅÇo, <strong>de</strong> filmagen, como tambàm o<br />
modo <strong>de</strong> percepÅÇo, sÇo consequÖncia do modo <strong>de</strong> produÅÇo da arte e variam com ela” 161 . Por<br />
forÅa <strong>de</strong> sua dimensÇo comunicacional, Canclini lembra que “Uma obra <strong>de</strong> arte nÇo chega a<br />
sÖ-lo se nÇo à recebida” ─ o que faz do consumo uma parte integrante do fato artÉstico:<br />
“modifica seu sentido segundo a classe social e a formaÅÇo cultural dos espectadores [...]” 162 .<br />
Como tudo o mais, assegura ele, no sistema capitalista, as obras <strong>de</strong> arte tambàm sÇo<br />
mercadorias 163 ! E enquanto tal, diz o autor, estÇo segmentadas em classes, segundo suas<br />
condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo e recepÅÇo ─ arte <strong>de</strong> elite, arte para as massas e arte popular ─ e sÇo<br />
julgadas com diferentes critàrios <strong>de</strong> valor, já que expressam estàticas separadas.<br />
Entre a relaÅÇo <strong>de</strong> reverÖncia cultivada pela alta arte e a <strong>de</strong> consumo, prevista para as<br />
obras da indëstria cultural, há que se consi<strong>de</strong>rar a nova (porque histÑrica) relaÅÇo do pëblico<br />
com a arte. Tomando a experiÖncia estàtica como algo que se dá no horizonte <strong>de</strong><br />
representaÅâes do receptor, a obra <strong>de</strong> arte nÇo mais, como se queria antes, encerra uma<br />
essÖncia, um discurso imanente a ela, presidido por conceitos e juÉzos pràvios, autònomos,<br />
viciados pelo gosto canònico. Ao contrário: como diz o teÑrico da literatura Luiz Costa<br />
Lima 164 a propÑsito da arte mimàtica, ela à “o discurso <strong>de</strong> um significante errante, em busca<br />
dos significados que o leitor lhe trará”, significados sempre transitÑrios, “cuja mutabilida<strong>de</strong><br />
está em correspondÖncia com o tempo histÑrico do receptor”. Assim, explica Wolfgang Iser,<br />
“A significaÅÇo da obra, entÇo, nÇo se encontra no significado selado <strong>de</strong>ntro do texto, mas no<br />
fato <strong>de</strong> que este significado revela o que estivera selado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nÑs” 165 . Ao recuperar o<br />
160 CANCLINI, 1980, p. 9.<br />
161 Ibi<strong>de</strong>m, p. 23.<br />
162 Ibi<strong>de</strong>m, p. 39.<br />
163 Ibi<strong>de</strong>m, p. 24.<br />
164 LIMA, 1981, p. 232.<br />
165 ISER apud LIMA, 1981, p. 231.<br />
82
leitor e a histÑria como partes integrantes do poàtico, e ao libertar a experiÖncia estàtica do<br />
juÉzo estàtico, o receptor, diante da arte, reage: ou se i<strong>de</strong>ntifica com a obra (e seu estoque <strong>de</strong><br />
saber pràvio nÇo à questionado, mas fruÉdo) ou sente-se agredido pela obra, o que po<strong>de</strong> abrir-<br />
lhe a perspectiva <strong>de</strong> uma segunda leitura na qual po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>safiado a repensar e modificar<br />
seu prà-saber (encontrar “o modo <strong>de</strong> absorver a agressÇo e <strong>de</strong> usufruir esteticamente seu<br />
‘contestador’”) 166 . Esta seria a nova dimensÇo da arte na pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: para alàm da mera<br />
fruiÅÇo, a arte se abriria diante do receptor em possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> modificaÅÇo do seu saber<br />
pràvio, dos valores arraigados pelo hábito cotidiano.<br />
Neste contexto, há que se consi<strong>de</strong>rar o papel da tecnologia e <strong>de</strong> seus instrumentos <strong>de</strong><br />
reproduÅÇo do real na configuraÅÇo da nova arte. Se a obra <strong>de</strong> arte nÇo se esgota em si mesma<br />
(pelo contrário: a produÅÇo receptiva do receptor supre os vazios daquilo que ele experimenta<br />
esteticamente); e se a experiÖncia historicizada do pëblico está irremediavelmente permeada<br />
pela tecnologia, entÇo havemos <strong>de</strong> concordar com Huyssen sobre o papel crucial <strong>de</strong>sta (e da<br />
experiÖncia <strong>de</strong> vida tecnologizada) sobre a arte: segundo o autor, a tecnologia, atravàs da<br />
indëstria cultural 167 , conseguiu muito mais do que transformar “substancialmente o cotidiano<br />
no sàculo XX” ─ ela, cuja mecanicida<strong>de</strong> e reprodutibilida<strong>de</strong> teriam comprometido a<br />
criativida<strong>de</strong> e a autenticida<strong>de</strong>, conseguiu, ironicamente, transformar a arte, propiciando a<br />
“obra <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> vanguarda e sua ruptura radical com a tradiÅÇo” na tentativa <strong>de</strong> “superar a<br />
dicotomia arte/vida e tornar a arte produtiva para a transformaÅÇo do cotidiano” 168 . A<br />
integraÅÇo da arte na práxis da vida, resultado da rejeiÅÇo por parte do pÑs-mo<strong>de</strong>rnismo äs<br />
teorias e práticas do “Gran<strong>de</strong> Divisor” entre alta arte e cultura <strong>de</strong> massa, permitiu ä crÉtica pòr<br />
<strong>de</strong> lado a “ansieda<strong>de</strong> contra a contaminaÅÇo” da cultura popular e consi<strong>de</strong>rar fenòmenos<br />
culturais antes indignos <strong>de</strong> serem tomados como arte. O novo paradigma pÑs-mo<strong>de</strong>rno,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Huyssen, impâe um cenário <strong>de</strong> relaÅâes mëtuas (negociaÅâes constantes) entre o<br />
mo<strong>de</strong>rnismo, a vanguarda e a cultura <strong>de</strong> massa. Neste contexto, a indëstria cultural passaria a<br />
ser vista nÇo mais como mera produtora <strong>de</strong> lixo, como background contra o qual a alta arte<br />
resplan<strong>de</strong>ceria sua glÑria, mas sim como dimensÇo inescapável da realida<strong>de</strong> industrial on<strong>de</strong><br />
nem tudo à mera mercadoria e on<strong>de</strong> atà mesmo o kitsch tem a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se converter<br />
em obra <strong>de</strong> alta qualida<strong>de</strong> 169 . Aliás, o escritor mo<strong>de</strong>rnista austrÉaco Hermann Broch já dizia<br />
em 1955 que nÇo há arte “sem uma pitada <strong>de</strong> kitsch” 170 .<br />
166 LIMA, 1981, p. 204.<br />
167 HUYSSEN, 1996, p. 37.<br />
168 Ibi<strong>de</strong>m, p. 37.<br />
169 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 10-11.<br />
170 BROCH apud LIMA, op. cit., p. 232.<br />
83
ï inegável que o conceito tradicional <strong>de</strong> arte nÇo se aplica ä arte produzida no contexto<br />
da indëstria cultural. Critàrios como autenticida<strong>de</strong>, permanÖncia, e abertura para o novo nÇo<br />
po<strong>de</strong>rÇo ser utilizados na <strong>de</strong>finiÅÇo da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma obra concebida pela lÑgica da<br />
reproduÅÇo, da instantaneida<strong>de</strong> e da a<strong>de</strong>quaÅÇo ä <strong>de</strong>manda. A negaÅÇo do cênone como<br />
referÖncia, no entanto, nÇo eleva qualquer produto da indëstria cultural ä condiÅÇo <strong>de</strong> arte. No<br />
novo paradigma pÑs-mo<strong>de</strong>rno, o belo po<strong>de</strong> estar no banal, na repetiÅÇo, na performance fugaz,<br />
no pastiche, na intervenÅÇo sobre linguagens prà-existentes, na reciclagem da estàtica, na<br />
histÑria do anònimo. O sublime e a revoluÅÇo dÇo lugar ao comum da vida diária e ä<br />
transformaÅÇo do cotidiano.<br />
5.3 MAIS QUE MERCADORIA<br />
Na cartilha dos tradicionais crÉticos da cultura, a expressÇo literatura “prête-à-porter”<br />
revela a con<strong>de</strong>naÅÇo da telenovela ao limbo da subcultura, da “arte <strong>de</strong> supermercado” 171 .<br />
Baseada em critàrios “qualitativos” que emergem da Gran<strong>de</strong> DivisÇo entre a alta arte e a<br />
cultura <strong>de</strong> massa, a tradicional distinÅÇo entre literatura e telenovela comeÅou a per<strong>de</strong>r o<br />
discurso com a emergÖncia do Pop, na meta<strong>de</strong> dos anos 1960, embora ainda inspire muitos<br />
crÉticos. Tal distinÅÇo traduz uma àpoca em que a experiÖncia da arte e da cultura exigia<br />
tempo, atenÅÇo e concentraÅÇo <strong>de</strong> um pëblico disposto a reverenciar o “Belo” com olhar<br />
contemplativo e solitário em museus concebidos como templos sagrados, espaÅos educativos<br />
e <strong>de</strong> memÑria. Ainda nÇo vigoravam com a volëpia <strong>de</strong> hoje o universo do consumo, a<br />
ambiÖncia mediatizada e a estàtica do espetáculo; e o pëblico nÇo exibia seu olhar distraÉdo <strong>de</strong><br />
consumidor. Os museus ainda nÇo tinham a<strong>de</strong>rido ä estàtica dos shopping centers, ainda nÇo<br />
tinham se convertido, como diz Huyssen, “em um lugar <strong>de</strong> uma mise em scène espetacular e<br />
<strong>de</strong> uma exuberência operÉstica” 172 . Segundo o autor, a Pop Art secularizaria a arte, fazendo-a<br />
per<strong>de</strong>r seu valor <strong>de</strong> culto; libertaria a arte “do tàdio monumental do Informel e do<br />
Expressionismo Abstrato” e romperia “os limites da torre <strong>de</strong> marfim <strong>de</strong>ntro dos quais a arte<br />
tinha rodado em cÉrculos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a dàcada <strong>de</strong> 50” 173 .<br />
171 HUYSSEN, 1996, p. 94.<br />
172 Ibi<strong>de</strong>m, p. 223.<br />
173 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 96-97.<br />
O “realismo” do Pop, sua proximida<strong>de</strong> aos objetos, imagens e reproduÅâes da vida<br />
diária estimulavam um novo <strong>de</strong>bate sobre a relaÅÇo entre arte e vida, imagem e<br />
realida<strong>de</strong> [...]. Des<strong>de</strong> seu inÉcio, o Pop proclamou que eliminaria a histÑrica separaÅÇo<br />
84
entre o estàtico e o nÇo-estàtico, juntando e reconciliando, portanto, a arte e a<br />
realida<strong>de</strong>. [...] Na i<strong>de</strong>ologia burguesa, a obra <strong>de</strong> arte ─ apesar <strong>de</strong> sua quase completa<br />
distência do ritual ─ ainda funcionava como uma espàcie <strong>de</strong> substituto da religiÇo;<br />
com o Pop, no entanto, a arte se tornou profana, concreta e pronta para a recepÅÇo <strong>de</strong><br />
massa. 174<br />
Neste sentido, ao tornar a arte popular, ao substituir o conceito burguÖs <strong>de</strong> “Belo” pela<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Andy Warhol <strong>de</strong> que “tudo à bonito”, ao valorizar as trivialida<strong>de</strong>s da vida diária e<br />
exaltar os princÉpios da reproduÅÇo por sua funÅÇo <strong>de</strong>mocratizante, a Por Art nÇo sÑ <strong>de</strong>struiu a<br />
aura da obra <strong>de</strong> arte (<strong>de</strong>sprezando o que entÇo se acreditava ser a fonte <strong>de</strong> sua autonomia,<br />
autenticida<strong>de</strong> e originalida<strong>de</strong>) e rompeu a histÑrica separaÅÇo entre o estàtico e o nÇo-estàtico,<br />
como tambàm inscreveu as manifestaÅâes artÉsticas na realida<strong>de</strong> da indëstria cultural,<br />
libertando a arte do constrangimento <strong>de</strong> suas condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo e distribuiÅÇo em uma<br />
economia <strong>de</strong> mercado. Se a <strong>de</strong>struiÅÇo da aura e o fim da distinÅÇo entre estàtico e nÇo-<br />
estàtico indicaram um caminho <strong>de</strong> aproximaÅÇo entre a “alta” e a “baixa” artes, a aceitaÅÇo da<br />
indëstria cultural como mediadora entre a produÅÇo e a recepÅÇo artÉstica expòs o caráter<br />
mercantilista da arte sem, no entanto, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a reduÅÇo da arte ä mera mercadoria. Huyssen<br />
adverte para o equÉvoco <strong>de</strong>, ao circunscrever a arte ä esfera da indëstria cultural, con<strong>de</strong>ná-la ä<br />
manipulaÅÇo total do capital, reduzindo-a ao seu valor <strong>de</strong> troca, como se seu conteëdo nÇo<br />
tivesse valor, como se, necessariamente, o que à produzido se igualasse äs relaÅâes <strong>de</strong><br />
produÅÇo e o que à distribuÉdo se igualasse ao sistema <strong>de</strong> distribuiÅÇo. ï preciso nÇo<br />
subestimar a natureza dialàtica da arte!, alerta o autor.<br />
Mesmo sob as condiÅâes dadas pela indëstria cultural capitalista, e seus mecanismos<br />
<strong>de</strong> distribuiÅÇo, a arte em ëltima instência po<strong>de</strong> abrir avenidas emancipatÑrias, se nÇo<br />
por outra coisa, porque se acredita em sua autonomia e falta <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> prática. A<br />
tese da total sujeiÅÇo da arte ao mercado tambàm subestima as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
emancipaÅÇo inerentes ao consumo; em geral, o consumo satisfaz necessida<strong>de</strong>s, e<br />
mesmo que as necessida<strong>de</strong>s humanas possam ser distorcidas a um nÉvel absurdo, toda<br />
necessida<strong>de</strong> contàm um menor ou maior nÉvel <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>. 175<br />
No rastro <strong>de</strong>ixado pela banalizaÅÇo do belo e pela <strong>de</strong>fesa da eliminaÅÇo entre a alta e a<br />
baixa artes, a Pop Art abriu pelo menos uma importante “avenida emancipatÑria”: mais que<br />
propor o cotidiano como foco do imaginário e chamar a atenÅÇo para o “imaginário do<br />
cotidiano”, o movimento inspirou os artistas a impregnar <strong>de</strong> estàtica todas as esferas da<br />
produÅÇo humana e a fazer da ativida<strong>de</strong> estàtica um instrumento <strong>de</strong> mudanÅa do cotidiano.<br />
Evocar o “sentido prático” da arte ao invàs <strong>de</strong> evocar o sublime po<strong>de</strong> permitir ao artista ver,<br />
174 HUYSSEN, 1996, p. 97.<br />
175 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 108-109.<br />
85
sob as “necessida<strong>de</strong>s pela meta<strong>de</strong>” criadas pelo consumo, um rastro <strong>de</strong> sonho e <strong>de</strong> utopia que<br />
fazem <strong>de</strong>las “necessida<strong>de</strong>s progressistas” 176 .<br />
5.4 A ARTE DA TELENOVELA<br />
Dadas suas condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo, sua submissÇo ä lÑgica do mercado, sua rendiÅÇo ao<br />
gosto da audiÖncia, sua efÖmera duraÅÇo e sua fruiÅÇo como espetáculo, a dramaturgia<br />
televisiva seria <strong>de</strong>scrita por Canclini como arte para as massas. Embora seus autores muitas<br />
vezes sejam egressos da literatura, ou mesmo exilados do teatro, os textos produzidos para<br />
exibiÅÇo num veÉculo <strong>de</strong> massa como a televisÇo, escapam, por sua prÑpria natureza, da noÅÇo<br />
tradicional <strong>de</strong> arte. Entretanto apresentam, por outro lado, <strong>de</strong>masiada qualida<strong>de</strong> literária para<br />
serem jogados no limbo como refugo da cultura industrializada.<br />
Cria das narrativas midiáticas disseminadas para gran<strong>de</strong>s plateias por intermàdio <strong>de</strong><br />
aparatos tàcnicos, a telenovela herdou a maldiÅÇo do berÅo em que foi acalentada: renegada<br />
pela literatura “plena”, vaga entre a indiferenÅa da crÉtica e o aplauso da audiÖncia, con<strong>de</strong>nada<br />
ä condiÅÇo <strong>de</strong> literatura “prête-à-porter”. De sua inserÅÇo original como folhetim impresso no<br />
rodapà das páginas <strong>de</strong> jornal e <strong>de</strong> sua posterior transmissÇo oral em ondas <strong>de</strong> rádio, a novela<br />
televisiva trouxe a linguagem simples, <strong>de</strong> fácil compreensÇo, capaz <strong>de</strong> ser captada por todo<br />
tipo <strong>de</strong> plateia, letrada ou nÇo. Da sonorida<strong>de</strong> das palavras interpretadas ao vivo para serem<br />
apenas ouvidas, ficou a constataÅÇo <strong>de</strong> que a instantaneida<strong>de</strong> da transmissÇo impunha a<br />
impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma segunda “leitura”: o texto <strong>de</strong>via ser entendido <strong>de</strong> uma vez por todas.<br />
De sua origem como “programa patrocinado”, manteve o compromisso <strong>de</strong> agradar o pëblico e<br />
acatar os interesses do mercado. De sua introduÅÇo no mundo mágico das imagens<br />
eletrònicas, com seus recursos <strong>de</strong> enquadramento, ediÅÇo e efeitos especiais, a telenovela<br />
extraiu sua vocaÅÇo para o espetáculo. Do alcance <strong>de</strong> sua popularida<strong>de</strong>, veio a missÇo ainda<br />
que velada <strong>de</strong> funcionar como aliada do governo na formaÅÇo <strong>de</strong> uma consciÖncia nacional e<br />
na integraÅÇo do povo brasileiro em torno do projeto <strong>de</strong> naÅÇo concebido durante o regime<br />
militar. E ainda, dialeticamente: <strong>de</strong> obra muitas vezes nascida do refëgio <strong>de</strong> dramaturgos <strong>de</strong><br />
esquerda con<strong>de</strong>nados ao silÖncio pela ditadura, ficou a oportunida<strong>de</strong> imperdÉvel <strong>de</strong> oferecer ao<br />
povo a crÉtica social, polÉtica e <strong>de</strong> costumes; um espaÅo para levantar questâes <strong>de</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong> social e <strong>de</strong> cidadania, elevando a estatura polÉtica das telenovelas. Na<br />
conjunÅÇo <strong>de</strong> todos estes “dons”, a teledramaturgia, ao longo <strong>de</strong> sua existÖncia, configurou-se<br />
176 HUYSSEN, 1996, pp. 116-118.<br />
86
como o mais importante produto da indëstria cultural brasileira ― e tambàm o mais lucrativo.<br />
Exatamente pelo mesmo motivo tem tido seu passaporte negado para o paraÉso da arte.<br />
A julgar pela <strong>de</strong>manda (esse critàrio da estàtica <strong>de</strong> mercado), as telenovelas tÖm lugar<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na prateleira <strong>de</strong> “gÖneros <strong>de</strong> primeira qualida<strong>de</strong>” <strong>de</strong>ste supermercado em que se<br />
tornou a cultura na baixa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ali, a mÉdia lhe ren<strong>de</strong> homenagens, os festivais lhe<br />
<strong>de</strong>dicam prÖmios, os anunciantes reforÅam seus patrocÉnios. Mas seria justo para com a<br />
teledramaturgia ter sua qualida<strong>de</strong> aferida apenas em termos <strong>de</strong> audiÖncia, <strong>de</strong> nëmeros <strong>de</strong><br />
televisores sintonizados na histÑria narrada?<br />
ï inegável que o altÉssimo Éndice <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> das novelas brasileiras já à por si sÑ<br />
digno <strong>de</strong> louvor. Afinal, uma <strong>de</strong>manda assim tÇo consistente, uma <strong>de</strong>manda que se distribui<br />
entre todas as classes sociais e que consegue aproximar letrados e analfabetos <strong>de</strong>monstra uma<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao gÖnero que nÇo se <strong>de</strong>ixa abalar nem mesmo pela oferta tentadora dos canais <strong>de</strong><br />
televisÇo a cabo. Alguàm dirá que a massa da populaÅÇo brasileira sÑ tem acesso ä tevÖ<br />
aberta, que a questÇo da escolha entÇo nÇo se apresenta, e que a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> äs telenovelas foi<br />
forjada durante os anos em que se negou äs famÉlias brasileiras o conforto e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
zapping proporcionado pelo controle remoto, forÅando o pëblico a se acostumar com o que<br />
lhe oferecia a mais forte emissora <strong>de</strong> tevÖ do paÉs, nÇo por acaso uma emissora que se tornou<br />
referÖncia na produÅÇo <strong>de</strong> novelas. ï verda<strong>de</strong>. Mas, à tambàm verda<strong>de</strong> que as classes <strong>de</strong><br />
maior po<strong>de</strong>r aquisitivo que dispâem <strong>de</strong> acesso aos inëmeros canais a cabo nÇo se <strong>de</strong>ixaram<br />
seduzir pela oferta glamourosa do mundo globalizado nem pela estàtica das produÅâes dos<br />
paÉses <strong>de</strong>senvolvidos. As classes A e B permaneceram fiàis ao folhetim televisivo 177 .<br />
O fato <strong>de</strong> a telenovela ser uma narrativa talhada para a recepÅÇo <strong>de</strong> massa nÇo lhe retira<br />
necessariamente a expressÇo artÉstica. (Nos anos 1960, a Pop Art atraÉa milhares <strong>de</strong> pessoas<br />
para a abertura <strong>de</strong> uma exposiÅÇo, quando na dàcada anterior as exposiÅâes da alta arte eram<br />
eventos exclusivos <strong>de</strong> um pequeno nëmero <strong>de</strong> “experts e compradores” 178 .) Assim, se a<br />
audiÖncia, ou a aprovaÅÇo popular, nÇo po<strong>de</strong> ser tomada isoladamente como prova do valor<br />
artÉstico da telenovela, tambàm nÇo lhe <strong>de</strong>scre<strong>de</strong>ncia para a condiÅÇo <strong>de</strong> arte. Sua<br />
popularida<strong>de</strong> seria uma funÅÇo nÇo da medianida<strong>de</strong> da linguagem ou <strong>de</strong> seu caráter<br />
totalizante, mas sim da riqueza polissÖmica <strong>de</strong> sua narrativa, capaz <strong>de</strong> oferecer aos diferentes<br />
177 Segundo pesquisa do IBOPE realizada no inÉcio <strong>de</strong> 2008, as classes mais altas chegaram mesmo a registrar<br />
um aumento <strong>de</strong> sua preferÖncia pela telenovela: “Cerca <strong>de</strong> 30% dos espectadores <strong>de</strong> Senhora do Destino eram<br />
das classes A e B, 43% da C e 28% <strong>de</strong> D e E. Já Duas Caras teve 35% <strong>de</strong> espectadores das classes A e B, 50%<br />
da classe C e 15% das D e E”. In: “AudiÖncia das novelas da Globo”, disponÉvel em:<br />
.<br />
Acesso em 20 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2009.<br />
178 HUYSSEN, 1996, p. 96.<br />
87
segmentos <strong>de</strong> pëblico uma possibilida<strong>de</strong> singular <strong>de</strong> leitura. Igualmente, o fato <strong>de</strong> ser uma<br />
obra concebida nos mol<strong>de</strong>s da indëstria cultural nÇo faz <strong>de</strong>la uma mercadoria reduzida a seu<br />
valor <strong>de</strong> troca, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> seu conteëdo (o que tambàm nÇo quer dizer que toda<br />
telenovela alcance per se a dimensÇo artÉstica). Alàm disso, o fato <strong>de</strong> ser exposta na tela <strong>de</strong><br />
tevÖ e <strong>de</strong> ter sua recepÅÇo pelo pëblico limitada pela natureza midiática do veÉculo tambàm<br />
nÇo restringe seu potencial artÉstico. Para alàm <strong>de</strong> sua configuraÅÇo enquanto produto, <strong>de</strong> sua<br />
veiculaÅÇo mediatizada e <strong>de</strong> sua popularida<strong>de</strong>, a telenovela po<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r as dominantes<br />
econòmicas <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> produÅÇo, distribuiÅÇo e consumo e alcanÅar a dimensÇo da<br />
obra <strong>de</strong> arte pela riqueza <strong>de</strong> sua narrativida<strong>de</strong>. Deixando para trás a tradicional e ultrapassada<br />
separaÅÇo entre a alta arte e a baixa arte, ela po<strong>de</strong>, pelo po<strong>de</strong>r mimàtico da realida<strong>de</strong> expresso<br />
em seu conteëdo, conquistar a autonomia prÑpria da arte (mesmo sob as condiÅâes dadas pela<br />
indëstria cultural) e ainda, pelo po<strong>de</strong>r transformador do cotidiano expresso na trivialida<strong>de</strong><br />
estàtica, abrir uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emancipaÅÇo artÉstica.<br />
Talvez o potencial artÉstico e emancipatÑrio das telenovelas advenha da combinaÅÇo <strong>de</strong><br />
caracterÉsticas as mais distintas, herdadas da tragàdia aristotàlica, do teatro brechtiano, do<br />
jornalismo, do romantismo, do realismo e do sensacional: a catarse alienante, o distanciamento<br />
revolucionário, o factual, o subjetivo, a reproduÅÇo da vida diária e o fantástico ─ tudo isso<br />
correndo paralelamente em suas mëltiplas dimensâes narrativas, a textual, a imagàtica, a<br />
cÖnica e a sonora. ContribuiÅâes literárias <strong>de</strong> diferentes momentos histÑricos se entrelaÅam ao<br />
sabor do contemporêneo com os fios do real e do ficcional para compor uma narrativa que<br />
resulta, como diz Artur da Távola, em um “espetáculo lÉtero-sonoro-dramático-visual”, um<br />
verda<strong>de</strong>iro mosaico estàtico. Regida pela estàtica contemporênea <strong>de</strong> cada àpoca, a narrativa<br />
polissÖmica da telenovela soube justapor/abandonar/adaptar tais contribuiÅâes <strong>de</strong> modo a<br />
priorizar o catártico no dramalhÇo <strong>de</strong> àpoca da fase inicial do gÖnero televisivo; o drama <strong>de</strong><br />
fundo psicolÑgico, o realismo urbano, a <strong>de</strong>nëncia e a crÉtica social, o <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> temas do<br />
jornalismo (ecologia, reforma agrária) e o realismo fantástico nas tramas que tiveram que<br />
contornar por caminhos distintos os difÉceis anos da ditadura; a parÑdia, a alegoria e o<br />
distanciamento crÉtico nos momentos iniciais da abertura polÉtica; e a combinaÅÇo <strong>de</strong> drama<br />
psicolÑgico, comàdia e realismo, pontuada por campanhas <strong>de</strong> cunho social, na fase mais<br />
recente. Ao longo dos quase 60 anos <strong>de</strong> sua histÑria, a telenovela brasileira soube alimentar-se<br />
da tàcnica e da estàtica <strong>de</strong> seu tempo para atualizar, muitas vezes dialeticamente, os espÉritos<br />
literários que a inspiram.<br />
As fatias <strong>de</strong> ficÅÇo que se enca<strong>de</strong>iam capÉtulo a capÉtulo diante da audiÖncia atravàs da<br />
tela da tevÖ recriam a arte milenar <strong>de</strong> contar histÑrias a partir das tecnologias da indëstria<br />
88
cultural que tanto favorecem a produção e a recriação ficcional. Pela narrativida<strong>de</strong> das<br />
telenovelas, a imaginação, a emoção e a produção <strong>de</strong> sentido mobilizam, no Brasil, milhões<br />
<strong>de</strong> telespectadores fascinados com a possibilida<strong>de</strong> que a arte da imitação do cotidiano<br />
proporciona: a transcendência pela fábula, o prazer estético na aventura da literatura.<br />
Percorridos os caminhos preliminares para o entendimento dos muitos <strong>de</strong>sdobramentos do<br />
tema telenovela, cabe agora <strong>de</strong>sbravar o universo narrativo das telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez.<br />
89
6 NARRATIVAS SOBRE MUNDO MUÇULMANO<br />
Oci<strong>de</strong>nte-Oriente: mais que pontos car<strong>de</strong>ais opostos, imagens que encerram uma visÇo <strong>de</strong><br />
mundo concebida pela cultura dos binarismos. Um “ou isto ou aquilo” que, ao longo dos<br />
sàculos, serviu para contrapor, a partir do discurso hegemònico oci<strong>de</strong>ntal, o “colonizador” ao<br />
“colonizado”, o “civilizado” ao “primitivo”, a “ciÖncia” ä “superstiÅÇo”, o “<strong>de</strong>senvolvido” ao<br />
“em <strong>de</strong>senvolvimento”. Embora tenha sido oferecida como uma mera constataÅÇo <strong>de</strong><br />
polarida<strong>de</strong>s ─ um “fato da natureza” ─, esta apreensÇo dicotòmica do mundo revelou-se um<br />
instrumento polÉtico necessário para a configuraÅÇo da Europa, e mais tar<strong>de</strong> (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Segunda<br />
Guerra Mundial) dos Estados Unidos, como o “lugar da plenitu<strong>de</strong> civilizacional” 179 , para usar a<br />
expressÇo <strong>de</strong> Leela Gandhi. Assim, o Oriente foi esvaziado <strong>de</strong> sentido para que sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
fosse construÉda e sua cultura inventada como um alter ego diferente e concorrente do Oci<strong>de</strong>nte.<br />
Esse à, no entanto, um processo relacional em que Oriente e Oci<strong>de</strong>nte sÇo igualmente<br />
narrativas. Ocorre que o Oci<strong>de</strong>nte, alàm <strong>de</strong> ter voz prÑpria, fala tambàm em nome do Oriente. E<br />
este, sem chance <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> si, permanece em sua condiÅÇo <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong> como uma<br />
representaÅÇo formulada por outrem.<br />
Embora os movimentos <strong>de</strong> liberaÅÇo que vieram ä tona no sàculo XX atestem com<br />
eloquÖncia que o subalterno po<strong>de</strong> falar (“Houve uma revoluÅÇo tÇo po<strong>de</strong>rosa na consciÖncia<br />
das mulheres, das minorias, e dos marginais que afetou o pensamento dominante no mundo<br />
inteiro” 180 ), e embora a globalizaÅÇo comemore a quebra <strong>de</strong> fronteiras, a <strong>de</strong>scentralizaÅÇo do<br />
emissor, a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discursos e a abertura para o multiculturalismo, o que se observa à<br />
que o Oriente, assim como outras culturas que vivem sob o efeito “duradouro e injusto” 181 da<br />
colonizaÅÇo, ainda à apresentado ao mundo a partir das lentes distorcidas do Oci<strong>de</strong>nte.<br />
Segundo o pensador palestino-americano Edward Said, a histÑria das gran<strong>de</strong>s narrativas<br />
à repleta <strong>de</strong> distorÅâes e imprecisâes, e vem ganhando complexida<strong>de</strong> com o passar do tempo:<br />
se a partir do ëltimo terÅo do sàculo XVIII a amplitu<strong>de</strong> da representaÅÇo do Oriente se<br />
expandiu enormemente, os estereÑtipos culturais e a standardizaÅÇo a respeito <strong>de</strong>sta regiÇo<br />
tÖm sido exponencialmente reforÅados no mundo pÑs-mo<strong>de</strong>rno e eletrònico com a forÅa da<br />
televisÇo, do cinema e <strong>de</strong> outros meios <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa 182 . De fato, os relatos agora<br />
ganharam uma aparentemente incontestável dimensÇo visual: dÇo a impressÇo <strong>de</strong> transformar<br />
o pëblico em testemunha e conferem äquele que narra uma objetivida<strong>de</strong> impossÉvel. Cada vez<br />
179 GANDHI, 1998, p. 15.<br />
180 SAID, 1979, p. 348.<br />
181 SAID, 1990, p. 207.<br />
182 SAID, 1979, p. 26.<br />
90
mais, as narrativas nada inocentes sobre o Oriente ─ porque nenhuma narrativa à inocente! ─<br />
ganham status <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, com a pretensÇo <strong>de</strong> estar <strong>de</strong>screvendo o Oriente em “essÖncia” 183 .<br />
Todos vimos com espanto as imagens dos aviâes comerciais americanos chocando-se<br />
contra as torres gÖmeas do World Tra<strong>de</strong> Center. Subitamente, graÅas ä instantaneida<strong>de</strong> dos<br />
veÉculos <strong>de</strong> comunicaÅÇo, todo o mundo se colocou na posiÅÇo privilegiada <strong>de</strong> testemunha<br />
virtual da histÑria. As imagens capturadas <strong>de</strong>savisadamente eram sublinhadas inicialmente por<br />
interjeiÅâes <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> e horror. TÇo logo ficou caracterizado o atentado, os textos da<br />
mÉdia internacional se alinharam ä versÇo do governo americano e passaram a divulgar o<br />
perfil do inimigo da vez: Osama bin La<strong>de</strong>n, seus seguidores, os terroristas suicidas e, por<br />
extensÇo, o AfeganistÇo, o TalibÇ, o Islamismo fundamentalista, numa generalizaÅÇo que<br />
engloba todo o Oriente. O horror do atentado, a morte dos inocentes, o drama dos familiares<br />
das vÉtimas e a dimensÇo fÉsica do ato pareciam autorizar o consenso em torno do discurso<br />
ënico que associava muÅulmanos e islamismo a práticas terroristas. Se o 11 <strong>de</strong> setembro<br />
entrou para a histÑria como o mais brutal atentado <strong>de</strong> todos os tempos e inaugurou nos<br />
Estados Unidos a era do pênico, po<strong>de</strong>-se dizer tambàm que a data marcou o inÉcio <strong>de</strong> uma<br />
nova gran<strong>de</strong> narrativa sobre o Oriente.<br />
Uma análise comparativa da alterida<strong>de</strong> a partir dos discursos oci<strong>de</strong>ntais sobre os<br />
muÅulmanos e sobre o islamismo neste cenário pÑs-11 <strong>de</strong> setembro dá a medida <strong>de</strong>ssa nova<br />
narrativa. Numa comparaÅÇo entre o discurso factual e o ficcional, o foco aqui se atàm aos<br />
relatos jornalÉsticos a respeito do atentado publicados na revista Veja e ä narrativa<br />
dramatërgica do nëcleo muÅulmano na telenovela “O Clone”, <strong>de</strong> Gloria Perez, veiculada na<br />
TV Globo. Embora estas narrativas tenham tido circulaÅÇo quase simultênea (a telenovela<br />
estreou menos <strong>de</strong> um mÖs <strong>de</strong>pois dos atentados), cada uma se fundamentou numa fonte<br />
diferente: o noticiário se alimentou <strong>de</strong> <strong>de</strong>claraÅâes oficiais e relatos <strong>de</strong> agÖncias <strong>de</strong> notÉcias e<br />
correspon<strong>de</strong>ntes internacionais; a telenovela foi inspirada em textos literários, histÑricos,<br />
polÉticos, antropolÑgicos, fotos, filmes, relatos pessoais e assessoria profissional ─ enfim,<br />
toda sorte <strong>de</strong> registro que costuma compor o imaginário <strong>de</strong> quem fala do Oriente. Dessa<br />
maneira, o brasileiro que assistiu ao noticiário e ä telenovela naquela àpoca acabou<br />
183 Da mesma forma que, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Said, nÇo se po<strong>de</strong> estudar ou enten<strong>de</strong>r i<strong>de</strong>ias, culturas ou histÑrias sem<br />
estudar suas configuraÅâes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, tambàm nÇo se po<strong>de</strong> isolar o pesquisador ou o narrador <strong>de</strong> suas<br />
circunstências <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong> seus envolvimentos com uma classe, um conjunto <strong>de</strong> crenÅas, uma posiÅÇo social, uma<br />
ativida<strong>de</strong> profissional etc. Assim, tanto a produÅÇo acadÖmica quanto a jornalÉstica, por exemplo, nÇo po<strong>de</strong> se<br />
preten<strong>de</strong>r nÇo-polÉtica e imparcial ― o que equivale a dizer que nÇo há discurso inocente. Igualmente, a<br />
preocupaÅÇo do narrador com a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> em relaÅÇo a algum gran<strong>de</strong> original parece <strong>de</strong>sconhecer ou ignorar o<br />
fato <strong>de</strong> que o que ele divulga nÇo à a verda<strong>de</strong> e sim uma representaÅÇo exterior äquilo que à <strong>de</strong>scrito: impossÉvel<br />
conhecer uma cultura em sua essÖncia; sendo a histÑria relacional e dinêmica, cristalizar a cultura num mo<strong>de</strong>lo<br />
puro e incondicional à negar a mudanÅa e a complexida<strong>de</strong> da realida<strong>de</strong> humana.<br />
91
confrontando duas imagens do muÅulmano e do islamismo: a factual e a ficcional, a<br />
supostamente verda<strong>de</strong>ira e a verossÉmil. Cabe investigar que relaÅÇo mantinham entre si estas<br />
duas narrativas, já que o noticiário sobre o 11 <strong>de</strong> setembro se esten<strong>de</strong>u por todo o perÉodo em<br />
que a telenovela foi ao ar e a mÉdia brasileira nÇo se furtou a oferecer um cruzamento entre<br />
eles. Os perfis traÅados seriam contrastantes, contraditÑrios ou complementares? Po<strong>de</strong>riam ser<br />
claramente i<strong>de</strong>ntificados como factuais (o jornalÉstico) e como ficcionais (a telenovela)? Em<br />
que medida o texto jornalÉstico se aproxima do ficcional em estilo, gÖnero e propÑsito? Ou<br />
seria parte do <strong>de</strong>safio do texto ficcional <strong>de</strong> telenovela manter estreita relaÅÇo com a<br />
“realida<strong>de</strong>”? Ao tomarem para si a tarefa <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver uma outra cultura, nÇo teriam ambas as<br />
narrativas sucumbido ao que Said chama <strong>de</strong> Orientalismo, um conjunto <strong>de</strong> crenÅas ou sistema<br />
completo <strong>de</strong> pensamento e conhecimento externo aos orientais que vem produzindo<br />
afirmaÅâes e divulgando versâes <strong>de</strong>le para que seja usado como objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriÅÇo, ensino,<br />
colonizaÅÇo e governo? Sendo assim, a que interesses serviriam tais versâes? E ainda: que<br />
tipo <strong>de</strong> imagem do Oci<strong>de</strong>nte se contrapâe äquela divulgada do Oriente nestes dois casos?<br />
Said acusa o Oci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> pintar o Oriente como exÑtico, diferente, tradicionalmente<br />
sensual e fanático. E insiste que “a construÅÇo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> [...] envolve a construÅÇo <strong>de</strong><br />
opostos e ‘outros’ cuja atualida<strong>de</strong> está sempre sujeita ä contÉnua interpretaÅÇo e re-<br />
interpretaÅÇo das suas diferenÅas em relaÅÇo ao ‘nÑs’” 184 . Desse modo, que tipo <strong>de</strong> “outro” e<br />
<strong>de</strong> “nÑs” emerge <strong>de</strong>stas duas narrativas? E se à verda<strong>de</strong> que o 11 <strong>de</strong> setembro estabeleceu um<br />
novo marco zero da histÑria, que tipo <strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>nte e Oriente está sendo construÉdo para o novo<br />
milÖnio, justo neste momento em que o mundo comeÅa a se convencer do fim dos binarismos<br />
e da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o subalterno ter voz?<br />
Transcorridos mais <strong>de</strong> oito anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os atentados e a estreia <strong>de</strong> “O Clone”, estes<br />
episÑdios, cada um a sua maneira, continuam vivos no imaginário coletivo: <strong>de</strong> um lado pò<strong>de</strong>-se<br />
acompanhar, no rastro do 11 <strong>de</strong> setembro, a caÅada americana a Osama bin La<strong>de</strong>n, os<br />
<strong>de</strong>sdobramentos da invasÇo do AfeganistÇo e da guerra contra o Iraque, os violentos protestos<br />
contra a publicaÅÇo <strong>de</strong> charges <strong>de</strong> Maomà em jornais oci<strong>de</strong>ntais, a pressÇo da socieda<strong>de</strong><br />
americana contra a aceitaÅÇo por Hollywood da indicaÅÇo <strong>de</strong> um filme palestino ao prÖmio do<br />
Oscar 2006, e o permanente estado <strong>de</strong> alerta americano contra novos ataques; <strong>de</strong> outro, sabe-se<br />
que, seguindo a trajetÑria <strong>de</strong> outras telenovelas <strong>de</strong> sucesso da Re<strong>de</strong> Globo, “O Clone” já foi<br />
exportado para mais <strong>de</strong> 90 paÉses, possibilitando ainda hoje uma leitura paralela ä narrativa<br />
jornalÉstica do mundo muÅulmano. Por conta do sucesso <strong>de</strong> “O Clone” nos Estados Unidos (a<br />
184 SAID, 1990, p. 332.<br />
92
telenovela ficou em primeiro lugar <strong>de</strong> audiÖncia entre as tevÖs hispênicas do paÉs em 2002 185 ),<br />
foi firmado em 2008, pela primeira vez, um acordo para a produÅÇo <strong>de</strong> uma versÇo hispênica da<br />
telenovela no canal <strong>de</strong> tevÖ a cabo norte americano Telemundo, o segundo maior em lÉngua<br />
espanhola dos Estados Unidos e o ënico em produÅÇo <strong>de</strong> telenovelas no paÉs. “El Clon” acaba<br />
<strong>de</strong> estrear no dia 15 <strong>de</strong> fevereiro no mercado americano, on<strong>de</strong> há 40 milhâes <strong>de</strong> hispênicos, dos<br />
quais dois milhâes sÇo muÅulmanos 186 .<br />
DistorÅÇo, violÖncia e intolerência sÇo efeitos da <strong>de</strong>sinformaÅÇo gerada por sàculos <strong>de</strong><br />
dominaÅÇo do Oci<strong>de</strong>nte sobre o Oriente ─ uma dominaÅÇo marcada nÇo somente por aÅâes<br />
fÉsicas e palpáveis, mas principalmente pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> que garantiu sempre ao<br />
primeiro a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar o segundo ao mundo. Se os atentados <strong>de</strong> 2001 parecem ter<br />
autorizado os Estados Unidos a endurecer ainda mais seu discurso hegemònico contra esse<br />
“outro”, qualificado por Bush, entÇo presi<strong>de</strong>nte americano, como o “Mal” que ameaÅa o estilo<br />
<strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal, a telenovela “O Clone” trouxe a magia das burkas, das tënicas e da danÅa<br />
do ventre para SÇo CristÑvÇo, tradicional bairro carioca. Se o discurso <strong>de</strong> Bush sublinhou o<br />
Ñdio, o <strong>de</strong> Gloria Perez cultivou o encantamento. O fato <strong>de</strong> terem sido emitidos<br />
simultaneamente (mesmo que por obra do acaso) proporciona uma leitura comparativa entre o<br />
mundo da polÉtica e o da literatura que sÑ vem enriquecer este estudo, confirmando a tese <strong>de</strong><br />
Said segundo a qual “socieda<strong>de</strong> e cultura literária sÑ po<strong>de</strong>m ser entendidas e estudadas<br />
conjuntamente” 187 . Alàm disso, o fato <strong>de</strong> ambos os “textos” estarem circulando ainda hoje<br />
conferiu inegável atualida<strong>de</strong> a este trabalho. Atà porque nÇo há nada mais atual do que estudar<br />
a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> muÅulmana e islêmica nesta primeira dàcada <strong>de</strong> sàculo em que, apesar da<br />
violÖncia dos noticiários <strong>de</strong> guerra, o Oriente parece ter sido consi<strong>de</strong>rado fashion pela mÉdia<br />
global: ele está presente nos editoriais <strong>de</strong> moda, nas revistas <strong>de</strong> <strong>de</strong>coraÅÇo, nas novelas <strong>de</strong><br />
tevÖ, nos clips <strong>de</strong> mësica e nas tendÖncias da gastronomia.<br />
6.1 JORNALISMO E TELEDRAMATURGIA: NATUREZA DA NARRATIVA<br />
Embora a revista Veja, da Editora Abril, e a telenovela “O Clone”, da Re<strong>de</strong> Globo,<br />
sejam narrativas que apresentem gÖneros prÑprios e naturezas distintas, ambas po<strong>de</strong>m ser<br />
185 “Novela ‘O Clone’ ganha prÖmio nos Estados Unidos”. VersÇo digital da ediÅÇo do dia 12/03/2003 do “Jornal<br />
Nacional”, disponÉvel em:
tomadas como produtos <strong>de</strong> massa, mercadorias confeccionadas com a perspectiva da venda<br />
em uma economia <strong>de</strong> mercado. Isto significa dizer que, por mais que cada uma <strong>de</strong>las tenha a<br />
sua missÇo ─ informar, entreter ─, o que conta verda<strong>de</strong>iramente na produÅÇo industrial <strong>de</strong><br />
suas narrativas à satisfazer a <strong>de</strong>manda do pëblico 188 e, por conseguinte, garantir o retorno do<br />
investimento dos anunciantes. Tanto que orientam sua produÅÇo nÇo sÑ pelo nëmero <strong>de</strong><br />
exemplares vendidos ou pelo nëmero <strong>de</strong> aparelhos <strong>de</strong> tevÖ sintonizados, como pela opiniÇo <strong>de</strong><br />
seu pëblico expressa em cartas ou e-mails dirigidos ä redaÅÇo da revista ou ä produÅÇo da<br />
novela. O fato <strong>de</strong> serem produtos <strong>de</strong> mercado nÇo exclui, no entanto, a interferÖncia nem<br />
sempre explÉcita e assumida da “linha editorial/i<strong>de</strong>olÑgica” da publicaÅÇo ou do conjunto <strong>de</strong><br />
opiniâes e valores do autor. ï preciso lembrar, contudo, que, se toda narrativa (e aqui o termo<br />
se refere a qualquer relato, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sua forma <strong>de</strong> expressÇo ou estratàgia <strong>de</strong><br />
divulgaÅÇo) à necessariamente subjetivo e polÉtico, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do esforÅo para se obter<br />
objetivida<strong>de</strong> e distanciamento, entÇo a narrativa <strong>de</strong> uma matària jornalÉstica ou <strong>de</strong> uma<br />
telenovela resulta no produto final <strong>de</strong> sucessivos filtros (o do repÑrter, do editor, do editor <strong>de</strong><br />
fotografia e do proprietário do veÉculo, no caso do jornalismo; e do autor, do diretor, do<br />
produtor e do proprietário do veÉculo, no caso da teledramaturgia). Nesse processo industrial e<br />
i<strong>de</strong>olÑgico <strong>de</strong> produÅÇo, o relato final que chega ao pëblico nÇo po<strong>de</strong> ser tomado<br />
romanticamente como mero resultado <strong>de</strong> uma apuraÅÇo minuciosa ou como pura inspiraÅÇo<br />
literária. Nem tampouco, po<strong>de</strong> ser tomado como texto autoral no sentido estrito do termo.<br />
O fato <strong>de</strong> serem narrativas contingenciadas 189 em nada diminui seu valor. Pelo<br />
contrário. SÇo relatos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> penetraÅÇo popular e, justamente por isso, prestam-se como<br />
poucos a conduzir o observador mais atento äs entranhas da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massa. No caso<br />
<strong>de</strong>ste estudo em particular, a representaÅÇo dos muÅulmanos e do islamismo em dois dos<br />
principais meios <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa brasileiros <strong>de</strong>verá ser capaz <strong>de</strong> fornecer um<br />
panorama abrangente do imaginário popular a respeito <strong>de</strong>ste Outro, como tambàm ajudar a<br />
perceber, <strong>de</strong> forma relacional, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira (e Oci<strong>de</strong>ntal, por extensÇo) que se quer<br />
construir a partir <strong>de</strong>ste contraste.<br />
Cabe <strong>de</strong>stacar que a leitura <strong>de</strong> cada narrativa (matària jornalÉstica e telenovela) à sempre<br />
<strong>de</strong>terminada pela natureza prÑpria da mÉdia-suporte (revista e tevÖ). Nesse sentido, à preciso<br />
levar em conta as caracterÉsticas <strong>de</strong> cada universo. O material jornalÉstico em questÇo à<br />
construÉdo em linguagem escrita elaborada: seus textos sÇo impressos em papel, publicados<br />
188<br />
“As publicaÅâes da Editora Abril sÇo voltadas para os interesses <strong>de</strong> seus leitores”, reza o princÉpio nëmero 1<br />
do Manual <strong>de</strong> Estilo da Editora (1990, p. 9).<br />
189<br />
As telenovelas, por serem obras escritas ao longo do perÉodo <strong>de</strong> exibiÅÇo, sofrem ainda interferÖncia da<br />
opiniÇo pëblica e dos fatos do cotidiano.<br />
94
em revista <strong>de</strong> periodicida<strong>de</strong> semanal, sÇo simples como manda a cartilha do bom jornalismo,<br />
poràm mais elaborados 190 e mais longos do que os que aparecem em publicaÅâes diárias<br />
(jornais) ou no jornalismo eletrònico; sÇo para ser lidos <strong>de</strong>moradamente ao longo da semana,<br />
po<strong>de</strong>m ser relidos ou ter sua leitura adiada para um momento mais oportuno; <strong>de</strong>stinam-se a<br />
um pëblico letrado ─ mais que isso, um pëblico <strong>de</strong> nÉvel <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> elevado. A narrativa<br />
da telenovela, no entanto, por ser veiculada numa emissora <strong>de</strong> tevÖ aberta e por ser vista e<br />
ouvida, nÇo lida portanto, atinge um pëblico mais abrangente e <strong>de</strong>ve ser facilmente<br />
compreendida tanto por letrados como por iletrados, sem subjugar a capacida<strong>de</strong> intelectual<br />
dos primeiros e sem ir alàm das limitaÅâes dos segundos. Apesar <strong>de</strong> a tevÖ exercer um gran<strong>de</strong><br />
fascÉnio sobre os telespectadores, ela nunca reina absoluta no ambiente, como o cinema, cuja<br />
narrativa se ilumina numa sala escura, ou mesmo o jornal impresso, cuja leitura exige<br />
concentraÅÇo e atà certo recolhimento. A narrativa no veÉculo eletrònico disputa a atenÅÇo do<br />
pëblico com tudo o mais que está em seu entorno, e por isso <strong>de</strong>ve ter como missÇo<br />
permanente manter os olhos e ouvidos do telespectador voltados para a “telinha”. Como<br />
resume o Manual <strong>de</strong> Telejornalismo da Re<strong>de</strong> Globo,<br />
A palavra à tÇo importante na televisÇo quanto no jornal. A diferenÅa à que o texto <strong>de</strong><br />
jornal à para ser lido pelo pëblico e o da televisÇo para ser ouvido. Na televisÇo, nÇo<br />
dá para voltar atrás e ler <strong>de</strong> novo ou ouvir <strong>de</strong> novo. ï importante pois que o texto seja<br />
claro, direto, simples, enfim, tenha as virtu<strong>de</strong>s da linguagem coloquial. O locutor<br />
conversa com o telespectador. 191<br />
Alàm disso, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar, uma vez que ambos sÇo produtos <strong>de</strong> mercado, os<br />
diferentes hábitos <strong>de</strong> consumo. O “consumo” do texto da Veja resulta, na maioria das vezes,<br />
<strong>de</strong> um investimento: a compra <strong>de</strong> um exemplar (à bem verda<strong>de</strong> que há muitos que leem<br />
revista emprestada ou mesmo tÖm acesso a sua versÇo on-line). O tipo <strong>de</strong> produto (revista <strong>de</strong><br />
informaÅÇo com fotos, impressa em papel couchet, tendo cerca <strong>de</strong> 100 páginas), o prestÉgio do<br />
veÉculo (uma das mais importantes publicaÅâes <strong>de</strong>ste segmento no paÉs) e o investimento feito<br />
pelo leitor (cada ediÅÇo custa para o consumidor hoje R$ 8,90, valor quase quatro vezes<br />
superior ao preÅo <strong>de</strong> um exemplar <strong>de</strong> jornal) levam o pëblico a uma atitu<strong>de</strong> quase <strong>de</strong><br />
reverÖncia no consumo. Muitos chegam a arquivar as ediÅâes semanais como fonte <strong>de</strong><br />
pesquisa. Por outro lado, o comportamento do consumidor diante da narrativa da telenovela,<br />
por mais fiel que seja, revela uma informalida<strong>de</strong> prÑpria do tipo <strong>de</strong> presenÅa da televisÇo na<br />
190 Segundo seu Manual <strong>de</strong> Estilo, a Editora Abril “vem se <strong>de</strong>dicando ä publicaÅÇo <strong>de</strong> revistas <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong><br />
superior”, nÇo apenas “em termos <strong>de</strong> conteëdo, mas tambàm [...] do ponto <strong>de</strong> vista da linguagem, do estilo e do<br />
vocabulário utilizados”.<br />
191 Manual <strong>de</strong> Telejornalismo da Re<strong>de</strong> Globo, 1982, p. 9.<br />
95
vida dos telespectadores: a um apertar <strong>de</strong> botÇo a programaÅÇo surge na tela todo dia no<br />
mesmo horário, numa relaÅÇo <strong>de</strong> gratuida<strong>de</strong> e intimida<strong>de</strong>; o espetáculo vem ao espectador.<br />
Quase impossÉvel reverenciar a narrativa com silÖncio ou atenÅÇo total. Quer solitária ou<br />
coletiva, a “leitura” <strong>de</strong>sta narrativa à sempre interativa: fala-se sozinho, com a tela, com os<br />
personagens, com o autor, com o companheiro <strong>de</strong> sofá. NÇo há reverÖncia sequer na postura:<br />
assiste-se ä telenovela <strong>de</strong>itado na cama, durante as refeiÅâes, enquanto se realiza outra tarefa...<br />
Impresso ou eletrònico, formal ou coloquial, “erudito” ou popular, semanal ou diário,<br />
pago ou gratuito: mais que todas estas distinÅâes, a narrativa do jornalismo e a <strong>de</strong> telenovela<br />
encerram teoricamente gÖneros e estilos prÑprios, sustentados pela fronteira entre a<br />
informaÅÇo e o entretenimento, o factual e o ficcional. (Em alguns casos, no entanto, esta<br />
fronteira torna-se mais porosa, como no caso das feature stories do new journalism e nas<br />
intromissâes factuais nas narrativas da telenovela.) A credibilida<strong>de</strong> do jornalismo se sustenta<br />
nas supostas veracida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong> da informaÅÇo divulgada. Já a telenovela se<br />
fundamenta no verossÉmil: a aparÖncia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e a familiarida<strong>de</strong> com que o texto aborda o<br />
espectador fazem com que ele creia no “real” da cena.<br />
Embora uma notÉcia jornalÉstica seja o relato <strong>de</strong> um fato, aos olhos do pëblico a notÉcia<br />
à o fato em si. Segundo Josà Arbex Jr., “A mÉdia cria diariamente a sua prÑpria narrativa e a<br />
apresenta aos telespectadores ou aos leitores como se essa narrativa fosse a prÑpria histÑria do<br />
mundo” 192 . “Os fatos, transformados em notÉcia, sÇo <strong>de</strong>scritos como eventos autònomos,<br />
completos em si mesmos”, completa o autor.<br />
Variáveis como grau <strong>de</strong> instruÅÇo, conhecimento da produÅÇo da notÉcia ou<br />
<strong>de</strong>sconfianÅa do discurso da mÉdia po<strong>de</strong>m promover reaÅâes menos cràdulas, mas à<br />
<strong>de</strong>snecessário salientar o papel <strong>de</strong>terminante das novas tecnologias <strong>de</strong> captaÅÇo e transmissÇo<br />
<strong>de</strong> imagem e som na consolidaÅÇo <strong>de</strong>sta impressÇo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> oferecida pelos relatos<br />
jornalÉsticos. Convencidos do discurso da imparcialida<strong>de</strong> do jornalismo e <strong>de</strong>slumbrados com<br />
a precisÇo, a agilida<strong>de</strong> e a instantaneida<strong>de</strong> dos recursos tecnolÑgicos, os leitores costumam<br />
inebriar-se <strong>de</strong>ste contato tÇo prÑximo com o “fato”, nÇo percebendo a intermediaÅÇo do<br />
repÑrter, do editor, do fotÑgrafo etc. Isto se dá mesmo no caso do jornalismo interpretativo,<br />
esta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> jornalismo que, segundo Carlos Alberto RabaÅa e Gustavo Barbosa, vai<br />
alàm do informativo e oferece ─ mais que a notÉcia “objetiva”, a informaÅÇo “pura”,<br />
“imparcial”, “impessoal” e “direta” ─ a dimensÇo qualitativa das informaÅâes, estabelecendo<br />
comparaÅâes, fazendo remissâes ao passado e interligaÅâes com outros fatos 193 . O jornalismo<br />
192 ARBEX JR., 2001, p. 103.<br />
193 RABAóA e BARBOSA, 2001, p. 405.<br />
96
interpretativo praticado pela revista Veja faz questÇo <strong>de</strong> reiterar que opiniÇo à um artigo que<br />
fica reservado apenas ao espaÅo do editorial (“Carta ao leitor”).<br />
Ao contrário do jornalismo, a narrativa <strong>de</strong> telenovela à assumida como uma peÅa<br />
autoral, mesmo que seja uma autoria compartilhada: expressa a opiniÇo, o estilo e os<br />
interesses do autor em histÑrias inspiradas no cotidiano. Aqui o que vale à a criaÅÇo <strong>de</strong> uma<br />
trama atraente, capaz <strong>de</strong> sustentar a atenÅÇo do pëblico por pelo menos oito meses, a<br />
apresentaÅÇo <strong>de</strong> temas suficientemente polÖmicos para mobilizar a opiniÇo pëblica, o<br />
estabelecimento <strong>de</strong> paralelos <strong>de</strong> natureza temporal ou factual com a realida<strong>de</strong> presente (a nÇo<br />
ser que seja um texto <strong>de</strong> àpoca) e, no caso particular <strong>de</strong> Gloria Perez, a escolha <strong>de</strong> boas<br />
campanhas <strong>de</strong> sociais (conhecidas impropriamente por merchandising social). Some-se a isto<br />
a parceria sintonizada com o diretor, a <strong>de</strong>finiÅÇo <strong>de</strong> um estilo <strong>de</strong> ediÅÇo atraente, a seleÅÇo <strong>de</strong><br />
uma trilha sonora sedutora e a escalaÅÇo cuidadosa do elenco. Os autores garantem que nÇo há<br />
receita, mas cada um parece ter escolhido um caminho. Como se fossem editorias <strong>de</strong> uma<br />
redaÅÇo <strong>de</strong> jornal, a gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> programaÅÇo <strong>de</strong> telenovelas da Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong>finiu os estilos <strong>de</strong><br />
texto compatÉveis com os horários <strong>de</strong> exibiÅÇo: temas adocicados, <strong>de</strong> humor ou dramáticos<br />
avanÅam noite a<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> acordo com o perfil <strong>de</strong> pëblico disponÉvel diante da tela <strong>de</strong> tevÖ. No<br />
horário nobre sÇo exibidas novelas que tenham <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> suficiente para nÇo sÑ funcionarem<br />
como carro-chefe da programaÅÇo, mas tambàm serem capazes <strong>de</strong> alavancar a audiÖncia dos<br />
programas subsequentes. Neste vale-tudo pelos Éndices do IBOPE, nÇo há necessariamente<br />
preocupaÅÇo com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> histÑrica, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> em relaÅÇo ao episÑdio inspirador, respeito ä<br />
geografia dos espaÅos ou ao protocolo do tempo: bastam imaginaÅÇo, criativida<strong>de</strong>, ritmo,<br />
sustentaÅÇo <strong>de</strong> ganchos narrativos e verossimilhanÅa. Parecer verda<strong>de</strong>iro já à suficiente para<br />
promover a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo do espectador com a histÑria e os personagens. Aqui, se o que à<br />
contado à fato ou relato do fato nÇo importa. O objetivo à o entretenimento do pëblico,<br />
aferido em Éndices <strong>de</strong> audiÖncia, porcentagem <strong>de</strong> share e incidÖncia <strong>de</strong> cartas para o autor ou<br />
atores da trama.<br />
A questÇo entÇo entre a narrativa jornalÉstica e a <strong>de</strong> telenovela parece estar reduzida ao<br />
constrangimento da primeira em nÇo assumir sua condiÅÇo <strong>de</strong> versÇo (relato dos fatos) e ao<br />
esforÅo da segunda, enquanto ficÅÇo, em reproduzir a “realida<strong>de</strong>” do pëblico. Acusar um<br />
relato jornalÉstico <strong>de</strong> parcial e uma narrativa da teledramaturgia <strong>de</strong> inverossÉmil parece retirar<br />
<strong>de</strong>les a “essÖncia” <strong>de</strong> que sÇo constituÉdos. Curioso este purismo quando se nota que a<br />
fronteira entre o factual e o ficcional já foi há muito <strong>de</strong>smantelada pelo impàrio do espetáculo.<br />
As revistas abusam das features (com estrutura narrativa mais para o ficcional) e se ren<strong>de</strong>m ä<br />
primazia da imagem para proporcionar ao leitor a experiÖncia fascinante <strong>de</strong> testemunhar o<br />
97
fato com a agilida<strong>de</strong> e o recurso imagàtico da tevÖ, e as telenovelas reproduzem o noticiário<br />
para marcar o seu compasso com a atualida<strong>de</strong> histÑrica. Alàm disso, <strong>de</strong>sfechos <strong>de</strong> novela sÇo<br />
<strong>de</strong>staque <strong>de</strong> primeira página <strong>de</strong> jornal, enquanto personalida<strong>de</strong>s pëblicas fazem ponta na<br />
ficÅÇo para conferir autenticida<strong>de</strong> ä trama. Tanto no jornalismo quanto na telenovela, cria-se o<br />
fato, a opiniÇo pëblica e o consenso.<br />
6.2 O MUóULMANO E O ISLAMISMO EM VEJA<br />
No dia 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2001, o mundo todo foi atraÉdo para as telas <strong>de</strong> tevÖ e para os<br />
sites jornalÉsticos, e pò<strong>de</strong> partilhar, como testemunha virtual, do <strong>de</strong>sespero daquele primeiro<br />
momento em que atà mesmo os mais conceituados comentaristas da mÉdia ficaram sem texto.<br />
Entre o choque do primeiro e o do segundo aviÇo, o olhar eletrònico da mÉdia já estava a<br />
postos para oferecer a imagem que sozinha sintetizava o conceito <strong>de</strong> notÉcia 194 : era atual,<br />
verÉdica, oportuna, rara, curiosa, suscitava interesse humano, tinha importência e<br />
consequÖncia para a comunida<strong>de</strong> mundial, cada vez mais prÑxima. A partir do choque do<br />
segundo aviÇo e do anëncio <strong>de</strong> que mais aviâes estavam sendo <strong>de</strong>sviados <strong>de</strong> suas rotas, o<br />
texto da mÉdia, atà entÇo vazio <strong>de</strong> informaÅâes, comeÅava a ganhar contornos <strong>de</strong> atentado. Na<br />
versÇo oficial do episÑdio, as palavras do presi<strong>de</strong>nte Bush ecoadas pela mÉdia mundial <strong>de</strong>ram<br />
o tom do discurso da vÉtima que evocava a solidarieda<strong>de</strong> do mundo civilizado numa vinganÅa<br />
contra o terrorismo: “A liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mocracia estÇo sob ataque”, “Essa será uma<br />
monumental luta entre o Bem e o Mal”. Naquele momento o inimigo ainda nÇo tinha rosto,<br />
reconhecia-se apenas a covardia <strong>de</strong> seu gesto: “Esse à um inimigo predador <strong>de</strong> pessoas<br />
inocentes e <strong>de</strong>savisadas”.<br />
A ediÅÇo <strong>de</strong> Veja daquela semana já estava pronta e foi para as bancas no dia seguinte<br />
com a foto do milionário Jack Welch sob a manchete “LiÅâes <strong>de</strong> vida do empresário mais<br />
bem-sucedido do mundo”. Welch tinha preparado um mega lanÅamento em Nova Iorque para<br />
o livro com suas liÅâes, mas o evento fora atropelado pelos aviâes terroristas algumas horas<br />
antes. A data do atentado tambàm pegou Veja no contra-pà: a revista teve <strong>de</strong> esperar uma<br />
semana para falar do assunto. Dedicou-lhe, em compensaÅÇo, uma ediÅÇo especial com 140<br />
páginas no dia 19 <strong>de</strong> setembro. Sua capa exibia uma foto das torres em chamas on<strong>de</strong> se lia: “O<br />
impàrio vulnerável”. Na lateral esquerda, sobre fundo preto, as chamadas para as diferentes<br />
matàrias, todas a respeito do atentado. No interior da ediÅÇo, no espaÅo <strong>de</strong>stinado ä opiniÇo e<br />
194 RABAóA e BARBOSA, 2001, p. 514.<br />
98
nÇo ä notÉcia, a indignaÅÇo e a adjetivaÅÇo que, por forÅa da suposta imparcialida<strong>de</strong><br />
jornalÉstica, nÇo podiam ser expostas nas páginas <strong>de</strong> informaÅÇo:<br />
O verda<strong>de</strong>iro alvo visado pelos terroristas que atacaram Nova York e Washington na<br />
semana passada nÇo foram as torres gÖmeas do sul <strong>de</strong> Manhattan nem o edifÉcio do<br />
Pentágono. O atentado foi cometido contra um sistema social e econòmico que,<br />
mesmo longe da perfeiÅÇo, à o mais justo e livre que a humanida<strong>de</strong> conseguiu fazer<br />
funcionar ininterruptamente atà hoje. [...] Foi uma agressÇo perpetrada contra os mais<br />
caros e mais frágeis valores oci<strong>de</strong>ntais: a <strong>de</strong>mocracia e a economia <strong>de</strong> mercado.<br />
O que realmente incomoda a ponto da exasperaÅÇo os fundamentalistas, apontados<br />
como os principais suspeitos <strong>de</strong> autoria dos atentados, nÇo à sÑ a arrogência americana<br />
ou seu apoio ao Estado <strong>de</strong> Israel. O que os radicais nÇo toleram, mais que tudo, à a<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. ï a existÖncia <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> em que os justos po<strong>de</strong>m viver sem ser<br />
incomodados e os pobres tÖm possibilida<strong>de</strong>s reais <strong>de</strong> atingir a prosperida<strong>de</strong> com o<br />
fruto <strong>de</strong> seu trabalho. Esse à o verda<strong>de</strong>iro anátema dos terroristas que atacaram os<br />
Estados Unidos. Eles sÇo enviados da morte, da elite teocrática, medieval, tirênica que<br />
exerce o po<strong>de</strong>r absoluto em seus feudos. Para eles, a <strong>de</strong>mocracia à satênica. Por isso<br />
tem <strong>de</strong> ser combatida e <strong>de</strong>struÉda. 195<br />
Em uma <strong>de</strong>cisÇo editorial incomum, Veja <strong>de</strong>dicou ao 11 <strong>de</strong> setembro a capa <strong>de</strong> mais<br />
quatro ediÅâes consecutivas: no dia 26, trouxe a manchete “Guerra ao terror” sobre a foto <strong>de</strong><br />
um aviÇo <strong>de</strong> guerra; no dia 3 <strong>de</strong> outubro, a ban<strong>de</strong>ira americana em chamas ilustrava a<br />
chamada “O vÉrus anti-EUA: a <strong>de</strong>magogia que transformou a vÉtima em culpada”; no dia 10, a<br />
foto <strong>de</strong> uma pessoa coberta com um manto branco da cabeÅa aos pàs sublinhava a frase<br />
“Fundamentalismo: Fà cega e mortal”; por fim, na ediÅÇo do dia 17, a imagem <strong>de</strong> Osama bin<br />
La<strong>de</strong>n i<strong>de</strong>ntificava “O profeta do terror”.<br />
A mera <strong>de</strong>scriÅÇo das capas acima, ainda sem a análise do texto jornalÉstico propriamente<br />
dito, já permite concordar com a <strong>de</strong>finiÅÇo <strong>de</strong> notÉcia proposta por Marcon<strong>de</strong>s Filho:<br />
NotÉcia à a informaÅÇo transformada em mercadoria com todos os seus apelos<br />
estàticos, emocionais e sensacionais; para isso, a informaÅÇo sofre um tratamento que<br />
a adapta äs normas mercadolÑgicas <strong>de</strong> generalizaÅÇo, padronizaÅÇo, simplificaÅÇo e<br />
negaÅÇo do subjetivismo. 196<br />
Inegáveis a magnitu<strong>de</strong> do fato e o tratamento espetacular que o atentado recebeu da<br />
imprensa como um todo. Tudo o que se escreveu sobre o episÑdio parecia ficar sempre aquàm<br />
daquelas imagens plasticamente concebidas e enca<strong>de</strong>adas para simbolizar a humilhaÅÇo do<br />
impàrio americano. Talvez por isso as palavras escolhidas para <strong>de</strong>screver a <strong>de</strong>struiÅÇo, narrar<br />
o estado <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> do mundo diante daquela cena e <strong>de</strong>linear a nova face do inimigo<br />
tenham sido tÇo ricas em dramaticida<strong>de</strong>. Ou talvez essa intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cores e o tom belicoso<br />
do discurso midiático internacional tenha sido apenas resultado do consenso que se<br />
195 Veja, 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2001, p. 9.<br />
196 MARCONDES FILHO, 1988, p. 13.<br />
99
estabeleceu em torno dos Estados Unidos em seu papel <strong>de</strong> vÉtima. ApÑs os atentados, o<br />
discurso oficial americano teria partido para a ofensiva aos inimigos “bárbaros e covar<strong>de</strong>s”,<br />
abandonando, segundo a prÑpria revista, “o relativismo cultural”, teoria formulada na dàcada<br />
<strong>de</strong> 1930 pelo antropÑlogo americano Melville Jean Herskovitz, que preconiza que nenhuma<br />
cultura à superior a outra, que cada uma <strong>de</strong>ve ser entendida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu prÑprio contexto e,<br />
por isso mesmo, nÇo cabem comparaÅâes entre elas.<br />
Assim como a mÉdia internacional, as páginas <strong>de</strong> Veja reproduziram o relato americano<br />
e seguiram as suspeitas expressas dois dias <strong>de</strong>pois dos atentados <strong>de</strong> que tamanha violÖncia<br />
contra o estilo <strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal tinha a marca <strong>de</strong> extremistas islêmicos sob o comando do<br />
milionário saudita refugiado no AfeganistÇo Osama bin La<strong>de</strong>n, figura tÇo misteriosa quanto<br />
perigosa que já tinha tido seu nome atrelado a outros atos terroristas. A maneira como a<br />
revista apontou na direÅÇo <strong>de</strong>stes radicais religiosos já <strong>de</strong>notava o estranhamento em relaÅÇo ä<br />
submissÇo aos fundamentos do islamismo:<br />
100<br />
Com o surgimento dos primeiros indÉcios <strong>de</strong> que a onda <strong>de</strong> terror nos Estados Unidos<br />
foi obra <strong>de</strong> radicais islêmicos, uma questÇo tornou-se inevitável: quem à essa gente<br />
que se suicida jogando aviâes contra edifÉcios? Que se veste <strong>de</strong> bombas e se explo<strong>de</strong><br />
em supermercados e pizzarias <strong>de</strong> Israel? Que estoura carros recheados <strong>de</strong> explosivos<br />
contra muros <strong>de</strong> quartàis? Quem à, enfim, essa gente que se mata em nome <strong>de</strong> Alá? 197<br />
Embora ressalve que, dos cerca <strong>de</strong> 1,3 bilhÇo <strong>de</strong> muÅulmanos espalhados no mundo,<br />
apenas uma pequena minoria esteja disposta a entregar sua vida pela causa, as ediÅâes <strong>de</strong> Veja<br />
sobre o atentado ilustram suas matàrias com fotos <strong>de</strong> extremistas comemorando as mortes <strong>de</strong><br />
inocentes, festejando com alegria a “<strong>de</strong>sgraÅa do gran<strong>de</strong> SatÇ”. Nelas, aparecem homens<br />
jovens e velhos sempre barbados, <strong>de</strong> turbantes e tënicas, ou mesmo crianÅas empunhando<br />
armas, sempre diante <strong>de</strong> um cenário <strong>de</strong> uma pobreza e <strong>de</strong> uma ari<strong>de</strong>z impactantes. Se os<br />
extremistas sÇo minoria, por que a <strong>de</strong>cisÇo editorial <strong>de</strong> nÇo mostrar sequer um muÅulmano<br />
lamentando o atentado? De um lado, aparecem americanos em trajes civis chorando seus<br />
mortos e bombeiros resgatando vÉtimas; <strong>de</strong> outro, apenas muÅulmanos armados ou uma<br />
galeria <strong>de</strong> fotos <strong>de</strong> lÉ<strong>de</strong>res extremistas <strong>de</strong> todos os tempos. “A maioria dos muÅulmanos, no<br />
entanto, repudia os ataques suicidas e os consi<strong>de</strong>ra pecado extremo, uma ofensa contra Alá, na<br />
medida em que atenta contra o dom da vida, um dom divino” 198 , <strong>de</strong>staca o texto. E cita a<br />
historiadora Maria Aparecida <strong>de</strong> Aquino, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> SÇo Paulo, alertando para o fato<br />
<strong>de</strong> que “O primeiro equÉvoco comum entre oci<strong>de</strong>ntais e cristÇos à consi<strong>de</strong>rar todo islêmico um<br />
197 “Assassinato em nome <strong>de</strong> Alá”, disponÉvel em: . Acesso em 23<br />
jul. 2006.<br />
198 “Assassinato em nome <strong>de</strong> Alá”, loc. cit.
extremista suicida e, por extensÇo, um terrorista em potencial” 199 e <strong>de</strong> que o segundo<br />
equÉvoco à julgar que todos os muÅulmanos sÇo árabes. O contraste entre textos e fotos<br />
publicados na revista parece, no entanto, sublinhar estes equÉvocos.<br />
Feitas as ressalvas sobre o fato <strong>de</strong> que muÅulmanos nÇo sÇo necessariamente terroristas<br />
suicidas, Veja segue listando as razâes para o engajamento das minorias no fundamentalismo:<br />
segundo o texto, “o crescimento do rebanho”, “a fartura do petrÑleo”, “as ditaduras<br />
teocráticas”, “a nÇo distribuiÅÇo das riquezas”, a “misària” e a “ignorência” sÇo dados<br />
paradoxais que, misturados, produzem um “barril <strong>de</strong> pÑlvora”, justificam a “forÅa da<br />
religiÇo”, e permitem que o “extremismo” e o “fanatismo” “sigam achando espaÅo para<br />
ensanguentar a histÑria humana” 200 . A este cenário econòmico-religioso se superpâe o<br />
polÉtico: “naÅâes criminosas”, “santuários do terror”, “escolas do terror”, sÇo expressâes<br />
usadas para i<strong>de</strong>ntificar os paÉses on<strong>de</strong> o fundamentalismo islêmico ganhou forÅa. O<br />
AfeganistÇo propriamente dito à <strong>de</strong>scrito como um “paÉs arruinado por mais <strong>de</strong> duas dàcadas<br />
<strong>de</strong> guerra civil e pela insana polÉtica <strong>de</strong> retorno aos costumes medievais implantada pelo<br />
TalibÇ, a milÉcia fundamentalista que domina a maior parte do territÑrio” 201 . Um paÉs que,<br />
segundo a revista, nem sequer po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado uma naÅÇo pelos padrâes mo<strong>de</strong>rnos:<br />
101<br />
[...] paÉs sem estradas, sem hidrelàtricas, sem pontes nem instalaÅâes <strong>de</strong><br />
telecomunicaÅâes. Pior: o AfeganistÇo, alàm <strong>de</strong> tudo isso, já teve sua economia<br />
primitiva <strong>de</strong>vastada por guerra anterior. Hoje, o paÉs afegÇo à um lugar <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s<br />
fantasmas. 202<br />
O cenário geográfico revela uma paisagem bÉblica, com camelos, montanhas áridas e<br />
cavernas, habitado por seres que parecem viver fora do tempo: gente que vive em fuga “para<br />
as cavernas abertas na rocha bruta, on<strong>de</strong>, nos casos mais extremos, as pessoas conseguem<br />
sobreviver comendo os sais minerais colhidos <strong>de</strong> terra fervida” 203 , gente mantida em “estado<br />
<strong>de</strong> ignorência”, sem contato com o mundo externo graÅas aos rÉgidos controles do “grupo<br />
fundamentalista, que proÉbe a televisÇo e submete a populaÅÇo äs transmissâes <strong>de</strong> uma ënica<br />
rádio” 204 . Segundo Veja, tÇo logo tomou o po<strong>de</strong>r, o TalibÇ pendurou televisâes estraÅalhadas<br />
nos postes, para mostrar ao povo o que pensava <strong>de</strong>sse satênico agente da <strong>de</strong>cadÖncia<br />
199<br />
“Assassinato em nome <strong>de</strong> Alá”, disponÉvel em: . Acesso em 23<br />
jul. 2006.<br />
200<br />
“Assassinato...”, loc. cit.<br />
201<br />
“A <strong>de</strong>scoberta da vulnerabilida<strong>de</strong>”, disponÉvel em: . Acesso em<br />
23 jul. 2006.<br />
202<br />
“Este paÉs já está arrasado”, disponÉvel em: .<br />
Acesso em 23 jul. 2006.<br />
203 “Este paÉs...”, loc. cit.<br />
204 “Este paÉs...”, loc. cit.
oci<strong>de</strong>ntal. O texto entrelaÅa ignorência com manipulaÅÇo i<strong>de</strong>olÑgico-religiosa, pois mostra um<br />
povo que <strong>de</strong>sconhece as imagens dos ataques contra Nova Iorque e Washington, mas, mesmo<br />
assim, se arma para reagir ä possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ataque americano.<br />
102<br />
O universo dos fundamentalistas à aquele em que se queimam livros, se proÉbem<br />
filmes e mësica. As mulheres sÇo cobertas <strong>de</strong> vàus e <strong>de</strong>vem submissÇo ao po<strong>de</strong>r<br />
masculino. Os fundamentalistas usam Deus como <strong>de</strong>sculpa para todas as coisas ─<br />
inclusive as mais terrÉveis atrocida<strong>de</strong>s, como as cometidas em Nova York e<br />
Washington. 205<br />
RetrÑgrados, ignorantes e fanáticos: eis o perfil dos muÅulmanos extremistas.<br />
“Terroristas cujo ënico objetivo à retornar ao sàculo VIII”, esse “bando <strong>de</strong> guerreiros<br />
montados em cavalos e camelos, empunhando fuzis antiquados” sÑ quer “ver sangue”, sÇo<br />
soldados que “surgem das sombras, dispostos a morrer junto com suas vÉtimas”, diz o texto<br />
jornalÉstico que, com <strong>de</strong>boche, chama os afegÇos <strong>de</strong> “turma do turbante”.<br />
Contra o lÉ<strong>de</strong>r dos terroristas suicidas, a narrativa <strong>de</strong> Veja quase fugiu dos mandamentos<br />
do jornalismo: diante <strong>de</strong> uma entÇo suspeita da autoria dos atentados (“Mesmo se nÇo for<br />
responsável pelo ataque infame ao World Tra<strong>de</strong> Center e ao Pentágono, Osama bin La<strong>de</strong>n tem<br />
uma folha corrida que justifica sua fama e as novas e terrÉveis suspeitas que agora pesam sobre<br />
ele”), os adjetivos e figuras <strong>de</strong> linguagem utilizados nÇo <strong>de</strong>ixavam dëvida quanto ä con<strong>de</strong>naÅÇo<br />
pràvia <strong>de</strong> Osama bin La<strong>de</strong>n. Seguida ä menÅÇo <strong>de</strong> seu nome, surgiam expressâes como: “o<br />
inimigo nëmero 1 da Amàrica”, “o fanático islêmico que <strong>de</strong>clarou guerra aos Estados Unidos<br />
em nome <strong>de</strong> Alá”, “um cêncer que, agora mais do que nunca, precisa ser extirpado”, um<br />
milionário que “terceiriza terroristas”, o rosto do “Mal” que “nunca reivindicou a autoria das<br />
brutalida<strong>de</strong>s que levam a sua marca”, alguàm que “assassina, massacra e amedronta, mas se<br />
mantàm na sombra, renunciando ao narcisismo que costuma caracterizar as aÅâes terroristas”,<br />
um “mulá islêmico enlouquecido pelo po<strong>de</strong>r absoluto exercido por meio do braÅo armado <strong>de</strong><br />
seus terroristas suicidas”. Seus seguidores, a Al Qaeda, sÇo <strong>de</strong>scritos como “seu bando”, “Bin<br />
La<strong>de</strong>n e companhia”, uma “re<strong>de</strong> macabra” <strong>de</strong> “facÉnoras”.<br />
Talvez guiada pelo preceito jornalÉstico <strong>de</strong> apresentar os dois lados <strong>de</strong> uma questÇo, a<br />
revista conce<strong>de</strong> a seus leitores, em algum ponto das inëmeras páginas tomadas com os<br />
atentados, a imagem muÅulmana <strong>de</strong> bin La<strong>de</strong>n, qual seja a do “Édolo revolucionário” <strong>de</strong> “boa<br />
parte” do mundo muÅulmano, a do “Che Guevara do IslÇ”. Um texto-legenda sob uma foto <strong>de</strong><br />
artigos <strong>de</strong> consumo estampados com a face do lÉ<strong>de</strong>r diz: “Assim como a do guerrilheiro<br />
205 “A <strong>de</strong>scoberta da vulnerabilida<strong>de</strong>”, disponÉvel em: . Acesso em<br />
23 jul. 2006.
comunista Che Guevara, a imagem do terrorista saudita está estampada em camisetas,<br />
pòsteres e folhetos, que celebram os seus ‘feitos’. No pòster acima ä esquerda, Bin La<strong>de</strong>n à<br />
chamado <strong>de</strong> ‘Guerreiro do IslÇ’”. Digamos que comparar La<strong>de</strong>n com outro inimigo do<br />
capitalismo oci<strong>de</strong>ntal nÇo chega a polir o seu já tÇo odiado perfil. Ainda mais quando o texto<br />
subsequente traz sua <strong>de</strong>scriÅÇo fÉsica segundo o FBI e a impressÇo <strong>de</strong> um americano que o<br />
conheceu <strong>de</strong> perto:<br />
103<br />
Ele tambàm impressionava pela sua figura ascàtica ─ tem entre 1,92 e 1,97 metro <strong>de</strong><br />
altura e pesa 72 quilos, segundo registra a ficha no FBI ─, que emoldurava um<br />
discurso <strong>de</strong> Ñdio temperado com imagens poàticas e proferido sempre em voz suave.<br />
“Suas palavras soam como bons conselhos <strong>de</strong> um velho tio”, compara o jornalista<br />
americano John Miller, que o entrevistou há trÖs anos para a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> televisÇo ABC. 206<br />
As imagens que confrontam os dois lados da guerra nÇo po<strong>de</strong>riam ser mais assimàtricas:<br />
opâem a maior “superpotÖncia” do planeta contra terroristas que se escon<strong>de</strong>m nos grotâes do<br />
Terceiro Mundo; o paÉs on<strong>de</strong> a prosperida<strong>de</strong> à fruto do trabalho contra aquele em que “há<br />
muito pouco a ser <strong>de</strong>struÉdo”; a naÅÇo-mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> polÉtica e individual contra o<br />
“barril <strong>de</strong> pÑlvora” resultante da mistura <strong>de</strong> “fundamentalismo religioso” com “oportunismo<br />
domàstico” e “obscurantismo”. A assimetria se reproduziu tambàm no comportamento<br />
editorial <strong>de</strong> Veja: ouviu apenas autorida<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais sobre o assunto; em suas páginas, o<br />
mundo islêmico nÇo teve voz, ou melhor, <strong>de</strong>ixaram falar apenas os fanáticos, os lÉ<strong>de</strong>res<br />
terroristas <strong>de</strong> todos os tempos 207 , aqueles que, segundo a prÑpria revista, constituem a minoria<br />
dos paÉses islêmicos.<br />
As reportagens reproduzem a ignorência do mundo oci<strong>de</strong>ntal a respeito do Oriente: para<br />
a revista, assim como para os americanos humilhados em sua pretensa superiorida<strong>de</strong>, os<br />
muÅulmanos, “aquela gente”, sÇo uma abstraÅÇo; como diz Said, “nÇo se trata <strong>de</strong> um povo<br />
real, com uma socieda<strong>de</strong> real, constituÉda <strong>de</strong> crianÅas, mÇes e pais que se amam e que estÇo<br />
sendo mortos” 208 . Igualmente, embora nÇo se canse <strong>de</strong> repetir que os fundamentalistas veem<br />
os Estados Unidos como um “paÉs satênico” contra o qual sentem um “Ñdio incontrolável”,<br />
em nenhum momento a revista assumiu que, ao <strong>de</strong>screver o fundamentalismo islêmico como<br />
uma “manifestaÅÇo <strong>de</strong> uma elite que exerce sobre seus povos uma tirania milenar, baseada na<br />
206<br />
“O Che Guevara do IslÇ”, disponÉvel em: . Acesso em 23 jul.<br />
2006.<br />
207<br />
CitaÅâes listadas nas reportagens: "Os americanos vÇo nadar em seu prÑprio sangue", <strong>de</strong> Saddam Hussein, em<br />
1991; "Humilhamos a Amàrica", <strong>de</strong> Muamar Kadafi, em 1986; "Os Estados Unidos sÇo o Gran<strong>de</strong> SatÇ", <strong>de</strong><br />
Aiatolá Khomeini, em 1979. In: “Ou estÇo do nosso lado ou do lado dos terroristas”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 23 jul. 2006.<br />
208<br />
SAID apud DIAS, 2003, p. 6.
eligiÇo e nos costumes imutáveis”, estava presenteando os leitores com a versÇo oci<strong>de</strong>ntal do<br />
inimigo.<br />
Depois das reportagens publicadas nas cinco ediÅâes posteriores aos atentados, Veja<br />
parece partilhar assim da responsabilida<strong>de</strong> atribuÉda pelos oci<strong>de</strong>ntais aos terroristas: a <strong>de</strong><br />
ajudar a <strong>de</strong>struir as “reservas <strong>de</strong> simpatia em relaÅÇo ao povo palestino”. Se tal simpatia se<br />
solidarizava com um povo em busca da criaÅÇo <strong>de</strong> um estado in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, a informaÅÇo <strong>de</strong><br />
que “tudo o que o fundamentalismo islêmico <strong>de</strong>seja à impor sua versÇo fanática do IslÇ a todo<br />
o mundo” à tÇo aterrorizante do ponto <strong>de</strong> vista oci<strong>de</strong>ntal quanto a visÇo <strong>de</strong> terroristas suicidas<br />
golpeando <strong>de</strong> morte a civilizaÅÇo capitalista para conquistar lugar <strong>de</strong> honra no paraÉso.<br />
6.3 O MUóULMANO E O ISLAMISMO EM “O CLONE”<br />
As tropas americanas já tinham invadido o AfeganistÇo quando a telenovela “O Clone”,<br />
<strong>de</strong> Gloria Perez, estreou na TV Globo. Quando terroristas suicidas <strong>de</strong>rrubaram as torres<br />
gÖmeas quase um mÖs antes, colocando na fogueira oci<strong>de</strong>ntal os costumes e o<br />
fundamentalismo islêmico, a sinopse da novela já estava pronta e alguns capÉtulos já tinham<br />
sido gravados. A mistura <strong>de</strong> temas como clonagem, islamismo, drogas e alcoolismo, e a<br />
coincidÖncia temática entre a trama da ficÅÇo e o noticiário ─ sem contar o talento narrativo<br />
da autora ─ garantiram o sucesso da novela durante os oito meses e meio em que foi ao ar no<br />
Brasil. Segundo dados da prÑpria emissora na àpoca, “O Clone” registrou a maior audiÖncia<br />
do horário das oito da Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1997, quando a emissora exibiu “A Indomada”.<br />
Na trama, uma jovem, ÑrfÇ <strong>de</strong> muÅulmanos, nascida e criada no Brasil, vÖ-se obrigada a<br />
se mudar para o Marrocos, on<strong>de</strong> mora seu tio, e enfrenta as dificulda<strong>de</strong>s em se adaptar a uma<br />
cultura tÇo diferente da que estava acostumada no Rio <strong>de</strong> Janeiro, cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vivia. Lá,<br />
apaixona-se ä primeira vista por um jovem brasileiro que visitava o paÉs na companhia <strong>de</strong> seu<br />
irmÇo gÖmeo, do pai, e <strong>de</strong> um cientista amigo. De volta ao Brasil, o irmÇo gÖmeo morre num<br />
aci<strong>de</strong>nte. Inconformado com sua morte, o cientista, padrinho do jovem, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> investir num<br />
sonho antigo: a experiÖncia da clonagem humana. A matriz <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o cientista extrai o DNA<br />
para a criaÅÇo do clone à justamente o rapaz por quem a ÑrfÇ se apaixona. Um casamento<br />
arranjado pelo tio da moÅa com um empresário muÅulmano introduz o conflito entre a liberda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> escolha e o respeito äs tradiÅâes, entre o amor verda<strong>de</strong>iro e aquele <strong>de</strong>signado pela religiÇo e<br />
pela cultura, entre autonomia e <strong>de</strong>stino. A busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> à, para o diretor Jayme<br />
104
Monjardim 209 , o principal tema <strong>de</strong> “O Clone”: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da muÅulmana em crise com sua<br />
cultura, dos gÖmeos idÖnticos, do conflito entre clone e clonado, e do homem diante <strong>de</strong> Deus.<br />
Os conflitos àticos da experiÖncia e os <strong>de</strong>sencontros amorosos do casal protagonista<br />
causados pelas diferenÅas culturais e religiosas <strong>de</strong> suas famÉlias, alàm da exposiÅÇo do drama da<br />
<strong>de</strong>pendÖncia quÉmica garantiram a atualida<strong>de</strong> da narrativa e abasteceram a socieda<strong>de</strong> brasileira<br />
<strong>de</strong> questâes polÖmicas. Por outro lado, as imagens do Marrocos, as cores do Oriente, os tecidos,<br />
a danÅa e os costumes representaram um espetáculo ä parte <strong>de</strong> beleza e plasticida<strong>de</strong>.<br />
A presenÅa do Oriente na tela brasileira foi, segundo a emissora, resultado <strong>de</strong> um<br />
cuidadoso trabalho <strong>de</strong> reproduÅÇo da cultura muÅulmana: o elenco, na composiÅÇo das<br />
personagens, assistiu a vários filmes árabes e iranianos, leu livros sobre os dois temas<br />
principais da histÑria, teve aulas <strong>de</strong> árabe, <strong>de</strong> danÅa, <strong>de</strong> expressÇo corporal e <strong>de</strong> prática <strong>de</strong><br />
oraÅâes, alàm <strong>de</strong> leituras <strong>de</strong> textos; o diretor imprimiu um tom alaranjado äs cenas do<br />
Marrocos com o objetivo <strong>de</strong> trazer a cor da terra do Oriente para a tela, afinando, segundo ele,<br />
“tudo e todos”, como se regesse uma orquestra visual. Levar essa cor para “O Clone” “passou<br />
a nortear toda a preparaÅÇo da novela: do figurino ao cenário, da interpretaÅÇo ä fotografia,<br />
dos diálogos ä trilha sonora, da arte ä iluminaÅÇo” 210 . Alàm disso, as primeiras cenas da<br />
novela foram gravadas em diversas locaÅâes no paÉs (as ruÉnas do kasbah Ait Ben Hadou em<br />
Ouarzazate, o mercado <strong>de</strong> camelos <strong>de</strong> Marrakesh, a cisterna portuguesa <strong>de</strong> El Jadida e a<br />
milenar Medina <strong>de</strong> Fez, que serviu <strong>de</strong> referÖncia para a cida<strong>de</strong> cenográfica marroquina no<br />
Projac). No que diz respeito ä parte textual, a autora contou com a consultoria do xeque Jihad<br />
Hassan Hamma<strong>de</strong>h, vice-presi<strong>de</strong>nte da World Assembly of Muslim Youth (Wamy) e <strong>de</strong> outras<br />
autorida<strong>de</strong>s do mundo muÅulmano no Brasil.<br />
Todos estes cuidados, no entanto, se, por um lado, criaram um universo imaginário<br />
fascinante, por outro, nÇo impediram a crÉtica <strong>de</strong> apontar inverossimilhanÅas em “O Clone” e<br />
reclamar sobre o que chamaram <strong>de</strong> distorÅâes a respeito do mundo muÅulmano e do<br />
islamismo. Sempre há os que esperam da telenovela um retrato fiel da realida<strong>de</strong>, ignorando o<br />
fato <strong>de</strong> o gÖnero ser uma crònica da realida<strong>de</strong>, uma obra <strong>de</strong> ficÅÇo inspirada nela, limitada<br />
pelos reducionismos prÑprios da linguagem televisiva. (ï muito comum ao pëblico e mesmo ä<br />
crÉtica especializada tomar a telenovela como uma reportagem jornalÉstica ou como um<br />
documentário, esperando <strong>de</strong>la que trate o cotidiano das personagens <strong>de</strong> forma naturalista,<br />
209 MONJADIM, in “A busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 ago. 2006.<br />
210 MONJADIM, in “Sinfonia <strong>de</strong> cores”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 ago. 2006.<br />
105
como se fosse o que conhecemos hoje como um reality show, e que reproduza fielmente o<br />
real, como se fosse uma aula <strong>de</strong> histÑria ou uma matària jornalÉstica.)<br />
Talvez esse <strong>de</strong>sencontro tenha sido causado justamente pela escolha do paÉs-locaÅÇo:<br />
geograficamente mais prÑximo do Brasil (o que facilitava o <strong>de</strong>slocamento da produÅÇo), o<br />
Marrocos à um paÉs distante <strong>de</strong> outros paÉses árabes e islêmicos por ser, em alguma medida,<br />
mais “oci<strong>de</strong>ntal”. Segundo Zelia Leal Adghirni, pesquisadora e jornalista brasileira com anos <strong>de</strong><br />
trabalho no Marrocos, “A geografia e a histÑria do Marrocos permitiram que se beneficiasse <strong>de</strong><br />
diversas influÖncias culturais, abrindo-se sobre o mundo e a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> sem abandonar as<br />
tradiÅâes” 211 . Neste sentido, situar justo neste paÉs um nëcleo muÅulmano <strong>de</strong> comportamento<br />
mais arraigado äs remotas tradiÅâes culturais e religiosas revela-se um recurso dramatërgico <strong>de</strong><br />
apresentaÅÇo do diferente que, embora válido do ponto <strong>de</strong> vista da imaginaÅÇo literária, ten<strong>de</strong> a<br />
consolidar o estereÑtipo do árabe como alguàm que vive fora do tempo.<br />
Para Gloria Perez, no entanto, a localizaÅÇo geográfica da trama resultou apenas <strong>de</strong> uma<br />
necessida<strong>de</strong> situacional: a histÑria <strong>de</strong>via se passar em um paÉs muÅulmano <strong>de</strong> modo a permitir a<br />
construÅÇo <strong>de</strong> um quadro genàrico sobre cultura muÅulmana. A escolha do Marrocos, segundo<br />
ela, foi fruto <strong>de</strong> um imprevisto: na sinopse original, o paÉs escolhido era o Egito (tambàm mais<br />
oci<strong>de</strong>ntalizado), e o cenário composto por imagens da capital Cairo e tambàm da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fez,<br />
no Marrocos; a equipe já estava no Cairo escolhendo as locaÅâes quando foi impedida <strong>de</strong><br />
continuar seu trabalho por um Ministro <strong>de</strong> Estado, graÅas ä <strong>de</strong>claraÅÇo da atriz Eliane Giardini,<br />
publicada na imprensa brasileira, segundo a qual a personagem Nazira lhe daria chances <strong>de</strong> falar<br />
sobre a opressÇo sofrida pelas mulheres no mundo muÅulmano 212 . A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> on<strong>de</strong> as cenas<br />
seriam gravadas, a autora já havia <strong>de</strong>ixado claro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a apresentaÅÇo da novela para a emissora<br />
que nÇo estava comprometida em retratar um paÉs em seus traÅos mais especÉficos: “o Egito e<br />
Marrocos sÇo cenários escolhido para botar em cena a cultura muÅulmana <strong>de</strong> uma maneira<br />
geral, seus costumes, sua visÇo <strong>de</strong> mundo”:<br />
106<br />
nÇo vamos, propositalmente, diferenciar as correntes do islamismo, <strong>de</strong> modo a nÇo<br />
tomar o partido <strong>de</strong> nenhuma <strong>de</strong>las. Assim, nÇo se dirá se as personagens que<br />
representam o mundo muÅulmano sÇo xiitas ou sunnitas ─ essa à uma polÖmica<br />
<strong>de</strong>snecessária para a novela, e estaremos atentos para evitá-la. 213<br />
De todo modo, para o pëblico, os hábitos e costumes narrados na trama retratavam a<br />
vida no Marrocos e, para o bem e para o mal, passaram a fazer parte do imaginário coletivo<br />
211 ADGHIRNI, “O falso clone do Marrocos”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 9 mar. 2006.<br />
212 PEREZ, informaÅÇo verbal, 2 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 253.<br />
213 I<strong>de</strong>m, in: “O Clone ─ IntroduÅÇo”, material cedido pela autora e apresentado ä emissora.
do brasileiro sobre aquele paÉs. O que significa dizer que, na apreensÇo da audiÖncia, o que<br />
era para ser um painel composite da cultura muÅulmana como um todo, ficou registrado como<br />
um retrato do Marrocos.<br />
Cabe aqui registrar que a diferenÅa cultural que emerge da apresentaÅÇo (e representaÅÇo)<br />
do Outro, foco central <strong>de</strong>ste estudo, nÇo à a temática principal <strong>de</strong> “O Clone”. Ela está em segundo<br />
plano em relaÅÇo ä temática da clonagem humana (e ä do amor contrariado, eixo da maioria dos<br />
folhetins) 214 . Segundo texto da prÑpria autora, que serviu <strong>de</strong> introduÅÇo ä sinopse,<br />
107<br />
O que está em primeiro plano à a vivÖncia emocionada <strong>de</strong> uma nova situaÅÇo <strong>de</strong> vida,<br />
o confronto entre o clone e o clonado. O tema à atual, polÖmico, capaz <strong>de</strong> mobilizar e<br />
provocar impacto. Ao mesmo tempo, em sendo tÇo novo, guarda ainda a magia das<br />
maravilhas apenas imaginadas pela mente humana.<br />
Essa experiÖncia atualÉssima, que reverte todos os conceitos, todas as certezas que atà<br />
agora tivemos sobre os mistàrios <strong>de</strong> nossa prÑpria origem, terá como contraponto os<br />
muÅulmanos e suas tradiÅâes milenares. A religiosida<strong>de</strong> do oriente, sua fà, sua<br />
preocupaÅÇo com o espÉrito, com a salvaÅÇo da alma, estará em confronto com o<br />
materialismo do oci<strong>de</strong>nte. O homem “submisso” a Deus, e o homem que buscar<br />
“submeter” Deus, tornando-se, ele prÑprio, criador. 215<br />
Ou como diz pesquisador <strong>de</strong> telenovela Nilson Xavier, “O Clone” po<strong>de</strong> ser sintetizado<br />
como “O encontro <strong>de</strong> um homem com sua imagem 20 anos mais jovem” 216 :<br />
[...] No comeÅo da histÑria Lucas à um adolescente alegre, romêntico, cheio <strong>de</strong><br />
projetos, e está apaixonado por uma moÅa muÅulmana: Ja<strong>de</strong>. Mas a vida nÇo correu<br />
bem para ele: separa-se <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong>, e ao longo dos 20 anos que se passam na novela,<br />
<strong>de</strong>caiu fisicamente, seus projetos se per<strong>de</strong>ram pelo caminho, nÇo tem mais a ternura, o<br />
romantismo, a poesia <strong>de</strong> antes. Tornou-se seco e duro. Ja<strong>de</strong>, por outro lado, viveu esse<br />
tempo todo imaginando que sua vida teria sido muito mais feliz se tivesse casado com<br />
ele. Vinte anos mais tar<strong>de</strong> eles se reencontram. Ja<strong>de</strong> se <strong>de</strong>cepciona tentando encontrar,<br />
no Lucas quarentÇo, resquÉcios do adolescente por quem se apaixonara um dia. ï<br />
quando aparece o clone, feito a revelia <strong>de</strong> Lucas por seu padrinho, o geneticista<br />
Albieri. O clone nÇo à Lucas, mas à a imagem que Ja<strong>de</strong> amou e cultivou durante a<br />
vida inteira. Temos entÇo um triêngulo incomum: Lucas se tornando o rival <strong>de</strong> si<br />
prÑprio. O aparecimento do clone revoluciona completamente as vidas <strong>de</strong> todas as<br />
personagens da trama. 217<br />
A sinopse da novela divulgada por Xavier diz:<br />
No Marrocos, nos anos 80, comeÅa essa gran<strong>de</strong> histÑria <strong>de</strong> dilemas: as diferenÅas<br />
culturais e religiosas, a corrupÅÇo com a àtica em nome da ciÖncia e a difÉcil questÇo<br />
do casamento por amor ou conveniÖncia.<br />
Há 18 anos, Ja<strong>de</strong> fica ÑrfÇ e volta para o Marrocos on<strong>de</strong> passará a viver com o tio Ali,<br />
a prima Latiffa, e Zorai<strong>de</strong>. Lá, ela terá que se reconciliar com a religiÇo <strong>de</strong> sua famÉlia,<br />
totalmente formada por muÅulmanos, e conhecerá Lucas, que estará <strong>de</strong> fàrias na<br />
214 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 237.<br />
215 I<strong>de</strong>m, in: “O Clone ─ IntroduÅÇo”, material cedido pela autora e apresentado ä emissora.<br />
216 XAVIER, disponÉvel em: . Acesso em 1 nov. 2009.<br />
217 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.
108<br />
ôfrica. Mas uma sàrie <strong>de</strong> fatos impedirá a uniÇo do casal. O primeiro <strong>de</strong>les à a<br />
oposiÅÇo <strong>de</strong> Ali, que obrigará Ja<strong>de</strong> a seguir os ensinamentos do AlcorÇo, livro sagrado<br />
islêmico, e arranjará para a moÅa um casamento com Said, mesmo com toda a rebeldia<br />
da sobrinha.<br />
O segundo e mais marcante à a morte <strong>de</strong> Diogo, irmÇo gÖmeo <strong>de</strong> Lucas, em<br />
consequÖncia da explosÇo <strong>de</strong> seu helicÑptero no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Antes da tragàdia,<br />
Diogo estava no Marrocos com o irmÇo e havia brigado violentamente com o seu pai,<br />
o milionário Leònidas Ferraz, por este tÖ-lo preterido em favor <strong>de</strong> Yvete, mulher com<br />
quem o rapaz teve uma aventura amorosa sem saber que era a namorada <strong>de</strong> seu pai, na<br />
noite anterior ä chegada <strong>de</strong>le ao Marrocos. O falecimento <strong>de</strong> Diogo causa um<br />
profundo remorso em Leònidas, que passa a fugir constantemente <strong>de</strong> Yvete, cujas<br />
intrigas causaram o <strong>de</strong>sentendimento entre pai e filho. Apesar das mágoas, Leònidas<br />
vai exigir <strong>de</strong> Lucas que cui<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas empresas. O rapaz, retraÉdo e sonhador, bem<br />
diferente do falecido irmÇo, almeja ser mësico. Mas Leònidas nÇo ouvirá seus<br />
argumentos e seus projetos nÇo serÇo concretizados. Com as pressâes do pai, o jovem<br />
à obrigado a abandonar Ja<strong>de</strong>, o seu gran<strong>de</strong> amor. ï a partir daÉ que comeÅa a se<br />
<strong>de</strong>senrolar a trajetÑria <strong>de</strong> sua infeliz uniÇo com Maysa, que foi namorada do Diogo<br />
anteriormente. Os dois viverÇo discutindo e, com isso, Mel, a filha do casal, se<br />
envolverá com drogas.<br />
Quem nÇo se conforma com a morte <strong>de</strong> Diogo à seu padrinho, o cientista Augusto<br />
Albieri, que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fazer um clone <strong>de</strong> Lucas a partir <strong>de</strong> uma càlula somática. A càlula<br />
à introduzida em segredo nos Ñvulos colhidos em laboratÑrio vindos <strong>de</strong> Deusa, uma<br />
manicure que almeja muito ter um filho atravàs da inseminaÅÇo artificial. Entretanto,<br />
ela <strong>de</strong>scobre a verda<strong>de</strong>: nÇo houve nenhuma fertilizaÅÇo <strong>de</strong> seus Ñvulos com o sÖmen<br />
<strong>de</strong> um doador qualquer, e sim, a experiÖncia genàtica <strong>de</strong> Albieri. Por isso Deusa nÇo à<br />
a mÇe <strong>de</strong> Lào e apenas serviu como mÇe <strong>de</strong> aluguel para o clone <strong>de</strong> Lucas, batizado <strong>de</strong><br />
Leandro. 218<br />
Embora esteja em segundo plano, à a apresentaÅÇo das diferenÅas culturais que me<br />
interessa aqui. Na trama <strong>de</strong> Gloria Perez existem dois nëcleos muÅulmanos ligados por<br />
tortuosos laÅos <strong>de</strong> famÉlia. Embora um viva na Medina <strong>de</strong> Fez, no Marrocos, e o outro em SÇo<br />
CristÑvÇo, na Zona Norte do Rio <strong>de</strong> Janeiro, eles se visitam com a frequÖncia <strong>de</strong> parentes<br />
vizinhos. (Embora a crÉtica reclamasse que a verossimilhanÅa tenha ficado abalada com o<br />
permanente trênsito <strong>de</strong> personagens entre o Marrocos e o Brasil, à possÉvel perceber tal<br />
“proximida<strong>de</strong>” como um recurso narrativo <strong>de</strong> agilizar o ritmo da histÑria, resultado do pacto<br />
ficcional estabelecido entre a autora e o pëblico. Afinal, como diz a prÑpria, “no romance, o<br />
autor dá a volta ao mundo em uma linha!” 219 )<br />
Os conflitos nÇo se dÇo entre as personagens mais idosas e as mais jovens: nas famÉlias<br />
marroquinas da novela nÇo há conflito <strong>de</strong> geraÅâes ─ pelo menos nÇo entre os homens ─,<br />
todos respeitam o “Livro Sagrado” e temem a ira <strong>de</strong> Alá, que à capaz <strong>de</strong> fazer os infiàis “ar<strong>de</strong>r<br />
no mármore do inferno” ou “ser jogados no vento”. Os conflitos se dÇo na esfera do<br />
(<strong>de</strong>s)encontro cultural: a moÅa muÅulmana criada no Brasil que à entregue aos cuidados <strong>de</strong><br />
um tio no Marrocos; as famÉlias constituÉdas em Fez que se mudam para o Rio por conta dos<br />
218 XAVIER, disponÉvel em: . Acesso em 1 nov. 2009.<br />
219 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 238.
negÑcios; ou os tios idosos e a empregada <strong>de</strong> confianÅa que transitam entre os dois paÉses. O<br />
que estabelece, para o conjunto <strong>de</strong> personagens da trama, a fronteira entre o certo e o errado, o<br />
justo e o injusto, a cultura e a religiÇo sÇo os contrastes entre o mundo oci<strong>de</strong>ntal e o oriental, a<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> exigida do muÅulmano em cada gesto do cotidiano, e a arrogência ou submissÇo do<br />
homem em relaÅÇo a Deus.<br />
Em “O Clone”, somente personagens femininas (no caso, a ÑrfÇ Ja<strong>de</strong> e a “criada” e<br />
conselheira Zorai<strong>de</strong>) enfrentam com ousadia e autonomia os <strong>de</strong>safios da interculturalida<strong>de</strong> e<br />
os <strong>de</strong>sÉgnios do <strong>de</strong>stino. Criada no Brasil <strong>de</strong>sligada da religiÇo da mÇe, cuja morte leva a ÑrfÇ<br />
carioca a viver com tios no Marrocos, Ja<strong>de</strong> resiste ä i<strong>de</strong>ia do casamento arranjado, questiona a<br />
obrigaÅÇo <strong>de</strong> submeter-se ao marido e <strong>de</strong>ver-lhe obediÖncia incondicional, <strong>de</strong>safia o <strong>de</strong>stino<br />
traÅado pela famÉlia, rejeita o castigo imposto äs mulheres infiàis (80 chibatadas em praÅa<br />
pëblica) e sente-se <strong>de</strong>sconfortável com o uso do vàu. Mulher muÅulmana madura criada <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
menina pela famÉlia <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong> em Fez, Zorai<strong>de</strong> vale-se das crendices populares e <strong>de</strong> sua longa<br />
experiÖncia <strong>de</strong> vida como mulher numa cultura masculina para brindar os mais jovens com a<br />
sabedoria da conciliaÅÇo: diante <strong>de</strong> qualquer impasse, contornar sempre, pois o confronto,<br />
segundo ela, sÑ produz endurecimento.<br />
Por nÇo estarem motivadas pelo amor impossÉvel intercultural e inter-religioso (como<br />
Ja<strong>de</strong>) ou por nÇo terem a sabedoria da maturida<strong>de</strong> (como Zorai<strong>de</strong>), as <strong>de</strong>mais personagens<br />
femininas que por diversas razâes sÇo obrigadas a lidar com a diferenÅa cultural, sequer<br />
cogitam o caminho da resistÖncia ä tradiÅÇo, seja ela pelo embate ou pela conciliaÅÇo<br />
estratàgica. A filha <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong>, Khadija, apesar <strong>de</strong> viver no Rio com a mÇe questionadora dos<br />
valores muÅulmanos, comemora quando seu pai a presenteia com um vàu, orgulha-se <strong>de</strong> usá-<br />
lo em toda parte e reza para encontrar um marido “bem bonito, bem rico” e que lhe dÖ “muito<br />
ouro”. A cunhada solteirona Nazira se refugia na fantasia dos contos <strong>de</strong> Scheraza<strong>de</strong> para<br />
sobreviver ä opressÇo contra a mulher e cultivar suas esperanÅas <strong>de</strong> conquistar um marido e<br />
cumprir, atravàs do casamento, as tradiÅâes reservadas ä mulher virtuosa e respeitadora dos<br />
costumes. A prima Latiffa, que teve a sorte <strong>de</strong> vir a amar o marido escolhido pelo tio, vive<br />
segundo os costumes, questionando apenas a opÅÇo pela poligamia: usa <strong>de</strong> sua prerrogativa <strong>de</strong><br />
primeira esposa para negar ao parceiro o direito <strong>de</strong> se casar <strong>de</strong> novo (na verda<strong>de</strong>, sendo a<br />
poligamia um direito que está submetido ä concordência da primeira esposa, Latiffa nÇo se<br />
rebela contra os costumes, apenas luta com as armas que lhe foram confiadas pela prÑpria<br />
tradiÅÇo). Vive em casa com seus filhos adolescentes, preocupada em seduzir o marido com<br />
refeiÅâes tÉpicas e com shows particulares <strong>de</strong> danÅa do ventre ─ tudo para <strong>de</strong>movÖ-lo da i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> “contratar” um segundo casamento.<br />
109
O recato da mÇe Latiffa e a rigi<strong>de</strong>z religiosa do pai Mohamed trazem para os filhos um<br />
mo<strong>de</strong>lo difÉcil <strong>de</strong> seguir no bairro carioca. O samba, o carnaval, os passeios ä praia, os trajes <strong>de</strong><br />
verÇo e a convivÖncia com brasileiros na escola criam um cenário favorável para um tipo <strong>de</strong><br />
resistÖncia aos costumes diferente daquele encontrado em Ja<strong>de</strong> e Zorai<strong>de</strong>: os adolescentes<br />
Samira e Amin sÇo filhos <strong>de</strong> muÅulmanos, mas vivem no Rio <strong>de</strong> Janeiro sob as influÖncias da<br />
cultura brasileira, ao contrário <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong> e Zorai<strong>de</strong>, que resistem ä cultura do local on<strong>de</strong> vivem.<br />
Por estarem fisicamente afastados do Marrocos e viverem sob o impacto da cultura brasileira, a<br />
jovem Samira se recusa a usar o vàu; o jovem Amin vive entre a tentaÅÇo do voyeurismo dos<br />
corpos <strong>de</strong>scobertos das brasileiras e a tarefa <strong>de</strong> dar o exemplo <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> religiosa ä irmÇ.<br />
Poligamia, contrato matrimonial, castigo, pecado e <strong>de</strong>stino sÇo preocupaÅâes <strong>de</strong> um<br />
mundo distante, misticamente envolto em vàu e cheiro <strong>de</strong> incenso. Um mundo em que a religiÇo<br />
rege igualmente o Estado, as <strong>de</strong>cisâes <strong>de</strong> negÑcio e a vida da famÉlia. Ao trazer a cultura<br />
muÅulmana e a religiÇo islêmica para <strong>de</strong>ntro do cenário brasileiro, a telenovela <strong>de</strong>spertou a<br />
atenÅÇo do pëblico para o conflito entre as diferenÅas e o fez justamente num momento em que<br />
seus seguidores estavam sendo i<strong>de</strong>ntificados genericamente como fanáticos suicidas. Segundo o<br />
jornalista EugÖnio Bucci, “O Clone” auxilia na compreensÇo intercultural entre brasileiros e<br />
árabes para o bem e para o mal: proporciona a “humanizaÅÇo” dos muÅulmanos, que estÇo<br />
sendo “satanizados” pelos jornais, mas tambàm oferece subsÉdios para a criaÅÇo <strong>de</strong> outros<br />
preconceitos 220 .<br />
6.4 NARRATIVAS EM PERSPECTIVA<br />
Se o mundo muÅulmano que transborda das páginas <strong>de</strong> Veja cheio <strong>de</strong> Ñdio atávico pelo<br />
estilo <strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal à povoado por homens barbudos, vestidos em tënicas e turbantes, e<br />
armados com fuzis ultrapassados, o mundo muÅulmano <strong>de</strong>scrito em “O Clone” à uma terra<br />
habitada por homens severos (barbudos, vestidos em tënicas e turbantes), mas especialmente<br />
dominada pelos encantos da mulher graciosa, danÅarina sedutora, esposa e mÇe <strong>de</strong>dicada,<br />
sábia alquimista <strong>de</strong> especiarias e especialista em negociar sua aparente fragilida<strong>de</strong>. Ao passo<br />
que o <strong>de</strong>serto impresso nas páginas da revista traz para o oci<strong>de</strong>ntal a imagem da opressÇo <strong>de</strong><br />
um mundo fora do tempo, o cinza árido <strong>de</strong> uma terra sem o colorido da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e a<br />
amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um futuro sem horizontes, a vastidÇo das areias <strong>de</strong> “O Clone” parece gritar a<br />
220 BUCCI, “O islÇ segundo Gloria Perez”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 28 set. 2006.<br />
110
pequenez do homem diante da Natureza e ainda confundir os caminhos das personagens com<br />
a plasticida<strong>de</strong> sedutora <strong>de</strong> um cenário que muda ao sabor do vento, sem oferecer resistÖncia.<br />
Num primeiro momento, tais imagens parecem revelar mundos contraditÑrios,<br />
exclu<strong>de</strong>ntes atà. Mas à preciso observá-las contra seus diversos frames, no contexto <strong>de</strong> seus<br />
suportes narrativos e <strong>de</strong> seus tempos histÑricos.<br />
A primeira possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreensÇo <strong>de</strong>stes dois mundos à tomá-los separadamente<br />
enquanto notÉcia e enquanto drama ficcional. Neste sentido, fica claro o enquadramento dos<br />
relatos <strong>de</strong> Veja sobre os atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> setembro como reportagem <strong>de</strong> capa <strong>de</strong> uma das<br />
revistas <strong>de</strong> informaÅÇo mais importantes do paÉs. Dadas a magnitu<strong>de</strong> dos atentados, a<br />
brutalida<strong>de</strong> das imagens já divulgadas pela tevÖ e a dramaticida<strong>de</strong> inerente aos <strong>de</strong>poimentos e<br />
pronunciamentos dos envolvidos, os fatos relacionados ao episÑdio traziam carga <strong>de</strong><br />
“noticiabilida<strong>de</strong>” incontestável. NÇo fosse o ataque ao modo <strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal um tema tÇo<br />
ameaÅador para os americanos e nÇo fosse o jornalismo hoje tÇo se<strong>de</strong>nto <strong>de</strong> espetáculos para<br />
alavancar as vendas <strong>de</strong> seus produtos, teria sido <strong>de</strong>snecessário reforÅar as cores já dramáticas do<br />
fato. Na condiÅÇo <strong>de</strong> obra ficcional, a narrativa dramatizada e imagàtica <strong>de</strong> “O Clone” se<br />
encaixa em lugar privilegiado na gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> programaÅÇo da mais po<strong>de</strong>rosa emissora <strong>de</strong> tevÖ<br />
brasileira. Apesar dos interesses mercadolÑgicos inerentes aos produtos apresentados em<br />
horário nobre na TV Globo, do currÉculo <strong>de</strong> sucessos da autora, da riqueza da produÅÇo 221 e do<br />
calibre do elenco escalado, a novela estreava cercada <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s expectativas e <strong>de</strong> riscos que<br />
excediam a inseguranÅa <strong>de</strong> qualquer estreia <strong>de</strong>vido ä ousadia da temática. Tratava-se <strong>de</strong> uma<br />
narrativa que tinha o atà entÇo estranho mundo muÅulmano como um <strong>de</strong> seus pilares 222 . NÇo<br />
fosse a telenovela o produto cultural <strong>de</strong> maior popularida<strong>de</strong> no Brasil, nÇo fosse a TV Globo<br />
referÖncia mundial <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> na produÅÇo <strong>de</strong> teledramaturgia e nÇo fosse o talento narrativo<br />
da autora, nÇo teria sido fácil, diante do noticiário sobre o 11 <strong>de</strong> setembro, fazer o pëblico<br />
acreditar que o mundo muÅulmano ali apresentado guardava alguma relaÅÇo com o real.<br />
221 Segundo a revista IstoÉ Gente, a TV Globo tratou com esmero a produÅÇo da novela, e abriu os cofres: nÇo sÑ<br />
“Construiu uma cida<strong>de</strong> cenográfica <strong>de</strong> 830 m¢ que reproduz as ruas <strong>de</strong> Fez, no Marrocos”, como gravou os<br />
primeiros episÑdios no Marrocos. Cada episÑdio, segundo a publicaÅÇo, custou R$ 100 mil. A expectativa,<br />
traduzida em cotas <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong> vendidas, e o risco eram gran<strong>de</strong>s: todas as cotas foram vendidas ao preÅo <strong>de</strong><br />
R$ 150 mil cada 30 segundos no intervalo da novela. COHEN, disponÉvel em:<br />
. Acesso 14 out. 2006.<br />
222 A mesma revista informa que a prÑpria diretora-geral da emissora temia pelo sucesso <strong>de</strong> uma trama que<br />
misturava clonagem humana, muÅulmanos e campanha contra drogas. Sua resistÖncia levou a emissora a retardar<br />
em um ano a produÅÇo da novela, colocando no ar “Porto dos milagres”, <strong>de</strong> Agnaldo Silva. Dado o sinal ver<strong>de</strong>, a<br />
autora sofreu com o que qualificou <strong>de</strong> “campanha orquestrada” <strong>de</strong> ataques contra a novela, uma “flagrante<br />
tentativa <strong>de</strong> ridicularizar, inviabilizar o projeto” que resultou na recusa <strong>de</strong> alguns atores em dar vida a algumas<br />
personagens importantes da trama, inclusive aos protagonistas. COHEN, disponÉvel em:<br />
. Acesso 14 out. 2006.<br />
111
Perceber a dimensÇo histÑrica dos relatos do 11 <strong>de</strong> setembro e <strong>de</strong> “O Clone” representa<br />
a segunda possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreensÇo <strong>de</strong>stas duas narrativas. No calor da humilhaÅÇo que<br />
ainda ardia em solo americano, o texto jornalÉstico <strong>de</strong> Veja narrava em tom apocalÉptico o<br />
day-after da infêmia, aquele primeiro momento que o Oci<strong>de</strong>nte chamou <strong>de</strong> “o primeiro dia do<br />
resto <strong>de</strong> nossas vidas”. A impressÇo <strong>de</strong> apocalipse experimentada pelo Oci<strong>de</strong>nte era resultado<br />
<strong>de</strong> uma inversÇo sem prece<strong>de</strong>ntes no sentido da histÑria: como diz o jornalista Ulisses<br />
Capozoli, pela primeira vez as gran<strong>de</strong>s potÖncias guerreiras eram as vÉtimas e nÇo os<br />
perpetradores 223 . A inegável constataÅÇo <strong>de</strong> que aquele era um tempo histÑrico, um divisor <strong>de</strong><br />
águas para o “mundo civilizado”, certamente pesou na hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar tantas capas sucessivas<br />
ao mesmo assunto e <strong>de</strong>terminou a distribuiÅÇo do material pelas páginas <strong>de</strong> cada ediÅÇo,<br />
ampliando fotos, <strong>de</strong>stacando citaÅâes, reforÅando o preto sobre a tipologia e sobre o fundo do<br />
papel. ï preciso lembrar que a narrativa aqui analisada nÇo se resume aos sucessivos<br />
parágrafos impressos na página: a ediÅÇo, o <strong>de</strong>sign gráfico, a tipologia, a disposiÅÇo das<br />
legendas, os grifos e as imagens ─ tudo isso fala pela revista. O luto, as cenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>struiÅÇo, o<br />
pênico nas ruas, o olhar incràdulo do presi<strong>de</strong>nte, a pose ameaÅadora daqueles i<strong>de</strong>ntificados<br />
como “fanáticos”, a face serena <strong>de</strong> La<strong>de</strong>n, as tarjas pretas, os fios vermelhos, as cores da<br />
ban<strong>de</strong>ira americana no “selo” que i<strong>de</strong>ntifica a ediÅÇo especial, as fotos “sangrando” pelas<br />
margens: diversas maneiras jornalÉsticas <strong>de</strong> contar a histÑria da guerra do “obscurantismo” e<br />
da “barbárie” contra a “civilizaÅÇo” e as “liberda<strong>de</strong>s civis”. Na telenovela, antes <strong>de</strong> qualquer<br />
constataÅÇo <strong>de</strong> sua qualida<strong>de</strong>, a narrativa se tornou histÑrica pela simples e casual<br />
simultaneida<strong>de</strong> com o 11 <strong>de</strong> setembro e a invasÇo do AfeganistÇo. NÇo se referia aos TalibÇs,<br />
nÇo exibia fuzis nem terroristas suicidas. Pela perspectiva do humano, tratava dos dramas<br />
inerentes ao cruzamento <strong>de</strong> diferenÅas, dos <strong>de</strong>sencontros, das violÖncias praticadas contra os<br />
sentimentos em nome da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> äs tradiÅâes. Falava <strong>de</strong> dominaÅâes e submissâes, <strong>de</strong><br />
discursos veementes e silÖncios significativos. Mostrava os diferentes caminhos da razÇo e a<br />
àtica subjacente äs razâes antagònicas. Apresentava, no comportamento e no figurino das<br />
personagens, no colorido das cenas, na pontuaÅÇo inspirada da trilha sonora 224 , o Oci<strong>de</strong>nte e o<br />
223 CAPOZOLI, “InformaÅÇo inteligÉvel e os tambores <strong>de</strong> guerra”. DisponÉvel em:<br />
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/download/midiaeterrorismo.pdf, pp. 12-13. Acesso em 7 mar. 2006.<br />
224 A trilha sonora da novela ofereceu ao pëblico uma fartura <strong>de</strong> experiÖncias auditivas, tanto que foram lanÅados<br />
cindo CDs <strong>de</strong> “O Clone”: as tradicionais versâes nacional e internacional da trilha oficial, e mais trÖs trilhas<br />
sonoras complementares (um com as canÅâes apresentadas no bar da Jura, outro com mësicas <strong>de</strong> danÅa do ventre<br />
e um terceiro com o repertÑrio da boate Nefertiti). Instrumentos musicais árabes foram apresentados, “como o<br />
<strong>de</strong>rbouka (tambor <strong>de</strong> terracota recoberto por pele <strong>de</strong> cabra), o târ (tambor <strong>de</strong> 15 cm <strong>de</strong> diêmetro, com cÉmbalos);<br />
os snujs (pequenos cÉmbalos <strong>de</strong> metal); o daff (pan<strong>de</strong>iro), o <strong>de</strong>rback, a flauta, o alaë<strong>de</strong>, a cÉtara e o violino”.<br />
Alàm disso, a trilha musical inci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> “O Clone”, criada pelo mësico mineiro Marcus Viana, à o resultado <strong>de</strong><br />
uma “fusÇo do estilo sinfònico com o universo islêmico musical tradicional e elementos pop”. In: “O Clone”,<br />
112
Oriente que assombram os <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> cada um 225 . Passado, presente e futuro<br />
simultaneamente se materializavam na narrativa verbal e visual <strong>de</strong> seres fictÉcios que,<br />
embalados em burkas, vàus e tënicas, discorriam com igual naturalida<strong>de</strong> sobre a compra <strong>de</strong><br />
noivas, a puniÅÇo em chibatadas e as experiÖncias da genàtica.<br />
A terceira vertente <strong>de</strong> apreensÇo dos dois relatos aqui estudados à econòmica: se a má<br />
notÉcia ven<strong>de</strong>, as gran<strong>de</strong>s catástrofes fazem jornais e revistas esgotarem suas ediÅâes; e se o<br />
novo e o diferente atraem o consumidor, sua exposiÅÇo na vitrine do horário nobre da tevÖ<br />
lanÅa moda e cria <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> consumo massivo. Veja potencializou suas vendas com o<br />
<strong>de</strong>staque intensivo conferido aos ataques suicidas; sua reputaÅÇo <strong>de</strong> revista <strong>de</strong> informaÅÇo<br />
sària, sua retÑrica <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong>, e sua filiaÅÇo ao jornalismo americano<br />
conferiram confiabilida<strong>de</strong> äquilo que publicava. “O Clone”, tendo a máquina e o po<strong>de</strong>r da TV<br />
Globo a seu favor, “ven<strong>de</strong>u” <strong>de</strong> tudo: jÑias e a<strong>de</strong>reÅos inspirados nos mo<strong>de</strong>los usados pelas<br />
personagens, tecidos bordados, tapetes, artigos <strong>de</strong> <strong>de</strong>coraÅÇo, combinaÅâes culinárias, cursos<br />
<strong>de</strong> danÅa do ventre, discos <strong>de</strong> mësica oriental e atà entrevistas <strong>de</strong> uma personagem fictÉcia a<br />
publicaÅâes especializadas em medicina (o ator que interpretava o cientista <strong>de</strong>u várias<br />
<strong>de</strong>claraÅâes sobre clonagem e seus <strong>de</strong>sdobramentos àticos). Mais que tudo, a narrativa<br />
jornalÉstica e a ficcional ven<strong>de</strong>ram espetáculo.<br />
Em mais uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recepÅÇo do que foi publicado em Veja ou exibido em<br />
“O Clone”, as reportagens e o folhetim eletrònico <strong>de</strong>vem ser tomados como narrativas <strong>de</strong><br />
alterida<strong>de</strong>, construÅâes factuais ou ficcionais que falam do Outro. AfegÇos e marroquinos sÇo<br />
emblemas do mundo oriental que se prestam como contraponto ä imagem do Oci<strong>de</strong>nte que se<br />
quer divulgar. Se à possÉvel atribuir ä narrativa <strong>de</strong> Veja e a <strong>de</strong> “O Clone” intenÅâes diversas ─<br />
uma <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m polÉtico-i<strong>de</strong>olÑgica, outra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estàtica ─, à possÉvel tambàm perceber<br />
divergÖncias na autorida<strong>de</strong> com que cada uma <strong>de</strong>las fala do Outro. A revista nÇo o apresenta<br />
como fonte fi<strong>de</strong>digna, restringindo-se a reproduzir <strong>de</strong>claraÅâes <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntais, sejam<br />
personalida<strong>de</strong>s envolvidas nos atentados ou “especialistas” em temas muÅulmanos; Veja nega<br />
voz aos afegÇos ─ fala <strong>de</strong>les, mas pelo foco <strong>de</strong> outrem. A telenovela cercou-se <strong>de</strong> cuidados<br />
para falar do diferente: ouviu lÉ<strong>de</strong>res da comunida<strong>de</strong> muÅulmana no paÉs e turistas árabes em<br />
seu primeiro contato com o Brasil; contratou consultoria para assuntos culturais e religiosos;<br />
promoveu palestras sobre o mundo islêmico, sessâes <strong>de</strong> filmes árabes e iranianos, leitura <strong>de</strong><br />
MemÑria Globo, disponÉvel em . Acesso em 12 set. 2006.<br />
225 Embora a telenovela nÇo possa ser reduzida ao encontro das diferenÅas culturais entre Oriente e Oci<strong>de</strong>nte<br />
(trata principalmente da questÇo da clonagem humana e <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sdobramentos àticos e familiares, e, ainda, da<br />
tragàdia <strong>de</strong>flagrada pelas drogas), meu olhar aqui se <strong>de</strong>tàm somente sobre a problemática do Outro.<br />
113
livros e textos sobre o assunto, aulas <strong>de</strong> árabe, danÅa do ventre, expressÇo corporal e prática<br />
<strong>de</strong> oraÅâes. Ouvir tantas e tÇo diferentes fontes primárias e secundárias foi a estratàgia da<br />
autora, nÇo por acaso uma mulher com formaÅÇo em HistÑria 226 , para que toda a equipe<br />
“entrasse no clima” do universo muÅulmano e fosse capaz <strong>de</strong> apresentar “a vida como ela à”,<br />
<strong>de</strong>ntro do registro ficcional <strong>de</strong> uma telenovela.<br />
Embora o muÅulmano seja o Outro focado aqui em comparaÅÇo com aquele tratado pelo<br />
relato jornalÉstico do 11 <strong>de</strong> setembro, à preciso registrar que a preocupaÅÇo da autora em dar<br />
voz ao diferente se esten<strong>de</strong> a outros grupos, como por exemplo, aos drogados, segmento<br />
tambàm representado em “O Clone”. Se as pesquisas realizadas sobre o muÅulmano<br />
constituÉram um trabalho executado nos bastidores da novela, apenas revelado ao pëblico<br />
atravàs do resultado estàtico das cenas e do comportamento das personagens, a “escuta” do<br />
universo do Outro-drogado foi levada para frente das cêmeras, na apresentaÅÇo <strong>de</strong> pessoas<br />
reais, vÉtimas das drogas e seus familiares, em <strong>de</strong>poimentos que se entrelaÅavam com o<br />
<strong>de</strong>senrolar da trama 227 (estratàgia inclusive já utilizada pela autora em “Barriga <strong>de</strong> Aluguel”,<br />
com os testemunhos <strong>de</strong> representantes das “MÇes da Cinelêndia”, mulheres da vida real que<br />
tinham tido filhos <strong>de</strong>saparecidos).<br />
No caso dos muÅulmanos, o cuidado no falar sobre o diferente, dando-lhe voz atravàs da<br />
realizaÅÇo <strong>de</strong> ampla pesquisa para a fundamentaÅÇo do universo tratado na trama nÇo foi<br />
capaz, por uma limitaÅÇo estàtica prÑpria da telenovela, <strong>de</strong> impedir a narrativa <strong>de</strong> “O Clone”<br />
<strong>de</strong> reproduzir alguns estereÑtipos. Por forÅa <strong>de</strong> sua condiÅÇo <strong>de</strong> espetáculo, da ligeireza e da<br />
relativa superficialida<strong>de</strong> inerentes ä narrativa ficcional televisiva <strong>de</strong> massa, a telenovela,<br />
diferentemente <strong>de</strong> uma reportagem jornalÉstica ou <strong>de</strong> um relato <strong>de</strong> HistÑria, nÇo tem como<br />
avanÅar sobre assuntos tÇo complexos ─ principalmente se vistos por olhos estrangeiros ─,<br />
como a cultura muÅulmana, por exemplo. Assim, se a opÅÇo da narrativa <strong>de</strong> “O Clone” pela<br />
via do conto-<strong>de</strong>-fada trouxe o encantamento e a plasticida<strong>de</strong> que ren<strong>de</strong>ram ä novela uma<br />
espantosa audiÖncia, a natureza do gÖnero como uma obra em extensÇo (e nÇo em<br />
profundida<strong>de</strong>) obrigou a autora a fugir <strong>de</strong> algumas problematizaÅâes mais polÖmicas. Tal<br />
226 Gloria Perez à graduada e “quase” pÑs-graduada em HistÑria: já tendo cumprido todos os cràditos do<br />
mestrado na UFRJ, foi impedida <strong>de</strong> escrever sua dissertaÅÇo pois aceitou o tÇo sonhado convite <strong>de</strong> Janete Clair<br />
para ser sua colaboradora na novela “Eu Prometo”.<br />
227 De acordo com informaÅÇo verbal da autora, colhida em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009, tal entrelaÅamento com a<br />
trama à assim exemplificado por ela na <strong>de</strong>scriÅÇo <strong>de</strong> uma cena: “a Mel vai buscar droga no morro e a mÇe fica<br />
sabendo. Desesperada, vai atrás <strong>de</strong>la e, diante do morro, consi<strong>de</strong>ra todos os perigos que vai enfrentar, mas ela<br />
sabe que vai subir para buscar a filha. No que ela comeÅa a subir o morro, corta para uma mÇe real contando<br />
como ela se sentiu quando foi buscar a filha no alto do morro. Sai o <strong>de</strong>poimento e a mÇe da Mel chega ao alto do<br />
morro e negocia com o traficante a soltura da filha”. Outros autores <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>la passaram a usar <strong>de</strong>poimentos<br />
verÉdicos, mas <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scosturada da trama, exibidos ao final do capÉtulo.<br />
114
contingÖncia narrativa acabou resultando algumas vezes na apresentaÅÇo <strong>de</strong> situaÅâes e<br />
personagens que muitos crÉticos consi<strong>de</strong>raram inverossÉmeis mas que, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vem ser<br />
vistas como verossÉmeis sobretudo em relaÅÇo ao conjunto <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s forjadas no imaginário<br />
coletivo a respeito <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> muÅulmano, formado por homens severos e ligados<br />
atavicamente äs tradiÅâes e por mulheres misteriosas e sedutoras.<br />
ï preciso lembrar que o imaginário coletivo do muÅulmano, como revela Said,<br />
comumente bebe em fontes diversas, tanto cientÉficas como literárias, serve a interesses<br />
civilizatÑrios permanentemente atualizados, e constrÑi um universo tÇo repleto <strong>de</strong><br />
representaÅâes do Oriente que ele passa a existir apenas como entida<strong>de</strong>. Des<strong>de</strong> a antiguida<strong>de</strong>,<br />
diz ele, a regiÇo tem sido um lugar <strong>de</strong> romance, <strong>de</strong> seres exÑticos, <strong>de</strong> memÑrias e paisagens<br />
assombradas, <strong>de</strong> experiÖncias marcantes 228<br />
115<br />
[tradução nossa]; um Oriente separado,<br />
excÖntrico, atrasado, silenciosamente diferente, sensual e passivo. Prática imperialista <strong>de</strong><br />
dominaÅÇo quer pela assimetria polÉtica quer pelo imaginário, a apropriaÅÇo da fala alheia<br />
confere autorida<strong>de</strong> ao Eu sobre o Outro, negando-lhe o direito <strong>de</strong> existir segundo suas<br />
consciÖncias e con<strong>de</strong>nando-o ä subalternida<strong>de</strong>.<br />
A autorida<strong>de</strong> que se estabelece a partir do confisco da fala do diferente nada tem <strong>de</strong><br />
natural, embora tenha sido ao longo dos sàculos prática usual com que o Eu <strong>de</strong>u a “conhecer”<br />
o Outro. De acordo com Said, “Ela à formada, irradiada, disseminada; à instrumental,<br />
persuasiva; tem status, estabelece cênones <strong>de</strong> gosto ou valor, à virtualmente indistinguÉvel <strong>de</strong><br />
certas i<strong>de</strong>ias que ela dignifica como verda<strong>de</strong>iras, e das tradiÅâes, percepÅâes e julgamentos<br />
que ela forma, transmite, reproduz” 229 [tradução nossa].<br />
Assim, Veja e “O Clone”, por forÅa <strong>de</strong> seus instrumentos <strong>de</strong> representaÅÇo e pelo po<strong>de</strong>r<br />
dos veÉculos <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa que lhes <strong>de</strong>ram suporte, conquistaram autorida<strong>de</strong><br />
sobre AfegÇos e Marroquinos. Suas narrativas, enquanto construÅâes oci<strong>de</strong>ntais, traÅaram<br />
perfis complementares do muÅulmano no contexto do imaginário coletivo que o Oci<strong>de</strong>nte<br />
forjou do Oriente. GraÅas ao manifesto preconceito i<strong>de</strong>olÑgico (traduzido em <strong>de</strong>sabafo<br />
jornalÉstico da vÉtima em relaÅÇo ao seu algoz) das reportagens <strong>de</strong> Veja e graÅas ä inevitável<br />
“reduÅÇo” do mundo muÅulmano ä sua versÇo composite em “O Clone” (inspirada na<br />
atmosfera sabiamente empregue por Scheraza<strong>de</strong> no enredamento da curiosida<strong>de</strong> humana),<br />
nenhuma <strong>de</strong>las, isoladamente, portanto, se sustentaria diante dos traÅos <strong>de</strong>lineados pelas mÇos<br />
dos prÑprios perfilados. Sendo Veja um veÉculo <strong>de</strong> informaÅÇo, a sur<strong>de</strong>z <strong>de</strong> suas reportagens<br />
em relaÅÇo ä voz que expressa o “outro lado da histÑria” revela-se inaceitável do ponto <strong>de</strong><br />
228 SAID, 1979, p. 1.<br />
229 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 19-20.
vista <strong>de</strong> sua missÇo jornalÉstica. De outra parte, sendo “O Clone” um drama seriado televisivo,<br />
a preocupaÅÇo da novelista em ouvir as diferentes vozes do Outro para, atravàs <strong>de</strong> licenÅa<br />
poàtica, fundamentar a construÅÇo <strong>de</strong> uma narrativa <strong>de</strong> ficÅÇo revela o respeito da autora em<br />
relaÅÇo ao diferente.<br />
Enquanto a prepotÖncia da autorida<strong>de</strong> construÉda por Veja sobre o AfeganistÇo cultiva o<br />
acirramento do preconceito, a hostilida<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>sconhecimento da realida<strong>de</strong>, o cuidado com<br />
que “O Clone” constrÑi sua autorida<strong>de</strong> sobre o mundo muÅulmano, ao contrário, cultiva a<br />
tolerência, o encantamento e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecer a realida<strong>de</strong> por trás da fantasia.<br />
6.5 O OUTRO POR ELE MESMO<br />
ReligiÇo, Estado e cultura. No mundo muÅulmano, estas dimensâes se entrelaÅam<br />
formando relaÅâes que o mundo oci<strong>de</strong>ntal capitalista rejeita ou <strong>de</strong>sconhece. Parte dos<br />
estereÑtipos contra o Oriente islêmico advàm da dificulda<strong>de</strong> que o oci<strong>de</strong>ntal tem <strong>de</strong> conceber o<br />
papel <strong>de</strong>terminante da religiÇo na atuaÅÇo do Estado, nos princÉpios da economia e na conduta<br />
pessoal. Segundo Samir El-Hayek 230 , o IslÇ tem uma religiÇo monoteÉsta (Deus nÇo tem filhos),<br />
um Estado regulamentado pelo AlcorÇo (o Livro Sagrado do IslÇ), um comportamento<br />
fundamentado em leis escritas há 1.400 anos, e uma economia gerida pelo princÉpio religioso da<br />
produÅÇo máxima, do consumo necessário e da distribuiÅÇo do excesso 231 .<br />
Se, para a civilizaÅÇo oci<strong>de</strong>ntal, a separaÅÇo entre Igreja e Estado à uma <strong>de</strong> suas mais<br />
preciosas conquistas, para os muÅulmanos, a presenÅa do IslÇ no Estado à uma promessa <strong>de</strong><br />
perfeiÅÇo, como explica Ali Mohamed Abdouni, presi<strong>de</strong>nte do Conselho Superior para<br />
Assuntos Islêmicos no Brasil:<br />
116<br />
[...] o IslÇ tambàm se <strong>de</strong>fine como um sistema polÉtico, econòmico, social,<br />
educacional, jurÉdico e familiar. ï um cÑdigo <strong>de</strong> vida completo, <strong>de</strong> fonte divina, que<br />
nÇo po<strong>de</strong> ser dividido. As regras que vÇo <strong>de</strong>finir todos esses sistemas foram<br />
estabelecidas por Deus, e nÇo pelo homem. Como Deus à perfeito e o homem nÇo, a<br />
maior conquista dos muÅulmanos à que a religiÇo possa reger todas as esferas <strong>de</strong> sua<br />
vida. 232<br />
230 Samir El-Hayek à tradutor do AlcorÇo diretamente do árabe para o portuguÖs, volume aqui intitulado <strong>de</strong> O<br />
significado dos versículos do Alcorão sagrado. GraÅas ä sua empreitada e ao interesse <strong>de</strong>spertado pelo 11 <strong>de</strong><br />
setembro e pela novela “O Clone”, a bÉblia islêmica agora tornou-se no Brasil “o livro indispensável para se<br />
compreen<strong>de</strong>r a nova geopolÉtica mundial”. In RODRIGUES e VANNUCHI, “A lei à rÉgida”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 27 nov. 2006.<br />
231 EL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI, loc.cit.<br />
232 ABDOUNI apud. BARELLA, 2005, p. 14.
El-Hayek informa que o texto sagrado à muito claro e nÇo dá margens a interpretaÅâes.<br />
O muÅulmano que segue o Islamismo tem <strong>de</strong> cumprir os cinco fundamentos do IslÇ: a crenÅa<br />
em Deus, a prática da oraÅÇo, o pagamento do tributo, o jejum no mÖs <strong>de</strong> Ramadan e a<br />
peregrinaÅÇo a Meca. SÑ trÖs coisas sÇo proibidas: a agressÇo, a injustiÅa e a <strong>de</strong>suniÇo.<br />
Originalmente, ser fundamentalista era uma condiÅÇo natural do seguidor do IslÇ, que nÇo<br />
po<strong>de</strong> fugir aos fundamentos da religiÇo. Hoje a palavra à usada para caracterizar um povo que<br />
vive segundo regras “ultrapassadas”, regras que se mantÖm imutáveis há 1.400 anos. O<br />
fundamentalista, segundo El-Hayek, no entanto, nÇo à retrÑgrado. Muito pelo contrário: ele<br />
sempre foi a favor da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e da ciÖncia, garante.<br />
117<br />
As maiores <strong>de</strong>scobertas foram dadas ao mundo pelos muÅulmanos. Matemática,<br />
astronomia, fÉsica, quÉmica, todas as ciÖncias. NÇo há conflito entre o AlcorÇo e a<br />
ciÖncia, como acontece com a BÉblia.<br />
(...) A doaÅÇo <strong>de</strong> ÑrgÇos, por exemplo, à praticada há 1.400 anos pelos muÅulmanos e<br />
sÑ agora comeÅa a ser aceita pela Igreja catÑlica. A clonagem tambàm à aceita, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que seja para salvar vidas, e nÇo para incentivar o comàrcio <strong>de</strong> ÑrgÇos. 233<br />
Embora recorrendo ä pujanÅa das contribuiÅâes cientÉficas <strong>de</strong>ixadas pelo Impàrio ôrabe<br />
ainda na Ida<strong>de</strong> Màdia e <strong>de</strong>sprezando o seu rápido <strong>de</strong>clÉnio (graÅas a forÅas conservadoras<br />
ortodoxas que emergiram <strong>de</strong> inëmeros conflitos polÉtico-religiosos, nÇo sÑ inibindo como<br />
consi<strong>de</strong>rando a ciÖncia inimiga da crenÅa em Alá), El-Hayek, ao confundir ciÖncia com<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, expressa o imaginário cultivado ainda hoje pelo mundo árabe, um imaginário<br />
que já nÇo correspon<strong>de</strong> ä realida<strong>de</strong> 234 da regiÇo tÇo castigada por turbulÖncias polÉticas,<br />
econòmicas e religiosas. Ao reafirmar tal imaginário, o muÅulmano seguidor do AlcorÇo,<br />
texto sagrado que parece antecipar os tempos, celebra sua autorida<strong>de</strong> como pioneiro da<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ciente <strong>de</strong> que todo relato à um versÇo inevitavelmente “interessada” (nÇo<br />
inocente) da realida<strong>de</strong>, à preciso aqui ouvir o muÅulmano para conhecer os “interesses” <strong>de</strong> seu<br />
discurso e confrontá-los, no contexto das construÅâes discursivas, com as narrativas<br />
estrangeiras disseminadas sobre ele.<br />
233 EL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI. “A lei à rÉgida”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 27 nov. 2006.<br />
234 Segundo o jornalista Eric Beauchemin, em artigo para a Radio Netherland Wereldomroep, assinado em 24 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2008, ao tomar as contribuiÅâes do mundo árabe hoje no campo da medicina, por exemplo, área das<br />
ciÖncias que, <strong>de</strong> tÇo <strong>de</strong>senvolvida, mereceu a atenÅÇo do prÑprio Maomà, “as naÅâes árabes produzem menos <strong>de</strong><br />
1% das citaÅâes no mundo e publicam menos que 0,5% dos artigos <strong>de</strong> revistas <strong>de</strong> medicina”. BEAUCHEMIN,<br />
“CiÖncia árabe: do apogeu ao <strong>de</strong>scaso”. DisponÉvel em:<br />
.<br />
Acesso em 3 <strong>de</strong>z. 2009.
De acordo com Abdouni, o AlcorÇo nÇo dá margem a interpretaÅâes. Apesar disso,<br />
ressalta ele, “Os fanáticos <strong>de</strong> todas as religiâes, e nÇo apenas do IslÇ, costumam usar trechos<br />
tirados do contexto para justificar suas aÅâes violentas” 235 .<br />
A propÑsito dos atentados ao World Tra<strong>de</strong> Center e ao Pentágono americano, El-Hayek<br />
à claro: nÇo tem lei divina que justifique o ato terrorista. “Está no Livro: ‘todo aquele que<br />
matar uma pessoa que nÇo tenha cometido assassinato ou corrupÅÇo à como se tivesse matado<br />
toda a humanida<strong>de</strong>’” 236 . Alàm disso, o suicÉdio nÇo tem perdÇo. Assim, no 11 <strong>de</strong> setembro, as<br />
atrocida<strong>de</strong>s cometidas em nome <strong>de</strong> Alá foram con<strong>de</strong>nadas categoricamente, <strong>de</strong> acordo com<br />
El-Hayek, por 56 paÉses muÅulmanos. A justiÅa divina impâe o inferno tanto ao suicida, que<br />
atenta contra o dom divino da vida, quanto äquele que mata inocentes.<br />
El-Hayek ressalta, no entanto, que a histÑria está nas mÇos <strong>de</strong> quem controla a mÉdia e<br />
que a arrogência americana parece esquecer que a Europa e os Estados Unidos foram os<br />
autores das maiores atrocida<strong>de</strong>s do mundo. Quem tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> divulgar os fatos distribui,<br />
<strong>de</strong> acordo com seus interesses, os tÉtulos <strong>de</strong> herÑi e vilÇo da histÑria:<br />
118<br />
Al Qaeda era consi<strong>de</strong>rada uma milÉcia herÑica quando lutava para expulsar os soviàticos<br />
<strong>de</strong> seu territÑrio. Atà para os Estados Unidos eles eram herÑis. Quando os soviàticos<br />
foram expulsos, os Estados Unidos abandonaram o paÉs ä prÑpria sorte. NÇo era<br />
interesse <strong>de</strong>les ajudar na reconstruÅÇo do antigo aliado. Hoje, o mesmo grupo passou a<br />
ser chamado <strong>de</strong> terrorista. SÑ porque nÇo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> mais o interesse norte-americano. 237<br />
Entre o terrorista <strong>de</strong> Veja e os homens-bomba <strong>de</strong> “Paradise Now”, filme do diretor<br />
palestino <strong>de</strong> nascimento Hany Abu-Assad que ganhou o Globo <strong>de</strong> Ouro e foi indicado ao<br />
Oscar <strong>de</strong> melhor filme estrangeiro <strong>de</strong> 2005, uma longa distência marca os limites do discurso<br />
etnocÖntrico oci<strong>de</strong>ntal e da tragàdia que relativiza o terrorista islêmico. Em tom belicoso, Veja<br />
expâe bárbaros e fanáticos religiosos, personagens que nÇo passam <strong>de</strong> nëmeros em contagens<br />
estatÉsticas a respeito da ameaÅa do obscurantismo sobre a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Contido em sua<br />
proposta nÇo emocional <strong>de</strong> colocar em questÇo uma i<strong>de</strong>ia, “Paradise Now” humaniza os<br />
homens-bomba, personagens por tudo <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> fanatismo e disciplina.<br />
Said e Khaled, amigos <strong>de</strong> infência, trabalham numa funilaria <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> quintal na<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nablus, na Cisjordênia, fronteira com Tel Aviv, Israel. Nesse territÑrio ocupado que<br />
se revela para eles um nÇo-lugar, ambos esperam o dia passar, sem esperanÅa nem objetivo,<br />
quando sÇo informados <strong>de</strong> que foram escolhidos como protagonistas <strong>de</strong> uma missÇo<br />
235 ABDOUNI apud. BARELLA, 2005, p. 15.<br />
236 AL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI, “A lei à rÉgida”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 27 nov. 2006.<br />
237 AL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI, loc. cit.
<strong>de</strong>signada por Alá em nome da justiÅa: com explosivos colados ao corpo, <strong>de</strong>vem conduzir<br />
ataques suicidas em Tel Aviv.<br />
Abu-Assad <strong>de</strong>ixa a cêmera lentamente acompanhar Said e Khaled nas ëltimas 48 horas<br />
antes da explosÇo: o pëblico vÖ a hesitaÅÇo <strong>de</strong> um e o entusiasmo do outro, a gravaÅÇo <strong>de</strong> uma<br />
vÉ<strong>de</strong>o-mensagem com explicaÅâes sobre a conduta <strong>de</strong> ambos, a <strong>de</strong>spedida das famÉlias, a<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer melhor os motivos que tiraram a vida do pai colaborador da causa, o<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro encontro com a moÅa que <strong>de</strong>sperta o interesse <strong>de</strong> Said, a reuniÇo na vàspera da<br />
missÇo on<strong>de</strong> 13 integrantes da organizaÅÇo sentam-se ä mesa diante da cêmera, e os momentos<br />
<strong>de</strong> nervosismo que antece<strong>de</strong>m a travessia da fronteira, quando o plano insiste em nÇo seguir<br />
pela trilha prevista. Dissecados na ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem acredita ser a morte o paraÉso que se abre<br />
diante do inferno da inferiorida<strong>de</strong>, observados na (in)certeza <strong>de</strong> que o corpo à a ënica arma<br />
capaz <strong>de</strong> “lutar contra a ocupaÅÇo sem fim”, revelados no aparente orgulho dos que se sentem<br />
honrados em per<strong>de</strong>r a vida na promoÅÇo da justiÅa, os rapazes palestinos suicidas estranhamente<br />
conquistam a simpatia da platàia. Nada tÖm <strong>de</strong> fundamentalistas. A imagem dos dois sentados<br />
ao centro da mesa na reuniÇo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida da missÇo evoca a Santa Ceia <strong>de</strong> Leonardo Da Vinci<br />
e sobriamente apresenta-os como mártires, messias <strong>de</strong> Alá nesse mundo <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong>s sem<br />
horizonte <strong>de</strong> paz. “O paraÉso <strong>de</strong>pois da morte exerce uma funÅÇo fundamental na luta palestina”<br />
quando se sabe que nÇo haverá recompensa terrena fora do capitalismo: “o julgamento divino e<br />
a vida eterna no post mortem sÇo as ënicas armas existentes para fazer frente aos valores<br />
burgueses do capital”, diz Abu-Assad 238 .<br />
Quantificados em sua fëria assassina e satanizados pelo nëmero <strong>de</strong> vÉtimas inocentes<br />
que sucumbem aos ataques suicidas, os terroristas <strong>de</strong>scritos a partir do olhar oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> Veja<br />
sÇo <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> existÖncia: nascem e morrem naquele átimo que se passa entre o disparo<br />
do <strong>de</strong>tonador e a explosÇo da bomba. NÇo tÖm famÉlia, escolarida<strong>de</strong>, sonhos. Sequer tÖm<br />
direito ao paraÉso que julgam conquistar com sua missÇo; o efeito que obtÖm com o<br />
estardalhaÅo mortal em nada avanÅa no sentido da liberda<strong>de</strong> que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m com suas vidas:<br />
apenas mancha <strong>de</strong> sangue as páginas da revista, aumenta a venda <strong>de</strong> exemplares e <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia<br />
reaÅâes ainda mais violentas e hostis. Mas quando seus corpos explosivos ganham alma e<br />
enchem-se <strong>de</strong> dor e <strong>de</strong>sesperanÅa nas imagens <strong>de</strong> “Paradise Now”, a tragàdia se materializa<br />
na visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seres atà entÇo invisÉveis. Ao dar voz a personagens con<strong>de</strong>nadas ä mu<strong>de</strong>z<br />
pela arrogência etnocÖntrica do oci<strong>de</strong>ntal, o cineasta palestino confere humanida<strong>de</strong> ä categoria<br />
238 ABU-ASSAD apud. TORRES, “Hany no Alá-lá-ò”, julho <strong>de</strong> 2009, p. 54.<br />
119
dos suicidas assassinos e pâe em <strong>de</strong>bate as <strong>de</strong>formaÅâes resultantes das hostilida<strong>de</strong>s entre<br />
Oci<strong>de</strong>nte e Oriente.<br />
Enquanto Veja e “Paradise Now” expâem os <strong>de</strong>sencontros entre polÉtica e religiÇo, a<br />
telenovela “O Clone” apresenta, segundo os representantes do mundo muÅulmano no Brasil,<br />
distorÅâes que advÖm da <strong>de</strong>sinformaÅÇo sobre o encontro da religiÇo com os costumes <strong>de</strong> um<br />
povo. A submissÇo da mulher ao homem, os casamentos impostos pela famÉlia, os castigos, a<br />
poligamia e o uso <strong>de</strong> vàu sÇo algumas <strong>de</strong>stas imagens recorrentes sobre o Oriente que carecem<br />
<strong>de</strong> esclarecimento.<br />
Apesar <strong>de</strong> terem participado da consultoria que orientou a autora da novela, os Sheikhs<br />
Ali Mohamed Abdouni e Jihad Hassam Hamma<strong>de</strong>h, presi<strong>de</strong>nte e vice-presi<strong>de</strong>nte da<br />
Assemblàia Mundial da Juventu<strong>de</strong> Islêmica no Brasil, <strong>de</strong>smentem o papel submisso da<br />
mulher representado na tevÖ:<br />
120<br />
Em relaÅÇo äs liberda<strong>de</strong>s individuais, o AlcorÇo cita exemplos que <strong>de</strong>monstram que as<br />
mulheres do IslÇ tiveram seus direitos garantidos muito antes das mulheres oci<strong>de</strong>ntais<br />
que ainda lutam por eles. Por exemplo, já há 14 sàculos a mulher muÅulmana à<br />
OBRIGADA [grifo dos autores] a adquirir conhecimento, po<strong>de</strong> pedir o divÑrcio, po<strong>de</strong><br />
escolher o seu parceiro, po<strong>de</strong> ter in<strong>de</strong>pendÖncia <strong>de</strong> nome ao se casar, po<strong>de</strong> possuir<br />
riquezas suas e nÇo tem obrigaÅÇo <strong>de</strong> dividi-las ou gastar <strong>de</strong>las, possui direito a voto,<br />
possui direito a heranÅa como filha, como esposa, como irmÇ, como mÇe. 239<br />
I<strong>de</strong>ntificadas no AlcorÇo como potencialmente iguais aos homens, as mulheres sentem<br />
<strong>de</strong> muitas maneiras a assimetria entre os gÖneros, uma distência entre a teoria e a prática,<br />
imposta, como diz Mernissi, pela simples introduÅÇo da palavra “potencialmente” 240 . Em O<br />
Livreiro <strong>de</strong> Cabul, livro-reportagem em tom literário da jornalista norueguesa õsne Seierstad,<br />
resultado <strong>de</strong> sua convivÖncia com uma famÉlia afegÇ, a autora/narradora <strong>de</strong>smente a teoria da<br />
igualda<strong>de</strong> entre os gÖneros:<br />
A crenÅa na superiorida<strong>de</strong> masculina era tÇo impregnada que raramente era objeto <strong>de</strong><br />
questionamento. Em discussâes ficava claro que, para a maioria <strong>de</strong>les, as mulheres<br />
são <strong>de</strong> fato mais burras que os homens, que o càrebro <strong>de</strong>las é menor e que nÇo po<strong>de</strong>m<br />
pensar <strong>de</strong> maneira tÇo clara quanto os homens [grifos da autora]. 241<br />
Neste sentido, ser uma mulher afegÇ, para Seierstad, dava-lhe a medida <strong>de</strong> “Como à<br />
espremer-se num dos trÖs bancos traseiros <strong>de</strong> um ònibus quando há muitos bancos livres na<br />
239 ABDOUNI e HAMMADEH, “Aos autores e diretores da novela ‘O Clone’”. DisponÉvel em:<br />
. 14 <strong>de</strong> marÅo <strong>de</strong> 2002. Acesso em 12 set. 2006.<br />
240 MERNISSI, 1987.<br />
241 SEIERSTAD, 2006, p. 13.
frente; ou <strong>de</strong> “Como à dobrar-se no porta-malas <strong>de</strong> um taxi porque há um homem no banco <strong>de</strong><br />
trás” 242 .<br />
Nos ëltimos anos, o relato <strong>de</strong> muitas muÅulmanas tem exposto a distência entre a teoria<br />
e a prática: elas se tornaram escritoras para, atravàs <strong>de</strong> suas obras, <strong>de</strong>nunciar ou, na melhor<br />
das hipÑteses, <strong>de</strong>sabafar publicamente sobre a opressÇo <strong>de</strong> que sÇo vÉtimas nos paÉses<br />
islêmicos on<strong>de</strong> as mulheres sÇo tratadas com mais rigor. SÇo conhecidas internacionalmente<br />
como mulheres corajosas, que sÇo obrigadas a se refugiar em paÉses oci<strong>de</strong>ntais (ainda assim<br />
escoltadas por guarda-costas). Outras tantas, sem chance <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar suas raÉzes, se escon<strong>de</strong>m<br />
sob pseudònimos ou se mantÖm reclusas em casa. Muitas contam histÑrias <strong>de</strong> submissÇo ao<br />
homem, <strong>de</strong> puniÅâes medievais, <strong>de</strong> exigÖncia <strong>de</strong> castida<strong>de</strong> atà o casamento arranjado, <strong>de</strong><br />
violaÅâes sexuais e mutilaÅâes. O noticiário oci<strong>de</strong>ntal nÇo se cansa <strong>de</strong> reproduzir cenas<br />
semelhante äs <strong>de</strong>scritas pela escritora feminista marroquina Fatema Mernissi, que em livros<br />
como O Harém e o Oci<strong>de</strong>nte, vÖm trazendo ä tona a vida das mulheres do Oriente Màdio.<br />
Os Women Studies e os Post-colonial Studies tambàm se voltaram ao universo das<br />
mulheres islêmicas ocupando-se <strong>de</strong> suas mëltiplas e por vezes contraditÑrias manifestaÅâes:<br />
as investigaÅâes acadÖmicas <strong>de</strong>screviam-nas ora como subordinadas ao marido e ä famÉlia e<br />
con<strong>de</strong>nadas ao mundo domàstico, ora como “exÉmias tece<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> laÅos polÉticos” 243 extra-<br />
domàsticos ou aspirantes a cargos pëblicos e guerreiras <strong>de</strong> sua emancipaÅÇo. O olhar<br />
estrangeiro que ten<strong>de</strong> a conduzir sua apreensÇo do mundo islêmico a partir da dicotomia<br />
acomodaÅÇo/resistÖncia, confun<strong>de</strong>-se diante <strong>de</strong> mulheres que fazem do respeito äs tradiÅâes<br />
mais arcaicas uma expressÇo, nÇo necessariamente <strong>de</strong> sua subalternida<strong>de</strong>, mas sim <strong>de</strong> uma<br />
afirmaÅÇo <strong>de</strong> gÖnero.<br />
A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tantas e tÇo ricas imagens da mulher como subalterna ou como um ser em<br />
luta por sua emancipaÅÇo, as autorida<strong>de</strong>s islêmicas, entretanto, garantem que o AlcorÇo traz<br />
uma preocupaÅÇo especial com o sexo feminino: a <strong>de</strong> proteger a mulher contra todo tipo <strong>de</strong><br />
abuso.<br />
El-Hayek garante, por exemplo, que a prática <strong>de</strong> o pai escolher o marido para a filha nÇo<br />
à uma regra <strong>de</strong>terminada pelo IslÇ. Pelo contrário, o pai à proibido <strong>de</strong> obrigar a filha a se casar<br />
com o marido que ele quer para ela.<br />
121<br />
ï ela quem escolhe o marido. Mas cada cultura perpetua uma prática diferente,<br />
mesmo que nÇo haja qualquer menÅÇo a isso no ensinamento islêmico. Em algum<br />
momento, todas as civilizaÅâes adotaram a prática <strong>de</strong> escolher o marido das filhas, em<br />
242 SEIERSTAD, 2006, p. 14.<br />
243 SILVA, “As mulheres, os outros e as mulheres dos outros: feminismo, aca<strong>de</strong>mia e IslÇo”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 5 nov. 2009.
122<br />
todos os lugares. Os cristÇos e os ju<strong>de</strong>us fizeram isso durante sàculos, mas nada sobre<br />
esse assunto consta na BÉblia. ï natural que o pai consi<strong>de</strong>re a filha imatura <strong>de</strong>mais<br />
para escolher o melhor marido. Por isso, alguns paÉses islêmicos ainda seguem esse<br />
costume, mas nÇo à lei. Existe muita confusÇo entre religiÇo e cultura. 244<br />
As regras do casamento estÇo nÉtidas no AlcorÇo, diz ele:<br />
Po<strong>de</strong>-se casar com uma, duas, trÖs ou quatro mulheres. No máximo com quatro ao<br />
mesmo tempo. No entanto, existem condiÅâes tÇo rÉgidas que, se tivesse consciÖncia,<br />
nenhum homem casaria com mais <strong>de</strong> uma. Quem casa com várias nÇo cumpre ä risca<br />
a lei do AlcorÇo. Lá está escrito que o homem <strong>de</strong>ve, em primeiro lugar, ser justo com<br />
todas as mulheres e, em segundo lugar, ter a anuÖncia da primeira. Mas qual a mulher<br />
que permite? Os homens com mais <strong>de</strong> uma mulher ignoram essa lei e casam sem<br />
autorizaÅÇo <strong>de</strong>la. Isso à machismo, e todo machismo à con<strong>de</strong>nável. Pelo AlcorÇo, se o<br />
muÅulmano se casa com uma cristÇ, ela nÇo à obrigada sequer a se converter. Ela tem<br />
direito <strong>de</strong> seguir sua prÑpria religiÇo. 245<br />
Segundo El-Hayek, no IslÇ, ninguàm induz o outro a nada, nem mesmo a cumprir o que<br />
está no AlcorÇo: “O profeta dizia: ‘tudo o que a lei ensinar, analise. Se nÇo coaduna com sua<br />
forma <strong>de</strong> pensar, nÇo acate’” 246 .<br />
Isto vale tambàm para o vàu, o hijab. De acordo com Abdouni e Hamma<strong>de</strong>h, Deus<br />
or<strong>de</strong>nou o uso do vàu para todas as mulheres, nÇo sÑ para as muÅulmanas.<br />
Uma mulher po<strong>de</strong> e tem o direito <strong>de</strong> escolher se obe<strong>de</strong>ce a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Deus ou nÇo. Ela<br />
nÇo <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> ser muÅulmana por nÇo usá-lo, mas tem plena consciÖncia <strong>de</strong> que está<br />
<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cendo [sic.] uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Deus, está pecando e será cobrada por este pecado<br />
no dia do juÉzo. Mas será cobrada e punida por Deus e nÇo pelos homens.<br />
[...] O hijab à uma questÇo <strong>de</strong> fà, e a fà entre as pessoas nÇo à igual.<br />
[...] O vàu nÇo po<strong>de</strong> ser retirado em festas, ou diante <strong>de</strong> pessoas com quem uma<br />
mulher possa contrair matrimònio. [...] Quem usa o vàu fora <strong>de</strong> casa à porque conhece<br />
o princÉpio <strong>de</strong> sua utilizaÅÇo e sabe que seu uso <strong>de</strong>ve ser seguido <strong>de</strong>ntro e fora <strong>de</strong> casa,<br />
quando existem estranhos presentes. 247<br />
O vàu, que o Oci<strong>de</strong>nte hasteia como ban<strong>de</strong>ira da sensualida<strong>de</strong> e do mistàrio que<br />
envolvem a mulher muÅulmana, nada tem <strong>de</strong> sedutor na cultura islêmica. Pelo contrário: seria<br />
um antÉdoto contra a ameaÅa que a sexualida<strong>de</strong> feminina representa para a prática da fà.<br />
Segundo Mernissi 248 , embora o islamismo, diferentemente do cristianismo, nÇo veja a<br />
sexualida<strong>de</strong> em si como um perigo e reconheÅa as mulheres como seres po<strong>de</strong>rosos e sexuais,<br />
244<br />
AL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI, “A lei à rÉgida”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 27 nov. 2006.<br />
245<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
246<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
247<br />
ABDOUNI e HAMMADEH, “Aos autores e diretores da novela ‘O Clone’”. DisponÉvel em:<br />
. 14 <strong>de</strong> marÅo <strong>de</strong> 2002. Acesso em 12 set. 2006.<br />
248<br />
MERNISSI, 1987.
o amor profundo que possa advir das relaÅâes heterossexuais representa para os muÅulmanos<br />
uma fonte <strong>de</strong> distraÅÇo ä primeira obrigaÅÇo do homem: a <strong>de</strong>voÅÇo a Alá. Neste sentido,<br />
<strong>de</strong>nuncia a feminista, a ocultaÅÇo do corpo da mulher sob vàus e burkas se uniria a trÖs outros<br />
instrumentos <strong>de</strong> limitaÅÇo da intimida<strong>de</strong> entre homem e mulher: a poligamia, que permitiria<br />
ao homem pulverizar sua satisfaÅÇo sexual com mais <strong>de</strong> uma pessoa e, ao impedi-lo <strong>de</strong><br />
favorecer uma esposa em <strong>de</strong>trimento das <strong>de</strong>mais, <strong>de</strong>sestimularia cada uma <strong>de</strong>las a procurar<br />
satisfaÅÇo fora do casamento; o repëdio, atravàs do qual um homem po<strong>de</strong> se divorciar <strong>de</strong> sua<br />
esposa quando quiser, a <strong>de</strong>speito da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>la (direito esse que nÇo à igualmente conferido<br />
ä mulher), permitindo a ele buscar satisfaÅÇo sexual sem a contrapartida da intimida<strong>de</strong><br />
emocional; e, por fim, o envolvimento da esposa com a sogra, cuja presenÅa na casa do casal<br />
reduz as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>. Isso sem contar a prática do casamento arranjado, que<br />
ten<strong>de</strong> a unir casais sem amor.<br />
Cada um <strong>de</strong>stes aspectos ganha vida na rotina <strong>de</strong> Sultan Khan, nome fictÉcio do livreiro<br />
<strong>de</strong> O Livreiro <strong>de</strong> Cabul, e <strong>de</strong> sua famÉlia composta <strong>de</strong> duas esposas, cinco filhos, duas irmÇs e<br />
sua mÇe, todos inicialmente morando em quatro còmodos. Homem <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong>, Sultan<br />
estava casado havia 18 anos com Sharifa, com quem tinha trÖs filhos adolescentes e uma filha<br />
caÅula, quando <strong>de</strong>cidiu casar-se <strong>de</strong> novo com uma menina <strong>de</strong> 16 anos, analfabeta, com quem<br />
teve mais uma filha. Diante da notÉcia do segundo casamento do marido, Sharifa, uma<br />
professora <strong>de</strong> persa, fica perplexa com o repëdio: “O que fiz <strong>de</strong> errado? Que vergonha! Por<br />
que nÇo está satisfeito comigo?” 249 Nem o apoio incondicional da sogra (que inclusive se<br />
recusa a fazer o pedido em nome do filho ä famÉlia da preten<strong>de</strong>nte) pò<strong>de</strong> reverter a <strong>de</strong>cisÇo <strong>de</strong><br />
Sultan numa cultura on<strong>de</strong> o homem tem a ëltima palavra e nÇo po<strong>de</strong> ser contrariado, e a<br />
mulher <strong>de</strong>ve apenas aceitar o que o pai ou o marido impâe. “Sharifa vive como uma mulher<br />
divorciada, mas sem a mesma liberda<strong>de</strong>. ï Sultan quem ainda toma as <strong>de</strong>cisâes por ela”,<br />
conta a autora/narradora.<br />
123<br />
O divÑrcio nunca foi uma alternativa para Sharifa. Quando uma mulher pe<strong>de</strong> o<br />
divÑrcio, ela praticamente per<strong>de</strong> todos os seus direitos. Os filhos seguem o marido e<br />
ele po<strong>de</strong> atà impedi-la <strong>de</strong> vÖ-los. A mulher se torna uma vergonha para a famÉlia, à<br />
muitas vezes expulsa, e todos os seus bens cabem ao marido. 250<br />
Ambos os casamentos <strong>de</strong> Sultan, como mandam os costumes, foram arranjados por<br />
acordos entre famÉlias, numa relaÅÇo movida muito mais por interesse financeiro do que por<br />
amor. Segundo Seierstad, “Amor tem pouco a ver com casamento, ao contrário, po<strong>de</strong> ser um<br />
249 SEIERSTAD, 2006, p. 23.<br />
250 Ibi<strong>de</strong>m, p. 42.
grave crime, castigado com a morte”, como foi o caso <strong>de</strong> Jamila, cunhada <strong>de</strong> Sharifa,<br />
sufocada atà a morte pelos irmÇos ─ e com o consentimento da mÇe ─ apÑs ter sido flagrada<br />
com o amante semanas <strong>de</strong>pois do casamento. Como observa a autora, “No AfeganistÇo,<br />
mulher apaixonada à tabu. [...] Os jovens nÇo tÖm o direito <strong>de</strong> se encontrar para amar, nÇo tÖm<br />
o direito <strong>de</strong> escolher. [...] Mulheres jovens sÇo, antes <strong>de</strong> mais nada, um objeto <strong>de</strong> troca e<br />
venda” 251 . Gloria Perez recorda-se <strong>de</strong> ter visto no Marrocos a feira <strong>de</strong> noivas e o casamento<br />
temporário, no qual o noivo compra a noiva, “testa” por alguns meses e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>volvÖ-la ao<br />
antigo proprietário caso nÇo a tenha aprovado! 252<br />
Sob vàus e burkas, as mulheres <strong>de</strong> O Livreiro <strong>de</strong> Cabul seguem com suas vidas<br />
silenciadas, infelizes do casamento arranjado (muitas se suicidam por nÇo po<strong>de</strong>rem se unir ao<br />
ser amado, tendo <strong>de</strong> aceitar um marido escolhido pela famÉlia) e invisÉveis em seus uniformes<br />
disformes. Seierstad sentiu na pele as dores e as insuspeitas <strong>de</strong>lÉcias <strong>de</strong> ver o mundo a partir<br />
do interior <strong>de</strong> uma janela bordada e ser vista como uma afegÇ.<br />
124<br />
A burca aperta e dá dor <strong>de</strong> cabeÅa, enxerga-se mal atravàs da re<strong>de</strong> bordada. ï abafada,<br />
<strong>de</strong>ixando entrar pouco ar, e logo faz suar. ï preciso tomar cuidado o tempo todo on<strong>de</strong><br />
pisar, porque nÇo po<strong>de</strong>mos ver nossos pàs, e como junta um monte <strong>de</strong> lixo, fica suja e<br />
atrapalha. Era um alÉvio tirá-la ao chegar em casa. 253<br />
Eu nÇo era obrigada a seguir os severos cÑdigos <strong>de</strong> vestimenta das mulheres afegÇs e<br />
podia ir aon<strong>de</strong> quisesse. Mesmo assim, quase sempre vestia a burca, simplesmente<br />
para ser <strong>de</strong>ixada em paz. Nas ruas <strong>de</strong> Cabul, uma mulher oci<strong>de</strong>ntal chama muita<br />
atenÅÇo in<strong>de</strong>sejada. Sob a burca eu estava livre para olhar ä vonta<strong>de</strong> sem que ninguàm<br />
me olhasse. E podia observar as outras famÉlias fora <strong>de</strong> casa sem atrair a atenÅÇo para<br />
mim. O anonimato tornou-se uma libertaÅÇo, era o ënico lugar on<strong>de</strong> podia me<br />
refugiar, porque em Cabul praticamente nÇo há um lugar tranquilo para se estar<br />
sozinho. 254<br />
Ver o mundo como uma afegÇ permitiu ä autora oci<strong>de</strong>ntal uma experiÖncia da alterida<strong>de</strong><br />
que, se nÇo a <strong>de</strong>spiu da inescapável condiÅÇo <strong>de</strong> estrangeira, foi capaz <strong>de</strong> fazÖ-la compreen<strong>de</strong>r<br />
quantos orientes cabem <strong>de</strong>ntro do Oriente. Em visita ao Brasil, o diretor <strong>de</strong> “Paradise Now”<br />
pò<strong>de</strong> filtrar com lentes brasileiras a tÇo comentada opressÇo imposta pelo islamismo ao<br />
universo feminino: “ès vezes me pergunto o que à mais cruel: usar o vàu para se cobrir ou ser<br />
obrigada a aparentar eternamente 20 anos” 255 .<br />
Internamente, muitas vozes orientais tÖm oferecido leituras as mais diversas da religiÇo<br />
e da cultura islêmica, apesar <strong>de</strong> os mais ortodoxos insistirem na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o AlcorÇo nÇo dá<br />
251<br />
SEIERSTAD, 2006, p. 55.<br />
252<br />
PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 253.<br />
253<br />
SEIERSTAD, 2006, p. 14.<br />
254<br />
Ibi<strong>de</strong>m, pp. 13-14.<br />
255<br />
ABU-ASSAD apud. TORRES, “Hany no Alá-lá-ò”, julho <strong>de</strong> 2009, p. 54.
margem a interpretaÅâes. Tais divergÖncias internas impediram que “O Clone” fosse visto<br />
pelas autorida<strong>de</strong>s muÅulmanas no Brasil como uma reproduÅÇo fiel da realida<strong>de</strong>. Alàm disso,<br />
o fato <strong>de</strong> a autora sintetizar na trama o multifacetado universo islêmico e ainda situá-lo num<br />
paÉs real (que, por forÅa da ficÅÇo, adquiriu uma dimensÇo simbÑlica <strong>de</strong> modo a servir <strong>de</strong> pano<br />
<strong>de</strong> fundo para a composite dos costumes muÅulmanos), resultou em ruÉdo na percepÅÇo. Numa<br />
apreensÇo “concretista” da locaÅÇo da trama, Adghirni reclamou que as roupas usadas pelas<br />
personagens femininas da novela nÇo fazem parte necessariamente do cotidiano do Marrocos:<br />
125<br />
Nas cida<strong>de</strong>s ou no interior, as mulheres tanto po<strong>de</strong>m usar o vàu e a tënica tradicional<br />
(djelaba) como o jeans e a minissaia. Se algumas mulheres preferem adotar as roupas<br />
tradicionais sem jamais a<strong>de</strong>rir ä moda oci<strong>de</strong>ntal, outras passam do jeans ao kaftan<br />
(vestido tradicional <strong>de</strong> festas) sem nenhum complexo. 256<br />
O uso <strong>de</strong> trajes tradicionais e a recusa em adotar o dress co<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal, está menos<br />
ligado aos vÉnculos que <strong>de</strong>terminado local possa ter com os valores arcaicos ou mo<strong>de</strong>rnos da<br />
cultura do que ä atitu<strong>de</strong> da mulher diante da tradiÅÇo. De acordo com a sociÑloga portuguesa<br />
Maria Johanna Schouten,<br />
Muitas mulheres vestem um traje consi<strong>de</strong>rado islêmico simplesmente por ser tradiÅÇo<br />
no seu ambiente. Outras adoptam-no sob pressÇo, quer do Estado, quer do meio social<br />
directo. Mas nÇo sÇo raras as mulheres islêmicas mo<strong>de</strong>rnas que pâem o vàu por<br />
iniciativa prÑpria, por razâes práticas, como acto <strong>de</strong> auto-afirmaÅÇo ou como uma<br />
forma <strong>de</strong> empowerment. 257<br />
A <strong>de</strong>speito do fato <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>rem ou nÇo aos hábitos da maioria das mulheres<br />
marroquinas (Gloria Perez afirma ter se inspirado no que viu nas ruas das cida<strong>de</strong>s que<br />
serviram <strong>de</strong> locaÅÇo para a novela 258 ), as burkas e djelabas ajudaram a autora na configuraÅÇo<br />
da mÉstica da mulher muÅulmana que nÇo <strong>de</strong>ve se expor diante <strong>de</strong> estranhos. Escondida sob<br />
panos escuros ou esculpida em trajes que valorizam os movimentos da danÅa do ventre, a<br />
mulher em “O Clone” seduz pelo olhar que escapa dos vàus <strong>de</strong> cores vibrantes, combinando<br />
mistàrio e sensualida<strong>de</strong>. A narrativa ao estilo Mil e uma noites enreda o pëblico enquanto o<br />
figurino carnavalizado povoa o imaginário com odaliscas finamente ornamentadas. (NÇo por<br />
acaso, essa foi a fantasia mais procurada no carnaval <strong>de</strong> 2002.) A sobreposiÅÇo <strong>de</strong> a<strong>de</strong>reÅos<br />
materializa o <strong>de</strong>sejo por “muito ouro” e sublinha com a musicalida<strong>de</strong> dos balangandÇs os<br />
movimentos coreografados da danÅarina. Se o figurino <strong>de</strong> odalisca acentua o contorno sensual<br />
256 ADGHIRNI, “O falso clone do Marrocos”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 9 mar. 2006.<br />
257 SCHOUTEN, “Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e indumentária: as mulheres islêmicas”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 5 nov. 2009.<br />
258 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, pp. 253-254.
da mulher que habita o haràm imaginário do oci<strong>de</strong>ntal, as burkas representam um excelente<br />
recurso cÖnico: mais <strong>de</strong> uma vez o jovem apaixonado se apropria do traje feminino para se<br />
aproximar furtivamente da amada.<br />
Com relaÅÇo ä ingerÖncia da religiÇo na economia ou numa ativida<strong>de</strong> econòmica,<br />
Abdouni e Hamma<strong>de</strong>h esclarecem que<br />
126<br />
a religiÇo islêmica proÉbe a utilizaÅÇo <strong>de</strong> todo e qualquer valor, seja ele oci<strong>de</strong>ntal ou<br />
oriental, que venha a prejudicar ou levar qualquer socieda<strong>de</strong> islêmica ou nÇo, qualquer<br />
pessoa, muÅulmana ou nÇo, ao prejuÉzo moral, financeiro, hereditário, <strong>de</strong> honra ou<br />
qualquer outro que venha solapar a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer um <strong>de</strong> seus membros.<br />
Po<strong>de</strong>mos citar como exemplo a usura (cobranÅa e recebimento <strong>de</strong> juros), álcool,<br />
drogas, prostituiÅÇo etc. 259<br />
Pelos olhos muÅulmanos, nÇo há nada <strong>de</strong> absurdo ou opressor na ingerÖncia da religiÇo<br />
sobre o Estado e sobre as ativida<strong>de</strong>s humanas. A aceitaÅÇo da fà implica o compromisso <strong>de</strong><br />
experimentar o mundo ä luz do islamismo.<br />
Com 1,3 bilhÇo <strong>de</strong> seguidores, o islamismo à hoje a religiÇo que mais cresce no mundo,<br />
sendo a a<strong>de</strong>sÇo <strong>de</strong> mulheres a mais expressiva. E cresce principalmente, segundo Abdouni, no<br />
Oci<strong>de</strong>nte. Segundo dados da organizaÅÇo Pew Forum on Religion and Public Life, apenas<br />
20% dos muÅulmanos do mundo moram no Oriente Màdio ou no norte da ôfrica 260 . O<br />
jornalista Josà Eduardo Barella, em dados <strong>de</strong> 2005, anunciava: “Em vários paÉses da Europa,<br />
o islamismo já à a segunda religiÇo. Nos estados Unidos, existem 8 milhâes <strong>de</strong> seguidores.<br />
Aqui no Brasil há 1,5 milhÇo, muitos <strong>de</strong>les novos a<strong>de</strong>ptos.” 261 Para o Pew Forum, no entanto,<br />
os nëmeros brasileiros sÇo um pouco mais mo<strong>de</strong>stos ─ 191 mil a<strong>de</strong>ptos ─, o que nÇo impe<strong>de</strong><br />
o Brasil <strong>de</strong> figurar como o terceiro paÉs do continente americano a abrigar mais muÅulmanos.<br />
6.6 IDENTIDADES EM JOGO<br />
£rior. £ros. Oriri. Do latim, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> movimento ascen<strong>de</strong>nte serviu para i<strong>de</strong>ntificar<br />
como Oriente o ponto do càu on<strong>de</strong> o sol se levanta. A imagem do sol nascente no horizonte<br />
<strong>de</strong>terminou o alcance máximo da visÇo, o limite extremo do olhar. Opostos e extremos,<br />
Oriente e Oci<strong>de</strong>nte mantÖm uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> relacional: duas entida<strong>de</strong>s geográficas que dÇo<br />
259 ABDOUNI e HAMMADEH, “Aos autores e diretores da novela ‘O Clone’”. DisponÉvel em:<br />
. 14 <strong>de</strong> marÅo <strong>de</strong> 2002. Acesso em 12 set. 2006.<br />
260 SOARES, 25 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009, p. A25.<br />
261 BARELLA, 2003, p. 15.
sustentação e refletem uma à outra. Uma existe para dar sentido à outra. E ambas são<br />
permanentemente construídas pelo homem para conferir realida<strong>de</strong> e presença à sua existência.<br />
Oriente e Oci<strong>de</strong>nte estabelecem sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a partir da criação do oposto <strong>de</strong> sua<br />
imagem no outro, numa relação recorrente entre o Eu e o não-Eu, o igual e o diferente, o<br />
superior e o inferior, o dominador e o dominado. O Outro é sempre ex-ótico, está fora da ótica<br />
do Eu, é sempre visto com olhos alheios. Não fala <strong>de</strong> si, uma vez que não tem voz no mundo<br />
do Eu. É a partir da experiência do Eu que o Outro se materializa. Olhar sempre implica um<br />
ponto <strong>de</strong> vista: por esta perspectiva, a imagem do Outro é relacional, dinâmica,<br />
correspon<strong>de</strong>nte, recorrente. De qualquer modo, inevitavelmente construída.<br />
Assim, para consolidar os avanços <strong>de</strong> um império, é preciso criar povos carentes <strong>de</strong><br />
civilização. Para disseminar o conceito <strong>de</strong> progresso, é necessário configurar a existência <strong>de</strong><br />
povos atrasados. Para consolidar a supremacia econômica é indispensável que se perpetuem<br />
os traços da miséria. Igualmente, para expandir uma doutrina religiosa é preciso salvar do<br />
inferno seres supostamente sem alma. Neste sentido, as narrativas hegemônicas se sustentam<br />
apenas na medida em que cassam a voz dos subalternos. Silenciados e impotentes, resta aos<br />
subalternos <strong>de</strong>senvolver mecanismos <strong>de</strong> resistência: os pacifistas, como Mahatma Gandhi,<br />
propõem o restabelecimento afirmativo das vozes e dos saberes subalternos a partir da<br />
reforma e do esclarecimento cultural; os radicais, como Frantz Fanon, acreditam que só a<br />
violência é capaz <strong>de</strong> libertar os nativos <strong>de</strong> seu complexo <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sespero e<br />
sua inércia, só a violência coletiva resgata o respeito próprio e os torna <strong>de</strong>stemidos 262 . De<br />
qualquer que seja o lado em que se esteja, é preciso criar o inimigo para que sejam<br />
estabelecidas as fronteiras da alterida<strong>de</strong> e retirar-lhe o direito <strong>de</strong> voz para que as narrativas<br />
sobre ele possam ser ouvidas e disseminadas.<br />
Com isso, não foi surpresa encontrar em Veja a reprodução do discurso raivoso da<br />
vítima humilhada que <strong>de</strong>stila seu ódio contra o inimigo. Tampouco surpreen<strong>de</strong>u o fato <strong>de</strong> a<br />
telenovela, com a licença poética natural dos textos ficcionais, reproduzir os estereótipos do<br />
imaginário coletivo sobre o Outro muçulmano. O que chama atenção é a sintonia (e a<br />
sincronia) <strong>de</strong>stas duas narrativas <strong>de</strong> naturezas tão distintas na reprodução complementar <strong>de</strong><br />
uma narrativa hegemônica sobre o Oriente, narrativa esta que, apesar da dinamicida<strong>de</strong> da<br />
história, dos avanços da globalização, do esvaziamento das i<strong>de</strong>ologias, e do fim dos<br />
binarismos, tem atravessado os tempos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong>. Apesar da ampliação do número<br />
<strong>de</strong> veículos <strong>de</strong> comunicação no mercado, da <strong>de</strong>scentralização dos discursos, das facilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
262 GANDHI, 1998.<br />
127
acesso a todo tipo <strong>de</strong> fonte <strong>de</strong> informaÅÇo, mais do que nunca o homem pÑs-mo<strong>de</strong>rno vive a<br />
ditadura do discurso ënico e a soberania da ignorência.<br />
ï compreensÉvel que as gran<strong>de</strong>s narrativas, por interesses diversos, se fechem para o<br />
saber originário do Outro. O que nÇo se compreen<strong>de</strong> à que o homem contemporêneo, este ser<br />
bombar<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> dados por todos os lados, supostamente curioso com o estreitamento das<br />
fronteiras e com a proximida<strong>de</strong> das diferenÅas, esteja alheio ä sua prÑpria ignorência e cràdulo<br />
diante da retÑrica <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> presente nos discursos da mÉdia, essa disseminadora <strong>de</strong><br />
simulacros. Quando a telenovela “O Clone” foi lanÅada, quase dois anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido<br />
concebida por Gloria Perez e pouquÉssimo tempo <strong>de</strong>pois dos ataques äs torres gÖmeas, muitos<br />
ficaram assombrados com o que foi chamado <strong>de</strong> “a bola <strong>de</strong> cristal” da autora, capaz <strong>de</strong><br />
antecipar com tanta antecedÖncia a agenda <strong>de</strong> interesses do Oci<strong>de</strong>nte sobre o muÅulmano.<br />
128<br />
NÇo há mágica nenhuma nisso: o islÇ e os muÅulmanos, seus conflitos e a tragàdia <strong>de</strong><br />
sua gente está todo dia nos jornais há muitos anos. Muitos os veem apenas como<br />
notÉcia. Como me interesso por gente, vejo o lado humano daquelas cenas e intuo<br />
sobre o confronto <strong>de</strong> tanta diferenÅa num mundo cada vez mais globalizado. Basta<br />
olhar e saber ver. 263<br />
Ao ler o noticiário <strong>de</strong> Veja sobre o 11 <strong>de</strong> setembro ou ao assistir a novela “O Clone”,<br />
este ser ignorante que habita a “era <strong>de</strong> informaÅÇo” vÖ apenas na superfÉcie, aceita como<br />
verda<strong>de</strong> o que à versÇo, se satisfaz com a verossimilhanÅa, “compra” sem questionar a<br />
retÑrica da objetivida<strong>de</strong> do jornalismo, <strong>de</strong>sconhece a manipulaÅÇo presente em qualquer<br />
ediÅÇo, e se <strong>de</strong>ixa seduzir pela mágica do espetáculo. A <strong>de</strong>speito do que dizem a revista e as<br />
personagens do teledrama, pouco importa se o muÅulmano <strong>de</strong> carne e osso que reverencia<br />
Meca numa profissÇo <strong>de</strong> fà milenar ultrapassa o imaginário coletivo que o Oci<strong>de</strong>nte produziu<br />
sobre ele ao longo <strong>de</strong> tantos sàculos. A análise da representaÅÇo do muÅulmano e do<br />
Islamismo no discurso factual da revista Veja sobre o 11 <strong>de</strong> setembro sugere a consolidaÅÇo,<br />
no mundo globalizado, <strong>de</strong> um imaginário recorrente que se fundamenta em práticas<br />
expansionistas e civilizatÑrias, inicialmente implementadas pela Europa e, <strong>de</strong>pois da Segunda<br />
Guerra Mundial, pelos Estados Unidos.<br />
Na certeza <strong>de</strong> que o jornal à a expressÇo da verda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> que o jornalismo brasileiro<br />
alinhado ä objetivida<strong>de</strong> do jornalismo americano à isento, o pëblico equivocadamente <strong>de</strong>gusta<br />
a versÇo etnocÖntrica <strong>de</strong> Veja como se fosse um banquete digno <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> e toma os<br />
relatos editados com cores flagrantemente i<strong>de</strong>olÑgicas como se fatos fossem. Interessa-lhe o<br />
263 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 246.
espetáculo proporcionado pela bem cuidada ediÅÇo, a plasticida<strong>de</strong> trágica das fotos e o drama<br />
convertido em notÉcia <strong>de</strong> forte apelo emocional.<br />
Em menor escala, uma vez que se apresenta como discurso ficcional, a telenovela “O<br />
Clone” recorre ao imaginário mÉstico e sedutor do Oriente <strong>de</strong> As Mil e uma noites e dos contos-<br />
<strong>de</strong>-fada para expressar a fantasia que esse mundo diferente evoca no Oci<strong>de</strong>nte. GraÅas ao<br />
cuidado da autora em ouvir as diferentes vozes do Outro muÅulmano e <strong>de</strong> respeitar os preceitos<br />
da religiÇo islêmica ─ diferentemente <strong>de</strong> Veja, que sequer ouviu fontes do outro lado da notÉcia<br />
─, a telenovela foi capaz nÇo sÑ <strong>de</strong> proporcionar menos <strong>de</strong>sconhecimento pelo objeto tratado<br />
como tambàm suscitou no pëblico o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecer melhor a realida<strong>de</strong> daquele povo. Tal<br />
<strong>de</strong>sejo foi prontamente satisfeito pela mÉdia em geral: sentindo a <strong>de</strong>manda resultante do<br />
estrondoso sucesso da novela, tanto o jornalismo como o mercado editorial <strong>de</strong> livros fez chegar<br />
ao brasileiro todo tipo <strong>de</strong> informaÅÇo complementar ä fantasia <strong>de</strong> Gloria Perez.<br />
Curiosamente, enquanto a figura masculina bárbara, arcaica e ameaÅadora em sua<br />
fragilida<strong>de</strong> insana emerge das fotos e dos textos para manchar <strong>de</strong> sangue o noticiário e<br />
instaurar o pênico na maior potÖncia econòmica do mundo, a presenÅa feminina <strong>de</strong>licada,<br />
sedutora sob os vàus do pudor e corajosa em sua submissÇo vagueia inebriante pela tela <strong>de</strong><br />
tevÖ para subjugar pelo encantamento o paÉs do Carnaval. O olhar brasileiro sobre o<br />
muÅulmano, numa experiÖncia <strong>de</strong>rivada do olhar oci<strong>de</strong>ntal, reproduz a imagem do oriental já<br />
há muito i<strong>de</strong>ntificada por Edward Said: embora <strong>de</strong>scrito como feminino e fraco, o homem se<br />
mostra estranhamente perigoso e ameaÅador, enquanto a mulher, atraentemente exÑtica,<br />
cultiva o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser dominada. Nesse jogo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e cÑdigos contraditÑrios, ficam os<br />
traÅos <strong>de</strong> penetrabilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> passiva maleabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse Oriente fortemente visto <strong>de</strong> cima e<br />
<strong>de</strong> longe, a partir <strong>de</strong> e em comparaÅÇo com o Oci<strong>de</strong>nte conquistador.<br />
De outra parte e finalmente, a revelaÅÇo do olhar muÅulmano sobre as narrativas aqui<br />
estudadas à tÇo-somente um gesto <strong>de</strong> esclarecimento que preten<strong>de</strong>, no bojo dos estudos pÑs-<br />
coloniais, chamar a atenÅÇo para, e assim tentar recuperar, como diz Loomba, “todo um<br />
amplo espectro <strong>de</strong> saber que foi consi<strong>de</strong>rado ilegÉtimo, <strong>de</strong>squalificado ou subjugado 264 .<br />
264 LOOMBA, 1998, p. 53.<br />
129
7 NARRATIVAS SOBRE O MUNDO INDIANO<br />
Com sua milenar tradiÅÇo, impactante populaÅÇo e pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses, religiâes,<br />
lÉnguas e modos <strong>de</strong> vida, a índia há muito vem alimentando o imaginário oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>slumbramentos, exotismos e mistàrios. Diante <strong>de</strong>sse Outro tÇo estrangeiro, os olhares<br />
invariavelmente oscilaram entre a “atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo”, cultivada na àpoca dos viajantes e<br />
conquistadores, e a reverÖncia religiosa: segundo o dramaturgo e roteirista frrancÖs Jean-<br />
Clau<strong>de</strong> Carriöre 265 , a primeira resultou na disseminaÅÇo da imagem (muito conveniente para a<br />
retÑrica da dominaÅÇo colonial) <strong>de</strong> um “povo bárbaro, idÑlatra, <strong>de</strong> uma ignorência obscura”,<br />
ao passo que a segunda, consolidou mais recentemente o clichÖ oposto, o <strong>de</strong> uma “índia<br />
serena, contemplativa”, “espiritual”. Encantados com a riqueza cultural e religiosa, ou<br />
intrigados com a coexistÖncia <strong>de</strong> contrastes radicais, o cinema, a literatura e o jornalismo<br />
inëmeras vezes voltaram-se para o mundo indiano em busca <strong>de</strong> conhecÖ-lo, apresentá-lo para<br />
alàm <strong>de</strong> suas fronteiras e, sobretudo, promover o espetáculo da diferenÅa.<br />
CobiÅada por europeus <strong>de</strong> muitas nacionalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o sàculo XVI e dominada pela<br />
Inglaterra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o sàculo XVIII, a índia colonizada foi <strong>de</strong>scrita como inferior e incapaz <strong>de</strong><br />
resolver seus problemas sem a ajuda do impàrio britênico em sua “generosa” disposiÅÇo <strong>de</strong><br />
transferir ä colònia as marcas <strong>de</strong> sua superiorida<strong>de</strong> ─ o “progresso” e a “civilizaÅÇo”. Os<br />
contornos <strong>de</strong> uma Babel <strong>de</strong> gentes, animais, etnias, religiâes e idiomas davam forma ä “jÑia<br />
mais cara da coroa”: preciosa como fornecedora <strong>de</strong> matària prima e importadora <strong>de</strong> produtos<br />
industrializados, o conjunto <strong>de</strong> naÅâes outrora exportador <strong>de</strong> tecidos para a GrÇ-Bretanha<br />
ren<strong>de</strong>ria espantoso lucro ao impàrio, nÇo sem a contrapartida da falÖncia das tecelagens<br />
indianas e da apresentaÅÇo dos que se rebelavam contra a dominaÅÇo como “cruàis” e<br />
“fanáticos”. Estranho e atrasado, o paÉs tornou-se “conhecido” atravàs <strong>de</strong> seu colonizador.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, e com ainda mais eficácia, o cinema exploraria em imagens marcantes<br />
uma índia exÑtica e fora do tempo, consolidando o imaginário internacional sobre o paÉs e seu<br />
povo. Serpentes hipnotizadas por flautas mágicas, faquires em camas <strong>de</strong> pregos, homens <strong>de</strong><br />
aparÖncia frágil com mirabolantes turbantes na cabeÅa e mulheres embrulhadas em panos sÇo<br />
algumas marcas <strong>de</strong>ste exotismo resultante do preconceito e da retÑrica da dominaÅÇo inglesa.<br />
Este foi o discurso sobre o Outro indiano que serviu ä Inglaterra na àpoca da conquista e da<br />
consolidaÅÇo da “missÇo civilizatÑria” sobre sua mais preciosa colònia. Muitos ainda viriam a<br />
florescer, já que, como diz Said, “cada era e socieda<strong>de</strong> recria seus Outros” 266 .<br />
265 CARRI†RE, 2002, p. 12.<br />
266 SAID, 2007, p. 441.<br />
130
No sàculo XX, tendo <strong>de</strong>ixado para trás duas guerras mundiais e estando ainda no calor<br />
da Guerra do Vietnam, o mundo ganhava nova configuraÅÇo e o tempo bafejava sobre os<br />
jovens uma indignaÅÇo, um <strong>de</strong>sejo por paz ─ interna e externa ─ e a busca por novos<br />
paradigmas. Novamente os caminhos da Inglaterra e da índia cruzaram-se na construÅÇo <strong>de</strong><br />
uma nova oposiÅÇo: durante oito semanas, os ingleses mais famosos do planeta <strong>de</strong>ixaram os<br />
shows <strong>de</strong> rock’n’roll e o assàdio da imprensa e dos fÇs para se internarem aos pàs do<br />
Himalaia. Os Beatles buscavam na meditaÅÇo em um ashram indiano algo que a fama e a<br />
fortuna nÇo tinham sido capazes <strong>de</strong> lhes dar. Ao final dos anos 1960, a especiaria mais<br />
cobiÅada por aqueles ingleses famosos atendia pelo nome <strong>de</strong> “espiritualida<strong>de</strong>” e a mÉdia, no<br />
boom <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> colonizaÅÇo eletrònica, construiria para o resto do mundo a nova<br />
face da índia. “ültimo reduto da espiritualida<strong>de</strong> para um Oci<strong>de</strong>nte tÇo completamente<br />
dominado pelo materialismo” 267 , o paÉs passou a ser visto como um “spa espiritual” que atrai<br />
pessoas <strong>de</strong> todo o mundo em busca <strong>de</strong> paz e renovaÅÇo.<br />
Recentemente, com sua elevaÅÇo ä condiÅÇo <strong>de</strong> paÉs emergente do sàculo XXI, a índia<br />
novamente ganhou projeÅÇo internacional alimentada pelo noticiário que a i<strong>de</strong>ntifica como<br />
gran<strong>de</strong> potÖncia econòmica mundial. O interesse por esse paÉs <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s dimensâes<br />
territoriais (o sàtimo maior em área, cerca <strong>de</strong> trÖs mil quilòmetros quadrados), alta <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />
populacional (<strong>de</strong>pois da China, à o segundo mais populoso do mundo, reunindo mais <strong>de</strong> um<br />
bilhÇo <strong>de</strong> habitantes) e gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> cultural e religiosa estimulou a curiosida<strong>de</strong><br />
oci<strong>de</strong>ntal, gerando uma <strong>de</strong>manda que se traduz em inëmeros produtos <strong>de</strong> informaÅÇo: livros,<br />
documentários, filmes <strong>de</strong> ficÅÇo e atà telenovela sobre o assunto. A curiosa equaÅÇo que<br />
combina mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> com arcaÉsmo, resultando em prosperida<strong>de</strong>, à no mÉnimo intrigante<br />
para um Oci<strong>de</strong>nte que vive sob a marca do progresso ─ um progresso alcanÅado<br />
necessariamente com a superaÅÇo do passado antigo e atrasado, um progresso que caminha<br />
obstinadamente em direÅÇo ao futuro.<br />
A nova índia que o Oci<strong>de</strong>nte está construindo em numerosas e variadas narrativas tem<br />
se alimentado nÇo sÑ do resgate do imaginário coletivo consolidado ao longo do tempo como<br />
tambàm das vozes que cada vez mais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a in<strong>de</strong>pendÖncia da Inglaterra, tÖm falado <strong>de</strong> si e<br />
por si sobre o paÉs, dispensando os intermediários <strong>de</strong> outrora. Depois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 30 viagens ä<br />
índia, Jean-Clau<strong>de</strong> Carriöre comemora o fato <strong>de</strong> que muitos oci<strong>de</strong>ntais há muito abandonaram<br />
a “atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo”, embora muitas vezes ainda sejam tentados a reforÅar o clichÖ da<br />
267 PEREZ, “Caminho das índias - IntroduÅÇo”, material cedido pela autora e apresentado ä TV Globo.<br />
131
“espiritualida<strong>de</strong>”. ï o Orientalismo impregnado no olhar do Oci<strong>de</strong>nte que ainda teima em<br />
<strong>de</strong>ixar seu rastro nas narrativas contemporêneas.<br />
Assim como em 2001 o brasileiro pò<strong>de</strong> confrontar a representaÅÇo do muÅulmano<br />
oferecida pelo noticiário sobre o 11 <strong>de</strong> setembro com aquela que emergia das telas em “O<br />
Clone”, novamente, em 2009, duas narrativas <strong>de</strong> peso voltaram-se para o indiano: a do filme<br />
<strong>de</strong> ficÅÇo “Quem quer ser um milionário?”, dirigido pelo inglÖs Danny Boyle, ganhador <strong>de</strong><br />
oito Oscars, inclusive o <strong>de</strong> melhor filme, e a da telenovela “Caminho das índias”, <strong>de</strong> Gloria<br />
Perez, exibida em horário nobre na TV Globo entre janeiro e setembro, vencedora, em<br />
novembro, do International Emmy Awards, o Oscar da televisÇo, na categoria <strong>de</strong> melhor<br />
novela (aliás, a ënica telenovela brasileira a conquistar um prÖmio internacional <strong>de</strong>ssa<br />
importência). Embora o filme <strong>de</strong> Boyle tenha sido lanÅado no final <strong>de</strong> 2008, sua exibiÅÇo no<br />
Brasil ocorreu apenas no inÉcio <strong>de</strong> marÅo do ano seguinte, apenas um mÖs e meio <strong>de</strong>pois da<br />
estreia <strong>de</strong> “Caminho das índias”, o que permitiu ä gran<strong>de</strong> audiÖncia da novela e ä gran<strong>de</strong> parte<br />
do pëblico que assistiu ao filme no paÉs (mais <strong>de</strong> um milhÇo <strong>de</strong> espectadores) a contraposiÅÇo<br />
<strong>de</strong>stas duas narrativas.<br />
A análise das representaÅâes sobre o Outro indiano como aparecem em “Quem quer<br />
ser um milionário?” e em “Caminho das índias” à o foco <strong>de</strong>ste capÉtulo. Sendo ambas<br />
narrativas estrangeiras sobre o indiano, sirvo-me dos dados fornecidos pelo Consulado Geral<br />
da índia no Brasil e dos relatos oferecidos pela autora indiana Thrity Umrigar em dois <strong>de</strong> seus<br />
romances, A distância entre nós e A doçura do mundo, como contraponto entre o indiano<br />
falado por outrem e o indiano falado por si. Sirvo-me tambàm <strong>de</strong> relatos mais documentais e<br />
analÉticos vindo <strong>de</strong> estrangeiros consi<strong>de</strong>rados insi<strong>de</strong>rs, como o <strong>de</strong> Jean-Clau<strong>de</strong> Carriöre (em<br />
Índia: um olhar amoroso) e Mira Kamdar (em Planeta Índia: ascensão turbulenta <strong>de</strong> uma<br />
nova potência global).<br />
7.1 DUAS NARRATIVAS FICCIONAIS<br />
Duas narrativas ficcionais, duas índias. “Quem quer ser um milionário?” e “Caminho<br />
das índias” oferecem recortes diferentes, antagònicos atà, <strong>de</strong>sse paÉs tÇo cheio <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong>s<br />
e contrastes. Para alàm das diferenÅas entre a narrativa cinematográfica e a <strong>de</strong> telenovela,<br />
cada uma <strong>de</strong>las reproduz um universo ficcional completamente singular, embora ambas<br />
tenham sido conduzidas como contos <strong>de</strong> fadas.<br />
132
“Quem quer ser um milionário?” conta a histÑria <strong>de</strong> Jamal Malik, um jovem<br />
muÅulmano <strong>de</strong> 18 anos, ÑrfÇo criado numa favela <strong>de</strong> Mumbai, que está prestes a ganhar 20<br />
milhâes <strong>de</strong> rëpias num game show da tevÖ indiana. Preso sob suspeita <strong>de</strong> ter trapaceado<br />
(afinal, como alguàm sem instruÅÇo e sem nenhum interesse por dinheiro sabe todas as<br />
respostas?), ele conta ä polÉcia sua histÑria. Na pobreza e na violÖncia da vida da favela, Jamal<br />
e seu irmÇo Salim ficam ÑrfÇos ainda pequenos e, junto com a amiga Latika, sÇo obrigados a<br />
sobreviver <strong>de</strong> sua esperteza. Jamal per<strong>de</strong> Latika <strong>de</strong> vista quando o trio foge <strong>de</strong> um explorador<br />
<strong>de</strong> menores. No submundo do crime organizado, do comàrcio ilegal e dos pequenos <strong>de</strong>litos,<br />
Jamal cresce, afasta-se do irmÇo quando este se envolve com gêngsters, arranja emprego<br />
servindo chá num call center <strong>de</strong> uma empresa <strong>de</strong> telefonia e <strong>de</strong>dica sua vida a reencontrar<br />
Latika. Participar do famoso show “Quem quer ser um milionário?”, mesmo sem chances <strong>de</strong><br />
ganhar, à a oportunida<strong>de</strong> que tem <strong>de</strong> ser visto por ela, já que o programa conta com gran<strong>de</strong><br />
popularida<strong>de</strong> no paÉs. Jamal, no entanto, sabe todas as respostas. Falta provar sua inocÖncia,<br />
ganhar o prÖmio e o coraÅÇo <strong>de</strong> sua amada. A intuiÅÇo <strong>de</strong> quem vive no risco lhe traz a<br />
resposta certa e os 20 milhâes <strong>de</strong> rëpias, transformando-o imediatamente em celebrida<strong>de</strong><br />
nacional. O irmÇo perdido para o crime, aquele que tantas vezes o havia traÉdo, facilita a fuga<br />
<strong>de</strong> Latika, traindo o gêngster para quem trabalhava (ousadia esta que lhe custou a vida) e<br />
permitindo o encontro do casal.<br />
A trama central <strong>de</strong> “Caminho das índias” conta a histÑria do amor impossÉvel entre<br />
Maya, funcionária <strong>de</strong> telemarketing do RajastÇo, moÅa <strong>de</strong> famÉlia tradicional, <strong>de</strong> casta, e<br />
Bahuam, um dálit (sem casta) que, apesar <strong>de</strong> ter sido adotado por um brâmane (sábio da casta<br />
mais alta) e ter estudado no exterior, à rejeitado pelos pais <strong>de</strong> sua amada. Estes, diante do<br />
perigo do envolvimento da filha com um intocável, entregam-na em casamento a Raj, jovem e<br />
rico empresário, filho <strong>de</strong> famÉlia da casta dos comerciantes. As juras <strong>de</strong> amor entre Maya e<br />
Bahuam e o plano <strong>de</strong> fuga para o exterior, on<strong>de</strong> estariam livres dos <strong>de</strong>sÉgnios familiares e do<br />
preconceito indiano, nÇo impe<strong>de</strong>m o ambicioso Bahuam <strong>de</strong> partir sozinho para os Estados<br />
Unidos, na esperanÅa <strong>de</strong> ganhar a vida antes <strong>de</strong> buscar a amada e assim livrar-se das<br />
constantes humilhaÅâes. Ele parte sozinho e Maya, <strong>de</strong>sesperada com o abandono e, mais<br />
ainda, por <strong>de</strong>scobrir-se grávida, nÇo tem outra alternativa senÇo aceitar o casamento arranjado<br />
por seus pais em acordo com a famÉlia <strong>de</strong> Raj. Este por sua vez aceita o casamento com Maya<br />
apenas por respeito a seus pais e ä tradiÅÇo indiana. Raj na verda<strong>de</strong> ama Duda, moÅa brasileira<br />
a quem tinha pedido em casamento pouco antes <strong>de</strong> saber dos arranjos <strong>de</strong> sua famÉlia para vÖ-<br />
lo casado <strong>de</strong>ntro dos costumes. Tendo estudado na Inglaterra, vive dividido entre os valores<br />
do Oriente e do Oci<strong>de</strong>nte. Ao romper com Duda, Raj <strong>de</strong>ixa a brasileira incràdula diante do<br />
133
motivo alegado: seus pais já haviam escolhido uma noiva para ele. Certa <strong>de</strong> que o indiano à<br />
um canalha que a enganou durante todo o tempo, Duda tenta se <strong>de</strong>sligar <strong>de</strong> Raj, embora<br />
<strong>de</strong>scubra estar grávida, informaÅÇo que omite <strong>de</strong>le. Raj casa-se com Maya sem saber que o<br />
filho que ela espera à <strong>de</strong> Bahuam, o dálit a quem ele tanto rejeita por sua condiÅÇo <strong>de</strong><br />
intocável e a quem tanto o<strong>de</strong>ia por insistir em cruzar o caminho <strong>de</strong> sua vida com Maya sem<br />
motivo aparente. MoÅa honesta e bem intencionada, Maya <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> esquecer Bahuam e<br />
“construir um amor” com seu marido, mas vive atormentada pela mentira que criou: <strong>de</strong> um<br />
lado, quer contar a verda<strong>de</strong> e livrar-se da culpa; <strong>de</strong> outro, teme ser rejeitada pelo marido, a<br />
quem passou a amar verda<strong>de</strong>iramente, e sabe que será afastada <strong>de</strong> seu filho e ainda submetida<br />
a todo tipo <strong>de</strong> humilhaÅÇo e puniÅÇo, manchando a honra <strong>de</strong> sua famÉlia para sempre.<br />
Apegado aos costumes, Opash Ananda, pai <strong>de</strong> Raj, ao saber do filho <strong>de</strong> Duda, faz acordo com<br />
ela, proibindo-a <strong>de</strong> contar sobre a crianÅa. Em contrapartida, cria como seu neto o menino<br />
dálit <strong>de</strong> Maya, i<strong>de</strong>ntificando nele as qualida<strong>de</strong>s da casta do avò.<br />
Como se trata <strong>de</strong> uma telenovela, e nÇo <strong>de</strong> um filme, a narrativa <strong>de</strong> “Caminho das<br />
índias” precisa ren<strong>de</strong>r 203 capÉtulos <strong>de</strong> uma hora <strong>de</strong> duraÅÇo cada, o que significa que a<br />
histÑria se sustenta nÇo sÑ pela trama central acima <strong>de</strong>scrita como tambàm por várias outras<br />
subtramas que convergem em algum ponto para o triêngulo amoroso Bahuam-Maya-Raj. O<br />
<strong>de</strong>sencontro amoroso entre Láksmi, mÇe <strong>de</strong> Opash, e Shankar, pai adotivo <strong>de</strong> Bahuam,<br />
reproduz na geraÅÇo mais velha o drama <strong>de</strong> Maya: Shankar e Opash <strong>de</strong>scobrem ser pai e filho<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos anos <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong>s mëtuas; e Láksmi, feroz <strong>de</strong>fensora dos costumes e<br />
intolerante com as transgressâes, revela ter ocultado a gravi<strong>de</strong>z ilegÉtima e ter se casado com<br />
o preten<strong>de</strong>nte escolhido por seus pais para livrar-se da vergonha pëblica. No Brasil, os irmÇos<br />
Ramiro e Raul Cadore fazem parceria entre a empresa farmacÖutica da famÉlia e a empresa <strong>de</strong><br />
comàrcio eletrònico <strong>de</strong> Raj, situada na índia, dando inÉcio a uma relaÅÇo comercial entre os<br />
dois paÉses, relaÅÇo que acaba tambàm por envolver Bahuam. Descontente com a<br />
invisibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu gran<strong>de</strong> empenho profissional e enciumado pela forte visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />
irmÇo no comando da empresa, Raul dá um <strong>de</strong>sfalque para chamar a atenÅÇo para si, e,<br />
entediado, vive crise no casamento com SÉlvia e acaba se envolvendo com Yvone, a doce<br />
amiga <strong>de</strong> sua esposa que se apresenta como màdica e o convence a simular a prÑpria morte<br />
como forma <strong>de</strong> dar fim a tudo aquilo e recomeÅar a vida em outro lugar. A “ajuda” e a<br />
“doÅura” <strong>de</strong> Yvone encobrem suas intenÅâes golpistas e sua personalida<strong>de</strong> psicopata.<br />
Enganado, Raul foge com ela para Dubai, à abandonado e per<strong>de</strong> toda sua fortuna, sendo<br />
ajudado por um motorista <strong>de</strong> taxi indiano que tem ligaÅâes com a famÉlia Ananda. Ramiro,<br />
diante do <strong>de</strong>sfalque e da suposta morte do irmÇo, <strong>de</strong>speja a cunhada da casa em que vivia com<br />
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Raul, <strong>de</strong>spertando a ira da sobrinha Jëlia. No afÇ <strong>de</strong> preparar um sucessor na Cadore, o<br />
empresário pressiona seu filho Tarso a assumir os negÑcios da famÉlia, sem suspeitar que suas<br />
insistentes e autoritárias investidas acabariam <strong>de</strong>spertando no jovem e sensÉvel aspirante a<br />
mësico o <strong>de</strong>senvolvimento da esquizofrenia. EntrelaÅadas ä trama central do amor impossÉvel,<br />
as subtramas <strong>de</strong> Shankar, Ramiro, Raul, Yvone e Tarso, se unem a muitas outras na tarefa <strong>de</strong><br />
colorir a histÑria principal e <strong>de</strong>senvolver temas paralelos, como a esquizofrenia e a psicopatia.<br />
“Caminho as índias” e “Quem quer ser um milionário?” sÇo narrativas que falam do<br />
amor e que se apoiam no melodrama para cativar a audiÖncia: a telenovela se vale do<br />
sensacional, das peripàcias prÑprias do folhetim, para surpreen<strong>de</strong>r os telespectadores a cada<br />
capÉtulo; o filme se vale do suspense e da aÅÇo para <strong>de</strong>spertar no pëblico a emoÅÇo <strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>ixar encantar pela histÑria mesmo que o final seja previsÉvel. Ambas sÇo exemplos bem<br />
sucedidos da arte <strong>de</strong> contar histÑrias, embora trilhem caminhos diferentes.<br />
7.2 O TEMPO NARRATIVO<br />
Contar histÑrias à uma arte engendrada pela imaginaÅÇo e pela tàcnica do contador, e<br />
explora mëltiplos percursos narrativos. A contraposiÅÇo <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?” e<br />
“Caminho das índias” dá uma medida da importência da utilizaÅÇo do tempo como linguagem<br />
e como instrumento <strong>de</strong> construÅÇo da emoÅÇo. Cabe ao tempo conduzir a histÑria.<br />
Baseado no romance Q and A, do escritor e diplomata indiano Vikas Swarup, o filme<br />
inglÖs “Quem quer ser um milionário?” foi adaptado para o cinema por Simon Beaufoy ─<br />
trata-se, portanto, <strong>de</strong> uma produÅÇo cinematográfica concebida a partir <strong>de</strong> uma obra literária,<br />
o que acabou conferindo nÇo sÑ ao autor do livro como ao roteirista do filme um <strong>de</strong>staque<br />
pouco comum, geralmente concedido apenas ao diretor 268 . O que chega äs telas, assim, à a<br />
histÑria <strong>de</strong> Swarup (re)contada com o enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> “cenas” <strong>de</strong> Beaufoy e filmada (e<br />
editada) sob o olhar <strong>de</strong> Boyle em sua concepÅÇo Émpar <strong>de</strong> cinema. ï uma obra com trÖs<br />
assinaturas diferentes, cada uma <strong>de</strong>las introduzindo a marca singular dos “autores”. Ao<br />
roteirizar o livro, Beaufoy respeitou a trama central, fez os ajustes necessários para sua<br />
a<strong>de</strong>quaÅÇo ä duraÅÇo limitada do filme e introduziu sua contribuiÅÇo autoral ao sobrepor trÖs<br />
recortes temporais: o presente que conduz o suspense da aÅÇo (o do programa <strong>de</strong> auditÑrio),<br />
outro presente que busca explicaÅâes para a aÅÇo (o da investigaÅÇo policial) e o passado,<br />
trazido em flashbacks, que explica a aÅÇo pela memÑria do protagonista. A justaposiÅÇo<br />
268 Como cinema à arte <strong>de</strong> diretor, o nome do autor <strong>de</strong> roteiro original raramente à lembrado pelo pëblico.<br />
135
<strong>de</strong>stas três linhas <strong>de</strong> enca<strong>de</strong>amento da narrativa permite que se acompanhe quase que<br />
simultaneamente a tensão <strong>de</strong> Jamal diante da improbabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conseguir respon<strong>de</strong>r mais<br />
uma pergunta, a violência da <strong>de</strong>sconfiança policial diante <strong>de</strong> um favelado que tudo sabe, e o<br />
doloroso resgate <strong>de</strong> uma memória que Jamal quer esquecer.<br />
A opção <strong>de</strong> Beaufoy pela tripla possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> percepção do drama daquele jovem<br />
improvável não só confere fôlego à narrativa roteirizada e potencializa sua dramaticida<strong>de</strong><br />
como também presenteia Boyle com riquíssimas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> explorar o que sua<br />
assinatura cinematográfica tem <strong>de</strong> melhor: a ligeireza na captação dos movimentos, a urgência<br />
dos instantes registrados com a câmera na mão, a estranheza dos primeiríssimos planos e o<br />
enquadramento <strong>de</strong> baixo para cima. A velocida<strong>de</strong> estonteante dos movimentos <strong>de</strong> quem tem<br />
pressa <strong>de</strong> fugir é exposta por uma câmera ágil, posicionada muito próxima do que é captado,<br />
uma câmera que acelera sem <strong>de</strong>ixar nítidos os contornos do que é visto, que entrecorta a<br />
imagem fugidia captada por entre os vagões do trem, que sobrevoa os telhados da favela<br />
abrindo o foco e acentuando a sensação <strong>de</strong> confinamento <strong>de</strong> quem não tem saída, e que<br />
vasculha a multidão como quem teme encontrar o algoz em qualquer rosto.<br />
Sem a estabilida<strong>de</strong> do tripé ou da grua, a câmera muitas vezes corre nervosa captando na<br />
mão a insegurança dos <strong>de</strong>stinos daqueles meninos e jovens sem futuro. Perseguições por entre<br />
barracos e ruelas atravessam vagões e moradias, atropelam mulheres, crianças e animais,<br />
acompanham a ira da polícia e dos rivais religiosos, e encurralam meninos que zombam da<br />
morte, essa vizinha tão pouco temida. A opção pelo foco em primeiríssimo plano permite a<br />
sobreposição dos tempos, fazendo o presente lembrar o passado em imagens simultâneas: o<br />
rosto agigantado <strong>de</strong> Jamal no canto da tela recorta as cenas <strong>de</strong> sua memória. O contraste entre os<br />
planos <strong>de</strong> enquadramento também estreita a distância com o que é mostrado e sublinha sua<br />
importância: <strong>de</strong>staca o golpe mortal <strong>de</strong>sferido contra a mãe enquanto <strong>de</strong>ixa a dor do filho sem<br />
niti<strong>de</strong>z; as orelhas <strong>de</strong> abano <strong>de</strong> Jamal, exacerbadas pelo enquadramento inusitado, mostram a<br />
sensibilida<strong>de</strong> das antenas <strong>de</strong>ste favelado sem estudo que tudo sabe; o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> rumo para<br />
seguir a enorme galinha que foge assustada parece acentuar a impotência dos mais fracos,<br />
muitas vezes explorada cruelmente em brinca<strong>de</strong>ira inocente <strong>de</strong> menino. Tomada <strong>de</strong> baixo para<br />
cima, a percepção da realida<strong>de</strong> vista pelos olhos das crianças pobres da Índia é sempre<br />
ameaçadora: ao oferecer o ângulo <strong>de</strong> visão dos menores, Boyle redimensiona os riscos, a<br />
covardia, a exploração, a impotência. Por outro lado, <strong>de</strong>scortina também o céu como horizonte.<br />
Aqui, roteirista e diretor, contadores <strong>de</strong> história que usam diferentes linguagens,<br />
imprimem respectivamente suas assinaturas textuais e imagéticas na condução do maior trunfo<br />
narrativo do filme: o tempo. Coincidência ou não, o presente que avança rapidamente enquanto<br />
136
o menino cai do trem (ou que transcorre lentamente enquanto as cêmeras do game show<br />
questionam se ele sabe ou nÇo a resposta) e a sobreposiÅÇo do tempo, que <strong>de</strong>sdobra o presente<br />
em dois e corre paralelo ao passado, se contribui para quebrar a linearida<strong>de</strong> e potencializar a<br />
dramaticida<strong>de</strong> da narrativa, tambàm funciona como uma referÖncia ao universo indiano<br />
retratado: tradiÅÇo milenar e mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, na índia, sÇo as duas faces do contemporêneo. Como<br />
diz o roteirista e escritor Carriöre sobre o paÉs que tantas vezes visitou, o “passado nÇo à o<br />
passado”; “ele à apenas uma das formas do presente, que o assimila e o prolonga”: “a índia<br />
reivindica cinco milÖnios <strong>de</strong> existÖncia aos quais se refere constantemente” 269 .<br />
Diferentemente <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?”, a trama original <strong>de</strong> “Caminho das<br />
índias” tem uma ënica assinatura: a <strong>de</strong> Gloria Perez, uma das mais talentosas e criativas<br />
contadoras <strong>de</strong> histÑria da televisÇo brasileira. Dispensando uma prática comumente adotada<br />
pela maioria dos autores <strong>de</strong> telenovelas brasileiras para driblar o forte trabalho braÅal <strong>de</strong><br />
escrever mais <strong>de</strong> duzentos capÉtulos, Gloria Perez trabalha sozinha, sem colaboradores. “Acho<br />
impossÉvel dividir fantasia” 270 , explica. Embora conte com o apoio <strong>de</strong> pesquisadoras e se valha<br />
da contribuiÅÇo <strong>de</strong> consultores especializados para obter informaÅâes a respeito dos temas<br />
abordados, a escolha da trama e das sub-tramas, a <strong>de</strong>finiÅÇo das personagens, o enca<strong>de</strong>amento<br />
das cenas no capÉtulo, o rumo da histÑria, e muitas vezes atà a trilha sonora ─ tudo sai <strong>de</strong> seu<br />
roteiro. Diferentemente do cinema, em telenovela, à a cabeÅa do autor que comanda. Nesse<br />
sentido, embora o diretor tenha autonomia para compor imageticamente a cena e conduzir o<br />
trabalho dos atores, nada <strong>de</strong>ve fugir ao que está no texto 271 . Especialmente no caso <strong>de</strong> Gloria<br />
Perez, uma autora que se vale apenas <strong>de</strong> sua imaginaÅÇo (muitos autores se inspiram em<br />
personagens ou tramas já existentes para construir a base <strong>de</strong> suas histÑrias), nÇo se po<strong>de</strong> dizer<br />
que o diretor <strong>de</strong> suas novelas seja um co-autor: a autora parte do zero, conta apenas com seu<br />
universo criativo, ao passo que o diretor cria a partir do que ela escreve. Assim, “Caminho das<br />
índias” à uma obra <strong>de</strong> Gloria Perez, com a direÅÇo <strong>de</strong> Marcos Schechtman. Sendo a telenovela<br />
uma obra audiovisual, o que configura a telenovela que chega ao pëblico à a traduÅÇo imagàtica<br />
que o diretor faz da narrativa da novelista. Nela, todo um complexo universo <strong>de</strong> relaÅâes e aÅâes<br />
269 CARRI†RE, 2002, p. 6.<br />
270 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, p. 428.<br />
271 A sintonia entre autor e diretor <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m que o segundo nÇo po<strong>de</strong> criar para alàm do que está no<br />
texto. Prova disso à que, em “Amàrica”, outra novela <strong>de</strong> Gloria Perez, o diretor inicial foi substituÉdo com a<br />
trama já no ar porque a maneira como estava conduzindo a personagem Sol contradizia o espÉrito criado para ela<br />
pela autora. Na novela, Sol, atraÉda pelas promessas do sonho americano, se dispâe a atravessar o <strong>de</strong>serto do<br />
Màxico para entrar nos Estados Unidos e tentar a vida. Para a autora, uma mulher que conhece os <strong>de</strong>safios que<br />
irá enfrentar e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> enfrentá-los mesmo assim à alguàm forte, lutador, cheio <strong>de</strong> esperanÅa. A Sol que foi para<br />
as telas nos capÉtulos iniciais, graÅas ä direÅÇo <strong>de</strong> Jaime Monjardim, era uma mulher fraca, cheia <strong>de</strong> dëvidas e<br />
chorona. O <strong>de</strong>scompasso resultou no <strong>de</strong>sligamento do diretor.<br />
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se oferece ä apreensÇo, possibilitando leituras paralelas e transversais ao eixo central da histÑria,<br />
costuradas entre si pelo tempo narrativo adotado.<br />
Ao longo <strong>de</strong> 203 capÉtulos, Gloria Perez administra a vida <strong>de</strong> 79 personagens fixos<br />
(fora outros tantos inci<strong>de</strong>ntais) distribuÉdos entre dois bairros do Rio <strong>de</strong> Janeiro (Lapa e Barra)<br />
e a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaipur, capital do RajastÇo, na índia (na verda<strong>de</strong> as imagens que compâem a<br />
locaÅÇo foram colhidas em diferentes cida<strong>de</strong>s indianas e combinadas com as da cida<strong>de</strong><br />
cenográfica construÉda no Projac da Re<strong>de</strong> Globo 272 ). Embora a extensÇo e a apresentaÅÇo<br />
fatiada da trama possam dispersar a apreensÇo do conjunto da obra “Caminho das índias” (atà<br />
porque ela à mesmo para ser vista capÉtulo a capÉtulo), uma visÇo estruturada <strong>de</strong> sua<br />
completu<strong>de</strong> revela parte do traÅado autoral da teledramaturga. O triêngulo amoroso Bahuan-<br />
Maya-Raj constitui a trama central <strong>de</strong> “Caminho das índias” (todas as peÅas <strong>de</strong> divulgaÅÇo da<br />
novela insistentemente reforÅam a imagem do trio); sua forÅa está na impossibilida<strong>de</strong> do amor<br />
entre uma moÅa <strong>de</strong> casta e um intocável, na certeza <strong>de</strong> que muitas serÇo as barreiras que o<br />
casal terá <strong>de</strong> enfrentar para que o sentimento verda<strong>de</strong>iro prevaleÅa sobre as antigas tradiÅâes<br />
indianas. Algumas sub-tramas sÇo construÉdas para dar sustentaÅÇo ä trama central: o<br />
triêngulo familiar Láksmi-Shamkar-Opash, o casal intercultural Camila e Ravi, a dupla <strong>de</strong><br />
irmÇos Ramiro e Raul, seus familiares Sr. Cadore, SÉlvia, Jëlia, Melissa, Tarso e InÖs, e o<br />
triêngulo <strong>de</strong>sdobrado da famÉlia Cadore Melissa-Tarso-Tònia (mÇe e namorada <strong>de</strong> Tarso,<br />
respectivamente), por exemplo. Sem a mesma forÅa, outras sub-tramas apenas dÇo colorido ou<br />
complementam as <strong>de</strong>mais: os casais Amithab e Surya, Norminha e Abel, a famÉlia proprietária<br />
da pastelaria (Ashima, Ana Purna, Indra e Málika), o casal Dr. Castanho e Suelen, a famÉlia<br />
Galo (Càsar, Ilana e Zeca), as amigas Duda e Chiara etc.<br />
Assim, apoiada numa trama central que se ramifica para diversos lados, dando<br />
abertura para a discussÇo dos <strong>de</strong>mais temas escolhidos pela autora (diferenÅas culturais,<br />
doenÅas mentais e juventu<strong>de</strong> sem limites parentais), a narrativa <strong>de</strong> “Caminho das índias” se<br />
<strong>de</strong>senrola explorando dois eixos temporais transversais: um diacrònico, outro sincrònico. O<br />
primeiro atravessa toda a telenovela, do primeiro ao ëltimo capÉtulo, e marca o lento<br />
<strong>de</strong>senrolar do nÑ que amarra Maya a Bahuam e a Raj: na ficÅÇo, cerca <strong>de</strong> dois anos se passam<br />
entre o dia em que Maya vÖ Bahuam pela primeira vez e a cena final que sacramenta o seu<br />
amor pelo marido arranjado Raj. Nesse eixo diacrònico, que caminha em compasso prÑximo<br />
ao tempo real e que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da sucessÇo histÑrica <strong>de</strong> aÅâes, muito pouca coisa acontece: sÇo<br />
cenas recheadas <strong>de</strong> lembranÅas, projeÅâes, hesitaÅâes, <strong>de</strong>sencontros, quase encontros,<br />
272 Para maiores informaÅâes sobre o investimento na criaÅÇo da cida<strong>de</strong> cenográfica, ver ROGAR, “A<br />
Bollywood da Globo”. DisponÉvel em: . Acesso em 25 jul. 2009.<br />
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ameaÅas que nÇo se verificam, “conto-nÇo-conto-a-verda<strong>de</strong>”. Esse à o tempo da telenovela na<br />
completu<strong>de</strong> da obra. No tempo sincrònico, muitas outras aÅâes se <strong>de</strong>senrolam e se concluem,<br />
<strong>de</strong> certa forma <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas pelos acontecimentos do tempo diacrònico. Várias pequenas<br />
histÑrias caminham transversalmente ä trama central, alimentando o eixo <strong>de</strong> aÅÇo: <strong>de</strong> soluÅÇo<br />
relativamente rápida, elas se <strong>de</strong>senvolvem simultaneamente a outras histÑrias e sÇo sucedidas<br />
por novos nÑs, mantendo a novela carregada <strong>de</strong> acontecimentos que exigem do pëblico um<br />
acompanhamento diário. Esse à o tempo da telenovela na unida<strong>de</strong> do capÉtulo.<br />
7.3 A CARTOGRAFIA DE DUAS íNDIAS<br />
Tal e qual uma personagem po<strong>de</strong>rosa, a índia entra em cena <strong>de</strong> forma arrebatadora.<br />
Tanto em “Quem quer ser um milionário?” como em “Caminho das índias” à ela que, entre<br />
sedutora e intrigante, atrai o olhar do pëblico, chocando-o com seus contrastes ou encantando-<br />
o com suas cores e exotismo. NÇo por acaso o filme situa sua histÑria em Mumbai, uma das<br />
cida<strong>de</strong>s mais populosas do mundo, a metrÑpole que melhor con<strong>de</strong>nsa os traÅos mais<br />
marcantes do paÉs ─ o luxo das construÅâes mo<strong>de</strong>rnas e a pobreza das favelas. Na telenovela,<br />
a índia aparece mais tradicional: a escolha do RajastÇo, terra dos marajás, permitiu a<br />
composiÅÇo <strong>de</strong> um cenário mais prÑximo do imaginário popular.<br />
Capital do estado <strong>de</strong> Maharashtra e se<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bollywood, a maior indëstria cinematográfica<br />
do planeta, Mumbai cresce e ganha nova roupagem ä medida que Jamal, o menino sujo e<br />
favelado do inÉcio do filme, amadurece, consegue um lugar no mundo do trabalho e conquista<br />
alguma cidadania. Jamal, enquanto crianÅa perseguida em sua indigÖncia, habita uma das<br />
muitas favelas <strong>de</strong> Bombaim, a cida<strong>de</strong> que foi renomeada Mumbai em 1996 e que, por sua<br />
antiga vocaÅÇo comercial (alimentada pela gran<strong>de</strong> movimentaÅÇo <strong>de</strong> seu porto cosmopolita), à<br />
o centro econòmico e financeiro do paÉs, concentrando enorme contingente populacional<br />
(cerca <strong>de</strong> 16 milhâes <strong>de</strong> habitantes ─ ou 19 milhâes, como contabiliza o filme) e expressiva<br />
combinaÅÇo multicultural e religiosa. Se a misària <strong>de</strong> Bombaim rouba a cena durante a<br />
infência <strong>de</strong> Jamal, os fortes contrastes entre arranha-càus e barracos, riqueza e pobreza,<br />
marcam a vida nova da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois da troca <strong>de</strong> nome para Mumbai. Do alto <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />
edifÉcio em construÅÇo, os irmÇos Jamal e Salim contemplam, espantados, a evoluÅÇo da<br />
cida<strong>de</strong>: a favela suja e miserável da infência agora dá lugar a um canteiro <strong>de</strong> obra. Salim, o<br />
irmÇo aliciado pelo crime, dá o tom da nova configuraÅÇo: “Mumbai está no centro do<br />
mundo”, e ele, assessor <strong>de</strong> gêngster, está no “centro do centro”.<br />
139
Na Mumbai <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?”, a índia se apresenta igualmente<br />
cosmopolita, mo<strong>de</strong>rna, prÑspera, e sub<strong>de</strong>senvolvida: os novos contornos da arquitetura, a<br />
numerosa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> edifÉcios em construÅÇo, o glamour Bollywoodiano dos estëdios do<br />
game show, os carros em profusÇo, o cenário turÉstico ─ toda a urbanida<strong>de</strong> rica e promissora<br />
convive com a sujeira dos rostos, roupas e vielas, com o ar pesado dos subterrêneos da cida<strong>de</strong>,<br />
com a promiscuida<strong>de</strong> dos barracos, a falta <strong>de</strong> conforto dos banheiros comunitários, a fossa a<br />
càu aberto, a mendicência, a exploraÅÇo das crianÅas, o crime, a corrupÅÇo, o comàrcio da<br />
misària, a intolerência e o <strong>de</strong>sprezo da polÉcia pelos <strong>de</strong>sassistidos. Num <strong>de</strong> seus trambiques <strong>de</strong><br />
sobrevivÖncia, o menino Jamal se faz <strong>de</strong> guia turÉstico em dupla jornada <strong>de</strong> trabalho: diz o que<br />
lhe vem ä cabeÅa sobre os monumentos da cida<strong>de</strong> para merecer os trocados que lhe dÇo, e<br />
distrai o turista para que o irmÇo e seus comparsas “<strong>de</strong>penem” o carro <strong>de</strong> mais uma vÉtima.<br />
Sobra para Jamal, que apanha da polÉcia diante <strong>de</strong> turistas americanos penalizados e<br />
indignados com a violÖncia. O guia turÉstico <strong>de</strong> araque, agora caÉdo ao chÇo todo machucado,<br />
grita seu <strong>de</strong>sabafo: “Querem ver a verda<strong>de</strong>ira índia? AÉ está!”. Numa sÉntese da<br />
<strong>de</strong>sinformaÅÇo do Oci<strong>de</strong>nte sobre o Oriente, a cena termina com a pergunta nonsense da<br />
turista, em sua preocupaÅÇo maternal: “VocÖ tem plano <strong>de</strong> saë<strong>de</strong>?”<br />
Nas inëmeras fugas dos irmÇos ÑrfÇos, a índia do filme passeia para alàm <strong>de</strong> Mumbai.<br />
No amontoado escuro das gentes jogadas nos vagâes populares ou no teto do trem que corta<br />
as fronteiras da cida<strong>de</strong>, a errência do itinerário daqueles meninos encontra outros cenários,<br />
surpreen<strong>de</strong>ndo seus olhos saturados <strong>de</strong> misària e injustiÅa social. Mal po<strong>de</strong>m acreditar quando<br />
encontram o Taj Mahal, em Agra: “ï um sonho, um hotel?” 273 , perguntam-se, espantados com<br />
o que veem, revelando o <strong>de</strong>sconhecimento do mais valioso cartÇo postal da índia. ï o trem,<br />
sÉmbolo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> inglesa dos tempos coloniais, que lhes proporciona a aventura da<br />
liberda<strong>de</strong> e do conhecimento. Seja na metrÑpole ou no interior, a experiÖncia impactante dos<br />
contrastes se soma ä experiÖncia asfixiante das multidâes: ambas revelam os incontáveis e<br />
variados rostos da índia. Ao partilhar a experiÖncia da multidÇo com a platàia (na escola da<br />
favela, nas estaÅâes <strong>de</strong> trem, nas ruas, nos aglomerados diante da tevÖ, na informaÅÇo <strong>de</strong> que<br />
sÇo 90 milhâes <strong>de</strong> pessoas no paÉs a assistir ä final do show), o filme franqueia ao pëblico o<br />
passaporte para a verda<strong>de</strong>ira índia: como diz Carriöre, a “multidÇo à aqui a principal<br />
paisagem”, à o “ator <strong>de</strong> todas as coisas”. Boyle parece ter seguido ä risca o conselho do autor<br />
francÖs ao permitir que “o visitante estrangeiro” “aceite a multidÇo”, “se misture com ela” e<br />
“nela se perca” 274 .<br />
273 A frase remete ao espanto da populaÅÇo diante da apariÅÇo do Superhomem: “ï um pássaro, um aviÇo?”.<br />
274 CARRI†RE, 2002, p. 5.<br />
140
No filme, a maioria dos indianos veste roupas oci<strong>de</strong>ntais; os homens jamais trajam<br />
kurtas; sÑ as mulheres ─ as mais velhas, em gran<strong>de</strong> parte ─ usam sáris e vàus. Shorts e<br />
camisas <strong>de</strong> tecido, sujas e maltrapilhas, vestem as crianÅas da favela; calÅas, camisas e<br />
vestidos dÇo ares contemporêneos aos irmÇos já adultos, aos gêngsters e seus comparsas, aos<br />
funcionários do call center; terno completo confere universalida<strong>de</strong> ao apresentador do show<br />
do milhÇo indiano. O ënico homem a aparecer em trajes tÉpicos à o ator indiano <strong>de</strong><br />
Bollywood; sua caracterizaÅÇo à marcada pelo simbÑlico, afinal trata-se do “indiano mais<br />
famoso do paÉs”. Sáris <strong>de</strong> um colorido <strong>de</strong>sbotado pelo sol inclemente vestem as mÇes da<br />
favela; a tradiÅÇo na vestimenta tambàm à respeitada pelas mulheres <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong> e pelas<br />
idosas nas ruas, na estaÅÇo <strong>de</strong> trem e na platàia do game show; tecidos ricamente bordados<br />
embrulham o corpo excessivamente adornado das prostitutas que precisam excitar o<br />
imaginário <strong>de</strong> indianos e turistas; sobrieda<strong>de</strong> e elegência dÇo o tom nos sáris usados pelas<br />
moÅas que sobem ao palco para entregar o cheque simbÑlico <strong>de</strong> 20 milhâes <strong>de</strong> rëpias ä nova<br />
celebrida<strong>de</strong> nacional Jamal. Latika, já sem os andrajos <strong>de</strong> crianÅa favelada, aparece adulta<br />
com os ombros ä mostra em uma tënica indiana <strong>de</strong> alÅas largas na cena que traduz sua<br />
passagem <strong>de</strong> tempo; na casa <strong>de</strong> seu “protetor”, está <strong>de</strong> jeans e camiseta; e, ao fugir para<br />
encontrar Jamal, complementa a roupa oci<strong>de</strong>ntal com um vàu amarelo (cor da maioria <strong>de</strong> suas<br />
roupas): usado inicialmente em volta do pescoÅo, o que parecia mero a<strong>de</strong>reÅo estàtico ganha<br />
ares indianos ao cobrir os cabelos da moÅa no encontro que marca o final feliz, a consagraÅÇo<br />
do <strong>de</strong>stino que une pelo amor duas vidas tantas vezes separadas.<br />
A índia <strong>de</strong> contrastes sociais e econòmicos que se materializa na Mumbai <strong>de</strong> “Quem<br />
quer ser um milionário?” em nada se assemelha ao paÉs que abriga a Jaipur <strong>de</strong> “Caminho das<br />
índias”. A Mumbai metropolitana e cosmopolita que se abre para o mundo impulsionada por<br />
sua condiÅÇo <strong>de</strong> importante cida<strong>de</strong> portuária parece encerrar uma vida incompatÉvel com a<br />
realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaipur, uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> dois milhâes <strong>de</strong> habitantes, encravada no interior<br />
do paÉs, rota <strong>de</strong> passagem para o <strong>de</strong>serto, um lugar habitado por homens <strong>de</strong> turbante, mulheres<br />
<strong>de</strong> sári, camelos e elefantes.<br />
A Jaipur <strong>de</strong> “Caminho das índias”, no entanto, à uma cida<strong>de</strong> composta por um pout-<br />
pourri <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> vários locais expressivos do imaginário indiano. Imagens <strong>de</strong> fachadas,<br />
<strong>de</strong> ruas, <strong>de</strong> templos e monumentos <strong>de</strong> Jaipur (como o Palácio dos Ventos); imagens <strong>de</strong> Agra,<br />
on<strong>de</strong> reina majestoso o Taj Mahal; imagens <strong>de</strong> Varanasi, on<strong>de</strong>, sob as margens do Ganges, os<br />
mortos sÇo oferecidos em purificaÅÇo; e imagens da cida<strong>de</strong> cenográfica construÉda no Centro<br />
<strong>de</strong> ProduÅÇo da Re<strong>de</strong> Globo, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. A alma que dá vida ä Jaipur televisiva foi<br />
ainda inspirada em alguma medida pelo visual e pelo ar <strong>de</strong> Jodhpur e Mumbai, cida<strong>de</strong>s<br />
141
visitadas pela produÅÇo da novela. Fruto da imaginaÅÇo e da licenÅa poàtica <strong>de</strong> Gloria Perez,<br />
essa à obviamente uma Jaipur fictÉcia, construÉda imageticamente para con<strong>de</strong>nsar os<br />
principais traÅos da cultura indiana e assim abrigar o imaginário que ao longo dos sàculos<br />
vem se consolidando na referÖncia coletiva dos brasileiros sobre a índia. Nesse sentido, a<br />
telenovela buscou no interior do RajastÇo, na terra dos marajás, uma cartografia que pu<strong>de</strong>sse<br />
permitir o trênsito da tradiÅÇo e da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, que pu<strong>de</strong>sse ser atravessada pelos vários<br />
tempos que se sobrepâem na experiÖncia do contemporêneo indiano.<br />
TÇo arrebatadora como a cida<strong>de</strong>/personagem <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?”, a<br />
Jaipur <strong>de</strong> “Caminho das índias” à onipresente: mais que apenas cenário, pano <strong>de</strong> fundo on<strong>de</strong><br />
as personagens <strong>de</strong> carne e osso se movimentam, a locaÅÇo da telenovela expressa a índia que<br />
se quer mostrar ─ colorida, vibrante, caÑtica, majestosa, sedutora em sua diferenÅa,<br />
encantadora em seus mistàrios. Nas fachadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho rebuscado e linhas arredondadas,<br />
femininas, a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za do refinamento e a soli<strong>de</strong>z dos materiais revelam uma sensualida<strong>de</strong> e<br />
um compromisso estàtico que atravessa os tempos. No interior das casas dos comerciantes e<br />
sábios, uma combinaÅÇo que excita o olhar oci<strong>de</strong>ntal pelo excesso <strong>de</strong> formas, texturas e<br />
brilho: relevos e rendilhados, mosaicos <strong>de</strong> espelhos, panejamentos e transparÖncias; sÉmbolos<br />
religiosos, guirlandas, velas e oferendas; panelas, especiarias e flores; cores e dourados em<br />
profusÇo ─ tudo concorre para a rica experiÖncia tátil, visual e espiritual da vida indiana. As<br />
<strong>de</strong>mais locaÅâes (lojas comerciais, palácios e templos) igualmente proporcionam uma<br />
apreensÇo caleidoscÑpica da índia, um estÉmulo vigoroso e constante que <strong>de</strong>ixa todos os<br />
sentidos em alerta. ImpossÉvel ficar indiferente a tanta informaÅÇo!<br />
Nas ruas, o movimento aparentemente caÑtico <strong>de</strong> gentes, animais, carros, bicicletas e<br />
outros curiosos meios <strong>de</strong> transporte faz <strong>de</strong>ste “cenário” em constante mutaÅÇo uma metáfora<br />
do modo <strong>de</strong> vida do povo indiano: o indivÉduo na índia à necessariamente um ser coletivo. A<br />
multidÇo que povoa as ruas tambàm se acotovela nas casas, on<strong>de</strong> muitas geraÅâes da mesma<br />
famÉlia convivem, on<strong>de</strong> privacida<strong>de</strong> aten<strong>de</strong> pelo nome <strong>de</strong> rejeiÅÇo ao grupo, e silÖncio soa<br />
como tristeza. Na sala da casa dos Ananda, avÑ, tio, pais, filhos, noras e netos participam<br />
coletivamente <strong>de</strong> cada pequeno drama particular: uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negÑcio na loja <strong>de</strong><br />
tecidos familiar, uma <strong>de</strong>cisÇo profissional, a educaÅÇo das crianÅas, a preparaÅÇo do tchai, as<br />
brigas <strong>de</strong> casal, o ciëme entre irmÇos e noras, o <strong>de</strong>srespeito a algum costume. E comemoram<br />
qualquer pequena alegria: o anëncio <strong>de</strong> mais um neto, um bom prenëncio dos astros, uma<br />
refeiÅÇo em famÉlia, um casamento arranjado. A casa abriga as discussâes domàsticas, o<br />
conselho dos mais velhos, as idiossincrasias familiares, a alfabetizaÅÇo das crianÅas e a lua-<br />
<strong>de</strong>-mel dos jovens casais.<br />
142
Na Jaipur da telenovela nÇo sÇo os contrastes econòmicos entre riqueza e pobreza que<br />
se <strong>de</strong>stacam; sÇo os contrastes sociais do sistema <strong>de</strong> castas hinduista. Ao construir a trama<br />
indiana tendo por base os fundamentos do sistema <strong>de</strong> castas, “Caminho das índias” parte <strong>de</strong><br />
impedimentos sociais e religiosos que se revelam barreiras intransponÉveis e, exatamente por<br />
isso, potencializam os impasses dramáticos ali explorados: sendo um sistema <strong>de</strong> estratificaÅÇo<br />
social hereditário, o indivÉduo nasce e morre <strong>de</strong>ntro da sua casta e a transmite a seus<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, nÇo havendo possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilizaÅÇo entre castas, quer por fortuna quer<br />
por matrimònio. Mesmo tendo sido criado por um brâmane, um sábio da mais alta casta, e<br />
tendo sido educado no exterior, Bahuam, um dálit, nÇo tem permissÇo dos <strong>de</strong>uses para amar<br />
uma moÅa <strong>de</strong> casta como Maya. Esta, por sua vez, <strong>de</strong>sconhecendo a origem do amado (sua<br />
referÖncia sobre ele era a casta <strong>de</strong> seu pai, que ela nÇo sabia ser pai adotivo) e captando os<br />
sinais exteriores emitidos por seus trajes elegantes e a educaÅÇo apurada no exterior, imagina<br />
que sua escolha por Bahuam em nada <strong>de</strong>sagradará a seus pais. Po<strong>de</strong>rá assim harmonizar o<br />
<strong>de</strong>sejo das famÉlias com o <strong>de</strong>sejo dos noivos, realizando um casamento arranjado e uma uniÇo<br />
por amor. Enquanto Maya inocentemente sonha com a felicida<strong>de</strong> como qualquer moÅa<br />
apaixonada, Bahuam, calejado pelas rejeiÅâes e humilhaÅâes que a vida lhe impòs, omite o<br />
quanto po<strong>de</strong> a informaÅÇo sobre sua verda<strong>de</strong>ira casta. Chega a se apresentar ä famÉlia <strong>de</strong><br />
Maya como seu preten<strong>de</strong>nte, permitindo que todos pensem que à um brâmane, como seu pai.<br />
Quando a verda<strong>de</strong> à enfim revelada, a moÅa mo<strong>de</strong>rna, filha <strong>de</strong> pais que se dizem liberais por<br />
permitir que ela trabalhe ä noite em um call center, compreen<strong>de</strong> que o que sente por Bahuam<br />
à forte <strong>de</strong>mais: nem a obediÖncia a seus pais nem o respeito ä tradiÅÇo religiosa à capaz <strong>de</strong><br />
fazer com que renuncie ao amor pelo dálit. Para assumi-lo, no entanto, será necessário romper<br />
com tudo ─ famÉlia, religiÇo, cultura, socieda<strong>de</strong> ─ e fugir, pois na índia tradicional ela seria<br />
tambàm um pária. A uniÇo com um intocável e a consequente fuga <strong>de</strong>terminariam sua<br />
exclusÇo da socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sgraÅariam todas as geraÅâes <strong>de</strong> sua famÉlia. O amor, no entanto,<br />
fala mais alto e invoca os <strong>de</strong>sÉgnios <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong> muito cara aos hindus: o <strong>de</strong>stino. SÑ ele<br />
seria capaz <strong>de</strong> se interpor aos mandamentos da tradiÅÇo religiosa, sÑ ele tramaria tamanha<br />
armadilha, cruzando a emoÅÇo do sentimento mais puro com a razÇo da “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” que<br />
<strong>de</strong>safia os costumes que nÇo se sustentam fora da fà. Ao trabalhar fora e ä noite, Maya já tinha<br />
sido fisgada pela lÑgica <strong>de</strong> uma índia mo<strong>de</strong>rna e cosmopolita, celeiro mundial dos serviÅos <strong>de</strong><br />
informaÅÇo ä distência; ao se ren<strong>de</strong>r ao amor incondicional por um intocável, a moÅa hindu<br />
questiona as fronteiras erguidas por uma índia tradicional e arcaica que ainda rege a vida <strong>de</strong><br />
seus habitantes pela intolerência, a <strong>de</strong>speito do que diz a lei.<br />
143
A <strong>de</strong>terminaÅÇo da moÅa disposta a tudo em nome do amor esbarra na ambiÅÇo do<br />
amado que acredita na fortuna como um escudo contra as humilhaÅâes que a vida <strong>de</strong> dálit<br />
ainda lhe reserva. Esbarra tambàm na soluÅÇo encontrada por seus pais para evitar o <strong>de</strong>sastre<br />
que a notÉcia <strong>de</strong> seu equivocado relacionamento com um intocável provocaria em sua<br />
reputaÅÇo <strong>de</strong> moÅa casadoira: era preciso encontrar-lhe um marido <strong>de</strong> boa famÉlia e acertar<br />
com urgÖncia os trêmites comerciais do casamento. Beleza, cultura, instruÅÇo, respeito aos<br />
costumes, <strong>de</strong>sempenho culinário e talento <strong>de</strong> danÅarina, somados a um precioso dote, valeram<br />
ä Maya um noivo ä altura: o empresário Raj, segundo filho dos Ananda, famÉlia que à<br />
referÖncia nacional no tradicional setor <strong>de</strong> tecelagem e comàrcio <strong>de</strong> tecidos. No pacote do<br />
casamento arranjado entre a moÅa virtuosa e o rapaz <strong>de</strong> futuro promissor, uma informaÅÇo, no<br />
entanto, havia ficado <strong>de</strong> fora: a noiva estava grávida ─ e o pai da crianÅa era um dálit.<br />
Nos encontros e <strong>de</strong>sencontros <strong>de</strong>sta histÑria anunciada como um conto <strong>de</strong> fadas sobre<br />
o amor impossÉvel, uma Jaipur marcada pela tradiÅÇo grita a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> imposta pelo<br />
regime <strong>de</strong> castas. Um regime que <strong>de</strong>safia as leis em nome dos costumes: apesar <strong>de</strong> ter sido<br />
abolido da constituiÅÇo em reforma que se seguiu ä in<strong>de</strong>pendÖncia da Inglaterra em 1947, o<br />
sistema <strong>de</strong> castas que, segundo o hinduÉsmo, vem da criaÅÇo do universo pelo <strong>de</strong>us Brahma<br />
ainda vigora hoje, principalmente em regiâes mais rurais como a do RajastÇo. Embora haja<br />
aÅâes do governo no sentido <strong>de</strong> premiar o casamento entre castas e proporcionar aos dálits o<br />
direito ä educaÅÇo e ao mercado <strong>de</strong> trabalho, a luta pela igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos e pelo fim da<br />
discriminaÅÇo (iniciada pelo libertador da índia Mahatma Gandhi e conduzida pelo “libertador<br />
dos dálits” Bhimrao Ramji Ambedkar, jurista intocável que participou da redaÅÇo da nova<br />
constituiÅÇo) ainda enfrenta a resistÖncia <strong>de</strong> muitos que insistem em viver segundo os mais<br />
rÉgidos ensinamentos <strong>de</strong> Brahma. Da índia, o noticiário dá a medida <strong>de</strong>ste confronto: <strong>de</strong> um<br />
lado a eleiÅÇo <strong>de</strong> Kumari Mayawati, uma intocável, para o governo do estado <strong>de</strong> Uttar Pra<strong>de</strong>sh<br />
indica um avanÅo; <strong>de</strong> outro, a controvàrsia ainda vigora quando o assunto à a aplicaÅÇo prática<br />
do sistema <strong>de</strong> cotas para dálits nas universida<strong>de</strong>s e no serviÅo pëblico. Enquanto muitos<br />
divulgam que há muitos dálits ricos e influentes no paÉs e que a discriminaÅÇo contra os<br />
intocáveis vem “sucumbindo aos imperativos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” 275 (a divisÇo do trabalho na<br />
economia da índia emergente nÇo tem como ren<strong>de</strong>r-se äs tarefas prà-<strong>de</strong>stinadas aos<br />
trabalhadores sem casta), a Newsweek informa: “Segundo o Movimento <strong>de</strong> EducaÅÇo dos<br />
Direitos Humanos da índia, organizaÅÇo nÇo-governamental com se<strong>de</strong> em Madras, a cada hora<br />
dois dálits sÇo agredidos, trÖs mulheres dálits sÇo estupradas, dois dálits sÇo assassinados e duas<br />
275 SOUZA, “Caminho das índias: Castas, call centers e coisas <strong>de</strong> novela”. DisponÉvel em:<br />
, em 03/04/2009. Acesso em 14 nov. 2009.<br />
144
casas <strong>de</strong> dálits sÇo incendiadas” 276 . A revista complementa o quadro <strong>de</strong> discriminaÅÇo e<br />
violÖncia contra os intocáveis com a explicaÅÇo <strong>de</strong> um professor <strong>de</strong> sociologia da<br />
Universida<strong>de</strong> Jawaharlal Nehru, em Nova Dàlhi, para o aumento das atrocida<strong>de</strong>s cometidas:<br />
“à uma conseq§Öncia da reivindicaÅÇo <strong>de</strong> direitos das castas inferiores”; “Nas geraÅâes<br />
anteriores, dálits nÇo eram espancados porque 'conheciam o seu lugar’” 277 .<br />
Em “Caminho das índias”, embora a cida<strong>de</strong>-cenário tenha nome e sobrenome (Jaipur,<br />
capital do RajastÇo), ela foi claramente concebida pela autora para sintetizar o universo<br />
indiano. Talvez a discriminaÅÇo contra os dálits nÇo seja tÇo forte na Jaipur indiana: a cida<strong>de</strong><br />
à um espaÅo urbano bastante populoso para os padrâes do estado em que se situa e em nada<br />
lembra os vilarejos rurais on<strong>de</strong> os sem-casta po<strong>de</strong>m ser facilmente i<strong>de</strong>ntificados. Na trama<br />
televisiva, no entanto, a segregaÅÇo entre castas, as vestimentas tÉpicas indianas, os costumes<br />
da mais antiga tradiÅÇo religiosa, a arquitetura palaciana e os “livros-caixa” ─ vestÉgios <strong>de</strong><br />
uma índia arcaica ─ estÇo lado a lado com a multidÇo, o trênsito <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado, os carros<br />
luxuosos e a tecnologia <strong>de</strong> computadores e celulares prÑprios da índia mo<strong>de</strong>rna e emergente,<br />
paisagens perfeitamente passÉveis <strong>de</strong> serem encontradas na Jaipur da vida real. Na<br />
representaÅÇo da cartografia por on<strong>de</strong> circulam sábios, comerciantes e intocáveis, aviâes, tuc-<br />
tucs, elefantes e vacas, turbantes, kurtas, sáris e vàus, a cida<strong>de</strong> surge como uma alegoria <strong>de</strong><br />
uma cultura marcada pela presenÅa simultênea do passado e do presente em permanente<br />
diálogo. Ali, a ficÅÇo <strong>de</strong>sviou o curso do mais importante rio da índia para que o Ganges e os<br />
gats <strong>de</strong> Varanasi pu<strong>de</strong>ssem abenÅoar e assombrar, respectivamente, a vida <strong>de</strong> almas fiàis e<br />
infiàis. Para ali, a ficÅÇo transpòs o maior e mais famoso monumento <strong>de</strong>dicado ao amor, <strong>de</strong> tal<br />
modo que o Taj Mahal <strong>de</strong> Agra pu<strong>de</strong>sse partilhar da vizinhanÅa do Palácio dos Ventos, a<br />
exuberante construÅÇo cor-<strong>de</strong>-rosa <strong>de</strong> Jaipur, vazada por centenas <strong>de</strong> janelas atravàs das quais,<br />
há mais <strong>de</strong> duzentos anos, as mulheres do haràm do marajá Sawai Patrap Singh podiam<br />
espreitar as ruas sem serem vistas.<br />
NÇo sendo um documentário, a telenovela fez <strong>de</strong> sua locaÅÇo um universo riquÉssimo<br />
<strong>de</strong> referÖncias caleidoscÑpicas sobre as mëltiplas índias que habitam aquela singular regiÇo do<br />
planeta. O tÉtulo original concebido por Gloria Perez expressa tal pluralida<strong>de</strong> com perfeiÅÇo:<br />
“Caminho das índias”, no plural, remete äs muitas realida<strong>de</strong>s e tempos histÑricos presentes no<br />
paÉs igualmente conhecido por seu atraso e sua prosperida<strong>de</strong>. O tÉtulo propâe ainda o resgate<br />
<strong>de</strong> uma curiosida<strong>de</strong> ancestral pelo Oriente e o embarque em uma nova expediÅÇo exploratÑria:<br />
276 POWER, “Pobres reagem ä discriminaÅÇo na índia”. DisponÉvel em:<br />
, em 07/07/2000. Acesso em 14 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009.<br />
277 POWER, “Pobres reagem ä discriminaÅÇo na índia”. DisponÉvel em:<br />
, em 07/07/2000. Acesso em 14 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009.<br />
145
como um Vasco da Gama pÑs-mo<strong>de</strong>rno, a autora leva os brasileiros äs índias nÇo mais <strong>de</strong> em<br />
busca <strong>de</strong> seda e especiarias a serem comercializadas, mas sim em busca <strong>de</strong> sonho e fantasia a<br />
serem vividos a partir <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> tÇo encantadora quanto improvável.<br />
Se a índia <strong>de</strong> Gloria Perez toca o real ou <strong>de</strong>rrapa nas curvas fantásticas do imaginário<br />
popular, uma coisa à certa: ela nÇo à menos verda<strong>de</strong>ira que a índia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, que, segundo<br />
Carriöre, à uma “quimera em exercÉcio”, uma “viagem fÉsica no tempo”:<br />
146<br />
Se reunirmos todos os dados concebÉveis (territÑrios, populaÅâes, lÉnguas, religiâes,<br />
economias, modos <strong>de</strong> vida), se os estudarmos <strong>de</strong> acordo com nossos màtodos, o mais<br />
seriamente e imparcialmente possÉvel, sÑ po<strong>de</strong>remos chegar a uma conclusÇo<br />
implacável: a índia nÇo existe.<br />
Um conjunto como este nÇo po<strong>de</strong> funcionar. Ele à incoerente. Engloba tantos nÉveis<br />
sociais, tantas complexida<strong>de</strong>s mentais, tantas regras pëblicas e secretas, tantas<br />
realida<strong>de</strong>s imaginárias, tanto passado, tanto presente, que uma coesÇo geral<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> um milagre cÑsmico.<br />
Aqui a pluralida<strong>de</strong> parece ser o cimento. ï a diferenÅa que reëne. 278<br />
“Caminho das índias” e “Quem quer ser um milionário?” talvez sejam narrativas<br />
complementares: uma <strong>de</strong>screve o interior do paÉs, outra retrata uma gran<strong>de</strong> metrÑpole; uma se<br />
apoia na tradiÅÇo da principal religiÇo nacional, outra fala dos impactos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>; uma<br />
se apresenta como a saga do amor impossÉvel entre castas, a outra à um conto <strong>de</strong> fadas urbano<br />
sobre o amor apartado pela incerteza da misària. Nenhuma <strong>de</strong>las, isoladamente, traduz a<br />
complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um paÉs como a índia. Tanta diversida<strong>de</strong> e tanto contraste talvez sÑ possam<br />
mesmo ser apreendidos pelo cruzamento dos muitos caminhos que se dispâem a <strong>de</strong>sbravar<br />
este paÉs “impossÉvel” <strong>de</strong> ser visto em sua completu<strong>de</strong>. Como diz Carriöre, “ï preciso admitir<br />
que nunca conheceremos toda a índia” 279 . Narrativas <strong>de</strong> ficÅÇo, textos jornalÉsticos,<br />
testemunhos convertidos em ensaios ou romances sÇo roteiros indiscutivelmente legÉtimos,<br />
poràm sempre limitados, <strong>de</strong> se chegar ä pluralida<strong>de</strong> das índias. A complexa cartografia da<br />
índia exige uma leitura em permanente contraponto.<br />
7.4 A íNDIA FORA DAS TELAS<br />
Plural e singular. A índia à um paÉs ënico: as gran<strong>de</strong>s diferenÅas que imprimem<br />
tantas e tÇo variadas cores e sabores ao mundo indiano, ao invàs <strong>de</strong> dividi-lo em realida<strong>de</strong>s<br />
exclu<strong>de</strong>ntes, funcionam justamente como o amálgama <strong>de</strong> uma curiosa coesÇo que lhe confere<br />
278 CARRI†RE, 2002, p. 6.<br />
279 Ibi<strong>de</strong>m, p. 8.
uma harmonia caleidoscÑpica. Tal riqueza <strong>de</strong> contrastes nÇo por acaso tem inspirado a<br />
curiosida<strong>de</strong> do mundo oci<strong>de</strong>ntal<br />
A índia chega ao sàculo XXI com a tradiÅÇo <strong>de</strong> uma das mais antigas civilizaÅâes do<br />
mundo ─ ela reivindica cinco milÖnios <strong>de</strong> existÖncia ─ e o frescor <strong>de</strong> um paÉs em plena<br />
juventu<strong>de</strong> ─ a ex-colònia britênica conquistou sua in<strong>de</strong>pendÖncia há apenas 62 anos. Trata-se,<br />
como <strong>de</strong>fine o Consulado Geral da índia no Brasil, <strong>de</strong> uma “repëblica soberana, socialista,<br />
secular e <strong>de</strong>mocrática”. No entanto, o paÉs que, por sua populaÅÇo, ostenta a maior<br />
<strong>de</strong>mocracia do mundo convive com um sistema <strong>de</strong> castas que nega muitos dos direitos básicos<br />
do cidadÇo aos sem-casta. Isto significa que o regime hereditário <strong>de</strong> estratificaÅÇo da<br />
populaÅÇo indiana garante aos 15% da populaÅÇo pertencentes äs castas superiores o domÉnio<br />
dos altos escalâes da educaÅÇo e da socieda<strong>de</strong> e o consumo <strong>de</strong> uma fatia consi<strong>de</strong>rável dos<br />
recursos do paÉs, enquanto os <strong>de</strong>mais 75% das chamadas castas inferiores (dálits, adivasis e<br />
outras “castas atrasadas”) sÇo consi<strong>de</strong>rados párias da socieda<strong>de</strong> 280 : estÇo con<strong>de</strong>nados a vestir<br />
as roupas que encontram nos corpos dos mortos, a fazer os trabalhos vistos como indignos ou<br />
<strong>de</strong>gradantes (lidar com os mortos, limpar os excrementos humanos) ─ e por isso mesmo mal<br />
pagos; sÇo tambàm proibidos <strong>de</strong> entrar nos templos e <strong>de</strong> beber da mesma corrente <strong>de</strong> água<br />
usada pelas pessoas <strong>de</strong> casta. No romance A distância entre nÑs, <strong>de</strong> Thrity Umrigar, o<br />
narrador comenta que “Os moradores pagavam a uma harijan que morava do outro lado da<br />
favela para recolher as pilhas <strong>de</strong> fezes [do banheiro comunitário] todas as noites, trabalho<br />
tÉpico <strong>de</strong> uma pessoa da casta dos intocáveis” 281 . O jornal The Times of India, <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> agosto<br />
<strong>de</strong> 2009, ostenta em uma página interna a reportagem intitulada “Intouchability alive &<br />
kicking in India: Dalits have little access to temples, their kids are ma<strong>de</strong> to sit separately in<br />
schools” 282 (“Intocabilida<strong>de</strong> viva e vigorosa na índia: Dalits tÖm pouco acesso aos templos e<br />
seus filhos sÇo obrigados a sentar separados nas escolas” [tradução nossa]). Outra matària<br />
recente, <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2009, publicada na Gazeta do Sul, informa que “Jovem dalit morre<br />
na índia apÑs ser rejeitado em hospital”: màdicos justificam que “o centro hospitalar nÇo<br />
‘tratava <strong>de</strong> pacientes <strong>de</strong> castas mais baixas’” 283 .<br />
A divisÇo da socieda<strong>de</strong> em castas remonta, segundo a crenÅa hinduÉsta, ä criaÅÇo do<br />
mundo pelo <strong>de</strong>us Brahma. O <strong>de</strong>us maior, ao criar a humanida<strong>de</strong>, agrupou os homens <strong>de</strong><br />
280 KAMDAR, 2008, p. 282.<br />
281 UMRIGAR, 2006, p. 16.<br />
282 Reportagem exibida em vi<strong>de</strong>o caseiro para o blog “IndiagestÇo”, em postagem do dia 11 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009,<br />
disponÉvel em: . Acesso em 14 nov. 2009.<br />
283 “Jovem dalit...” DisponÉvel em:<br />
, em 15 <strong>de</strong><br />
junho <strong>de</strong> 2009. Acesso em 14 nov. 2009.<br />
147
acordo com a qualida<strong>de</strong> da energia que predomina neles, que sÇo basicamente trÖs: o Sattva<br />
(forÅa criativa), o Rajas (capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aÅÇo) e o Tamas (inàrcia). A combinaÅÇo maior ou<br />
menor <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>stas energias foi <strong>de</strong>terminante para a estratificaÅÇo da socieda<strong>de</strong> em<br />
quatro castas, uma para cada extensÇo corpo <strong>de</strong> Brahma: <strong>de</strong> sua boca vieram os Brâmanes,<br />
grupo seleto que reëne sacerdotes, filÑsofos e professores; <strong>de</strong> seus braÅos, surgiram os<br />
Kshatriya, formado pelos guerreiros, militares e governantes; <strong>de</strong> suas pernas foram criados os<br />
Vaishyas, integrado pelos comerciantes; <strong>de</strong> seus pàs, ganharam vida os Sudras, servos,<br />
camponeses, artesÇos e operários. Os sem-casta foram assim chamados por terem nascido da<br />
poeira <strong>de</strong>baixo dos pàs <strong>de</strong> Brahma.<br />
O sistema <strong>de</strong> estratificaÅÇo à tÇo forte, que à possÉvel i<strong>de</strong>ntificar um dálit pelas roupas<br />
que veste, pelo trabalho que executa. Para a maioria dos indianos, basta o nome para traÅar<br />
seu lugar na socieda<strong>de</strong>, como diz o narrador <strong>de</strong> A distância entre nós:<br />
148<br />
[...] saber o nome <strong>de</strong> famÉlia <strong>de</strong> alguàm era mais importante do que saber o seu<br />
primeiro nome. Afinal, à o sobrenome que diz tudo o que precisamos saber ─ a que<br />
casta a pessoa pertence, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem, quem eram seus antepassados, qual era a<br />
profissÇo <strong>de</strong>les e a histÑria da famÉlia, seu khandaan. 284<br />
Embora inconstitucional (segundo as novas leis da índia pÑs-in<strong>de</strong>pendÖncia) e<br />
exclu<strong>de</strong>nte (segundo os oci<strong>de</strong>ntais que observam <strong>de</strong> fora a cultura indiana), o sistema <strong>de</strong> casta<br />
ainda vigora nas regiâes mais tradicionais do paÉs, sustentado pela incontestável (para o<br />
hinduÉsta) crenÅa na reencarnaÅÇo: o nascimento <strong>de</strong> uma pessoa <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma casta à resultado<br />
do karma produzido em vidas passadas. O Consulado Geral da índia no Brasil explica:<br />
Na filosofia indiana a vida à um eterno retorno que gravita em ciclos concÖntricos<br />
terminando no seu centro, coisa que os iluminados atingem. Os percalÅos do caminho<br />
nÇo sÇo motivo <strong>de</strong> raiva, assim como os erros nÇo sÇo uma questÇo <strong>de</strong> pecado, mas<br />
sim uma questÇo <strong>de</strong> imaturida<strong>de</strong> da alma. O ciclo completo da vida <strong>de</strong>ve ser<br />
percorrido e a posiÅÇo da pessoa em cada vida à transitÑria. Essa hierarquia implica<br />
em que quanto mais alto se chega na escala, maiores sÇo as obrigaÅâes. A roda da vida<br />
cobra mais <strong>de</strong> quem à mais capaz. Um Brâmane, por exemplo, que à da casta superior,<br />
dos filÑsofos e educadores, tem uma vida <strong>de</strong>dicada aos estudos e tem obrigaÅâes com<br />
a socieda<strong>de</strong>. As outras castas sÇo: Kshatriya, administradores e soldados, Vaishya,<br />
comerciantes e pastores, e Sudras, artesÇos e trabalhadores braÅais. 285<br />
A obediÖncia hindu aos <strong>de</strong>sÉgnios <strong>de</strong> Brahma faz com que existam ainda hoje na índia,<br />
segundo o site da organizaÅÇo Dalit Awakening 286 , 300 milhâes <strong>de</strong> dálits, 60 milhâes <strong>de</strong>les<br />
284 UMRIGAR, 2005, pp. 38-39.<br />
285 CONSULADO GERAL DA íNDIA NO BRASIL, “Cultura e religiÇo”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 26 jul. 2009.<br />
286 DALIT AWAKENING, disponÉvel em: . Acesso em 26 jul. 2009.
explorados atravàs <strong>de</strong> trabalho forÅado, 66% <strong>de</strong>les analfabetos, sendo que as crianÅas dálits<br />
que frequentam a escola sÇo obrigadas a assistir a aula <strong>de</strong> costas ou do lado <strong>de</strong> fora da sala.<br />
ReligiÇo e tradiÅÇo reservam <strong>de</strong>licada condiÅÇo a outro segmento da socieda<strong>de</strong><br />
indiana: as mulheres. Embora no HinduÉsmo as mulheres tenham papel fundamental na<br />
transmissÇo e na manutenÅÇo dos costumes da religiÇo (cabe a elas passar as lendas hindus<br />
para as novas geraÅâes), e embora muitas sejam as divinda<strong>de</strong>s femininas (todos os <strong>de</strong>uses<br />
hindus tÖm a sua consorte, a contraparte feminina <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r), alguns costumes enraizados<br />
pela longa tradiÅÇo tÖm con<strong>de</strong>nado a mulher ä exclusÇo da vida social e polÉtica e, o que à<br />
pior, tÖm negado a ela a prÑpria vida.<br />
A reverÖncia ä mulher po<strong>de</strong> ser localizada nos mëltiplos significados da palavra<br />
sênscrita Shakti: o vocábulo, que <strong>de</strong>signa o ÑrgÇo sexual feminino, encerra, segundo os textos<br />
sagrados, o “princÉpio feminino que antece<strong>de</strong> e inclui o princÉpio masculino” (o princÉpio da<br />
Divinda<strong>de</strong> Suprema); sugere tambàm a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> forÅa inspiradora e, por isso, à associada ä<br />
Gran<strong>de</strong> MÇe (Devi); po<strong>de</strong> ser traduzida no HunduÉsmo como a “manifestaÅÇo do princÉpio<br />
criativo”; filosoficamente, tambàm aparece como “energia cÑsmica”, implicando “po<strong>de</strong>r,<br />
habilida<strong>de</strong>, capacida<strong>de</strong>, forÅa; proeza, ràgio po<strong>de</strong>r; po<strong>de</strong>r gerador; po<strong>de</strong>r poàtico;<br />
genialida<strong>de</strong>”; por fim, <strong>de</strong>signa o “espÉrito <strong>de</strong> uma esposa, ou o anjo guardiÇo, quem se encarna<br />
numa esposa terrena, numa dama ou prostituta, ou numa figura sobrenatural” 287 . DaÉ <strong>de</strong>rivam<br />
as fortes qualida<strong>de</strong>s esperadas <strong>de</strong> uma mulher indiana: modàstia, recato e humilda<strong>de</strong>. As<br />
lembranÅas <strong>de</strong> Tehmina, personagem central do romance A doçura do mundo, <strong>de</strong> Thrity<br />
Umrigar, dÇo testemunho do lugar da mulher na socieda<strong>de</strong> indiana:<br />
149<br />
Tehmina lembrou-se <strong>de</strong> todos os limites rigorosos impostos por sua mÇe: a mulher nÇo<br />
<strong>de</strong>via se olhar no espelho, para que os outros nÇo a julgassem fëtil; nunca <strong>de</strong>via<br />
reclamar <strong>de</strong> nada em sua vida, porque havia milhâes <strong>de</strong> pessoas em pior situaÅÇo;<br />
<strong>de</strong>via cobrir a boca ao rir, porque, <strong>de</strong> outro modo, os homens a consi<strong>de</strong>rariam<br />
promÉscua; <strong>de</strong>via contentar-se com o que Deus lhe <strong>de</strong>sse, porque esse era o seu<br />
<strong>de</strong>stino; nunca <strong>de</strong>via comer na rua, para nÇo <strong>de</strong>spertar a atenÅÇo e a inveja dos<br />
famintos a seu redor; nunca <strong>de</strong>via gabar-se <strong>de</strong> ter dinheiro, para nÇo provocar a inveja<br />
dos vizinhos. 288<br />
Tamanho recato, que prevÖ o uso do vàu diante <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong>sconhecidos e que<br />
impe<strong>de</strong> a mulher <strong>de</strong> andar <strong>de</strong>sacompanhada em lugares pëblicos e <strong>de</strong> manifestar-se em<br />
conversas sem ter sido convidada, tambàm impâe limitaÅâes ä vida conjugal, como nÇo<br />
pronunciar o nome do marido em pëblico e nÇo expor a intimida<strong>de</strong> do casal fora do quarto ─<br />
287 SOCIEDADE INTERNACIONAL GITA DO BRASIL. DsponÉvel em:<br />
. Acesso em 22 jul. 2009.<br />
288 UMRIGAR, 2008, p. 157.
o que significa nÇo dar <strong>de</strong>monstraÅâes pëblicas <strong>de</strong> carinho (como beijar ou andar <strong>de</strong> mÇos<br />
dadas). A aparente contradiÅÇo entre tal proibiÅÇo e a prática, muito comum entre indianos, <strong>de</strong><br />
realizar em pëblico outras ativida<strong>de</strong>s supostamente privadas, como limpar os ouvidos, escovar<br />
os <strong>de</strong>ntes e escarrar, chamou a atenÅÇo <strong>de</strong> Susan, a esposa americana do indiano Sorab, no<br />
mesmo romance <strong>de</strong> Umrigar:<br />
150<br />
Um paÉs inteiro em que as pessoas fazem amor quietinhas feito camundongos, mas<br />
gargarejam e pigarreiam feito tigres selvagens! Um paÉs em que nÇo se po<strong>de</strong> andar <strong>de</strong><br />
mÇos dadas com o prÑprio marido na rua, sem ser alvo <strong>de</strong> olhares severos, mas on<strong>de</strong> à<br />
possÉvel praticar os rituais mais Éntimos em pëblico! 289<br />
Embora a índia mo<strong>de</strong>rna possa oferecer alguns exemplos <strong>de</strong> exceÅÇo äs antigas regras<br />
que rigidamente governam a vida das mulheres (muitas avanÅam nos estudos, assumem<br />
cargos executivos, <strong>de</strong>stacam-se na polÉtica e conquistam visibilida<strong>de</strong> internacional), nÇo se<br />
po<strong>de</strong> negar que o forte respeito ä tradiÅÇo ainda <strong>de</strong>termina o casamento como o ënico<br />
horizonte possÉvel para as representantes do sexo feminino. ï neste contexto que a gran<strong>de</strong><br />
discriminaÅÇo contra as mulheres se materializa: na índia, a graÅa <strong>de</strong> ser aceita na famÉlia do<br />
noivo e <strong>de</strong> ganhar um novo lar <strong>de</strong>ve ser retribuÉda pela mulher com o pagamento <strong>de</strong> um dote<br />
aos familiares do futuro cònjuge. Tal prática, que remonta aos textos sagrados, tem<br />
<strong>de</strong>terminado uma sàrie <strong>de</strong> violÖncias contra a mulher. Segundo reportagem televisiva<br />
intitulada “La mujer en la Índia”, do programa “60 Minutos” 290 do Canal Sur 2, da Espanha,<br />
sendo consi<strong>de</strong>radas improdutivas e fonte <strong>de</strong> altos gastos com o pagamento <strong>de</strong> dotes, milhares<br />
<strong>de</strong> mulheres tÖm sido assassinadas por suas prÑprias famÉlias na esperanÅa <strong>de</strong> escapar das<br />
futuras <strong>de</strong>spesas do contrato matrimonial. Com isso, crescem assustadoramente as estatÉsticas<br />
<strong>de</strong> feticÉdio e <strong>de</strong> infanticÉdio feminino, tanto nas famÉlias pobres como nas ricas: nas<br />
primeiras, por motivos Ñbvios ─ o endividamento que resulta do pagamento do dote; nas<br />
segundas, para nÇo causar reduÅÇo no patrimònio. De tal modo os dados sÇo alarmantes que,<br />
na índia, a ultrassonografia com o objetivo <strong>de</strong> conhecer o sexo do bebÖ à proibida, o que nÇo<br />
impe<strong>de</strong> mesmo os mais pobres <strong>de</strong> recorrer a clÉnicas particulares, estabelecimentos que<br />
chegam oferecer, junto com o serviÅo <strong>de</strong> imagem, o aborto do feto. Paralelamente, cresce<br />
tambàm no paÉs o nëmero <strong>de</strong> meninas abandonadas por suas mÇes e avÑs apÑs o parto,<br />
costume que tem abarrotado os orfanatos, hoje já consi<strong>de</strong>rados casas <strong>de</strong> abrigo feminino.<br />
Segundo a reportagem, se tais práticas forem mantidas, atà 2025 haverá um dàficit <strong>de</strong> um<br />
289 UMRIGAR, 2008, p. 176.<br />
290 “La mujer en la India”. DisponÉvel em: . Acesso em 13 <strong>de</strong> set. 2009.
milhÇo <strong>de</strong> mulheres na socieda<strong>de</strong> indiana, problema que já comeÅa a afetar os jovens que nÇo<br />
encontram noivas para casar e que chegam atà a abrir mÇo do dote para nÇo ficarem solteiros.<br />
A escritora e especialista em índia Mira Kamdar confirma a tragàdia:<br />
151<br />
Na socieda<strong>de</strong> indiana tradicional, as mulheres sÇo consi<strong>de</strong>radas fardos para as<br />
famÉlias. As mulheres sÇo <strong>de</strong>stinadas ao casamento fora da famÉlia, com o qual passam<br />
a pertencer ä famÉlia <strong>de</strong> outra pessoa.<br />
[...] Frequentemente, à preciso reunir gran<strong>de</strong>s dotes quando as moÅas se casam, dotes<br />
que po<strong>de</strong>m seriamente endividar as famÉlias. [...] O patriarcado indiano <strong>de</strong>termina que<br />
se po<strong>de</strong> contar apenas com os filhos para prover assistÖncia aos pais idosos numa<br />
socieda<strong>de</strong> que nÇo dispâe <strong>de</strong> sistema <strong>de</strong> previdÖncia social.<br />
Matar bebÖs do sexo feminino à um costume antigo na índia. [...] De modo geral, o<br />
infanticÉdio feminino à praticado por pessoas pobres a ponto <strong>de</strong> se sentirem incapazes<br />
<strong>de</strong> criar uma menina, que apenas tomará <strong>de</strong>les, sem nunca lhes dar nada em troca. O<br />
feticÉdio feminino, a prática <strong>de</strong> abortar fetos do sexo feminino, à a visÇo mo<strong>de</strong>rna<br />
<strong>de</strong>ste flagelo. 291<br />
Assim como o drama das mulheres tem raÉzes muito antigas nos costumes indianos,<br />
tudo o mais resulta <strong>de</strong>ssa curiosa coexistÖncia <strong>de</strong> àpocas distantes. GraÅas ä sua experiÖncia<br />
circular da vida, os indianos tÖm uma visÇo peculiar do tempo, atravàs da qual passado e<br />
presente se dobram numa convivÖncia simultênea que atravessa todas as eras. Assim à que os<br />
adjetivos “atrasado” e “prÑspero” sÇo usados lado a lado para qualificar o paÉs. O Consulado<br />
no Brasil apresenta a índia como “um paÉs mÉstico, com cheiro <strong>de</strong> insenso e cheio <strong>de</strong><br />
guirlandas e santos vagando pelas ruas” que convive em harmonia com “um povo<br />
extremamente progressista, que gosta da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” 292 . Curiosamente, o dàcimo paÉs<br />
industrializado do mundo, auto-suficiente em produÅÇo agrÉcola e exportador <strong>de</strong> tecnologia <strong>de</strong><br />
informaÅÇo amarga a presenÅa <strong>de</strong> 40% da pobreza do mundo em seu territÑrio 293 . Nas<br />
palavras <strong>de</strong> Kamdar, a índia à um paÉs em <strong>de</strong>senvolvimento que “se divi<strong>de</strong> entre uma<br />
minëscula minoria rica, uma classe màdia ascen<strong>de</strong>nte e oitocentos milhâes <strong>de</strong> pessoas que<br />
vivem com menos <strong>de</strong> dois dÑlares por dia” 294 .<br />
A coexistÖncia <strong>de</strong> contrastes tÇo violentos à um <strong>de</strong>safio para o olhar oci<strong>de</strong>ntal. A<br />
diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lÉnguas, hábitos e modo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>sperta a curiosida<strong>de</strong> e intriga: autores locais<br />
e estrangeiros sÇo unênimes em afirmar que, apesar da gran<strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong>, há uma gran<strong>de</strong><br />
unida<strong>de</strong> na cultura do paÉs. O sentimento <strong>de</strong> amor ä naÅÇo e o orgulho <strong>de</strong> sua civilizaÅÇo<br />
ancestral, assim como a tolerência religiosa, explicariam tal unida<strong>de</strong>, sugere o Consulado. A<br />
291 KAMDAR, 2008, pp. 301-302.<br />
292 CONSULADO GERAL DA íNDIA, “Cinema e arte”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 12 jul. 2009.<br />
293 KAMDAR, op. cit., p. 31.<br />
294 Ibi<strong>de</strong>m, p. 18.
profusÇo <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses adorados por diferentes segmentos da socieda<strong>de</strong> teria acostumado os<br />
indianos a conviver com a diversida<strong>de</strong>. A maciÅa presenÅa do HinduÉsmo (Hindu Dharma) no<br />
paÉs, no entanto, nÇo impe<strong>de</strong> que conflitos religiosos manchem <strong>de</strong> intolerência a imagem <strong>de</strong><br />
harmonia que a índia insiste em divulgar para o mundo. Pelo contrário: o <strong>de</strong>sequilÉbrio entre o<br />
elevado nëmero <strong>de</strong> seguidores do HinduÉsmo e as bem menos expressivas parcelas <strong>de</strong> islêmicos,<br />
cristÇos e budistas resulta invariavelmente na discriminaÅÇo das minorias e nÇo raro <strong>de</strong>riva em<br />
hostilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parte a parte. Consi<strong>de</strong>rado uma filosofia que trata <strong>de</strong> todos os aspectos da vida<br />
humana (espiritual, social, moral, cultural, econòmica, intelectual etc), o Hindu Dharma se<br />
prevalece da condiÅÇo <strong>de</strong> ser uma religiÇo tÇo antiga quanto a civilizaÅÇo da índia e <strong>de</strong><br />
contabilizar entre seus seguidores mais <strong>de</strong> 80% da numerosÉssima populaÅÇo do paÉs.<br />
A literatura está cheia <strong>de</strong> referÖncias a essa assimetria religiosa. Sorab, personagem<br />
filho <strong>de</strong> famÉlia parse 295 em A doçura do mundo, protesta contra a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer da índia um<br />
“HindustÇo”: “Eles querem que o paÉs inteiro seja uma naÅÇo hindu fundamentalista, e estÇo<br />
reescrevendo os livros <strong>de</strong> histÑria para glorificar a maioria hindu”. Para esta maioria, segundo<br />
Sorab, “ï como se os muÅulmanos, os parses e os catÑlicos simplesmente nÇo existissem” 296 .<br />
A hostilida<strong>de</strong> contra os muÅulmanos está <strong>de</strong>scrita ainda na passagem em que Rustom, pai <strong>de</strong><br />
Sorab, dá abrigo ä famÉlia <strong>de</strong> seu vizinho, um arquiteto muÅulmano, que “andava aterrorizado<br />
com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que um bando <strong>de</strong> hindus invadisse sua casa”. Diante da sugestÇo da esposa <strong>de</strong><br />
que os vizinhos fizessem como “inëmeros muÅulmanos” que “já saÉram <strong>de</strong> Bombaim”,<br />
Rustom se zanga:<br />
152<br />
E como vocÖ acha que eles po<strong>de</strong>m sair da cida<strong>de</strong>, com esses bandos <strong>de</strong> hindus<br />
rondando as ruas, procurando muÅulmanos para matar? E, que diabo, por que eles<br />
<strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>ixar Bombaim, afinal? Aqui à a casa <strong>de</strong>les. 297<br />
A ameaÅa contra a os vizinhos muÅulmanos (“a famÉlia <strong>de</strong> comedores <strong>de</strong> carne”) se<br />
materializa na insinuaÅÇo do sem-teto hindu que vivia do outro lado da rua, em frente ä casa<br />
<strong>de</strong> Rustom: “Os irmÇos hindus andam zangados, seth. Dizem que vÇo incendiar qualquer<br />
apartamento que dÖ guarida a esses cÇes muÅulmanos” 298 .<br />
Sendo Umrigar, ela prÑpria, uma parse, a dor das minorias, quer religiosas quer<br />
econòmicas, nÇo lhe à indiferente em seus romances. Muitas sÇo as cenas que <strong>de</strong>screvem a<br />
295 Os parses sÇo uma minoria àtnica que vive na índia, originários do IrÇ, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> fugiram no sàculo VIII para<br />
escapar da intolerência islêmica.<br />
296 UMRIGAR, 2008, p. 83.<br />
297 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
298 Ibi<strong>de</strong>m, p. 132.
vida na Bombaim/Mumbai “<strong>de</strong>sgastada e <strong>de</strong>cràpita” 299 , “suja e imunda”, a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> “os<br />
ònibus enguiÅam e a eletricida<strong>de</strong> nÇo funciona” 300 , on<strong>de</strong> se respira “o ar mais fàtido”, on<strong>de</strong> se<br />
misturam “os milionários, os leprosos, as joalherias, as colònias <strong>de</strong> favelados” 301 , on<strong>de</strong> se<br />
come em “barracas <strong>de</strong> beira <strong>de</strong> estrada” nas quais os pratos sÇo lavados “numa água marrom<br />
feito lama” 302 . Outras tantas falam da precarieda<strong>de</strong> da vida na favela. Em A distância entre<br />
nós, a autora mostra a empregada domàstica Bhima, entre resignada e <strong>de</strong>sesperanÅada, diante<br />
da basti (favela) on<strong>de</strong> mora. O cenário diante si justifica sua relutência em voltar para “casa”:<br />
sÇo “pobres casebres” sem privacida<strong>de</strong> ou água corrente, “barracos <strong>de</strong>salinhados com seus<br />
tetos remendados <strong>de</strong> placas <strong>de</strong> zinco” 303 , “uma estrutura <strong>de</strong> lata e papelÇo”, “precária e<br />
<strong>de</strong>smantelada, mais parecendo um ninho <strong>de</strong> um pássaro gigante feito por um bando <strong>de</strong> corvos<br />
bÖbados do que um local on<strong>de</strong> seres humanos habitam” 304 . A pobreza e a precarieda<strong>de</strong> da<br />
moradia nÇo se comparam ao constrangimento e ä promiscuida<strong>de</strong> dos banheiros comunitários<br />
da favela, locais cheios <strong>de</strong> “mosca e fedor” graÅas äs “valas a càu aberto”. A gran<strong>de</strong><br />
rotativida<strong>de</strong> nas pequenas cabines comunitárias sem esgoto ren<strong>de</strong> diariamente a mesma e<br />
miserável constataÅÇo: “Algumas horas mais tar<strong>de</strong>, vai haver pouco espaÅo para andar por<br />
entre as consi<strong>de</strong>ráveis pilhas <strong>de</strong> excrementos que os moradores da favela <strong>de</strong>ixam no chÇo <strong>de</strong><br />
barro do banheiro comunitário” 305 .<br />
Se as várias <strong>de</strong>scriÅâes <strong>de</strong> Bombaim/Mumbai pintam um quadro <strong>de</strong> cores fortes e<br />
contrastantes, as imagens que chegam <strong>de</strong> Jaipur trazem o pigmento cor-<strong>de</strong>-rosa da<br />
hospitalida<strong>de</strong>. A cida<strong>de</strong> que, por <strong>de</strong>terminaÅÇo <strong>de</strong> um marajá, se pintou <strong>de</strong> rosa para receber<br />
em 1876 o prÉncipe <strong>de</strong> Gales Edward VII ainda guarda os ares da àpoca em que era a capital<br />
da realeza, transpira sua heranÅa cultural em monumentos, templos, fortalezas e jardins, e<br />
ostenta sua vocaÅÇo para o turismo e o comàrcio. De sua visita ä cida<strong>de</strong> em 1953, CecÉlia<br />
Meireles fez poesia 306 , exaltando em versos saudosos, os mais encantadores traÅos <strong>de</strong>ssa<br />
cida<strong>de</strong> bicentenária, testemunha do passado no presente, passarela <strong>de</strong> elefantes em procissÇo,<br />
palco <strong>de</strong> festivais que celebram a tradiÅÇo, centro urbano planejado, situado entre o <strong>de</strong>serto e a<br />
capital indiana Delhi:<br />
299 UMRIGAR, 2008, p. 96.<br />
300 Ibi<strong>de</strong>m, p. 80.<br />
301 Ibi<strong>de</strong>m, p. 84.<br />
302 UMRIGAR, 2008, p. 94.<br />
303 UNRIGAR, 2006, p. 16.<br />
304 Ibi<strong>de</strong>m, p. 46.<br />
305 Ibi<strong>de</strong>m, p. 16.<br />
306 Precisamente 59 poemas compâem a seÅÇo “Poemas escritos na índia”, publicada em 1976 no volume III <strong>de</strong><br />
Poesias Completas <strong>de</strong> Cecília Meireles, pp. 35-94.<br />
153
A<strong>de</strong>us, Jaipur.<br />
A<strong>de</strong>us, casas cor-<strong>de</strong>-rosa com ramos brancos,<br />
pÑrticos, peixes azuis nos arcos <strong>de</strong> entrada.<br />
A<strong>de</strong>us, elefante <strong>de</strong> lÉngua rÑsea.<br />
vestuto irmÇo,<br />
comedor <strong>de</strong> aÅëcar<br />
anciÇo paciente.<br />
A<strong>de</strong>us, Jaipur, e espelhos <strong>de</strong> Amber Palace,<br />
jardins extintos, gra<strong>de</strong>s redondas,<br />
mortos olhos que espiavam por essas rendas <strong>de</strong> mármore.<br />
A<strong>de</strong>us, cortejos dourados, mësica <strong>de</strong> casamentos,<br />
festa bailada e cintilante das ruas, e trinados <strong>de</strong> flauta.<br />
A<strong>de</strong>us, sacerdote <strong>de</strong> can<strong>de</strong>ia fumosa,<br />
tantas luzes por tantos bicos,<br />
e os gongos e os sinos e a porta <strong>de</strong> prata<br />
e a Deusa antiga,<br />
e a existÖncia fora do tempo.<br />
A<strong>de</strong>us, pinturas, corredores, mirantes,<br />
muralhas, escadas <strong>de</strong> castelo, mendigos lá embaixo,<br />
criancinhas que pe<strong>de</strong>m esmola como quem canta.<br />
A<strong>de</strong>us, Jaipur.<br />
A<strong>de</strong>us letras do observatÑrio,<br />
pulseiras <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> mulheres que ven<strong>de</strong>m tangerinas<br />
pelo crepësculo.<br />
A<strong>de</strong>us, fogareiros <strong>de</strong> almòn<strong>de</strong>gas,<br />
a<strong>de</strong>us, tar<strong>de</strong> morna <strong>de</strong> erva-doce, canela e rosa,<br />
cravo, pistache, aÅafrÇo.<br />
A<strong>de</strong>us, cores.<br />
A<strong>de</strong>us, Jaipur, sandálias, vàus,<br />
macio vento <strong>de</strong> marfim.<br />
A<strong>de</strong>us, astrÑlogo.<br />
Muitos <strong>de</strong>uses sobre o Palácio <strong>de</strong> Vento.<br />
(On<strong>de</strong> eu <strong>de</strong>via morar!)<br />
Sobre o Palácio <strong>de</strong> Vento meus a<strong>de</strong>uses: pombos esvoaÅantes.<br />
Meus a<strong>de</strong>uses: rouxinÑis cantores.<br />
Meus a<strong>de</strong>uses: nuvens <strong>de</strong>senroladas.<br />
Meus a<strong>de</strong>uses: luas, sÑis, estrelas cometas mirando-te.<br />
Mirando-te e partindo.<br />
Jaipur, Jaipur. 307<br />
“Jaipur à o reservatÑrio dos costumes, tradiÅâes, civilizaÅÇo e heranÅa da índia”, diz o<br />
site inglÖs <strong>de</strong> turismo da cida<strong>de</strong> 308 . A página eletrònica da agÖncia <strong>de</strong> viagens Rahasthan<br />
Voyage que oferece passeios com o sugestivo nome <strong>de</strong> Passion Tour apresenta Jaipur como<br />
“um labirinto <strong>de</strong> fascinantes bazares, suntuosos palácios e locais histÑricos”, um lugar on<strong>de</strong><br />
“tradiÅÇo e mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> coexistem”: “as ruas vibram com camelos e motorizadas e homens<br />
307 MEIRELES, 1976, vol. III, pp.82-83.<br />
308 “Jaipur, the pink city”, disponÉvel em: . Acesso em 15 nov. 2009.<br />
154
<strong>de</strong> turbante cruzam-se com jovens <strong>de</strong> jeans” 309 . Em seu blog, Giovana Manfredi, pesquisadora<br />
da TV Globo enviada <strong>de</strong> Gloria Perez ä índia para conhecer a atmosfera do paÉs, afirma que<br />
“Jaipur à uma cida<strong>de</strong> para se viver um gran<strong>de</strong> amor”: “Marajás, princesas, palácios, tudo<br />
aquilo que nossos pais contavam ao pà do ouvido, ä beira do sono, e que <strong>de</strong> certa forma<br />
moldaram nossa concepÅÇo <strong>de</strong> amor” 310 . Jaipur, assim como muitas cida<strong>de</strong>s do RajastÇo,<br />
resume a índia do imaginário popular: dos marajás, dos turbantes e dos sáris; dos palácios<br />
suntuosos e dos fortes impenetráveis.<br />
Mumbai e Jaipur retratam bem as diversida<strong>de</strong>s experimentadas na índia: na primeira, o<br />
caos permanente e o contraste entre pobreza e riqueza; na segunda, o encantamento estàtico e<br />
a serenida<strong>de</strong> resultante do equilÉbrio harmònico entre o passado dos marajás e o presente dos<br />
mercados cosmopolitas. Fora das telas, nas narrativas jornalÉsticas, literárias e institucionais, o<br />
paÉs se mostra igualmente equipado para protagonizar gran<strong>de</strong>s tragàdias e fascinantes contos<br />
<strong>de</strong> fada. A mais fantástica ficÅÇo nÇo <strong>de</strong>ixará nada a <strong>de</strong>ver ä realida<strong>de</strong> da índia 311 .<br />
7.5 A VIDA INDIANA NA FICóîO<br />
Muitos sÇo os aspectos da vida indiana presentes nas narrativas ficcionais <strong>de</strong> “Quem<br />
quer ser um milionário?” e “Caminho das índias”. ImpossÉvel ignorar, neste estudo<br />
comparativo, os diferentes registros nos quais as questâes sociais, religiosas, culturais e <strong>de</strong><br />
gÖnero sÇo abordadas no filme e na telenovela.<br />
Em “Quem quer ser um milionário?”, a vida do indiano à recortada pelo viàs da<br />
pobreza da favela: trata-se da realida<strong>de</strong> do favelado Jamal em sua luta contra as adversida<strong>de</strong>s<br />
resultantes <strong>de</strong> sua condiÅÇo social. A sujeira, a escuridÇo, as roupas maltrapilhas, a exploraÅÇo<br />
da mendicência, os pequenos <strong>de</strong>litos, a esperteza, a situaÅÇo subalterna no trabalho ─ ao<br />
lanÅar luz sobre os milhâes <strong>de</strong> indigentes <strong>de</strong> uma índia sub<strong>de</strong>senvolvida, o filme mostra a<br />
cruelda<strong>de</strong> da exclusÇo e da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que mancha <strong>de</strong> vergonha a face <strong>de</strong> uma índia a<br />
caminho <strong>de</strong> sua consagraÅÇo como potencia mundial.<br />
Jamal sente na pele nÇo sÑ a discriminaÅÇo social e o peso <strong>de</strong> seu passado <strong>de</strong> favelado<br />
que o con<strong>de</strong>nam a uma vida sem instruÅÇo, sem possibilida<strong>de</strong>s, sem futuro: contra ele pesa<br />
309<br />
“Jaipur”, disponÉvel em: . Acesso em 15<br />
nov. 2009.<br />
310<br />
MANFREDI, “Jaipur”, disponÉvel em: . Acesso em 3 set. 2009.<br />
311<br />
Para conhecer os diversos êngulos da realida<strong>de</strong> indiana em imagens e crònicas inspiradas, vi<strong>de</strong> o blog da<br />
jornalista Cora RÑnai “InternETC” que traz o diário <strong>de</strong> bordo <strong>de</strong> sua recente viagem ä índia. DisponÉvel em:<br />
.<br />
155
tambàm o fato <strong>de</strong> ser muÅulmano num paÉs <strong>de</strong> maioria hindu. Como ele po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
saber o que Rama traz em sua mÇo direita, terceira pergunta do game show, justamente aquela<br />
cuja resposta lhe traz tÇo dolorosas lembranÅas? “Rama e Alá... Se nÇo fosse por isso, eu teria<br />
mÇe”, comenta Jamal diante do investigador <strong>de</strong> polÉcia, lembrando a perseguiÅÇo dos hindus<br />
aos muÅulmanos da favela, o fogo ateado contra os barracos e o violento golpe que tira a vida<br />
<strong>de</strong> sua mÇe. Em sua errência <strong>de</strong> perseguido, Jamal foi tambàm privado da escola: foi forÅado a<br />
abandonar a sala <strong>de</strong> aula apinhada <strong>de</strong> crianÅas e a trocar o professor que lhe atirava livros na<br />
cabeÅa pelos ensinamentos das ruas. Com isso, viu apagar-se diante <strong>de</strong> seus olhos a lamparina<br />
que <strong>de</strong>ve iluminar os caminhos dos indianos: importante sÉmbolo da cultura hindu, ela<br />
representa o valor atribuÉdo ä “aquisiÅÇo <strong>de</strong> conhecimento” e ä “remoÅÇo da ignorência”.<br />
Apesar <strong>de</strong> todas as adversida<strong>de</strong>s, o menino favelado, ÑrfÇo e irmÇo <strong>de</strong> um agente do crime<br />
organizado sobrevive como uma flor <strong>de</strong> lÑtus, outro sÉmbolo forte para os indianos: cresce<br />
bela e vigorosa, mesmo tendo brotado em água pantanosa. Destino semelhante ao da prÑpria<br />
índia, que <strong>de</strong>sponta como po<strong>de</strong>rosa potÖncia econòmica mesmo <strong>de</strong>ixando atrás <strong>de</strong> si um rastro<br />
<strong>de</strong> misària, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e injustiÅa social.<br />
Diferentemente <strong>de</strong> Jamal, que vive uma índia distante <strong>de</strong> seus rituais mais tradicionais,<br />
em “Caminho das índias”, o indiano à representado como um ser apegado aos costumes.<br />
Embora convivam com a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tecnolÑgica, as personagens do nëcleo indiano da<br />
telenovela respiram espiritualida<strong>de</strong> e pautam sua vida segundo os ensinamentos da tradiÅÇo.<br />
Aqui, a realida<strong>de</strong> indiana à recortada pelo viàs do hinduÉsmo, tendo como foco as classes<br />
sociais mais privilegiadas.<br />
As aÅâes pessoais, as <strong>de</strong>cisâes <strong>de</strong> trabalho, os projetos <strong>de</strong> vida e a percepÅÇo do<br />
mundo sÇo conduzidos pelos ensinamentos religiosos milenares e pela aceitaÅÇo do lugar que<br />
cada um ocupa no sistema <strong>de</strong> castas. Poucos questionam o que está escrito “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o comeÅo<br />
dos tempos”. ExceÅÇo feita a Bahuam, que luta para conquistar riqueza na esperanÅa <strong>de</strong> se<br />
livrar das humilhaÅâes da intocabilida<strong>de</strong>; ä dálit Puja, que se mostra indignada com sua<br />
con<strong>de</strong>naÅÇo ao invisÉvel universo dos párias; e ao sábio Shamkar, que por sua imensa<br />
sabedoria vai alàm da palavra morta dos <strong>de</strong>uses para advogar que Deus está em cada um dos<br />
seres. Maya, inicialmente movida pelo amor a Bahuam e <strong>de</strong>pois pela condiÅÇo <strong>de</strong> mÇe <strong>de</strong> uma<br />
crianÅa dálit, mostra-se dëbia com relaÅÇo ä igualda<strong>de</strong> reivindicada pelos intocáveis: nÇo se<br />
sente impura pela intimida<strong>de</strong> com o amado nem com a maternida<strong>de</strong>, no entanto nÇo<br />
<strong>de</strong>monstra a mesma naturalida<strong>de</strong> diante dos outros sem-casta da novela. As crianÅas Anusha e<br />
Lalit, em sua ingenuida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sconhecimento da complexida<strong>de</strong> dos costumes, nÇo enten<strong>de</strong>m o<br />
156
que torna os dálits impuros nem o que <strong>de</strong> fato impe<strong>de</strong> o amor <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las por Hari, o neto<br />
<strong>de</strong> Puja. A questÇo aqui nÇo à social, à religiosa.<br />
Tanto Shamkar quanto as famÉlias <strong>de</strong> comerciantes parecem <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> boa condiÅÇo<br />
social: casa espaÅosa, comida farta e disponibilida<strong>de</strong> financeira para manter filhos estudando<br />
no exterior. O contraste entre essa elite e os dálits nÇo à <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estritamente econòmica ou<br />
social; à <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m religiosa. Muito embora na índia existam intocáveis ricos e influentes, na<br />
telenovela eles sÇo sempre meros varredores <strong>de</strong> ruas e limpadores <strong>de</strong> latrinas, moradores <strong>de</strong><br />
barracos, sem direito a tocar numa pessoa <strong>de</strong> casta ou mesmo permitir que sua sombra o faÅa.<br />
Fora isso, todos os outros conflitos giram em torno <strong>de</strong> questâes culturais: preconceito contra<br />
estrangeiros (sobretudo estrangeiras), restriÅâes ä mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> (que leva as famÉlias a<br />
permitir que seus filhos busquem instruÅÇo fora do paÉs, que faz com que moÅas jovens nÇo<br />
tenham o casamento como horizonte <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, que substitui o livro-caixa <strong>de</strong> uma empresa<br />
por um sistema virtual e remoto <strong>de</strong> contabilida<strong>de</strong>), e <strong>de</strong>srespeito aos costumes (<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer<br />
aos mais velhos, casar sem o consentimento dos pais, contradizer a vonta<strong>de</strong> dos astros).<br />
Nesse sentido, “Caminho das índias” apresenta o indiano tradicional, seus hábitos,<br />
seus trajes tÉpicos, sua relaÅÇo com os alimentos, seu compromisso com as festas, seu gosto<br />
pela mësica e pela danÅa, seu respeito aos <strong>de</strong>uses, sua tarefa <strong>de</strong> passar äs novas geraÅâes os<br />
costumes religiosos, seu modo <strong>de</strong> ver o mundo, a humanida<strong>de</strong>, a famÉlia, o amor, o<br />
casamento, o trabalho e a morte. Sáris coloridos, kurtas elegantes, jÑias em profusÇo,<br />
turbantes festivos, vàus, incensos, velas, guirlandas, oferendas, <strong>de</strong>uses, gurus, sacerdotes,<br />
casamento arranjado, dote, matrimònio infantil, maldiÅâes e sinais auspiciosos ─ toda a índia<br />
do imaginário popular à reverenciada na telenovela. A índia das cores vibrantes, da<br />
arquitetura palaciana e rendilhada; a índia mÉstica e suas lamparinas, superstiÅâes,<br />
horÑscopos, vacas sagradas, templos e oraÅâes; a índia sedutora, misteriosa e espiritual; a<br />
índia urbana, com seu comàrcio e seu trênsito caÑtico; a índia dos vilarejos on<strong>de</strong> circulam<br />
elefantes e camelos; a índia turÉstica com seus monumentos, festivais, feiras e mercados<br />
tÉpicos ─ sÑ mesmo as favelas e os arranha-càus <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?” nÇo tÖm<br />
lugar em “Caminho das índias”.<br />
Filme e telenovela ficam novamente em lados opostos quando a mulher ganha a cena.<br />
Latika, menina <strong>de</strong> rua (possivelmente abandonada pela mÇe <strong>de</strong>pois do parto) que cativa <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o primeiro momento o coraÅÇo <strong>de</strong> Jamal, sÑ à vista como indiana tÉpica, em sáris e adornos<br />
por todo o corpo, quando o explorador <strong>de</strong> menores a interna num prostÉbulo sob o codinome<br />
<strong>de</strong> Cherry para apren<strong>de</strong>r a arte da seduÅÇo. Lá, à vista danÅando o ritmo mais popular da<br />
índia. Lá, à a virgem valiosa apren<strong>de</strong>ndo a ser a indiana dos sonhos erÑticos masculinos. SÑ<br />
157
ao final do filme, quando aguarda por Jamal na estaÅÇo <strong>de</strong> trem, Latika volta a usar o vàu:<br />
para diferenciar da prostituta <strong>de</strong> outrora, combina calÅa comprida, tënica bordada e ombros ä<br />
mostra. Na telenovela, o traje que serviu para compor a garota <strong>de</strong> programa inci<strong>de</strong>ntal Latika<br />
veste as indianas castas em seu rÉgido cÑdigo <strong>de</strong> vestimenta. As mulheres <strong>de</strong> “Caminhos das<br />
índias” cobrem o cabelo diante <strong>de</strong> outros homens. Seus ombros estÇo sempre ocultos sob os<br />
coloridos sáris. SÑ saem <strong>de</strong> casa acompanhadas e <strong>de</strong>votam obediÖncia a seus pais, ao cònjuge<br />
e ä famÉlia do marido. Ainda jovens, foram oferecidas em casamento arranjado entre famÉlias.<br />
Seus pais pagaram dotes; nÇo chegaram a amaldiÅoar suas filhas pela <strong>de</strong>spesa, mas<br />
reclamaram do rombo que o “agrado” causou em seu patrimònio e tentaram poupar suas<br />
rëpias na negociaÅÇo. Isso vale tanto para as famÉlias dos comerciantes abastados como para a<br />
famÉlia <strong>de</strong> Gopal, indiano que à forÅado a abandonar mulher e filha na índia em busca <strong>de</strong><br />
salários mais altos como motorista <strong>de</strong> taxi em Dubai ─ tanto esforÅo sÑ para garantir o futuro<br />
dote <strong>de</strong> sua pequena Lalit.<br />
Mais caseiras e <strong>de</strong>dicadas ao marido, ä famÉlia e äs panelas, as mulheres ficam<br />
expostas ä critica da rÉgida matriarca quando “arrastam seus sáris pelo mercado”. Embora<br />
houvesse trabalhado fora e nÇo fosse mais virgem quando se casou, Maya nÇo se mostrou<br />
resistente a <strong>de</strong>ixar o emprego, ostentou com orgulho os sinais <strong>de</strong> mulher casada e viveu<br />
atormentada pela ameaÅa que os severos costumes indianos representavam para uma moÅa <strong>de</strong><br />
famÉlia como ela, grávida <strong>de</strong> um filho fora do casamento ─ e, ainda por cima, um filho dálit.<br />
Surya, a cunhada, invejosa da condiÅÇo <strong>de</strong> Maya enquanto mÇe <strong>de</strong> menino em sua primeira<br />
gravi<strong>de</strong>z, amaldiÅoava os <strong>de</strong>uses por sÑ lhe darem filha menina, con<strong>de</strong>nando-a ao <strong>de</strong>sprestÉgio<br />
e ä discriminaÅÇo <strong>de</strong>ntro da famÉlia. Na tentativa <strong>de</strong> merecer melhor tratamento na casa <strong>de</strong> seu<br />
marido, forja uma gravi<strong>de</strong>z contratando a barriga <strong>de</strong> aluguel <strong>de</strong> uma mulher <strong>de</strong> casta inferior,<br />
mÇe <strong>de</strong> muitos meninos. A educaÅÇo dispensada a sua filha Anusha, ainda em fase <strong>de</strong><br />
alfabetizaÅÇo, limitava-se a fornecer-lhe os ensinamentos necessários a uma boa noiva: o<br />
conhecimento dos costumes, o domÉnio dos temperos e a danÅa como arte da seduÅÇo. Shanti,<br />
a jovem que sonhava com uma pÑs-graduaÅÇo no exterior, era recriminada pela avÑ por<br />
escolher um caminho que a afastava do casamento: “uma mulher nÇo <strong>de</strong>ve saber mais que seu<br />
marido”, repetia a velha Láksmi. Os <strong>de</strong>scaminhos dos filhos eram sempre creditados ä<br />
incompetÖncia das mÇes: “foi vocÖ que nÇo ensinou nada a eles!”, acusavam maridos e sogras.<br />
Pelo uso <strong>de</strong> roupas tÉpicas, pelo talento <strong>de</strong> danÅarinas, pela <strong>de</strong>dicaÅÇo ä famÉlia, pelo sonho <strong>de</strong><br />
dar ao marido um filho homem e pelo comportamento recatado em pëblico, as mulheres <strong>de</strong><br />
“Caminho das índias” nÇo apenas evocaram o imaginário coletivo sobre as indianas, como<br />
tocaram muito proximamente a realida<strong>de</strong> das mulheres <strong>de</strong> ontem e <strong>de</strong> hoje na índia.<br />
158
7.6 DUAS ESTïTICAS PARA A íNDIA<br />
DifÉcil falar da índia sem ser contaminado pelo fortÉssimo imaginário estàtico<br />
oferecido por Bollywood, a Hollywood da antiga Bombaim, a gigantesca indëstria<br />
cinematográfica situada em Mumbai, responsável pelo lanÅamento <strong>de</strong> “quase mil filmes por<br />
ano e por cerca <strong>de</strong> 4 bilhâes <strong>de</strong> ingressos vendidos” 312 . Esta “fantástica fábrica <strong>de</strong> sonhos” que<br />
“viaja na contramÇo do gosto oci<strong>de</strong>ntal” 313 , à responsável pela criaÅÇo e divulgaÅÇo <strong>de</strong> uma<br />
“linguagem cinematográfica ënica e original, sem paralelos no resto do mundo” 314 .<br />
A originalida<strong>de</strong> dos filmes <strong>de</strong> Bollywood está na combinaÅÇo <strong>de</strong> “canto, danÅa e<br />
melodrama” 315 , em roteiros aparentemente inconsequentes, mas cheios <strong>de</strong> forte conteëdo<br />
social, histÑrias que <strong>de</strong>moram cerca <strong>de</strong> trÖs horas para serem contadas. Segundo Cora RÑnai,<br />
entusiasta da estàtica bollywoodiana,<br />
159<br />
“Realismo” e “Bollywood” sÇo palavras que nÇo po<strong>de</strong>m ser usadas na mesma frase – e<br />
nem precisam. Os filmes <strong>de</strong> Mumbai preocupam-se, sobretudo, em agradar ä platàia,<br />
cuja i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um bom espetáculo à bastante filme, momentos <strong>de</strong> alegria e tristeza,<br />
danÅa e canto ä vonta<strong>de</strong>. Nem à necessário que os atores cantem; para que o fariam, se<br />
há cantores que dÇo conta do recado melhor? De modo que, para os nossos ouvidos<br />
oci<strong>de</strong>ntais, há um choque inicial quando o ator que acabamos <strong>de</strong> ouvir num diálogo<br />
abre a boca e comeÅa a cantar com voz totalmente diferente; mas logo nos<br />
acostumamos, atà porque, em muitos casos, a mësica à o ponto alto dos filmes. Dois<br />
<strong>de</strong>talhes que me chamam a atenÅÇo: como os trajes tradicionais convivem com roupas<br />
oci<strong>de</strong>ntais, atà nas mesmas cenas, e como o inglÖs à tranquilamente misturado ao<br />
hÉndi. Tudo à muito famÉlia e muito romêntico: nÇo há cenas <strong>de</strong> nu<strong>de</strong>z, sexo ou<br />
violÖncia explÉcitos. 316<br />
Embora já existam hoje na índia filmes mais sofisticados e prÑximos da estàtica<br />
oci<strong>de</strong>ntal, ainda prevalece, pela forte <strong>de</strong>manda do pëblico, o tradicional estilo <strong>de</strong> fazer<br />
cinema, on<strong>de</strong> nÇo po<strong>de</strong>m faltar “Amores impossÉveis, triêngulos amorosos, laÅos familiares,<br />
sacrifÉcio, polÉticos corruptos, vilâes terrÉveis, irmÇos separados pelo <strong>de</strong>stino e mudanÅas <strong>de</strong><br />
sorte dramáticas” 317 .<br />
Exagerada, cafona, excessivamente musical. Como diz RÑnai, a estàtica <strong>de</strong> Bollywood<br />
aos olhos do Oci<strong>de</strong>nte acostumado com Hollywood resulta numa experiÖncia cinematográfica<br />
312 Texto <strong>de</strong> divulgaÅÇo <strong>de</strong> curso ministrado por Cora RÑnai sobre Bollywood na Casa do Saber, em setembro <strong>de</strong> 2009.<br />
313 Texto <strong>de</strong> divulgaÅÇo <strong>de</strong> curso ministrado por Cora RÑnai sobre Bollywood na Casa do Saber, em setembro <strong>de</strong> 2009.<br />
314 RONAI, disponÉvel em:<br />
.<br />
DisponÉvel em 22/01/2009. Acesso em 15 nov. 2009.<br />
315 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
316 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
317 “O mundo do cinema à aqui”, ConexÇo índia. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 nov. 2009.
completamente nova que exige superaÅÇo da estranheza inicial. SÑ entÇo, orienta a jornalista,<br />
“abre-se ä nossa frente uma janela para um universo em permanente encanto, tÇo rico em<br />
contrastes quanto em sons e cores” 318 . A experiÖncia da índia pelos filmes <strong>de</strong> Bollywood<br />
produz um encontro verda<strong>de</strong>iro com a cultura nacional, já que o cinema indiano foi<br />
<strong>de</strong>senvolvido como forma <strong>de</strong> afirmaÅÇo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural do paÉs em seu processo <strong>de</strong><br />
“refundaÅÇo” pÑs-in<strong>de</strong>pendÖncia.<br />
Diante das rápidas sequÖncias, dos enquadramentos inusitados e da crueza das cenas<br />
<strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?”, quase nada da estàtica bollywodiana po<strong>de</strong> ser visto ali.<br />
Em sua cinematografia autoral, Boyle brinca com o pop da linguagem dos vi<strong>de</strong>oclips e evita<br />
os exageros dos a<strong>de</strong>reÅos visuais na captaÅÇo <strong>de</strong> cenas <strong>de</strong>spojadas e limpas (apesar da gran<strong>de</strong><br />
sujeira retratada) e na conduÅÇo da interpretaÅÇo contida dos atores indianos. Certamente nÇo<br />
à o estilo Bollywood <strong>de</strong> fazer cinema que se vÖ neste filme inglÖs. No entanto, ali estÇo<br />
presentes alguns traÅos do universo narrativo da indëstria cinematográfica indiana: o<br />
melodrama, com o apelo äs emoÅâes e a caracterÉstica combinaÅÇo <strong>de</strong> amor, corrupÅÇo,<br />
violÖncia e <strong>de</strong>stino; a forte presenÅa narrativa da mësica; a intensida<strong>de</strong> das cores; a histeria em<br />
torno do Édolo cinematográfico, apresentado como o indiano mais famoso; o conto <strong>de</strong> fadas e<br />
o happy end; e o bangra danÅado na cena final.<br />
Da apresentaÅÇo <strong>de</strong> “Caminho das índias” (com seu caleidoscÑpio <strong>de</strong> sÉmbolos<br />
indianos, suas cores vibrantes e riqueza visual) ao conjunto <strong>de</strong> imagens que ilustram as cenas<br />
do nëcleo indiano, quase tudo evoca Bollywood. A inspiraÅÇo confessa se traduz nos <strong>de</strong>talhes<br />
do cenário, na iluminaÅÇo mais quente, no figurino das personagens, no uso das canÅâes e das<br />
danÅas, no exame minucioso das imagens rituais, na estrutura melodramática, na exploraÅÇo<br />
das emoÅâes, na roupagem <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fadas, na conduÅÇo <strong>de</strong> uma histÑria que se apresenta<br />
como um espetáculo agradável <strong>de</strong> se ver, na alternência entre tristeza e alegria, e na elegência<br />
e romantismo com que sÇo conduzidas as cenas <strong>de</strong> amor e sexo nada explicito. SÑ nÇo há<br />
canto nesta telenovela brasileira ä Bollywood. Atà mesmo o exagero e a “breguice”, alvos<br />
comuns das crÉticas äs telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, serviram aqui <strong>de</strong> linguagem para realÅar o<br />
estilo indiano <strong>de</strong> contar histÑrias. Igualmente autoral e bollywoodiana, “Caminho das índias”<br />
à um verda<strong>de</strong>iro mergulho na cultura indiana. Especialmente neste caso, a imagem que a<br />
telenovela apresenta do paÉs à, como se viu, bem prÑxima daquela que o prÑprio indiano<br />
apresenta <strong>de</strong> si, em suas produÅâes cinematográficas.<br />
318 RONAI, disponÉvel em:<br />
.<br />
DisponÉvel em 22/01/2009. Acesso em 15 nov.<br />
2009.<br />
160
Os percursos que conduzem “Quem quer ser um milionário?” e “Caminho das índias”<br />
por narrativas tÇo singulares, apesar <strong>de</strong> complementares, oferecem nÇo apenas a passagem<br />
para duas índias distintas, mas, sobretudo, duas possibilida<strong>de</strong>s distintas <strong>de</strong> experimentar a<br />
mesma índia.<br />
161
8 DUAS TELENOVELAS, UM OLHAR SOBRE A REPRESENTAÇÃO<br />
A obra <strong>de</strong> Gloria Perez traz a marca da obsessÇo da autora pelo novo. Suas telenovelas<br />
parecem caminhar ä frente do tempo, antecipar a realida<strong>de</strong>, levantar o vàu do <strong>de</strong>sconhecido.<br />
Fascinada pelos novos <strong>de</strong>safios impostos pela tecnologia, a autora gosta <strong>de</strong> <strong>de</strong>sbravar questâes<br />
para as quais a humanida<strong>de</strong> ainda nÇo tem resposta, impasses morais e àticos cujos<br />
fundamentos nÇo encontram referÖncias na histÑria 319 . Muitas vezes acusada <strong>de</strong> escrever<br />
ficÅÇo cientÉfica (como quando introduziu a internet em “Explo<strong>de</strong> coraÅÇo”, para espanto da<br />
populaÅÇo brasileira que ainda <strong>de</strong>sconhecia o recurso) e <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirar a respeito dos fenòmenos<br />
naturais da vida (como quando, em “Barriga <strong>de</strong> aluguel”, discutiu a maternida<strong>de</strong> a partir da<br />
experiÖncia entÇo quase <strong>de</strong>sconhecida <strong>de</strong> alugar o ëtero para gerar filho alheio), Gloria Perez<br />
à uma autora antenada aos diversos sinais que a vida mo<strong>de</strong>rna emite. Do dia-a-dia do<br />
noticiário, do testemunho dos dramas humanos, das <strong>de</strong>scobertas da ciÖncia, do burburinho das<br />
ruas ─ da simples experiÖncia da realida<strong>de</strong>, enfim ─ extrai as informaÅâes que a afetam mais<br />
fortemente: essa acreana criada isolada do mundo atà os 16 anos tem profundo interesse por<br />
gente. ï o impacto que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> promove na vida das gentes que lhe inspira a<br />
criativida<strong>de</strong>. A sensibilida<strong>de</strong> para o novo aguÅa seus sentidos e <strong>de</strong>safia sua imaginaÅÇo. A<br />
riqueza <strong>de</strong> seu universo ficcional acaba por oferecer ao pëblico mais que uma simples histÑria<br />
<strong>de</strong> amor em capÉtulos: a novelista convida os telespectadores a experimentar a vida em muitas<br />
dimensâes ─ a realista, que promove o reconhecimento; a da fantasia, que favorece o sonho; a<br />
cultural, que proporciona o conforto; a estrangeira, que <strong>de</strong>sperta o estranhamento; a mÉstica,<br />
que estimula a transcendÖncia; a lëdica, que propicia o encantamento; e a especulativa, que<br />
provoca a criaÅÇo <strong>de</strong> novas referÖncias. Talvez por isso suas telenovelas sejam vistas<br />
igualmente como polÖmicas, diferentes e fascinantes.<br />
Gloria Perez escreve telenovelas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1983, quando foi colaboradora <strong>de</strong> Janete Clair<br />
na novela “Eu prometo”, cujo final assumiu sozinha, <strong>de</strong>pois da morte da titular. De lá para cá,<br />
foram nove telenovelas (apenas uma em parceria com outro autor, no caso “Partido alto”, com<br />
Agnaldo Silva), trÖs minissàries e dois episÑdios <strong>de</strong> seriados. Especialmente em suas<br />
telenovelas, a impressionante imaginaÅÇo criativa da autora e seu faro para o novo costumam<br />
gerar polÖmicas antes mesmo <strong>de</strong> o folhetim ir ao ar: muitas obras ficaram engavetadas na<br />
emissora por alguns anos, <strong>de</strong>vido ao receio <strong>de</strong> levar para a televisÇo brasileira temas-tabu ou<br />
pouco afeitos ä superficialida<strong>de</strong> inerente ao gÖnero. Determinada, a novelista rompeu a<br />
319 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 481.<br />
162
esistÖncia da emissora e do pëblico contra o <strong>de</strong>sconhecido e conquistou sucesso. Falou dos<br />
preconceitos contra a AIDS (em sua adaptaÅÇo do conto Carmem, <strong>de</strong> Merimàe, para a novela<br />
<strong>de</strong> mesmo nome exibida na TV Manchete, em 1987); discutiu a contrataÅÇo <strong>de</strong> uma barriga <strong>de</strong><br />
aluguel por um casal que queria realizar o sonho <strong>de</strong> ter filho (em “Barriga <strong>de</strong> Aluguel”, <strong>de</strong><br />
1990, já <strong>de</strong> volta ä TV Globo); abordou a troca <strong>de</strong> crianÅas na maternida<strong>de</strong> e o transplante <strong>de</strong><br />
ÑrgÇos (em “De corpo e alma”, <strong>de</strong> 1992); chamou a atenÅÇo para o problema das crianÅas<br />
<strong>de</strong>saparecidas (em “Explo<strong>de</strong> coraÅÇo”, <strong>de</strong> 1995); discutiu a cultura muÅulmana, a clonagem<br />
humana e a <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica (em “O Clone”, <strong>de</strong> 2001); abordou a imigraÅÇo ilegal e a<br />
<strong>de</strong>ficiÖncia fÉsica (em “Amàrica”, <strong>de</strong> 2005); e, por fim, pòs em cena a diferenÅa cultural e a<br />
doenÅa mental (em “Caminho das índias”, <strong>de</strong> 2009). Contun<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>safiadores, tais temas<br />
foram abraÅados pela autora com tanto entusiasmo e serieda<strong>de</strong> que acabaram dando origem a<br />
gran<strong>de</strong>s campanhas <strong>de</strong> mobilizaÅÇo popular, o que fez da novelista a pioneira daquilo que veio<br />
a ser conhecido como “merchandising social”. Hoje, as campanhas sociais que tanto enchem<br />
<strong>de</strong> orgulho a teledramaturga sÇo um dos traÅos que mais fortemente i<strong>de</strong>ntificam seu trabalho.<br />
Embora polÖmicos, os folhetins <strong>de</strong> Gloria Perez sÇo, como foi dito anteriormente,<br />
diferentes e fascinantes ─ e estas caracterÉsticas tÖm marcado mais especificamente as tramas<br />
que tratam da diversida<strong>de</strong> cultural. “O Clone” e “Caminho das índias” foram telenovelas tÇo<br />
diferentes <strong>de</strong> tudo o que já se tinha visto na televisÇo brasileira que a crÉtica especializada<br />
chegou a acreditar numa alteraÅÇo <strong>de</strong>finitiva no DNA autoral da novelista: muitos insistiram na<br />
classificaÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez como uma autora que escreve sobre culturas diferentes. “Essa à<br />
uma lenda recente”, comenta ela para, em seguida, reafirmar: “o que os meus trabalhos tÖm em<br />
comum [...] à um empenho em trazer para o pëblico alguma coisa diferente!” 320 . Embora toda<br />
telenovela da autora traga um tema novo e uma abordagem original, nÇo há como negar que as<br />
duas obras aqui estudadas, exatamente por tratarem <strong>de</strong> culturas distantes da brasileira,<br />
ofereceram um conjunto <strong>de</strong> narrativas (textuais, visuais, musicais e simbÑlicas) que se revelou<br />
diferente tambàm na linguagem e no espetáculo televisivo apresentado. O foco no Oriente e a<br />
roupagem <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fada fizeram o resto do trabalho: tornaram fascinante o diferente.<br />
A combinaÅÇo <strong>de</strong>stes trÖs atributos ─ polÖmico, diferente e fascinante ─ serve aqui <strong>de</strong><br />
fio condutor para o estudo da teledramaturgia <strong>de</strong> Gloria Perez a partir da representaÅÇo do Eu<br />
e do Outro que a autora oferece em “O Clone” e “Caminho das índias”.<br />
320 Trechos das respostas enviadas por Gloria Perez ä revista Época (que publicou a entrevista em sua ediÅÇo <strong>de</strong><br />
24/09/2009), postados no blog da autora em 27 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 nov. 2009.<br />
163
8.1 GLñRIA-JANETE-GLORIA, UMA LINHAGEM NO FOLHETIM TELEVISIVO<br />
Gloria Perez à discÉpula <strong>de</strong> Janete Clair que, por sua vez, suce<strong>de</strong>u GlÑria Magadan na<br />
soberania das telenovelas brasileiras. As trÖs gran<strong>de</strong>s damas do folhetim enfeixam uma<br />
linhagem por vezes tortuosa que sugere uma estàtica singular <strong>de</strong> teledramaturgia, um condÇo<br />
especial na arte <strong>de</strong> contar histÑrias e tocar a alma do brasileiro. SÇo mulheres ënicas, que<br />
viveram tempos diferentes, mas que, em suas obras ficcionais, souberam captar e traduzir com<br />
fina sensibilida<strong>de</strong> para os sinais <strong>de</strong> cada àpoca os interesses e <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> um povo.<br />
A novelista cubana exilada no Brasil reinou soberana nos primeiros anos da telenovela<br />
no Brasil, entre 1964 e 1969, impulsionada por seu estilo fantasioso e melodramático <strong>de</strong><br />
contar histÑrias <strong>de</strong> amor que se passavam em terras distantes e exÑticas ou em àpocas<br />
passadas. Segundo Nilson Xavier, GlÑria Magadan, mesmo sem compromisso com a<br />
realida<strong>de</strong> brasileira, fazia estrondoso sucesso com sua fÑrmula inspirada nas radionovelas<br />
latinoamericanas: “histÑrias fantasiosas e extremamente romênticas, ambientadas nos mais<br />
diversos paÉses, com cenários luxuosos e extravagantes” 321 . “Seus vilâes eram maus ao<br />
extremo; suas mocinhas, sofredoras e in<strong>de</strong>fesas; e seus herÑis, corajosos e perfeitos em<br />
caráter” 322 , completa o pesquisador. Pelos tÉtulos <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong> suas novelas po<strong>de</strong>-se ter i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> seu universo ficcional: “O sheik <strong>de</strong> Agadir”, que contava a histÑria da paixÇo <strong>de</strong> um sheik<br />
árabe por uma princesa francesa, na FranÅa ocupada pelos nazistas; “A rainha louca”, drama<br />
vivido pela mulher do imperador francÖs no Màxico durante as guerras <strong>de</strong> anexaÅÇo <strong>de</strong><br />
NapoleÇo III; “Demian, o justiceiro/O homem proibido” (a novela teve tÉtulos diferentes em<br />
SÇo Paulo e no Rio), que traz a saga <strong>de</strong> um marajá <strong>de</strong>stronado em busca do po<strong>de</strong>r e do amor<br />
num principado na índia, no inÉcio do sàculo XX; e “A gata <strong>de</strong> vison”, uma trama <strong>de</strong> violÖncia<br />
envolvendo a mocinha do tÉtulo, gêngsters e policiais na Chicago dos anos 1920.<br />
Depois <strong>de</strong> tantas aventuras em paraÉsos distantes, o reinado <strong>de</strong> GlÑria Magadan estava<br />
por um fio no final da dàcada <strong>de</strong> 1960: com a renovaÅÇo introduzida por “Beto Rockfeller”,<br />
novela <strong>de</strong> Bráulio Pedroso exibida entre 1968 e 1969 na TV Tupi, a audiÖncia e mesmo a<br />
classe artÉstica <strong>de</strong>ixavam claro seu <strong>de</strong>sejo por histÑrias genuinamente brasileiras, com tipos e<br />
cenários locais. Foi a senha para que o talento e a competÖncia <strong>de</strong> Janete Clair <strong>de</strong>stronassem a<br />
po<strong>de</strong>rosa supervisora <strong>de</strong> telenovelas da TV Globo, <strong>de</strong>mitida em 1969. Janete já fazia sucesso<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o rádio, on<strong>de</strong> havia escrito 31 radionovelas. Suas primeiras telenovelas na TV Tupi<br />
eram tÇo populares que a TV Globo recorreu a ela quando precisou <strong>de</strong> um autor que<br />
321 XAVIER, disponÉvel em: . Acesso em 18 nov. 2009.<br />
322 XAVIER, loc. cit.<br />
164
socorresse em 1967 a novela <strong>de</strong> Emiliano Queiroz “Anastácia, a mulher sem <strong>de</strong>stino”, que<br />
amargava baixa audiÖncia e altos custos <strong>de</strong> produÅÇo. Num primeiro momento, entre 1967 e<br />
1969, enquanto trabalhou sob a supervisÇo <strong>de</strong> Magadan, Janete ainda teve <strong>de</strong> se sujeitar ä<br />
estàtica da titular: “Sangue e areia”, a primeira novela que assinou sozinha na emissora, ainda<br />
tinha como personagem central um filho <strong>de</strong> toureiro disposto a seguir os caminhos do pai<br />
contra o <strong>de</strong>sejo da famÉlia; “Passo dos ventos” se <strong>de</strong>senvolvia em torno <strong>de</strong> um casal formado<br />
por um nobre falido e uma her<strong>de</strong>ira milionária no Haiti; “Os acorrentados”, novela escrita<br />
para a TV Rio, falava da luta <strong>de</strong> amor e Ñdio entre um guerrilheiro e uma freira expulsa <strong>de</strong> um<br />
convento na Jamaica; “Rosa Rebel<strong>de</strong>” se passava na Espanha sob as investidas das tropas <strong>de</strong><br />
NapoleÇo, no sàculo XIX.<br />
SÑ <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>missÇo <strong>de</strong> Magadan, Janete pò<strong>de</strong> assumir os temas e cenários<br />
nacionais, inaugurando uma nova era na teledramaturgia brasileira: com “Vàu <strong>de</strong> Noiva”, a<br />
autora abandonou o dramalhÇo, trazendo uma histÑria como as que aconteciam na vida real.<br />
Uma moÅa humil<strong>de</strong>, um rico corredor <strong>de</strong> automÑveis, um amor impossÉvel pela diferenÅa<br />
social, uma gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada, uma mÇe <strong>de</strong> criaÅÇo e a disputa das mÇes legÉtima e adotiva<br />
pela guarda da crianÅa ─ a realida<strong>de</strong> nacional estava nas telas. Como diz Xavier, lá estavam<br />
presentes o automobilismo como esporte da moda (Emerson Fittipaldi <strong>de</strong>spontava nas pistas<br />
<strong>de</strong> corrida), um “Rio <strong>de</strong> Janeiro luminoso, casa <strong>de</strong> campo em PetrÑpolis, autÑdromos<br />
movimentados”, uma trama “mo<strong>de</strong>rna e arejada” 323 . “IrmÇos Coragem”, “Selva <strong>de</strong> pedra”,<br />
“Fogo sobre terra”, “Pecado capital”, “O astro”, “Pai herÑi” e tantas outras <strong>de</strong>ixaram no<br />
imaginário popular a associaÅÇo do nome da autora a tramas capazes <strong>de</strong> mobilizar o paÉs:<br />
personagens marcantes, temas nacionais, tramas centrais fortes e numerosos eixos paralelos.<br />
Janete Clair tornou-se a “Maga das oito”, a mestra reverenciada ainda hoje por sua<br />
contribuiÅÇo ao gÖnero ─ contribuiÅÇo que traz o peso <strong>de</strong> uma produÅÇo impressionante. Entre<br />
1968 e 1983, foi dona absoluta do horário das 20 horas, “latifëndio” que lhe ren<strong>de</strong>u milhâes<br />
<strong>de</strong> espectadores. Sem teorias (“Nunca estu<strong>de</strong>i para isso” 324 , comentava), a autora parecia<br />
escrever por intuiÅÇo, uma sensibilida<strong>de</strong> adquirida em sua vida comum <strong>de</strong> dona-<strong>de</strong>-casa, <strong>de</strong><br />
telespectadora: “Eu faÅo a novela que eu gostaria <strong>de</strong> ver” 325 , sintetiza. Foram a intuiÅÇo e a<br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo com o povo que assistia suas novelas que lhe permitiram enten<strong>de</strong>r o que o<br />
323 XAVIER, disponÉvel em: . Acesso em 18 nov. 2009.<br />
324 CLAIR, s/d, entrevista concedida a Leda Nagle. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 1 nov. 2009.<br />
325 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
165
pëblico gostaria <strong>de</strong> ver, <strong>de</strong> sentir em cada momento, se era alegria, tristeza ou drama 326 . Em<br />
suas novelas, combinava “romance com aventura numa linguagem mo<strong>de</strong>rna”, sem dramalhÇo,<br />
para que o pëblico tivesse um “bom espetáculo” e tambàm uma boa liÅÇo <strong>de</strong> moral ao final<br />
(Janete assumiu em entrevista ä Veja 327 que sempre tinha o compromisso <strong>de</strong> transmitir algo<br />
importante para o pëblico ─ era o seu jeito <strong>de</strong> cumprir seu papel social com o paÉs):<br />
166<br />
Os ingredientes necessários sÇo amor, aventuras, morte e suspense. Mas nÇo se po<strong>de</strong><br />
abusar <strong>de</strong>les. Sei atà on<strong>de</strong> o pëblico suporta uma emoÅÇo e à essa medida exata que<br />
tem me ajudado. Uma boa novela à justamente aquela bem dosada. NÇo gosto <strong>de</strong><br />
cenas longas. Tambàm nÇo se po<strong>de</strong> abusar da dinêmica. VocÖ joga um impacto na<br />
histÑria, mas atà on<strong>de</strong> ele po<strong>de</strong> ser explorado? NÇo mais do que em trÖs capÉtulos. O<br />
drama tem que ser entremeado com o riso. Nunca chocar sem na cena seguinte dar<br />
uma oportunida<strong>de</strong> para o pëblico respirar. 328<br />
De GlÑria Magadan a Janete Clair, a telenovela ganhou nÇo apenas no realismo dos<br />
temas abordados e na troca do dramalhÇo pelo romance mo<strong>de</strong>rno. Mais prÑximas do mundo<br />
contemporêneo e da realida<strong>de</strong> brasileira, as tramas e as personagens ganharam em<br />
complexida<strong>de</strong>. Com Janete, as tramas abandonaram a linearida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> girar em torno<br />
<strong>de</strong> uma histÑria sÑ, em torno “do herÑi e da heroÉna”, para se <strong>de</strong>sdobrar em várias histÑrias; as<br />
gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e suas contradiÅâes ganharam as telas da tevÖ, trazendo ricos e pobres e<br />
“refletindo o fenòmeno da rápida industrializaÅÇo do Brasil” 329 , apÑs os anos 1960; as<br />
personagens, fossem herÑis ou vilâes, <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser construÉdas <strong>de</strong> forma maniqueÉsta,<br />
passando a ter qualida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>feitos como todo mundo, ganhando em profundida<strong>de</strong> e<br />
procurando “evi<strong>de</strong>nciar o caráter contraditÑrio da criatura humana” 330 . As novida<strong>de</strong>s<br />
atingiram especialmente as personagens femininas, que <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser donzelas in<strong>de</strong>fesas e<br />
passaram a ser produtivas, ocupando lugar no mundo do trabalho. Janete introduziu tambàm a<br />
unida<strong>de</strong> do capÉtulo enquanto espetáculo. Nas palavras da discÉpula e colaboradora Gloria<br />
Perez, os capÉtulos, que antes eram “escritos a metro”, concluÉdos quando o tempo <strong>de</strong> exibiÅÇo<br />
encerrava, passaram a ser concebidos com a perspectiva do final, criados para encerrar num<br />
clÉmax que <strong>de</strong>ixava um gancho para o capÉtulo seguinte.<br />
Muito mais do que reverenciar a gran<strong>de</strong> “Dama das oito” e apontar suas contribuiÅâes<br />
formais e estruturais para o gÖnero folhetim televisivo, Gloria Perez se orgulha <strong>de</strong> ter<br />
compartilhado da cartilha mágica <strong>de</strong> Janete Clair e <strong>de</strong> ter convivido com ela em seus<br />
326 CLAIR, 2003. Entrevista concedida a Lucia Rito, “A arte popular das novelas”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 12 set. 2009.<br />
327 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
328 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
329 NOGUEIRA, 2002, pp. 114-115.<br />
330 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.
momentos <strong>de</strong> criaÅÇo quando a titular precisou da colaboraÅÇo da entÇo aspirante a novelista<br />
para escrever “Eu prometo”, sua <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira novela (Janete já estava doente quando assumiu o<br />
compromisso <strong>de</strong> escrever sua primeira novela para o horário das 22 horas e, pela primeira vez,<br />
precisou <strong>de</strong> colaborador). Tal parceria lhe valeu a experiÖncia ënica <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a escrever no<br />
estilo Janete Clair. Com proprieda<strong>de</strong>, a novata valeu-se <strong>de</strong> seus conhecimentos sobre o<br />
folhetim impresso do sàculo XIX (o uso <strong>de</strong> ganchos para criar expectativa para o episÑdio do<br />
jornal do dia seguinte e a tàcnica <strong>de</strong> privilegiar o sensacional em <strong>de</strong>trimento da coerÖncia)<br />
para se aproximar do jeito contagiante <strong>de</strong> Janete escrever. A principiante acreana valeu-se<br />
tambàm <strong>de</strong> sua intimida<strong>de</strong> regional com a literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l: cresceu ouvindo histÑrias <strong>de</strong><br />
aventura que falavam <strong>de</strong> “vidas que sofriam gran<strong>de</strong>s oscilaÅâes, pessoas que tinham que<br />
vencer gran<strong>de</strong>s obstáculos para ser felizes” 331 . Tais foram as senhas que lhe valeram a sintonia<br />
com a mestra das telenovelas.<br />
Por mais que a proximida<strong>de</strong> com a “Maga das Oito” tenha lhe franqueado o acesso ä<br />
preciosa cartilha da autora, talvez tenha sido justamente a forte influÖncia do cor<strong>de</strong>l que<br />
permitiu ä novata acreana trilhar caminho original <strong>de</strong>ntre os muitos seguidores da “escola Janete<br />
Clair <strong>de</strong> telenovela”. NÇo admira que Gloria Perez tivesse o cor<strong>de</strong>l como referÖncia: trazida da<br />
penÉnsula hispano-lusitana pelos colonos que <strong>de</strong>sembarcaram no Nor<strong>de</strong>ste brasileiro nos idos<br />
dos sàculos XVI e XVII, a literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l criou aqui raÉzes tÇo profundas que o imaginário<br />
da regiÇo ficou <strong>de</strong>finitivamente marcado pelo gÖnero. Costurada em linguagem popular e<br />
acostumada ä errência <strong>de</strong> atrair o povo das praÅas, feiras e mercados, essa narrativa simples e<br />
poàtica se vale da oralida<strong>de</strong> (que posteriormente se materializa no folheto impresso) para<br />
conduzir o pëblico pelos caminhos do humor, da peripàcia, da surpresa, das gran<strong>de</strong>s sagas e dos<br />
<strong>de</strong>vaneios. No exercÉcio ágil da imaginaÅÇo, os poetas <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l misturam enredos <strong>de</strong> romances<br />
famosos com fatos importantes do paÉs, crimes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> repercussÇo e relatos sobrenaturais,<br />
mantendo em tensÇo, segundo Ivan Cavalcanti ProenÅa, “a notÉcia e o acontecimento com a<br />
‘inspiraÅÇo’ e os temas dos folhetos” 332 . Valendo-se <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> poàtica, reinventam e recriam<br />
o mundo ao mesmo tempo em que sÇo tÇo realistas ─ e <strong>de</strong>ssa combinaÅÇo extraem o encanto e a<br />
forÅa do cor<strong>de</strong>l, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Ariano Suassuna 333 . Depois <strong>de</strong> inëmeras visitas dominicais aos<br />
mercados <strong>de</strong> Rio Branco, os traÅos do cor<strong>de</strong>l ficaram irremediavelmente gravados na memÑria<br />
da menina que, já adulta, <strong>de</strong>sembarcou no Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>de</strong>scobriu que podia fazer da rica<br />
matària-prima do cor<strong>de</strong>lista uma inspiraÅÇo para suas novelas <strong>de</strong> tevÖ.<br />
331 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 434.<br />
332 PROENóA, 1976, p. 38.<br />
333 SUASSUNA, “A arte popular do Brasil”, 1969, p. 40.<br />
167
Gloria Perez alÅou vòo prÑprio e construiu uma obra singular: combina a riqueza <strong>de</strong><br />
sua imaginaÅÇo criativa e <strong>de</strong> sua preocupaÅÇo social com a tàcnica herdada <strong>de</strong> Janete Clair e<br />
ainda, em certa medida, resgata a opÅÇo <strong>de</strong> GlÑria Magadan pela fantasia. Especialmente em<br />
“O Clone” e “Caminho das índias”, e tambàm em “Explo<strong>de</strong> coraÅÇo”, novelas que abordam<br />
mundos distantes e culturas arcaicas (a muÅulmana, a indiana e a cigana, respectivamente),<br />
algo do espÉrito da autora cubana parece encarnar nas cenas que trazem cenários<br />
extravagantes, trajes tÉpicos, costumes milenares e danÅas exÑticas. Embora o estilo<br />
excessivamente fantasioso (rocambolesco atà) <strong>de</strong> Magadan nÇo tivesse, lá nos idos da dàcada<br />
<strong>de</strong> 1960, o compromisso <strong>de</strong> Gloria Perez <strong>de</strong> respeitar a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais culturas e <strong>de</strong><br />
estabelecer uma ponte com a realida<strong>de</strong> brasileira, à impossÉvel nÇo encontrar paralelos entre<br />
as duas quando se vasculha a obra da pioneira das telenovelas brasileiras, novelas escritas por<br />
ela ou conduzidas sob sua forte supervisÇo. Lá estÇo a famosa “O sheik <strong>de</strong> Agadir”, cujo<br />
personagem central era um aventureiro árabe; “Demian, o justiceiro/O homem proibido”, que<br />
fala <strong>de</strong> marajás indianos; e “O rei dos ciganos”, que, como o prÑprio tÉtulo diz, narra o<br />
universo cigano.<br />
A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer o pëblico sonhar tambàm está na cartilha <strong>de</strong> Janete, sÑ que nÇo mais<br />
usando o recurso <strong>de</strong> refëgio em terras estrangeiras ou em tempos passados, como fez Magadan.<br />
No terreno da fantasia, Gloria Perez parece beber <strong>de</strong> ambas as fontes: oferece igualmente o<br />
conto <strong>de</strong> fadas e o real, o arcaico e o mo<strong>de</strong>rno, a realida<strong>de</strong> distante e a prÑxima, num equilÉbrio<br />
que produz realismo e fascinaÅÇo. Como suas antecessoras, ela nÇo tem medo do ridÉculo ─<br />
gosta <strong>de</strong> citar Nelson Rodrigues: “SÑ os imbecis tÖm medo do ridÉculo” 334 . Sequer se abala com<br />
as crÉticas que con<strong>de</strong>nam como “brega” a estàtica que reveste o reino <strong>de</strong> suas fantasias.<br />
Assumidamente, procura levar para as telas o “<strong>de</strong>spudor” com que Janete fazia o Brasil inteiro<br />
sonhar; como sua mestra, procura nÇo ter “medo <strong>de</strong> tocar nenhuma corda da emoÅÇo” 335 .<br />
168<br />
Assim, da tàcnica narrativa <strong>de</strong> Janete Clair, muitos foram os traÅos incorporados ä<br />
dramaturgia <strong>de</strong> Gloria Perez: a construÅÇo <strong>de</strong> personagens humanos e complexos, nada<br />
maniqueÉstas; o <strong>de</strong>staque ao po<strong>de</strong>r das personagens femininas; a criaÅÇo <strong>de</strong> uma trama central<br />
forte da qual partem várias sub-tramas importantes; a intercalaÅÇo entre cenas dramáticas e<br />
còmicas; o compromisso <strong>de</strong> transmitir algo importante para o pëblico (suas campanhas<br />
sociais); a exploraÅÇo do sensacional muitas vezes em <strong>de</strong>trimento da coerÖncia; a preparaÅÇo<br />
<strong>de</strong> capÉtulos que terminam em clÉmax, <strong>de</strong>ixando gancho forte para o dia seguinte; a tentativa<br />
<strong>de</strong> abrir e fechar o capÉtulo com cenas da trama principal; e a preocupaÅÇo em distribuir as<br />
334 A frase está impressa num pequeno quadro que a autora <strong>de</strong>ixa em sua mesa <strong>de</strong> trabalho a tÉtulo <strong>de</strong> inspiraÅÇo.<br />
335 Gloria Perez sobre Janete Clair, in MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 435.
aÅâes importantes por entre os primeiros dias da semana, <strong>de</strong> modo a que nenhum nÑ essencial<br />
para a trama se <strong>de</strong>senrole entre a sexta e o sábado, dias <strong>de</strong> menor audiÖncia.<br />
GlÑria Magadan, Janete Clair e Gloria Perez integram uma linhagem <strong>de</strong> autoras<br />
intuitivas e afinadas com o gosto popular, uma sensibilida<strong>de</strong> que lhes <strong>de</strong>u a medida <strong>de</strong> que,<br />
acima <strong>de</strong> tudo, telenovela <strong>de</strong>ve ser um espetáculo bom <strong>de</strong> se ver. Embora Magadan, ao final<br />
<strong>de</strong> sua carreira brasileira <strong>de</strong> sucesso, tenha permitido que a prepotÖncia do pioneirismo<br />
abafasse os sinais da audiÖncia que já clamava por realismo, sua dramaturgia foi construÉda<br />
com base na intuiÅÇo <strong>de</strong> que o brasileiro que testemunhava os primeiros anos da ditadura<br />
carecia <strong>de</strong> sonho e rotas <strong>de</strong> fuga da realida<strong>de</strong>. O faro <strong>de</strong> telespectadora e dona-<strong>de</strong>-casa<br />
permitiu que Janete captasse os novos sinais trazidos pela dàcada <strong>de</strong> 1970: em suas novelas, o<br />
estreitamento da distência entre sonho e vida real parecia indicar que nem sÑ <strong>de</strong> doutrinaÅÇo<br />
i<strong>de</strong>olÑgica se faz a resistÖncia; que a ficÅÇo e a fantasia tambàm po<strong>de</strong>m ajudar a pensar a<br />
realida<strong>de</strong>, mesmo que fosse a realida<strong>de</strong> construÉda por ela na narrativa e mesmo que a<br />
verossimilhanÅa fosse por vezes <strong>de</strong>sprezada. Curiosamente, tal forma <strong>de</strong> ver seu papel como<br />
escritora ren<strong>de</strong>u ä autora aborrecimentos tanto com a censura fe<strong>de</strong>ral quanto com os crÉticos <strong>de</strong><br />
esquerda que a acusavam <strong>de</strong> alienar os brasileiros, oferecendo “Ñpio” ao povo. Já a intuiÅÇo <strong>de</strong><br />
Gloria Perez se alimenta dos muitos canais <strong>de</strong> percepÅÇo que o mundo globalizado e digital lhe<br />
oferece: a autora, que nÇo se isola da vida nem quando está escrevendo novela, nÇo sÑ se<br />
mantàm em contato direto com o pëblico nas ruas da cida<strong>de</strong> como tambàm faz da internet sua<br />
mais ampla janela para o mundo. Por ali chegam o noticiário dos mais distantes pontos do<br />
planeta, as informaÅâes e opiniâes dos sites especializados e os comentários postados por todo<br />
tipo <strong>de</strong> gente em seu blog “De tudo um pouco” 336 . Das ruas e da internet vÖm os mëltiplos<br />
sinais que as antenas sensÉveis <strong>de</strong> Gloria Perez captam sobre a alma <strong>de</strong> seu pëblico.<br />
A sensibilida<strong>de</strong> e a tàcnica narrativa empregadas para atrair o interesse e fascinar a<br />
audiÖncia sÇo o combustÉvel com que Gloria Perez abastece sua máquina <strong>de</strong> seduzir ─ sim,<br />
porque contar histÑrias à um jogo <strong>de</strong> seduÅÇo. Se sua dramaturgia coleciona histÑrias <strong>de</strong><br />
sucesso popular, isso se dá em gran<strong>de</strong> parte graÅas ä maneira arrebatadora com que os temas<br />
escolhidos apaixonam a autora. Portanto, a qualida<strong>de</strong> da obra da novelista se <strong>de</strong>ve nÇo sÑ ä<br />
sua tàcnica narrativa como tambàm ao entusiasmo com que escreve. (NÇo se po<strong>de</strong> negar, no<br />
entanto, que a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser autora <strong>de</strong> horário nobre na TV Globo e a pressÇo <strong>de</strong><br />
emplacar o sucesso esperado pela emissora e pelos patrocinadores (alàm dos resultados<br />
profissionais e financeiros resultantes disso) venham a representar um combustÉvel <strong>de</strong> alto<br />
336 “De tudo um pouco”, disponÉvel em: .<br />
169
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> propulsÇo para sua imaginaÅÇo.) A autora afirma 337 que sÑ se entrega a temas que a<br />
mobilizem, agucem sua curiosida<strong>de</strong>. Em “O Clone” e “Caminho das índias”, a graduada e<br />
quase pÑs-graduada em HistÑria nÇo se conteve diante da dobra do tempo que fez passado e<br />
presente coexistirem nas culturas árabe e indiana. Tanto o que se viu nas telenovelas como o<br />
que ficou registrado em seu blog durante os ëltimos anos dÇo mostra da gran<strong>de</strong> paixÇo <strong>de</strong><br />
Gloria Perez por estes dois mundos.<br />
8.2 <strong>ENTRE</strong> <strong>MUNDOS</strong> DIFERENTES<br />
“O Clone” e “Caminho das índias” foram novelas que se passaram na ponte aàrea<br />
entre o Brasil e o estrangeiro, entre o Oci<strong>de</strong>nte e o Oriente. Cada uma <strong>de</strong>las oferecia dois<br />
eixos narrativos: na primeira, a trama se dividia entre o bairro carioca <strong>de</strong> SÇo CrisÑvÇo e a<br />
Medina <strong>de</strong> Fez, parte islêmica da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fez, no Marrocos; na segunda, a histÑria<br />
transitava entre dois bairros cariocas, Barra da Tijuca e Lapa, e a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaipur, na índia.<br />
Embora o nëcleo indiano tenha tido presenÅa mais marcante do que o nëcleo muÅulmano (em<br />
“O Clone” o foco central era a clonagem humana), ambas as telenovelas revelaram-se gran<strong>de</strong>s<br />
narrativas sobre o Outro. Se a diferenÅa cultural entre o Brasil e cada um dos paÉses<br />
estrangeiros retratados foi o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>stas duas telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, os<br />
temas paralelos abordados pela autora ofereceram ao pëblico a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver muitos<br />
Outros instalados na cultura brasileira. Sem o alar<strong>de</strong> e os cÑdigos visuais do “Outro-<br />
estrangeiro” (aquele que se encontra fora da cultura local), os “Outros-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo”<br />
(aqueles que a socieda<strong>de</strong> segrega internamente por preconceito ou <strong>de</strong>sconhecimento)<br />
ganharam visibilida<strong>de</strong> pelo compromisso da autora em aproveitar a popularida<strong>de</strong> do gÖnero<br />
para <strong>de</strong>nunciar os dramas dos excluÉdos. Assim, aos Outros muÅulmanos e indianos,<br />
somaram-se os Outros <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes mentais. E a todos eles, a novelista<br />
contrapòs o Eu brasileiro, “normal” e “sÇo”.<br />
Enten<strong>de</strong>r o jogo <strong>de</strong> espelhos que a autora propâe exige uma atenÅÇo especial ao<br />
reconhecimento e ä diferenciaÅÇo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e da alterida<strong>de</strong>. Todorov à prÑdigo em suas<br />
caracterizaÅâes do Eu e do Outro:<br />
170<br />
Po<strong>de</strong>m-se <strong>de</strong>scobrir os outros em si mesmo, e perceber que nÇo se à uma substência<br />
homogÖnea, e radicalmente diferente <strong>de</strong> tudo o que nÇo à si mesmo; eu à um outro.<br />
Mas cada um dos outros à um eu tambàm, sujeito como eu. Somente meu ponto <strong>de</strong><br />
vista, segundo o qual todos estÇo lá e eu estou sÑ aqui, po<strong>de</strong> realmente separá-los e<br />
337 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 243.
171<br />
distingui-los <strong>de</strong> mim. Posso conceber os outros como uma abstraÅÇo, como uma<br />
instência da configuraÅÇo psÉquica <strong>de</strong> todo indivÉduo, como o Outro, outro ou outrem<br />
em relaÅÇo a mim. Ou entÇo como um grupo social concreto ao qual nós nÇo<br />
pertencemos. Este grupo, por sua vez, po<strong>de</strong> estar contido numa socieda<strong>de</strong>: as mulheres<br />
para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. Ou po<strong>de</strong> ser<br />
exterior a ela, uma outra socieda<strong>de</strong> que, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do caso, será prÑxima ou<br />
longÉnqua: seres que em tudo se aproximam <strong>de</strong> nÑs, no plano cultural, moral e<br />
histÑrico, ou <strong>de</strong>sconhecidos, estrangeiros cuja lÉngua e costumes nÇo compreendo, tÇo<br />
estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma<br />
espàcie. 338 [grifos do autor]<br />
Em uma narrativa ficcional que opâe muitos Outros a um Eu, Gloria Perez fala da<br />
relativida<strong>de</strong> das distências estabelecidas na diferenÅa. De que maneira os muÅulmanos, os<br />
indianos, os <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e os doentes mentais sÇo vistos como pertencentes ä<br />
mesma “espàcie” sob a qual se encontra o Eu brasileiro? Ao voltar o seu foco para o mundo<br />
árabe e indiano, à o Brasil que a novelista expâe. Para conhecÖ-lo, à preciso <strong>de</strong>scobrir o Outro<br />
em suas várias representaÅâes.<br />
“O Clone” vestiu seu Outro muÅulmano <strong>de</strong> tënicas, djelabas, burkas e vàus; adotou a<br />
barba para os homens, cabelos longos e soltos para as mulheres; reuniu milhares <strong>de</strong>les em<br />
multidâes nas ruas e nos mercados; abandonou-o no <strong>de</strong>serto e em suas conversas com Deus.<br />
Pintou os homens com tintas autoritárias, senhores soberanos dos <strong>de</strong>stinos da famÉlia; os mais<br />
velhos ganharam cores mais severas, o mais sábio recebeu nuances <strong>de</strong> suavida<strong>de</strong> e contornos<br />
menos rÉgidos, os mais jovens traziam os tons da obediÖncia. Confinou as mulheres aos<br />
domÉnios da submissÇo, mas conce<strong>de</strong>u-lhes o dom da sabedoria intuitiva: em sua experiÖncia<br />
feminina, pu<strong>de</strong>ram escolher entre o caminho da resistÖncia (para lutar pelo amor e pelo<br />
sonho), o do <strong>de</strong>svio (para contornar os obstáculos e costurar harmonias) ou o da aceitaÅÇo<br />
(para buscar a felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro dos costumes). Engendrou para elas amores impossÉveis,<br />
casamentos sem amor, relaÅâes regidas pela obediÖncia, exposiÅâes <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>, shows <strong>de</strong><br />
recato, exibiÅâes <strong>de</strong> danÅa do ventre, ameaÅas e castigos. “O Clone” enfeitou as casas dos<br />
muÅulmanos com a<strong>de</strong>reÅos dourados, espelhos, cortinas transparentes e divisÑrias rendilhadas<br />
─ um universo amplo e <strong>de</strong> pà direito altÉssimo abre-se em arcos e colunas, conduzindo o olhar<br />
por superfÉcies que ora refletem e duplicam (clonam) a vida, os corpos e os <strong>de</strong>stinos, ora<br />
encobrem e preservam da exposiÅÇo os medos, as angëstias e os pecados. Rituais religiosos e<br />
festivos, oraÅâes, casamentos escolhidos pelas famÉlias, vidas guiadas pelos <strong>de</strong>sÉgnios <strong>de</strong> Alá:<br />
no tom terroso das casas e das gentes, na luz ensolarada das ruas, na penumbra das velas que<br />
iluminam o interior dos lares, no labirinto do mercado, um mundo distante visto sob o vàu do<br />
mistàrio, um mundo que vai se apresentando pela explicaÅÇo dos mais sábios, pelas respostas<br />
338 TODOROV, 1999, pp. 3-4.
ao estranhamento estrangeiro e pela resistÖncia da mocinha forÅada a fincar raÉzes no<br />
<strong>de</strong>sconhecido.<br />
Já “Caminho das índias” vestiu seu Outro indiano <strong>de</strong> kurtas, turbantes e sáris<br />
luxuosos; pren<strong>de</strong>u o cabelo das mulheres casadas e cobriu-o com vàu diante <strong>de</strong> estranhos;<br />
sujou a roupa dos dálits das ruas; povoou a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> multidâes multicoloridas; engarrafou o<br />
trênsito com carros, tuc-tucs, bicicletas, camelos e elefantes; sentou no meio-fio limpadores<br />
<strong>de</strong> ouvido e <strong>de</strong>ntistas; espalhou pelas esquinas ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> bijuterias e <strong>de</strong> samozas; fez da<br />
vaca sagrada uma visitante costumeira do comàrcio; encheu os lares <strong>de</strong> filhos, netos, tios e<br />
avÑs. Mostrou os mais velhos como pessoas dignas <strong>de</strong> reverÖncia pelo tempo que viveram: a<br />
uns a experiÖncia trouxe sabedoria e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma; a outros, con<strong>de</strong>nou ä amargura e ä<br />
intransigÖncia; e ainda a alguns, conce<strong>de</strong>u a curiosida<strong>de</strong> pelo novo. Conce<strong>de</strong>u aos patriarcas<br />
pulso forte para guiar a famÉlia e a sorte <strong>de</strong> serem verda<strong>de</strong>iramente amados em sua autorida<strong>de</strong>.<br />
Ofereceu äs mulheres o reino da casa, a soberania na educaÅÇo dos filhos e o domÉnio das<br />
especiarias; <strong>de</strong>u-lhes o segredo do cofre e a chave da <strong>de</strong>spensa; proporcionou-lhes ainda um<br />
lugar no mundo do trabalho e o sonho da vida acadÖmica; apresentou-lhes a castida<strong>de</strong> e o<br />
recato como virtu<strong>de</strong>s, o casamento como horizonte <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, e a obediÖncia como <strong>de</strong>ver.<br />
Em “Caminho das índias”, os amplos espaÅos abertos, entrecortados por colunas e arcos,<br />
abrigavam uma <strong>de</strong>coraÅÇo colorida e luminosa, carregada <strong>de</strong> a<strong>de</strong>reÅos religiosos. Festas<br />
tÉpicas e casamentos movimentavam a vida rotineira dos indianos, levando-os para a rua,<br />
fazendo-os louvar a todos os <strong>de</strong>uses, retribuindo com alegria a graÅa da vida. Pela boca <strong>de</strong><br />
sábios, sacerdotes e gurus eram apresentados os ensinamentos religiosos e filosÑficos do<br />
hinduÉsmo, costumes que eram repetidos pelos mais velhos para as novas geraÅâes. Pelos<br />
ouvidos das crianÅas e dos estrangeiros entravam as explicaÅâes sobre a cultura e a histÑria<br />
dos muitos <strong>de</strong>uses: um universo rico em lendas, crendices e mistàrios <strong>de</strong> fà.<br />
A con<strong>de</strong>nsaÅÇo dos mëltiplos e intrincados aspectos das culturas muÅulmana e indiana<br />
no universo <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias” foi capaz <strong>de</strong> construir uma alegoria que<br />
traduziu <strong>de</strong> forma muito prÑxima a experiÖncia <strong>de</strong>stes povos, nÇo obstante a tarefa fosse mais<br />
complexa no mundo árabe do que no mundo hindu. Espalhada por diferentes paÉses e<br />
compartilhada por povos submetidos a variados regimes polÉticos e condiÅâes econòmicas, a<br />
cultura muÅulmana foi obrigada, pelas contingÖncias da narrativa ficcional, a ganhar uma face<br />
ënica e a ocupar um lugar na geopolÉtica do mundo real. Con<strong>de</strong>nsar tantas e tÇo diversificadas<br />
realida<strong>de</strong>s muÅulmanas e ainda fixá-las no cenário do Marrocos, paÉs com raÉzes longÉnquas e<br />
aberto ä mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, talvez tenha sido um exercÉcio <strong>de</strong> sÉntese ficcional <strong>de</strong>masiado <strong>de</strong>licado.<br />
Nada, no entanto, que nÇo seja prÑprio <strong>de</strong> qualquer processo <strong>de</strong> representaÅÇo, qual seja, o <strong>de</strong><br />
172
localizar as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s no espaÅo e no tempo simbÑlicos das tradiÅâes inventadas, naquilo<br />
que Said, em seu artigo “Narrative and Geography” 339 , chama <strong>de</strong> “geografias imaginárias”.<br />
Excessivamente incomodado com a geografia da novela e concretista na percepÅÇo <strong>de</strong> seu<br />
espaÅo simbÑlico, Ab<strong>de</strong>lmalek Cherkaoui Ghazouani, embaixador do Reino <strong>de</strong> Marrocos no<br />
Brasil, queixou-se <strong>de</strong> que muitos da comunida<strong>de</strong> árabe-muÅulmana no paÉs nÇo se viram<br />
representados nas personagens e no estilo <strong>de</strong> vida presentes em “O Clone”:<br />
173<br />
[...] o que po<strong>de</strong>ria ter sido motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> satisfaÅÇo por parte dos marroquinos e <strong>de</strong><br />
toda a comunida<strong>de</strong> árabe-muÅulmana resi<strong>de</strong>nte no Brasil tornou-se uma gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cepÅÇo, pois, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro capÉtulo da novela, parte do seu elenco carregava a<br />
imagem <strong>de</strong> gente cruel, <strong>de</strong> coraÅâes obscuros e privados <strong>de</strong> qualquer sentimento <strong>de</strong><br />
clemÖncia e pieda<strong>de</strong>.<br />
[...] FamÉlia anacrònica, <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los ultrapassados, carregando a marca da onipresenÅa<br />
<strong>de</strong> um tio autoritário e da ausÖncia absoluta do papel da mulher ─ esta ëltima<br />
submetida, no máximo, ao bem-querer dos homens ─, a poligamia correndo a solta e<br />
paisagens, por mais encantadoras que fossem, oferecendo a imagem <strong>de</strong> um Marrocos<br />
beduÉno ou atà mesmo primitivo. 340<br />
Apesar da reaÅÇo do embaixador, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu paÉs sem se dar<br />
conta <strong>de</strong> que o Marrocos da novela era apenas uma locaÅÇo para que o mundo árabe se<br />
materializasse na ficÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez, à preciso registrar que muitos aspectos da cultura<br />
árabe ali apresentados foram responsáveis por uma mudanÅa radical na percepÅÇo dos<br />
brasileiros sobre o muÅulmano. No contexto do noticiário sobre o 11 <strong>de</strong> setembro, a<br />
telenovela soube oferecer seu contraponto humanizado: a intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua famÉlia, a riqueza<br />
<strong>de</strong> sua cultura, a soli<strong>de</strong>z <strong>de</strong> sua fà. Segundo a autora <strong>de</strong> “O Clone”, se na fase da pesquisa, “os<br />
muÅulmanos mostraram-se assustados, temendo que a novela tambàm fosse ser<br />
preconceituosa” e acabasse reforÅando a rejeiÅÇo sentida nas ruas, ao final da novela “eles<br />
ficaram muito agra<strong>de</strong>cidos” 341 .<br />
Embora o muÅulmano do folhetim nÇo fosse a expressÇo fiel do marroquino<br />
cosmopolita e houvesse muito do universo fantasioso <strong>de</strong> As mil e uma noites (na exploraÅÇo<br />
do erotismo da danÅa do ventre, da mÉstica dos vàus e da seduÅÇo da odalisca), ali estavam<br />
representados todos os mëltiplos aspectos da cultura árabe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os costumes mais arcaicos<br />
ainda vigentes em muitos paÉses atà os traÅos que a projetam com <strong>de</strong>staque na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
(como o domÉnio das ciÖncias, por exemplo), passando pelo imaginário coletivo consolidado<br />
339 SAID, 1990.<br />
340 GHAZOUANI, “’O Clone’ e o simulacro”. DisponÉvel em:<br />
.Acesso em 21 nov. 2009.<br />
341 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 237.
pela literatura. ReferÖncias reais e folclÑricas foram combinadas para construir uma cultura<br />
que, como muitas outras, se <strong>de</strong>sdobra em várias dimensâes.<br />
A multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais dimensâes foi justamente o que atraiu a autora para a cultura<br />
árabe: atravàs <strong>de</strong>las po<strong>de</strong>ria, numa ficÅÇo televisiva <strong>de</strong>stinada ao entretenimento, explorar<br />
tanto o realismo como o sonho, produzindo essa combinaÅÇo mágica que lhe à tÇo cara em<br />
suas obras. Como ela prÑpria diz: “Se um autor vai falar <strong>de</strong>ssa cultura, porque nÇo explorar<br />
esse lado <strong>de</strong> encantamento e fantasia?” 342 . Se a imagem da odalisca sedutora evoca um<br />
exotismo “barato”, um “clichÖ” que nÇo condiz com a proeminÖncia profissional conquistada<br />
pelas mulheres marroquinas, como sugere o embaixador do Marrocos 343 , nÇo à raro encontrar,<br />
entre os prÑprios muÅulmanos, iniciativas que exploram o mesmo imaginário quando da<br />
apresentaÅÇo <strong>de</strong> sua cultura para olhares estrangeiros: a “Casa <strong>de</strong> chá egÉpcia e cafà árabe<br />
Khan el Khalili” 344 , “tradicional ponto turÉstico da cultura árabe” em SÇo Paulo,<br />
estabelecimento “pioneiro” que se orgulha <strong>de</strong> oferecer uma verda<strong>de</strong>ira experiÖncia árabe a<br />
seus clientes, anuncia-se tambàm como a “Casa da arte da danÅa do ventre”, a “maior vitrine<br />
do melhor da danÅa árabe do Brasil”, o local on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> assistir aos domingos o espetáculo<br />
intitulado “Noites no haràm”.<br />
ï preciso chamar atenÅÇo aqui para o fato <strong>de</strong> que, tanto o embaixador quanto o agente<br />
cultural, em suas versâes sobre o Oriente, po<strong>de</strong>m estar contaminados pelo Orientalismo, um<br />
sistema <strong>de</strong> pensamento baseado em representaÅâes distorcidas sobre a regiÇo. Embora<br />
reproduzam construÅâes segundo um modo <strong>de</strong> ver forjado na experiÖncia oci<strong>de</strong>ntal do Oriente<br />
(um discurso equivocado externo aos orientais), as narrativas orientalistas tÖm produzido,<br />
segundo Said, efeitos <strong>de</strong>sastrosos junto ao prÑprio Oriente. Se, <strong>de</strong> um lado, os “meios <strong>de</strong><br />
comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa americanos” forjam uma padronizaÅÇo oci<strong>de</strong>ntalizante capaz <strong>de</strong> fazer<br />
com que um árabe se consi<strong>de</strong>re “um árabe do tipo <strong>de</strong>senhado por Hollywood” 345 , <strong>de</strong> outro, o<br />
papel “mo<strong>de</strong>rnizador” disseminado pela economia <strong>de</strong> mercado oci<strong>de</strong>ntal no intercêmbio<br />
econòmico, polÉtico e social entre os Estados Unidos, notadamente, e a intelligentsia árabe faz<br />
com que “o Oriente mo<strong>de</strong>rno, em suma”, participe “<strong>de</strong> sua prÑpria orientalizaÅÇo” 346 .<br />
A evi<strong>de</strong>nte diferenÅa entre a visÇo que Ghazouani e a os donos da “Casa <strong>de</strong> chá Khan<br />
el Khalili” tÖm do árabe-muÅulmano talvez nÇo resida apenas no fato <strong>de</strong> que o primeiro<br />
342 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 248.<br />
343 GHAZOUANI, “’O Clone’ e o simulacro”. DisponÉvel em:<br />
.Acesso em 21 nov. 2009.<br />
344 KHALILI, “Portal Khan el Khalili”. DisponÉvel em: . Acesso<br />
em 10 set. 2009.<br />
345 SAID, 2007, p. 432.<br />
346 Ibi<strong>de</strong>m, p. 433.<br />
174
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> diplomaticamente a imagem cosmopolita do Marrocos junto ao mundo globalizado e<br />
o segundo explora comercialmente a imagem mais exÑtica da cultura junto a clientes<br />
estrangeiros. Talvez resida na constataÅÇo <strong>de</strong> que a “cultura nacional” ä qual cada um <strong>de</strong>les se<br />
apega como referencial <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> e como traÅo <strong>de</strong>finidor <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> enquanto sujeito<br />
nÇo passe <strong>de</strong> uma “comunida<strong>de</strong> imaginada” 347 , construÉda a partir <strong>de</strong> mëltiplos discursos que<br />
produzem sentidos sobre a “naÅÇo” compartilhada. Segundo Benedict An<strong>de</strong>rson, “As<br />
comunida<strong>de</strong>s nÇo <strong>de</strong>vem ser distinguidas por sua falsida<strong>de</strong>/autenticida<strong>de</strong>, mas pelo estilo em<br />
que sÇo imaginadas” 348 . A naÅÇo à imaginada como comunida<strong>de</strong> 349 porque à sempre<br />
concebida como um “companheirismo”, uma “fraternida<strong>de</strong>” profunda e horizontal entre<br />
compatriotas que jamais serÇo conhecidos, mas que compartilham a imagem <strong>de</strong> sua<br />
comunhÇo; à imaginada como limitada 350 porque “possui fronteiras <strong>de</strong>finidas, ainda que<br />
elásticas”, e como soberana 351 porque sonha em ser livre.<br />
Hall 352 lembra que as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais, aquelas que surgem do “‘pertencimento’ a<br />
culturas àtnicas, raciais, linguÉsticas, religiosas e, acima <strong>de</strong> tudo, nacionais”, foram<br />
“<strong>de</strong>scentradas”, “<strong>de</strong>slocadas ou fragmentadas” na pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, nÇo po<strong>de</strong>ndo mais ser<br />
tomadas com estáveis, unificadas e predizÉveis. GraÅas äs transformaÅâes constantes, rápidas<br />
e permanentes das socieda<strong>de</strong>s na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia, a combinaÅÇo <strong>de</strong> mëltiplas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s,<br />
mesmo que contraditÑrias e nÇo-resolvidas, tornou o processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo, outrora seguro<br />
e confortante, “mais provisÑrio, variável e problemático” 353 . Assim, diz o autor, “A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
torna-se uma ‘celebraÅÇo mÑvel’: formada e transformada continuamente em relaÅÇo äs<br />
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos<br />
ro<strong>de</strong>iam” 354 . A globalizaÅÇo teria afetado irremediavelmente o conjunto <strong>de</strong> significados que<br />
ao longo do tempo havia se solidificado na unificaÅÇo da representaÅÇo cultural <strong>de</strong> cada<br />
socieda<strong>de</strong> nacional.<br />
Ghazouani e a “Casa <strong>de</strong> chá Khan el Khalili” reproduzem diferentes narrativas sobre o<br />
árabe-muÅulmano: uma marcada pela lÑgica do progresso, outra, pela valorizaÅÇo da tradiÅÇo.<br />
Ambas revelam sentidos sobre si mesmos que foram culturalmente construÉdos e<br />
compartilhados quer a partir dos discursos consolidados “nas histÑrias e nas literaturas<br />
347 ANDERSON, 1989.<br />
348 Ibi<strong>de</strong>m, p. 15.<br />
349 Ibi<strong>de</strong>m, p. 16.<br />
350 Ibi<strong>de</strong>m, p. 15.<br />
351 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
352 HALL, 2005, p. 8.<br />
353 HALL, 2005, p. 12.<br />
354 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 12-13.<br />
175
nacionais, na mÉdia e na cultura popular” 355 ; quer a partir da crenÅa “nas origens, na<br />
continuida<strong>de</strong>, na tradição e na intemporalida<strong>de</strong>” 356<br />
176<br />
[grifos do autor] do que se crÖ<br />
essencialmente imutável; quer ainda a partir da “tradiÅÇo inventada” ou do “mito fundacional”<br />
ou entÇo na originalida<strong>de</strong> do povo. Como qualquer discurso sobre uma cultura nacional, as<br />
narrativas <strong>de</strong> ambas as “autorida<strong>de</strong>s” (o embaixador e o comerciante/agente cultural) sobre o<br />
mundo árabe-muÅulmano equilibram-se “entre a tentaÅÇo por retornar a glÑrias passadas e o<br />
impulso por avanÅar ainda mais em direÅÇo ä mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” 357 . Tais diferenÅas na forma <strong>de</strong><br />
representar uma cultura nacional apenas expressam o mito da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural unificada: ao<br />
contrário do que fazem crer as representaÅâes que se produzem sobre elas, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
nacionais nada tÖm <strong>de</strong> unificadas e homogÖneas ─ as travessias e compressâes temporais e<br />
espaciais produzidas pela globalizaÅÇo as tÖm tornado cada vez mais <strong>de</strong>sintegradas e hÉbridas.<br />
Como diz Canclini,<br />
Já nÇo basta dizer que nÇo há i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s caracterizadas por essÖncias autocontidas e<br />
aistÑricas, nem entendÖ-las como as formas em que as comunida<strong>de</strong>s se imaginam e<br />
constroem relatos sobre sua origem e <strong>de</strong>senvolvimento. Em um mundo tÇo<br />
fluidamente interconectado, as dimensâes i<strong>de</strong>ntitárias organizadas em conjuntos<br />
histÑricos mais ou menos estáveis (etnias, naÅâes, classes) se reestruturam em meio a<br />
conjuntos interàtnicos, transclassistas e transnacionais. 358<br />
Valendo-se disso, Gloria Perez construiu uma representaÅÇo que sintetizou na ficÅÇo<br />
as muitas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dos muÅulmanos. Colocou em diálogo o arcaico Tio Abdul com o<br />
religioso progressista Tio Ali, que havia estudado na Inglaterra; os jovens irmÇos<br />
tradicionalistas Mohamed e Said com o mo<strong>de</strong>rno “cidadÇo do mundo” Zein; as odaliscas Ja<strong>de</strong><br />
e Latiffa (a primeira, rebel<strong>de</strong>, e a segunda, submissa) com a tÉpica virgem casadoira Nazira e<br />
ainda com a subalterna maternal Zorai<strong>de</strong>.<br />
ï preciso consi<strong>de</strong>rar que, sendo “O Clone” inicialmente uma histÑria sobre clonagem<br />
humana, o tema muÅulmano tinha importência secundária na trama, embora se <strong>de</strong>stacasse pela<br />
novida<strong>de</strong> e pela curiosida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>spertava no pëblico. Embora Ja<strong>de</strong> fosse a protagonista da<br />
novela e a histÑria <strong>de</strong> seu amor impossÉvel por Lucas fosse o fio condutor que entrelaÅava<br />
clone e clonado, o nëcleo muÅulmano nÇo ocupava o primeiro plano da narrativa.<br />
Comparativamente, em “O Clone” houve muito menos tempo <strong>de</strong> exposiÅÇo da cultura<br />
muÅulmana do que aquele ocupado pela cultura indiana em “Caminho das índias”. Assim, a<br />
complexida<strong>de</strong> e a diversida<strong>de</strong> cultural árabe sofreram muito mais com a con<strong>de</strong>nsaÅÇo exigida<br />
355 HALL, 2005, p. 52.<br />
356 Ibi<strong>de</strong>m, p. 53.<br />
357 Ibi<strong>de</strong>m, p. 56.<br />
358 CANCLINI, 2008, p. XXIII.
na criaÅÇo da alegoria sobre o muÅulmano do que aquela exigida na criaÅÇo da alegoria sobre<br />
o hindu. Intimamente integrado ä centralida<strong>de</strong> da trama, o nëcleo indiano teve presenÅa<br />
marcante na construÅÇo <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>sdobramentos da histÑria, permitindo uma<br />
representaÅÇo on<strong>de</strong> as nuances da cultura e da religiÇo hindu podiam ser notadas na<br />
profundida<strong>de</strong> possÉvel a uma obra televisiva.<br />
Ciente <strong>de</strong> que “ao lado da tendÖncia em direÅÇo ä homogeneizaÅÇo global, há tambàm<br />
uma fascinaÅÇo com a diferença e com a mercantilizaÅÇo da etnia e da “alterida<strong>de</strong>’” 359 [grifo<br />
do autor], Gloria Perez povoa a Medina <strong>de</strong> Fez e a Jaipur da ficÅÇo com seres que transitam<br />
entre o local e o global ─ tal à a sua estratàgia para acentuar a diversida<strong>de</strong>. Tanto no nëcleo<br />
muÅulmano como no indiano, à possÉvel encontrar personagens isolados e exilados na<br />
impermeável i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural local e outros que se mostram verda<strong>de</strong>iros turistas a transitar<br />
permanentemente entre o local e o global. Por forÅa <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s pessoais e profissionais,<br />
personagens como Ja<strong>de</strong>, Zein, Raj, Bahuam e Camila sÇo obrigados a cruzar fronteiras<br />
culturais tantas vezes e tÇo intensamente que acabam adquirindo uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> hÉbrida,<br />
capaz <strong>de</strong> traduzir com mais compreensÇo os cÑdigos estrangeiros ─ ao contrário <strong>de</strong> Abdul,<br />
Opash e Ahmitab, prisioneiros <strong>de</strong> sua localida<strong>de</strong> (embora Opash tenha visitado o Brasil por<br />
duas vezes, manteve-se sempre impermeável ao Outro-nÇo-indiano). Pertencentes a dois<br />
mundos, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s “irrevogavelmente traduzidas” 360 , Ja<strong>de</strong>, Zein, Raj, Bahuam e Camila<br />
carregam a tarefa <strong>de</strong> “falar” duas culturas e <strong>de</strong> negociar entre elas. SÑ o diálogo, segundo<br />
Todorov, po<strong>de</strong> estabelecer tal ponte: porque “à falando ao outro ([...] dialogando com ele), e<br />
somente entÇo, que reconheÅo nele uma qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeito, comparável ao que eu mesmo<br />
sou” 361 [grifo do autor]. O diálogo entre culturas estabelecido pelas personagens “em trênsito”<br />
expressam a missÇo da autora <strong>de</strong> dar a conhecer mutuamente o Eu e o Outro.<br />
Embora costumes rurais e mo<strong>de</strong>rnos estivessem muitas vezes <strong>de</strong>slocados <strong>de</strong> seus<br />
espaÅos originais; embora a geografia das cida<strong>de</strong>s fictÉcias trouxesse cenários que lhe sÇo<br />
externos; embora as nuances do pensamento estivessem simplificadas; e embora a diversida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> lÉnguas e religiâes nÇo tivesse sido explorada em sua dimensÇo real, a sÉntese apresentada<br />
por Gloria Perez ofereceu um retrato que, como foi visto anteriormente, nÇo <strong>de</strong>smentiu a<br />
diversida<strong>de</strong> testemunhada na realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes mundos e em nada contradisse as imagens que<br />
se multiplicam na literatura e nas narrativas ficcionais (vi<strong>de</strong> Bollywood) nem nos relatos<br />
visuais <strong>de</strong> documentários, reportagens e registros domàsticos. Limitada pela superficialida<strong>de</strong><br />
359 HALL, 2005, p. 77.<br />
360 Ibi<strong>de</strong>m, p.89.<br />
361 TODOROV, 1999, p. 157.<br />
177
do gÖnero telenovela e autorizada pela ficÅÇo, a autora construiu uma representaÅÇo <strong>de</strong><br />
muÅulmanos e indianos que contribuiu para a compreensÇo e o respeito das diferenÅas. NÇo sÑ<br />
pelo que foi mostrado em cena e pela maneira com que foi mostrado, mas tambàm pela<br />
curiosida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>spertou no brasileiro sobre mundos tÇo distantes e tÇo <strong>de</strong>sconhecidos entre<br />
nÑs. Publicado no jornal indiano Hinduistan Times, o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> B. S. Prakash,<br />
embaixador da índia no Brasil, atesta a importência da ponte <strong>de</strong> entendimento criada por<br />
Gloria Perez e o efeito positivo da curiosida<strong>de</strong> que a novela <strong>de</strong>spertou sobre o paÉs:<br />
178<br />
Como diplomata há mais <strong>de</strong> 30 anos, tenho representado a índia em todos os<br />
continentes do mundo: Europa, ôsia, Amàrica do Norte, ôfrica e agora, Amàrica do<br />
Sul. E durante todos esses anos, nunca vi nada comparado ao que estou vendo agora: a<br />
mais estranha e forte manifestaÅÇo <strong>de</strong> atraÅÇo pela índia por meio da novela brasileira<br />
“Caminho das índias”.<br />
[...] A índia à um pais complexo e nossas contradiÅâes e hábitos curiosos nÇo sÇo<br />
sempre fáceis <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r. [...] Tenho batalhado sempre para mostrar para o<br />
pëblico <strong>de</strong> um paÉs estrangeiro algo sobre minha terra e seus valores. Mas nunca havia<br />
imaginado que uma novela popular po<strong>de</strong>ria alterar tÇo dramaticamente as impressâes<br />
<strong>de</strong> um paÉs, principalmente um paÉs tÇo gran<strong>de</strong> e populoso quanto o Brasil.<br />
è medida que a novela “Caminho das índias” chega ä casa dos brasileiros todas as<br />
noites, a curiosida<strong>de</strong> e a afeiÅÇo pela índia parecem estar crescendo. NÑs sabemos disso<br />
pelo numero e pelo tipo <strong>de</strong> questionamento que recebemos em nossa embaixada [...].<br />
[...] Nas perguntas mais freq§entes sobre casamentos arranjados, sistemas <strong>de</strong> casta,<br />
dote e similares, aproveitamos a oportunida<strong>de</strong> para mostrar nossa índia mo<strong>de</strong>rna. 362<br />
[tradução nossa]<br />
Gloria Perez nÇo sÑ reconhece que seu papel como autora <strong>de</strong> telenovelas à justamente<br />
o <strong>de</strong> “colocar um assunto em discussÇo”, unir “o paÉs em torno <strong>de</strong> um assunto” 363 , como<br />
assume a responsabilida<strong>de</strong> social que tal constataÅÇo implica: “Se vocÖ faz um paÉs inteiro<br />
discutir com quem vai ficar a mocinha, tambàm po<strong>de</strong> fazer todo mundo discutir algo que<br />
mu<strong>de</strong> a vida das pessoas” 364 . Dessa maneira, a autora faz a ficÅÇo atuar sobre a realida<strong>de</strong>. Foi<br />
precisamente <strong>de</strong>sta consciÖncia polÉtica que surgiram suas campanhas sociais,<br />
equivocadamente chamadas <strong>de</strong> “merchandising social”. Atravàs <strong>de</strong>las, a autora se <strong>de</strong>dicou,<br />
para citar apenas “O Clone” e “Caminho das índias”, a dar visibilida<strong>de</strong> ao drama dos<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes mentais no Brasil, problemas cuja discussÇo lhe pareceu<br />
importante colocar na pauta dos milhâes <strong>de</strong> brasileiros que assistem a suas novelas. Assim,<br />
valendo-se da mesma habilida<strong>de</strong> com que construiu pontes <strong>de</strong> entendimento com o Outro-<br />
362 PRAKASH, “Ma<strong>de</strong> in Brazil”, disponÉvel em: . Acesso em 10 nov. 2009.<br />
363 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 247.<br />
364 PEREZ apud. “Namastà, Brasil: Gloria Perez abre a casa, fala <strong>de</strong> vida, morte e rebate crÉticas”. DÉsponÉvel<br />
em: .<br />
Acesso em 25 jul. 2009.
estrangeiro muÅulmano e indiano, a autora promoveu um olhar mais humanizado sobre os<br />
Outros-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo, aqueles que o brasileiro, “normal e sÇo”, segrega fora dos domÉnios<br />
do Eu, em sua indiferenÅa e <strong>de</strong>sconhecimento. (ImpossÉvel aqui nÇo citar o comentário <strong>de</strong><br />
Luis Costa Lima sobre a metáfora que encobre o mundo dos “normais”, dos “sÇos”, em<br />
relaÅÇo ao mundo do sanatÑrio, no romance Armadilha para Lamartine, <strong>de</strong> Carlos & Carlos<br />
Sussekind: “são à apenas o falso plural do é burguÖs” 365 [grifos nossos], uma armadilha <strong>de</strong><br />
palavras que confun<strong>de</strong> o fato <strong>de</strong> que “o mundo da cura psiquiátrica à, na verda<strong>de</strong>, o mundo da<br />
reeducaÅÇo para o bom funcionamento da socieda<strong>de</strong> alàm muros” 366 .)<br />
As campanhas empreendidas em “O Clone” e “Caminho das índias” seguiram o estilo<br />
inaugurado pela autora na discussÇo <strong>de</strong> temas sociais: foram construÉdas com um pà na<br />
realida<strong>de</strong> e outro na ficÅÇo. Gloria Perez comeÅa apresentando as personagens Mel e Lobato<br />
(e ainda, com menos importência, Nando e Regininha) e Tarso em seus dramas pessoais. Em<br />
“O Clone”, Mel à filha <strong>de</strong> Lucas, um jovem que foi impedido por seu pai <strong>de</strong> seguir o sonho <strong>de</strong><br />
ser mësico e <strong>de</strong> unir-se a sua amada muÅulmana Ja<strong>de</strong> para assumir os negÑcios da empresa<br />
familiar e casar-se com a namorada do irmÇo gÖmeo que morrera num aci<strong>de</strong>nte. Sua mÇe à<br />
Maysa, moÅa fëtil e rica que amava Diogo, o irmÇo irreverente <strong>de</strong> Lucas, e que, diante da<br />
morte do amado, casa-se com o “cunhado”. O pai <strong>de</strong> Mel à um homem frustrado, amargurado<br />
pelo abandono <strong>de</strong> seus sonhos; sua mÇe, uma mulher infeliz no casamento e <strong>de</strong>dicada ao<br />
conforto da vida <strong>de</strong> riqueza. Mel à uma menina que cresce sob os olhares distraÉdos dos pais e<br />
que acaba encontrando refëgio para a indiferenÅa nas drogas. Por outro lado, a novela<br />
apresenta Lobato, advogado das empresas da famÉlia <strong>de</strong> Lucas. Profissional competente, pai<br />
<strong>de</strong> famÉlia, amigo e homem <strong>de</strong> confianÅa do patrÇo Leònidas Ferraz, Lobato tem uma<br />
fraqueza: está livre do vÉcio da cocaÉna há um tempo, mas à alcoÑlatra. Se Mel experimenta o<br />
entusiasmo pela droga, Lobato, que está “limpo” mas sofre recaÉdas, foi concebido para<br />
funcionar como a consciÖncia da <strong>de</strong>struiÅÇo do vÉcio. Em “Caminho das índias”, Tarso à o<br />
filho mais novo <strong>de</strong> Ramiro e Melissa: o pai à um empresário rico que usa sua personalida<strong>de</strong><br />
forte e extrovertida tanto para li<strong>de</strong>rar negociaÅâes profissionais como para pressionar o caÅula<br />
a se preparar para assumir os negÑcios da famÉlia; a mÇe à uma “perua” alienada que sÑ pensa<br />
em estàtica e tem no filho o seu “prÉncipe <strong>de</strong> olhos azuis”. Tarso à um jovem sensÉvel e<br />
brilhante nos estudos e repleto da aptidâes artÉsticas que fica tÇo ameaÅado diante das<br />
pressâes do pai que <strong>de</strong>senvolve esquizofrenia.<br />
365 LIMA, 1981, p. 129.<br />
366 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
179
A apresentaÅÇo dos dramas <strong>de</strong> cada um prepara o pëblico para as duras cenas do<br />
martÉrio imposto pela <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica e pela loucura: nunca uma telenovela abordou<br />
com tanta crueza e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za tais universos. Mel, a moÅa <strong>de</strong> famÉlia à presa por porte <strong>de</strong><br />
drogas; participa <strong>de</strong> assalto a ònibus para comprar droga; forja assalto a sua prÑpria casa e<br />
expâe sua mÇe ä mira <strong>de</strong> um revÑlver; à atormentada por <strong>de</strong>lÉrios e <strong>de</strong>pressâes; forÅa a mÇe a<br />
subir o morro para libertá-la dos traficantes; sofre aborto espontêneo, quase morre e pâe a<br />
vida do filho em risco durante o parto. Lobato, o advogado per<strong>de</strong> a famÉlia e o emprego; reluta<br />
diante do reconhecimento <strong>de</strong> seu vÉcio; participa <strong>de</strong> longas sessâes <strong>de</strong> terapia em que narra<br />
cenas tÇo chocantes como as experimentadas por Mel; fraqueja inëmeras vezes em meio ao<br />
tratamento, em cenas <strong>de</strong> violÖncia e auto<strong>de</strong>struiÅÇo. Tarso, o rapaz <strong>de</strong> futuro promissor à<br />
atormentado por vozes; protagoniza atos <strong>de</strong> violÖncia, motivado por seus <strong>de</strong>lÉrios; sofre <strong>de</strong><br />
paranÑia persecutÑria e, apavorado, refugia-se no escuro <strong>de</strong> seu quarto ou <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> sua<br />
escrivaninha; <strong>de</strong>senvolve tiques nervosos e alucinaÅâes; caminha obsessivamente, por dias,<br />
atà ser encontrado exausto, jogado no meio da rua ou na praia. O testemunho da <strong>de</strong>vastaÅÇo<br />
causada pelas drogas e pela doenÅa mental nas vidas <strong>de</strong> personagens atà entÇo queridos do<br />
pëblico, promove empatia imediata e compaixÇo pelo drama da ficÅÇo.<br />
O uso <strong>de</strong> instituiÅâes, reais e fictÉcias, <strong>de</strong> apoio e tratamento da <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica e<br />
da doenÅa mental à a brecha atravàs da qual Gloria Perez traz a realida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>ntro da<br />
ficÅÇo, costurando ä trama <strong>de</strong>poimentos colhidos entre viciados e loucos da vida real e seus<br />
familiares. A autora fez as mÇes <strong>de</strong> Mel e Nando procurarem ajuda junto aos NarcÑticos<br />
Anònimos e levou os prÑprios viciados (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhes impor muito martÉrio) a participar das<br />
reuniâes. Aos <strong>de</strong>poimentos das mÇes da ficÅÇo somaram-se os testemunhos dos parentes e das<br />
vÉtimas reais do vÉcio. Entremeadas äs cenas que expunham todas as cores dos dramas <strong>de</strong> Mel<br />
e Lobato, surgiam tomadas dos olhos, das bocas e das mÇos dos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da vida real.<br />
Para alàm do tratamento imagàtico diferenciado que franqueava ao pëblico o passaporte para<br />
os <strong>de</strong>poimentos verÉdicos, o “fatiamento” dos viciados foi usado pela autora como linguagem:<br />
“Quero mostrar a personalida<strong>de</strong> partida pelo vÉcio” 367 . Enquanto Maysa se preparava para<br />
subir o morro, perguntando-se se conseguiria vencer o pavor <strong>de</strong> talvez encontrar a filha morta<br />
sob os <strong>de</strong>smandos do tráfico, uma mÇe da vida real contava os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> seu drama quando<br />
teve que buscar a filha na favela. O <strong>de</strong>poimento dura o tempo do percurso <strong>de</strong> Maysa atà<br />
367<br />
PEREZ, s/d. Entrevista sem origem no site Youtube (“O Clone: entrevista Gloria Perez sobre a questÇo do uso<br />
das drogas”). DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 21 nov. 2009.<br />
180
chegar ao encontro <strong>de</strong> Mel e segue com a ficÅÇo na mesma linha dos acontecimentos narrados<br />
pela mÇe <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. O mesmo acontece durante as recaÉdas <strong>de</strong> Lobato.<br />
Em “Caminho das índias”, a autora se vale da clÉnica do Doutor Castanho, on<strong>de</strong> Tarso<br />
acaba por fazer tratamento, para dar voz a vários doentes mentais da realida<strong>de</strong>, fazendo ecoar<br />
os anseios dos pacientes por inclusÇo social e suas opiniâes a respeito do tratamento<br />
manicomial no Brasil. Os <strong>de</strong>poimentos estÇo, como em “O Clone”, inseridos na trama: ou<br />
aparecem numa conversa entre Tarso e outros colegas pacientes, ou em resposta äs perguntas<br />
do màdico da ficÅÇo, ou ainda nos testemunhos captados pela lente da cêmera <strong>de</strong> Leinha, a<br />
personagem documentarista. Na campanha pela inclusÇo social dos doentes mentais,<br />
“Caminho das índias” programou shows dos “Cancioneiros do IPUB”, grupo musical<br />
composto por pacientes do Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria da UFRJ, e do “Harmonia Enlouquece”,<br />
banda <strong>de</strong> mësica formada por pacientes e funcionários do Centro Psiquiátrico Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
e chegou mesmo a incluir suas canÅâes na trilha sonora da novela.<br />
Tanto no caso dos muÅulmanos e indianos (os Outros-estrangeiros) quanto no caso dos<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes mentais (os Outros-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo), o enfoque na<br />
conduÅÇo das personagens e das questâes (psicolÑgicas, familiares, sociais, polÉticas e<br />
màdicas) que as envolviam foi resultado <strong>de</strong> uma extensa pesquisa realizada nÇo sÑ com<br />
especialistas como, principalmente, com os prÑprios Outros. Gloria Perez teve o cuidado <strong>de</strong><br />
ouvir autorida<strong>de</strong>s na cultura muÅulmana e indiana, consultá-las inëmeras vezes sobre<br />
costumes, expressâes e práticas religiosas, mas nÇo se furtou <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r seu trabalho<br />
etnográfico aos árabes e indianos comuns, gente que morava no Brasil, que estava no paÉs <strong>de</strong><br />
passagem, ou que estava nos seus paÉses <strong>de</strong> origem; ouviu tambàm os brasileiros que viviam<br />
naquelas naÅâes ou que mantinham contato constante com elas. Gravou entrevistas<br />
<strong>de</strong>talhadÉssimas, manteve um canal aberto pela internet com informantes resi<strong>de</strong>ntes fora do<br />
Brasil e contou com a consultoria permanente do xeque Jihad Hassan Hamma<strong>de</strong>h, vice-<br />
presi<strong>de</strong>nte da World Assembly of Muslim Youth (Wamy), e do casal Jayanthy, fÉsicos<br />
nucleares indianos da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Campinas (por serem brêmanes, os Jayanthy nÇo sÑ<br />
orientaram na conduÅÇo dos aspectos culturais e filosÑficos da trama como muitos vezes<br />
oficiaram as cerimònias religiosas encenadas na novela).<br />
O cruzamento <strong>de</strong> tantos e tÇo variados testemunhos na fase da pesquisa e da produÅÇo<br />
expressa a preocupaÅÇo da autora com a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do que escreve. NÇo sÑ para evitar<br />
distorÅâes e <strong>de</strong>srespeitos em relaÅÇo äs culturas abordadas como tambàm para garantir a<br />
divulgaÅÇo do ponto <strong>de</strong> vista dos Outros. Especialmente nas entrevistas com os drogados, os<br />
loucos e seus familiares, fruto da gran<strong>de</strong> relaÅÇo <strong>de</strong> confianÅa estabelecida entre a autora e os<br />
181
entrevistados, a preocupaÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez era dar voz a grupos que raramente eram<br />
ouvidos. Segundo a autora 368 , sua intenÅÇo era abrir espaÅo para estes segmentos que nunca<br />
tÖm voz e que nÇo dispâem <strong>de</strong>ssa janela que à a telenovela para fazer chegar ä socieda<strong>de</strong> o seu<br />
ponto <strong>de</strong> vista. “A mÉdia sempre ouve o que a polÉcia e os psiquiatras pensam <strong>de</strong>les e jamais<br />
se ocupa <strong>de</strong> saber como eles prÑprios pensam a sua condiÅÇo” 369 , comenta a autora. Foi <strong>de</strong>ste<br />
contato franco com drogados e esquizofrÖnicos que saÉram os principais trunfos <strong>de</strong> suas<br />
campanhas em “O Clone” e “Caminho das índias”: a informaÅÇo <strong>de</strong> que “droga à bom” e à<br />
por isso que vicia (informaÅÇo sempre sonegada nas campanhas anti-drogas, segundo<br />
<strong>de</strong>nunciaram os <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos entrevistados) e o esclarecimento da diferenÅa entre<br />
doente mental (louco) e psicopata (confusÇo usual na socieda<strong>de</strong> que resulta no equivocado<br />
temor do louco como violento, segundo <strong>de</strong>nëncia dos doentes mentais consultados).<br />
Talvez por sua formaÅÇo acadÖmica em HistÑria, ciÖncia que se <strong>de</strong>bruÅa sobre os<br />
homens para conhecer suas atuaÅâes no tempo e no espaÅo, Gloria Perez mostrou-se cautelosa<br />
e respeitosa na construÅÇo <strong>de</strong>stes Outros, fugindo da abordagem leviana e sensacionalista dos<br />
estereÑtipos que mais facilmente apelam para as imagens já consolidadas na audiÖncia. Com<br />
base em sua percepÅÇo <strong>de</strong> que “o nosso umbigo nÇo à mesmo a janela mais ampla para se<br />
observar o mundo” 370 ─ à sÑ mais uma janela <strong>de</strong>ntre tantas outras ─, a autora afirma que seu<br />
empenho, nas duas telenovelas aqui estudadas, foi mostrar a “diversida<strong>de</strong> do mundo”, a<br />
existÖncia <strong>de</strong> “povos que enten<strong>de</strong>m a vida <strong>de</strong> maneira singular, que buscam uma forma <strong>de</strong><br />
viver que à diferente e legÉtima” 371 . Segundo a novelista 372 , para que as novelas pu<strong>de</strong>ssem<br />
levar ao ar uma narrativa sem preconceito, que pu<strong>de</strong>ssem ser conduzidas pelo olhar do<br />
diferente, era preciso oferecer ä audiÖncia ─ e mesmo ä direÅÇo e ao elenco da novela ─ uma<br />
experiÖncia <strong>de</strong>safiadora: que todos se <strong>de</strong>spissem <strong>de</strong> seus preconceitos, <strong>de</strong> sua maneira <strong>de</strong><br />
pensar, para que entrassem na pele alheia, para que assumissem um ponto <strong>de</strong> vista externo ao<br />
seu; e que fizessem isso sem assumir um olhar superior em relaÅÇo ao diferente. Ouvir o<br />
diferente sem a arrogência do prà-conhecimento e da superiorida<strong>de</strong> foi a proposta que a autora<br />
ofereceu aos atores: fez com que ouvissem <strong>de</strong> estrangeiros recàm-chegados ao Brasil, por<br />
exemplo, o que lhes chamava a atenÅÇo no paÉs, e assim proporcionou aos profissionais da<br />
telenovela a experiÖncia <strong>de</strong> se sentirem estranhos pelo ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> outra cultura.<br />
368 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 242.<br />
369 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
370 Ibi<strong>de</strong>m, p. 237.<br />
371 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
372 Ibi<strong>de</strong>m, p. 244.<br />
182
Fora dos bastidores, o cuidado na representaÅÇo do Outro chegava äs telas embrulhado<br />
na prÑpria tàcnica da autora, que nÇo sÑ constrÑi personagens extremamente humanos como<br />
tambàm se preocupa em apresentá-los <strong>de</strong> modo a que conquistem o pëblico. Na narrativa,<br />
Mel, Lobato e Tarso sÇo apresentados ao pëblico antes <strong>de</strong> se tornarem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos<br />
e doentes mentais. Ao mostrar seus sonhos, sua alegria, seus talentos e suas frustraÅâes, a<br />
novelista permite que suas angëstias e sofrimentos sejam acolhidos com generosida<strong>de</strong>.<br />
Segundo ela, para que o pëblico se afeiÅoe pelos tipos que habitam a trama da ficÅÇo e<br />
“comprem” sua histÑria, à preciso que se envolvam em seus dramas:<br />
183<br />
Se as pessoas nÇo comprarem o personagem, elas nÇo se interessam pelo que acontece<br />
com ele. Isso está na minha cartilha. Por isso eu jamais comeÅaria uma novela com<br />
uma campanha; primeiro o autor tem que ven<strong>de</strong>r o folhetim. VocÖ se importa com o<br />
que acontece com quem vocÖ se importa. VocÖ tem que se envolver com aquela<br />
personagem para se importar com o que acontece com ela. 373<br />
As duas telenovelas souberam construir representaÅâes bastante legÉtimas do Outro-<br />
estrangeiro (muÅulmano e indiano) e do Outro-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo (os estigmatizados). De tal<br />
modo isso à verda<strong>de</strong> que inëmeras foram as manifestaÅâes que <strong>de</strong>monstraram uma nova ─ e<br />
positiva ─ percepÅÇo <strong>de</strong>stes grupos por parte dos brasileiros. Da fascinaÅÇo ä curiosida<strong>de</strong>, a<br />
reaÅÇo da audiÖncia <strong>de</strong>spertou no paÉs uma febre árabe e uma febre indiana, on<strong>de</strong> foram<br />
registrados um aumento expressivo no nëmero <strong>de</strong> exemplares do AlcorÇo vendidos 374 , a<br />
massiva procura por bijouterias e roupas árabes e indianas, a adoÅÇo <strong>de</strong> expressâes do idioma<br />
árabe ou hÉndi pela populaÅÇo, o aumento da oferta <strong>de</strong> cursos e palestras sobre as culturas<br />
abordadas nas novelas, o gran<strong>de</strong> sucesso das mësicas árabe e indiana incluÉdas na trilha sonora<br />
do folhetim, e a enorme procura por fantasias <strong>de</strong> odalisca e indiana na àpoca do Carnaval.<br />
Da mesma forma, as informaÅâes divulgadas sobre os drogados e doentes mentais e a<br />
visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus dramas nas novelas resultaram em um efeito imediato sobre a populaÅÇo:<br />
o aumento no nëmero <strong>de</strong> jovens viciados que procuraram tratamento ─ muitos <strong>de</strong>les por conta<br />
prÑpria; a expressiva reaproximaÅÇo entre pais e filhos viciados 375 ; a proliferaÅÇo <strong>de</strong><br />
373 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 242.<br />
374 Atà 2002, “adquirir um exemplar da bÉblia islêmica era tarefa árdua”, mas “ApÑs o atentado ao centro<br />
comercial <strong>de</strong> Nova Iorque em 11 <strong>de</strong> setembro, a busca <strong>de</strong>senfreada por informaÅâes sobre a cultura muÅulmana<br />
tornou o livro indispensável para se compreen<strong>de</strong>r a nova geopolÉtica mundial e, quem diria, atà a novela das<br />
oito”. RODRIGUES e VANNUCHI, disponÉvel em: .<br />
Acesso em 27 nov. 2006.<br />
375 Depoimento <strong>de</strong> Pedro Simon in “Simon elogia campanha <strong>de</strong> ‘O Clone’ contra as drogas”, disponÉvel em:<br />
, Acesso<br />
em 2 jul. 2009.
eportagens sobre <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica nos veÉculos <strong>de</strong> comunicaÅÇo 376 ; a criaÅÇo, pelo<br />
Ministàrio da Saë<strong>de</strong>, <strong>de</strong> 120 centros <strong>de</strong> atenÅÇo para <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos 377 ; a votaÅÇo <strong>de</strong><br />
um projeto <strong>de</strong> lei que mudou a regulamentaÅÇo do combate äs drogas 378 ; o aumento <strong>de</strong> 10%<br />
na procura por tratamento da esquizofrenia na Santa Casa <strong>de</strong> MisericÑrdia do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro 379 ; e a expressiva procura pelo livro Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado, que<br />
ficou em primeiro lugar na lista dos mais vendidos durante <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> semanas 380 . O<br />
<strong>de</strong>poimento da psiquiatra PatrÉcia Schmid, vice-diretora do Instituto Nise da Silveira, dá uma<br />
amostra da qualida<strong>de</strong> da representaÅÇo dos doentes mentais em “Caminho das índias” e do<br />
impacto que produziu na humanizaÅÇo e <strong>de</strong>sestigmatizaÅÇo dos pacientes da vida real:<br />
184<br />
Todos os dias na minha sala, eu recebo clientes que vÖm comentar comigo sobre as<br />
cenas da novela. Sentem-se i<strong>de</strong>ntificados com o que Tarso está passando e felizes por<br />
estarem sendo vistos como pessoas que adoeceram e sofreram muito, trincando o<br />
imaginário social para o qual os esquizofrÖnicos sÇo todos violentos e perigosos.<br />
Bruno [o ator Bruno Gagliasso, que interpreta Tarso], com sua atuaÅÇo perfeita, tem<br />
produzido em muitos que assistem ä novela, uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidar. OuÅo as pessoas<br />
dizerem que gostariam <strong>de</strong> ajudá-lo, que <strong>de</strong>sejariam convencer seus pais a aceitarem o<br />
tratamento. Tarso tem <strong>de</strong>spertado mais ainda a curiosida<strong>de</strong> sobre a doenÅa e seu<br />
processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento. A loucura produz horror, mas atravàs da novela tem<br />
produzido empatia e curiosida<strong>de</strong>.<br />
[...] Portanto, imagino que o sucesso <strong>de</strong> Tarso tenha relaÅÇo com a construÅÇo <strong>de</strong> um<br />
olhar sobre o louco que o HUMANIZA [...] [grifo da autora]<br />
[...] Isso toca no processo <strong>de</strong> estigmatizaÅÇo, incidindo sobre um dos seus elementos<br />
geradores, justamente a crenÅa <strong>de</strong> que loucos nÇo sÇo completamente humanos. Tarso<br />
está produzindo dëvidas sobre isso e à ai que eu acredito que ele esteja iniciando um<br />
golpe no estigma!! 381<br />
Captado ainda na fase <strong>de</strong> pesquisa da novela, o anseio dos doentes mentais <strong>de</strong> que<br />
fossem vistos como ëteis e sensÉveis, e nÇo como violentos, <strong>de</strong>terminou a inclusÇo <strong>de</strong> uma<br />
personagem <strong>de</strong>cisiva para o andamento da trama: a psicopata Yvone. Suas aÅâes, movidas<br />
pela falta <strong>de</strong> emoÅÇo, pela indiferenÅa em relaÅÇo ao prÑximo e pela exacerbaÅÇo do racional,<br />
serviram <strong>de</strong> contraponto para marcar as diferenÅas com o doente mental, representado na<br />
novela como excessivamente afetuoso, nada violento e funcionalmente capaz. Na trama, a<br />
376<br />
GOMES e HOLZBACH, “A telenovela como espaÅo <strong>de</strong> reflexÇo sobre as drogas”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 21 nov. 2009.<br />
377<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
378<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
379<br />
PEREZ, “Deu no Extra”. DisponÉvel em: , reproduzindo matària intitulada “Aumenta procura para<br />
tratamento <strong>de</strong> esquizofrenia na Santa Casa do Rio”, publicada no Extra Online, em 7 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009.<br />
380<br />
“Lista estendida dos livros mais vendidos”. DisponÉvel em: .<br />
Acesso em 17 fev. 2010.<br />
381<br />
SCHMID, “Caminhos que ‘<strong>de</strong>sestigmatizam’”. DisponÉvel em: .<br />
Acesso em 21 nov. 2009.
diferenciaÅÇo marcada entre as representaÅâes do esquizofrÖnico Tarso e da psicopata Yvone<br />
serviram para <strong>de</strong>sfazer a confusÇo que injustamente impâe ao psicÑtico, portador <strong>de</strong> uma<br />
doenÅa curável, a imagem violenta do psicopata, esse ser geneticamente <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> afeto<br />
por uma <strong>de</strong>formaÅÇo incurável.<br />
“O Clone” e “Caminho das índias” produziram um efeito sem igual no imaginário<br />
popular brasileiro a respeito <strong>de</strong> muÅulmanos, indianos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes<br />
mentais. Igualmente, provocaram um olhar diferente sobre a cultura nacional. Numa narrativa<br />
repleta <strong>de</strong> contrapontos entre o estrangeiro e o local, a novelista <strong>de</strong>sarma a audiÖncia fazendo-<br />
a estranhar o diferente para em seguida <strong>de</strong>slocar seu foco na direÅÇo do Eu, trazendo ä<br />
consciÖncia (atravàs do riso, da compaixÇo ou da indignaÅÇo) comportamentos e culturas<br />
igualmente “estranhos”, antes con<strong>de</strong>nados ä invisibilida<strong>de</strong>. Gloria Perez fala do Outro nÇo<br />
porque a alterida<strong>de</strong> esteja em voga, mas sim porque à atravàs <strong>de</strong>le que a autora coloca seu<br />
paÉs em xeque. Faz questÇo <strong>de</strong> passear pelo Marrocos, pela índia e pelo Brasil na condiÅÇo <strong>de</strong><br />
estrangeira. E quer levar o estranhamento tambàm para os olhos do pëblico, neutralizando a<br />
aceitaÅÇo <strong>de</strong>liberada, provocando o <strong>de</strong>sconforto, o questionamento e a crÉtica, enfim,<br />
<strong>de</strong>snaturalizando a realida<strong>de</strong>.<br />
NÇo que a autora pintasse o Brasil em cores irreconhecÉveis. Nas duas novelas estÇo o<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro dos cartâes postais com suas praias e relevos inconfundÉveis. Lá estÇo tambàm<br />
os ricos e a classe màdia da Zona Sul carioca e os tipos mais populares da Zona Norte e do<br />
Centro. Casas em condomÉnios fechados, espaÅosas e finamente <strong>de</strong>coradas, convivem com<br />
sobrados <strong>de</strong> pequenos còmodos e sobrecarregados <strong>de</strong> enfeites; edifÉcios mo<strong>de</strong>rnos e imponentes<br />
guardam a se<strong>de</strong> das gran<strong>de</strong>s empresas enquanto lojas simples e <strong>de</strong>spojadas abrigam pastelarias e<br />
pequenos comàrcios. NÇo será atravàs da composiÅÇo dos cenários, da locaÅÇo dos lares e<br />
ambientes <strong>de</strong> trabalho, nem mesmo do figurino das personagens, que as narrativas levarÇo a<br />
audiÖncia ao questionamento. Nas telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, à o convite para assumir o ponto<br />
<strong>de</strong> vista do Outro que proporciona um novo olhar sobre o Eu brasileiro.<br />
Se as personagens “viajantes” que cruzam constantemente as fronteiras nacionais<br />
verbalizam em seu espanto as diferenÅas entre os dois mundos, tal contraponto tambàm se dá<br />
na oferta <strong>de</strong> tramas em “negativo”: a reverÖncia dos indianos com os mais velhos, inspirada<br />
na crenÅa <strong>de</strong> que “quando um velho morre, per<strong>de</strong>-se uma biblioteca inteira”, tem como<br />
contraponto o menosprezo <strong>de</strong> Ramiro em relaÅÇo ä capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliaÅÇo e <strong>de</strong>cisÇo do<br />
patriarca dos Cadore, con<strong>de</strong>nado em sua aposentadoria ä inutilida<strong>de</strong>; a obediÖncia dos filhos<br />
ao pai na famÉlia Ananda se opâe ä falta <strong>de</strong> limites com que Càsar Galo Goulart (<strong>de</strong>s)educa<br />
seu filho “pitboy”; o respeito incondicional pelos brêmanes, casta indiana <strong>de</strong> sábios,<br />
185
sacerdotes e professores, se traduz, no Brasil, pela arrogência, <strong>de</strong>sprezo e atà violÖncia com<br />
que Zeca e sua turma tratam a professora BerÖ; a intocabilida<strong>de</strong> e a invisibilida<strong>de</strong> dos dálits,<br />
párias da socieda<strong>de</strong> hindu, encontra paralelo na exclusÇo social imposta aos doentes mentais<br />
brasileiros. A autora didaticamente faz Camila expressar inëmeras vezes seu espanto com a<br />
falta <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>, com o impedimento <strong>de</strong> manifestar amor ao marido em pëblico, com a<br />
ofensa involuntária que seus momentos <strong>de</strong> reclusÇo representam para a famÉlia Ananda. Muito<br />
mais expressivo, no entanto, à o expediente narrativo <strong>de</strong> contrapor e intercalar cenas que,<br />
dramaticamente, expâem a distência (ou a insuspeita proximida<strong>de</strong>) entre as duas culturas.<br />
Assim, Gloria Perez representa o Eu como uma curiosa antÉtese (para o bem e para o<br />
mal) do Outro muÅulmano e indiano: a permanente oposiÅÇo forÅa a reflexÇo sobre valores<br />
que o brasileiro per<strong>de</strong>u (unida<strong>de</strong> da famÉlia, respeito aos mais velhos, e visÇo do indivÉduo<br />
como um ser coletivo) e o reconhecimento <strong>de</strong> que aquilo que repudiamos no diferente (a<br />
segregaÅÇo social e a intolerência com o estrangeiro) sÇo encontráveis tambàm entre nÑs (a<br />
exclusÇo dos doentes mentais da socieda<strong>de</strong> e a indiferenÅa com o drama do <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
quÉmico). A autora oferece ao pëblico uma representaÅÇo do Eu que forÅa o questionamento<br />
do que nos parece normal: como diz o psiquiatra Joel Birman, “NÇo se po<strong>de</strong> dizer que o Brasil<br />
foi colocado no divÇ, mas o estilo da narrativa se sustenta por uma ironia mordaz sobre os<br />
<strong>de</strong>sdobramentos funestos do jeitinho ä brasileira” 382 . Os “<strong>de</strong>svios <strong>de</strong> conduta das elites” e a<br />
“naturalizaÅÇo da psicopatia nas elites” 383 , segundo ele, sÇo vistos, por exemplo, no sucesso<br />
profissional e financeiro <strong>de</strong> Ramiro (apesar <strong>de</strong> nÇo ser exemplo <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>), no confisco que<br />
empreen<strong>de</strong> aos bens <strong>de</strong> sua cunhada, no engajamento criminoso <strong>de</strong> sua sobrinha para se<br />
vingar do tio que lhe tirou a fortuna, e no expediente <strong>de</strong> Raul <strong>de</strong> forjar a prÑpria morte para<br />
fugir com a amante e gastar no exterior o dinheiro do <strong>de</strong>sfalque produzido contra a empresa<br />
<strong>de</strong> sua famÉlia. O preconceito dos ricos e bem-sucedidos com a doenÅa mental po<strong>de</strong> ser<br />
observado no <strong>de</strong>sconforto <strong>de</strong> Melissa com a esquizofrenia <strong>de</strong> Tarso, vista por ela como uma<br />
mancha no currÉculo perfeito da famÉlia endinheirada, bonita e feliz; e tambàm em sua<br />
resistÖncia a entregar o filho ao tratamento, ao contrário da domàstica Cema, que, mesmo com<br />
dificulda<strong>de</strong>s, reconhece a importência do acompanhamento màdico <strong>de</strong> A<strong>de</strong>mir. O medo dos<br />
doentes mentais e a consequente crenÅa <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vam ser mantidos confinados, fora da<br />
socieda<strong>de</strong>, frutos da <strong>de</strong>sinformaÅÇo <strong>de</strong> muitos sobre as caracterÉsticas da psicose e da<br />
frequente confusÇo com a psicopatia, foram tratados com humor atravàs da personagem<br />
Suellen que, <strong>de</strong> um lado, <strong>de</strong>sfrutava da adorável companhia <strong>de</strong> seu parceiro <strong>de</strong> danÅa sem<br />
382 BIRMAN, “A pornografia no jeitinho brasileiro”, Jornal do Brasil, 23 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009, p. A10.<br />
383 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
186
saber que ele era psicÑtico, e, <strong>de</strong> outro, sequer passava perto da clÉnica psiquiátrica do noivo.<br />
Ao revelar a face velada e envergonhada <strong>de</strong> tantos Outros que habitam o Eu, a autora nÇo sÑ<br />
permite que os Outros-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo sejam vistos como sujeitos comparáveis a si<br />
prÑprios, mas tambàm expâe o lado nÇo tÇo “normal” e “sÇo” dos brasileiros.<br />
Em todas as suas representaÅâes do Eu e do Outro, a autora rejeitou o maniqueÉsmo e<br />
didatismo e abriu mÇo da arrogência do julgamento. No caso dos muÅulmanos e indianos<br />
locais e fiàis aos costumes mais arcaicos, a representaÅÇo nÇo lhes marcava com a pecha <strong>de</strong><br />
retrÑgrados; da mesma forma, os mais flexÉveis, os “turistas” que já haviam confrontado o<br />
universo local com o global nÇo agiam como se estivessem renegando os costumes em troca<br />
da “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”, embora os mais rÉgidos e idosos expressassem seu temor <strong>de</strong> que isso<br />
viesse acontecer e “<strong>de</strong>svirtuar” a famÉlia. Ambos eram somente apresentados como diferentes.<br />
A apresentaÅÇo <strong>de</strong> alguns costumes arcaicos como sendo estranhos (diferentes, curiosos) a nÑs<br />
era sempre contrabalanÅada com uma sabedoria ou um princÉpio filosÑfico que soava como<br />
uma contribuiÅÇo preciosa ä nossa mentalida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal e materialista. Da mesma forma, o<br />
papel das personagens “turistas” na trama nÇo era o <strong>de</strong> confrontar as mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>s do mundo<br />
oci<strong>de</strong>ntal com o arcaismo do mundo oriental ou os valores e a tradiÅÇo do Oriente com o vale-<br />
tudo do Oci<strong>de</strong>nte. Cabia a eles apenas fazer a traduÅÇo das culturas: aqui à assim, lá à assado.<br />
Nem melhor nem pior. Tanto que Raj, que estava prestes a se unir ä carioca Duda por amor<br />
nos mol<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais, foi convocado a contrair matrimònio com uma noiva <strong>de</strong>sconhecida<br />
(moÅa virtuosa escolhida por seus pais), aceitou a <strong>de</strong>terminaÅÇo da famÉlia (nÇo sem alguma<br />
resistÖncia, à verda<strong>de</strong>, afinal ele amava a brasileira), casou-se com Maya e se dispòs a<br />
construir um amor com ela já que assim era como <strong>de</strong>via ser feito. Em seus conselhos para o<br />
irmÇo, que tambàm estava apaixonado por uma “firanghi” estrangeira, Raj insistia em dizer a<br />
Ravi que sabia como ele se sentia por querer casar por amor, mas oferecia seu exemplo como<br />
alguàm que aceitou os costumes e estava feliz. Ambos os casamentos foram mostrados como<br />
uma uniÇo feliz.<br />
No contexto das relaÅâes marcadas pelo contato internacional, a autora ofereceu a<br />
perplexida<strong>de</strong> das personagens locais que eram submetidas ä condiÅÇo <strong>de</strong> estrangeiro, daqueles<br />
que entram em contato com o Outro (mesmo sem ter que viajar para o exterior), mas ainda estÇo<br />
com sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional preservada. Foi assim quando Duda recebeu <strong>de</strong> Raj a notÉcia do<br />
rompimento do noivado: apesar <strong>de</strong> toda a sincerida<strong>de</strong> do indiano em dizer que ainda amava a<br />
brasileira, mas que tinha <strong>de</strong> se casar na índia com uma <strong>de</strong>sconhecida porque sua famÉlia assim<br />
<strong>de</strong>terminava, nÇo havia meios <strong>de</strong> Duda enten<strong>de</strong>r a explicaÅÇo que lhe parecia a mais<br />
esfarrapada das <strong>de</strong>sculpas e que lhe pintava o noivo como o mais perfeito canalha. Foi assim<br />
187
tambàm quando Opash teve que vir ao Brasil: nÇo conseguia se acostumar com a “loirice” <strong>de</strong><br />
Ivete, seu cicerone, nem compreen<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>spudor da mulher brasileira em andar seminua<br />
pelas ruas. Foi assim ainda quando os alpinistas sociais Càsar e Ilana chegaram ä índia para o<br />
casamento da filha: diante da expectativa <strong>de</strong> Opash, pai <strong>de</strong> Ravi, o noivo, em receber o dote<br />
por Camila e da insistÖncia com que tentava encaminhar ao casal a lista <strong>de</strong> presentes a serem<br />
ofertados ä famÉlia do noivo, os brasileiros se negavam a fazer papel <strong>de</strong> otários, certos <strong>de</strong> que<br />
dote e presentes eram golpe do esperto comerciante <strong>de</strong> tecidos e nÇo um costume<br />
tradicionalÉssimo na índia. O mesmo se repetiu durante a conversa entre a mÇe e a madrasta<br />
<strong>de</strong> Camila com sua sogra: enquanto as brasileiras <strong>de</strong>monstravam estranhar o costume familiar<br />
indiano <strong>de</strong> morarem todos ─ pais, filhos, noras, netos, avÑs e tios ─ em uma mesma casa,<br />
prática para elas insuportável pois nÇo dava privacida<strong>de</strong> a ninguàm, a indiana falava da alegria<br />
<strong>de</strong> ter a famÉlia toda por perto e <strong>de</strong>screvia a privacida<strong>de</strong> como algo terrÉvel, con<strong>de</strong>naÅÇo <strong>de</strong><br />
isolamento prÑpria <strong>de</strong> quem está doente ou <strong>de</strong>primido. Tambàm aqui, na representaÅÇo do<br />
estrangeiro diante do local, a atitu<strong>de</strong> da autora à oferecer os dois pontos <strong>de</strong> vista sempre em<br />
contraponto, com estranheza <strong>de</strong> ambos os lados. Para acentuar o tom <strong>de</strong> ruÉdo na comunicaÅÇo<br />
entre culturas tÇo diferentes, a novelista invariavelmente recorria ä comicida<strong>de</strong>.<br />
Com cautela respeitosa e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za inconteste, Gloria Perez construiu representaÅâes<br />
do Outro-estrangeiro e do Outro-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo que se revelaram fruto <strong>de</strong> um olhar<br />
amoroso e humanista sobre a diferenÅa, <strong>de</strong> uma curiosida<strong>de</strong> pela diversida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>fesa<br />
da inclusÇo social. A arte da novelista foi alàm do entretenimento que se espera <strong>de</strong> uma<br />
telenovela: estabeleceu uma ponte <strong>de</strong> compreensÇo entre o Eu e o Outro e levantou questâes<br />
que afetam o cotidiano brasileiro.<br />
8.3 <strong>ENTRE</strong> A FANTASIA E O REAL<br />
FicÅÇo e realida<strong>de</strong> caminham juntas na obra <strong>de</strong> Gloria Perez. Na prà-produÅÇo <strong>de</strong> suas<br />
novelas, a autora garimpa informaÅâes do mundo real em jornais, sites e blogs; entrevista<br />
autorida<strong>de</strong>s e gente comum; colhe <strong>de</strong>poimentos e confissâes Éntimas ─ <strong>de</strong>dica-se com<br />
serieda<strong>de</strong> ao trabalho <strong>de</strong> etnÑgrafa, jornalista e psicÑloga para pintar com as cores da realida<strong>de</strong><br />
as histÑrias originais e criativas que saem <strong>de</strong> sua imaginaÅÇo. Nas telas, expâe a dor <strong>de</strong> gente<br />
<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>; dá voz a quem nÇo tem vez na socieda<strong>de</strong> brasileira; transforma pessoas comuns,<br />
artistas e autorida<strong>de</strong>s em personagens; convida celebrida<strong>de</strong>s a abrilhantar a cena ─ cruza sem<br />
cerimònia a fronteira entre a vida real e a vida da ficÅÇo para que o diálogo entre estes dois<br />
188
mundos possa dar credibilida<strong>de</strong> ä fantasia e possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sonhos (e transformaÅÇo) ä<br />
realida<strong>de</strong>. No dia-a-dia, pâe em aÅÇo na televisÇo a vida encenada do folhetim. Em seu<br />
blog 384 , registra as idàias que lhe inspiram a criativida<strong>de</strong>, os projetos <strong>de</strong> novela, a escalaÅÇo do<br />
elenco, os dados importantes da pesquisa antropolÑgica, as notÉcias pertinentes, os<br />
comentários (seus e <strong>de</strong> outrem) sobre os fatos do cotidiano, os bastidores da produÅÇo da<br />
novela, os resultados do IBOPE, a preocupaÅÇo contÉnua com as causas que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, os<br />
efeitos sociais <strong>de</strong> suas campanhas, as homenagens e prÖmios recebidos ─ esteja ou nÇo<br />
escrevendo ficÅÇo, a autora mantàm aberto um canal paralelo <strong>de</strong> comunicaÅÇo com o pëblico<br />
atravàs do qual escoam, em registros pessoais e realistas, as inquietaÅâes, os <strong>de</strong>sejos e as<br />
conquistas <strong>de</strong> sua alma profissional e cidadÇ.<br />
Embora o trabalho <strong>de</strong> pesquisa da autora tenha sido fundamental para a construÅÇo <strong>de</strong><br />
uma representaÅÇo nada leviana sobre o Outro e embora a os registros da novelista em seu<br />
blog tenham permitido uma leitura paralela das telenovelas, à preciso aqui concentrar a<br />
atenÅÇo apenas na narrativa televisiva <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias”. Pela coragem<br />
em abordar temas <strong>de</strong>licados da realida<strong>de</strong> brasileira (a <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica e a doenÅa mental)<br />
e pela estratàgia <strong>de</strong> utilizar <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> drogados/familiares da vida real e ainda pela<br />
inclusÇo <strong>de</strong> doentes mentais reais como personagens ─ pelo realismo, enfim ─ ambas as<br />
telenovelas foram festejadas em seu compromisso <strong>de</strong> trazer o real para as telas, provocando<br />
discussâes e mudanÅas na socieda<strong>de</strong>. Por outro lado, tais folhetins foram severamente<br />
criticados por <strong>de</strong>ixarem <strong>de</strong> lado os cÑdigos <strong>de</strong> tempo, espaÅo e lÉngua nacional, <strong>de</strong>srespeitando<br />
a regra básica da telenovela: a verossimilhanÅa. A crÉtica se concentrou basicamente na forma<br />
com que a autora apresentou o trênsito entre o Brasil e o Marrocos e entre o Brasil e a índia<br />
(como se tais paÉses estivessem “logo ali”), na frequÖncia com que incluiu cenas <strong>de</strong> danÅa nos<br />
nëcleos estrangeiros (como se todos “vivessem danÅando”) e no emprego do portuguÖs como<br />
a lÉngua falada naqueles dois paÉses (como se esta fosse uma lÉngua universal).<br />
A idàia <strong>de</strong> verossimilhanÅa como elemento constitutivo do folhetim vem das regras <strong>de</strong><br />
AristÑteles para a tragàdia. Para o filÑsofo, os atos narrados nÇo precisam se ren<strong>de</strong>r äquilo que<br />
384 As confluÖncias entre ficÅÇo e realida<strong>de</strong> ─ já se sabe ─ sÇo um traÅo forte da novelista, mas foram suas<br />
aventuras pelo mundo da tecnologia que lhe apresentaram o blog como uma alternativa para sua verve<br />
comunicativa. GraÅas ao seu diário digital “De tudo um pouco”, o pëblico e qualquer estudioso sobre Gloria<br />
Perez po<strong>de</strong> contar com uma leitura paralela e extremamente rica sobre a autora e seus trabalhos. As visitas ao<br />
blog da novelista serviram a este estudo como fonte adicional <strong>de</strong> pesquisa e permitiram o acesso a informaÅâes<br />
raramente encontráveis nas inëmeras (e superficiais) publicaÅâes sobre televisÇo e nos quase inexistentes<br />
espaÅos seriamente <strong>de</strong>dicados ä crÉtica <strong>de</strong> telenovela. Especialmente no caso <strong>de</strong> “Caminho das índias”, novela<br />
cuja exibiÅÇo transcorreu simultaneamente a este trabalho, os dados do blog permitiram uma rara possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> diálogo, já que o cenário acadÖmico ainda nÇo tinha tido tempo <strong>de</strong> produzir reflexâes sobre obra tÇo recente.<br />
As visitas ao blog permitiram tambàm perceber a intensida<strong>de</strong> da troca que este canal <strong>de</strong> comunicaÅÇo promove<br />
com o pëblico: em 17 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2010, o contador registrava a marca <strong>de</strong> 920.357 visitantes!<br />
189
precisamente aconteceu: o poeta que escreve uma tragàdia, ao contrário do historiador,<br />
tambàm narra o que po<strong>de</strong>ria ter acontecido, o possÉvel, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se apÑie na verossimilhanÅa<br />
ou na necessida<strong>de</strong>, importando para isso que o conjunto <strong>de</strong> fatos escolhidos seja enca<strong>de</strong>ado<br />
segundo uma or<strong>de</strong>m necessária. Ao poeta nÇo sÇo exigidas nem a invenÅÇo original nem a<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aos mitos tradicionais 385 . Ser verossÉmil à, pois, parecer verda<strong>de</strong>iro, parecer<br />
possÉvel. Tal regra diz respeito ä arte <strong>de</strong> contar histÑrias que arrebatem o pëblico e produzam<br />
nele o sentimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo com o que à narrado e uma posterior purgaÅÇo (catarse) das<br />
emoÅâes suscitadas pela mÉmese. Contestadas, no entanto, como instrumentos <strong>de</strong> alienaÅÇo<br />
pelo teatro revolucionário <strong>de</strong> Brecht, a catarse e a verossimilhanÅa prescritas nos anos 300<br />
antes <strong>de</strong> Cristo carecem <strong>de</strong> revisÇo diante dos novos tempos. Talvez o que arrebate as platàias<br />
hoje seja a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mergulhar na emoÅÇo da trama e, dialeticamente, manter-se<br />
afastado para perceber o jogo ficcional.<br />
Umberto Eco, em Seis passeios pelos bosques da ficção, ensina que lidar com uma<br />
obra <strong>de</strong> ficÅÇo implica na aceitaÅÇo tácita, por parte do leitor, <strong>de</strong> um “acordo ficcional”: “O<br />
leitor tem <strong>de</strong> saber que o que está sendo narrado à uma histÑria imaginária, mas nem por isso<br />
<strong>de</strong>ve pensar que o escritor está contanto mentiras”; ele <strong>de</strong>ve “fingir” que “o que à narrado <strong>de</strong><br />
fato aconteceu” 386 . A ficÅÇo, para ele, “<strong>de</strong>screve um mundo que temos que aceitar tal como à,<br />
em confianÅa” 387 . ï um pacto <strong>de</strong> cooperaÅÇo para que o leitor possa se aventurar num mundo<br />
imaginário, “passÉvel <strong>de</strong> representaÅâes várias, inclusive irreconhecÉveis” 388 para ele. Eco<br />
explica que, nos romances pÑs-mo<strong>de</strong>rnos, o autor vai “<strong>de</strong>sarmando o leitor, em um primeiro<br />
momento, para que ele possa se aventurar pela realida<strong>de</strong> da ficÅÇo e, apÑs assinado o pacto <strong>de</strong><br />
verossimilhanÅa, volta a armá-lo para que, enfim, ele esteja apto para <strong>de</strong>svendar as ficÅâes<br />
que permeiam a nossa realida<strong>de</strong>” 389 . A literatura, entÇo, enquanto máquina ficcional, <strong>de</strong>ve<br />
reelaborar o empÉrico tendo como horizonte o papel do leitor na produÅÇo <strong>de</strong> sentidos do texto<br />
e a pluralida<strong>de</strong> discursiva daÉ resultante. Como <strong>de</strong>fine Jaques Ranciöre em uma <strong>de</strong> suas<br />
conferÖncias no Brasil, uma ficÅÇo, à “a construÅÇo <strong>de</strong> uma nova relaÅÇo entre a aparÖncia e a<br />
realida<strong>de</strong>, o visÉvel e o seu significado, o singular e o comum” 390 .<br />
Sendo assim, a verossimilhanÅa nÇo mais se refere ao real externo, empÉrico, mas ao<br />
real da ficÅÇo. Neste sentido, as crÉticas formuladas contra “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
385 AristÑteles, s/data, pp. 303-304.<br />
386 ECO, 1994, p. 81.<br />
387 Ibi<strong>de</strong>m, p. 95.<br />
388 Ibi<strong>de</strong>m, p. 81.<br />
389 Ibi<strong>de</strong>m, p. 95.<br />
390 RANCI†RE, “PolÉtica da arte”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 3 set. 2009.<br />
190
parecem exigir da telenovela que abra mÇo <strong>de</strong> sua natureza fictÉcia. “O tempo da ficÅÇo à<br />
outro”, argumenta Gloria Perez: “No romance, o autor vocÖ dá a volta ao mundo em uma<br />
linha” 391 . Toda histÑria contada recorta a aÅÇo a partir dos interesses da narrativa que se quer<br />
contar. Segundo a autora, se as personagens levassem dois dias para chegar ä índia, nÇo sÑ a<br />
novela nÇo andaria, como a ficÅÇo estaria se sujeitando ao tempo dos reality shows. Quanto ä<br />
reclamaÅÇo pelo fato <strong>de</strong> o portuguÖs ser a lÉngua falada no Marrocos e na índia da ficÅÇo<br />
televisiva, a novelista comenta:<br />
191<br />
ï o mesmo que nÇo gostar <strong>de</strong> [do filme] Ben-Hur, porque falava inglÖs e nÇo latim,<br />
que abominar [o filme] Gandhi, por nÇo ter sido filmado em hÉndi, que ridicularizar o<br />
cinema porque, em todos os filmes, o taxi está sempre na porta quando alguàm<br />
precisa, ou apedrejar “A Favorita”, porque, <strong>de</strong> dupla sertaneja a presidiária, Flora<br />
<strong>de</strong>sembarcou com a maior <strong>de</strong>senvoltura na presidÖncia <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> empresa. 392<br />
SÇo as liberda<strong>de</strong>s da ficÅÇo ─ como o uso das danÅas nÇo sÑ em momentos festivos<br />
como no dia-a-dia das famÉlias muÅulmanas e indianas, recurso muito usado pela autora para<br />
acentuar a cor cultural da trama, colocando em cena a fantasia. Gloria Perez nÇo abre mÇo <strong>de</strong><br />
danÅa e fantasia em suas novelas: a primeira à uma paixÇo pessoal, a segunda, um recurso que<br />
julga fundamental para produzir encantamento, a principal missÇo do folhetim, segundo ela.<br />
As duas promovem bom espetáculo. No caso especÉfico <strong>de</strong> “Caminho das índias”, as danÅas<br />
serviram tambàm para evocar a estàtica <strong>de</strong> Bollywood, on<strong>de</strong> os nëmeros musicais sÇo um<br />
emblema da cultura, o verda<strong>de</strong>iro chamariz da indëstria cinematográfica indiana para atrair o<br />
pëblico local. As cenas <strong>de</strong> danÅa funcionaram ainda como um eficaz recurso para alongar o<br />
tempo. ï preciso lembrar que, como diz a novelista, telenovela à uma obra <strong>de</strong> 200 capÉtulos<br />
em màdia, que implica a produÅÇo <strong>de</strong> 32 páginas <strong>de</strong> roteiro por dia. Ou seja: à uma obra<br />
extensa que precisa ser preenchida <strong>de</strong> aÅâes. No folhetim, “a arte à chegar aos acontecimentos<br />
pelo caminho mais longo, sem que seja chato, sem <strong>de</strong>ixar o pëblico perceber que à longo, sem<br />
per<strong>de</strong>r o interesse do pëblico, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> apresentar coisas novas” 393 . ï justamente para<br />
dar conta <strong>de</strong> sua extensÇo que a telenovela tem como pilar a peripàcia e o sensacional,<br />
recursos que permitem a construÅÇo <strong>de</strong> cenas muitas vezes consi<strong>de</strong>radas fantasiosas,<br />
inverossÉmeis, “coisas <strong>de</strong> novela”: como quando tudo parece indicar que o casal central vai<br />
finalmente se encontrar, mas algo inesperado acontece e eles nÇo se encontram; ou quando<br />
alguàm dispara vários tiros contra uma pessoa e no capÉtulo seguinte se <strong>de</strong>scobre que nenhum<br />
391 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 238.<br />
392 PEREZ, 26 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2009. Entrevista a Lu Dias (“Gloria Perez respon<strong>de</strong>”). DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 8 ago. 2009.<br />
393 PEREZ, op. cit., p. 239.
dos disparos acertou o alvo. Diferentemente da tragàdia grega, na lÑgica folhetinesca da<br />
telenovela, muitas vezes o verossÉmil tem que ce<strong>de</strong>r lugar ao sensacional, aos rocamboles da<br />
fantasia. Assim, exigir da telenovela que nÇo tenha fantasia à como “reclamar do soneto<br />
porque tem rima” 394 .<br />
Gloria Perez serve-se da verossimilhanÅa para criar cenas comoventes como as <strong>de</strong><br />
Maysa e Melissa, impotentes, diante da dor dos filhos, ou as <strong>de</strong> Mel e Tarso, vagando na<br />
angëstia solitária da doenÅa. Mas joga para o alto as regras <strong>de</strong> AristÑteles e assume o pacto<br />
ficcional quando precisa fazer a trama seguir na velocida<strong>de</strong> televisiva ou quando precisa<br />
semear o sonho. Os sinais <strong>de</strong> que tudo nÇo passava <strong>de</strong> ficÅÇo estiveram presentes <strong>de</strong> forma<br />
ostensiva em “O Clone” quando Doutor Albieri teve <strong>de</strong> ouvir as opiniâes <strong>de</strong> outros dois<br />
màdicos sobre a clonagem humana: a autora, brincando com sua prÑpria obra, convocou<br />
Doutor Molina e Miss Brown, personagens <strong>de</strong> “Barriga <strong>de</strong> Aluguel”, <strong>de</strong> 1990, para dar palpite<br />
na novela <strong>de</strong> 2001/2002. O pacto ficcional lhe foi essencial na conduÅÇo <strong>de</strong> seus folhetins. De<br />
outra forma, teria tido que legendar boa parte das cenas <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
e botar a aÅÇo “em banho-Maria”, aguardando que a personagem <strong>de</strong>sembarcasse do outro lado<br />
do oceano. Igualmente, tem consciÖncia <strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> empÉrica <strong>de</strong> uma cultura nÇo cabe<br />
no formato <strong>de</strong> uma novela e por isso cria alegorias que sintetizem o espÉrito do paÉs.<br />
Embora os crÉticos muitas vezes pareÅam <strong>de</strong>sconhecer a natureza do folhetim,<br />
cobrando aspectos que nÇo lhe sÇo prÑprios, nÇo sÇo poucos os que enten<strong>de</strong>m o pacto<br />
ficcional e embarcam na fantasia da novelista. Diante da insistente pergunta sobre a<br />
autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “Caminho das índias” em relaÅÇo ä realida<strong>de</strong> encontrada em seu paÉs, o<br />
embaixador da índia reenquadra a questÇo com luci<strong>de</strong>z ao afirmar que “novela à novela, nÇo<br />
um documentário”: “Por sua prÑpria natureza, ela exagera, glamouriza e seleciona o que à<br />
exÑtico mais do que aquilo que à habitual e comum. Os brasileiros [...] parecem enten<strong>de</strong>r<br />
isso” 395 . E relativiza sobre a realida<strong>de</strong> da índia: a<strong>de</strong>mais, “o que à REAL num paÉs com tanta<br />
diversida<strong>de</strong>, complexida<strong>de</strong> e contradiÅâes?” 396 [grifo do autor].<br />
Alegorias e simbolismos sÇo recursos legÉtimos da narrativa <strong>de</strong> ficÅÇo quando se quer<br />
transmitir uma i<strong>de</strong>ia ou forÅar a dramaticida<strong>de</strong> ─ mesmo que para isso seja necessário<br />
introduzir irrealida<strong>de</strong>s na realida<strong>de</strong> imitada, truncando a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo e o reconhecimento.<br />
Para questionar os limites morais da clonagem humana e, sobretudo, para criticar a arrogência<br />
do ser humano em brincar <strong>de</strong> Deus, produzindo vida fora da natureza, Gloria Perez construiu<br />
394 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 239.<br />
395 PRAKASH, “Ma<strong>de</strong> in Brazil”. DisponÉvel em: . Acesso em 10 <strong>de</strong> nov. 2009.<br />
396 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
192
uma telenovela sem mÇes: em “O Clone”, Ja<strong>de</strong>, Latiffa e os gÖmeos Lucas e Diogo eram<br />
ÑrfÇos <strong>de</strong> mÇe; Said e Mohamed sÇo criados por um tio. Ironicamente, a autora fez uma<br />
personagem que luta <strong>de</strong>sesperadamente pela maternida<strong>de</strong> gerar, sem saber, por inseminaÅÇo<br />
artificial, um ser concebido em laboratÑrio. è “mÇe” do clone Lào, a novelista <strong>de</strong>u o<br />
sugestivo nome <strong>de</strong> Deusa! ï o simbÑlico a serviÅo da narrativa dramática.<br />
Como foi dito, o pacto ficcional tambàm ajuda a autora a construir o sonho. No ëltimo<br />
capÉtulo <strong>de</strong> “Caminho das índias”, Maya, arrasada pela suposta viuvez e pela revelaÅÇo <strong>de</strong> seu<br />
caso fora do casamento, caminha abatida äs margens do Ganges com as vestes brancas do<br />
viuvário quando, por entre a multidÇo, vÖ Raj, que tinha sido equivocadamente dado como<br />
morto. Raj está em busca da esposa, disposto a perdoá-la. Os olhos dos dois se cruzam e,<br />
quando a cêmera reencontra Maya, as escadas do Ganges estÇo <strong>de</strong>sertas e ela já está sem<br />
nenhum vestÉgio da dor, maquiada e exuberante em um sári vermelho, com as jÑias que lhe<br />
haviam sido subtraÉdas em seguida ä notÉcia da morte do marido. A transformaÅÇo <strong>de</strong> Maya<br />
nÇo respeita a lÑgica da realida<strong>de</strong> e sim a falta <strong>de</strong> lÑgica da fantasia. NÇo foi preciso<br />
acompanhar sua surpresa ao ver o marido vivo, suas perguntas sobre como tinha sobrevivido;<br />
nÇo foi preciso ouvir as razâes <strong>de</strong> Raj para perdoá-la nem suas juras <strong>de</strong> amor incondicional;<br />
igualmente nÇo foi necessário mostrar Maya procurando abrigo para trocar-se, nem vÖ-la<br />
livrando-se da tënica branca e embrulhando-se no vibrante sári para perceber que o simples<br />
perdÇo do marido tinha sido o condÇo que lhe havia <strong>de</strong>volvido a vida. E que o “amor<br />
construÉdo” estava ali consagrado: “NÑs construÉmos um amor; nÑs construÉmos, sim; agora<br />
eu tenho certeza”, <strong>de</strong>clara Raj. Nesse encontro, on<strong>de</strong> um sÑ tinha olhos para o outro, nada<br />
mais importa, nada mais existe ─ por isso a autora oferece ao pëblico um Ganges, agora<br />
<strong>de</strong>serto, abenÅoando a uniÇo do casal e preparando o “happy end”.<br />
O sonho, segundo a autora, tem funÅÇo social: preten<strong>de</strong> suprir uma carÖncia do<br />
pëblico, tÇo sobrecarregado <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s duras e cruas. Seria ingenuida<strong>de</strong>, no entanto, aceitar<br />
tal dimensÇo <strong>de</strong> seu trabalho sem consi<strong>de</strong>rar aqui as funÅâes “mercadolÑgicas” da telenovela<br />
enquanto produto. A mistura entre fantasia e realismo à certamente o trunfo criativo <strong>de</strong> Gloria<br />
Perez, seu valioso cacife no milionário jogo das telenovelas <strong>de</strong> horário nobre da TV Globo.<br />
Fazer sonhar e pensar a realida<strong>de</strong> na medida certa do gosto popular faz crescer a audiÖncia,<br />
eleva a arrecadaÅÇo com publicida<strong>de</strong> e amplia seu potencial <strong>de</strong> exportaÅÇo, entre muitos<br />
outros ganhos contabilizados pela emissora. Isso sem contar que o valor da originalida<strong>de</strong> da<br />
novelista ren<strong>de</strong> divi<strong>de</strong>ndos consi<strong>de</strong>ráveis em seu salário, na cotaÅÇo do merchandising, em<br />
seu currÉculo profissional, na valorizaÅÇo <strong>de</strong> seu vÉnculo <strong>de</strong> trabalho e em seu prestÉgio <strong>de</strong><br />
193
ficcionista. A funÅÇo social, portanto, nÇo po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista o horizonte do sucesso. No<br />
caso especÉfico <strong>de</strong> Gloria Perez, o inverso à igualmente verda<strong>de</strong>iro.<br />
NÇo se po<strong>de</strong> negar, no entanto, que o excesso <strong>de</strong> realismo experimentado hoje atravàs<br />
das cada vez mais populares tecnologias <strong>de</strong> captaÅÇo <strong>de</strong> imagem tem colocado o pëblico em<br />
permanente contato com a realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ixando-o carente <strong>de</strong> fantasia: as cenas <strong>de</strong> guerra sÇo<br />
testemunhadas na tevÖ como se a platàia estivesse nos campos <strong>de</strong> batalha, as cenas da<br />
violÖncia urbana captadas por cêmeras digitais e telefones celulares sÇo facilmente<br />
compartilhadas na mÉdia e na internet, e as cenas da vida privada ganham o domÉnio pëblico<br />
em todo tipo <strong>de</strong> reality show. Para contrabalanÅar o realismo em excesso, a sensibilida<strong>de</strong> da<br />
autora recomenda boas doses <strong>de</strong> sonho. Para ela, a fantasia à uma dimensÇo essencial do real,<br />
sem a qual ninguàm vive: “vocÖ nÇo lida sÑ com o que existe; vocÖ lida com o <strong>de</strong>sejo, com<br />
aquilo que vocÖ quer que exista” 397 . “Para se realizar uma coisa”, torná-la real, “à preciso<br />
sonhar antes” 398 , diz a novelista.<br />
Para os viciados em realida<strong>de</strong>, no entanto, a fantasia à o passaporte para a alienaÅÇo.<br />
No Brasil da intelligentsia, ao que parece, fantasia e alienaÅÇo parecem estar con<strong>de</strong>nadas a<br />
viver juntas. Segundo Gloria Perez, há um gran<strong>de</strong> patrulhamento contra a imaginaÅÇo no<br />
paÉs 399 . Para ela, pior do que conviver com o crivo dos “eruditos”, que insiste em classificar as<br />
gran<strong>de</strong>s narrativas <strong>de</strong>stinas äs massas como obras <strong>de</strong> baixa qualida<strong>de</strong> artÉstica, à constatar que,<br />
para muitos, tais narrativas <strong>de</strong>vem ser apenas veÉculo <strong>de</strong> doutrinaÅÇo e educaÅÇo. Por esta<br />
mentalida<strong>de</strong>, telenovela à alienaÅÇo, já que “aqui o povo nÇo po<strong>de</strong> apenas se distrair, ele tem<br />
que ser educado o tempo todo” 400 . A funÅÇo <strong>de</strong> educar, moralizar e doutrinar o povo nÇo à do<br />
folhetim, reclama ela: äs telenovelas cabe “divertir o pëblico”, muito embora algumas tramas<br />
cheguem a prestar um gran<strong>de</strong> serviÅo ä populaÅÇo.<br />
194<br />
Uma telenovela à apenas um folhetim. Se ela está fazendo o papel do Estado à porque<br />
algum problema há neste paÉs. Se ela está fazendo o papel que as instituiÅâes <strong>de</strong>viam<br />
fazer, se ela está dando respostas que cabiam ao Estado e prestando os serviÅos que as<br />
instituiÅâes <strong>de</strong>viam fazer, algo está mal no paÉs. Vamos questionar o paÉs e nÇo a<br />
telenovela. 401<br />
Triste o paÉs em que se cobra da indëstria <strong>de</strong> entretenimento aquilo que cabe äs<br />
escolas! Tambàm me incomoda que, muitas vezes, as pessoas estejam mais<br />
empenhadas em interferir no mundo ficcional do que no mundo real, mais revoltada<br />
com o comportamento <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong> novela do que com o comportamento <strong>de</strong><br />
personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> carne e osso, cujos atos interferem, <strong>de</strong> fato, na vida real. 402<br />
397<br />
PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 248.<br />
398<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
399<br />
PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 241.<br />
400<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
401<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
402<br />
PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, pp. 440-441.
Da mesma forma, a funÅÇo <strong>de</strong> ser realista, acredita a autora, à do jornalismo: “Quem tem que<br />
fazer a reportagem e se ater ao real à o jornal, nÇo à o folhetim” 403 . “A funÅÇo da telenovela à<br />
encantar as pessoas, fazer sonhar”, afirma.<br />
Entre a fantasia e o real, as telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez transitam por um domÉnio que<br />
a um tempo po<strong>de</strong> parecer mera ficÅÇo cientÉfica, exercÉcio <strong>de</strong> imaginaÅÇo fantasiosa, e em<br />
seguida se revelar real. A curiosida<strong>de</strong> e a sensibilida<strong>de</strong> da autora para o novo muitas vezes<br />
colocam-na ä frente <strong>de</strong> seu tempo, antecipando realida<strong>de</strong>s que nem o jornalismo foi ainda<br />
capaz <strong>de</strong> captar. Dizem que ela tem “bola <strong>de</strong> cristal”, mas a novelista garante que, embora<br />
po<strong>de</strong>rosas, suas “antenas” nÇo sÇo mágicas. Por serem <strong>de</strong>sconhecidas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte do<br />
pëblico e mesmo da gran<strong>de</strong> mÉdia, as situaÅâes criadas por ela ou os temas abordados foram<br />
muitas vezes con<strong>de</strong>nados pela distência que guardavam do real. Mera ignorência <strong>de</strong> quem nÇo<br />
está atento ä realida<strong>de</strong>, garante a novelista.<br />
195<br />
Acharam inverossÉmil que uma mulher pu<strong>de</strong>sse carregar o filho <strong>de</strong> outra em sua<br />
barriga. Na sequÖncia, tambàm acharam inverossÉmil transplante <strong>de</strong> coraÅÇo, troca <strong>de</strong><br />
bebÖs na maternida<strong>de</strong>, costumes muÅulmanos, clonagem humana, internet, cultura<br />
indiana, brasileiro atravessando o <strong>de</strong>serto pra chegar aos EUA. Nada disso existia, era<br />
tudo invenÅÇo da minha cabeÅa! Acho que o coro mais forte foi quando escrevi<br />
Explo<strong>de</strong> coração em 96. Gritaram que a internet era pura invenÅÇo minha. NÇo à<br />
incrÉvel? 404<br />
A propÑsito <strong>de</strong> “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, os “<strong>de</strong>lÉrios visionários” <strong>de</strong>sta acreana criada no<br />
meio do nada experimentaram um casamento perfeito quando o roteiro da novela caiu nas<br />
mÇos do <strong>de</strong>signer <strong>de</strong> televisÇo Hans Donner, incumbido <strong>de</strong> criar a abertura da novela. O<br />
encontro da vocaÅÇo para a fantasia da autora com a capacida<strong>de</strong> imaginativa do <strong>de</strong>signer<br />
resultou numa sequÖncia <strong>de</strong> imagens que antecipa o futuro em mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos! Na<br />
abertura 405 , um homem assiste a uma tevÖ <strong>de</strong> tela plana, fina como as <strong>de</strong> plasma, e sensÉvel ao<br />
toque, quase como as que se vÖ hoje. Nela à possÉvel movimentar a imagem com o recurso<br />
das fuÅâes drag e drop, bem como acionar o zoom com dois toques rápidos. Neste exercÉcio<br />
bem sucedido <strong>de</strong> futurologia, resta saber quanto tempo ainda levará para chegar atà nÑs a<br />
funÅÇo criada por Donner, que materializa uma pessoa apÑs um simples comando <strong>de</strong> tela!<br />
Na confluÖncia entre a linguagem realista, a linguagem simbÑlica e a linguagem da<br />
representaÅÇo simbÑlica da realida<strong>de</strong>, as telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, como as <strong>de</strong>mais, ainda<br />
tÖm <strong>de</strong> experimentar a interferÖncia da realida<strong>de</strong> na ficÅÇo. Sendo obra escrita durante a<br />
403<br />
PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 239.<br />
404<br />
PEREZ apud. CALIL, “Dias <strong>de</strong> GlÑria”. DisponÉvel em: .<br />
Acesso em 12 set. 2009.<br />
405<br />
Ver em “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo (1995-1996) Abertura”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 jan. 2010.
exibiÅÇo dos capÉtulos, e sendo arte que <strong>de</strong>ve agradar o pëblico, o folhetim televisivo à sensÉvel<br />
ao gosto popular. A novelista, no entanto, insiste que nÇo se ren<strong>de</strong> a ele nem o <strong>de</strong>ixa conduzir a<br />
histÑria. Prefere dizer que gosta <strong>de</strong> “expressar” a audiÖncia, proporcionando-lhe as emoÅâes que<br />
<strong>de</strong>seja sentir. A sutil distinÅÇo preserva a autonomia do autor sobre sua obra, mantendo-a, no<br />
entanto, aberta. Sob a luz das contribuiÅâes <strong>de</strong> Umberto Eco, em Obra Aberta: forma e<br />
in<strong>de</strong>terminação nas poéticas contemporâneas 406 , a discussÇo merece mais atenÅÇo.<br />
I<strong>de</strong>ntificada tradicionalmente como obra aberta pelo fato <strong>de</strong> a narrativa ser construÉda<br />
no correr <strong>de</strong> sua exibiÅÇo e <strong>de</strong> sofrer a influÖncia da audiÖncia ao longo <strong>de</strong> sua produÅÇo, a<br />
telenovela muitas vezes teve o pëblico como co-autor. Tal “parceria”, que chegava a ren<strong>de</strong>r<br />
finais <strong>de</strong> novelas ambÉguos, capazes <strong>de</strong> agradar os diferentes gostos do espectador, nÇo mais<br />
tem lugar no contexto dos caros investimentos em produÅÇo <strong>de</strong> telenovela. Ao invàs <strong>de</strong> obra<br />
aberta, o que se tem agora à, no máximo, interativida<strong>de</strong>: resultante da sofisticaÅÇo dos<br />
equipamentos <strong>de</strong> aferiÅÇo da audiÖncia, da prÑpria polissemia da narrativa televisiva e do<br />
compromisso comercial do gÖnero com a satisfaÅÇo do consumidor, a participaÅÇo do receptor<br />
à um pressuposto da abertura inerente a toda obra <strong>de</strong> arte. Na distinÅÇo entre a obra aberta e a<br />
abertura <strong>de</strong> toda obra <strong>de</strong> arte, Eco foi muito claro. A primeira <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma intenÅÇo <strong>de</strong><br />
ambiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberada no processo <strong>de</strong> criaÅÇo, uma opÅÇo estàtica do artista que <strong>de</strong>ixa ao<br />
receptor a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha entre sequÖncias possÉveis, <strong>de</strong>safiando-o a construir<br />
sentido. A segunda resulta da in<strong>de</strong>terminaÅÇo inerente äs poàticas contemporêneas,<br />
polissÖmicas, em que o conteëdo da arte possibilita mëltiplas interpretaÅâes que se modificam<br />
segundo o ênimo, o tempo histÑrico e a linguagem do receptor (já que a recepÅÇo à parte<br />
inerente da obra). Nesse sentido, a telenovela traz a abertura que permite proporcionar várias<br />
“leituras” ao pëblico. Tais “leituras”, no entanto, estÇo circunscritas äs condicionantes<br />
prÑprias do perÉodo <strong>de</strong> exibiÅÇo da trama, uma vez que a novela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir quando o<br />
ëltimo capÉtulo vai ao ar, impossibilitando interpretaÅâes geracionais atravàs do tempo. Por<br />
outro lado, a telenovela contemporênea nÇo parece po<strong>de</strong>r correspon<strong>de</strong>r aos preceitos da obra<br />
aberta: sua narrativa nÇo oferece diferentes percursos possÉveis <strong>de</strong> inferÖncia. As numerosas<br />
interferÖncias do pëblico nos rumos da trama folhetinesca nÇo propiciam a configuraÅÇo <strong>de</strong><br />
ambiguida<strong>de</strong>s na construÅÇo <strong>de</strong> sentido ─ apenas indicam o caminho seguro para o autor<br />
“fechar” a narrativa com maior aceitaÅÇo. Tecnicamente, portanto, a participaÅÇo da audiÖncia<br />
nos rumos da trama à mais uma medida da abertura da obra do que <strong>de</strong> sua configuraÅÇo como<br />
obra aberta.<br />
406 ECO, 2005.<br />
196
197<br />
Assim, a ausculta apurada da recepÅÇo empreendida por Gloria Perez e a<br />
interativida<strong>de</strong> daÉ resultante constituem um jogo <strong>de</strong> forÅas entre a originalida<strong>de</strong> autoral, o<br />
gosto popular, o prazer do previsÉvel e a graÅa da surpresa. O hábito <strong>de</strong> encerrar os capÉtulos<br />
sem ter i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> como vai conduzi-los no dia seguinte parece <strong>de</strong>ixá-la suscetÉvel a <strong>de</strong>ixar sua<br />
histÑria ser guiada pela cabeÅa da audiÖncia. A novelista garante que à a prÑpria narrativa que<br />
lhe dá a direÅÇo. Segundo ela, o gran<strong>de</strong> pëblico enquanto massa sÑ lida com um repertÑrio <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ias que à preexistente 407 , que ele já viu em algum lugar ─ diferentemente do indivÉduo, que<br />
à capaz <strong>de</strong> imaginar coisas originais. Por isso crÖ que se o autor segue as sugestâes da<br />
audiÖncia estará fadado a ser consi<strong>de</strong>rado previsÉvel por ela. O autor, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve sempre<br />
surpreen<strong>de</strong>r a plateia com sua imaginaÅÇo criativa, mantendo-se fiel ä i<strong>de</strong>ia que quer<br />
transmitir. Aqui, a intuiÅÇo servirá apenas para captar o tipo <strong>de</strong> emoÅÇo que <strong>de</strong>ve ser tocada a<br />
cada cena. E isso à uma missÇo a ser executada pela narrativida<strong>de</strong>, por seu talento na arte <strong>de</strong><br />
contar a histÑria, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mente do tema abordado ou do <strong>de</strong>stino que o autor reserva para as<br />
personagens. Escrever uma cena, para a novelista, à construir uma emoÅÇo em quem assiste:<br />
“NÇo adianta mudar a histÑria [se a cena nÇo emocionou], porque, se ela vai continuar sendo<br />
contada <strong>de</strong> um jeito pouco atraente, nÇo vai interessar do mesmo jeito” 408 .<br />
Por linhas tortas, Gloria Perez parece ter sido surpreendida por sua prÑpria<br />
narrativida<strong>de</strong>: em “Caminho das índias”, embora tenha se preparado para escrever a histÑria<br />
do amor impossÉvel entre a moÅa <strong>de</strong> casta e o dálit, e acompanhar a saga do casal para romper<br />
a resistÖncia do preconceito, seu talento <strong>de</strong> contadora <strong>de</strong> histÑrias construiu com tamanha<br />
<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e sensibilida<strong>de</strong> o romance entre Maya e Raj, o marido que lhe coube apÑs ter sido<br />
abandonada pelo intocável, que a trama acabou tomando um rumo inusitado, graÅas ä<br />
inesperada e arrebatadora empatia do pëblico com o noivo arranjado e a histÑria do amor<br />
construÉdo com a convivÖncia. A emoÅÇo do romance que transpirava em cada cena do casal<br />
improvável e a intensida<strong>de</strong> com que a audiÖncia se mostrou seduzida por esta novida<strong>de</strong><br />
conduziram a novelista a intuir que, numa trama on<strong>de</strong> a tònica à o diferente, o amor entre dois<br />
jovens <strong>de</strong>sconhecidos unidos por uma imposiÅÇo que <strong>de</strong>sprezava seus sentimentos soava<br />
muito menos familiar aos brasileiros ─ e, por isso mesmo, mais original ─ do que o amor<br />
impossÉvel tantas vezes explorado em telenovelas.<br />
Contudo, para nÇo abandonar <strong>de</strong> todo um dos pilares mais fortes da cartilha do<br />
folhetim, a engenhosida<strong>de</strong> da autora promoveu uma “torÅÇo” num dos pÑlos do amor<br />
impossÉvel: se, no inÉcio da novela, era Maya quem estava impedida <strong>de</strong> amar um homem sem<br />
407 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 249.<br />
408 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 480-481.
casta, ao <strong>de</strong>cidir pelo casal Maya-Raj, Gloria Perez colocou sobre Raj o foco do amor<br />
impossÉvel, fazendo-o amargar todo tipo <strong>de</strong> sofrimento para superar os impedimentos<br />
religiosos, culturais e masculinos do marido que <strong>de</strong>scobre a mentira da esposa, a gravi<strong>de</strong>z fora<br />
do casamento e a origem sem casta do filho que pensava ser seu. O conto <strong>de</strong> fadas indiano<br />
abandonou a trama do amor que <strong>de</strong>safia o sistema <strong>de</strong> castas e manteve o dálit apenas como<br />
uma ameaÅa ao amor construÉdo pelo casal arranjado. A <strong>de</strong>cisÇo da autora em assumir a<br />
reviravolta e ainda assim manter o folhetim <strong>de</strong>ixa claro o controle exclusivo <strong>de</strong> Gloria Perez<br />
sobre uma obra interativa, sim, mas nada aberta.<br />
Costurado com as linhas rÉgidas da tradiÅÇo hindu, o nÑ original criado por Gloria<br />
Perez nÇo seria facilmente <strong>de</strong>satado. SÑ mesmo pela invocaÅÇo do “po<strong>de</strong>r inquebrantável do<br />
amor” e pela aÅÇo das “forÅas imprevisÉveis do <strong>de</strong>stino”, a trama po<strong>de</strong>ria fazer Maya e<br />
Bahuam consumar seu projeto <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> ao lado do filho. Os <strong>de</strong>scaminhos prÑprios <strong>de</strong><br />
uma obra que vai se construindo aos poucos como a telenovela acabaram por <strong>de</strong>safiar os<br />
<strong>de</strong>stinos ensaiados em sua sinopse. ï bem verda<strong>de</strong> que a sinopse nÇo previa o final da novela:<br />
as tramas foram alinhavadas atà seu ponto <strong>de</strong> virada, quando “Bahuam [...] volta para a índia<br />
e fica entre casar com a milionária ou tentar reconquistar o amor <strong>de</strong> Maya” 409 . ï verda<strong>de</strong><br />
tambàm que a autora gosta <strong>de</strong> escrever <strong>de</strong> forma imprevisÉvel, ousadia assegurada pelo<br />
profundo domÉnio da tàcnica do folhetim: “NÇo sou daquelas pessoas que sabem exatamente o<br />
que vai acontecer”; “Gosto muito <strong>de</strong> me surpreen<strong>de</strong>r, [...] me divirto com tudo isso” 410 . Mas à<br />
igualmente verda<strong>de</strong> que, diante da originalida<strong>de</strong> das emoÅâes proporcionadas pelo casal<br />
arranjado, nÇo restava outra alternativa ä novelista senÇo seguir os passos do amor construÉdo.<br />
Quando a elegência, a sincerida<strong>de</strong> e o cavalheirismo do marido arranjado Raj entraram em<br />
cena dispostos a abrir mÇo do amor por Duda para “construir um amor” com Maya,<br />
arrebatando <strong>de</strong>finitivamente a simpatia da audiÖncia e sinalizando para autora um novo<br />
caminho para a emoÅÇo e o romance, a narrativa ficcional viu-se inesperadamente enredada<br />
pela realida<strong>de</strong> (do IBOPE e do real da ficÅÇo) e irremediavelmente seduzida pelo sonho (do<br />
amor verda<strong>de</strong>iro).<br />
As mëltiplas maneiras com que a fantasia e a realida<strong>de</strong> tocaram-se em “O Clone” e<br />
“Caminho das índias” dÇo a dimensÇo dos diferentes percursos trilhados pela narrativa<br />
ficcional <strong>de</strong> Gloria Perez no sentido <strong>de</strong> pòr em cena telenovelas que sejam igualmente<br />
realistas e fantasiosas, que possam entreter, divertir, encantar, informar e transformar.<br />
409 PEREZ, 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009. Entrevista ao Canal Extra (“NamastÖ, Brasil”). DisponÉvel em:<br />
.<br />
Acesso em 14 ago. <strong>de</strong> 2009.<br />
410 PEREZ, loc. cit.<br />
198
8.4 UMA ASSINATURA FEMININA<br />
Embora em seus primeiros anos o folhetim televisivo brasileiro tenha sido reduto <strong>de</strong><br />
mulheres (eram <strong>de</strong>las as obras <strong>de</strong> maior apelo popular, a tal ponto que alguns escritores<br />
chegaram a escrever sob pseudònimos femininos), há muito que o seleto grupo <strong>de</strong> autores <strong>de</strong><br />
“novela das oito” à formado majoritariamente por homens. A publicaÅÇo Autores - histórias<br />
da teledramaturgia, editada pela TV Globo, reëne <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> 16 novelistas<br />
contemporêneos, todos integrantes do primeiro time da emissora que à a principal produtora<br />
<strong>de</strong> telenovelas do paÉs. Nesse conjunto que pâe lado a lado escritores consagrados e<br />
representantes da nova geraÅÇo <strong>de</strong> autores <strong>de</strong> telenovela, há apenas duas mulheres: Maria<br />
A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral e Gloria Perez!<br />
Consi<strong>de</strong>rando que Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral nÇo escreve telenovela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1997, ano em<br />
que assinou o remake <strong>de</strong> “Anjo Mau”, e que a autora tem <strong>de</strong>ixado clara a sua preferÖncia por<br />
minissàries 411 ; e ainda consi<strong>de</strong>rando que, <strong>de</strong> 1998 a 2009, Gloria Perez <strong>de</strong>ixou sua assinatura<br />
em quatro novelas (“Pecado Capital”, “O Clone”, “Amàrica” e “Caminho das índias”), po<strong>de</strong>-<br />
se seguramente afirmar que, nos ëltimos 11 anos, as narrativas <strong>de</strong> autoria feminina da<br />
novelista acreana tÖm reinado absolutas num universo <strong>de</strong> histÑrias escritas por homens.<br />
Talvez por isso suas telenovelas ─ e aÉ “O Clone” e “Caminho das índias” tÖm papel<br />
fundamental ─ tenham sido tÇo i<strong>de</strong>ntificadas como diferentes das <strong>de</strong>mais.<br />
Muito se tem discutido sobre “literatura feminina” e “literatura feminista” 412 , termos<br />
que ganham diferentes contornos na polÖmica militência da mulher em suas afirmaÅâes <strong>de</strong><br />
gÖnero. Há muito que a mulher que escreve luta para conseguir escoar sua voz no<br />
tradicionalmente fechado e masculino mundo acadÖmico e literário. ExcluÉda do universo da<br />
escrita por diversos motivos (sociolÑgicos, histÑricos e comportamentais) atà o Romantismo,<br />
a mulher vem ganhando terreno: na dàcada <strong>de</strong> 1970, no bojo dos <strong>de</strong>bates em torno da questÇo<br />
da alterida<strong>de</strong>, consagrou-se como uma nova forÅa polÉtica; <strong>de</strong>pois, no contexto da cultura pÑs-<br />
mo<strong>de</strong>rna, ao conseguir introduzir a questÇo gÖnero na imprensa, no cinema e nos estudos<br />
acadÖmicos, conquistou para a escrita das mulheres um “lugar potencialmente privilegiado<br />
para a experiÖncia social feminina” 413 . A fala das mulheres atravàs da narrativa <strong>de</strong> autoria<br />
feminina passou a revelar um ponto <strong>de</strong> vista novo, original, um sujeito <strong>de</strong> enunciaÅÇo<br />
411 Sua ëltima obra foi a microssàrie (<strong>de</strong> cinco capÉtulos!) “Dalva e Herivelto ─ uma canÅÇo <strong>de</strong> amor”, exibida<br />
em janeiro <strong>de</strong> 2010.<br />
412 BUARQUE DE HOLLANDA, 1994.<br />
413 BUARQUE DE HOLLANDA, 1994, p. 11.<br />
199
consciente <strong>de</strong> seu papel social e uma experiÖncia subjetiva capaz <strong>de</strong> oferecer uma leitura<br />
alternativa, diferente (daquela do universo cultural masculino), sobre o mundo. Enquanto<br />
construÅÇo cultural, o gÖnero impâe um Eu subjetivo que vai alàm dos binarismos cartesianos<br />
que opâem homem/macho, mulher/fÖmea, forte, fraco: a escrita das mulheres, fruto <strong>de</strong> uma<br />
experiÖncia feminina construÉda por fatores histÑricos, culturais e polÉticos, traz as marcas da<br />
diferenÅa que obriga a mulher a expressar sua vivÖncia a partir <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista e <strong>de</strong> um<br />
sujeito <strong>de</strong> representaÅÇo prÑprios.<br />
Neste sentido, à inegável que a narrativa autoral <strong>de</strong> Gloria Perez se <strong>de</strong>staca no<br />
universo das telenovelas contemporêneas por sua assinatura feminina, pela forma com que sua<br />
experiÖncia <strong>de</strong> mulher percebe a realida<strong>de</strong>, traduzindo-a para a ficÅÇo com <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e<br />
responsabilida<strong>de</strong>. A autora tem certa resistÖncia em rotular sua escrita como feminina: “A<br />
pintura <strong>de</strong> mulher que eu acho mais bonita à Madame Bovary, que foi escrita por um<br />
homem”; AlmodÑvar, tambàm, “fala <strong>de</strong> mulher como ninguàm, e à homem” 414 . Mas concorda<br />
que a experiÖncia feminina <strong>de</strong>termina o olhar: segundo ela,<br />
200<br />
A mulher tem uma experiÖncia muito rica porque tem que lutar contra preconceitos, e<br />
preconceitos que hoje estÇo muitas vezes velados. Quando eu era mais jovem, as<br />
barreiras contra a mulher eram muito claras [...]. EntÇo, por causa da experiÖncia pelas<br />
quais a mulher passa, o olhar <strong>de</strong>la à diferente do olhar do homem. O ponto <strong>de</strong> vista à<br />
outro. 415<br />
Desse modo, a narrativa construÉda pelo olhar feminino <strong>de</strong> Gloria Perez expressa seu<br />
interesse por tudo que à humano, um interesse que permeia a escolha do tema, a construÅÇo da<br />
trama, a composiÅÇo das personagens e a forma <strong>de</strong> contar. Na cartilha da novelista, esse<br />
interesse aguÅa sua intuiÅÇo, um trunfo que ela nÇo consegue explicar, mas que certamente<br />
está associado ao domÉnio tàcnico <strong>de</strong> sua arte. Escrever sob a regÖncia da intuiÅÇo significa,<br />
para a autora, manter os sentidos em alerta: comeÅa por <strong>de</strong>ixar que um tema arrebate sua<br />
atenÅÇo (“VocÖ nÇo escolhe, o tema procura vocÖ” 416 ); <strong>de</strong>pois, à preciso sentir que o tema<br />
ren<strong>de</strong> uma novela (“Precisa ter capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramentos” e “<strong>de</strong> possibilitar o<br />
sensacional” 417 ); em seguida, para tramar vidas na imaginaÅÇo, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>spertar uma<br />
memÑria existencial (“Tem algum lugar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> vocÖ on<strong>de</strong> as coisas que vocÖ vive ficam<br />
guardadas” e quando se comeÅa a escrever “elas vÖm” 418 ); mais adiante, com <strong>de</strong>svelo quase<br />
maternal, concebe-se as personagens (“Todos os meus personagens sÇo carregados <strong>de</strong><br />
414 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 240.<br />
415 I<strong>de</strong>m, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 252.<br />
416 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 445.<br />
417 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 247.<br />
418 I<strong>de</strong>m, loc. cit.
humanida<strong>de</strong>, mesmo os vilâes” 419 ); por fim, à sÑ <strong>de</strong>ixar-se levar pela narrativa (“ï como uma<br />
danÅa: tem-se que sentir para on<strong>de</strong> o cavalheiro vai” 420 ). Os ensinamentos estÇo repletos <strong>de</strong><br />
práticas e sabedorias femininas: contornar assuntos-tabu para nÇo provocar a rejeiÅÇo da<br />
plateia (apresentar as qualida<strong>de</strong>s da personagem antes <strong>de</strong> dar a conhecer o problema); nÇo se<br />
ren<strong>de</strong>r ä emoÅÇo alheia (do pëblico, no caso), dialogar com ela, seduzindo a audiÖncia (“ï<br />
bacana quando o pëblico vem e vocÖ percebe que conseguiu!” 421 ).<br />
Pela vivÖncia feminina e por sua consciÖncia do gÖnero, Gloria Perez parece sentir que a<br />
escrita lhe conce<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> criar mulheres-personagens capazes <strong>de</strong> expressar assertivamente<br />
sua condiÅÇo <strong>de</strong> mulher. Por mais que enfrentem adversida<strong>de</strong>s, muitas <strong>de</strong>las impostas pela<br />
prÑpria configuraÅÇo patriarcal da socieda<strong>de</strong>, suas personagens femininas nunca vestem o<br />
papel <strong>de</strong> vÉtima: sÇo mulheres fortes que usam da “esperteza feminina” para driblar a opressÇo<br />
e as armadilhas do <strong>de</strong>stino, mulheres <strong>de</strong>cididas que assumem as rà<strong>de</strong>as <strong>de</strong> suas vidas,<br />
mulheres sonhadoras e romênticas, mas bravas em sua disposiÅÇo <strong>de</strong> lutar pelo que querem.<br />
Em “Amàrica”, a novelista nÇo gostou <strong>de</strong> ver a personagem Sol, a quem havia dado alma <strong>de</strong><br />
guerreira, ser convertida em “moÅa chorona” nas mÇos do diretor da trama. “Uma mulher<br />
capaz <strong>de</strong> aceitar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> atravessar um <strong>de</strong>serto e <strong>de</strong> enfrentar os perigos <strong>de</strong>ssa travessia<br />
para realizar o sonho <strong>de</strong> ‘fazer a vida na Amàrica’ à uma mulher forte, lutadora, corajosa ─<br />
nÇo po<strong>de</strong> ser uma chorona” 422 , explica a autora. O conflito entre sua percepÅÇo da personagem<br />
e a leitura que o diretor fizera <strong>de</strong>la acabou ren<strong>de</strong>ndo o afastamento <strong>de</strong> Jayme Monjardim da<br />
trama quando a novela já estava no ar.<br />
Ja<strong>de</strong> e Maya sÇo igualmente sonhadoras e guerreiras. A primeira à moÅa rebel<strong>de</strong>,<br />
enfrentou os costumes da famÉlia muÅulmana ─ tanto, que foi ameaÅada com 80 chibatadas!<br />
─, recusou o casamento arranjado pela famÉlia e dispòs-se a fugir do Marrocos com Lucas;<br />
diante da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser expulsa da famÉlia, contornou sua rebeldia e aceitou casar-se<br />
com Said; no Brasil, tentou ser feliz com o marido, mas nÇo conseguiu esquecer o amor por<br />
Lucas, com quem manteve caso turbulento, pois o amado já estava amargo pelo abandono <strong>de</strong><br />
seus sonhos; ao encontrar Lào, clone <strong>de</strong> Lucas, ficou perturbada com a imagem do homem<br />
por quem havia se apaixonado 20 anos antes; contrariando a tradiÅÇo religiosa e os votos <strong>de</strong><br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do casamento, separou-se do marido e uniu-se finalmente a Lucas, concretizando<br />
mesmo que tardiamente seu sonho <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>.<br />
419 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 252.<br />
420 Ibi<strong>de</strong>m, p. 249.<br />
421 Ibi<strong>de</strong>m, p. 250.<br />
422 Ibi<strong>de</strong>m, p. 256.<br />
201
Maya à moÅa forte, alegre e <strong>de</strong>cidida, que nÇo se <strong>de</strong>ixou oprimir pelos rÉgidos<br />
costumes indianos impostos äs mulheres: rompendo a resistÖncia dos pais, foi trabalhar fora e<br />
ä noite; <strong>de</strong>safiando o sectário sistema <strong>de</strong> castas e a tradiÅÇo religiosa que exige castida<strong>de</strong>s äs<br />
moÅas atà o casamento, apaixonou-se por um jovem sem casta e entregou-se a ele;<br />
abandonada pelo amado e grávida, aceitou o casamento arranjado com Raj para poupar sua<br />
famÉlia da vergonha e livrar-se das severas puniÅâes previstas na socieda<strong>de</strong>; já casada e cada<br />
vez mais apaixonada pelo marido, nÇo hesitou em mentir, forjar exames e encenar um parto<br />
“prematuro” para encobrir a gravi<strong>de</strong>z do filho dálit e para nÇo comprometer o “amor<br />
construÉdo”; quando a situaÅÇo tornou-se insustentável, encheu-se <strong>de</strong> coragem para que o<br />
marido ouvisse a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua prÑpria boca; <strong>de</strong>sesperada com a notÉcia da morte <strong>de</strong> Raj,<br />
com sua expulsÇo da casa do marido e com a con<strong>de</strong>naÅÇo ä vida num viuvário, entregou seu<br />
filho para que fosse criado fora da índia, on<strong>de</strong> costumes mais “mo<strong>de</strong>rnos” nÇo amaldiÅoariam<br />
a crianÅa por ter sido concebida num arroubo <strong>de</strong> paixÇo jovem; por fim, <strong>de</strong>pois do martÉrio <strong>de</strong><br />
ter sido expulsa da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> ter tido <strong>de</strong> se afastar do filho e <strong>de</strong> acreditar que havia<br />
perdido tambàm o amor <strong>de</strong> sua vida, Maya livrou-se rapidamente do luto ao reencontrar Raj,<br />
ao ter o filho aceito na famÉlia Ananda e ao retomar seu sonho <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Se o luto chegou<br />
a abater Maya momentaneamente, na crenÅa <strong>de</strong> que sua vida sem o amor e a presenÅa <strong>de</strong> Raj<br />
havia perdido o sentido, nada mais, nem mesmo sua expulsÇo <strong>de</strong> casa, da socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sua<br />
casta, foi capaz <strong>de</strong> retirar-lhe a altivez <strong>de</strong> quem assume que fez o que fez por amor, sempre<br />
por amor: entregou-se a Bahuam por amor e mentiu para preservar o amor construÉdo com o<br />
marido arranjado. Maya entrou no viuvário triste com a morte <strong>de</strong> Raj e com a iminÖncia <strong>de</strong><br />
afastar-se do filho, mas estava <strong>de</strong> cabeÅa erguida, certa <strong>de</strong> que nÇo tinha nada do que se<br />
envergonhar ou se arrepen<strong>de</strong>r. Foi o arcaÉsmo dos costumes, e nÇo suas aÅâes, que fez com<br />
que fosse vista como uma errante. Decidida a fazer valer seu sonho <strong>de</strong> amor com Raj e a levar<br />
adiante tudo o que fosse preciso para driblar a rigi<strong>de</strong>z das tradiÅâes e salvar-lhe a vida e a <strong>de</strong><br />
seu filho, Maya nÇo se <strong>de</strong>ixou paralisar nem diante dos maiores impasses. Sabia precisamente<br />
o que <strong>de</strong>veria ser feito e nÇo questionou se era certo ou errado: era a ënica saÉda que tinha, era<br />
a ënica saÉda possÉvel numa socieda<strong>de</strong> tÇo pouco flexÉvel.<br />
Gloria Perez pòs em cena, especialmente no caso <strong>de</strong> Maya, um ensinamento legado<br />
por outra autora que se dizia intuitiva, a novelista-dona-<strong>de</strong>-casa que escrevia a partir <strong>de</strong> sua<br />
sensibilida<strong>de</strong> para as emoÅâes domàsticas, a mestra Janete Clair. Ao discutir o <strong>de</strong>stino da<br />
mocinha <strong>de</strong> “Eu prometo”, Janete teria dito a Gloria Perez, diante dos temores <strong>de</strong> sua<br />
colaboradora <strong>de</strong> que fosse chocar o pëblico com a <strong>de</strong>cisÇo <strong>de</strong> fazer a protagonista da novela<br />
mentir para o marido, dizendo ser <strong>de</strong>le o filho fruto <strong>de</strong> um outro relacionamento: “NÇo seja<br />
202
tonta, a ënica coisa que uma mulher nÇo po<strong>de</strong> fazer à maltratar o filho; tudo que fizer por<br />
amor ao filho será perdoado” 423 . Tal liÅÇo expressa a crenÅa consolidada em anos <strong>de</strong><br />
experiÖncia <strong>de</strong> que, aos olhos da audiÖncia, as representaÅâes da mulher po<strong>de</strong>m tomar<br />
mëltiplas e ousadas formas, mas <strong>de</strong>vem sempre respeitar a maternida<strong>de</strong> como uma dimensÇo<br />
sagrada da alma feminina. Nesse sentido, os conselhos da “Maga das Oito” elevam o amor<br />
mÇe-filho ä categoria <strong>de</strong> ënico sentimento que nÇo à passÉvel <strong>de</strong> traiÅÇo. Em “Caminho das<br />
índias”, a autora parece ter estendido a regra para o domÉnio dos homens: uma vez superadas<br />
as explosâes <strong>de</strong> orgulho masculino, Raj e Opash, personagens marcadas pela rejeiÅÇo aos<br />
intocáveis, ren<strong>de</strong>m-se a uma compreensÇo humana ─ quase maternal ─ da vida, passando a<br />
aceitar o filho e neto dálit acima das barreiras das castas, numa <strong>de</strong>monstraÅÇo <strong>de</strong> que um amor<br />
acalentado na generosida<strong>de</strong> amorosa da relaÅÇo pai-filho e avò-neto nÇo sucumbe aos<br />
caprichos da genàtica.<br />
A consciÖncia <strong>de</strong> gÖnero <strong>de</strong> Gloria Perez faz com que pinte suas personagens<br />
femininas com cores sempre fortes, <strong>de</strong>ixando no pëblico a marca <strong>de</strong> sua assertivida<strong>de</strong> a<br />
respeito da ousadia, da in<strong>de</strong>pendÖncia, da rebeldia e do papel ativo da mulher hoje. Mesmo<br />
personagens quase còmicas como Melissa, perua, fëtil e apreciadora do dinheiro como<br />
passaporte para a felicida<strong>de</strong>, traziam uma esperteza feminina: ciente das traiÅâes do marido e<br />
<strong>de</strong> seu papel <strong>de</strong> esposa-enfeite, valia-se das transgressâes do parceiro para nÇo per<strong>de</strong>r seu<br />
reinado e ainda mantÖ-lo sob seu po<strong>de</strong>r. Personagens como Indira, dona-<strong>de</strong>-casa e mÇe <strong>de</strong><br />
extensa famÉlia que <strong>de</strong>ve ren<strong>de</strong>r obediÖncia ao marido e submeter-se äs implicências da sogra,<br />
encontrava o caminho possÉvel para fazer valer seu po<strong>de</strong>r: guardiÇ do produto das vendas na<br />
loja do marido, dava sempre um jeito <strong>de</strong> reservar uma parte para si <strong>de</strong> tal modo que nÇo<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse do Opash para suas compras (graÅas a isso podia viver “arrastando o sári pelo<br />
mercado”); guardiÇ dos segredos da culinária apreciada na famÉlia, fazia da chave da <strong>de</strong>spensa<br />
um instrumento <strong>de</strong> barganha para manter suas noras disputando sua confianÅa; distraÉda na<br />
educaÅÇo dos filhos e dramática na <strong>de</strong>fesa retÑrica dos costumes, valia-se do expediente <strong>de</strong><br />
fingir <strong>de</strong>smaios (e assim mudar o foco da atenÅÇo <strong>de</strong> todos) quando a sogra apontava suas<br />
falhas na conduÅÇo da casa e da famÉlia. Atà mesmo personagens secundárias como as<br />
domàsticas Cema, Sheila e Ondina, ganharam <strong>de</strong> Gloria Perez um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, fora da<br />
subserviÖncia ou da usual exploraÅÇo da sensualida<strong>de</strong>: a primeira era lutadora, trabalhava <strong>de</strong><br />
passa<strong>de</strong>ira na casa <strong>de</strong> Ramiro para garantir a escola <strong>de</strong> Maico e o tratamento psiquiátrico <strong>de</strong><br />
A<strong>de</strong>mir; a segunda, vaidosa, conquistou a confianÅa da patroa, a difÉcil e temperamental<br />
423 CLAIR apud. PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 251.<br />
203
Melissa, tornando sua confi<strong>de</strong>nte e parceira nos cosmàticos; conselheira da patroa SÉlvia na<br />
educaÅÇo da filha, a terceira era, sobretudo, a principal interlocutora do patriarca dos Cadore.<br />
Mais do que mostrá-las em suas funÅâes, vestindo impecáveis uniformes profissionais e<br />
servindo a mesa dos ricos, a novelista fez com que fossem vistas tambàm e muitas vezes em<br />
roupas <strong>de</strong> passeio, divertindo-se na gafieira, espaÅo <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> lazer escolhido por<br />
personagens <strong>de</strong> várias classes sociais.<br />
Para alàm <strong>de</strong> fazer das personagens femininas expressâes humanizadas das mëltiplas<br />
dimensâes afirmativas da mulher, Gloria Perez ofereceu o feminino quando permitiu que suas<br />
narrativas sobre a diferenÅa cultural fossem conduzidas por vários pontos <strong>de</strong> vista.<br />
Acostumada a vir a pëblico pela representaÅÇo <strong>de</strong> outrem, a mulher que conquista voz, que<br />
escreve, sabe da importência <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar que cada um fale por si. Assim à que sua escrita <strong>de</strong><br />
autoria feminina teve a generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar o muÅulmano e o indiano pelo olhar dos<br />
locais, assim como mostrou o drogado e o doente mental pela Ñtica dos que vivem o<br />
problema. Alàm disso, num exercÉcio <strong>de</strong> resistÖncia <strong>de</strong> gÖnero contra os discursos totalizantes<br />
(a vivÖncia feminina conhece na carne os efeitos da prepotÖncia), a novelista propòs sempre o<br />
contraponto: mais que oferecer aos sujeitos um espaÅo para a prÑpria representaÅÇo, ampliava<br />
os focos <strong>de</strong> percepÅÇo, trazendo para o “<strong>de</strong>bate”, no caso dos muÅulmanos e indianos, o olhar<br />
do oriental arcaico, o do oriental que teve a experiÖncia do Oci<strong>de</strong>nte e o do estrangeiro. No<br />
caso dos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes mentais, trouxe o ponto <strong>de</strong> vista dos pacientes, <strong>de</strong><br />
seus familiares, dos màdicos e dos populares que lidam apenas com os estereÑtipos das<br />
doenÅas. NÇo fosse isso, Maya nÇo teria sido perdoada por Raj: por mais verda<strong>de</strong>iro que seu<br />
amor construÉdo fosse, seu perdÇo o faria confrontar preconceitos muito sÑlidos na cultura<br />
indiana, barreiras impossÉveis <strong>de</strong> serem transpostas por um indiano arcaico. Para perdoá-la, sÑ<br />
mesmo o amor <strong>de</strong> um indiano atravessado pela experiÖncia oci<strong>de</strong>ntal: por “falar” as culturas<br />
do Oriente e do Oci<strong>de</strong>nte, Raj consegue avaliar os atos da esposa amorosamente para alàm do<br />
ponto <strong>de</strong> vista dos “costumes”.<br />
Assim como ocorreu com Janete Clair, a escrita autoral feminina <strong>de</strong> Gloria Perez<br />
<strong>de</strong>sperta o preconceito contra a mulher e contra a mulher que escreve, que conquista voz ─ e<br />
voz que atinge um paÉs inteiro. NÇo por acaso as duas sempre foram muito criticadas por suas<br />
fantasias televisivas. Com uma produÅÇo impressionante, Janete Clair foi a soberana das<br />
telenovelas brasileiras das 20 horas na TV Globo entre 1968 e 1983. Suas tramas, no entanto,<br />
conviveram com muitas novelas exibidas em outros horários e assinadas por autores homens,<br />
como as do prÑprio marido Dias Gomes, e as <strong>de</strong> Bráulio Pedroso, Cassiano Gabus Men<strong>de</strong>s,<br />
Lauro Càsar Muniz, Vicente Sesso, Walter NegrÇo, Walter Avancini e outros. Apesar da<br />
204
unanimida<strong>de</strong> sobre seu domÉnio tàcnico sobre o folhetim e do sucesso <strong>de</strong> suas histÑrias (e talvez<br />
porque suas novelas arrebatassem a maior fatia da audiÖncia ─ os horários no comeÅo da noite,<br />
com tramas mais aÅucaradas, e os mais tardios, ocupados com estàticas experimentais ─ tinham<br />
pëblico mais restrito), recaiu sobre Janete, mais do que sobre qualquer um dos os <strong>de</strong>mais<br />
autores, a acusaÅÇo <strong>de</strong> estar a serviÅo da ditadura, oferecendo o “Ñpio do povo”. Fora isso,<br />
segundo Gloria Perez 424 , muitas vezes circulou o boato maldoso <strong>de</strong> que as novelas <strong>de</strong> Janete<br />
na verda<strong>de</strong> eram escritas pelo marido e sÑ assinadas por ela. O jornalista Artur Xexào, autor<br />
do perfil da novelista, afirma que “ela sofria muito por nÇo ter o mesmo respeito intelectual<br />
que o marido” 425 . Alàm do preconceito polÉtico contra sua narrativa romêntica e folhetinesca<br />
(“alienante”) e do preconceito intelectual contra a qualida<strong>de</strong> do que escrevia (era “popular”),<br />
Janete ainda sentia <strong>de</strong> perto o preconceito profissional que exigia das mulheres o que nÇo era<br />
exigido dos homens. Sua colaboradora conta que ela costumava dizer, em tom <strong>de</strong> constataÅÇo<br />
crÉtica: “Mulher nÇo po<strong>de</strong>” 426 ─ nÇo po<strong>de</strong> ficar doente, nÇo po<strong>de</strong> ter crise criativa, nÇo po<strong>de</strong><br />
ter <strong>de</strong>pressÇo nem atrasar entrega <strong>de</strong> capÉtulo.<br />
Gloria Perez sabe bem o que à isso: os crÉticos <strong>de</strong> plantÇo reclamam que suas<br />
personagens rapidamente chegam ao outro lado do mundo e que sua escrita ficcional à<br />
inverossÉmil. E quando a autora se apoia em fatos reais para armar sua trama, ainda assim<br />
criticam-na por produzir ficÅÇo cientÉfica, “maluquice” “<strong>de</strong>lÉrio”:<br />
205<br />
“Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, valia-se da Internet, que ainda nÇo era muito conhecida no Brasil,<br />
para aproximar o casal improvável: um polÉtico importante e uma moÅa cigana. Fui<br />
chamada <strong>de</strong> louca, <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirante, porque diziam que uma pessoa nÇo falava com outra<br />
pelo computador. E aÉ eu ficava pensando: como à que po<strong>de</strong> o jornalismo nÇo saber<br />
que Internet existe, e que isso vai mudar o mundo? A página <strong>de</strong> apresentaÅÇo <strong>de</strong><br />
“Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo” que foi para a imprensa naquela àpoca [1995] à a <strong>de</strong>scriÅÇo exata<br />
do que à a Internet hoje e <strong>de</strong> como ela transformou o mundo. Como à que um<br />
preconceito po<strong>de</strong> ser tÇo gran<strong>de</strong> a ponto <strong>de</strong> cegar a pessoa, impedindo-a <strong>de</strong> ver que o<br />
que a outra está dizendo à uma coisa muito coerente? 427<br />
Certamente nÇo se supunha que uma mulher pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>monstrar conhecimento sobre<br />
uma área ainda tÇo “masculina”, na àpoca, como a tecnologia digital <strong>de</strong> informaÅÇo. E, no<br />
entanto, o envolvimento da mulher Gloria Perez na comunicaÅÇo digital data da prà-histÑria<br />
da Internet, do tempo dos BBS’s, computadores pequenos ligados ä linha telefònica via<br />
mo<strong>de</strong>m atravàs do qual era possÉvel enviar mensagens a um fÑrum <strong>de</strong> discussÇo que<br />
424 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 245.<br />
425 XEXïO, 2006, entrevista a Cláudio Carneiro. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 20 jul. 2009.<br />
426 PEREZ, op. cit., p. 251<br />
427 I<strong>de</strong>m, p. 240.
interligava gente <strong>de</strong> todo o mundo. Sua curiosida<strong>de</strong> (feminina?) a havia feito invadir uma área<br />
que muitos homens ainda nem conheciam.<br />
Sendo o preconceito o horizonte no qual a mulher constrÑi suas diversas<br />
competÖncias, Gloria Perez apenas ri do que dizem sobre ela, recorta as crÉticas que chama <strong>de</strong><br />
“bobagens” para que seus netos possam um dia ler e se divertir com a avÑ que à capaz <strong>de</strong><br />
emocionar um paÉs inteiro em seus “<strong>de</strong>lÉrios”. A ënica mulher escritora <strong>de</strong> telenovelas <strong>de</strong><br />
horário nobre no Brasil hoje sabe que promover tal sintonia à uma arte e um po<strong>de</strong>r ─ orgulha-<br />
se <strong>de</strong> sua escritura popular. Sabe que sua missÇo à encantar o povo, entretÖ-lo e fazÖ-lo<br />
pensar. Já se acostumou a ir ä frente <strong>de</strong>sbravando novos caminhos, convertendo realida<strong>de</strong> em<br />
ficÅÇo, dando vida ä imaginaÅÇo. Tudo para colocar em pauta, por intermàdio da fantasia,<br />
questâes que po<strong>de</strong>m mudar o cotidiano dos brasileiros. Ao estabelecer com o pëblico uma<br />
“comunicaÅÇo <strong>de</strong> gente para gente, <strong>de</strong> emoÅÇo para emoÅÇo” 428 , a autora <strong>de</strong> “O Clone” e<br />
“Caminho das índias” constrÑi os vÉnculos que permitirÇo a todos muito mais que a<br />
experiÖncia original da realida<strong>de</strong> proposta por ela: ela lhes proporciona um mergulho num<br />
universo <strong>de</strong> afetos a ser compartilhado capÉtulo a capÉtulo. Com coragem e ousadia, Gloria<br />
Perez recria o real a partir <strong>de</strong> seus olhos <strong>de</strong> mulher sem abandonar a agu<strong>de</strong>za e a crÉtica e sem<br />
envergonhar-se da <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za. Deixando-se guiar pela experiÖncia feminina, extrai o humano<br />
<strong>de</strong> tudo o que vÖ. Nesse universo tÇo masculino <strong>de</strong> autores <strong>de</strong> telenovela, Gloria Perez<br />
promove um <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> perspectiva tÇo radical que o mÉnimo que se po<strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> suas<br />
obras à que sÇo diferentes. A diferenÅa à o trunfo maior <strong>de</strong> sua escrita <strong>de</strong> autoria feminina.<br />
428 ExpressÇo usada por Janete Clair para <strong>de</strong>finir seu trabalho ä frente das telenovelas em entrevista conduzida<br />
pela jornalista Leda Nagle para o “Jornal Hoje”, da TV Globo. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 30 out. 2009.<br />
206
9 CONCLUSÃO<br />
Recuperar uma trama exibida no passado ou tentar apreen<strong>de</strong>r o sentido <strong>de</strong> outra<br />
durante sua exibiÅÇo sÇo tarefas que impâem ao pesquisador uma abordagem curiosa,<br />
impensável no campo dos estudos literários: em telenovela, necessariamente, ou se fala do<br />
que já nÇo existe ou daquilo que ainda nÇo à. Assim, “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
constituem um corpus sui generis que nÇo se ren<strong>de</strong> ao formalismo <strong>de</strong> uma existÖncia material<br />
enquanto obra ─ consultável, recuperável e <strong>de</strong>sfrutável a qualquer tempo. Tal qual uma<br />
performance, tÖm apariÅÇo transitÑria e se <strong>de</strong>smancham no ar no mesmo instante em que<br />
conquistam sua completu<strong>de</strong>. Aprisioná-las nos limites da teoria po<strong>de</strong> parecer uma violÖncia<br />
contra um <strong>de</strong> seus trunfos fundadores, prÑprio <strong>de</strong> sua natureza fatiada e televisiva: oferecer-se<br />
como prazer estàtico fugaz. Na certeza <strong>de</strong> que à impossÉvel substituir o vigor das tramas ou<br />
resgatar-lhes a alma, a reflexÇo teÑrica das telenovelas espera apenas garantir-lhes uma<br />
sobrevida, acrescentando-lhes outras dimensâes.<br />
Arte perecÉvel e efÖmera, o folhetim eletrònico tem curta existÖncia, dura apenas o<br />
tempo <strong>de</strong> sua exibiÅÇo. Quando enfim chega ao ëltimo episÑdio e conquista seu estatuto <strong>de</strong><br />
obra, a novela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir. Irrecuperável, o conjunto <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> duzentos capÉtulos passa<br />
a sobreviver apenas como mero registro nos anais da histÑria da teledramaturgia. Ou como<br />
imagem <strong>de</strong>sbotada na memÑria dos que acompanharam durante tantos meses as histÑrias<br />
apresentadas. Por mais que arrebatem o coraÅÇo <strong>de</strong> milhâes <strong>de</strong> brasileiros, telenovelas sÇo<br />
obras cujo valor artÉstico e cuja consagraÅÇo popular nÇo lhe garantem a perenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras<br />
artes: o “volume completo” nÇo permite “releitura”; eventualmente, apenas algumas cenas ou<br />
certos capÉtulos adquirem permanÖncia prolongada na vitrine digital <strong>de</strong> sites especializados.<br />
Enquanto corre a trama, a fruiÅÇo e a análise ficam ä espera do <strong>de</strong>sfecho; <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua<br />
exibiÅÇo, estudá-la ou mesmo apreciá-la torna-se trabalho arqueolÑgico. O novo e urgente<br />
rondam tanto a experiÖncia <strong>de</strong> consumo da obra quanto a experiÖncia teÑrica com a obra.<br />
NÇo à ä toa que Gloria Perez escreve suas novelas <strong>de</strong> pà. O sentido <strong>de</strong> urgÖncia que<br />
imprime ritmo veloz e percurso imprevisÉvel a uma escrita programada para preencher 32<br />
páginas <strong>de</strong> roteiro por dia à prÑprio <strong>de</strong> uma narrativa que nÇo sobrevive ao dia seguinte do<br />
ëltimo capÉtulo. A velocida<strong>de</strong> com que se substitui uma telenovela à marcada pela pressa da<br />
mÉdia em garantir audiÖncia para a produÅÇo que estreia em seguida: raramente se vÖ na<br />
crÉtica especializada comentários sobre o tÇo esperado final <strong>de</strong> uma trama. No universo das<br />
narrativas televisivas, falar do novo à um imperativo. No universo da teoria que se <strong>de</strong>bruÅa<br />
207
sobre elas, no entanto, a urgÖncia <strong>de</strong>ve se fazer acompanhar da cautela e da crÉtica para evitar<br />
as <strong>de</strong>formaÅâes inerentes ä razÇo a priori proposta e para garantir o interesse polimorfo da<br />
experiÖncia estàtica. Assim, para alcanÅar aqui a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos <strong>de</strong> “O Clone” e<br />
“Caminho das índias”, foi necessário, como veremos a seguir, <strong>de</strong>scortinar e explorar as<br />
mëltiplas dimensâes do folhetim eletrònico.<br />
Telenovela à paixÇo ─ para quem escreve e para quem assiste. ï histÑria <strong>de</strong> amor<br />
oferecida em fatias que se <strong>de</strong>sdobram em peripàcias para manter a aÅÇo em suspense,<br />
aguardando um <strong>de</strong>sfecho que à sempre adiado. ï jogo <strong>de</strong> “escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong>”, brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />
“tá quente-tá frio”, manobra <strong>de</strong> “mor<strong>de</strong>-e-assopra”: à preciso surpreen<strong>de</strong>r, virar a mesa,<br />
frustrar as apostas, blefar, ter cartas na manga; vale fazer crer e <strong>de</strong>smentir, aproximar e<br />
afastar; imprescindÉvel fazer rir e chorar, amar e odiar. Todos os <strong>de</strong>svios sÇo válidos para<br />
rechear <strong>de</strong> aÅÇo e novida<strong>de</strong> o longo caminho atà o final. Nenhuma emoÅÇo po<strong>de</strong> ser sonegada:<br />
tudo para provocar a imaginaÅÇo, seduzir, fazer o pëblico querer mais; tudo para potencializar<br />
o feitiÅo do corte estratàgico que fatia a emoÅÇo na hora do clÉmax, que impâe obstáculo ao<br />
<strong>de</strong>sejo, que joga com os papàis <strong>de</strong> mestre e escravo, algoz e vÉtima. Escrever telenovela à<br />
brincar com o erotismo.<br />
Telenovela tambàm à tàcnica, combinaÅÇo <strong>de</strong> truques que a audiÖncia nÇo vÖ, mas que<br />
produzem encantamento. A escolha <strong>de</strong> temas passÉveis <strong>de</strong> serem <strong>de</strong>sdobrados em muitas<br />
tramas, a <strong>de</strong>finiÅÇo <strong>de</strong> um eixo central forte, a concepÅÇo do caráter das personagens, sua<br />
apresentaÅÇo clara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inÉcio, a criaÅÇo da linguagem dos figurinos, a seleÅÇo da trilha<br />
sonora, a produÅÇo <strong>de</strong> arte na elaboraÅÇo dos cenários, a amarraÅÇo das tramas e sub-tramas, o<br />
enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> cenas num capÉtulo, a intercalaÅÇo <strong>de</strong> emoÅâes, o uso <strong>de</strong> flashbacks, a<br />
criaÅÇo <strong>de</strong> ganchos, a construÅÇo do clÉmax, a distribuiÅÇo <strong>de</strong> histÑrias ao longo da semana, a<br />
conduÅÇo do <strong>de</strong>stino das personagens, o fechamento das tramas ─ tudo expressa a tàcnica <strong>de</strong><br />
contar histÑria. Arte <strong>de</strong> autor, o folhetim eletrònico nasce do domÉnio <strong>de</strong> uma escrita cuja<br />
especificida<strong>de</strong> inclui nÇo sÑ os aspectos textuais da narrativa como tambàm os <strong>de</strong> produÅÇo<br />
cÖnica e ainda os inerentes ä sua comunicabilida<strong>de</strong> com o pëblico 429 . Produto <strong>de</strong> equipe, a<br />
novela chega äs telas da tevÖ pelas mÇos <strong>de</strong> muitos artistas que, em suas diferentes narrativas,<br />
pâem em cena, coletiva e afinadamente, o projeto do novelista. Escrever telenovela exige<br />
refinada carpintaria <strong>de</strong> texto e perfeita sintonia com as <strong>de</strong>mais linguagens áudio-visuais.<br />
Telenovela muitas vezes à arte: sendo dramaturgia televisiva, o texto que dá origem äs<br />
outras narrativas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m sonora e imagàtica à literário: tem comeÅo, meio e fim;<br />
429 Ver o roteiro do primeiro capÉtulo <strong>de</strong> “Caminho das índias” em Anexo B.<br />
208
fundamenta-se na palavra escrita; baseia-se em técnicas narrativas (criação e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> conflitos e intrigas), na construção <strong>de</strong>scritiva <strong>de</strong> seres ficcionais e no uso <strong>de</strong> diálogos.<br />
Através <strong>de</strong> narrativa ficcional, a telenovela, como uma crônica visual, oferece contun<strong>de</strong>nte e<br />
rico recorte <strong>de</strong> nosso tempo. Como toda arte transpassada pela tecnologia <strong>de</strong> reprodução, a<br />
telenovela, enquanto narrativa áudio-visual, flerta com o literário na busca <strong>de</strong> um lugar<br />
próprio <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> sentido, proporcionando uma experiência estética que, em muitos<br />
casos, ultrapassa a mera fruição e o consumo. A arte na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> passou a acolher<br />
como belo o banal, a repetição, a performance fugaz, o pastiche, a história do anônimo; e a<br />
experiência estética passou a conciliar prazer estético e transformação do cotidiano. Escrever<br />
telenovela também é oferecer uma crônica do contemporâneo, um olhar diferente sobre ele e<br />
uma provocação para modificá-lo.<br />
Telenovela é folhetim, história rocambolesca contada em pílulas para manter o público<br />
curioso sobre os múltiplos <strong>de</strong>sdobramentos da trama. Concebida para ser <strong>de</strong>gustada aos<br />
poucos e cortada diariamente no momento <strong>de</strong> clímax, a telenovela, como o folhetim impresso,<br />
tem por função maior entreter a audiência, fazê-la ligar a tevê no dia seguinte para<br />
acompanhar o que havia ficado pen<strong>de</strong>nte na véspera. Por sua longa extensão, precisa manter<br />
em ação vários eixos <strong>de</strong> narrativa e criar falsos ganchos <strong>de</strong> modo a fazer a história ren<strong>de</strong>r. Ao<br />
mesmo tempo em que ten<strong>de</strong> a se apoiar na verossimilhança, narrando histórias que pareçam<br />
possíveis (embora muitas vezes vire-lhe as costas), a telenovela não existe sem o sensacional,<br />
sem a peripécia, que obriga o autor a abandonar a coerência para <strong>de</strong>dicar-se a reviravoltas<br />
mirabolantes. Com um pé na realida<strong>de</strong> e outro na fantasia, expõe dramas reais, traz a crítica<br />
social e faz o público sonhar. Na conjunção entre o realismo e o fantasioso, propõe ao público<br />
um mergulho na emoção da trama para <strong>de</strong>pois, dialeticamente, fazê-lo <strong>de</strong>svendar as<br />
artimanhas do jogo ficcional. Centradas em histórias <strong>de</strong> amor impossível, on<strong>de</strong> o casal<br />
apaixonado tem <strong>de</strong> superar impedimentos <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m até encontrar a felicida<strong>de</strong>, as<br />
telenovelas fazem do triângulo amoroso o pilar sobre o qual sustentam o inevitável drama dos<br />
<strong>de</strong>sencontros, da intriga, do ciúme e da traição. Tudo isso para exacerbar o <strong>de</strong>sejo do encontro<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, cultivado em românticas cenas <strong>de</strong> amor e sonhos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Na telenovela, o<br />
adjetivo folhetinesco, tantas vezes usado pejorativamente, <strong>de</strong>screve uma qualida<strong>de</strong> que lhe é<br />
inerente e que respon<strong>de</strong> por aquilo que o gênero tem <strong>de</strong> melhor! Escrever telenovela requer<br />
imaginação para criar o inusitado e sensibilida<strong>de</strong> para tocar as emoções da audiência.<br />
Telenovela é produto da indústria cultural, mercadoria feita para agradar as massas e<br />
dar audiência à emissora. Sensível ao gosto e aos valores da socieda<strong>de</strong>, atinge igualmente as<br />
elites e as classes populares sem subestimar a inteligência dos letrados nem avançar sobre os<br />
209
limites dos analfabetos. Carro-chefe da programaÅÇo das emissoras, o folhetim televisivo tem<br />
compromisso com o sucesso: obra patrocinada, <strong>de</strong>ve compensar com audiÖncia massiva os<br />
altos valores nela investido. Como tudo o mais que foi reificado na socieda<strong>de</strong> pÑs-mo<strong>de</strong>rna, a<br />
telenovela à <strong>de</strong>stinada ao consumo, ä fruiÅÇo ─ nÇo ä toa as tevÖs reservam para ela a<br />
prateleira <strong>de</strong> mais visibilida<strong>de</strong> do mercado. A <strong>de</strong>voÅÇo ao entretenimento e o posicionamento<br />
mercadolÑgico como mercadoria, no entanto, nÇo impe<strong>de</strong>m a telenovela <strong>de</strong> ser mais que mera<br />
válvula <strong>de</strong> escape äs tensâes cotidianas do espectador: eventualmente po<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>ntro da lÑgica<br />
do espetáculo, oferecer conteëdo, informaÅÇo e i<strong>de</strong>ias transformadoras. Escrever telenovela<br />
muitas vezes requer embrulhar com papel atraente o mais indigesto tema.<br />
Telenovela, entÇo, à narrativa popular, que fala direto ao coraÅÇo do povo. Mais<br />
extensa e superficial que a minissàrie, <strong>de</strong>ve captar e expressar as emoÅâes da populaÅÇo e ser<br />
compreendida por todos. Frases curtas, i<strong>de</strong>ias claras, diálogos simples, encenaÅÇo limpa,<br />
reiteraÅâes, redundências, estereÑtipos, cÑdigos conhecidos, personagens reconhecÉveis, temas<br />
simplificados ─ recursos textuais e cÖnicos garantem a eliminaÅÇo <strong>de</strong> qualquer ruÉdo<br />
comunicacional. Ao contrário do que muitos eruditos pensam, tais condicionantes, em vez <strong>de</strong><br />
reduzir a qualida<strong>de</strong> da obra, fazem <strong>de</strong>la arte ainda mais bela. A chancela <strong>de</strong> obra popular livra<br />
a telenovela da prepotÖncia e do pedantismo: a narrativa nÇo fala em tom superior äs massas,<br />
nÇo lhes nega a compreensÇo. ConstrÑi discurso inclusivo e <strong>de</strong>mocrático, livre do ranÅo do<br />
preconceito que insiste em con<strong>de</strong>nar o povo a uma posiÅÇo subalterna. Na simplicida<strong>de</strong> e na<br />
clareza da linguagem do folhetim, a telenovela ren<strong>de</strong> homenagem a quem lhe renova o fòlego:<br />
o povo. Escrever telenovela requer a sintonia com as emoÅâes mais genuÉnas da populaÅÇo.<br />
A todas estas dimensâes do drama seriado televisivo, Gloria Perez acrescenta mais<br />
uma: telenovela à narrativa sobre o Outro. De forma original e pioneira, a autora fez <strong>de</strong> duas<br />
<strong>de</strong> suas telenovelas um discurso sobre a alterida<strong>de</strong>: tratou nÇo sÑ do Outro estrangeiro, que<br />
vive em outra cultura, em paÉs distante do Brasil, mas tambàm se voltou para o Outro que<br />
circula entre nÑs com o estigma da diferenÅa. Em “O Clone” e “Caminho das índias”, Eu e<br />
Outro sÇo permanentemente apresentados em contraponto, apartados apenas pela distência<br />
cultural que guardam entre si.<br />
De um lado, o Brasil, <strong>de</strong> outro, o Marrocos e a índia, o muÅulmano e o indiano ─<br />
narrativas sobre diferenÅas culturais construÉdas a partir <strong>de</strong> trÖs pontos <strong>de</strong> vista: o local, o<br />
estrangeiro e o “turista”, aquele que transita entre culturas, que à atravessado por ambas, que<br />
adquire i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> hÉbrida. A representaÅÇo do muÅulmano e do indiano sintetizou as muitas e<br />
provisÑrias i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s experimentadas em cada uma <strong>de</strong>stas “comunida<strong>de</strong>s imaginadas”.<br />
Porque sÇo representaÅâes, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s das fábulas <strong>de</strong> Gloria Perez ganharam as telas como<br />
210
alegorias, oferecendo em sÉntese os vários rostos <strong>de</strong> uma cultura em sua pluralida<strong>de</strong><br />
simbÑlica. Tendo em vista a natureza <strong>de</strong>scentrada e fragmentada das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s na pÑs-<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, resultado do impacto da globalizaÅÇo na concepÅÇo unificada do sujeito e na<br />
noÅÇo homogÖnea <strong>de</strong> cultura nacional, tais alegorias exacerbam e reduzem simultaneamente<br />
os mëltiplos discursos que a cada momento dÇo sentido ä i<strong>de</strong>ia que o muÅulmano e o indiano<br />
tÖm <strong>de</strong> si mesmos. Alàm disso, somam a elas as representaÅâes existentes no imaginário<br />
coletivo sobre tais i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s estrangeiras, imaginário muitas vezes inspirado na ficÅÇo<br />
literária, mas nem por isso distante da auto-imagem que os sujeitos constroem para si.<br />
Reënem ainda sob um <strong>de</strong>terminado espaÅo fÉsico ─ simbÑlico, mas com se<strong>de</strong> no territÑrio<br />
geográfico daqueles paÉses ─ as realida<strong>de</strong>s da cena urbana e da cena rural. Em cenários<br />
carregados <strong>de</strong> sinais ostensivos da cultura local e religiosa, Gloria Perez fez circular famÉlias<br />
tradicionais, guardiÇes dos mais severos costumes, e indivÉduos mais liberais; pessoas<br />
conformadas com o <strong>de</strong>stino e rebel<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>safiam o traÅado <strong>de</strong> Deus; gente endinheirada e<br />
serviÅais. Neste universo <strong>de</strong> contrastes, os mais rÉgidos traziam o olhar local, o ponto <strong>de</strong> vista<br />
sempre entrincheirado nos limites das raÉzes nacionais; os mais flexÉveis traduziam o olhar<br />
local na experiÖncia do global, comportamento relativista prÑprio dos que cruzam as<br />
fronteiras da naÅÇo e retornam com a perspectiva renovada pela confrontaÅÇo da diferenÅa.<br />
Havia ainda o estrangeiro, este ser impactado pela sëbita revelaÅÇo <strong>de</strong> um mundo ex-ótico,<br />
alguàm que vive no espanto e na perplexida<strong>de</strong> da constataÅÇo visceral da multiplicida<strong>de</strong> e da<br />
diversida<strong>de</strong> cultural. Com o olhar sempre aberto para o novo, a autora tem a cautela <strong>de</strong> nÇo<br />
nomear, nÇo tomar partido: satisfaz-se com a <strong>de</strong>safiante missÇo <strong>de</strong> dar a conhecer a diferenÅa.<br />
Oferece cada ponto <strong>de</strong> vista sem impor juÉzo <strong>de</strong> valor: bastam-lhe a constataÅÇo dos muitos<br />
sentidos inventados pela cultura, o <strong>de</strong>slocamento do olhar, a <strong>de</strong>snaturalizaÅÇo da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
cada um, o convite para ver o outro em sua rica singularida<strong>de</strong>.<br />
No contexto das relaÅâes entre o Eu e o Outro brasileiros o tom do convite para o<br />
enfrentamento à mais dramático. De um lado, o “normal e o sÇo”, <strong>de</strong> outro, o <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
quÉmico e o doente mental. As narrativas sobre o Eu burguÖs e o Outro-estigmatizado foram<br />
construÉdas a partir <strong>de</strong> quatro pontos <strong>de</strong> vista: o do paciente, o da famÉlia, o do màdico e o do<br />
doente da vida real. Cada um <strong>de</strong>les trazia ä tona uma face do problema: o primeiro<br />
apresentava o drama daqueles que nÇo tÖm forÅas para combater a experiÖncia traumática e<br />
nova da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegrada; o segundo mostrava o drama <strong>de</strong> nÇo mais reconhecer em seu<br />
filho/parente a pessoa que foi, <strong>de</strong> nÇo mais po<strong>de</strong>r sonhar para ele um futuro tÇo promissor; o<br />
terceiro expâe a perspectiva dos que conhecem o drama, sabem como ajudar, mas sentem-se<br />
impotentes diante da resistÖncia do paciente ou da famÉlia; e o quarto oferece o viàs daqueles<br />
211
que sofrem a doenÅa e que estÇo sendo chamados a refletir sobre seus dramas e<br />
<strong>de</strong>sdobramentos. O paciente era representado em sua perplexida<strong>de</strong> diante da falta <strong>de</strong> controle<br />
sobre si; a famÉlia, em seus expedientes <strong>de</strong> negar a doenÅa atà que o trágico se abatesse sobre<br />
todos; o màdico, em seu papel <strong>de</strong> mediador entre o doente, a doenÅa e a famÉlia; e o doente da<br />
vida real, em suas queixas e reivindicaÅâes sobre tratamento, inclusÇo social e visibilida<strong>de</strong>.<br />
Um tratamento amoroso <strong>de</strong> cada realida<strong>de</strong> permitiu ver o problema sob vários êngulos,<br />
novamente sem julgamento. Atà mesmo a negaÅÇo da doenÅa pela famÉlia era apresentada<br />
como uma limitaÅÇo <strong>de</strong> cada personagem: a mÇe fragilizada pelo casamento infeliz, pela falta<br />
<strong>de</strong> amor e pela traiÅÇo do marido, era tragada pela realida<strong>de</strong> do sofrimento maior <strong>de</strong> ver a<br />
filha entregue ä <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica; a outra mÇe, cujo alheamento conveniente da vida<br />
burguesa criava para si e seu filho um horizonte <strong>de</strong> aparÖncia e sonhos <strong>de</strong> perfeiÅÇo, era<br />
atropelada pela feia realida<strong>de</strong> ─ como aceitar que seu prÉncipe estava louco?, como conviver<br />
com o estigma da loucura impedindo o futuro tÇo sonhado para o rapaz?<br />
O cuidado <strong>de</strong> Gloria Perez em expressar os mëltiplos pontos <strong>de</strong> vista sobre a alterida<strong>de</strong><br />
sem julgá-los, apenas apresentando-os como possibilida<strong>de</strong>s singulares e legÉtimas <strong>de</strong> perceber<br />
a diferenÅa, garante äs suas obras autonomia e in<strong>de</strong>pendÖncia em relaÅÇo ao ponto <strong>de</strong> vista<br />
hegemònico que sempre contamina com pretensa superiorida<strong>de</strong> o olhar sobre o Outro. Sem se<br />
valer dos estereÑtipos costumeiros que marcam a alterida<strong>de</strong> como sendo formada por<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s rotuladas apenas e exclusivamente <strong>de</strong> “indiana”, “muÅulmana”, “drogada” ou<br />
“louca”, Gloria Perez constrÑi seus Outros generosamente, conce<strong>de</strong>ndo-lhes alma humana:<br />
sÇo complexos, singulares e contraditÑrios ─ “gente como a gente”, que vive a partir das<br />
lentes <strong>de</strong> sua cultura, do compartilhamento imaginado da comunida<strong>de</strong>. A ausÖncia <strong>de</strong><br />
julgamento, a representaÅÇo dialàtica da vida e a abertura para o Outro falar por si revelam<br />
uma narrativa livre <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s etnocÖntricas ou “orientalistas”, fruto do rigor metodolÑgico<br />
utilizado pela autora na pesquisa para a construÅÇo dos Outros <strong>de</strong> suas tramas (“[...] se a<br />
novela vai retratar um universo, vou atà ele conhecer, sentir, conviver, sem intermediaÅÇo <strong>de</strong><br />
terceiros” 430 ).<br />
Se o fato <strong>de</strong> representá-los em obra <strong>de</strong> ficÅÇo na televisÇo exige <strong>de</strong>la uma con<strong>de</strong>nsaÅÇo<br />
dos vários traÅos encontrados no Outro e uma versÇo mais simplificada da alterida<strong>de</strong> para que<br />
possa ser compreendida pelo pëblico <strong>de</strong> massa, a novelista nÇo se furta a tomar o caminho da<br />
alegoria para falar <strong>de</strong>sta multiplicida<strong>de</strong>. A realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> nÇo ser precisamente tal como à<br />
430 PEREZ, “Escrevendo novelas: a pesquisa”. DisponÉvel em:<br />
, em 21 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2008.<br />
Acessado em 13 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009.<br />
212
apresentada na ficÅÇo, mas, nas telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, as diversas realida<strong>de</strong>s estÇo<br />
presentes, formando um painel dos muitos discursos existentes sobre o diferente. A reduÅÇo<br />
estàtica à o preÅo que paga para botar em cena temas tÇo ricos e novos para o pëblico ─ <strong>de</strong><br />
outra forma nÇo po<strong>de</strong>ria abordá-los em telenovela.<br />
Consciente da dimensÇo popular e comercial <strong>de</strong> sua arte, a novelista sabe que o<br />
suporte televisÇo e a natureza do folhetim nÇo lhe permitem vòos acadÖmicos na abordagem<br />
dos temas que escolhe compartilhar com a audiÖncia. LanÅa mÇo <strong>de</strong> recursos jornalÉsticos nas<br />
pitadas <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> que acrescenta ä sua narrativa ficcional, vale-se <strong>de</strong> temperos menos<br />
verossÉmeis para tornar encantadora a fantasia que conduz o pëblico ao questionamento<br />
travestido <strong>de</strong> entretenimento. A acreana acrescenta ainda forte sabor regional ao combinar com<br />
originalida<strong>de</strong> a errência e a curiosa poàtica da literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l na criaÅÇo <strong>de</strong> histÑrias <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo popular. Conta tambàm com a natureza interativa (nÇo mais aberta) da<br />
telenovela para expressar a emoÅÇo da audiÖncia captada na ausculta da recepÅÇo. Como a<br />
documentarista <strong>de</strong> “Nascidos em Bordàis” Zana Briski, a novelista nÇo <strong>de</strong>sconhece os <strong>de</strong>svios<br />
<strong>de</strong> percurso que sua arte <strong>de</strong>ve tomar para <strong>de</strong>spertar o <strong>de</strong>bate e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanÅa para alàm<br />
do prazer estàtico. Ambas sabem que a visibilida<strong>de</strong> e o consumo sÇo condiÅâes inerentes a<br />
qualquer arte já que a dimensÇo comunicacional do fenòmeno artÉstico inclui as forÅas<br />
econòmicas <strong>de</strong> sua produÅÇo, nelas incluÉdas a difusÇo e o consumo. E nÇo se incomodam<br />
com o <strong>de</strong>sdàm do mo<strong>de</strong>lo autoritário e elitista da arte, que insiste em classificar as artes<br />
mecênicas como mercadoria. Preocupam-se com as “avenidas emancipatÑrias” abertas em<br />
suas obras e com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, atravàs <strong>de</strong>las, fazer o pëblico pensar o cotidiano.<br />
“O Clone” e “Caminho das índias” sÇo exemplos <strong>de</strong> obra capaz <strong>de</strong> fazer a audiÖncia<br />
repensar seu prà-saber e modificá-lo, permitindo assim uma “abertura para o<br />
conhecimento” 431 . Tal resultado sÑ à possÉvel justamente porque a alterida<strong>de</strong> e mesmo a<br />
subjetivida<strong>de</strong> nÇo assumem um ënico e hierzarquizante ponto <strong>de</strong> vista. Ao <strong>de</strong>ixar falar tantos<br />
Outros por eles mesmos e ao proporcionar ao pëblico o exercÉcio <strong>de</strong> ouvir e ver a diferenÅa<br />
sem a prepotÖncia da superiorida<strong>de</strong> do observador, estas narrativas permitem que a audiÖncia<br />
se veja tambàm nos muitos Outros que a princÉpio lhe parecem estranhos. Ou mesmo<br />
<strong>de</strong>sconhecidos. ï aÉ que a autora se aproxima novamente <strong>de</strong> Briski e tambàm do diretor <strong>de</strong><br />
“Paradise Now” Hany Abu-Assad em sua missÇo <strong>de</strong> falar sobre a invisibilida<strong>de</strong> do Outro que<br />
vaga no nÇo-lugar da indiferenÅa social: o drogado, o doente mental, os filhos <strong>de</strong> prostitutas e<br />
os homens-bomba, gente cuja existÖncia à meramente estatÉstica<br />
431 LIMA, 1981, p. 205.<br />
213
Olhar para si pela Ñtica da alterida<strong>de</strong> à o caminho que Gloria Perez recorre para<br />
produzir estranhamento tambàm sobre o Eu. De um lado, a “mostraÅÇo” isenta oferecida pela<br />
autora permite ä audiÖncia que a experiÖncia estàtica opere sem conceitos diretores (como à<br />
prÑprio <strong>de</strong> sua relaÅÇo com a arte), <strong>de</strong>ixando sua aceitaÅÇo a cargo do “estoque pràvio <strong>de</strong><br />
saber trazido pelo receptor” 432 , mediante o acordo estabelecido entre ele e a obra. De outro, a<br />
nÇo-i<strong>de</strong>ntificaÅÇo do pëblico, num primeiro momento, com o que à mostrado a respeito <strong>de</strong>sse<br />
Eu que rejeita o drogado e o doente mental permite que sua representaÅÇo seja acatada como<br />
uma agressÇo. Como diz Luiz Costa Lima a propÑsito do relacionamento entre a experiÖncia<br />
estàtica e o juÉzo estàtico, o acordo do pëblico com a obra “nÇo se realiza porque o receptor<br />
encontra seus valores na obra e os reconhece 433 [grifos do autor]: tal encontro resulta apenas<br />
em fruiÅÇo. “Ao contrário”, continua ele, “a obra, principalmente a da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, sÑ po<strong>de</strong><br />
ser acolhida se o leitor acatar a ‘agressÇo’ que <strong>de</strong>la recebe” 434 e, numa segunda leitura,<br />
encontrar o “modo <strong>de</strong> absorver a agressÇo e usufruir esteticamente seu ‘contestador’” 435 . SÑ<br />
nesse caso o prà-saber do receptor será questionado. Nesse sentido, po<strong>de</strong>-se dizer que as duas<br />
telenovelas aqui estudadas operaram o questionamento, e nÇo apenas a mera fruiÅÇo. Isto se<br />
<strong>de</strong>u porque, ao invàs <strong>de</strong> provocarem as “emoÅâes esperadas” ou confirmar “noÅâes pràvias”, a<br />
experiÖncia estàtica das duas obras permitiram ao espectador (tomando emprestadas as<br />
palavras <strong>de</strong> Costa Lima) “enten<strong>de</strong>r por que algo antes nÇo lhe agradava” e converter em<br />
“prazer estàtico o que antes hostilizaria” 436 .<br />
A engenhosida<strong>de</strong> da autora, no entanto, permitiu que sua narrativa ficcional brincasse<br />
com os opostos, provocando simultaneamente o reconhecimento e a agressÇo, a fruiÅÇo e o<br />
questionamento. Gloria Perez embaralhou personagens saÉdos <strong>de</strong> sua imaginaÅÇo com<br />
anònimos e figuras pëblicas da realida<strong>de</strong>, entrelaÅou histÑrias mirabolantes com campanhas<br />
sociais, cruzou falas fictÉcias com <strong>de</strong>poimentos verÉdicos: na cartilha da autora, fantasia e<br />
realida<strong>de</strong> sÇo territÑrios sem fronteira. Num instante, a novelista traz o factual para <strong>de</strong>ntro da<br />
ficÅÇo; no momento seguinte <strong>de</strong>svenda as ficÅâes que rondam a realida<strong>de</strong>. O jogo permanente<br />
promove a catarse folhetinesca e aposta na verossimilhanÅa para em seguida abandoná-la em<br />
favor da confianÅa conquistada junto ao pëblico <strong>de</strong> que tudo nÇo passa <strong>de</strong> imaginaÅÇo. O<br />
pacto ficcional estabelece o distanciamento que permite a aceitaÅÇo do imaginário criado pela<br />
novelista como uma aventura possÉvel, mesmo que muitas vezes irreconhecÉvel. No conto <strong>de</strong><br />
432 LIMA, 1981, p. 204.<br />
433 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
434 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
435 LIMA, loc. cit..<br />
436 Ibi<strong>de</strong>m, p. 205.<br />
214
fadas da ficÅÇo, a realida<strong>de</strong> ocupa lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, dando visibilida<strong>de</strong> aos dramas cotidianos<br />
e forÅando o enfrentamento daquilo que nÇo se quer reconhecer.<br />
Novamente como Briski, Gloria Perez parece empenhar-se em suas campanhas<br />
sociais com a alma do artista revoltado. Indignada com a indiferenÅa, a invisibilida<strong>de</strong> e a<br />
impunida<strong>de</strong>, valores comuns que sÇo negados a alguns e que comprometem a esperanÅa e a<br />
justiÅa social, a novelista faz ecoar a voz dos oprimidos atravàs <strong>de</strong> sua arte. ï positiva e ativa<br />
a revolta que a move: luta em nome dos que nÇo tem vez apenas dando-lhes uma janela para o<br />
mundo. Faz a telenovela transcen<strong>de</strong>r os limites da mercadoria para provocar o <strong>de</strong>bate que o<br />
capitalismo escon<strong>de</strong> sob o espesso tapete do espetáculo do progresso.<br />
ï nesse contexto que a autora semeia o germe da mudanÅa. Se à fácil mobilizar<br />
bilhâes <strong>de</strong> brasileiros na escolha do casal perfeito para encerrar suas obras <strong>de</strong> ficÅÇo, por que<br />
nÇo aproveitar a atenÅÇo <strong>de</strong> tantos espectadores e trazer ä tona discussâes que po<strong>de</strong>m mudar o<br />
cotidiano das pessoas? Se há tantos que manifestam repëdio ä atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />
personagens e se empenham em interferir no mundo da ficÅÇo, como nÇo tocá-los para que se<br />
envolvam nos <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> gente <strong>de</strong> carne e osso e nas <strong>de</strong>cisâes que po<strong>de</strong>m mudar a vida real?<br />
Tais sÇo as questâes que povoam as preocupaÅâes da novelista contratada para apenas distrair<br />
e entreter o povo. Sob o fascÉnio que envolve suas telenovelas encontra-se o compromisso<br />
sincero <strong>de</strong> prestar serviÅo ä populaÅÇo.<br />
Resultado <strong>de</strong>sse empenho pessoal, a ficÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez promove mudanÅas<br />
sensÉveis no cotidiano <strong>de</strong> sua audiÖncia e o faz sem o ranÅo da doutrinaÅÇo e do didatismo.<br />
Suas armas sÇo o romance, o encantamento, a comàdia e ─ por que nÇo? ─ a fantasia e o<br />
entretenimento. Atravàs dos recursos da ficÅÇo foi possÉvel construir uma ponte <strong>de</strong><br />
compreensÇo intercultural e um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> nossos Outros. A curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertada<br />
pelas diferenÅas respeitosamente apresentadas sobre o muÅulmano e o indiano criou uma forte<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> informaÅÇo sobre o Oriente. O olhar amoroso lanÅado sobre drogados e doentes<br />
mentais dissipou estigmas equivocados, estimulou a busca por tratamento e conquistou a<br />
solidarieda<strong>de</strong> do pëblico. Ambas as campanhas reorientaram os valores e práticas da<br />
audiÖncia com relaÅÇo aos Outros-estrangeiros e aos Outros-estigmatizados, estabelecendo<br />
novos cÑdigos para uma comunicaÅÇo possÉvel e encurtando distências antes intransponÉveis.<br />
Se as campanhas sociais empreendidas por Gloria Perez constituem hoje o diferencial<br />
<strong>de</strong> suas telenovelas, igualmente po<strong>de</strong>-se dizer que sua escrita à marcada pela singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sua vivÖncia feminina. No universo ficcional televisivo hoje predominantemente atravessado<br />
pela Ñtica masculina, as telenovelas da autora se <strong>de</strong>stacam pelo <strong>de</strong>slocamento da perspectiva.<br />
Ao captar com agu<strong>de</strong>za singular os sinais da realida<strong>de</strong> e transformá-los em ficÅÇo, a novelista<br />
215
tem o cuidado <strong>de</strong> nÇo repetir em suas narrativas a prática autoritária <strong>de</strong> falar em nome do<br />
Outro comumente usada contra a mulher pelo discurso hegemònico patriarcal. Assim, tendo<br />
sempre experimentado, enquanto mulher, o preconceito como horizonte, sua construÅÇo<br />
ficcional estrutura-se, em sÉntese, na oferta <strong>de</strong> mëltiplos pontos <strong>de</strong> vistas, na insistÖncia do<br />
contraponto como forma <strong>de</strong> confrontar as diferenÅas sem julgamento, e na apresentaÅÇo <strong>de</strong><br />
personagens femininas como paradigma assertivo sobre o papel da mulher hoje.<br />
As muitas dimensâes reveladas na análise <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
sugerem a riqueza e a originalida<strong>de</strong> da obra <strong>de</strong> Gloria Perez. Mais que isso, expressam o<br />
fascÉnio pelo novo, a preferÖncia pelo diferente e o compromisso com as questâes sociais.<br />
Pòr em cena a alterida<strong>de</strong> num momento em que as culturas se ocupam <strong>de</strong> reinventar suas<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s para marcar terreno na retÑrica universalizante da globalizaÅÇo foi apenas mais um<br />
dos <strong>de</strong>safios abraÅados com ousadia pela novelista. Apresentar o muÅulmano em seu universo<br />
familiar, em sua fragilida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong> Deus, na alegria das festas e na sensualida<strong>de</strong> dos corpos<br />
danÅantes ─ e fazÖ-lo em pleno day after dos atentados terroristas que abalaram o mundo ─ foi<br />
certamente mais um ato <strong>de</strong> coragem <strong>de</strong> quem constrÑi a fantasia com olhos postos na realida<strong>de</strong>.<br />
Oferecer o indiano em seus <strong>de</strong>stinos prà-<strong>de</strong>terminados, na obediÖncia a tantos <strong>de</strong>uses, no<br />
respeito äs tradiÅâes, na con<strong>de</strong>naÅÇo pràvia das castas, no colorido dos festivais, na<br />
musicalida<strong>de</strong> do bangra e na seduÅÇo das sedas ─ mostrá-lo, enfim, tÇo preso ao passado<br />
justamente no momento em que a índia <strong>de</strong>sponta como potÖncia do futuro ─ foi sobretudo um<br />
insight <strong>de</strong> aguda sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem tece histÑrias entrelaÅadas pelos caprichos do tempo.<br />
Por fim, voltar o foco para o brasileiro em sua hipocrisia burguesa, em sua indiferenÅa para com<br />
os <strong>de</strong>svalidos, na <strong>de</strong>sinformaÅÇo que estigmatiza, nas transgressâes oficializadas das elites, na<br />
exacerbaÅÇo da estàtica e na malemolÖncia da gafieira ─ e apresentá-lo tÇo moral e socialmente<br />
questionável justo quando a prepotÖncia o fazia olhar com superiorida<strong>de</strong> para os muÅulmanos e<br />
indianos da trama ─ foi o golpe <strong>de</strong> mestre certeiro <strong>de</strong> quem reconhece no espelho o melhor<br />
recurso dramatërgico para mostrar a vida sempre em contraponto.<br />
Na ponte aàrea entre o Brasil e o Marrocos e entre o Brasil e a índia, os <strong>de</strong>svios<br />
narrativos <strong>de</strong> Gloria Perez ofereceram mëltiplas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reconhecimento e<br />
questionamento da diferenÅa. Na representaÅÇo ficcional do Eu e do Outro, “O Clone” e<br />
“Caminho das índias” tornaram o que à distante e <strong>de</strong>sconhecido estranhamente familiar ─ tais<br />
narrativas da diferenÅa provaram ser, acima <strong>de</strong> tudo, a menor distência entre dois mundos.<br />
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ANEXO A - <strong>ENTRE</strong>VISTA COM GLORIA PEREZ<br />
Entrevista realizada em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009<br />
“O Clone” estreou praticamente junto com os atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> setembro. Como foi<br />
falar do diferente na ficéÜo tendo a realida<strong>de</strong> do noticiçrio no encaléo da novela?<br />
No comeÅo da pesquisa da novela, os muÅulmanos mostraram-se assustados, temendo<br />
que a novela tambàm fosse ser preconceituosa, que fosse reforÅar o preconceito com o qual<br />
sÇo vistos. No final da novela, eles ficaram muito agra<strong>de</strong>cidos porque, com o 11 <strong>de</strong> setembro,<br />
eles passaram a ser vistos como terroristas, como pessoas que podiam atirar uma bomba em<br />
qualquer lugar. E como eles tÖm um visual (no modo <strong>de</strong> se vestir) diferente em relaÅÇo ao<br />
nosso, uma estàtica diferente (tem a barba, a mulher <strong>de</strong> lenÅo), enfim, eles eram facilmente<br />
i<strong>de</strong>ntificáveis. Com os atentados, eles sentiam a reaÅÇo assustada das pessoas e a rejeiÅÇo em<br />
relaÅÇo ä figura <strong>de</strong>les. Isso magoava, mexia muito com eles. Depois da novela eles ficaram<br />
muito agra<strong>de</strong>cidos. Isso à resultado <strong>de</strong> um cuidado que tenho ao falar do diferente. Eu sempre<br />
fiz questÇo <strong>de</strong> mostrar para os atores que a gente nÇo estava querendo mostrar que o nosso<br />
ponto <strong>de</strong> vista era superior. Fazia isso mostrando aspectos que eram engraÅados na cultura<br />
<strong>de</strong>les e tambàm da nossa. Levava pessoas para conversar com os atores. Uma vez levei um<br />
rapaz que tinha chegado ao Brasil havia 20 dias e foi muito engraÅado porque perguntei a ele<br />
como à que ele via o paÉs, o que o assustava, buscando no olhar <strong>de</strong>le as mesmas reaÅâes que<br />
tÉnhamos sobre a cultura <strong>de</strong>le, buscando o contraponto. E aÉ ele disse uma coisa muito<br />
interessante: o que mais o impressionou foi que se ele mexesse com uma mulher que passasse,<br />
fosse grosseiro com ela, ele era preso na terra <strong>de</strong>le, e que aqui os homens chamavam a mulher<br />
<strong>de</strong> cachorra e ela ficava tÇo feliz que atà danÅavam se insinuando (porque tinha na àpoca um<br />
rap que falava cachorra, tchutchuca). Ele ficava muito impressionado como à que se podia<br />
chamar uma mulher <strong>de</strong> cachorra e como à que ela reagia <strong>de</strong>ssa maneira, alegre, fazendo<br />
charme. Isso permitiu que os atores comeÅassem a sentir como eles tambàm eram estranhos<br />
do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> outra cultura.<br />
O que eu busquei, tanto no “Clone” como em “Caminho das índias”, foi mostrar a<br />
diversida<strong>de</strong> do mundo. ï isso que me encanta: o fato <strong>de</strong> existirem povos que enten<strong>de</strong>m a vida<br />
<strong>de</strong> maneira singular, buscam uma forma <strong>de</strong> viver que à diferente e legÉtima. E essa noÅÇo <strong>de</strong><br />
que isso nÇo à pior nem melhor, à apenas diferente, à muito difÉcil <strong>de</strong> as pessoas assimilarem.<br />
Nestas duas novelas, o projeto era exatamente esse: fazer com que a cultura diferente<br />
funcionasse como um espelho pra refletir a nossa cultura e passar a noÅÇo <strong>de</strong> que o nosso<br />
umbigo nÇo à mesmo a janela mais ampla para observar o mundo; à sÑ mais uma janela, mas<br />
existem muitas outras. SÑ que, no “Clone”, a cultura diferente <strong>de</strong> certa forma estava em<br />
segundo plano e no “Caminho das índias” ela passou para o primeiro plano, ela passou a ser<br />
parte da histÑria central. No “Clone” era a histÑria da clonagem, era a histÑria <strong>de</strong> um amor<br />
contrariado por questâes culturais tambàm. Mas eu acho que a cultura apareceu menos do que<br />
apareceu na índia. Na construÅÇo <strong>de</strong> “Caminho”, a histÑria da índia estava tÇo interligada,<br />
existiam tantos personagens que se interligavam, que <strong>de</strong>u para fazer esse jogo <strong>de</strong> espelho <strong>de</strong><br />
uma maneira mais profunda. A novela mostrou muito os personagens indianos na índia, com<br />
tramas que se passavam lá na terra <strong>de</strong>les.<br />
A idåia do espelho era vista nas cenas dos personagens que iam e vinham, como a<br />
Camila.<br />
Mas tambàm havia cenas lá e cá que faziam contraponto uma com a outra: a maioria<br />
das personagens tinha um correspon<strong>de</strong>nte nas duas culturas. E aÉ quando fazia uma cena<br />
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(comum na nossa cultura) em que o mais velho era humilhado, era posto <strong>de</strong> lado como<br />
alguàm que já passou, nÇo tem mais nada a dizer, cortava para uma cena em que o idoso <strong>de</strong> lá<br />
era reverenciado, mesmo que fosse numa cena <strong>de</strong> muito humor, nÇo importa. Assim, a<br />
comparaÅÇo passava <strong>de</strong> uma forma subliminar. Nem sempre à preciso dizer na cena<br />
(didaticamente). Tem uma cena em “Caminho das índias” que à aquela em que o Raj rompe<br />
com a Duda porque a famÉlia nÇo aceita e ela reage como uma mulher da nossa cultura. Para<br />
ela aquilo à uma <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> malandro. Porque nÇo à possÉvel: o que a famÉlia <strong>de</strong>le tem a ver<br />
com isso, o que à essa subordinaÅÇo? Nem ela nem nenhuma das amigas <strong>de</strong>la engole esta<br />
histÑria e, no entanto, ele está sofrendo, está falando com a máxima sincerida<strong>de</strong>. A cena<br />
mostra o valor da famÉlia, como ela à vista. Claro que a Duda tambàm dá valor ä famÉlia <strong>de</strong>la<br />
(a famÉlia aqui tambàm tem um valor), mas ela tem a sua vida <strong>de</strong>stacada em relaÅÇo ä famÉlia.<br />
A privacida<strong>de</strong> à um valor muito forte para nÑs e para eles nÇo. Eu conversei pela internet com<br />
muitas mulheres brasileiras que foram morar na índia (tem muitas <strong>de</strong>las casadas com<br />
indianos, o casal na maioria das vezes se conhece pela internet). Elas casam e quando chegam<br />
lá à um susto, claro. ï um mundo completamente diferente. E todas elas contam histÑrias<br />
parecidas <strong>de</strong> que tinha um dia em que queriam ficar sozinhas no quarto, sem ver ninguàm, e a<br />
sogra praticamente chorava: “o que nÑs fizemos com vocÖ para vocÖ se sentir assim, a ponto<br />
<strong>de</strong> nÇo querer ficar com ninguàm?” As duas (sogra e nora) estÇo querendo se agradar<br />
mutuamente, mas, na verda<strong>de</strong>, acabam produzindo ruÉdo na comunicaÅÇo entre elas. Porque a<br />
forma <strong>de</strong> ver as coisas à diferente. Isso foi uma tentativa minha <strong>de</strong> mostrar essa diferenÅa,<br />
porque à muito difÉcil as pessoas aceitarem o outro diferente.<br />
Tenho trabalhado sempre nessa linha, tanto com personagens que sÇo diferentes como<br />
atravàs <strong>de</strong> culturas que sÇo diferentes. Em “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo” era o cigano. Eles tambàm<br />
ficaram muito contentes porque no caso <strong>de</strong>les eu tive um resultado muito positivo. Eles<br />
sempre foram vistos como ladrâes <strong>de</strong> crianÅa, ladrâes <strong>de</strong> qualquer coisa, <strong>de</strong> tal forma que o<br />
jovem cigano procurava sempre escon<strong>de</strong>r sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. E o que foi bonito no final foi que<br />
vários ciganos me escreveram dizendo que, por causa da novela, muito jovens passaram a ter<br />
orgulho da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cigana. Atà hoje eu tenho contato com eles. A cultura <strong>de</strong>les passou a ser<br />
valorizada: antes, as pessoas se afastavam quando sentiam que um cigano se aproximava,<br />
<strong>de</strong>pois, durante a novela, todos se chegavam a eles para conversar, queriam saber, como à que<br />
à, à assim mesmo que as coisas acontecem? E o cigano comeÅou a ter orgulho porque passou<br />
a ser visto <strong>de</strong> forma diferente.<br />
Existe uma expectativa muito gran<strong>de</strong> em relação à telenovela <strong>de</strong> que ela fale da<br />
realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que não traia a verossimilhança, negando à telenovela sua essência<br />
folhetinesca....<br />
Mas a novela à um folhetim! O tempo da ficÅÇo à outro. No romance, o autor dá a<br />
volta ao mundo em uma linha. Imagina se vocÖ vai levar dois dias para chegar ä índia! As<br />
prÑprias vidas retratadas no folhetim sÇo fracionadas porque na verda<strong>de</strong> a ficÅÇo faz um<br />
recorte na vida <strong>de</strong> uma pessoa. A ficÅÇo vai se restringir aos momentos mais interessantes,<br />
nÇo pega o cafà-da-manhÇ... SenÇo a coisa nÇo anda, vira um reality show. Existe essa<br />
cobranÅa sim e eu acho que ela revela a importência que a novela tem. Num paÉs em que vocÖ<br />
tem uma maioria analfabeta, que a maioria dos alfabetizados ganha muito pouco, o livro à<br />
caro, o teatro à caro, o cinema à caro. Agora já teve uma abertura maior por outro lado, mas a<br />
televisÇo tem sido a diversÇo máxima, a janela por on<strong>de</strong> estas pessoas po<strong>de</strong>m enxergar o<br />
mundo. Muita gente diz pra mim assim: “Ah, adorei ‘Caminho das índias’, adorei ‘O Clone’<br />
porque a gente viajou; eu que nÇo posso ir pra estes lugares, agora sei como à lá, aprendi com<br />
a novela”. De um lado, fazer alguma coisa que tenha esse alcance compensa a gente que à<br />
autor <strong>de</strong> telenovela, mas por outro lado, à muito triste porque vocÖ joga para uma obra <strong>de</strong><br />
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ficÅÇo que tem a funÅÇo maior <strong>de</strong> divertir as obrigaÅâes que sÇo <strong>de</strong> outras instituiÅâes. Quem<br />
tem que educar as pessoas à a escola, nÇo à a telenovela. Quem tem que fazer a reportagem e<br />
se ater ao real à o jornal, nÇo à o folhetim. E muitas vezes a gente vÖ que entre nÑs (porque o<br />
americano nÇo tem essa <strong>de</strong>fesa, esse pà atrás com a imaginaÅÇo, tanto que eles tÖm<br />
programas, sàries as mais variadas, que trazem fantasmas cobrando situaÅâes que foram<br />
<strong>de</strong>ixadas pen<strong>de</strong>ntes...), a gente vÖ que aqui no Brasil já tem um pà atrás com a imaginaÅÇo.<br />
Mas eu vejo que o jornalismo troca com a gente: muitas vezes ele faz ficÅÇo e fica cobrando<br />
da gente um realismo quando na verda<strong>de</strong> o folhetim nÇo tem que ser realista, ele tem que ser<br />
bom, tem que encantar as pessoas, fazer sonhar, enfim. Eu sinto essa cobranÅa sim. Mas isso<br />
tudo revela a importência da novela: atravàs <strong>de</strong>la vocÖ se comunica com qualquer pessoa<br />
<strong>de</strong>ste paÉs, e todas as classes se comunicam entre si. A novela cria um assunto comum, vocÖ<br />
po<strong>de</strong> chegar em qualquer lugar do paÉs, atà numa tribo do Acre, que eles assistiam “O Clone”.<br />
Atravàs do assunto novela, vocÖ po<strong>de</strong> iniciar uma conversa com alguàm <strong>de</strong> qualquer classe <strong>de</strong><br />
qualquer lugar do paÉs. Isso à <strong>de</strong> uma importência extraordinária num paÉs <strong>de</strong> diferenÅas tÇo<br />
gran<strong>de</strong>s. Essa importência transcen<strong>de</strong> o que era para a telenovela ser: uma diversÇo. Logo que<br />
foi criado nos jornais, o folhetim tambàm unia as pessoas porque falava ao emocional <strong>de</strong>las.<br />
NÇo tinha o alcance nacional porque as pessoas nÇo sabiam ler. ès vezes, essa cobranÅa e<br />
essas crÉticas a respeito do realismo vÖm vestidas <strong>de</strong> uma linguagem acadÖmica que sÇo <strong>de</strong><br />
uma ignorência profunda. Se vocÖ for estudar Literatura, vai ver que à caracterÉstica do<br />
folhetim que o sensacional esteja ä frente da coerÖncia. Como à que vocÖ vai contar uma<br />
histÑria em 200 capÉtulos, seja no jornal, no folhetim do sàculo XIX, seja no folhetim<br />
eletrònico como o que a gente faz hoje para a televisÇo? Tem que ser tipo Rocambole,<br />
fazendo com que ela vá pelo caminho mais longo. Enquanto que no filme o limite <strong>de</strong> tempo<br />
exige que se con<strong>de</strong>nse a histÑria (a arte do cinema ou a arte da minissàrie à con<strong>de</strong>nsar os<br />
acontecimentos), no folhetim a arte à chegar aos acontecimentos pelo caminho mais longo,<br />
sem que seja chato, sem <strong>de</strong>ixar o pëblico perceber que à longo, sem per<strong>de</strong>r o interesse do<br />
pëblico, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> apresentar coisas novas. O que se queria com o folhetim no sàculo<br />
XIX? Ven<strong>de</strong>r jornal no dia seguinte (o pëblico comprava para saber como a histÑria<br />
continuava). EntÇo os autores daquela àpoca tinham <strong>de</strong> se valer do sensacional. Da mesma<br />
forma a gente: por que à que o sensacional vem ä frente da coerÖncia? Todo o capÉtulo à feito<br />
para que vocÖ nÇo <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> assistir o capÉtulo seguinte. Atà Balzac fez isso. Se vocÖ pegar A<br />
mulher <strong>de</strong> trinta, que à um romance lindo, <strong>de</strong> repente aparece uma coisa completamente fora<br />
do contexto do livro: a mocinha à sequestrada por uns piratas, o pai à sequestrado e encontra a<br />
filha como a rainha dos piratas! NÇo à que o autor pirou, ele nÇo tomou uma bola. Por que ele<br />
fez isso? Por que à maluco? NÇo. Ele sabe que estava sendo pago para ven<strong>de</strong>r o jornal do dia<br />
seguinte. Essa era a arte ali. VocÖ faz coisas bonitas, mas o que te norteia à que vocÖ tem que<br />
ven<strong>de</strong>r o capÉtulo do dia seguinte. Por isso à importante o sensacional. E reclamar disso à<br />
igual a criticar o soneto porque tem rima! ï seu elemento constitutivo, faz parte <strong>de</strong> sua<br />
estrutura.<br />
Sobre o seu método <strong>de</strong> trabalho: dizem que você escreve <strong>de</strong> pé e que fecha o capítulo<br />
sem saber o que vai acontecer no dia seguinte...<br />
sentido <strong>de</strong> urgência: é uma tensão, a criação exige uma tensão.<br />
O meu màtodo à esse! Eu nÇo gosto <strong>de</strong> ter um norte. Nem quando vou escrever o<br />
capÉtulo, faÅo escaleta. Eu nÇo sei o que vai acontecer no capÉtulo quando eu comeÅo a<br />
escrever. Assim como eu o termino sem saber como vai ser o prÑximo. Eu vou escrevendo e<br />
ele vai se criando ä medida que vou escrevendo. Isso à o meu estilo, à a minha maneira. Por<br />
isso escrevo sozinha. NÇo haveria como ter colaborador trabalhando <strong>de</strong>ste jeito. Para ter<br />
colaborador, eu teria que articular o capÉtulo antes. Para mim, para o meu estilo <strong>de</strong> fazer, esta<br />
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articulaÅÇo pràvia empobrece. Na medida em que as cenas vÇo se <strong>de</strong>senrolando, eu vou<br />
sentindo que emoÅÇo se faz necessária ali. Mas antes, no papel frio (vamos fazer isso ou<br />
aquilo), soaria como uma receita pra mim. Para outras pessoas, nÇo. Tem gente que faz<br />
novelas maravilhosas trabalhando do outro jeito. Mas eu sÑ sei fazer assim. Acho que <strong>de</strong>ste<br />
modo eu tenho mais liberda<strong>de</strong> criativa. Quanto a escrever <strong>de</strong> pà, à uma imposiÅÇo da urgÖncia<br />
da escrita porque a criaÅÇo exige uma tensÇo.<br />
Janete Clair também escrevia sozinha e explorava a imaginação. Como foi a experiência<br />
<strong>de</strong> trabalhar ao lado <strong>de</strong>la?<br />
Janete Clair foi uma das pessoas que mais sofreu com as crÉticas ä telenovela. A ënica<br />
pessoa que reconheceu a Janete enquanto ela estava viva foi o Nelson Rodrigues. Ela virou<br />
cult <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morta. Hoje à idolatrada, mas quando era viva nÇo era assim. Eu sofro isso<br />
tambàm, talvez por ter sido discÉpula <strong>de</strong>la. Toda vez que vai comeÅar uma novela minha, já<br />
vem a etiqueta: à uma maluquice, um <strong>de</strong>lÉrio... Isso à muito interessante <strong>de</strong> se olhar <strong>de</strong>pois.<br />
Por exemplo, quando eu fiz a novela dos ciganos, era sobre a internet, e era a primeira vez que<br />
se falava <strong>de</strong> internet no Brasil. Fui chamada <strong>de</strong> louca, <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirante, porque uma pessoa nÇo<br />
falava com outra no computador. E aÉ eu ficava pensando o seguinte: como à que po<strong>de</strong> o<br />
jornalismo nÇo saber que isso existe e que a internet vai mudar o mundo? A página <strong>de</strong><br />
apresentaÅÇo <strong>de</strong> “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo” que foi para a imprensa à a <strong>de</strong>scriÅÇo exata do que à a<br />
internet hoje e <strong>de</strong> como ela transformou o mundo. Como à que o preconceito contra a novela<br />
po<strong>de</strong> ser tÇo gran<strong>de</strong> a ponto <strong>de</strong> cegar a pessoa, impedindo-a <strong>de</strong> ver que a outra está dizendo<br />
uma coisa muito coerente.<br />
A tecnologia e o novo fazem parte do seu interesse pessoal e te colocam à frente do seu<br />
tempo, não?<br />
Sou do tempo da BBS. Mas se eu fosse jornalista, eu ia investigar se o que aquela<br />
novela está dizendo à verda<strong>de</strong> antes <strong>de</strong> me pronunciar, <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar como <strong>de</strong>lÉrio. Depois vocÖ<br />
ri, vÖ que aqueles comentários sÇo <strong>de</strong> uma ignorência muito gran<strong>de</strong>. Na verda<strong>de</strong> à um<br />
preconceito e, quando à a mulher que diz, o preconceito à ainda maior. A Janete falava para<br />
mim que mulher nÇo po<strong>de</strong>. (A Janete e a Ivani Ribeiro eram as duas escritoras da àpoca em<br />
que eu comecei e elas nunca davam problema, nunca atrasaram novela, sempre acabaram suas<br />
novelas.) Se a mulher tiver uma crise <strong>de</strong> imaginaÅÇo, disser “ai tò <strong>de</strong>primida” dizem logo que<br />
à falta <strong>de</strong> homem e escalam um para assumir seu posto. ï verda<strong>de</strong>.<br />
Nas suas novelas as mulheres são muito po<strong>de</strong>rosas. Mesmo a Melissa que era uma fútil...<br />
Você acha que isso é resultado <strong>de</strong> um texto escrito por mulher?<br />
A Melissa tinha uma esperteza <strong>de</strong> mulher. NÇo sei se à porque à texto <strong>de</strong> mulher. Já<br />
pensei muito sobre isso, mas reconheÅo que a pintura mais bonita <strong>de</strong> mulher à Madame<br />
Bovary, que foi escrita por um homem. AÉ eu nÇo sei. O AlmodÑvar, por exemplo: pouca<br />
gente fala <strong>de</strong> mulher como ele, e ele à homem. Mas à preciso nÇo ser machista.<br />
Minissérie ou novela?<br />
Todo mundo gosta mais <strong>de</strong> fazer minissàrie. ï mais curto, tem-se controle da<br />
narrativa, po<strong>de</strong>-se burilar mais o texto. A novela sÇo 32 páginas por dia, à um trabalho braÅal.<br />
ï Ñbvio que nÇo à um trabalho cuidado, que tem o apuro que tem uma minissàrie. SÇo artes<br />
tÇo diferentes, nÇo dá pra comparar. Aquilo que à atraente numa novela – a coisa do<br />
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ocambole – nÇo entra necessariamente numa minissàrie. O AlmodÑvar, por exemplo, tem um<br />
estilo muito interessante porque ele pega todo esse <strong>de</strong>scaramento do folhetim e ele consegue<br />
misturar <strong>de</strong> um jeito que passa um retrato tÇo humano das pessoas <strong>de</strong> quem ele fala. Mas se<br />
vocÖ olhar seus filmes, verá que ele usa todas as liberda<strong>de</strong>s possÉveis, as maiores<br />
inverossimilhanÅas estÇo ali. Ele fez disso um estilo. VocÖ vÖ o “Volver”, que à lindo: a filha<br />
mata o marido da mÇe e as duas saem arrastando o cadáver do marido pela rua, botam o<br />
homem numa gela<strong>de</strong>ira que vocÖ nÇo viu ela <strong>de</strong>smontar... Se fosse aqui, iam dizer que elas<br />
nÇo tÖm forÅa pra levantar o homem, iam questionar que nÇo tiraram nem as gra<strong>de</strong>s da<br />
gela<strong>de</strong>ira, nÇo dobraram o homem, como à que ele ficou lá <strong>de</strong>ntro. Todos sÇo<br />
questionamentos idiotas porque o filme à lindo. A cena à bárbara, o que interessa como à que<br />
elas levaram o cara para lá, como tiveram essa idàia e <strong>de</strong>ixaram ele lá? Ele usa essa liberda<strong>de</strong>.<br />
Acho que aqui se tem muito patrulhamento contra a imaginaÅÇo.<br />
Mais na telenovela do que no cinema?<br />
O cinema nÇo ocupou no Brasil o lugar que a telenovela ocupou. VocÖ vÖ: Hollywood<br />
fez um retrato da socieda<strong>de</strong> americana e ven<strong>de</strong>u o sonho americano para o mundo; ao passo<br />
que aqui o cinema ficou buscando o filme genial – isso está mudando agora. Cada filme tinha<br />
ser mais genial do que o outro, e aÉ nÇo se fez uma indëstria, eram filmes incompreensÉveis,<br />
nÇo se criou plateia. Se um historiador daqui a cem anos quisesse ter uma idàia do que era a<br />
vida brasileira, quais eram os costumes da dàcada <strong>de</strong> 70, 80, ele teria que recorrer ä<br />
telenovela. O retrato da vida brasileira está na telenovela. Em “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, por<br />
exemplo, eu recebi carta <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento do INCOR porque a novela tinha impulsionado o<br />
nëmero <strong>de</strong> doadores, aumentando o nëmero <strong>de</strong> transplantes <strong>de</strong> coraÅÇo. CrianÅas<br />
<strong>de</strong>saparecidas, sÑ a novela achou mais <strong>de</strong> cem. As novelas sÇo capazes <strong>de</strong> criar esse serviÅo<br />
social, que na verda<strong>de</strong> nÇo à da competÖncia <strong>de</strong>la, nÇo à a funÅÇo <strong>de</strong>la.<br />
A crítica sempre insistiu na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a novela era o ópio do povo quando <strong>de</strong>veria ser<br />
usada para educar o povo. Como você vê o papel da novela como obra popular?<br />
A idàia <strong>de</strong> que telenovela à mero entretenimento, rasa <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, à uma<br />
caracterÉstica brasileira. O que à popular sempre foi visto como menor. E isso nos atravancou<br />
muito. NÇo possibilitou que o cinema virasse logo uma indëstria: tivemos um cinema logo no<br />
comeÅo que era Ñtimo e ai <strong>de</strong> repente, entra aquela fase <strong>de</strong> filmes geniais (que <strong>de</strong>veria haver,<br />
sim, mas tambàm dar lugar ao filme popular). Mas aqui o popular sempre sofreu muita<br />
restriÅÇo. E eu acho isso muito antipático: uma pessoa culta, um acadÖmico, ele po<strong>de</strong> ficar<br />
cansado do seu livro, do seu meio acadÖmico, se meter no cinema e rir muito. Isso à<br />
consi<strong>de</strong>rado normal. Mas aqui o povo nÇo po<strong>de</strong> apenas se distrair, ele tem que ser educado o<br />
tempo todo. Isso à tÇo pernÑstico. Tem-se que educar o povo (educar como?), ensiná-lo a ver<br />
que ele à oprimido. Foi assim que a novela foi chamada <strong>de</strong> o Ñpio do povo, o circo. Mas a<br />
gente nÇo vive sem isso, sem esse escape para a fantasia. O fato <strong>de</strong> a telenovela ter tanto<br />
sucesso irrita a aca<strong>de</strong>mia. Eles querem que ela cubra todas as outras artes, o que à impossÉvel.<br />
Uma telenovela à apenas um folhetim. Se ela está fazendo o papel do Estado à porque algum<br />
problema há neste paÉs. Se ela está fazendo o papel que as instituiÅâes <strong>de</strong>viam fazer, se ela<br />
está dando respostas que cabiam ao Estado e prestando os serviÅos que as instituiÅâes <strong>de</strong>viam<br />
fazer, algo está mal no paÉs. Vamos questionar o paÉs e nÇo a telenovela. Ela já está fazendo<br />
alàm da conta.<br />
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Vocá disse certa vez que se a novela consegue a atenéÜo <strong>de</strong> tanta gente ─ o que jç å muito<br />
─, po<strong>de</strong>-se aproveitar essa popularida<strong>de</strong>, nÜo para educar o povo, mas para promover<br />
certas idåias...<br />
Nunca tive na cabeÅa essa idàia <strong>de</strong> educar quando coloco minhas campanhas na<br />
novela. Essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> colocar campanha na novela foi minha, numa mistura <strong>de</strong> jornalismo com<br />
a realida<strong>de</strong>. Fui eu que criei essa confluÖncia <strong>de</strong>ntro da telenovela. Nunca com o sentido <strong>de</strong><br />
educar, mas sim com o sentido <strong>de</strong> abrir espaÅo para as pessoas que nÇo tivessem voz, nÇo<br />
tivessem essa janela para expor seus dramas. Queria ouvir o esquizofrÖnico, os <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
quÉmicos, nÇo o que a polÉcia achava <strong>de</strong>les, o que os psiquiatras achavam <strong>de</strong>les e sim como<br />
eles viam a sua condiÅÇo. Isso à que eu acho importante. A mÉdia sempre ouve o que a polÉcia<br />
e os psiquiatras pensam <strong>de</strong>les e jamais se ocupa <strong>de</strong> saber como eles prÑprios pensam a sua<br />
condiÅÇo. Acho terrÉvel essa idàia <strong>de</strong> tentar educar. Minhas campanhas sÇo diferentes porque<br />
estÇo <strong>de</strong>ntro da histÑria. A maneira <strong>de</strong> fazer essa campanha muda tudo. Ela nÇo está solta. Em<br />
“Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, era uma mistura <strong>de</strong> ficÅÇo com realida<strong>de</strong>, nÇo era merchandising porque<br />
essa palavra sugere que se está fazendo algo a parte <strong>de</strong> seu sentimento. Eu misturei jornalismo<br />
com realida<strong>de</strong>, agora, <strong>de</strong>ram a isso o nome <strong>de</strong> merchandising social e eu tambàm nÇo acho<br />
esse o melhor nome. Em “Explo<strong>de</strong>”, era a campanha das crianÅas <strong>de</strong>saparecidas, mas a<br />
personagem perdia o filho e aÉ ela se envolvia com o grupo que existe na realida<strong>de</strong>.<br />
A novela brasileira à a crònica do Brasil, mas a minha contribuiÅÇo à para alàm disso:<br />
a primeira que eu botei no ar minhas campanhas foi em “Carmen”, exibida na TV Manchete,<br />
em que tratava da AIDS como uma forma <strong>de</strong> lutar contra o preconceito e o porta-voz <strong>de</strong>ssa<br />
campanha era o Betinho. Era uma dona <strong>de</strong> casa que pegava AIDS, os vizinhos ficavam com<br />
medo <strong>de</strong>la, como na àpoca acontecia, e aÉ ela, <strong>de</strong>sesperada e tendo ouvido falar do Betinho,<br />
vai procurar por ele e ele vai atà os vizinhos explicando que nÇo era assim tÇo perigoso. O<br />
Betinho era um personagem real e muito popular naquela àpoca, e suas intervenÅâes na trama<br />
nÇo eram <strong>de</strong> modo algum didáticas. Como todo mundo conhecia o Betinho, que era o irmÇo<br />
do Henfil, era do samba, já tinha tido isso no papo dos vizinhos. E a dona Rosimar ficava lá<br />
chorando esperando que as pessoas se convencessem <strong>de</strong> que ela nÇo era um perigo ambulante.<br />
ï essa a coisa do real: pegar pessoas reais, como em “Barriga <strong>de</strong> Aluguel”. Quando explo<strong>de</strong> o<br />
escêndalo que a mÇe <strong>de</strong> aluguel quer ficar com a crianÅa, a histÑria acaba saindo no jornal da<br />
novela e tinha uma personagem que era jornalista e que comeÅa a fazer reportagens<br />
entrevistando um màdico real, a dona Zica da Mangueira, o Eduardo Mascarenhas, gente no<br />
trem da Central... Anònimos misturados com personalida<strong>de</strong>s foram ouvidos. Nada a ver com<br />
os testemunhos em final <strong>de</strong> capÉtulo, que fica totalmente <strong>de</strong>scolado da histÑria. Estes<br />
testemunhos eu usei no “Clone”, mas era no meio do capÉtulo e sempre ligado a uma situaÅÇo<br />
que nÇo <strong>de</strong>ixava vocÖ escapar do folhetim: a Mel foi pro morro e a mÇe fica sabendo, fica<br />
<strong>de</strong>sesperada, vai atrás e diante do morro, consi<strong>de</strong>ra todos os perigos que vai enfrentar, mas ela<br />
vai subir para buscar a filha. No que ela comeÅa a subir o morro, corta para uma mÇe real<br />
contando como ela se sentiu quando foi buscar a filha no alto do morro. SaÉa o <strong>de</strong>poimento e a<br />
mÇe da Mel chegava ao alto do morro e negociava com o traficante a soltura da filha. O<br />
testemunho era muito embalado <strong>de</strong>ntro da histÑria, nada solto. Se as pessoas nÇo comprarem o<br />
personagem, elas nÇo se interessam pelo que acontece com ele. Isso está na minha cartilha.<br />
Por isso eu jamais comeÅaria uma novela com uma campanha; primeiro o autor tem que<br />
ven<strong>de</strong>r o folhetim. VocÖ se importa com o que acontece com quem vocÖ se importa. VocÖ tem<br />
que se envolver com aquela personagem para se importar com o que acontece com ela.<br />
Janete Clair pregava que os capâtulos <strong>de</strong>viam comeéar e acabar com a trama principal.<br />
Vocá segue essa regra?<br />
242
Eu sigo bem essa regra. A Janete tem uma contribuiÅÇo muito gran<strong>de</strong> que quase<br />
nenhum autor foge <strong>de</strong>la. Ela <strong>de</strong>u unida<strong>de</strong> ao capÉtulo porque na àpoca <strong>de</strong> GlÑria Magadan,<br />
tinha-se o capÉtulo a metro, que vai, vai, vai e à cortado quando o tempo acaba. A Janete<br />
instituiu a idàia do capÉtulo como unida<strong>de</strong>. ï a concepÅÇo do capÉtulo como espetáculo diário<br />
que tinha a sua dosagem <strong>de</strong> emoÅâes: cena <strong>de</strong> emoÅÇo, cena <strong>de</strong> humor, tudo para dar ao<br />
pëblico uma variaÅÇo <strong>de</strong> sentimento, a tensÇo, o refresco, a hora da imaginaÅÇo, a hora da<br />
fantasia. Dá pra fazer isso <strong>de</strong>ntro da escola da Janete porque faz parte da cartilha <strong>de</strong>la ter uma<br />
histÑria central forte, um tronco central e os galhos, que sÇo as histÑrias paralelas. Alguns<br />
autores nÇo trabalham com isso, eles criam várias histÑrias com o mesmo peso. No meu caso<br />
eu sou da escola da Janete mesmo. Tem sempre um tronco forte cujo eixo se <strong>de</strong>senvolve<br />
lentamente: tem um casal separado no comeÅo que sÑ se junta no final – <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista<br />
se tem um tempo longo porque essa histÑria central tem que unir todas as outras. A histÑria<br />
tem que comeÅar importante: o autor tem que mostrar <strong>de</strong> cara qual à a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong>la e ele<br />
vai solucionar isso no final <strong>de</strong> alguma maneira. No meu caso, eu gosto <strong>de</strong> fazer mais <strong>de</strong> uma<br />
paralela forte. Eu faÅo a central muito forte, mas gosto <strong>de</strong> uma paralela tambàm forte. Em<br />
“Caminho”, vocÖ tem a histÑria central <strong>de</strong> Maya, Raj e Bahuam que implica com a histÑria da<br />
Duda (tudo isso à a histÑria central) e vocÖ tem a histÑria dos irmÇos Ramiro e Raul (cujas<br />
paralelas envolvem o Dr. Castanho, o Murilo, a Tònia), que <strong>de</strong> certa forma se une ä central<br />
tambàm. Nas paralelas vocÖ tem milhares <strong>de</strong> outras: a da escola, a dos indianos no Brasil etc.<br />
VocÖ tem <strong>de</strong> criar tramas enfeitando a novela em volta, mas tem o gancho forte para segurar o<br />
pëblico durante 200 capÉtulos. Essa à a forÅa da trama central. Na verda<strong>de</strong> à ela que segura a<br />
novela. ès vezes nÇo ocorre assim: tem novelas em que a trama central po<strong>de</strong> falhar e uma<br />
paralela ganha forÅa. Tem novela que ao longo do tempo vive <strong>de</strong> um personagem, mas à um<br />
perigo, a histÑria fica na corda bamba. Na verda<strong>de</strong> cada autor coloca na novela seu universo,<br />
sua visÇo <strong>de</strong> mundo, aquilo com que vocÖ se importa... ï um espelho do autor, das suas<br />
curiosida<strong>de</strong>s.<br />
Sexta e sábado sÇo dias <strong>de</strong> audiÖncia menores tradicionalmente porque as pessoas<br />
saem mais <strong>de</strong> casa... Nestes dias se procura apresentar capÉtulos atraentes, mas on<strong>de</strong> os<br />
acontecimentos <strong>de</strong>finitivos nÇo se resolvem. No final do capÉtulo <strong>de</strong> sábado vocÖ po<strong>de</strong> criar<br />
um gran<strong>de</strong> gancho, que sugere que vai haver um gran<strong>de</strong> acontecimento, mas para ser<br />
resolvido na segunda. NÇo se po<strong>de</strong> fazer o casamento da protagonista no sábado. NÇo que se<br />
fique enchendo linguiÅa, mas como sÇo dias difÉceis, vocÖ tem uma faca <strong>de</strong> dois gumes<br />
porque se fizer um capÉtulo muito lerdo, vai ter menos gente do que se o capÉtulo for vibrante.<br />
Tem-se que fazer capÉtulos bem vibrantes e interessantes, mas on<strong>de</strong> a histÑria central nÇo se<br />
conclua.<br />
Sendo o amor impossível uma das bases do folhetim, você teria escolhido falar <strong>de</strong><br />
ciganos, árabes e indianos porque nessas culturas os impedimentos são mais rígidos,<br />
ligados a uma tradição arcaica?<br />
Eu escolhi estes temas pela minha curiosida<strong>de</strong>. Quando escrevo uma novela, que à um<br />
trabalho que toma tanto do meu tempo e por tanto tempo, à fundamental para mim que o tema<br />
abordado me mobilize, me interesse. Escrever sobre aquilo te obriga a pensar sobre o assunto,<br />
faz vocÖ apren<strong>de</strong>r sobre um assunto que te interessa. SÑ escrevo com entusiasmo sobre aquilo<br />
que me interessa. Escrever usando sÑ a tàcnica eu nÇo faria mesmo. No caso <strong>de</strong>stas trÖs<br />
novelas, o ponto <strong>de</strong> atraÅÇo para mim nem <strong>de</strong> longe passou pela questÇo do amor impossÉvel.<br />
Interessei-me pela índia há dois anos quando fui ao MIPCOM. Achei fascinante: estava lá<br />
vendo a tevÖ <strong>de</strong> terceira dimensÇo apresentada pelos asiáticos e a festa temática organizada no<br />
hotel era sobre a índia. Os indianos estavam todos vestidos a caráter. O que me interessa<br />
muito – e isso talvez seja o ponto em comum entre as trÖs novelas e nÇo o amor impossÉvel –<br />
243
à essa mistura dos tempos. O ponto <strong>de</strong> partida para a novela dos ciganos nÇo foi a cultura<br />
cigana, isso veio <strong>de</strong>pois. Foi a internet que me interessou primeiro. O que me interessa muito<br />
à pensar assim: como à que essas tecnologias novas mudam a vida cotidiana das pessoas,<br />
como introduzem dramas novos, on<strong>de</strong> se vai viver sem referÖncias passadas. Quando se vai<br />
ser mÇe, se tem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primÑrdios da humanida<strong>de</strong> alguma referÖncia do que à ser mÇe. Mas<br />
para ser mÇe <strong>de</strong> aluguel nÇo se tem nenhuma referÖncia. Isso me interessou muito porque era<br />
uma subdivisÇo <strong>de</strong> trabalho numa área em que eu nunca pensei que estaria viva para ver. A<br />
maternida<strong>de</strong> nunca foi <strong>de</strong>finida em cÑdigo nenhum porque sempre foi uma evidÖncia, e agora,<br />
mesmo tanto anos <strong>de</strong>pois, quando a barriga <strong>de</strong> aluguel já se tornou uma coisa comum, como à<br />
que à nÇo ser mÇe carregando uma barriga e tendo um parto e como à que à ser mÇe, se sentir<br />
mÇe <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, sem a barriga e o parto. Essa era a experiÖncia que elas tinham que viver. A<br />
internet, por exemplo, que me levou aos ciganos, eu fiquei vendo logo aquele universo<br />
fantástico que a internet ia trazer porque se eu estava conversando na BBS com pessoas que<br />
eu jamais encontraria na vida real. EntÇo eu procurei achar pessoas que jamais se cruzariam<br />
na vida real: um polÉtico importante e quem? AÉ veio a i<strong>de</strong>ia da cigana. Atà porque nessa<br />
àpoca eu conheci uma cigana que tinha me ajudado na pesquisa para “Carmen” e ela me dizia<br />
“VocÖs tÖm essa mania <strong>de</strong> que cigano tem que andar rodando, ser pobre e ler mÇo, mas tem<br />
muito cigano rico”. E eu nÇo sabia disso. AÉ ela me levou numa cobertura aqui em<br />
Copacabana, linda, uma casa <strong>de</strong> ciganos em que havia uma garota que estudava na PUC e ela<br />
me mostrava o retratinho 3x4 <strong>de</strong> um homem que ela nunca tinha visto e que estava vindo da<br />
Polònia para casar com ela. E ela dizia que nÇo ia casar e os pais estavam indignados com<br />
aquilo. Foi isso que me suscitou unir o polÉtico com a cigana. SÇo coisas que vocÖ vive e que<br />
vÖm ä tona na hora <strong>de</strong> escrever uma novela. E eu sou muito curiosa, muito curiosa por gente,<br />
por saber como vivem, como pensam. Hoje as pessoas se interessam muito por personagens<br />
bem sucedidas (mesmo que nÇo sejam exemplos <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>), à o lado menos bonito do<br />
interesse por gente.<br />
Essa histÑria do amor impossÉvel com acabamento <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fadas, que foi o que<br />
ocorreu com “O Clone” e com “Caminho”, nÇo à difÉcil <strong>de</strong> se obter em socieda<strong>de</strong>s menos<br />
arcaicas porque o impedimento po<strong>de</strong> ganhar todo tipo <strong>de</strong> contorno, tornando a histÑria<br />
completamente diferente. Por exemplo, o amor à impossÉvel porque as famÉlias nÇo se dÇo,<br />
como em Romeu e Julieta, porque um à filho <strong>de</strong> coronel e a outra à filha <strong>de</strong> um colono; o<br />
amor entre uma escrava e um coronel já à outra histÑria, entre o cigano e o polÉtico tambàm. ï<br />
o tempo que cria as impossibilida<strong>de</strong>s. Uma moÅa afegÇ com um soldado americano seria um<br />
universo totalmente novo, e, no entanto, à a velha histÑria, basta mudar a posiÅÇo das pessoas.<br />
O amor impossÉvel nÇo à nada complicado <strong>de</strong> fazer. O contorno <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fadas à algo que<br />
certos autores se permitem, apesar das dificulda<strong>de</strong>s que esta escolha implica. Como as pessoas<br />
costumam olhar o mundo atravàs do prÑprio umbigo, aquele impedimento nÇo parece<br />
impedimento e sim fruto do atraso <strong>de</strong> uma cultura diferente. O dilema da Maya <strong>de</strong> contar ou<br />
nÇo a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>corre exatamente do fato <strong>de</strong> ela estar no tempo mo<strong>de</strong>rno. Se aquilo fosse<br />
colocado numa trama <strong>de</strong> àpoca, as pessoas enten<strong>de</strong>riam melhor. Mas, no mundo mo<strong>de</strong>rno,<br />
como para nÑs nÇo à gran<strong>de</strong> coisa engravidar antes ou fora do casamento, as pessoas<br />
comeÅam a achar que a visÇo <strong>de</strong>las à o critàrio <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Quem nÇo pensa assim à<br />
atrasado. Como à que a Maya à mo<strong>de</strong>rna e vive o tabu <strong>de</strong> uma relaÅÇo fora do casamento? A<br />
reaÅÇo do pëblico <strong>de</strong> con<strong>de</strong>ná-la por suas mentiras e por sua dificulda<strong>de</strong> em revelar a verda<strong>de</strong><br />
à a nÇo aceitaÅÇo do povo em ver o outro atravàs <strong>de</strong> um olhar diferente. Esse convite para as<br />
pessoas se <strong>de</strong>spirem dos seus preconceitos e da sua maneira <strong>de</strong> pensar e entrar na pele do<br />
outro à muito complicado <strong>de</strong> aceitar. Costuma-se pensar que as i<strong>de</strong>ias que vigoram hoje sÇo<br />
mais avanÅadas do que as que vigoraram antes. A histÑria da estudante da Uniban está aÉ para<br />
mostrar como os tempos mo<strong>de</strong>rnos po<strong>de</strong>m ser arcaicos, como o tempo se dobra sobre si<br />
mesmo.<br />
244
Durante a ditadura militar, a censura <strong>de</strong>u muito trabalho aos autores, que tiveram que<br />
cortar cenas e até mesmo abortar a estreia <strong>de</strong> novela. Por outro lado, a novela, por conta<br />
<strong>de</strong> sua gran<strong>de</strong> penetração popular foi criticada por favorecer os interesses do governo,<br />
distraindo a população dos gran<strong>de</strong>s problemas nacionais e favorecendo a integração do<br />
país. Janete Clair foi uma das gran<strong>de</strong>s vítimas: teve novelas censuradas e também foi<br />
chamada <strong>de</strong> colaboracionista. Como vê essa contradição?<br />
Janete colaboradora da ditadura? Imagina! Tal imagem, se <strong>de</strong> fato houve, sÑ po<strong>de</strong> ser<br />
resultante do fato <strong>de</strong> ela ven<strong>de</strong>r o sonho, dar o Ñpio do povo. Mas essa à uma paranÑia<br />
persecutÑria <strong>de</strong> parte da esquerda brasileira: como se tudo tivesse um gran<strong>de</strong> plano por <strong>de</strong>trás.<br />
A Janete era uma contadora <strong>de</strong> histÑrias, a ënica coisa que ela queria era contar histÑrias, nÇo<br />
era uma pessoa que tivesse gran<strong>de</strong>s preocupaÅâes com polÉtica. ï sacanagem dizer uma coisa<br />
<strong>de</strong>ssas! Quanto ä temática das novelas <strong>de</strong>la, o que ela fez foi trazer a novela para o Brasil. Em<br />
vez <strong>de</strong> os personagens morarem lá no fim do mundo, num reino nÇo existente, moravam no<br />
Brasil. Isso nÇo faz parte <strong>de</strong> nenhum plano, isso era o Ñbvio. Mas a gente tem que prestar a<br />
atenÅÇo na àpoca. NÑs estamos olhando por cima dos ombros da Janete. Eu estou enxergando<br />
o folhetim que eu escrevo por cima dos ombros <strong>de</strong>la e ela escrevia sobre os ombros da GlÑria<br />
Magadam. Pensa no avanÅo que significou uma pessoa que fez o que ela fez. Janete nÇo sÑ<br />
transplantou para a realida<strong>de</strong> brasileira os dramas que ela contava como <strong>de</strong>u a unida<strong>de</strong> ao<br />
capÉtulo (que prevalece atà hoje), preocupaÅÇo que à <strong>de</strong> escritora nÇo <strong>de</strong> polÉtica. Isso <strong>de</strong> dizer<br />
sobre a ditadura, coisa que eu nem sabia e acho um absurdo, à uma perseguiÅÇo <strong>de</strong>sta parte da<br />
esquerda brasileira contra o folhetim. Tudo o que distraÉsse o povo da doutrinaÅÇo estava a<br />
serviÅo da ditadura. A Janete sÑ era talentosa: fazer um paÉs sonhar naquela àpoca (qualquer<br />
diretor <strong>de</strong> cinema hoje que faÅa o sucesso que as novelas <strong>de</strong>la fizeram fica feliz, à festejado),<br />
era coisa que nem o cinema brasileiro fazia porque os gran<strong>de</strong>s filmes eram feitos para as rodas<br />
dos intelectuais, nÇo eram feitos para o povÇo. O que era feito para o povÇo era consi<strong>de</strong>rado<br />
Ñpio. O povÇo sÑ podia ser doutrinado. Ela sÑ foi a melhor da àpoca. E foi censurada tambàm.<br />
Quando nÇo dizem o mesmo sobre o Dias (que ele colaborou com a ditadura porque escrevia<br />
novela), tendo a achar que o comentário era fruto <strong>de</strong> um preconceito horrÉvel contra a mulher<br />
Janete. Tentaram <strong>de</strong>struir a Janete <strong>de</strong> todas as maneiras, inclusive emocionalmente. Ela sofria<br />
muito com o que falavam <strong>de</strong>la. E chorava, se importava, nÇo era como eu que rio e ainda<br />
recorto essas maluquices para <strong>de</strong>ixar para os meus netos rirem daqui a um tempo, porque eu<br />
sei que vÇo rir. Ela era muito sensÉvel, chorava quando lia essas coisas que diziam sobre ela.<br />
O talento <strong>de</strong> fazer sonhar, que à o talento prÑprio da profissÇo <strong>de</strong>la ─ nÑs temos que contar<br />
histÑria para o povo inteiro ver, sonhar, se envolver ─, era visto por cabeÅas estreitas como a<br />
estratàgia <strong>de</strong> alguàm a serviÅo da ditadura. Se nÇo se está doutrinando, se está a serviÅo da<br />
ditadura! Mas por que entÇo que o Dias Gomes nÇo estava tambàm a serviÅo da ditadura se<br />
ele tambàm escrevia novelas? O preconceito contra a mulher estava, por exemplo, nos boatos<br />
que corriam o paÉs quando as novelas <strong>de</strong>las explodiam <strong>de</strong> sucesso, dizendo que quem escrevia<br />
era ele e ela sÑ assinava. As novelas <strong>de</strong>las nÇo tinham nada <strong>de</strong> polÉtica, eram sonhos <strong>de</strong> amor.<br />
Quando hoje se referem äs novelas <strong>de</strong>las, muitos contam coisas que nÇo estavam lá na versÇo<br />
original. Eu nÇo conheÅo novela nenhuma da Janete que tenha essa preocupaÅÇo polÉtica. Ela<br />
gostava <strong>de</strong> contar histÑrias <strong>de</strong> amor, que te faziam chorar, se emocionar. E ela via as histÑrias<br />
<strong>de</strong>la como espectadora. Um amigo meu, diretor da Globo e tambàm muito amigo da Janete,<br />
dizia uma coisa que à verda<strong>de</strong>: a gran<strong>de</strong> vantagem <strong>de</strong>la sobre todos nÑs, inclusive os <strong>de</strong> hoje,<br />
à que ela era uma dona <strong>de</strong> casa que escrevia. Sendo assim ela tinha um alcance e ia muito<br />
mais diretamente e muito mais rapidamente äs emoÅâes do que a gente consegue ir. Ela sÑ foi<br />
a melhor <strong>de</strong> todos nÑs e isso tem um preÅo. Eu vejo as pessoas dizerem que a novela à o Ñpio<br />
do povo. Mas por que as do Dias nÇo? Ele sÑ escreveu essas novelas mais <strong>de</strong> crÉtica social<br />
245
<strong>de</strong>pois, antes ele escrevia Ponte dos suspiros, com o pseudònimo <strong>de</strong> Stela Cal<strong>de</strong>ron, que todo<br />
mundo sabia que era ele, mas ninguàm falava que ele estava a serviÅo da ditadura. ï<br />
preconceito. ï a mesma coisa com a mësica: Chico Buarque escreveu obras primas que<br />
faziam a gente viver uma catarse com o duplo sentido <strong>de</strong> suas letras que nos faziam gritar<br />
contra a ditadura, mas nesta mesma àpoca houve outros compositores maravilhosos como<br />
Cartola, cuja obra nÇo tem conotaÅÇo polÉtica, e isso nÇo <strong>de</strong>veria ser consi<strong>de</strong>rado bom por que<br />
nÇo tinha uma mensagem ali? Se a novela estava a serviÅo da ditadura porque sua linguagem<br />
e as histÑrias que contava permitiam que o Brasil inteiro se unificasse, nÑs hoje tambàm<br />
<strong>de</strong>verÉamos ser criticados pela mesma coisa. E nÑs, estamos a serviÅo <strong>de</strong> que? Do consumo?<br />
Mas à a mesma coisa. ï o mesmo preconceito do qual escapam alguns eleitos ontem e hoje.<br />
As mulheres sÇo logo taxadas, à fato. Porque acham que à mais fácil bater em mulher... Eu<br />
nÇo acho que seja, pelo contrário, à atà mais perigoso. O preconceito contra a telenovela lá<br />
atrás, na àpoca da ditadura, fez com que os intelectuais rejeitassem o prÑprio veÉculo, a<br />
televisÇo. Como se ela fosse acabar com o livro e com o cinema.<br />
Hoje se sabe que a internet favoreceu a exposiÅÇo dos pequenos relatos e dos discursos<br />
dos anònimos. Agora vocÖ imagina na àpoca da Janete que nÇo tinha internet. Essa cabeÅa que<br />
inventou esse vÉnculo <strong>de</strong>la com a ditadura <strong>de</strong>ve ser um ressentido que nÇo consegue chegar ao<br />
pëblico e precisa do povo para mudar o Estado. Esse cara vÖ aquela mulher escrevendo coisas<br />
que ele consi<strong>de</strong>ra uma besteira botando o pëblico louco. VocÖ imagina uma coisa: hoje a<br />
gente tem a internet, as classes sociais mais baixas tÖm acesso a uma sàrie <strong>de</strong> coisas que nÇo<br />
havia na àpoca; era uma àpoca <strong>de</strong> “televizinho” porque nem todas as pessoas tinham televisÇo<br />
e precisavam recorrer ao vizinho; o po<strong>de</strong>r aquisitivo era outro, o televisor era mais caro, o<br />
Brasil tinha muito mais analfabetos, nÇo se tinha internet, as pessoas nÇo tinham nenhum<br />
escape. Imagina o impacto que as telenovelas <strong>de</strong> Janete Clair representavam para estas<br />
pessoas que nÇo tinham nada alàm daquilo.<br />
Suas novelas também costumam causar gran<strong>de</strong> impacto no público.<br />
Todas as minhas novelas <strong>de</strong> certa forma assustam muito quando elas chegam. “Barriga<br />
<strong>de</strong> Aluguel” ficou cinco anos na gela<strong>de</strong>ira. “O Clone” tambàm ficou na gela<strong>de</strong>ira porque<br />
achavam que o pëblico nÇo aceitaria falar <strong>de</strong> um mundo tÇo estranho ao nosso. Embora a<br />
novela tenha estreado junto com o 11 <strong>de</strong> setembro, a proposta <strong>de</strong> “O Clone” já estava na<br />
emissora muito tempo antes dos atentados. As pessoas dizem que tenho bola <strong>de</strong> cristal, mas<br />
nÇo à bem assim. As coisas estÇo aparentes, mas à preciso que vocÖ olhe para elas, senÇo vocÖ<br />
nÇo enxerga. Havia uma tensÇo com o mundo árabe que eu nÇo entendo como as pessoas<br />
podiam nÇo enxergar. O mundo árabe estava todo dia no noticiário brigando, protestando. A<br />
tensÇo estava ali. ï claro que ninguàm po<strong>de</strong>ria imaginar que chegaria aon<strong>de</strong> chegou. Dizem<br />
que minhas antenas sÇo po<strong>de</strong>rosas, mas elas nÇo sÇo mágicas. NÇo há mágica nenhuma nisso:<br />
o islÇ e os muÅulmanos, seus conflitos e a tragàdia <strong>de</strong> sua gente está todo dia nos jornais há<br />
muitos anos. Muitos os veem apenas como notÉcia. Como me interesso por gente, vejo o lado<br />
humano daquelas cenas e intuo sobre o confronto <strong>de</strong> tanta diferenÅa num mundo cada vez<br />
mais globalizado. Basta olhar e saber ver.<br />
Eu estava passando fàrias em Miami <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “O Clone”, e vi aquela fila monstruosa<br />
da imigraÅÇo. Interessei-me e fiquei sabendo uma coisa que ninguàm havia divulgado: que o<br />
maior contingente a tentar atravessar pelo <strong>de</strong>serto à o mexicano e o segundo em nëmero à o<br />
brasileiro. Eu fiquei pasmem. Fui conversar com as pessoas, ver como era isso. Gente, tanto<br />
brasileiro vivendo esse drama e a gente nem sabe! Diziam que eu estava inventando coisa,<br />
quando à uma coisa real. Por que o jornalismo nÇo divulgava, por que nÇo ia verificar se o que<br />
eu estava contando era verda<strong>de</strong> ou nÇo? Quando morreu o Jean Charles, soube-se que na<br />
cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele nasceu quase nÇo havia homens porque todos estavam indo para fora do paÉs.<br />
246
Quando os filhos nasciam, os pais já comeÅavam a juntar dinheiro para mandar o menino para<br />
o exterior. As dificulda<strong>de</strong>s que as pessoas enfrentam para atravessar o <strong>de</strong>serto foi o que me<br />
chamou a atenÅÇo. Como tem tanta gente passando por isso e nÇo se fala do assunto? O que a<br />
novela faz à isso: colocar um assunto em discussÇo. Une realmente o paÉs em torno <strong>de</strong> um<br />
assunto.<br />
Entrevista realizada em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009<br />
Janete Clair atingia igualmente as mais diferentes camadas da população? Como isso se<br />
dava?<br />
Ela nÇo tinha a prepotÖncia <strong>de</strong> quem está falando para alguàm que está abaixo <strong>de</strong>la.<br />
Era uma dona <strong>de</strong> casa que escrevia. Ela amava o gÖnero e quis passar o que sabia para<br />
alguàm. Ela queria que a telenovela continuasse, que nÇo acabasse com a sua morte. Era uma<br />
pessoa simples. O segredo <strong>de</strong>la estava muito nessa simplicida<strong>de</strong>. Era isso que fazia ela tÇo<br />
gran<strong>de</strong>.<br />
O que dá uma novela?<br />
Eu nÇo fico analisando se isso dá ou nÇo uma novela. Quem escreve à muito atento.<br />
Tem algum lugar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> vocÖ on<strong>de</strong> as coisas que vocÖ vive ficam guardadas. E na hora em<br />
que vocÖ vai escrever uma novela elas vÖm ä tona, aqueles tipos surgem; à como se vocÖ<br />
<strong>de</strong>spertasse uma memÑria ä parte. Os tipos que vocÖ conviveu, as emoÅâes que vocÖ viveu,<br />
tudo à vida, tudo po<strong>de</strong> ser traduzido numa histÑria. Agora, para dar uma novela (tem histÑrias<br />
que dÇo uma minissàrie, que dÇo uma novela...), ela precisa ter <strong>de</strong>sdobramentos, porque uma<br />
novela à uma obra muito gran<strong>de</strong>. Precisa ter capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento para cobrir o<br />
tempo <strong>de</strong> duraÅÇo <strong>de</strong> uma novela e tambàm precisa ter capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilitar o<br />
sensacional. O sensacional faz parte do folhetim. Quando se está terminando um capÉtulo,<br />
qualquer autor vai buscar o que a cena oferece <strong>de</strong> mais sensacional <strong>de</strong> modo a que chame o<br />
pëblico para o dia seguinte. Tem que apelar para o sensacional: pessoas que quase se<br />
encontram, mas no capÉtulo seguinte nÇo se vÖem. Tem-se que imaginar coisas assim porque<br />
no final <strong>de</strong> cada capÉtulo vocÖ nÇo está <strong>de</strong>sfechando a histÑria, senÇo nÇo tem histÑria que<br />
renda uma novela. VocÖ tem outros falsos ganchos ou ganchos que fazem a histÑria andar,<br />
mas nÇo solucionam a histÑria, e tem os ganchos que sÇo mais <strong>de</strong>finitivos: o beijo da mocinha<br />
e do mocinho, on<strong>de</strong> o autor sacramenta que existe um romance ali; a hora em que um caso<br />
termina, a hora em que o casal se separam, que se reencontra. SÇo ganchos <strong>de</strong>finitivos <strong>de</strong> uma<br />
histÑria. No meio disso vai ter muito gancho falso, que à quando parece que vai haver um<br />
encontro e nÇo há, parece que a personagem foi atingida e no capÉtulo seguinte, vÖ-se que nÇo<br />
foi. Estes ganchos ou sÑ fazem a histÑria andar ou nÇo te levam a lugar nenhum, sÇo<br />
puramente sensacionais. Tem uma hora em que vocÖ quer terminar o capÉtulo e precisa criar<br />
uma coisa que permita que ele acabe <strong>de</strong> uma forma interessante Por exemplo: em “Barriga <strong>de</strong><br />
Aluguel”, quando o pai da Clara abria a porta do elevador e via a filha com uma barriga<br />
enorme, quando ele via que ela estava grávida. Para ele, que era testemunha <strong>de</strong> Jeová, aquilo<br />
era uma coisa absolutamente inaceitável. Eu pensei: era pouco ele sÑ ver que ela estava<br />
grávida. Tinha que botar um charme na cena. AÉ ele a vÖ, ela fica apavorada e diz: “Papai, eu<br />
juro que nÇo à meu!” AÉ já fica mais interessante, nÇo fica? Cria a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver como<br />
vai continuar. Tem um gancho que eu fiz uma vez que o Carlos Lombardi sempre inclui em<br />
suas novelas em minha homenagem: era em “Carmem”, nÇo tinha como acabar o capÉtulo,<br />
tinha que ser um final sensacional e o que eu fiz? A mulher tinha <strong>de</strong>scoberto que o marido<br />
247
estava traindo ela com a cunhada, ela já sabia disso, eles se encontraram no quarto e tinha um<br />
revÑlver do lado, ela pega o revÑlver que estava a uma distência pequena, a cêmera foca a<br />
mulher dando seis tiros; no capÉtulo seguinte o pëblico vÖ que nenhum tiro pegou nele. Isso à<br />
o sensacional, que puxa o pëblico para ver o que aconteceu. Hoje em dia isso está dificultado<br />
porque antes nÇo havia publicaÅâes que contavam o que vai acontecer. Alàm <strong>de</strong> inventarem<br />
muita coisa, äs vezes eles contam o que <strong>de</strong> fato vai acontecer. No tempo da Janete, as pessoas<br />
ligavam para a emissora porque o beijo esperado podia acontecer em qualquer capÉtulo, a<br />
qualquer momento. NÇo havia publicaÅÇo que antecipasse esse acontecimento. Hoje as<br />
pessoas lÖem as revistas e escolhem o que querem ver. “Essa cena me interessa; essa, nÇo.”<br />
Isso exige que o autor faÅa mais ainda o sensacional. Para driblar a expectativa do pëblico,<br />
tem que ter um apelo para a curiosida<strong>de</strong>. Tem-se que criar mais gancho, mais coisa<br />
sensacional a cada capÉtulo para driblar o que a imprensa noticia.<br />
As histärias que dÜo novela sÜo as histärias <strong>de</strong> amor?<br />
O centro à sempre uma histÑria <strong>de</strong> amor, uma histÑria romêntica. Sempre foi assim.<br />
Houve novelas experimentais, äs 22 horas, em que o centro nÇo era amor. “O Rebu”, que era<br />
o quem matou, tinha o crime como um eixo mais importante do que a histÑria <strong>de</strong> amor. Mas<br />
as novelas das 20 horas, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> pëblico, sempre foram histÑrias <strong>de</strong> amor.<br />
Tanto “O Clone” como “Caminho das Éndias” foram conduzidas com a eståtica <strong>de</strong> conto<br />
<strong>de</strong> fadas...<br />
Porque o ambiente propiciava isso. A Ja<strong>de</strong> era uma personagem <strong>de</strong> Scheraza<strong>de</strong>, por<br />
exemplo. A Maya tambàm. Mas nÇo sÇo toas as culturas nem todas as situaÅâes que<br />
propiciam este enfeite.<br />
Ricardo Linhares disse que antes o pëblico estava na onda do realismo fantçstico, mas<br />
que ele percebia que agora o pëblico quer o på no chÜo. Vocá tem essa percepéÜo, e<br />
nesse sentido o conto <strong>de</strong> fadas seria um risco?<br />
Acho que quando vocÖ consegue envolver o pëblico (o problema está nesse comeÅo!),<br />
ele compra qualquer tipo <strong>de</strong> histÑria. Qualquer tipo <strong>de</strong> histÑria po<strong>de</strong> arrebatar. NÇo acho que<br />
tenha uma receita; nÇo penso assim. A cultura indiana e a muÅulmana tÖm um lado que para<br />
nÑs, os oci<strong>de</strong>ntais, remete ä magia, ä fantasia. ï a danÅa do ventre, os vàus. Se vocÖ vai falar<br />
<strong>de</strong>ssa cultura, por que nÇo explorar esse lado <strong>de</strong> encantamento e fantasia? Em “Caminho das<br />
índias”, on<strong>de</strong> está a paixÇo do pëblico? A paixÇo à pela índia, a índia à o carro-chefe. Quando<br />
se pergunta o que ficou do “Clone”, as pessoas dizem “Ja<strong>de</strong>”! ï o encantamento. As pessoas<br />
tÖm essa carÖncia, essa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fantasia. A fantasia faz parte do real, nÇo se vive sem<br />
isso. Atà para se realizar uma coisa à preciso sonhar antes. VocÖ nÇo lida sÑ com o que existe,<br />
vocÖ lida com o <strong>de</strong>sejo, com aquilo que vocÖ quer que exista. Por isso acho que na novela a<br />
fantasia à fundamental. Quantas vezes as pessoas se apaixonam pelo galÇ da novela ou pela<br />
novela porque elas querem aquilo na vida e a vida nÇo está dando o que elas querem.<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do caminho escolhido, vocÖ tem <strong>de</strong> conquistar o pëblico <strong>de</strong> cara...<br />
Há filmes romênticos que arrebatam multidâes e outros que passam <strong>de</strong>spercebidos. A receita,<br />
o anzol que pesca o pëblico à puramente intuitivo. A gente nÇo sabe.<br />
Qual foi o seu trunfo para conquistar o pëblico em “O Clone” e em “Caminho das<br />
Éndias”?<br />
248
A minha intuição. É como uma dança: tem-se que sentir para on<strong>de</strong> o cavalheiro vai<br />
para que você possa seguir. Da mesma forma você tem que ser intuitiva não para obe<strong>de</strong>cer ao<br />
gosto do público. A imaginação é coisa própria do indivíduo, o gran<strong>de</strong> público só vai pensar<br />
no que ele já viu (quando se entrevista o povo pedindo sugestões para o final <strong>de</strong> novela, ele dá<br />
sugestões já vistas em outro lugar). O público lida com um repertório que é preexistente. E ele<br />
quer ser surpreendido. Mas ao mesmo tempo o autor tem que estar atento para saber se está<br />
conseguindo passar a emoção que ele quer passar. On<strong>de</strong> é que está errando? Por que o público<br />
ainda não comprou a história? Por que ele ainda não se envolveu? Então você tem que sentir<br />
para on<strong>de</strong> ele está indo para po<strong>de</strong>r ir atrás, não para seguir o gosto <strong>de</strong>le, mas para envolvê-lo<br />
no seu laço. Essa atenção ao público tem sido uma gran<strong>de</strong> arma.<br />
Sua intuição afiada seria cultivada no hábito <strong>de</strong> não se isolar do mundo enquanto<br />
escreve?<br />
Eu gosto <strong>de</strong> gente. Não sou uma pessoa centrada no meu umbigo. Isso me facilita. Estando no<br />
convívio com a cida<strong>de</strong>, posso sentir melhor o retorno do público. Tanto antes como durante a<br />
novela. Existem duas posturas ao escrever: se o autor está centrado no seu próprio umbigo, ele<br />
escreve uma história e pronto: se o público não enten<strong>de</strong>r, ele é estúpido, não está preparado<br />
para o que o autor escreveu; se o autor não está centrado no seu umbigo, ele se coloca na<br />
posição <strong>de</strong> quem escreve para agradar as pessoas. É como entreter alguém numa conversa,<br />
tem que ser agradável. Se a pessoa não estiver prestando atenção, o erro é seu. Tenho que<br />
estar atenta a isso. Também no teatro e no cinema tem-se o compromisso <strong>de</strong> agradar a platéia.<br />
Se o autor ou a montagem não consegue segurar o olho da platéia, a peça ou o filme vira um<br />
fiasco. Então não é só a novela que tem que encantar o público. Só que há um gran<strong>de</strong><br />
preconceito com esse compromisso nas novelas.<br />
O que me facilita também é não ser uma pessoa centrada no meu próprio umbigo. Isso<br />
me facilita enten<strong>de</strong>r muito rapidamente as culturas diferentes, porque você vai sem<br />
preconceito, você tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se colocar mesmo na pele do outro. Para escrever sobre<br />
culturas diferentes, isso é essencial. Se não conseguir fazer isso, não rola.<br />
Muitos crêem ser a arte uma linguagem que vigora a <strong>de</strong>speito do entendimento do<br />
público. Já a telenovela que é feita para agradar. Você consi<strong>de</strong>ra a telenovela uma arte?<br />
A telenovela é uma arte que tem <strong>de</strong> ser compreendida. Não dá para ser aquela arte que<br />
só se vai enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois, porque a novela é momentânea, o capítulo passa naquele<br />
dia e não volta mais. Em novela o autor tem que trocar em miúdo muitas coisas. Quando<br />
escrevo sobre temas mais complexos, sobre genética, barriga <strong>de</strong> aluguel, internet, clonagem<br />
etc, eu peço a pessoas sem muito estudo que leiam o capítulo. E aí eu mudo o jeito <strong>de</strong> dizer<br />
aquilo que elas não enten<strong>de</strong>m. A novela tem que dizer <strong>de</strong> uma maneira que todo mundo<br />
compreenda. Porque quando o público sente que está sendo chamado <strong>de</strong> ignorante, ele rejeita<br />
o que é dito. Se ele não enten<strong>de</strong> o que está sendo dito, como é que ele vai <strong>de</strong>senvolver<br />
interesse por aquilo? Telenovela é feita para gran<strong>de</strong>s massas mesmo. Nosso <strong>de</strong>safio, enquanto<br />
autores <strong>de</strong> telenovela, é fazer o melhor, apresentar um trabalho bonito, que seja artístico e<br />
compreensível <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse limite. Não é uma característica da boa arte ser incompreensível.<br />
É preciso saber mostrar/dizer aquilo <strong>de</strong> uma forma que todo mundo entenda. Tenho<br />
trabalhado com temas muito difíceis e até hoje, naquelas reuniões <strong>de</strong> avaliação, nunca<br />
ninguém reclamou que não entendia. Todos enten<strong>de</strong>m perfeitamente porque eu tenho esse<br />
cuidado.<br />
Nessa busca pelo público, você acha que a sua escrita autoral po<strong>de</strong> ficar perdida?<br />
249
Eu conheÅo o gÖnero que estou escrevendo. Se vou fazer uma minissàrie, a<br />
preocupaÅÇo à outra. Se vocÖ, como jornalista, for dar uma palestra sobre a profissÇo no<br />
MaracanÇ, vocÖ vai falar <strong>de</strong> um jeito, se for num jornal, vai falar <strong>de</strong> outro. NÇo à uma questÇo<br />
<strong>de</strong> baixar o nÉvel, à uma questÇo <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar a linguagem ao pëblico para quem vocÖ está<br />
falando e isso faz parte da arte. Se vou escrever uma minissàrie ─ “Desejo”, por exemplo, ─,<br />
aquilo nÇo à uma novela, nunca po<strong>de</strong>ria ser uma novela porque nÇo há <strong>de</strong> forma alguma essa<br />
preocupaÅÇo.<br />
Mas aquele tema po<strong>de</strong>ria ser convertido em novela?<br />
NÇo seria àtico. A novela sÑ tem que ter compromisso com o sensacional. E nÇo à<br />
correto pegar personagens reais e fazer <strong>de</strong>les qualquer coisa. Isso nÇo po<strong>de</strong>. Mas vamos supor<br />
que aquela histÑria nÇo tivesse acontecido na realida<strong>de</strong>. Na minissàrie vocÖ po<strong>de</strong> aprofundar<br />
as coisas, na novela vocÖ trabalha com a extensÇo e nÇo com o aprofundamento, que à muito<br />
pouco. VocÖ inclui nuances psicolÑgicas, mas nÇo aprofunda. A novela permite uma sàrie <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong>s que a minissàrie e o filme nÇo permitem. A novela nÇo se ren<strong>de</strong> äs emoÅâes que o<br />
pëblico quer sentir. Uma das coisas bacanas <strong>de</strong> novela (o que me encantou foi isso) à a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar o que o pëblico está sentindo, <strong>de</strong> conseguir captar e expressar. NÇo<br />
sÑ atravàs da campanha (que se dá <strong>de</strong> uma forma mais explÉcita), mas quando vocÖ apaixona o<br />
pëblico, vocÖ está dando a ele a histÑria que ele precisa ouvir, que ele estava querendo ouvir<br />
naquele momento.<br />
Você <strong>de</strong>ve ter uma amarração da trama como um todo, embora haja o inesperado do<br />
capítulo, mas o final já está pré-<strong>de</strong>terminado?<br />
NÇo à preciso <strong>de</strong>terminar o final. O autor <strong>de</strong>termina o ponto <strong>de</strong> partida e o ponto <strong>de</strong><br />
virada. O ëltimo terÅo da novela vai conforme...<br />
Você diz que se <strong>de</strong>ixa levar pela própria trama, que tem nas mãos uma arte que<br />
expressa o que você intui do sentimento do público, e que a telenovela é uma obra que<br />
vai sendo conduzida <strong>de</strong> forma aberta. Em que medida a opinião do público interfere na<br />
condução da trama?<br />
Eu nÇo me rendo ao pëblico; essa relaÅÇo à um gran<strong>de</strong> diálogo. Se vocÖ está contando<br />
uma histÑria e quer ven<strong>de</strong>r uma <strong>de</strong>terminada i<strong>de</strong>ia e o pëblico nÇo está aceitando aquilo à<br />
porque vocÖ está contando <strong>de</strong> forma errada. Porque quando vocÖ está escrevendo uma cena,<br />
vocÖ está ao mesmo tempo construindo uma emoÅÇo em quem assiste. Se vocÖ nÇo conseguir<br />
construir aquela emoÅÇo e se vocÖ se ren<strong>de</strong>r ao <strong>de</strong>sejo do pëblico, ele te acha menor. “Ah, já<br />
sabia, já imaginava, à previsÉvel.” O que se tem que fazer à contar diferente, tentar seduzir por<br />
outro lado. VocÖ procura recontar aquela histÑria, aquela situaÅÇo, <strong>de</strong> outra maneira. Isso à<br />
que à bacana numa novela: à quando o pëblico vem e vocÖ percebe que conseguiu! ï<br />
resultado da forma com que vocÖ conta. Quando dava aula <strong>de</strong> roteiro (na Casa Laura Alvim e<br />
no Tempo Glauber), eu dizia aos alunos: nÇo se preocupem com o tema (eu atà sou uma<br />
pessoa que gosta <strong>de</strong> tema), mas nÇo à o tema que faz uma histÑria. Pensem on<strong>de</strong> à que esta<br />
histÑria cabe. Uma mulher que quer se apaixonar e casa com um homem que nÇo à o homem<br />
dos seus sonhos e ela vai ter uma porÅÇo <strong>de</strong> amantes, fica <strong>de</strong>sesperada, se <strong>de</strong>cepciona com<br />
todos eles e acaba se matando: à uma histÑria <strong>de</strong> Capricho, Gran<strong>de</strong> Hotel, do folhetim mais<br />
barato e, no entanto, a forma como for contada po<strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r Madame Bovary, que à um livro<br />
apaixonante sobre uma histÑria simples assim. ï a forma <strong>de</strong> contar: Éramos seis <strong>de</strong>u uma<br />
250
gran<strong>de</strong> novela e um livro apaixonante e se baseava numa histÑria simples <strong>de</strong> um viëvo que os<br />
filhos iam saindo <strong>de</strong> casa...<br />
Essa forma <strong>de</strong> contar é capaz <strong>de</strong> romper alguns tabus do público ou assuntos difíceis <strong>de</strong><br />
o público engolir?<br />
Eu escrevi o beijo homossexual em “Amàrica” e ele foi cortado. Acho que o pëblico<br />
estava pronto para receber, mas haveria tambàm muito protesto. Em “Carmen”, o que eu fiz?<br />
Havia o Dr. Junot, dono <strong>de</strong> uma empresa, pai <strong>de</strong> dois filhos e marido <strong>de</strong> uma mulher<br />
apaixonada por ele. Se ele fosse apresentado como homossexual, todo mundo ia ficar contra<br />
ele (estamos falando <strong>de</strong> 1985). Apresentei-o entÇo como um homem que tinha um segredo.<br />
Mas era um pai maravilhoso, um patrÇo maravilhoso. Dei todas as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>le. Quando o<br />
segredo da homossexualida<strong>de</strong> foi revelado, todo mundo já gostava <strong>de</strong>le. Isso à um truque. Se<br />
vocÖ apresentar a homossexualida<strong>de</strong> primeiramente, vocÖ po<strong>de</strong> ter uma rejeiÅÇo porque<br />
quando se apresenta um personagem em novela, ele à sempre reduzido em sua complexida<strong>de</strong>,<br />
mas à atravàs <strong>de</strong>ssa reduÅÇo que a gran<strong>de</strong>za do humano po<strong>de</strong> aparecer. Aqui à preciso fazer<br />
uma diferenciaÅÇo: as pessoas humanas, reais, sÇo muito mais complexas; aos personagens<br />
sÇo sempre reduzidos, qualquer personagem <strong>de</strong> filme, <strong>de</strong> literatura, vai ter sempre alguns<br />
traÅos que se sobrepâem aos <strong>de</strong>mais, entÇo ele à muito mais compreensÉvel ao olhar alheio do<br />
que qualquer pessoa real. VocÖ passa a vida inteira ao lado <strong>de</strong> uma pessoa e nÇo consegue<br />
<strong>de</strong>screver exatamente como ela à, mas um personagem vocÖ conhece profundamente em<br />
poucas cenas. Da mesma forma que no teatro se colocam duas colunas e todo mundo acredita<br />
que está em Roma, existem convenÅâes: as primeiras cenas <strong>de</strong> um personagem (em cinema,<br />
em TV, em minissàrie) apresentam-no para o pëblico como bom, mau; à possÉvel reduzir as<br />
personagens a um <strong>de</strong>senho, coisa que nÇo à possÉvel <strong>de</strong> ser feita com pessoas reais, que nÇo<br />
sÇo tÇo simples. Por isso usei o truque com o Dr. Junot: se o tivesse apresentado como<br />
homossexual, na cabeÅa do pëblico ele seria apenas aquilo. A mesma coisa fiz com a aidàtica<br />
que foi apresentada como uma dona <strong>de</strong> casa exemplar, uma vizinha Ñtima e aÉ ela pega AIDS.<br />
AÉ o pëblico fica conflituado. Mas, se ela for <strong>de</strong> cara uma aidàtica, a rejeiÅÇo teria sido<br />
imediata. Dá para contornar tabu. VocÖ pega o pëblico pelo pà. ï a arte do contar. Seja no<br />
cinema, na tevÖ, no romance. Depen<strong>de</strong> da riqueza e da profundida<strong>de</strong> do olhar com que vocÖ<br />
enxergar as coisas. A arte do contar à tÇo po<strong>de</strong>rosa que, no teatro, por exemplo, vocÖ pega<br />
uma obra prima como Romeu e Julieta e, <strong>de</strong> cinquenta montagens, há umas horrorosas que<br />
vocÖ nem consegue assistir. ï a forma <strong>de</strong> contar.<br />
Como é o seu curso <strong>de</strong> roteiro?<br />
ï baseado na minha experiÖncia, nÇo tenho apostila. Mas digo para os alunos que o<br />
meu estilo nÇo à o ënico. Tenho muito cuidado em nÇo limitar o talento dos alunos.<br />
Que heranças Janete Clair <strong>de</strong>ixou sobre o contar?<br />
A tàcnica do capÉtulo. Em “Eu Prometo”, era a histÑria <strong>de</strong> uma fotÑgrafa que foi<br />
entrevistar um senador casado, pai <strong>de</strong> muitos filhos, e aÉ ela toma um porre, tem um beijo, eles<br />
tÖm um caso e ela fica grávida (ela à casada tambàm). Como ele à casado e ela nÇo sabe o que<br />
fazer, ela volta para o marido e diz que o filho à do marido. Quando vi isso, achei horrÉvel:<br />
“Janete, mas o pëblico nÇo vai gostar”. Ela me disse: “NÇo seja tonta; a ënica coisa que uma<br />
mulher nÇo po<strong>de</strong> fazer à maltratar o filho. Tudo o que fizer por amor ao filho será perdoado”.<br />
AÉ fiquei achando que isso nÇo era verda<strong>de</strong>, fiquei esperando a reaÅÇo do pëblico. Ninguàm<br />
reclamou da atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>la. Adoraram. Isso à resultado da forma como a Janete contou a<br />
251
histÑria: “meu filhinho vai nascer sem pai”... A sacanagem que ela faz com o marido acaba<br />
sendo uma proteÅÇo ao filho. Ninguàm reclamou <strong>de</strong> a mocinha ter tomado uma atitu<strong>de</strong> que na<br />
vida seria muito con<strong>de</strong>nável. SÑ nÇo po<strong>de</strong>, em sendo mÇe, maltratar o filho. Janete ensinava a<br />
nÇo ter pudor. Se vocÖ tiver pudor, vocÖ nÇo escreve uma boa novela. Porque à claro que vocÖ<br />
sabe que está apelando para o sensacional quando se escreve para telenovela. ï preciso nÇo<br />
ter vergonha <strong>de</strong> fazer. Faz parte do gÖnero. A novela sÑ à boa quando tem estas coisas. O<br />
pëblico po<strong>de</strong> dizer “Ah, isso nÇo existe”, mas ele está lá assistindo.<br />
Não ter pudor é mais difícil para a mulher escritora do que para o homem escritor?<br />
No comeÅo da telenovela, esta era uma arte <strong>de</strong> mulheres. Os homens tomaram conta<br />
<strong>de</strong>pois; mas quando eu cheguei, os gran<strong>de</strong>s nomes <strong>de</strong> telenovela eram Janete, Ivani Ribeiro...<br />
E muitos homens inclusive usavam pseudònimo feminino para escrever novela (Dias era<br />
Estela Cal<strong>de</strong>rÑn).<br />
Você i<strong>de</strong>ntifica nas suas novelas uma escrita feminina?<br />
Minha experiÖncia à feminina... Tenho muito medo <strong>de</strong> colocar uma etiqueta <strong>de</strong> gÖnero.<br />
Mas acho que a experiÖncia <strong>de</strong> ser mulher me permite um olhar diferente sobre o mundo. A<br />
maternida<strong>de</strong>... A mulher tem uma experiÖncia muito rica porque tem que lutar contra<br />
preconceitos hoje muito velados (quando eu era muito jovem, as barreiras contra a mulher<br />
eram muito claras ao nosso caminhar). Lima Duarte me mandou um presente com um bilhete<br />
que diz que esse trabalho em “Caminho” tinha permitido a ele, atravàs da índia, chegar ao<br />
outro, que à a base <strong>de</strong> toda a arte.<br />
Pelas experiÖncias que a mulher passa, o olhar <strong>de</strong>la à diferente do olhar do homem. O<br />
ponto <strong>de</strong> vista à outro. A Ivani tambàm tinha essa sensibilida<strong>de</strong> que a Janete tinha na<br />
composiÅÇo dos personagens. Todos os meus personagens sÇo carregados <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>,<br />
mesmo os vilâes. Alguàm me pediu que resumisse minha obra em uma palavra. Para mim à o<br />
humano. SÇo histÑrias humanas, possÉveis ou imaginárias, sÇo humanas.<br />
Você atribui à sua formação acadêmica essa cautela na forma com que vê o outro e com<br />
que dá o outro a conhecer ao seu público?<br />
Comecei com Direito e Filosofia, larguei tudo no meio. Vim fazer HistÑria, me formei,<br />
fiz o mestrado todinho e na hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a dissertaÅÇo, fui ser colaboradora da Janete.<br />
NÇo <strong>de</strong>fendi. A formaÅÇo em HistÑria me dá principalmente a noÅÇo <strong>de</strong> tempo, uma<br />
percepÅÇo dos vários tempos que habitam o mesmo tempo. Ver que hoje há pessoas que<br />
pertencem a daqui a 30 anos e pessoas do sàculo passado. Essa mistura me interessa muito.<br />
Eu implico muito com novela <strong>de</strong> àpoca porque todo mundo se veste <strong>de</strong> um mesmo modo, se<br />
comporta igual. E nÇo à verda<strong>de</strong>. Em todas as àpocas vocÖ tem o para trás e o para frente. A<br />
mistura que eu faÅo nas minhas novelas <strong>de</strong> vários universos e vários costumes (que muitos<br />
acham inverossÉmeis), eu digo que isso à o mundo. No mundo vocÖ vai encontrar ciganos,<br />
monarquistas, gente que acha que o mundo vai acabar em 2000 e tanto, todos os tipos. A<br />
HistÑria à fundamental no que escrevo porque me dá uma visÇo exata das muitas maneiras<br />
que as personagens po<strong>de</strong>m ver o mundo. Essa confluÖncia <strong>de</strong> tempos à o principal e a<br />
diversida<strong>de</strong> do mundo tambàm. Basta ligar a televisÇo para ver como o mundo à variado.<br />
VocÖ vÖ uma burca passando aqui, um topless ali, uma freira: a mistura me interessa muito.<br />
Acredito que minha maneira <strong>de</strong> mostrar essa mistura acaba criando no pëblico o interesse<br />
pelas outras culturas.<br />
252
Se nÜo fosse a formaéÜo em Histäria, vocá teria se cercado <strong>de</strong> tantas fontes na hora <strong>de</strong><br />
construir uma histäria?<br />
Meu temperamento nÇo permitiria que eu tivesse a arrogência <strong>de</strong> achar que conhecia<br />
<strong>de</strong> antemÇo. Se eu nÇo tivesse a HistÑria, eu faria com mais dificulda<strong>de</strong>. Sempre falo com<br />
muitas pessoas para conhecer os muitos lados da questÇo. ï claro que numa novela o que se<br />
faz à uma representaÅÇo do outro, nÇo dá para se aprofundar. Da mesma forma, quando<br />
aparece o Nor<strong>de</strong>ste nas novelas, à Ñbvio que há uma reduÅÇo na maneira como a regiÇo e seus<br />
habitantes sÇo apresentados. VocÖ vai pegar algumas caracterÉsticas mais fortes. Foi o que fiz<br />
com “O Clone”: algumas caracterÉsticas mais fortes foram misturadas ali para criar uma<br />
histÑria interessante. Em “Caminho das índias”, a mesma coisa. As caracterÉsticas estÇo lá,<br />
nÇo sÇo inventadas nÇo. Todas elas existem. VocÖ vÖ agora o TalebÇ impondo 60 chibatadas a<br />
uma jornalista que entrevistou um cara que falou <strong>de</strong> sexo. As pessoas acham que isso nÇo<br />
existe.<br />
Escutar as versèes dos outros sobre os assuntos e nÜo se colocar em posiéÜo soberana<br />
sobre estes saberes parece uma postura acadámica...<br />
O meu preparo à todo acadÖmico, à muito cuidadoso. Mas <strong>de</strong>pois eu pego aquilo tudo<br />
e transformo em histÑria. Por isso eu fico passada quando vem alguàm e diz que o que escrevi<br />
à inverossÉmil: ninguàm imagina como foi cuidadosa aquela construÅÇo. E eu nÇo <strong>de</strong>sconstruo<br />
nÇo. VocÖ po<strong>de</strong> ver que tanto os muÅulmanos quanto os indianos ficaram muito felizes com o<br />
retrato que fiz <strong>de</strong>les. Claro que eles sabem que nem todos os indianos sÇo assim, mas que o<br />
que está lá à normal.<br />
Quando vocá escreveu a sinopse <strong>de</strong> “O Clone”, a trama foi situada no Marrocos ou a<br />
<strong>de</strong>finiéÜo do paâs veio <strong>de</strong>pois?<br />
Primeiramente eu pensei no Egito. Mas nÇo me importava o paÉs. Pensei no Egito, fui<br />
ao Cairo. O muÅulmano tem muitas faces: tem o fundamentalista, e diferentes interpretaÅâes<br />
do CorÇo. Para nÇo dizerem que a gente privilegiou um em <strong>de</strong>trimento do outro, vamos<br />
homenagear a todos. Vamos pegar as caracterÉsticas do universo muÅulmano, sem uma<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a essa ou aquela facÅÇo. Estava tudo certo no Cairo, nosso produtor foi lá para<br />
arrumar tudo pouco antes <strong>de</strong> a gravaÅÇo comeÅar e acabou sendo chamado por um Ministro <strong>de</strong><br />
Estado. Ele compareceu diante do Ministro sem saber o que tinha acontecido. O Ministro<br />
perguntou quem à Nazira e botou diante <strong>de</strong>le um jornal que um muÅulmano daqui tinha<br />
mandado para lá com uma reportagem com a Eliane Giardini, a atriz que faria a personagem<br />
Nazira. No texto ela dizia que estava muito contente com o papel porque atravàs <strong>de</strong>le ela<br />
po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>nunciar as limitaÅâes impostas äs mulheres muÅulmanas. Por causa <strong>de</strong>sta entrevista<br />
nÑs fomos proibidos <strong>de</strong> gravar no Egito. E aÉ fomos para o Marrocos que tem mais tradiÅÇo<br />
como locaÅÇo <strong>de</strong> filmagem. E aÉ foi mais fácil para nÑs.<br />
Mas o Marrocos nÜo seria um paâs muéulmano mais oci<strong>de</strong>ntal, ou seja, menos parecido<br />
com o oriente que a histäria queria mostrar?<br />
Depen<strong>de</strong> <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vocÖ vai. Por isso a gente localizou a histÑria em Fez. ï claro que a<br />
gente nÇo podia gravar na Arábia Saudita. A gente tinha que ter um paÉs muÅulmano concreto<br />
como locaÅÇo. E aÉ optamos por fazer o mundo muÅulmano em sÉntese. No Marrocos eu vi a<br />
feira <strong>de</strong> venda <strong>de</strong> noivas e o casamento temporário. SÇo <strong>de</strong>terminadas tribos que fazem isso:<br />
vocÖ vai a essa feira e compra a noiva por um ano; se for bom, se <strong>de</strong>r certo, vocÖ renova o<br />
253
contrato, se nÇo, vocÖ <strong>de</strong>volve a noiva e troca por outra. ï o casamento temporário. NÇo à sÑ<br />
coisa <strong>de</strong> uma tribo. Um dos segmentos do islamismo usa o casamento temporário como algo<br />
mandado pelo profeta. Outros segmentos nÇo aceitam isso como algo inspirado no profeta.<br />
NÑs fomos almoÅar na casa do nosso guia e havia lá uma garotinha que lavava toda a louÅa<br />
em pà num banquinho: ela tinha sido comprada numa feira! O Egito me parece muito mais<br />
parecido com o oci<strong>de</strong>nte e, no entanto, no Cairo, um engenheiro que era o pai do meu guia<br />
tinha mandado fazer a castraÅÇo <strong>de</strong> todas as filhas. Eu conversei com mulheres <strong>de</strong> vàu,<br />
cobertas <strong>de</strong> burca, no Marrocos e no Cairo, e elas disseram que a castraÅÇo estava certo, que<br />
fariam nas filhas porque era mais higiÖnico. E que usar a burca era a melhor coisa do mundo<br />
porque toda mulher era sedutora e linda. Claro porque o homem constrÑi a imagem que quiser<br />
para a mulher sob a burka. Da mesma maneira que a gente nÇo toma o Brasil pelo Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, no Marrocos e no Cairo, querÉamos retratar a cultura muÅulmana sem localizá-la<br />
politicamente (embora a elite seja igual em qualquer lugar do mundo). O engenheiro que<br />
mandou castrar as filhas morava no Cairo e nÇo numa cida<strong>de</strong> do interior. ï claro que esta nÇo<br />
à a mentalida<strong>de</strong> que predomina ali, mas ela tambàm está presente ali. Quando fizemos “O<br />
Clone”, eu tive um encontro com umas jornalistas na embaixada brasileira no Cairo e elas<br />
usavam lenÅo (à o hábito no Egito) e isso era uma postura polÉtica. Naquele momento, o<br />
retorno ao que era tradicional era uma atitu<strong>de</strong> polÉtica contra a colonizaÅÇo, contra o que<br />
tentavam impor <strong>de</strong> fora. Elas estavam dizendo nÇo a uma dominaÅÇo estrangeira e querendo<br />
retomar os avanÅos da socieda<strong>de</strong> egÉpcia a partir dos valores tradicionais daquela socieda<strong>de</strong>.<br />
O Marrocos nÇo à feito sÑ <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s. Quando vocÖ vai para Fez, por exemplo, sÇo<br />
ruelas pequenininhas naquele mercado on<strong>de</strong> se passava a nossa histÑria (a gente misturava as<br />
imagens <strong>de</strong> lá com as imagens feitas no Projac). O tio Ali representava a pessoa mais liberal.<br />
Mas mesmo a pessoa mais liberal tem um vÉnculo com a sua cultura, como ele tinha. O<br />
Mustafá já era mais fundamentalista. Mas o mais importante à que a novela nÇo foi concebida<br />
para retratar o Cairo ou o Marrocos. Seria impossÉvel.<br />
Alguåm observou que faltavam mÜes em “O Clone”. A ausáncia era intencional?<br />
Claro que tinha que faltar mÇe. O que as pessoas nÇo enten<strong>de</strong>m à que, quando eu<br />
comeÅo uma histÑria, eu penso num tema e a partir <strong>de</strong>le eu vou <strong>de</strong>senrolando. “O Clone” à o<br />
homem que nasce sem mÇe. EntÇo nÇo podia ser uma histÑria cheia <strong>de</strong> mÇe. O exagero da<br />
falta <strong>de</strong> mÇe era para que o pëblico percebesse essa falta <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong>. A clonagem parte a<br />
famÉlia. A Deusa era mÇe, ela teve o filho, nÇo foi por acaso que ela teve esse nome. Embora<br />
que na novela o Deus fosse o Albieri. Mas a falta da mÇe à puramente intencional. Quando se<br />
diz mÇe, remete-se a uma forma da natureza. A clonagem nÇo à isso. Na clonagem, ela nÇo à<br />
mÇe porque ela nÇo participa, ela à mÇe <strong>de</strong> aluguel, embora se ache mÇe. A mÇe foi retirada da<br />
histÑria.<br />
Havia <strong>de</strong>poimentos em “Amårica”?<br />
Lá a gente usou o programa do Dudu, filho do Roberto Carlos. NÇo fui eu que<br />
inventei, o programa já existia. Quando ele me escreveu dizendo que tinha o programa eu<br />
achei Ñtimo porque era exatamente o que eu ia fazer: trazer o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> pessoas que<br />
conseguiram se superar suas <strong>de</strong>ficiÖncias fÉsicas. Mas a gran<strong>de</strong> campanha do Jatobá, que era<br />
um personagem cego, foi trazer as reivindicaÅâes dos <strong>de</strong>ficientes. Como quando o Jatobá<br />
reclamava <strong>de</strong> que, num restaurante, o garÅom nÇo se dirige a ele perguntando o que quer e sim<br />
ä pessoa do lado, ou quando ele nÇo tinha como atravessar a rua. Essa à a verda<strong>de</strong>ira<br />
campanha porque nÇo fica no blábláblá, à um drama vivido. O <strong>de</strong>poimento materializa na tela<br />
para o espectador essa escuta do outro...<br />
254
Como é feita a coleta dos <strong>de</strong>poimentos?<br />
O meu método é muito antropológico. Faço contado direto com os informantes, <strong>de</strong>pois eu<br />
<strong>de</strong>ixo com as pesquisadoras, mas primeiro vou eu. É uma escuta em primeira mão. Levo a<br />
pesquisadora junto, ela já vê o que eu quero e <strong>de</strong>pois ela vai sozinha porque eu tenho que<br />
escrever. Ela fica me alimentando <strong>de</strong> dados, mas o vínculo já está feito. A relação com os<br />
informantes geralmente é muito fácil, porque são pessoas que ninguém quer escutar. Quando<br />
eu fui fazer os drogados, eles não queriam que a gente mostrasse o rosto <strong>de</strong>les, então eu<br />
inventei aqueles recortes nos olhos. Mas eles queriam muito falar. Todo mundo escuta o<br />
psiquiatra, escuta a polícia, mas não os escuta. Então eu pergunto o que querem que eu diga<br />
sobre eles. Não é a minha percepção <strong>de</strong>les, é a voz <strong>de</strong>les, como percebem a condição <strong>de</strong>les. É<br />
por isso que eu digo que o bacana é que a novela expressa o sentimento das pessoas. Fica<br />
mais nítido quando é uma campanha, mas ela expressa essa carência quando conta histórias <strong>de</strong><br />
amor, histórias humanas, histórias que fazem rir... Você coloca uma Norminha e um Seu<br />
Abel: quem não conheceu alguém como eles? A gente fala <strong>de</strong> algo que é familiar, que está ali,<br />
em algum lugar na lembrança das pessoas.<br />
Você diz que a sua experiência é o que catalisa essas histórias que acabam virando<br />
novela, mas existe alguma fonte literária inspiradora?<br />
Gosto muito <strong>de</strong> ler. Eu li muito. Des<strong>de</strong> criança, até por morar no Acre on<strong>de</strong> eu não saía<br />
muito, tinha um contato limitado com a cida<strong>de</strong>. Histórias fantásticas era só o que tinha ali. É<br />
claro que tudo o que eu li excitou muito a minha imaginação. Balzac, Dostoievski... Histórias<br />
que me influenciaram muito foram as histórias <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l que a gente ficava escutando<br />
domingo no mercado, aquelas histórias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s vidas que iam lá em cima e <strong>de</strong>pois caíam.<br />
Eu gosto muito <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l até hoje. Tem muito <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l nas minhas novelas, sem dúvida.<br />
Você vai treinando com os gran<strong>de</strong>s escritores da literatura um olhar mais abrangente para o<br />
mundo porque um livro te traz a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver muitas vidas, <strong>de</strong> ter muitas<br />
experiências. Cada livro que se lê traz o olhar <strong>de</strong> alguém, o mundo como ele viu, a maneira<br />
como ele sentiu as coisas. Vai abrindo janelas muito ricas que você não estava vendo, não<br />
estava percebendo aquele ângulo. Você não tinha do seu ponto <strong>de</strong> vista aquela visão da vida e<br />
o olhar que um escritor te traz, seja num livro <strong>de</strong> memória, seja num romance. Entrar na<br />
imaginação do autor...<br />
Como você consegue administrar imaginação, fantasia, realismo e verossimilhança?<br />
Para mim, é tão natural fazer isso que eu me surpreendo quando me perguntam como é<br />
que eu faço isso. Esse é o meu estilo. É o que o Zuenir Ventura traduziu muito bem: é a<br />
mistura do excessivamente realista com o fantasioso. Talvez eu ache que a vida é assim. Eu<br />
não sei dizer como é que eu equilibro isso, porque para mim é tão natural ser assim... Eu é que<br />
fico curiosa em saber como é não ser assim. Meu texto já sai misturado. O que são as<br />
pessoas? Ela trabalha todo dia, ela vai ao banco, ela tem contas a pagar, ela tem o pé no chão.<br />
Mas essa mesma pessoa sonha, tem fantasias absurdas às vezes, ela se apaixona pelo<br />
imaginário, ela tem um sonho <strong>de</strong> montar um negócio <strong>de</strong> sucesso, <strong>de</strong> ganhar na loteria. E essa<br />
mesma pessoa também vive uma vida prática. Eu acho impossível viver sem sonhar e sem ter<br />
a fantasia. Até porque tudo que você vai fazer, você tem que sonhar antes. Todas as gran<strong>de</strong>s<br />
realizações foram um sonho primeiro. E na vida também. As pessoas sonham em ser felizes e<br />
por isso fazem coisas que acreditam que irão conduzi-las à felicida<strong>de</strong>, mesmo que <strong>de</strong>pois<br />
vejam que foram no sentido contrário, não importa. Acho muito interessante essa dinâmica no<br />
ser humano; vejo a humanida<strong>de</strong> assim e talvez por isso essa combinação entre realismo e<br />
255
fantasia apareÅa <strong>de</strong> forma tÇo nÉtida em meus trabalhos. Para quem acha que as pessoas tÖm<br />
que ser apenas realistas ou fantasiosas, a verossimilhanÅa nas minhas novelas talvez fique<br />
ameaÅada aqui ou ali. Mas eu vejo as coisas <strong>de</strong> uma forma bem dialàtica. NÇo à isso ou<br />
aquilo. ï tudo isso: isso e aquilo. Muitas vezes à difÉcil para as pessoas ver estes opostos<br />
juntos. NÑs vivemos a tradiÅÇo grega da lÑgica formal que diz que à isso ou aquilo. Para o<br />
indiano à muito simples porque ele à dialàtico <strong>de</strong> base. Tanto que eles nÇo tÖm nem o sim nem<br />
o nÇo, tÖm aquele movimento <strong>de</strong> cabeÅa que expressa que o sim contàm o nÇo e o nÇo contàm<br />
o sim. Para eles à simples compreen<strong>de</strong>r a valorizaÅÇo da imaginaÅÇo como uma nÇo negaÅÇo<br />
da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser realista. Para nÑs, uma coisa sempre exclui a outra. Embora teoricamente<br />
se fale <strong>de</strong>ssa conjunÅÇo dos opostos, na prática a coisa nÇo funciona assim. As pessoas<br />
percebem as coisas <strong>de</strong> uma forma partida, exclu<strong>de</strong>nte.<br />
Essa sua maneira <strong>de</strong> ver a história tem que ser compartilhada com o diretor da novela<br />
para que essa sintonia permita a materialização daquilo que você concebeu. Você acha<br />
que o diretor chega a ser um co-autor?<br />
NÇo. O diretor cria a partir do texto do autor, do que está dado. O resultado, sim, à um<br />
resultado <strong>de</strong> equipe. A base à a histÑria, que à escrita pelo autor. A criaÅÇo <strong>de</strong> um diretor à<br />
autoral tambàm, mas à a partir do texto, e nÇo po<strong>de</strong> ser contra o texto. A cêmera nÇo escreve o<br />
texto e todas as vezes que um diretor tenta mudar o texto com a cêmera dá errado. Mas<br />
quando ele cria a partir do texto, à fantástico. Ele tem que estar apaixonado pela histÑria. O<br />
autor escreve em palavras e ele transforma em visual, ele à o responsável pela forma como<br />
aquela narrativa vai chegar atà o pëblico. Ele à um maestro que vai orquestrar, por exemplo, a<br />
roupa que um personagem está usando. Eu, como autora, posso dizer que ela estará usando<br />
um vestido rico ou um vestido pobre, mas quem vai estar no estëdio pra ver o que foi<br />
concebido como um vestido rico ou pobre à ele, o diretor. Um diretor po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir uma<br />
histÑria se nÇo estiver sintonizado com o autor. Isso quase me aconteceu em “Amàrica”. E era<br />
um diretor que já tinha trabalhado comigo em “O Clone”. Acontece que o diretor tem que<br />
fazer o personagem que está escrito; ele nÇo po<strong>de</strong> inventar um personagem ao contrário do<br />
que está escrito. O personagem tem que ter uma coerÖncia: se eu faÅo uma mocinha do<br />
subërbio que quer atravessar um <strong>de</strong>serto para chegar aos Estados Unidos, essa pessoa tem que<br />
ter muito gás, muita vibraÅÇo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, ela nÇo po<strong>de</strong> ser uma chorona. Uma pessoa que<br />
chorasse daquele jeito nÇo ia ä esquina. Ele quis fazer um personagem diferente da que estava<br />
escrito, e isso comprometeria a coerÖncia do personagem. AÉ se <strong>de</strong>u o conflito. Ninguàm po<strong>de</strong><br />
atravessar um <strong>de</strong>serto (eu pesquisei muito, entrevistei muita gente e vi que elas sÇo movidas<br />
por uma esperanÅa absurda, incompreensÉvel) sendo tÇo chorona. A Sol olhava para o homem<br />
que ela amava e chorava, ninguàm entendia por quÖ. Quem à que quer um amor que faz<br />
chorar?<br />
O autor nÇo tem evi<strong>de</strong>ntemente o controle sobre tudo (tem coisas que vocÖ vÖ e nÇo<br />
reconhece), mas dizer que o diretor à um co-autor à uma expressÇo forte. Tem uma<br />
<strong>de</strong>svantagem na telenovela que à o fato <strong>de</strong> o pëblico nÇo ter acesso ao script. VocÖ compra<br />
livros com o script <strong>de</strong> peÅa <strong>de</strong> teatro e <strong>de</strong> filmes, o que permite dizer, por exemplo, que a peÅa<br />
à boa, mas foi mal montada, ou ao contrário, a peÅa à ruim mas foi tÇo bem montada que o<br />
resultado satisfaz, distrai. Na televisÇo vocÖ nÇo tem isso, o que à terrÉvel. Atà porque as<br />
pessoas que querem escrever para televisÇo nÇo tÖm referÖncia do que já foi feito. Mas sÇo<br />
200 capÉtulos e se fossem publicados dariam bÉblias! Po<strong>de</strong>riam publicar pelo menos um<br />
capÉtulo ou outro, compondo uma semana ou um mÖs, sei lá. Eu acho que faz muita falta para<br />
quem quer seguir essa carreira nÇo ter acesso ao script. Porque vocÖ apren<strong>de</strong> lendo script.<br />
Com a falta <strong>de</strong> acesso ao texto, quando a novela nÇo vai bem, a culpa sempre recai sobre o<br />
autor e muitas vezes ele po<strong>de</strong> nÇo ser o culpado daquele problema. A coisa po<strong>de</strong> ter sido mal<br />
256
conduzida. No cinema vocÖ visualiza muito claramente que a histÑria à boa, mas foi mal<br />
dirigida, ou mal interpretada, ou o elenco foi mal escolhido. Aqui nÇo se tem crÉticos<br />
capacitados para avaliar a novela, a televisÇo, como se tem no cinema. Tanto que os crÉticos<br />
<strong>de</strong> televisÇo sÇo incapazes <strong>de</strong> fazer uma análise <strong>de</strong> uma novela fazendo a separaÅÇo das partes<br />
(das especializaÅâes profissionais) que compâem uma novela. Falar da trilha sonora, da<br />
interpretaÅÇo... Tudo fica por conta do autor. O crÉtico <strong>de</strong>veria ser alguàm capaz <strong>de</strong> diferenciar<br />
os muitos <strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> novela. Tudo tem que existir em funÅÇo da base que à a historia,<br />
mas o autor nÇo tem controle sobre todas as partes que vÇo ao ar. Em “Amàrica”, por<br />
exemplo, eu fui contra aquela mësica <strong>de</strong> abertura, que era tristÉssima! VocÖ está falando <strong>de</strong><br />
sonho, po<strong>de</strong> o sonho nÇo dar certo no final, mas quem sonha acredita que vai dar certo, senÇo<br />
ele nÇo sonha. Eu queria <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o comeÅo a mësica da Ivete Sangalo que acabou ficando<br />
<strong>de</strong>pois. O diretor quis a outra, que acabou vencendo, mas à claramente perceptÉvel como a<br />
novela <strong>de</strong>colou <strong>de</strong>pois que a mocinha parou <strong>de</strong> chorar e <strong>de</strong>pois que a mësica <strong>de</strong> abertura foi<br />
trocada. Tudo tem que ser harmònico. A mësica tambàm constrÑi a cena. A mësica da<br />
Norminha, que eu <strong>de</strong>scobri na internet ajudou muito a construir o personagem e as cenas em<br />
que ele aparecia (a mësica tem o espÉrito da Norminha). Mas o autor nÇo tem o domÉnio sobre<br />
toda a trilha. A mësica tem que vestir a histÑria, muitas vezes a mësica tem funÅÇo<br />
dramatërgica (ela po<strong>de</strong> substituir uma cena)... As mësicas indianas, por exemplo, ajudaram a<br />
construir o encantamento da novela. Uma mësica errada ali, como aconteceu em “Amàrica”,<br />
arrebenta a cena. Porque <strong>de</strong>smente o que o pëblico está vendo. No caso do tema da Maya com<br />
o Bahuam, a mësica que escolhi para o casal, cantada pela Nana Caymmi, sÑ entrou <strong>de</strong>pois<br />
que eles se separam porque a letra fala em separaÅÇo. NÇo se po<strong>de</strong> tocar uma mësica que parte<br />
do “NÇo se esqueÅa <strong>de</strong> mim” se o casal está junto. No comeÅo tinha uma mësica indiana e<br />
<strong>de</strong>pois foi substituÉda pela da Nana. O sucesso à resultado <strong>de</strong> um encaixe on<strong>de</strong> todos os<br />
ingredientes da novela vestem a histÑria. A mësica, a escalaÅÇo (uma escalaÅÇo errada po<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>rrubar uma histÑria boa), a interpretaÅÇo (se na cena do balcÇo em Romeu e Julieta, a atriz<br />
<strong>de</strong>r um sorriso que seja, acabou, o Romeu vira um babaca, porque esse gesto muda toda a<br />
intenÅÇo do texto sem ela dizer uma palavra; a ironia instaurada pelo sorriso faz com que ela<br />
<strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser a Julieta e ele <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser o Romeu do texto).<br />
Houve uma preocupaéÜo eståtica em “Caminho das Éndias” para que a novela tivesse<br />
semelhanéa com os filmes <strong>de</strong> Bollywood?<br />
Teve. Nesse caso, foi uma coisa pensada por mim e pelo diretor. Os indianos sÇo<br />
muito musicais. Em Bollywood, tudo à musical. Em qualquer tipo <strong>de</strong> filme a aÅÇo para e todo<br />
mundo sai danÅando. ï muito engraÅado, mas se vocÖ vai mostrar a cultura indiana, esse à um<br />
traÅo que nÇo po<strong>de</strong> faltar. A fantasia <strong>de</strong>les à Bollywood.<br />
Vocá escreve o personagem pensando num ator?<br />
NÇo, porque eu acho que isso limita muito, as caracterÉsticas daquele ator acabam<br />
interferindo no personagem. Logo no comeÅo eu nÇo penso no ator, mas <strong>de</strong>pois, quando<br />
escrevo os primeiros capÉtulos, eu comeÅo a pensar que ator faria melhor aquele personagem.<br />
Tem gente que usa o màtodo oposto, já comeÅa escrevendo para o ator. Eu nÇo: gosto <strong>de</strong> criar<br />
uma pessoa, aÉ à que eu vou ver quem vai conduzir melhor aquela pessoa. Depois que o ator<br />
assume, as caracterÉsticas <strong>de</strong>le se somam äs do personagem, e eu vou conduzindo o<br />
personagem utilizando tambàm os recursos <strong>de</strong>le. Uma novela à mais do que um texto, à um<br />
trabalho que exige aÅÇo, as personagens agem. Num livro o autor po<strong>de</strong> ser reflexivo o tempo<br />
todo, mas numa novela, nÇo. As histÑrias que dÇo novela sÇo aquelas que po<strong>de</strong>m se <strong>de</strong>sdobrar<br />
257
em situações, não se po<strong>de</strong> fazer uma novela contemplativa, reflexiva. Proust não dá uma<br />
novela.<br />
Se a novela não fosse tão longa (são 200 capítulos com 34 páginas cada um), ela se<br />
sustentaria como texto?<br />
Sim, assim como uma minissérie se sustenta como texto. Agora, na novela é mais<br />
complicado: se você publicar a novela num jornal, em 200 edições, (claro que ela vai ser<br />
escrita <strong>de</strong> uma forma diferente <strong>de</strong> um script criado pra ser gravado), ela se sustenta. Mas uma<br />
história em que se tem que apostar na extensão não po<strong>de</strong> ser comparada a um romance, ou<br />
querer que esse tipo <strong>de</strong> narrativa tenha as mesmas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um romance, da narrativa <strong>de</strong><br />
um filme. A novela é um rocambole mesmo. Na convenção do folhetim, as coisas mudam,<br />
acontecem coisas sensacionais, os personagens mudam <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> e o público aceita<br />
porque folhetim é isso. É outra estética. Eu sei que tenho fama <strong>de</strong> inverossímil junto aos<br />
críticos, mas o gran<strong>de</strong> público não acha isso, ele <strong>de</strong>tecta o lado humano, é isso que o público<br />
diz nas pesquisas. Os críticos parecem querer <strong>de</strong>scobrir uma coisa para dizer e ficam<br />
reclamando do tempo que o personagem leva para chegar à Índia. O que cabe à crítica é dizer<br />
se a história está bem construída ou não, se tem fôlego ou não, é um outro tipo <strong>de</strong> análise.<br />
Acho um absurdo criticar que todo mundo fala português na Índia. Mas os críticos não<br />
cobram isso do cinema, das séries americanas que vêem na tevê.<br />
Uma vez uma crítica estranhava como a Suelen, uma balconista mo<strong>de</strong>sta, tinha tantos<br />
vestidos e estava sempre com roupa na moda...<br />
Porque é novela! Tem gente que vê novela pra <strong>de</strong>scobrir erro <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>. O<br />
charme para elas é viver o jogo dos sete erros. Se eu gostar do que eu estou vendo, o erro <strong>de</strong><br />
continuida<strong>de</strong> passa a ser irrelevante. A cobrança sobre o passaporte da Camila era uma<br />
loucura: passaporte não é um documento insubstituível, ela queimou um e tirou outro. Se ela<br />
conseguiu voltar é porque possivelmente ela tirou outro, não?<br />
258
ANEXO B - CAPÉTULO 1 DE “CAMINHO DAS ÉNDIAS”<br />
CENA 1. TAKES DE VARANASI.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 2. VARANASI. EXTERIOR. AMANHECER– C/ PASSAGEM DE TEMPO<br />
SHANKHAR OFERECENDO UMA POOJA ÀS AGUAS DO RIO<br />
259<br />
SHANKHAR Mãe Ganga! leva nas tuas águas toda a impureza do meu coração e da<br />
minha mente, as dúvidas que me atormentam, as ilusões que me<br />
cegam (CANTA) Jaya Jaya Gange jaya Hara Gange/ Jaya Jaya Gange<br />
jaya Hara Gange bolo (FALA) gange matar Ki (BATENDO<br />
PALMAS SOBRE A CABEÇA) Jay!<br />
OPASH COM RAJ E AMITHAB MENINOS. PÁRAM. VISÃO DO GANGES, COM SEU<br />
MOVIMENTO COTIDIANO: GENTE SE BANHANDO, OFERECENDO POOJAS. BAHUAN<br />
MENINO TAMBÉM, VESTIDO COM ANDRAJOS<br />
OPASH (EMOCIONADO) vejam, o Ganga. O rio sagrado! Antigamente ele<br />
corria no céu, e a vida ia acabar, porque o sol estava torrando a terra<br />
inteira.<br />
BAHUAN VAI SE APROXIMANDO, CURIOSO. PARA OUVIR TAMBÉM<br />
OPASH As pessoas pediram socorro e Deus mandou o Ganga <strong>de</strong>scer para a<br />
terra. Mas ele vinha com tanta força que quando batesse na terra ela ia<br />
se partir em mil pedaços. Então, Shiva fez as águas caírem bem<br />
<strong>de</strong>vagar pelos seus cabelos...<br />
RAJ Maa Ganga!<br />
OPASH Hã! mãe Ganga! beber a água sagrada é como se alimentar no peito<br />
da própria mãe! tchalô! venham...<br />
OPASH VAI INDO COM AMITHAB. RAJ PÁRA, OLHANDO BAHUAN, CURIOSO COM SUA<br />
APARÊCIA MISERÁVEL. OPASH SE VOLTA<br />
OPASH Raj! tchalô!<br />
REAÇÃO DELE VENDO RAJ TOCANDO BAHUAN<br />
OPASH He Rama! não, não, Raj!<br />
OPASH VEM FURIOSO, AFASTA RAJ DE BAHUAN COMO SE O AFASTASSE DE UM<br />
GRANDE PERIGO.<br />
OPASH você tocou nele, você está poluído!<br />
SHANKAR (SE APROXIMA, INDIGNADO) Tchup karô! cale essa boca, Opash!
OPASH é um intocável, Shankar! você não está vendo? um dalit!<br />
SHANKAR (ABRAÇANDO O MENINO) baguan keliê, por Deus! todo mundo é<br />
igual! ninguém é intocável!<br />
260<br />
OPASH (PARA OS EM VOLTA) arê baba! ele não sabe o que diz! um<br />
intocável igual a mim! eu sou um vaishya, Shankar! um comerciante!<br />
eu tenho casta! (RUDE, PARA BAHUAN) se afasta, menino!<br />
SHANKAR SEGURA BAHUAN FIRMEMENTE PELOS OMBROS, MANTENDO-O DIANTE DE<br />
OPASH<br />
SHANKAR o <strong>de</strong>us que está em você, também está nele, Opash!<br />
Você está mandando Deus sair do seu caminho? Está?<br />
OPASH VAI PUXANDO RAJ, NUM IMPULSO, DESVIANDO DO MENINO<br />
OPASH ulucapatá! Gran<strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r dos burros! Tchalô, Raj! venha se purificar!<br />
SE AFASTAM EM DIREÇÃO ÀS ÁGUAS<br />
OPASH Quando Brahma fez o mundo, ele dividiu os homens em 4 castas, em<br />
quatro qualida<strong>de</strong>s gente: da sua boca ele tirou os brâmanes<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 3. TAKES RÁPIDOS ILUSTRANDO AS CASTAS<br />
DE MODO A MOSTRAR, NA AMBIENTAÇÃO DE CADA UMA DELAS, UM POUCO DO<br />
UNIVERSO MÁGICO DA ÍNDIA: SACERDOTES, PROFISSÕES MODERNAS<br />
OPASH (OFF) que são sacerdotes, os professores,... os que trabalham com a<br />
cabeça!<br />
TAKES MOSTRANDO SHATRIAS<br />
OPASH (OFF) dos braços <strong>de</strong> Brahma nasceram os Shatryas. Eles são os<br />
políticos, os governantes, os militares,<br />
TAKES MOSTRANDO COMERCIANTES<br />
OPASH (OFF) Depois Brahma tirou das suas coxas os Vaishyas... são os<br />
comerciantes, os que fazem a riqueza, a prosperida<strong>de</strong><br />
TAKES MOSTRANDO OS SUDRAS<br />
OPASH (OFF) dos pés ele tirou os sudras, os que trabalham com os braços,<br />
com a força física, lavrando a terra, tirando as águas dos poços<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 4. GANGES. EXTERIOR. DIA<br />
OPASH, RAJ SE PURIFICANDO. AMITHAB<br />
RAJ e os dalits, baldi?<br />
OPASH os dalits... como aquele menino... eles não nasceram
FUSÃO PARA<br />
<strong>de</strong> Brahma!<br />
CENA 5. TAKES MOSTRANDO INTOCÁVEIS<br />
SOBRA AS IMAGENS DE INTOCÁVEIS EM VÁRIAS SITUAÇÕES<br />
OPASH (OFF) eles são a poeira embaixo dos pés <strong>de</strong> Brahma. Eles são<br />
impuros porque trabalham com tudo o que é impuro nesse mundo:<br />
lavam os banheiros, lidam com os mortos... Por isso não se po<strong>de</strong> tocar<br />
neles! não se po<strong>de</strong> tocar nem na sombra <strong>de</strong>les! Não se po<strong>de</strong> pisar nas<br />
pegadas <strong>de</strong>les<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 6. GANGES. EXTERIOR. DIA<br />
OPASH, RAJ E AMITHAB MENINOS<br />
OPASH ...senão a pessoa fica impura também!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 7. VARANASI. EXTERIOR. DIA<br />
SHANKAR E BAHUAN VÃO CAMINHANDO, SE AFASTANDO DALI<br />
261<br />
SHANKAR mentira! não acredite nele, isso não é verda<strong>de</strong>! tudo o que existe no<br />
mundo, as plantas as montanhas, os bichos, as pessoas, tudo está vivo,<br />
porque tudo é Deus! como é seu nome?<br />
BAHUAN HESITA<br />
SHANKAR diga...!<br />
BAHUAN (TIMIDO) Bahuan...<br />
SHANKAR on<strong>de</strong> é que você mora? on<strong>de</strong> é que estão seus pais? hem?<br />
BAHUAN eles beberam água no poço dos homens que tem casta... aí eles vieram<br />
e botaram fogo neles...<br />
SHANKAR você não tem pais, não tem casa! (HESITA E DIZ) tik hai! acabou o<br />
problema! você não está mais sozinho... Eu sou Shankar, sou físico e<br />
moro no Rajastão. Estou viúvo e não tive filhos... Você vem comigo!<br />
<strong>de</strong> hoje em diante vou ser seu pai, seu baldi... Diga: baldi! diga!<br />
BAHUAN Baldi...<br />
SHANKAR VENDO A IMAGEM E SE APROXIMANDO DELA<br />
SHANKAR veja! lord Ganesha está perto <strong>de</strong> nós! (TIRA AS PÉTALAS DE UM<br />
SAQUINHO QUE TEM NA CINTURA) tik! ainda tenho pétalas<br />
aqui...<br />
BAHUAN ENCHE AS MAOZINHAS COM AS PÉTALAS<br />
SHANKAR ele é o removedor dos obstáculos! não esqueça nunca: tudo o que<br />
acontece perto <strong>de</strong> Lord Ganesha está <strong>de</strong>stinado a prosperar e a ser<br />
feliz!
PASSAGEM DE TEMPO: SHANKAR VAI SE AFASTANDO COM BAHUAN PELA MîO.<br />
FECHA NOS PïS DE SHANKAR E BAHUAN MENINO CAMINHANDO. è MEDIDA QUE<br />
CAMINHAM, OS PïS DE BAHUAN VAO FICANDO MAIORES, PASSANDO A IDïIA DE QUE<br />
CRESCEU AOS CUIDADOS DE SHANKAR. LEGENDA: ANOS DEPOIS<br />
CORTE PARA<br />
CENA 8. FESTIVAL. EXTERIOR. DIA- ADENDO<br />
ABRE NOS PïS DE BAHUAN ADULTO. MAYA DANóANDO, ALEGREMENTE. CORTE<br />
PARA BAHUAN, CARREGANDO UMA MALETA, (NîO SE VEM NESSA CENA) ABRE<br />
ACAMINHO <strong>ENTRE</strong> A MULTIDîO, ATï LOCALIZAR SHANKAR, QUE SE DIVERTE<br />
TAMBïM. REAóîO DE SHANKAR AO V-LO. . BAHUAN TOCA OS PïS DE SHANKAR. OS<br />
<strong>DOIS</strong> SE ABRAóAM.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 9. CANTO DO FESTIVAL DIA<br />
SHANKAR PUXANDO BAHUAN PARA UM CANTO<br />
SHANKAR tchatchatchatcha! aqui está vocÖ, Bahuan! (FITA BAHUAN,<br />
ORGULHOSO) Narayana! bravo! eu tenho orgulho do que vocÖ se<br />
tornou, filho! doutor em informática,hem?<br />
BAHUAN PHD, baldi! PHD!<br />
SHANKAR e ainda tem muito o que apren<strong>de</strong>r! se tem uma coisa que nunca se<br />
consegue encher, quanto mais se pâe coisa <strong>de</strong>ntro mais cabe, à isso<br />
aqui (APONTA) o càrebro da gente! (CORTA A EMOóîO) arÖ<br />
baba! porque <strong>de</strong>morou tanto, Bahuan? virou americano sÑ porque foi<br />
estudar lá nos Estados Unidos?<br />
BAHUAN (TENTANDO CORTAR) escute...<br />
SHANKAR (CORTANDO) há quanto tempo estou pedindo que venha e vocÖ<br />
adiando, adiando…<br />
BAHUAN tive uma oferta pra ficar lá, baldi! vai ser melhor…lá eu nÇo sou um<br />
dalit!<br />
SHANKAR baguan keliÖ! pelo amor <strong>de</strong> <strong>de</strong>us, filho! vocÖ à igual a todo mundo!<br />
lá, aqui, em qualquer lugar! nÇo foi o que lhe ensinei? hÇ? on<strong>de</strong> à que<br />
está escrito na sua testa que vocÖ à um dalit? que ninguàm po<strong>de</strong> tocar<br />
em vocÖ? hem?<br />
BAHUAN nÇo está escrito... mas eu sei!<br />
SHANKAR Pois trate <strong>de</strong> esquecer isso! preciso <strong>de</strong> vocÖ aqui, Bahuan! Muitas<br />
coisas tÖm que ser <strong>de</strong>cididas...! (TOM) tchalò, vamos, vamos atà o<br />
hotel...<br />
MüSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 10. FESTIVAL. EXTERIOR. DIA<br />
BAHUAN E SHANKAR ATRAVESSAM O FESTIVAL. CORTE PARA MAYA DANóANDO<br />
<strong>ENTRE</strong> AS AMIGAS. CORTE PARA UMA MULHER QUE OLHA MAYA. COCHICHA COM<br />
OUTRA, CHAMANDO A ATENóîO PARA ELA. (OBS. NO INTUITO DE MOSTRô-LA è MîE<br />
262
DE ALGUM RAPAZ QUE ESTÁ PROCURANDO NOIVA). CORTE PARA SHANKAR E<br />
BAHUAN VINDO. REAÇÃO DE BAHUAN, VENDO A IMAGEM GRANDE DE GANESHA.<br />
FAZ SINAL A SHANKAR PARA QUE ESPERE E VAI ATÉ LÁ, ABRINDO CAMINHO <strong>ENTRE</strong><br />
AS PESSOAS. BAHUAN SE APROXIMA DA IMAGEM. NO QUE VAI DEPOSITAR AS<br />
PÉTALAS, AS MÃOS DELE E AS MÃOS DE MAYA SE TOCAM, FAZENDO O MESMO<br />
MOVIMENTO. OS <strong>DOIS</strong> SE OLHAM, INIBIDOS E TOMADOS PELO SENTIMENTO DO<br />
MOMENTO MÁGICO. DESVIAM OS OLHOS, ATIRAM AO MESMO TEMPO AS PÉTALAS<br />
PARA O DEUS. NUM GESTO RÁPIDO, TOMANDO-OS POR UM CASAL, O SACERDOTE<br />
ESTENDE AS MÃOS SOBRE A CABEÇA DE AMBOS, ABENÇOANDO-OS. ELES SE OLHAM,<br />
SURPRESOS. LOGO, A MULTIDÃO QUE TAMBÉM QUER HOMENAGER GANESHA OS<br />
SEPARA. ELES SE PERDEM UM DO OUTRO, E SE PROCURAM INUTILMENTE COM OS<br />
OLHOS.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 11. LOCAL CASA OPASH. NOITE<br />
ABRE NO ROSTO SONHADOR DE MAYA, QUE PENSA EM BAHUAN À LUZ DA<br />
LAMPARINA, MAYA DEITADA DE COSTAS, RECEBENDO A MASSAGEM DE ÓLEOS<br />
DADA POR SUA MÃE. EXPLORAR A SENSUALIDADE DA CENA, QUE DEVE SER<br />
DELICADA COMO AQUELA DO FILME KAMA SUTRA (MIRA NAIR)<br />
KOCHI (MASSAGEANDO) uma mulher tem que trazer a pele<br />
assim,sempre macia como uma pétala. E usar muitos enfeites, para<br />
chamar a <strong>de</strong>usa que tem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 12. PÁTEO DE SHANKAR. NOITE<br />
SHANKAR BAHUAN AGORA COM ROUPAS INDIANAS<br />
BAHUAN baldi...quando entreguei as pétalas pra Ganesha aconteceu uma coisa<br />
estranha... parecia um sinal<br />
SHANKAR se aconteceu perto <strong>de</strong> Ganesha não se preocupe.! só po<strong>de</strong> ser coisa<br />
boa! Atchá! Lord Ganesha sempre anuncia as coisas boas!<br />
MÚSICA SOBE. BAHUAN JÁ NÃO ESCUTA, SONHADOR<br />
CORTE PARA<br />
CENA 13. CASA DOS MEEHTA. NOITE<br />
MÚSICA ATRAVESSA A CENA. MAYA SONHADORA.<br />
KOCHI (ENTRA) ainda está assim? você per<strong>de</strong> a hora <strong>de</strong> chegar no trabalho!<br />
MAYA tik he, tik he! estou pronta, sim...(COMEÇA A RETOCAR A<br />
MAQUIAGEM)<br />
263<br />
KOCHI (CONFIDENTE) Maya...! Atchá! veio um sacerdote aqui sondar o<br />
seu pai, perguntar se você já está pronta para o casamento! alguma<br />
familia que viu você no festival!<br />
MAYA mãezinha! tchoti-ma! o que foi que papa respon<strong>de</strong>u?<br />
KOCHI arê! não falou que sim nem que não! escutou! agora ele vai buscar<br />
informação... conversar com os vizinhos, saber como é essa familia,<br />
quem são os antepassados... Do mesmo jeito que fez com as moças<br />
oferecida pra seu irmão Komal!
MAYA e Komal? vai ter o casamento?<br />
264<br />
KOCHI aquela do Punjab, seu pai gostou da famÉlia e seu irmÇo nÇo gostou da<br />
moÅa! arÖ baba! os costumes hoje estÇo muito mudados! quando me<br />
casei nÇo tinha essa conversa <strong>de</strong> escutar o que os filhos diziam! a<br />
famÉlia <strong>de</strong>cidia o casamento e pronto! eu vi seu pai a primeira vez já<br />
vestida <strong>de</strong> noiva!<br />
MAYA ma!<br />
KOCHI estamos aqui, atà hoje, vivendo em harmonia, nÇo estamos? (TOM)<br />
tchalò! vocÖ se atrasa!<br />
MAYA eu vou e volto, mami! (OBS. O INDIANO NUNCA DIZ “EU VOU”.<br />
INCLUI SEMPRE O “VOLTO”) MAYA TOCA OS PïS DA MAE E SAI. MîE ARRUMANDO O<br />
QUARTO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 14. SALA DOS MEETHA. INTERIOR. NOITE<br />
MAYA ENTRA NA SALA<br />
MAYA meu celular!<br />
MANU E KOMAL NA SALA<br />
KOMAL baldi, o americano disse que levou o computador <strong>de</strong> ëltimo mo<strong>de</strong>lo<br />
para o senhor ver e o senhor nÇo comprou!<br />
MANU arÖ baba, filho! esses firangi estrangeiros nÇo enten<strong>de</strong>m nada! como<br />
eu nÇo comprei se eu disse pra ele que gostei, que ficava com o<br />
computador? sÑ nÇo podia fazer pagamento hoje! hoje no!<br />
KOMAL (LEMBRA) tik he! hoje à sexta feira! dia <strong>de</strong> Laksmi!<br />
MANU ninguàm vai fazer pagamento no dia da <strong>de</strong>usa da fartura! no, no...<br />
nesse dia nÇo se abre a carteira! dinheiro entra, mas nÇo sai!<br />
MAYA papa... (VINDO. TOCA OS PïS DELE)<br />
MANU (TOCANDO A CABEóA DELA) tchalò, Komal! acompanhe a sua<br />
irmÇ!<br />
KOCHI ENTRANDO NA SALA. ELA E MANU OBSERVAM OS FILHOS SAíREM<br />
KOCHI suniedi... escuta! quem à essa famÉlia que perguntou pela Maya?<br />
MANU Baguan keliÖ! que seja gente boa! Casamento <strong>de</strong> filha e dinheiro<br />
emprestado à melhor resolver <strong>de</strong>pressa!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 15. CALL CENTER. INTERIOR. NOITE<br />
MAYA ENTRANDO ALI COM DEVA. MOVIMENTAóîO DO CALL CENTER TROCANDO DE<br />
TURNO. CUMPRIMENTA DEVA (NUNCA COM BEIJINHOS, ACENANDO APENAS) E VAI<br />
PARA SEU LUGAR.
MAYA (ATENDE, EM INGLES, DANDO O NOME DE UMA<br />
COMPANHIA) Just a moment (ATENDE OUTRA<br />
LIGAÇÃO, REPETINDO O NOME DA COMPANHIA)<br />
RAUL (OFF) My name is Raul Cadore!<br />
MAYA (EM INGLES: PEDE QUE ELE REPITA)<br />
CORTE PARA<br />
CENA 16 RIO DE JANEIRO. EXTERIOR. DIA<br />
SOBRE A IMAGEM, A VOZ DE RAUL<br />
RAUL (OFF) Raul Cadore... Yes!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 17 . RIO DE JANEIRO. ANTE-SALA COQUETEL. DIA<br />
RAUL TELEFONANDO. ESTÁ NUM CANTO, ATENTO À ENTRADA, DE MODO A NÃO SER<br />
PERCEBIDO<br />
RAUL (NO CELULAR) Raul Cadore! eu fiz um <strong>de</strong>pósito<br />
na minha conta e...<br />
JULIA (VINDO) pai!<br />
REAÇÃO DELE VENDO JULIA: DESLIGA, RAPIDAMENTE<br />
JULIA tá todo mundo esperando você!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 18. CALL CENTER. INTERIOR. NOITE<br />
REAÇÃO DE MAYA SENTINDO QUE ELE DESLIGOU<br />
MAYA mister Cadore! hello!<br />
MAYA APERTA A TECLA MUTE E VIRA O CORPO DE MODO A VER DEVA<br />
MAYA (RINDO) Deva...<br />
DEVA (NO MICROFONE) just a moment... (MOVIMENTA-SE PARA<br />
TRÁS, DE MODO A VER MAYA)<br />
MAYA aquele brasileiro <strong>de</strong> novo!<br />
ouvi uma voz <strong>de</strong> mulher e ele <strong>de</strong>sligou!<br />
DEVA tik! esse homem tem dinheiro escondido da esposa!<br />
REAÇÃO DELA<br />
CENA 19. ANTE-SALA DO COQUETEL. INTERIOR. DIA<br />
RAUL VINDO COM JULIA<br />
JULIA com quem você tava falando, pai?<br />
RAUL ninguém... Coisas da empresa...<br />
REAÇÃO DESCONFIADA DE JULIA.<br />
CORTE PARA<br />
265
CENA 20. SALÃO DO COQUETEL. INTERIOR. DIA<br />
RAMIRO, RAJ, AO LADO DE RAMIRO, VESTINDO ROUPAS OCIDENTAIS, TERNO MUITO<br />
ELEGANTE. SILVIA, TARSO, CADORE. WAL, DARIO, CAMILLA, OUTRAS PESSOAS ALI.<br />
266<br />
MELISSA eu fui ao <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong>le em Nova York! não me ganhou... faltou<br />
sofisticação, estilo... estilo é fundamental! (VENDO TARSO) ah, ele<br />
ali! (CHAMA) Tarso!<br />
TARSO ah não, vô! minha mãe não tem noção! é toda hora querendo me<br />
apresentar pra essas amigas<br />
CADORE quem manda nascer com os olhos que ela queria ter?<br />
MELISSA (VAI PARA TARSO) Tarso, vem cá.<br />
TARSO (CANSADO) <strong>de</strong> novo, mãe?<br />
MELISSA (PUXA-O PELO BRAÇO, SEM SE IMPORTAR COM O<br />
CONSTRANGIMENTO DELE,) olha a cor <strong>de</strong>sses olhos!<br />
TARSO SORRI, RESIGNADO. CORTE PARA RAMIRO<br />
RAMIRO (ENTUSIASMADO) como é do conhecimento <strong>de</strong> todos, estamos<br />
caminhando para concretizar a parceria com uma gran<strong>de</strong> empresa<br />
indiana, a Indiamed, que vai passar a fornecer genéricos para nossa<br />
empresa! com isso, a Cadore se globaliza,<br />
MELISSA OLHA COM ORGULHO, TARSO AO LADO DE CADORE. WAL DE PÉ, EM OUTRO<br />
CANTO, EMBEVECIDA<br />
RAMIRO conquista um lugar entre as gran<strong>de</strong>s empresas farmacêuticas do Brasil<br />
WAL (EMBEVECIDA) Jesus, me abana!<br />
RAMIRO estaremos saltando para o futuro!<br />
CORTE PARA CADORE, NÃO GOSTANDO DO QUE OUVE<br />
CADORE gran<strong>de</strong> coisa! queria ver pegarem a Cadore como eu<br />
peguei, uma portinha <strong>de</strong> nada, uma farmaciazinha <strong>de</strong> uma porta só... e<br />
transformar numa empresa como eu transformei!<br />
TARSO eles sabem, vô!<br />
CARDORE sabem, mas gostam <strong>de</strong> esquecer! vão ficar aí a noite toda falando dos<br />
feitos <strong>de</strong>les, como se os dois tivessem construído a Cadore sozinhos!<br />
CORTE PARA SILVIA E MELISSA
MELISSA Silvia, eu <strong>de</strong>scobri um <strong>de</strong>rmatologista que faz milagres!<br />
SILVIA como se você precisasse <strong>de</strong> algum! (FAZ SINAL PARA QUE ELA<br />
ESCUTE RAMIRO) escuta seu marido!<br />
CORTE PARA WAL OLHANDO MELISSA COM DESDÉM<br />
WAL não acho essa mulher <strong>de</strong>le tudo isso não! muito<br />
folclore em cima <strong>de</strong>ssa perua...!<br />
CORTE PARA RAMIRO E RAJ.<br />
267<br />
RAMIRO por tudo isso, estamos em negociação com a empresa <strong>de</strong> informática<br />
do Sr Raj Ananda, que vai nos fornecer, através <strong>de</strong> uma nova<br />
tecnologia, ainda pouco conhecida aqui no Brasil, os serviços <strong>de</strong> M-<br />
Commerce, que é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r nossos produtos através<br />
<strong>de</strong> dispositivos móveis e multiplicar, assim, a nossa distribuição!<br />
PALMAS. CORTE PARA JULIA E CAMILLA<br />
JULIA Camila, você acha que meu pai po<strong>de</strong> ter um caso?<br />
CAMILLA só se for com a escrivaninha <strong>de</strong>le, Julia! seu pai só<br />
pensa em trabalho! que idéia!<br />
JULIA Sei lá! ele anda misterioso! agora mesmo tava falando no telefone e<br />
<strong>de</strong>sligou rapidinho quando eu cheguei... Foi esquisito!<br />
CAMILLA quem é? (INDICANDO DARIO)<br />
JULIA é o Dario, assessor do tio Ramiro. Gostou?<br />
CAMILLA uau!<br />
JULIA (CÚMPLICE) solteiríssimo!<br />
JULIA FAZ SINAL PARA DARIO, QUE SE APROXIMA<br />
CAMILLA (BAIXINHO) sua louca!<br />
DARIO que foi, Julinha?<br />
JULIA essa é minha amiga, a Camilla!<br />
DARIO SORRI PARA CAMILLA, QUE RETRIBUI. DE MODO A QUE O PÚBLICO PERCEBA<br />
QUE VAI ROLAR. CORTE PARA RAMIRO E RAJ<br />
RAJ a verda<strong>de</strong> é que a internet <strong>de</strong>rrubou as fronteiras, eliminou as<br />
distâncias... e possibilitou a produção compartilhada entre vários<br />
países, que nos permite estar hoje aqui, comemorando essa parceria!<br />
PALMAS. RAMIRO APRESENTA RAUL, QUE ESTÁ A SEU LADO<br />
RAMIRO meu irmão, e sócio Raul...!
RAJ (CUMPRIMENTA) Raj Ananda<br />
268<br />
RAMIRO Raul é quem está preparando toda a documentação que vocês<br />
necessitam pra fecharmos o contrato! (PARA RAUL) temos tudo<br />
pronto, não?<br />
RAUL amanhã tudo estará em mãos!<br />
CORTE PARA JULIA E SILVIA<br />
JULIA se papai pu<strong>de</strong>sse saía voando daqui!<br />
SILVIA seu pai está exausto! passou a noite arrumando documentos da<br />
empresa pra reunião com esse indiano, enquanto o Ramiro ia buscar<br />
no aeroporto, levar pra almoçar...<br />
REAÇÃO DE MELISSA VENDO INÊS ENTRAR. DO SEU JEITO<br />
MELISSA Inês! outra tatuagem?<br />
INÊS essa vai causar, mãe!<br />
MELISSA o que é que você quer? me agredir? agredir seu pai?<br />
INES (BEM HUMORADA) ai! não precisa dizer que eu sou<br />
sua filha, mãe!<br />
MELISSA (TIRANDO O XALE DOS OMBROS E JOGANDO NOS<br />
OMBROS DELA, DE MODO A COBRIR A TATUAGEM) cobre<br />
essa aberração!<br />
INÊS (TENTANDO TIRAR) Mami!<br />
MELISSA (FORÇANDO FICAR) por que é que veio? pra aparecer nesses trajes,<br />
era melhor nem ter vindo!<br />
INÊS (ANIMADA) posso ir?<br />
MELISSA pois vá! vá!<br />
INÊS (DEVOLVE O XALE, ADORANDO) bye! (SAINDO)<br />
MELISSA (IRRITADA, INDO ATRÁS) Inês!<br />
INÊS <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> mãe! eu fico ou eu vou?<br />
MELISSA JOGA O XALE NOS OMBROS DELA E VEM TRAZENDO DE VOLTA,<br />
DISFARÇANDO A IRRITAÇÃO. JULIA E CAMILA RIEM DA CENA.<br />
CAMILA (RINDO) o look não agradou!<br />
JULIA (RI)a Inês é um castigo pra tia Melissa! ela fica louca! morre <strong>de</strong><br />
vergonha! se ela pu<strong>de</strong>sse trancava a Inês num porão e <strong>de</strong>ixava lá,<br />
escondida, pra ninguém ver!
CAMILA em compensação, o Tarso parece medalha <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> olimpíada! olha<br />
ali, olha...<br />
INDICA MELISSA EXIBINDO TARSO PARA OUTRA PESSOA.<br />
SILVIA (VINDO) do que é que vocês riem tanto?<br />
CAMILA a vaida<strong>de</strong> da Melissa!<br />
SILVIA ah! essa minha cunhada! o pobre do Tarso é o espelho preferido <strong>de</strong>la!<br />
CAMILA tá linda, Silvia!<br />
CORTE PARA RAMIRO, RAUL, RAJ E DARIO. ENQUANTO ELES FALAM, RAUL SE<br />
AFASTA OUTRA VEZ, DISFARÇADAMENTE, LIGANDO O CELULAR<br />
DARIO que tal levarmos o Raj para conhecer a noite do Rio?<br />
RAJ eu peço <strong>de</strong>sculpas, mas não posso aceitar: já tinha assumido um<br />
compromisso antes<br />
RAMIRO Raj já conhece bem a noite do Rio! tem até uma namorada brasileira!<br />
DARIO então não se discute:... um po<strong>de</strong>r mais alto se levanta!<br />
RAJ já vim algumas vezes ao Rio para encontrar com ela!<br />
nos conhecemos em Londres, há dois anos<br />
RAMIRO dois anos? dois anos já é praticamente um casamento!<br />
MÚSICA SOBE ENQUANTO ELES FALAM.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 21. RIO DE JANEIRO. EXTERIOR. NOITE<br />
SOM DE MÚSICA ALEGRE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 22. BUATE. INTERIOR. NOITE<br />
ANIMAÇÃO. RAJ DANÇANDO ANIMADAMENTE COM DUDA. OBS. SANDRA: UM OU<br />
OUTRO ELEMENTO DA DANÇA INDIANA, INTRODUZIDOS COMO BRINCADEIRA. MUITO<br />
POUCOS, DE MODO A QUE RAJ CHAME A ATENÇÃO POR DANÇAR BEM, SEM<br />
DENUNCIAR QUE SUA DANÇA SEJA CARACTERÍSTICA DE OUTRO PAÍS. QUANDO<br />
ESTIVER NA ÍNDIA, SIM, ELE VAI DANÇAR DIFERENTE. O IMPORTANTE AQUI É<br />
MOSTRAR UM COMPORTAMENTO BEM OCIDENTAL. OS <strong>DOIS</strong> SE BEIJAM.<br />
RAJ Duda, Duda! sou louco por você, sabia?<br />
DUDA (CHARME) então porque vai embora?<br />
RAJ (BEIJANDO DUDA) logo, logo você vai comigo<br />
DUDA quando?<br />
RAJ logo! não quero mais viver longe <strong>de</strong> você! não consigo! estou louco<br />
pra amarrar o mangala sutra em você!<br />
269
DUDA mangala sutra?<br />
RAJ à o colar <strong>de</strong> casamento! na índia, em vez da alianÅa<br />
que vocÖs usam, nÑs damos pra esposa um colar <strong>de</strong><br />
casamento! chama mangala sutra!<br />
DUDA eu quero!<br />
MAIS UM BEIJO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 23. CASA DE RAUL. INTERIOR. NOITE<br />
SILVIA LENDO. RAUL VEM, CANSADO, DEITAR PERTO DELA<br />
SILVIA acordou, Raul?<br />
RAUL sÑ estava tirando um cochilo!<br />
SILVIA (FAZ CARINHO NOS CABELOS DELE) Vai dormir, amor.<br />
Descansa! vocÖ parecia tÇo cansado hoje lá no coquetel!<br />
RAUL parecia?<br />
SILVIA porque vocÖ nÇo tira uns dias <strong>de</strong> fàrias, Raul? a gente podia fazer uma<br />
viagem, sei lá, pegar um <strong>de</strong>sses cruzeiros<br />
RAUL nÇo sonha, Silvia!<br />
270<br />
SILVIA nÇo po<strong>de</strong> ser tÇo complicado assim tirar uns dias pra vocÖ! seu irmÇo<br />
vive viajando! e nÇo me diga que à sÑ a trabalho, porque nÇo à! sÑ<br />
esse ano ele e a Melissa já foram nÇo sei quantas vezes passar fim <strong>de</strong><br />
semana na Europa, nos Estados Unidos...<br />
RAUL alguàm tem que fazer aquela empresa andar, nÇo à?<br />
SILVIA atà parece que vocÖ nÇo gosta <strong>de</strong> viver assim, sobrecarregado!<br />
CADORE PASSA COM UM COPO D’AGUA, Jô VESTIDO PARA DORMIR. ESTô<br />
VISIVELMENTE CHATEADO. NîO OLHA PARA OS <strong>DOIS</strong><br />
RAUL já vai <strong>de</strong>itar, pai?<br />
CADORE (SECO) vou!<br />
RAUL o que à que ele tem?<br />
SILVIA nÇo sei... seu Cadore veio no carro mudo, sem dar uma palavra! se<br />
aborreceu com alguma coisa! pra mim nÇo falou nada!<br />
RAUL papai à cheio <strong>de</strong> suscetibilida<strong>de</strong>s! (CHAMA) papai! papai!<br />
CADORE (SE VOLTA. SECO) o que foi?<br />
RAUL se chateou com o que?
271<br />
CADORE nada! não tive motivos pra me chatear, tive? <strong>de</strong>ve ser<br />
algum problema <strong>de</strong> estômago: eu engulo tanto sapo que meu<br />
estomago já é um brejo! (SAI)<br />
RAUL (RI) ó... não falei? velhice é fogo!<br />
BATEM NA PORTA. EMPREGADA VAI ABRIR: MURILO<br />
MURILO boa noite!<br />
SILVIA (SURPRÊSA) Murilo! ah não! não me diga que vocês ainda vão<br />
trabalhar hoje!<br />
MURILO é dura a vida da bailarina, Silvia! ainda temos que fechar dois<br />
relatórios pra entregar ao indiano amanhã cedo! nem pu<strong>de</strong> ir ao<br />
coquetel preparando isso!<br />
RAUL (LEVANTA, CANSADO) vambora, Murilo!<br />
OS <strong>DOIS</strong> ENTRAM. REAÇÃO DE SILVIA.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 24. CASA DE RAUL. ESCRITÓRIO. INTERIOR. NOITE<br />
RAUL E MURILO ENTRANDO ALI<br />
RAUL sabe quando tudo o que você tem vonta<strong>de</strong> é <strong>de</strong> chutar o bal<strong>de</strong>?<br />
MURILO (RI) quem é que não sabe? e é bom mesmo chutar um bal<strong>de</strong> aqui<br />
outro ali, <strong>de</strong> vez em quando!<br />
RAUL me cansa esse entusiasmo do Ramiro, essa voracida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le <strong>de</strong> querer<br />
mais, mais! pra que tudo isso? pra que essa obsessão <strong>de</strong> transformar a<br />
Cadore numa mega empresa...?<br />
MURILO Nada contra a idéia, muito pelo contrário: o problema é ele <strong>de</strong>ixar a<br />
parte pesada sempre nas suas costas, Raul! nas nossas, melhor<br />
dizendo! se a coisa fosse mais dividida...<br />
RAUL Mesmo que fosse, Murilo! ... que sentido tem isso?<br />
MURILO ê... você ta precisando é lacrar a porta daquele escritório e sair pra<br />
respirar um pouco <strong>de</strong> vida, amigo! o que tá te faltando é oxigênio!<br />
falando sério, Raul<br />
RAUL (ABRINDO A PASTA E CORTANDO) falando sério, vambora, que<br />
o tempo tá correndo e a noite é curta!<br />
MURILO pra mim ia ser muito longa se não fosse isso aqui! (SUSPIRA)<br />
vambora!<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 25. AEROPORTO. DIA<br />
RAJ E DUDA<br />
RAJ cê não <strong>de</strong>via ter vindo, Duda. Não gosto que você volte sozinha
DUDA não vou voltar sozinha, amor! Chiara veio comigo, não veio? daqui<br />
nós pegamos um táxi e tudo bem!<br />
272<br />
RAJ (SEGURA O ROSTO DELA) escuta...ontem <strong>de</strong> noite fiquei pensando<br />
em nos dois... quando eu voltar pra assinar o contrato quero levar<br />
você embora comigo<br />
DUDA Raj...!<br />
RAJ <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mês... você acha que fica pronta, pra<br />
mudar <strong>de</strong> país <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mês?<br />
DUDA (EMOCIONADA) até numa semana! Raj... até num dia!<br />
O BEIJO. CHAMADA DO AVIÃO<br />
RAJ é o meu vôo...! cadê a Chiara?<br />
DUDA tá vindo, foi comprar uma revista...<br />
CORTE PARA MURILO CHEGANDO, APRESSADO,CORRENDO ATÉ ELES<br />
MURILO Raj! Raj! <strong>de</strong>sculpe, faltou uma assinatura...tivemos que refazer essa<br />
página aqui<br />
RAJ ah. eu nem tinha percebido, <strong>de</strong>ixei pra ler tudo no avião<br />
ENQUANTO ELE GUARDA NA PASTA CHIARA VAI SE APROXIMANDO<br />
MURILO ainda bem que cheguei a tempo!<br />
MURILO DEIXA ESCAPAR UM OLHAR CAFAGESTE PARA CHIARA, QUE NÃO É<br />
PERCEBIDO PELOS OUTROS. QUANDO O OLHAR DELES SE ENCONTRA ELE DISFARÇA.<br />
CHIARA SE INTERESSA POR ELE<br />
RAJ Duda, minha noiva... e a Chiara, nossa amiga...<br />
MURILO (MANTENDO A POSTURA) encantado!<br />
RAJ Murilo, <strong>de</strong>sculpe pedir, mas... você faria a gentileza <strong>de</strong> acompanhar as<br />
duas até em casa?<br />
DUDA Raj! não precisa, a gente pega um táxi!<br />
MURILO <strong>de</strong> jeito nenhum! faço questão! é um prazer pra mim, eu levo vocês,<br />
claro! estou <strong>de</strong> carro aí!<br />
RAJ (CUMPRIMENTA MURILO) fico mais tranqüilo, assim. Até a volta,<br />
então, Murilo!<br />
MURILO até a volta, Raj!<br />
RAJ E DUDA SE AFASTAM, ABRAÇADOS, E PODEMOS VÊ-LOS EM SEGUNDO PLANO,<br />
AOS BEIJOS, SE DESPEDINDO, ENQUANTO MURILO OLHA FASCINADO PARA CHIARA
CHIARA (SORRI) que foi?<br />
MURILO eu... nem sei o que dizer... estou zonzo! se me perguntassem agora o<br />
meu nome eu não seria capaz <strong>de</strong> lembrar!<br />
CHIARA ah! faz um esforço!<br />
MURILO (TIRA O CARTÃO DO BOLSO. BRINCA, LENDO, COMO QUEM<br />
ESTÁ LEMBRANDO) Murilo (SOBRENOME)<br />
CHIARA RI, DIVERTIDA<br />
MURILO (PASSANDO O CARTÃO) vou <strong>de</strong>ixar com você! você vai esquecer,<br />
que eu sei!<br />
DUDA VOLTA E SORRI, PERCEBENDO O CLIMA<br />
MURILO (TOM. SÉRIO) vamos, então? o carro está logo ali...<br />
CORTE PARA<br />
CENA 26. RIO DE JANEIRO. EXTERIOR. DIA<br />
TRÂNSITO NO RIO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 27. CARRO DE MURILO EM MOVIMENTO. DIA<br />
MURILO, CHIARA (NA FRENTE) E DUDA, FELIZ.<br />
DUDA (PARA CHIARA) passa lá em casa <strong>de</strong> noite! tenho<br />
uma coisa maravilhosa pra te contar!<br />
CHIARA sobre?<br />
DUDA <strong>de</strong> noite! (INDICANDO) ali, Murilo, ali! logo <strong>de</strong>pois (DÁ UMA<br />
INDICAÇÃO)<br />
CORTE PARA<br />
CENA 28. EXTERIOR DE SHOPPING OU LOJA. DIA<br />
DUDA SALTANDO<br />
DUDA obrigada, Murilo, você foi show!<br />
MURILO imagina! foi um prazer! tchau, Duda!<br />
DUDA (DE FORA DO CARRO) tô te esperando, hem?<br />
DUDA SAI, ACENANDO<br />
CHIARA que euforia!<br />
MURILO então? vamos tomar um café?<br />
CHIARA po<strong>de</strong> ser!<br />
273
MURILO (CHEIO DE INTENÇÕES) na sua casa ou na minha?<br />
CHIARA (BEM HUMORADA) Você na sua casa e eu na minha! (SALTA,<br />
SORRINDO) melhor ficar por aqui,<br />
ouvindo as novida<strong>de</strong>s! (SAI)<br />
MURILO ei! eu levo você! ei!<br />
BUZINA. DEPOIS SORRI<br />
CORTE PARA<br />
CENA 29. ÍNDIA. EXTERIOR. NOITE/DIA<br />
CORTE PARA<br />
CENA 30 . PÁTEO DE SHANKAR. DIA<br />
CAMERA VAI ENTRANDO, PARANDO NO PÁTEO. SHANKAR E BAHUAN TOMANDO CHÁ<br />
SHANKAR lembra quando nós nos encontramos em Varanasi? você era um<br />
bacha, um menino!<br />
BAHUAN como é que eu vou esquecer, baldi!<br />
SHANKAR eu fui lá porque estava viúvo, sem filhos... já tinha acumulado<br />
riquezas, respeito, conquistado a minha posição como físico... e achei<br />
que tinha chegado a hora <strong>de</strong> abandonar as coisas do mundo...!<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 30 . FLASH-BACK. VARANASI. DIA<br />
SHANKAR ABRAÇA BAHUAN, PROTEGENDO-O E OPASH<br />
SHANKAR (VOZ SOBRE IMAGEM) Atchá! Naquele dia, os <strong>de</strong>uses puseram<br />
você no meu caminho, e isso foi um jeito <strong>de</strong>les me dizerem que a<br />
minha missão ainda não estava acabada!<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 31. PÁTEO DE SHANKAR. EXTERIOR. DIA<br />
SHANKAR E BAHUAN<br />
SHANKAR mas agora você está aí, pronto para o mundo. Então eu fiz o que<br />
faltava fazer para po<strong>de</strong>r dizer que já vivi todas as cores da vida: criei<br />
um filho para acen<strong>de</strong>r o fogo quando eu morrer!<br />
BAHUAN o que é que o senhor está querendo me dizer, baldi?<br />
SHANKAR eu sempre quis me tornar um sanyase, um renunciante, Bahuan!<br />
BAHUAN (REAGE) o senhor quer sair do mundo? apagar tudo o que viveu até<br />
agora? me apagar também?<br />
SHANKAR (TENTANDO CORTAR) Bahuan, Bahuan<br />
274<br />
BAHUAN por que? não posso imaginar ver o senhor isolado com os monges nas<br />
montanhas, ou então vagando pelas ruas, pedindo comida nas casas...<br />
sofrendo frio, chuva...
275<br />
SHANKAR esse corpo não é nada, filho! é como uma roupa velha que um dia não<br />
serve mais <strong>de</strong> tanto que se gastou! pra que se preocupar com ele? é<br />
melhor se ocupar da alma, que não morre nunca, pra evitar<br />
ficar voltando a esse mundo!<br />
BAHUAN baguan keliê, baldi! por <strong>de</strong>us, não faça isso!<br />
SHANKAR você vai ser um homem rico, Bahuan. E eu quero que<br />
esteja muito preparado pra lidar com isso quando eu<br />
me retirar!<br />
BAHUAN não, eu não vou aceitar!<br />
SHANKAR escute... esta noite estou indo para o Punjab... tenho negócios a<br />
resolver lá... quando voltar nós falamos disso <strong>de</strong> novo. Eu preciso <strong>de</strong><br />
sua concordância. Você é meu filho, não posso escolher o caminho <strong>de</strong><br />
sair do mundo sem você concordar!<br />
BAHUAN baldi<br />
SHANKAR vá até a estação <strong>de</strong> trem comprar o meu bilhete!<br />
quando eu voltar do Punjab vamos ter muito tempo<br />
para conversar!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 32. RUA. EXTERIOR. DIA<br />
BAHUAN INDO PELA RUA MOVIMENTADA. DE REPENTE SENTE QUE SEU RELÓGIO<br />
ENGANCHOU EM ALGUMA COISA. RAPIDAMENTE PARALIZA, OLHANDO PARA TRÁS.<br />
REAÇÃO DE MAYA, SEGURANDO O SARI QUE ENGANCHOU NO RELÓGIO. OS <strong>DOIS</strong> SE<br />
OLHAM. SOM: SINOS DO TEMPLO TOCANDO. OS <strong>DOIS</strong> OLHAM AO MESMO TEMPO<br />
PARA O SINO. BAHUAN VAI SOLTANDO O RELÓGIO<br />
BAHUAN alguma coisa os <strong>de</strong>uses querem dizer pra nós dois!<br />
MAYA BAIXA OS OLHOS, NUM MISTO DE TIMIDEZ E SENSUALIDADE (BEM<br />
AISHWARYA)<br />
BAHUAN eu sou Bahuan... e vocë?<br />
MAYA (LEVANTANDO OS OLHOS) Maya!<br />
OLHOS NOS OLHOS<br />
COMERCIAL<br />
CENA 33.LOCAL. EXTERIOR. DIA<br />
CONTINUAÇÃO DA CENA ANTERIOR: BAHUAN E MAYA<br />
BAHUAN (REPETE, EMOCIONADO) Maya...<br />
MAYA (TENSA) estão olhando... não posso ficar... (VAI SE AFASTANDO)<br />
ENQUANTO ELA SE AFASTA<br />
BAHUAN amanhã... quando cair o sol, no Taj...
MAYA SORRI, SEM SE VOLTAR, INDO MAIS DEPRESSA ENTRA NUM RIQUIXÁ. NUM<br />
IMPULSO, BAHUAN CORRE ATRAS DO RIQUIXÁ<br />
BAHUAN ei!<br />
MAYA SORRI, COBRINDO O ROSTO COM O VÉU. RIQUIXÁ SE AFASTA<br />
CORTE PARA<br />
CENA 34. PORTA DA CASA DOS ANANDA. DIA<br />
PORTA SENDO ABERTA POR OPASH. REAÇÃO ASSUSTADA DELE, TORNANDO A<br />
FECHÁ-LA RAPIDAMENTE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 35. CASA DOS ANANDA. DIA/ COM PONTO DE VISTA<br />
OPASH AMEDRONTADO, ENCOSTADO NA PORTA. ENTRA, AFLITO, ESBARRANDO EM<br />
CHANTI QUE VEM DO INTERIOR COM SEUS LIVROS<br />
CHANTI papa! (OLHA INDIRA) o que foi ma?<br />
INDIRA ABRE A PORTA: DE SEU PONTO DE VISTA, UMA VIÚVA, EM SUAS ROUPAS<br />
BRANCAS . ELA FECHA A PORTA<br />
INDIRA uma viúva! não é auspicioso ver uma viúva quando se sai <strong>de</strong> casa!<br />
Agora ele tem que acordar outra vez, lavar os pés <strong>de</strong> novo! (ENTRA)<br />
ENTRA<br />
CENA 36. BANHEIRO DA CASA. INTERIOR. DIA<br />
ABRE NOS PÉS DESCALÇOS DE OPASH. INDIRA POE A BACIA DE ÁGUA AOS SEUS PÉS,<br />
DELICADA, AMOROSA<br />
OPASH (REVERENCIA) Jay Ganga ma! (PÕE OS PÉS NA ÁGUA)...<br />
INDIRA não se preocupe, marido. Vou mandar Durga comprar manteiga.<br />
Quando ela estiver chegando você sai, pronto!<br />
OPASH leite, manda Durga trazer leite! eu sempre tenho um dia bom quando<br />
vejo leite na hora <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa!<br />
INDIRA atchá! (SAI)<br />
CORTE PARA<br />
CENA 37. SALA DE OPASH. INTERIOR. DIA<br />
INDIRA ATRAVESSANDO A SALA EM DIREÇÃO À COZINHA. CHANTI COM SEUS<br />
LIVROS, PRONTA PARA A ESCOLA<br />
INDIRA (ATRAVESSANDO A SALA) Durgaaa!<br />
LAKSMI on<strong>de</strong> per<strong>de</strong>ram meus óculos! estão sempre fazendo o que é meu<br />
<strong>de</strong>saparecer!<br />
CHANTI quando voltar da aula eu procuro pra senhora, dadí!<br />
LAKSMI sempre quando voltar da aula! quando voltar vai me encontrar com a<br />
cabeça toda branca <strong>de</strong> tanto esperar!<br />
276
CHANTI SAI, INDIRA VEM VOLTANDO<br />
277<br />
LAKSMI veja a sua filha...! em vez <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r o que uma mulher precisa<br />
saber, está aí, como se fosse um homem, carregada <strong>de</strong> livros e<br />
ca<strong>de</strong>rnos!<br />
INDIRA arê! hoje em dia pra conseguir um bom casamento a moça tem <strong>de</strong> ser<br />
instruída!<br />
LAKSMI conversa! só vai servir pro marido ficar ofendido quando ela começar<br />
a exibir muito conhecimento! na ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la eu carregava meu Opash<br />
no colo, em vez <strong>de</strong> livros! (SAI RESMUNGANDO)<br />
INDIRA (IRRITADA) um marido tão bom tinha que ter<br />
nascido <strong>de</strong>ssa cobra naja!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 38 . PATEO. EXTERIOR. DIA<br />
LAKSMI CHEGANDO ALI. KARAM. ANUSHA PEGANDO UM BISCOITINHO DO POTE QUE<br />
ESTÁ SOBRE A CAMA. COM A MÃO ESQUERDA<br />
LAKSMI Anusha!<br />
ANUSHA PÁRA COM O BISCOITINHO NA MÃO. LAKSMI VAI ATÉ ELA<br />
LAKSMI a mão esquerda não! não se pega a comida com a mão esquerda! arê<br />
babá! quantas vezes eu preciso ensinar? sua mãe está lhe preparando<br />
pra que? pra fazer vergonha quando chegar na casa da sua sogra? faz<br />
dandala! tchalô! faz dandala!<br />
ANUSHA FAZ DANDALA, APERTANDO AS ORELHAS, COM OS BRAÇOS CRUZADOS,<br />
ENQUANTO SOBE E DESCE.<br />
LAKSMI até o chão! até o chão!<br />
CORTE PARA RAVI ENTRANDO, DESLIGANDO O CELULAR.<br />
RAVI (DESLIGANDO O CELULAR) Dadí, Tchatcha! Raj está voltando!<br />
falou comigo agora do aeroporto <strong>de</strong> Londres!<br />
KARAN atchá! que noticia boa!<br />
RAVI (ENTRA) mami! mami!<br />
LAKSMI Hum! eles <strong>de</strong>ixam o filho misturado com esses firangis estrangeiros!<br />
é bem capaz <strong>de</strong> Raj ter comido carne nessas viagens!<br />
KARAN (PROVOCANDO) também se comeu não era uma vaca indiana!<br />
REAÇÃO FURIOSA DE LAKSMI. KARAN SAI DE FININHO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 39. SALA DE OPASH. INTERIOR. DIA<br />
OPASH. INDIRA, RAVI<br />
INDIRA Sura! Amithab!
SURA VEM DA COZINHA COM UMA PANELA VAZIA NA MÃO. AMITHAB COM ELA.<br />
ANUSHA CORRE PRA ELE, SE PROTEGENDO.<br />
ANUSHA papa!<br />
INDIRA meu Raj está voltando pra casa!<br />
SURYA (VINDO) ati kabar! que noticia boa, sogra!<br />
AMITHAB não vai diminuir nosso trabalho, se ele não quer<br />
saber da loja... Só pensa na informática!<br />
INDIRA (ALEGRE, NEM REGISTRANDO) preciso fazer os doces que ele<br />
gosta!<br />
OPASH (VINDO) Raj voltou?<br />
RAVI vem amanhã, baldi!<br />
AMITHAB e nós temos que abrir a loja, está ficando tar<strong>de</strong>!<br />
OPASH tchalô! vamos!<br />
OS <strong>DOIS</strong> SAEM<br />
SURYA é verda<strong>de</strong> que meu sogro está procurando um casamento para Raj?<br />
INDIRA quem sabe a esposa <strong>de</strong>le vá dar para nós o neto homem que você não<br />
<strong>de</strong>u a Amithab?<br />
SURYA o médico falou que eu não tenho nenhum problema para ter mais<br />
filhos!<br />
278<br />
INDIRA pois é... não tem problemas, mas...ele não nasce! Pobre do meu<br />
Amithab! é muito triste um pai não ter um filho homem para acen<strong>de</strong>r<br />
o fogo quando ele morrer! só a mão <strong>de</strong> um filho po<strong>de</strong> abrir as portas<br />
do outro mundo para um pai!<br />
ENTRA. REAÇÃO DE SURYA. JOGANDO ALGUMA COISA NO CHAO COM FORÇA. CORTE<br />
PARA INDIRA APARECENDO NO VAO DA PORTA<br />
INDIRA are babá! o que foi isso?<br />
SURA caiu da minha mão... caiu!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 40 . EXTERIOR DA CASA DE OPASH. DIA<br />
OPASH ABRE A PORTA. DURGA PARADA COM O LEITE NA MÃO. OPASH SORRI,<br />
ALIVIADO<br />
DURGA tenha um bom dia, sahib!<br />
OPASH chucryia, Durga! obrigado!<br />
E SAI, ORGULHOSO, FELIZ. DO SEU JEITO.
CORTE PARA<br />
CENA 41 . RUA DA ÍNDIA. EXTERIOR. DIA<br />
MOVIMENTAÇÃO NORMAL DE SHANKAR DE UM LADO DA RUA, OPASH E AMITAHAB<br />
DE OUTRO<br />
SHANKAR veja quem está ali... aquele ulú, aquele estúpido: Opash!<br />
CORTE PARA OPASH E AMITHAB<br />
OPASH Shankar, aquele doido. aquele gandú, protetor <strong>de</strong> intocáveis!<br />
AMITHAB suno baldi, escute: contaram no bazar que ele está apoiando os<br />
intocáveis na política!<br />
OPASH votou neles! eu sei!<br />
CORTE PARA PANDIT VINDO. OPASH E AMITHAB TOCAM SEUS PÉS. PANDIT ABENÇOA<br />
AMITHAB você queria falar com o sacerdote! lá está Pandit!<br />
279<br />
OPASH (INDO PARA ELE) Pandit! (TOCA OS PÉS DE PANDIT,<br />
REVERENTE) eu ia procurar por você para falar do meu filho Raj...<br />
está na hora <strong>de</strong> se arranjar um casamento pra ele!<br />
PANDIT arê! a filha <strong>de</strong> Manu, o comerciante <strong>de</strong> tecidos é uma beleza...<br />
mo<strong>de</strong>sta, dança bem, tem instrução... Estava no festival <strong>de</strong> (NOME<br />
FESTIVAL) e eu soube que outras familias já estão cobiçando...<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 42 . RIO DE JANEIRO. EXTERIOR. DIA<br />
CORTE PARA<br />
CENA 43. SALA DE RAMIRO. INTERIOR. DIA<br />
RAMIRO PEGANDO A PASTA. TARSO VINDO COM O VIOLÃO<br />
RAMIRO que é isso? tá indo pra on<strong>de</strong>?<br />
TARSO (ANIMADO) entrei numa aula <strong>de</strong> violão manera!<br />
RAMIRO que violão! per<strong>de</strong>r tempo com violão, filho! o que é que você vai<br />
fazer com violão na vida! tem <strong>de</strong> se preparar é pra administrar sua<br />
empresa!<br />
TARSO eu?<br />
RAMIRO você! quem mais vai ter <strong>de</strong> tocar aquilo adiante?<br />
TARSO pai, mas eu quero fazer arquitetura<br />
RAMIRO arquitetura coisa nenhuma!<br />
TARSO <strong>de</strong>u no meu teste vocacional que
280<br />
RAMIRO (CORTA) frescura essa história <strong>de</strong> teste vocacional!<br />
teste pra que? sua vocação já está pronta, é a Cadore! você tem é que<br />
já ir se ambientando ali na<br />
empresa<br />
TARSO Cadore, pai! não tenho nada a ver com aquilo!<br />
RAMIRO (IGNORA) taí, você vai começar a ir comigo pro escritório. Pra ir<br />
pegando o jeito!<br />
TARSO nem vem, eu tô <strong>de</strong> férias!<br />
RAMIRO (SAINDO) melhor ainda! dá pra passar mais tempo lá! começa na<br />
segunda! po<strong>de</strong> dispensar aí essas aulas <strong>de</strong> violão!<br />
TARSO (INDO ATRÁS) pai!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 44. EXTERIOR DA CASA DE RAMIRO. DIA<br />
RAMIRO INDO EM DIREÇÃO AO CARRO, TARSO ATRÁS<br />
TARSO pai, eu não vou não, pai!<br />
RAMIRO ARRANCA. REAÇÃO DE TARSO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 45. QUARTO DE MELISSA. INTERIOR. DIA<br />
MELISSA COM UMA MÁSCARA NO ROSTO. SOM SUAVE. TARSO ENTRA<br />
TARSO mãe, eu não vou me enfiar <strong>de</strong>ntro daquele escritório nas minhas<br />
férias! nem nas minhas férias nem em tempo nenhum! eu não tenho<br />
nada a ver com aquele escritório... tá me escutando, mãe?<br />
MELISSA CONTINUA ABSOLUTAMENTE IMÓVEL<br />
TARSO mãe, presta atenção, eu já tô nervoso com essa<br />
pressão do meu pai em cima <strong>de</strong> mim! toda vez que eu começo a fazer<br />
alguma coisa que eu gosto...<br />
EMPREGADA APARECE NA PORTA FAZENDO SINAL DE PSIU<br />
EMPREG (BAIXINHO) Tarso, ela não po<strong>de</strong> falar! não tá vendo? tá mascarada!<br />
não po<strong>de</strong> nem pensar, que enruga a testa!<br />
TARSO SAI, DESANIMADO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 46. QUARTO DE INÊS. INTERIOR. DIA<br />
INÊS COM FONES DE OUVIDO. MEXENDO AO SOM DA MÚSICA<br />
TARSO Inês! Inês! ei!<br />
INES (TIRANDO O FONE) que foi, menino!<br />
TARSO cara, meu pai tem <strong>de</strong> parar com essa mania <strong>de</strong><br />
querer dirigir minha vida
INES (CHEIA, PONDO O FONE DE NOVO) ah Tarso!<br />
REAÇÃO DE TARSO. ELA CONTINUA A ESCUTAR MÚSICA E A DANÇAR<br />
CORTE PARA<br />
CENA 47 . ANTE-SALA DA EMPRESA. INTERIOR. DIA<br />
WAL NO SEU COMPUTADOR. MOSTRANDO PARA O BOY SUA IMAGEM NO PROGRAMA<br />
DE RELACIONAMENTO GÊNERO SECOND LIFE.<br />
WAL como é que eu fico melhor? loura ou morena?<br />
BOY essa é você?<br />
281<br />
WAL sou eu, meu filho. Eu, montada por mim! tô<br />
arrasando nesse mundo virtual! não <strong>de</strong>mora me mudo <strong>de</strong> vez!<br />
dispenso mais <strong>de</strong> dois gatos por dia, porque não dá vazão!<br />
RAMIRO (OFF. VOZ ALTERADA) não fez por que, Raul? não<br />
fez por que?<br />
WAL ih! o tempo vai fechar!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 48 . ESCRITORIO. INTERIOR. DIA<br />
RAMIRO E RAUL<br />
RAMIRO hem? porque?<br />
RAUL ei,não grita não! grita não que eu não sou teu criado!<br />
RAMIRO (SACUDINDO O PAPEL) cadê o dinheiro da associação lá com a<br />
Indiamed que tinha que estar nessa conta? tá <strong>de</strong>sfalcado isso aqui!<br />
RAUL eu apliquei uma parte, pronto! tá satisfeito?<br />
RAMIRO aplicou on<strong>de</strong>? que o contador não sabe <strong>de</strong>ssa aplicação?<br />
RAUL quem ficou responsável por esse dinheiro? não fui eu?<br />
RAMIRO que aplicação é essa Raul?<br />
RAUL eu não tenho que te dar satisfação <strong>de</strong> tudo o que eu faço, Ramiro!<br />
muito menos ao contador! sou tão dono <strong>de</strong>ssa empresa quanto você!<br />
RAMIRO o que é que você quer? remar pra trás? prejudicar o acordo que eu<br />
suei pra conseguir?<br />
RAUL (CORTA) só o que você não faz aqui é suar!<br />
E VAI SAINDO. RAMIRO ATRAS<br />
CORTE PARA<br />
CENA 49 . ANTE-SALA DO ESCRITORIO. INTERIOR. DIA<br />
RAUL SAINDO. RAMIRO ATRÁS<br />
RAMIRO se você quer pequeno, seja pequeno sozinho! sai<br />
da Cadore, porque isso aqui vai crescer como eu quero
RAUL tai... gostei da idéia!<br />
RAMIRO quer sair? sai!<br />
RAUL espera pra ver se eu não vou sair mesmo!<br />
RAMIRO patife!<br />
OS <strong>DOIS</strong> SE PEGAM, AOS SOCOS. REAÇÃO DE WAL<br />
COMERCIAL 2<br />
CENA 50. ANTE-SALA DO ESCRITÓRIO. INTERIOR. DIA<br />
CONTINUAÇAO DA CENA ANTERIOR: RAUL E RAMIRO BRIGANDO.<br />
WAL sangue <strong>de</strong> cristo!<br />
DARIO E MURILO CHEGAM CORRENDO<br />
MURILO que é isso?<br />
DARIO Ramiro!<br />
OS <strong>DOIS</strong> TENTANDO APARTAR A BRIGA.<br />
RAMIRO esse cretino...!<br />
RAUL vai apren<strong>de</strong>r a me respeitar!<br />
MURILO PUXA RAUL PARA UMA SALA, DARIO PUXA RAMIRO PARA OUTRA<br />
WAL (GESTO RAIVOSO CONTRA RAUL) palhaço! em<br />
tempo <strong>de</strong> danificar um homem <strong>de</strong>sse!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 51 . ESCRITORIO DE RAMIRO. INTERIOR. DIA<br />
DARIO E RAMIRO<br />
CORTE PARA<br />
DARIO Raul anda estressado, Ramiro. Fez uma provocação<br />
besta e você caiu!<br />
RAMIRO tô vendo o cavalo selado na minha frente e o idiota<br />
querendo me impedir <strong>de</strong> montar!<br />
CENA 52 . SALA DE RAUL. INTERIOR. DIA<br />
RAUL E MURILO<br />
RAUL aplico o dinheiro on<strong>de</strong> eu achar que <strong>de</strong>vo! acabou!<br />
tudo isso aqui é tão meu quanto <strong>de</strong>le!<br />
282
MURILO uma hora <strong>de</strong>ssa vocês precisam sentar e acertar<br />
esses ponteiros!<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 53. CASA DE RAUL. INTERIOR. NOITE<br />
RAUL. E SILVIA<br />
SILVIA que estupi<strong>de</strong>z, Raul! dois irmãos...!<br />
RAUL estou cheio, Silvia! sabe o que tá cheio?<br />
SILVIA mas cheio <strong>de</strong> que? fala! você tem tudo o que alguém po<strong>de</strong> querer!<br />
sempre teve!<br />
RAUL pois é. Sempre tive!<br />
SILVIA será que isso não é <strong>de</strong>pressão? essa falta <strong>de</strong> entusiasmo, esse<br />
<strong>de</strong>sânimo... não era bom consultar um médico?<br />
RAUL que médico, Silvia. Eu sei o que eu tenho!<br />
SILVIA então fala! como é que eu posso te ajudar se você não me diz? tá<br />
cheio, tá cheio... cheio <strong>de</strong> que?<br />
RAUL <strong>de</strong> tudo!<br />
SILVIA cê tá falando <strong>de</strong> nós? do nosso casamento?<br />
RAUL não, Silvia. Estou falando <strong>de</strong> mim! da minha vida! do que eu fiz com<br />
a minha vida! você nunca teve vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> nascer <strong>de</strong> novo?<br />
SILVIA reencarnar?<br />
RAUL esquece!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 54. ÍNDIA. EXTERIOR. DIA<br />
CORTE PARA<br />
CENA 55 . CASA DE OPASH. DIA<br />
RAVI, AMITHAB, SURYA, ANUSHA, LAKSMI, KARAN. PRIMOS E PARENTES, A CASA EM<br />
FESTA. TODOS ALEGRES, EM VOLTA DO TAPETE, ONDE ANUSHA DANÇA. CORTE PARA<br />
RAJ ENTRANDO.<br />
CHANTI Raj!<br />
REAÇÕES. ALEGRIA.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 56 . QUARTO DE MAYA. DIA-<br />
MAYA PONDO XALES E PULSEIRAS PARA O ENCONTRO<br />
MAYA (PEGANDO UMA COISA VERMELHA) uma coisa<br />
vermelha dá sorte...<br />
283
DEVA atchá! <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos sinais, um encontro no Taj! se ele ainda não<br />
está amando você ele vai amar, Maya! um amor que começa no Taj<br />
não se acaba nunca! nem nessa vida nem nas outras!<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 57 . SALA DE OPASH. INTERIOR. DIA<br />
TODOS ALEGRES, DANÇANDO. RAJ PÁRA, VAI BEBER ALGUMA COISA. OPASH VAI ATÉ<br />
ELE<br />
OPASH filho, sua mãe e eu conversamos... está na hora <strong>de</strong> você se casar, fazer<br />
sua família...<br />
RAJ eu?<br />
284<br />
OPASH você está gostando <strong>de</strong> andar pelo mundo, mas arê baba! não po<strong>de</strong><br />
pensar só em você, não é?<br />
temos que fazer sempre o que é melhor pra todos! seus irmãos estão<br />
presos! nem Ravi nem Chanti po<strong>de</strong>m se casar se você não se casa!<br />
RAJ eu sei...<br />
OPASH não se preocupe... se você não tem nenhuma moça em vista já falei<br />
com Pandit, o sacerdote. Ele anda pelas casas e conhece muitas<br />
famílias que estão com as filhas prontas!<br />
INDIRA VEM PUXANDO OPASH PARA DANÇAR<br />
RAVI você não gostou nada da idéia do papai<br />
RAJ não estava pensando nisso agora<br />
RAVI parece que estava<br />
RAJ eu tenho uma namorada no Brasil, Ravi!<br />
RAVI Tike he! uma firangii! você gosta <strong>de</strong>la?<br />
RAJ muito! até <strong>de</strong>mais!<br />
RAVI e o que você vai fazer?<br />
RAJ arê baba... não sei!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 58 .CASA DE CHIARA. INTERIOR. TARDE<br />
CHIARA E DUDA<br />
CHIARA como é que é? você largou o emprego <strong>de</strong> gerente na loja?<br />
DUDA um mês Chiara! eu tenho um mês pra entregar o<br />
apartamento, ver passaporte, vacina, arrumar tudo o que eu preciso<br />
pra po<strong>de</strong>r ir com ele! passa voando!<br />
CHIARA mas assim...? a toque <strong>de</strong> caixa?
DUDA dois anos, amiga! dois anos nessa ponte pro outro<br />
lado do mundo<br />
CHIARA a toque <strong>de</strong> caixa eu digo... pra fazer uma mudança<br />
<strong>de</strong> vida <strong>de</strong>sse tamanho!<br />
DUDA eu tô tão feliz, Chiara! mas tão feliz!<br />
CHIARA <strong>de</strong>pois do susto, isso merece um vinho! vamos brindar!<br />
CHIARA VAI PEGANDO O VINHO, DUDA AS TAÇAS<br />
DUDA agora falta você, amiga!<br />
CHIARA não estão sobrando príncipes por aí!<br />
DUDA e o tal Murilo? você ligou pra ele?<br />
285<br />
CHIARA eu não! aquele cafajeste? amiga, eu só estou voltada pra uma coisa<br />
nesse momento: a inauguração do meu centro <strong>de</strong> estética! o que me<br />
falta é Money! <strong>de</strong> cafas, minha vida anda rica!<br />
DUDA quem sabe quando você for pro meu casamento<br />
não conhece um indiano também?<br />
CHIARA e por falar na Índia, em meia hora tenho que estar na Lapa. Marquei<br />
com a Ilana num barzinho indiano! ta a fim?<br />
CORTE PARA<br />
CENA 59. EXTERIOR LOJA ASHIMA. DIA<br />
ASHIMA SERVINDO AS MESAS. INDRA VAI SAINDO PARA O COLÉGIO, CRUZA COM<br />
ILANA<br />
INDRA eu volto, mãe... (TOCA OS PÉS DELA)<br />
ILANA que foi que caiu?<br />
ASHIMA arê! não caiu nada, o menino ta <strong>de</strong>spedindo <strong>de</strong> mim.... pedindo a<br />
benção (SAI)<br />
ILANA (PASMA) você pe<strong>de</strong> a benção tocando os pés <strong>de</strong>la?<br />
INDRA porque ela é mais velha... eu toco os pés <strong>de</strong>la, é um sinal <strong>de</strong> respeito<br />
pelos caminhos que ela andou!<br />
REAÇÃO DE ILANA. VAI PARA A MESA ONDE ESTÁ CHIARA.<br />
ILANA Acabei <strong>de</strong> falar com o arquiteto: acrescentei mais uma sala <strong>de</strong><br />
massagem. Ele adorou a idéia<br />
CHIARA não!<br />
ILANA ficou ótimo, você vai ver
MENINA SAI<br />
286<br />
CHIARA eu tô em pânico! Sério! O Centro <strong>de</strong> estética era pra ser uma coisa<br />
<strong>de</strong>sse tamaninho, já tá ficando enorme....! Amiga: Eu não tenho mais<br />
uma moedinha pra investir!<br />
ILANA por isso que nós somos sócias! você entra com os<br />
conhecimentos e eu banco os extras... adianto<br />
os extras, quer dizer! quando o lucro começar a entrar você me<br />
<strong>de</strong>volve, claro!<br />
ASHIMA (VINDO) experimentem a samosa!<br />
CHIARA dona Ashima, a senhora ainda tem daqueles incensos maravilhosos?<br />
ASHIMA qual é o que você quer?<br />
CHIARA aquele <strong>de</strong> almíscar<br />
ASHIMA sabe o que nós dizemos na Índia? almíscar chama o amor!<br />
CHIARA então é esse mesmo!<br />
ILANA tem algum que chama dinheiro? se tiver, traz!<br />
ASHIMA tem pro que você quiser! (CHAMA) Malika!<br />
MENINA (VINDO) si mami!)<br />
ASHIMA (EM HINDI: VAI BUSCAR INCENSO)<br />
ASHIMA é a minha caçulinha! essa já nasceu aqui no Brasil...<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 60. LAPA. EXTERIOR. DIA<br />
ABEL DIRIGINDO O TRÂNSITO, NUM VERDADEIRO BALLET. CRIANÇA VAI<br />
ATRAVESSAR FORA DA FAIXA, ELE APITA. PEGA A CRIANÇA PELA GOLA E LEVA PRA<br />
DENTRO DA FAIXA. CORTE PARA O CARRO DE ZECA PARANDO. ABEL VAI PARA ELE.<br />
ABEL ei! não tá enxergando a placa?<br />
ZECA (SAINDO DO CARRO) é rapidinho, cara!<br />
ABEL (PUXA O TALÃO) a placa mandou, é pra cumprir! com placa não se<br />
discute!<br />
ZECA (SE AFASTANDO) qual é pangaré?<br />
ABEL PREGA A MULTA NO VIDRO. ZECA SE VOLTA. FURIOSO.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 61 . CASA DE CESAR. INTERIOR. DIA<br />
ZECA, MÃE E PAI<br />
CESAR que que esse guardinha tá pensando que é?
ZECA também não, né pai?<br />
CESAR <strong>de</strong>via ter pego!<br />
287<br />
como é o nome <strong>de</strong>sse idiota? anotou o nome <strong>de</strong>le? pediu pra ver a<br />
carteira? pegou o número <strong>de</strong> registro?<br />
ZECA eu tinha era que ter botado ele pra dormir!<br />
CAMPAINHA TOCA, ZECA VAI ABRIR<br />
CESAR vou ver quem é que eu conheço pra dar um jeito nesse cretino! ele vai<br />
saber com quem tá lidando!<br />
ZECA (ABRINDO A PORTA) fala Leinha!<br />
LEINHA (BEIJA) oi Zeca! pai, eu preciso falar com você! vai<br />
começar aquele curso <strong>de</strong> documentarista que eu te<br />
falei... tô precisando da lente pra minha câmera<br />
CORTE PARA ILANA VINDO DO INTERIOR, PRONTA PARA SAIR<br />
CESAR já viu quanto é?<br />
LEINHA uns 1000 dólares dá...<br />
ILANA que?<br />
CESAR (SENTINDO A TEMPESTADE)<br />
ZECA (SAINDO) fui!<br />
ILANA quanto foi que ela disse?<br />
LEINHA não tô falando com você, Ilana! dá licença <strong>de</strong> conversar com meu pai?<br />
ILANA até parece que eu não tenho nada com o dinheiro <strong>de</strong>ssa casa!<br />
CESAR Ilana...! Leinha, tranqüilas, tranqüilas! não vão começar!<br />
ILANA você sabe as dívidas que eu assumi pra inaugurar o centro <strong>de</strong> Estética.<br />
Em dólares, Cesar! em dólares! se você acha que tem dólares pra<br />
jogar pela janela comprando lente pra essa menina brincar <strong>de</strong><br />
cineasta!<br />
LEINHA (IGNORANDO) cê po<strong>de</strong> me dar, pai?<br />
CESAR (CONTRA A PAREDE. FUGINDO DA DECISÃO) <strong>de</strong>ixa eu pensar,<br />
tá?<br />
ILANA ah! você vai pensar! (VAI SAINDO) e eu estou indo assinar mais<br />
dois cheques, enquanto você pensa! (SAI, BATENDO A PORTA)<br />
ANTES QUE LEINHA DIGA ALGUMA COISA
CESAR eu vou pensar! já disse que vou pensar!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 62 . CASA DE AÍDA.INTERIOR . DIA<br />
AÍDA, CAMILA E LEINHA<br />
AÍDA o que é que você tava esperando? até parece que já não conhece!<br />
Nossa, eu perco a hora <strong>de</strong> novo!<br />
CAMILA VEM DO INTERIOR. PRONTA PARA SAIR<br />
CAMILA como é que eu tô, mãe? vou almoçar com aquele assessor do tio da<br />
Julia: o Dario! o que é que Leinha tem?<br />
AÍDA Ilana ataca outra vez!<br />
LEINHA cê acredita que aquela mulher tá proibindo papai <strong>de</strong> me dar a lente?<br />
CAMILA papai fica muito pressionado!<br />
AÍDA coitadinho, não é Camila? luta com uma dificulda<strong>de</strong>!<br />
enquanto a gente aqui nada em dinheiro!<br />
LEINHA ela <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>!<br />
288<br />
CAMILA não tô <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo, Leinha!... tô enten<strong>de</strong>ndo! a gente pressiona <strong>de</strong> um<br />
lado, a Ilana pressiona <strong>de</strong> outro...! pensa como é que fica a cabeça<br />
<strong>de</strong>le também!<br />
LEINHA pro filhinho <strong>de</strong>le com ela, tudo!<br />
CAMILA (TENTA CORTAR) Leinha, eu só tô dizendo que<br />
MÚSICA SOBE ENQUANTO AÍDA SAI DEIXANDO AS DUAS DISCUTINDO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 63. PÁTEO DA CLÍNICA. EXTERIOR. DIA<br />
AÍDA ENTRANDO. CONFUSÃO. CIÇA, ESTAGIÁRIOS ALI. CEMA NERVOSA. MAICOM,<br />
TODOS CERCANDO UMA ÁRVORE. RITMO BEM MOVIMENTADO.<br />
AÍDA (VENDO A CONFUSÃO) que foi, gente?<br />
CRUZA COM CIDINHA QUE VEM AFLITA EM DIREÇÃO À CLÍNICA<br />
CIDINHA (PASSANDO DIRETO) só mesmo o dr Castanho!<br />
AÍDA VÊ ADEMIR TRANQÜILO, EM CIMA DA ÁRVORE<br />
CIÇA sua mãe e seu irmão estão aqui pra visitar você,<br />
A<strong>de</strong>mir!<br />
CEMA <strong>de</strong>sce, meu filho! faça isso com sua mãe não, Ô minha nossa<br />
senhora!
MAICO cê não queria ver meu MP-3 novo? eu <strong>de</strong>ixo cê escutar ele, <strong>de</strong>sce!<br />
AÍDA o enfermeiro sobe aí e te pega à força, A<strong>de</strong>mir!<br />
CIÇA vou contar até três! um...<br />
CEMA em tempo <strong>de</strong> cair <strong>de</strong>ssas alturas!<br />
CIÇA ...dois, três!<br />
AÍDA sua mãe trouxe a mariola que você gosta, A<strong>de</strong>mir! mostra pra ele,<br />
dona Cema, mostra!<br />
CEMA olhe aqui! olhe!<br />
CIÇA eu vou comer, não vai sobrar nenhuma pra você!<br />
CORTE PARA CASTANHO VINDO COM CIDINHA ATRÁS<br />
CASTANHO raio! o que é que ta acontecendo aí?<br />
CASTANHO CHEGA. OLHA PARA CIMA.<br />
CASTANHO A<strong>de</strong>mir! <strong>de</strong>sce! (PEGA UMA GILETE DO BOLSO E EXIBE PARA<br />
ADEMIR) <strong>de</strong>sce! <strong>de</strong>sce senão eu corto essa árvore já já!<br />
REAÇÃO DE ADEMIR, DESCENDO NA HORA. ENQUANTO CEMA O ABRAÇA E OS<br />
ALUNOS APLAUDEM<br />
AÍDA nossa! que idéia que o senhor teve!<br />
CASTANHO (CONVICTO, BRANDINDO A GILETE) e ele que não <strong>de</strong>scesse, pra<br />
ver se eu não cortava mesmo!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 64 . TAJ. EXTERIOR. DIA<br />
MAYA VEM CORRENDO EM DIREÇÃO AO TAJ. PROCURA COM OS OLHOS.<br />
VÊ BAHUAN QUE VEM EM DIREÇÃO A ELA. OS <strong>DOIS</strong> SE APROXIMAM. EXPLORAR A<br />
SENSUALIDADE DOS OLHARES. AQUELE QUASE BEIJO TÍPICO DOS ENCONTROS DE<br />
AMOR DO CINEMA INDIANO.<br />
FINAL DO CAPITULO 1<br />
289
A <strong>MENOR</strong> <strong>DISTÂNCIA</strong> <strong>ENTRE</strong> <strong>DOIS</strong> <strong>MUNDOS</strong>:<br />
um estudo sobre a representação do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez<br />
Patrícia <strong>de</strong> Miranda Iorio<br />
Número <strong>de</strong> volumes: 1<br />
Tese <strong>de</strong> Doutorado apresentada ao <strong>Programa</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Pós</strong>-Graduação em Ciência da Literatura da<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro como<br />
quesito para a obtenção do Título <strong>de</strong> Doutor<br />
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada)<br />
Orientadora: Profª. Doutora Beatriz Resen<strong>de</strong><br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Março, 2010
A <strong>MENOR</strong> DISTÄNCIA <strong>ENTRE</strong> <strong>DOIS</strong> <strong>MUNDOS</strong><br />
um estudo sobre a representaÅÇo do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez<br />
PatrÉcia <strong>de</strong> Miranda Iorio<br />
Orientadora: Professora Doutora Beatriz Resen<strong>de</strong><br />
Tese <strong>de</strong> Doutorado submetida ao <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> PÑs-GraduaÅÇo em CiÖncia da Literatura<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para<br />
a obtenÅÇo do tÉtulo <strong>de</strong> Doutor em CiÖncia da Literatura (Literatura Comparada).<br />
Examinada por:<br />
_________________________________________________<br />
Presi<strong>de</strong>nte, Profa. Doutora Beatriz Resen<strong>de</strong> – Letras – UFRJ<br />
_________________________________________________<br />
Profa. Doutora Pina Maria Arnoldi Coco – Letras – PUC-Rio<br />
________________________________________________<br />
Prof. Doutor Marildo Josà Nercolini – Estudos <strong>de</strong> MÉdia e PPGCOM – UFF<br />
________________________________________________<br />
Prof. Doutor Fre<strong>de</strong>rico <strong>de</strong> GÑes – Letras – UFRJ<br />
________________________________________________<br />
Profa. Doutora Cristiane Costa – ECO – UFRJ<br />
________________________________________________<br />
Prof. Doutor Renato Cor<strong>de</strong>iro Gomes, Letras – PUC-Rio, Suplente<br />
_______________________________________________<br />
Profa. Doutora HeloÉsa Buarque <strong>de</strong> Hollanda, ECO – UFRJ, Suplente<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
MarÅo <strong>de</strong> 2010<br />
2
Ao meu pai Olyntho (in memoriam),<br />
com quem adoraria ter compartilhado mais esta aventura intelectual.<br />
Ao meu marido Vitor e às minhas Marias, Clara e Isabel,<br />
parceiros e interlocutores amorosos e pacientes.<br />
3
AGRADECIMENTOS<br />
Escrever esta tese foi um gran<strong>de</strong> prazer. Do <strong>de</strong>safio intelectual ao cumprimento <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>adlines, do garimpo <strong>de</strong> informaÅâes ä tela em branco, da análise das telenovelas ä entrevista<br />
com a autora, da solidÇo da escrita ao diálogo com a orientadora ─ tudo teve sabor <strong>de</strong><br />
aventura. Desnecessário mencionar a <strong>de</strong>lÉcia que foi <strong>de</strong>sbravar os caminhos da telenovela e<br />
viajar na imaginaÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez.<br />
Passada a adrenalina, assentada a poeira, à hora <strong>de</strong> fechar a contabilida<strong>de</strong>: como<br />
retribuir a inspiraÅÇo, a sabedoria, o estÉmulo, o interesse, a paciÖncia, a compreensÇo, a<br />
escuta, os comentários e as crÉticas que tanto me ajudaram a chegar atà aqui? Resta-me a<br />
gratidÇo, humil<strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> que nada fiz sozinha. Sei que tudo o que disser aqui será<br />
incapaz <strong>de</strong> expressá-la. Sei tambàm que será impossÉvel listar todos aqueles que, <strong>de</strong> alguma<br />
forma, <strong>de</strong>ixaram sua contribuiÅÇo.<br />
Incalculável à minha dÉvida <strong>de</strong> gratidÇo com a Profå. Drå. Beatriz Resen<strong>de</strong>, orientadora<br />
<strong>de</strong>sta tese: pelo entusiasmo com que abraÅou meu projeto; pela firmeza e coragem com que o<br />
conduziu no terreno das Letras; pela tenacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas observaÅâes; pela confianÅa em<br />
minha capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizaÅÇo; pela generosida<strong>de</strong>, pelo <strong>de</strong>safio intelectual e, principalmente,<br />
pela alegria que foi trabalharmos juntas.<br />
Aos professores do <strong>Programa</strong> <strong>de</strong> PÑs-GraduaÅÇo em CiÖncia da Literatura/Literatura<br />
Comparada da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>vo o meu<br />
crescimento intelectual e o polimento <strong>de</strong> minha formaÅÇo. Ao Prof. Dr. Eduardo Portella,<br />
agra<strong>de</strong>Åo por ter permitido que compartilhasse <strong>de</strong> suas idàias e por ter sido, para minha grata<br />
surpresa, um interlocutor afiado em telenovela. Ao Prof. Dr. Eduardo Coutinho, minha<br />
gratidÇo pela competÖncia com que me apresentou os novos <strong>de</strong>safios da Literatura Comparada<br />
e pelo interesse no folhetim televisivo. Ao Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins, agra<strong>de</strong>Åo o exemplo<br />
<strong>de</strong> serieda<strong>de</strong> e o contraponto inteligente, sempre na <strong>de</strong>fesa da indignaÅÇo como combustÉvel<br />
para a transformaÅÇo.<br />
Agra<strong>de</strong>Åo tambàm ä Profå. Drå. Cristiane Costa e ao Prof. Dr. Fre<strong>de</strong>rico <strong>de</strong> GÑes pelos<br />
comentários e sugestâes oferecidas no exame <strong>de</strong> qualificaÅÇo. Prof. Fre<strong>de</strong>rico, especialmente,<br />
merece ainda minha gratidÇo por ter me socorrido tantas vezes com orientaÅâes virtuais. Aos<br />
dois e tambàm ä Profå. Drå. Pina Coco e ao Prof. Dr. Marildo Nercolini, meus agra<strong>de</strong>cimentos<br />
por aceitarem participar <strong>de</strong>sta banca e enriquecer este trabalho com suas contribuiÅâes.<br />
Aos funcionários da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, sou grata pela ajuda incansável na<br />
orientaÅÇo dos muitos e intrincados caminhos da burocracia acadÖmica.<br />
4
Devo especial agra<strong>de</strong>cimento ä Coor<strong>de</strong>naÅÇo <strong>de</strong> AperfeiÅoamento <strong>de</strong> Pessoal <strong>de</strong> NÉvel<br />
Superior: sem o apoio financeiro da Capes, a <strong>de</strong>dicaÅÇo exclusiva a esta empreitada teria sido<br />
impossÉvel.<br />
A Gloria Perez, minha mais sincera gratidÇo pela generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me receber por duas<br />
vezes, conce<strong>de</strong>ndo-me ao todo seis horas <strong>de</strong> entrevista, num momento especialmente <strong>de</strong>licado<br />
<strong>de</strong> sua vida. Agra<strong>de</strong>Åo tambàm o carinho, a paciÖncia e o material cedido para a pesquisa.<br />
A todas as pessoas com quem informalmente troquei i<strong>de</strong>ias sobre telenovela sou grata<br />
pelo exercÉcio intelectual.<br />
Aos meus sobrinhos Leonardo Santos e Guilherme Miranda, ambos com <strong>de</strong>z anos, sou<br />
grata por diferentes motivos: o primeiro ce<strong>de</strong>u-me um <strong>de</strong> seus brinquedos, um gravador<br />
digital, para que pu<strong>de</strong>sse registrar a entrevista com Gloria Perez; o segundo encantou-me com<br />
seu inesperado interesse sobre a tese e com a soluÅÇo encontrada para sua inesgotável<br />
curiosida<strong>de</strong>: “Tia Tita, <strong>de</strong>pois que for publicado, vocÖ me <strong>de</strong>ixa ler o seu trabalho?”<br />
Aos meus irmÇos, cunhados, parentes e amigos, agra<strong>de</strong>Åo o interesse, a preocupaÅÇo e<br />
a torcida. ès amigas Maria Ängela Bekenn, Isabelle Petit e Ängela Batalha, especialmente,<br />
sou grata pelo entusiasmo com que acompanharam todos os passos <strong>de</strong>sta aventura. è amiga<br />
Lilian Nabuco agra<strong>de</strong>Åo as intermináveis discussâes sobre novela e o sempre bem-vindo<br />
contraponto. Ao meu cunhado Carlos Henrique Santos, agra<strong>de</strong>Åo o clipping interessado <strong>de</strong><br />
material pertinente. Ao meu cunhado Fabio Iorio, um irmÇo que a vida me <strong>de</strong>u, minha<br />
gratidÇo pelo estÉmulo, inteligÖncia e disponibilida<strong>de</strong>, sempre.<br />
Aos meus pais, minha eterna gratidÇo por terem feito do saber um valor para mim. A meu<br />
pai Olyntho, que me <strong>de</strong>ixou nos momentos finais <strong>de</strong>ssa empreitada, agra<strong>de</strong>Åo os muitos exemplos<br />
<strong>de</strong> vida: simplicida<strong>de</strong>, correÅÇo, elegência, gentileza e dignida<strong>de</strong>. A minha mÇe Marly, sou grata<br />
pela energia contagiante, pela disponibilida<strong>de</strong> em ajudar e pelas oraÅâes permanentes.<br />
ès minhas Marias, Clara e Isabel, amores da minha vida, agra<strong>de</strong>Åo por iluminarem os<br />
meus dias, por me fazerem rir e chorar, por me beijarem tanto e me elegerem tantas vezes a<br />
melhor mÇe do mundo. Obrigada pelas inëmeras interrupÅâes, pela paciÖncia e pela<br />
compreensÇo. A Maria Clara, minha gratidÇo pela escuta <strong>de</strong>dicada e crÉtica <strong>de</strong> muitos<br />
capÉtulos. A Maria Isabel agra<strong>de</strong>Åo a assessoria na dolorosa tarefa <strong>de</strong> cortar palavras.<br />
Ao Vitor, parceiro maior <strong>de</strong>sta aventura, cëmplice e artÉfice da minha volta aos meios<br />
universitários <strong>de</strong>pois dos muitos anos <strong>de</strong>dicados prioritariamente ä maternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vo muito:<br />
o amor incondicional, a parceria intelectual, o estÉmulo, a compreensÇo, a <strong>de</strong>dicaÅÇo, a<br />
solidarieda<strong>de</strong>, a crÉtica. Em todos estes anos, a vida e o amor nos fizeram parceiros em tudo.<br />
A Deus agra<strong>de</strong>Åo os <strong>de</strong>safios colocados em meu caminho e a serenida<strong>de</strong> para enfrentá-los.<br />
5
DÄcris-moi ton harem, je te dirai qui tu es.<br />
Fatema Mernissi<br />
“E eu viajo para conhecer a minha geografia”<br />
Um louco,<br />
in Marcel Réja, L’art chez les fous.<br />
“O homem que consi<strong>de</strong>ra a sua pÉtria acolhedora<br />
Ä apenas um terno principiante; aquele para quem qualquer solo<br />
Ä como o seu solo natal Ä jÉ forte; mas Ä perfeito<br />
aquele para quem o mundo inteiro Ä uma terra estrangeira”.<br />
Erich Auerbach<br />
6
RESUMO<br />
IORIO, PatrÉcia <strong>de</strong> Miranda. A <strong>MENOR</strong> DISTÄNCIA <strong>ENTRE</strong> <strong>DOIS</strong> <strong>MUNDOS</strong>: um estudo<br />
sobre a representaÅÇo do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2010.<br />
Tese (Doutorado em Letras) – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2010.<br />
Este estudo tem por objetivo analisar a representaÅÇo do Eu e do Outro em duas<br />
telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez que tratam <strong>de</strong> diferenÅas culturais: “O Clone”, <strong>de</strong> 2001/2002, e<br />
“Caminho das índias”, <strong>de</strong> 2009, ambas exibidas no horário nobre da TV Globo. A observaÅÇo<br />
tem como foco tanto o Outro-estrangeiro, apresentado atravàs dos nëcleos muÅulmano e<br />
indiano resi<strong>de</strong>ntes no Marrocos e na índia da ficÅÇo, como o Outro-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo,<br />
configurado pelas personagens brasileiras que encarnam o drama da <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica e<br />
da doenÅa mental. Pela perspectiva dos estudos <strong>de</strong> cultura, este trabalho explora a telenovela<br />
em várias dimensâes: apresenta suas caracterÉsticas enquanto gÖnero narrativo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> sua<br />
importência enquanto veÉculo <strong>de</strong> narrativida<strong>de</strong> do real, reconhece sua condiÅÇo <strong>de</strong> produto da<br />
indëstria cultural e discute sua aceitaÅÇo como arte. Os mundos muÅulmano e indiano das<br />
telenovelas estudadas sÇo observados a partir dos conceitos <strong>de</strong> representaÅÇo, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e<br />
alterida<strong>de</strong>, tendo como referÖncia as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> “comunida<strong>de</strong> imaginada”, “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural”<br />
“cultura hÉbrida” e “orientalismo”, <strong>de</strong>fendidas por Benedict An<strong>de</strong>rson, Stuart Hall, Nàstor<br />
GarcÉa Canclini e Edward Said, respectivamente. A análise da obra <strong>de</strong> Gloria Perez pela via<br />
da narrativida<strong>de</strong> textual e cÖnica revela uma linhagem que entrelaÅa sua construÅÇo ficcional<br />
com as contribuiÅâes <strong>de</strong> GlÑria Magadan e Janete Clair, configurando suas telenovelas como<br />
narrativas <strong>de</strong> autoria feminina. “O Clone” e “Caminho das índias” mostram-se telenovelas<br />
construÉdas no respeito ä diversida<strong>de</strong> e no compromisso com a transformaÅÇo do cotidiano.<br />
Palavras-chave: Telenovela. RepresentaÅÇo. Narrativa. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Alterida<strong>de</strong> (Brasil).<br />
7
ABSTRACT<br />
IORIO, PatrÉcia <strong>de</strong> Miranda. A <strong>MENOR</strong> DISTÄNCIA <strong>ENTRE</strong> <strong>DOIS</strong> <strong>MUNDOS</strong>: um estudo<br />
sobre a representaÅÇo do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2010.<br />
Tese (Doutorado em Letras) – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2010.<br />
The purpose of this study is to analyze the representation of Self and Other in two Gloria<br />
Perez’s telenovelas that <strong>de</strong>al with cultural differences: “The Clon”, of 2001/2002, and “India,<br />
a love story”, of 2009, both showed on prime time at Globo TV. The observation focuses on<br />
both the foreigner-Other, as it is presented in the Muslim and Indian groups that live on the<br />
fictitious Marroco and India, and the within-self-Other, as it is showed through the drama of<br />
the drug-addicted and mental disturbed characters. Through the perspective of the Culture<br />
Studies, this research explores telenovela in several dimensions: it presents its characteristics<br />
as a narrative gen<strong>de</strong>r, it <strong>de</strong>fends its importance as a vehicle of dissemination of reality<br />
narrativety, it recognizes its condition as a product of Cultural Industry, and it discusses its<br />
acceptance as a form of art. The Muslim and Indian worlds as shown on the analyzed<br />
telenovelas are observed through the concepts of “representation”, “i<strong>de</strong>ntity” and “otherness”,<br />
taking as reference the i<strong>de</strong>as of “imagined community”, “cultural i<strong>de</strong>ntity”, “hybrid culture”<br />
and “orientalism”, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>d by Benedict An<strong>de</strong>rson, Stuart Hall, Nàstor GarcÉa Canclini e<br />
Edward Said, respectively. The analysis of Gloria Perez work through its textual and scenic<br />
narrativety reveals a connection of her fictional pieces with the contributions of previous<br />
writers GlÑria Magadan and Janete Clair, presenting her telenovelas as a narrative of women<br />
signature. “The Clon” and “India, a love story”, appear as being telenovelas built on respect<br />
for diversity and on its compromise with day-life transformation.<br />
Key-words: Telenovela. Representation. Narrative. I<strong>de</strong>ntity. Otherness (Brazil).<br />
8
1 INTRODUÇÃO<br />
SUMÁRIO<br />
2 A TELENOVELA E OS ESTUDOS DE CULTURA<br />
2.1 TELENOVELA BRASILEIRA E REALISMO<br />
2.2 “BRASILIDADE” EM QUESTîO<br />
3 A TELENOVELA ENQUANTO GÊNERO NARRATIVO<br />
3.1 ORIGEM DO FOLHETIM<br />
3.2 FOLHETIM NO BRASIL<br />
3.3 DO FOLHETIM IMPRESSO è RADIONOVELA E è TELENOVELA<br />
3.4 CAMINHOS DA TELENOVELA NO BRASIL<br />
3.5 O PODER DA OBRA ABERTA<br />
3.6 A NARRATIVIDADE<br />
3.7 UMA NARRATIVA POPULAR<br />
4 A NARRATIVIDADE COMO TECNOLOGIA COGNITIVA DO REAL<br />
4.1 NASCIDOS EM BORDïIS ─ O FILME<br />
4.2 BRISKI, A INTELECTUAL ENGAJADA<br />
4.3 AVIJIT, O ARTISTA REVOLTADO<br />
4.4 A MERCADORIA E O AFETO: O CAMINHO POSSíVEL E A AUTONOMIA<br />
5 A TELENOVELA ENQUANTO ARTE<br />
5.1 A ARTE TRADICIONAL<br />
5.2 A ARTE NA PñS-MODERNIDADE<br />
5.3 MAIS QUE MERCADORIA<br />
5.4 A ARTE DA TELENOVELA<br />
6 NARRATIVAS SOBRE MUNDO MUÇULMANO<br />
6.1 JORNALISMO E TELEDRAMATURGIA: NATUREZA DA NARRATIVA<br />
6.2 O MUóULMANO E O ISLAMISMO EM VEJA<br />
6.3 O MUóULMANO E O ISLAMISMO EM “O CLONE”<br />
6.4 NARRATIVAS EM PERSPECTIVA<br />
6.5 O OUTRO POR ELE MESMO<br />
6.6 IDENTIDADES EM JOGO<br />
7 NARRATIVAS SOBRE O MUNDO INDIANO<br />
7.1 DUAS NARRATIVAS FICCIONAIS<br />
7.2 O TEMPO NARRATIVO<br />
7.3 A CARTOGRAFIA DE DUAS íNDIAS<br />
7.4 A íNDIA FORA DAS TELAS<br />
7.5 A VIDA INDIANA NA FICóîO<br />
7.6 DUAS ESTïTICAS PARA A íNDIA<br />
8 DUAS TELENOVELAS, UM OLHAR SOBRE A REPRESENTAÇÃO<br />
8.1 GLñRIA-JANETE-GLORIA, UMA LINHAGEM NO FOLHETIM TELEVISIVO<br />
8.2 <strong>ENTRE</strong> <strong>MUNDOS</strong> DIFERENTES<br />
9
8.3 <strong>ENTRE</strong> A FANTASIA E O REAL<br />
8.4 UMA ASSINATURA FEMININA<br />
10 CONCLUSÄO<br />
11 REFERÅNCIAS<br />
12 ANEXO A - <strong>ENTRE</strong>VISTA COM GLORIA PEREZ<br />
13 ANEXO B – CAPÉTULO 1 DE “CAMINHO DAS ÉNDIAS”<br />
10
1 INTRODUÇÃO<br />
A distância entre nós. TÉtulo <strong>de</strong> um dos romances <strong>de</strong> sucesso da escritora indiana-<br />
americana Thrity Umrigar, a expressÇo soa como emblema em tempos <strong>de</strong> ressaca da<br />
globalizaÅÇo: as “promessas do universalismo abstrato” 1 provaram-se <strong>de</strong>cepcionantes ─ há<br />
mais tensÇo, “confrontaÅÇo e diálogo” do que “fusÇo, coesÇo e osmose”. Reconhecer as<br />
diferenÅas e pensar o diferente num mundo <strong>de</strong> fronteiras fluidas e porosas, on<strong>de</strong> as interseÅâes<br />
e as fecundaÅâes interculturais ten<strong>de</strong>m ä construÅÇo da multiculturalida<strong>de</strong>, requer cada vez<br />
mais redimensionar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> distência, esse afastamento que ao mesmo tempo nos faz<br />
vizinhos e nos impâe a condiÅÇo <strong>de</strong> estrangeiros.<br />
Distência. EspaÅo entre dois mundos. Perto. Longe. Igual. Diferente. Familiar.<br />
Estranho. Eu. Outro. Inëmeros <strong>de</strong>sdobramentos do tema ganharam foco na literatura, no<br />
cinema, na televisÇo, no jornalismo, na polÉtica e nas CiÖncias Sociais, produzindo<br />
estranhamento e encantamento, rejeiÅÇo e fascÉnio; explorando a curiosida<strong>de</strong>, cultivando o<br />
encontro <strong>de</strong> diferenÅas, apostando na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trocas, muitas vezes valendo-se do<br />
exÑtico, outras, do caricato. O “diferente” ganhou todo tipo <strong>de</strong> porta-voz, interlocutor,<br />
mediador, embaixador. Mas tambàm tomou a palavra, falou <strong>de</strong> si e por si, rejeitou o olhar<br />
alheio, pregou a aproximaÅÇo, o sincretismo, a revoluÅÇo, a intransponibilida<strong>de</strong> pacÉfica das<br />
diferenÅas culturais, polÉticas, econòmicas, estàticas, religiosas. Algumas distências foram<br />
encurtadas, outras, estendidas. Entendimento, intolerência, conflito, acomodaÅÇo: resultados<br />
das variadas escalas <strong>de</strong> medida usadas para dimensionar o espaÅo entre mundos distantes<br />
tornados prÑximos pela lÑgica da globalizaÅÇo. Tecnicamente integrado, sem fronteiras, e<br />
povoado por seres em fascinante liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento, o territÑrio globalizado, como<br />
figura <strong>de</strong> retÑrica, <strong>de</strong>nota a utopia da harmonia universal que ardilosamente suprime as<br />
distências, os <strong>de</strong>sencontros e as tragàdias experimentadas pelos cada vez mais numerosos<br />
exilados transitÑrios, navegantes <strong>de</strong> mares <strong>de</strong>sconhecidos e viajantes virtuais das estradas<br />
midiáticas e tecnolÑgicas.<br />
No universo narrativo <strong>de</strong> Gloria Perez, representante feminina <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no seleto e<br />
majoritariamente masculino panteÇo <strong>de</strong> autores brasileiros <strong>de</strong> telenovela <strong>de</strong> horário nobre 2 ,<br />
uma nova cartografia <strong>de</strong> folhetim vem redimensionando as enormes distências que<br />
1 LAPLANTINE & NOUSS, 1997, apud. CANCLINI, 2008, p. XVI.<br />
2 A publicaÅÇo Autores: histórias da teledramaturgia, editada pela TV Globo/Editora Globo, reproduziu os<br />
<strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>zesseis autores contemporêneos <strong>de</strong> renome da emissora, <strong>de</strong>ntre os quais figuram apenas duas<br />
mulheres: Gloria Perez e Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral, esta ëltima mais conhecida por seu trabalho em minisàries do<br />
que em telenovelas.<br />
11
aparentemente separam o Eu do Outro. Em linhas sinuosas, rocambolescas, suas telenovelas<br />
percorrem a menor distência entre mundos afastados e <strong>de</strong>sconhecidos que, estranhamente, se<br />
tornam familiares: oferecem atalhos, passagens secretas e <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> rota que parecem<br />
aproximar do Brasil os distantes Marrocos e índia. Mais que isso: tal qual um Pedro ôlvares<br />
Cabral pÑs-mo<strong>de</strong>rno, Gloria Perez tem tomado o caminho do Oriente em busca <strong>de</strong> fascÉnio (a<br />
nova especiaria dos tempos midiáticos) para <strong>de</strong>saguar, por forÅa das correntes atravessadas do<br />
folhetim, num Brasil que se oferece a ser re<strong>de</strong>scoberto. Como num curto-circuito <strong>de</strong> GPS (a<br />
nova bëssola por satàlite), a autora faz Oriente e Oci<strong>de</strong>nte coincidirem numa mesma<br />
coor<strong>de</strong>nada terrestre: telenovela <strong>de</strong> horário nobre, Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong> TelevisÇo, Brasil.<br />
“O Clone” e “Caminho das índias”, sucessos estrondosos <strong>de</strong> pëblico, marcam a<br />
retomada da essÖncia do folhetim e inauguram a utilizaÅÇo do Outro estrangeiro como<br />
contraponto temático ─ nÇo apenas como “colorido” <strong>de</strong> capÉtulos iniciais, mas como um dos<br />
eixos que sustentam toda a narrativa. Entrincheirada no domÉnio da ficÅÇo televisiva, limitada<br />
pela natureza popular do gÖnero telenovela e restrita a uma linguagem que <strong>de</strong>ve aten<strong>de</strong>r com<br />
eficácia tanto a elite quanto os analfabetos brasileiros e ainda a populaÅÇo estrangeira que<br />
assiste ao folhetim em outros paÉses, a narrativa <strong>de</strong> Gloria Perez tem feito muito mais do que<br />
problematizar o Brasil contemporêneo, gran<strong>de</strong> trunfo das telenovelas mo<strong>de</strong>rnas: “O Clone” e<br />
“Caminho das índias” tÖm contribuÉdo, sobretudo, para a problematizaÅÇo da alterida<strong>de</strong> e seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos, questÇo <strong>de</strong> fundamental importência para o mundo globalizado e foco<br />
central dos Estudos Culturais e PÑs-Coloniais.<br />
Pelo novo fòlego que vem conferindo ao gÖnero supostamente esgotado, Gloria Perez<br />
conquistou um lugar <strong>de</strong>finitivo na histÑria da telenovela brasileira. Alàm <strong>de</strong> combinar a<br />
discussÇo <strong>de</strong> questâes sociais ao fascÉnio resultante da excelente comunicaÅÇo ficcional que<br />
herdou <strong>de</strong> Janete Clair, a discÉpula confessa da mestra das telenovelas brasileiras ainda<br />
adicionou ao cal<strong>de</strong>irÇo da “Maga das Oito” (como Janete era conhecida) um ingrediente prÑprio<br />
dos tempos sem fronteiras: a curiosida<strong>de</strong> sobre outras culturas. (Neste aspecto, especificamente,<br />
e na fertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua imaginaÅÇo criativa, a autora <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
parece revelar tambàm traÅos do DNA pioneiro <strong>de</strong> outra GlÑria, a Magadan.) Na luneta atravàs<br />
da qual enquadra um Outro geograficamente distante e comercialmente prÑximo, Gloria Perez<br />
displicentemente interpâe um espelho e inverte o jogo, propondo ao pëblico um olhar<br />
estrangeiro sobre si mesmo. Quem seria o Eu e quem seria o Outro quando se <strong>de</strong>sloca a<br />
perspectiva? O que à “natural”, familiar, e o que à estranho quando a cultura à posta em xeque?<br />
Embora sua trajetÑria na telenovela brasileira venha <strong>de</strong> longa data ─ Gloria Perez<br />
comeÅou como colaboradora <strong>de</strong> Janete Clair em “Eu Prometo”, <strong>de</strong> 1983, novela que, com a<br />
12
morte da titular, foi obrigada a concluir sozinha; assinou no ano seguinte “Partido Alto” com<br />
Aguinaldo Silva e iniciou carreira solo em 1987 com “Carmem”, na já extinta Re<strong>de</strong> Manchete<br />
─, foi em 2001 que a autora embarcou em sua primeira viagem ao Oriente, trazendo com<br />
gran<strong>de</strong> sucesso o universo muÅulmano do Marrocos para as tramas folhetinescas. O sàculo<br />
XXI parecia inaugurar um novo tempo e a autora, fascinada pelos <strong>de</strong>safios que a tecnologia e<br />
a ciÖncia impâem ä vida humana, escrevia uma novela que pu<strong>de</strong>sse discutir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sob a<br />
forja das artificialida<strong>de</strong>s criadas pelo “progresso”: a possibilida<strong>de</strong> da clonagem humana, que<br />
permite ao homem brincar <strong>de</strong> Deus, criando seres ä sua imagem e semelhanÅa, mas <strong>de</strong>sligado<br />
da Natureza; e a globalizaÅÇo, que obriga a tradiÅÇo a confrontar a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, muitas vezes<br />
a partir do <strong>de</strong>senraizamento das culturas. Detinha-se nos novos conflitos àticos da reproduÅÇo<br />
humana e nos confrontos culturais que se avizinhavam com a globalizaÅÇo dos mercados ─<br />
inclusive a globalizaÅÇo do prÑprio mercado das telenovelas, cada vez avanÅando mais sobre<br />
territÑrios estrangeiros. Diante da constataÅÇo <strong>de</strong> que o folhetim televisivo era entÇo, como<br />
ainda à, o maior produto <strong>de</strong> exportaÅÇo da TV Globo, Gloria Perez escrevia “O Clone”, uma<br />
trama baseada em dois nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo, um ambientado no bairro carioca <strong>de</strong> SÇo CristÑvÇo,<br />
Brasil, e outro na labirÉntica Medina <strong>de</strong> Fez, no Marrocos, sem sequer imaginar que estava<br />
gestando um dos maiores sucessos da teledramaturgia mo<strong>de</strong>rna brasileira.<br />
NÇo era apenas uma novela que, para encantar o pëblico, gravava suas cenas iniciais<br />
numa cida<strong>de</strong> estrangeira atà que a personagem protagonista voltasse ao Brasil. NÇo. “O<br />
Clone” manteve, durante todos os seus 221 capÉtulos exibidos por oito meses e meio, uma<br />
narrativa dividida entre duas culturas e voltada para a construÅÇo <strong>de</strong> uma ponte <strong>de</strong><br />
compreensÇo entre estes dois universos. A temática muÅulmana, consi<strong>de</strong>rada uma temerida<strong>de</strong><br />
antes da estreia da telenovela, acabou por revelar-se um “achado”: em uma coincidÖncia<br />
assustadora, a novela estreou menos <strong>de</strong> um mÖs <strong>de</strong>pois do dramático episÑdio <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong><br />
setembro, e a ficÅÇo acabou servindo <strong>de</strong> contraponto ao noticiário mundial sobre o terrorismo.<br />
Oportuna e encantadora, a versÇo <strong>de</strong> Gloria Perez sobre o mundo muÅulmano nÇo sÑ rompeu<br />
o preconceito dos que temiam a rejeiÅÇo do pëblico por uma temática tÇo distante, diferente e<br />
<strong>de</strong>sconhecida dos brasileiros 3 , como atingiu uma audiÖncia màdia superior ao exigido pela<br />
emissora (e seu ëltimo capÉtulo conseguiu 62 pontos <strong>de</strong> màdia, o que à um excelente Éndice),<br />
elevando <strong>de</strong>finitivamente a autora ao primeiro time <strong>de</strong> teledramaturgos da TV Globo e<br />
consagrando o sucesso do melodrama folhetinesco.<br />
3 A autora já havia rompido tal preconceito anteriormente, quando escreveu “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, novela exibida<br />
em 1995: com enorme sucesso <strong>de</strong> audiÖncia, tratou do entÇo obscuro universo cigano e das possibilida<strong>de</strong>s da<br />
Internet, recurso tecnolÑgico pouco conhecido no Brasil äquela àpoca.<br />
13
Depois <strong>de</strong> assinar a telenovela “Amàrica”, <strong>de</strong> 2005, sobre o mundo dos ro<strong>de</strong>ios e a<br />
imigraÅÇo ilegal, e a minissàrie “Amazònia, <strong>de</strong> Galvez a Chico Men<strong>de</strong>s”, exibida em 2007,<br />
sobre a histÑria da conquista do Acre como territÑrio brasileiro, a autora estreou “Caminho<br />
das índias”, no inÉcio <strong>de</strong> 2009, reforÅando a tendÖncia <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> outras culturas, um dos<br />
traÅos <strong>de</strong> sua assinatura como teledramaturga 4 . A partir da histÑria <strong>de</strong> amor impossÉvel entre<br />
uma moÅa <strong>de</strong> casta e um “intocável”, e apoiada na relaÅÇo comercial entre uma empresa<br />
brasileira e suas parceiras indianas, a trama narra uma sàrie <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong>sencontros<br />
amorosos, profissionais, culturais, àticos e religiosos que permitem uma viagem pelos<br />
costumes da índia e do Brasil. Como em “O Clone”, a totalida<strong>de</strong> dos capÉtulos <strong>de</strong> “Caminho<br />
das índias” se apoiou em dois nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo: um em Jaipur, capital do RajastÇo, na<br />
Repëblica da índia, e outro no Rio <strong>de</strong> Janeiro, Brasil. Desta vez, no entanto, nÇo houve<br />
coincidÖncia. A temática da novela flagrantemente veio a reboque da ascensÇo da índia ä<br />
esfera dos BRICs 5 , grupo <strong>de</strong> paÉses emergentes na economia mundial que tem estreitado as<br />
relaÅâes polÉticas e comerciais entre aquele paÉs e o Brasil. (A prÑpria autora afirma ter<br />
escolhido a índia como foco <strong>de</strong> sua novela durante a MIPCOM, feira internacional realizada<br />
em Cannes para que tevÖs <strong>de</strong> todo o mundo apresentem seus produtos, on<strong>de</strong> teve contato com<br />
a pujanÅa da cultura do paÉs 6 .) Para alàm do exotismo e do mistàrio evocados pelo imaginário<br />
da índia no cenário internacional, o paÉs tem li<strong>de</strong>rado o noticiário mundial com expectativas<br />
<strong>de</strong> sua promissora economia.<br />
Diversos motivos tÖm levado o mundo capitalista a eleger alguns paÉses do mundo<br />
oriental como foco <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse do mercado global. Des<strong>de</strong> os atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong><br />
setembro, das guerras que os suce<strong>de</strong>ram e da ascensÇo da índia ao seleto grupo das economias<br />
emergentes, o mundo do jornalismo, da arte, da cultura, da <strong>de</strong>coraÅÇo, da moda e do<br />
entretenimento vem sendo invadido por um Oriente suficientemente maleável, capaz <strong>de</strong> se<br />
ajustar äs mais diferentes exigÖncias mercadolÑgicas. Depen<strong>de</strong>ndo da imagem que se quer<br />
ven<strong>de</strong>r, o Oci<strong>de</strong>nte oferece o Oriente “inimigo impiedoso”, o que pratica religiâes<br />
4 Gloria Perez rejeita os rÑtulos que possam reduzir sua dramaturgia a um tema, como as diferenÅas culturais, por<br />
exemplo. Prefere dizer que à o novo que lhe inspira: imaginar os tipos <strong>de</strong> drama que “serÇo vividos pelas<br />
geraÅâes futuras em funÅÇo dos avanÅos tecnolÑgicos, cada vez mais rápidos”. In Autores: histórias da<br />
dramaturgia, 2008, p. 481.<br />
5 O acrònimo BRIC, criado em 2001 pelo economista Jim O’Neill, <strong>de</strong>staca o Brasil, a Rëssia, a índia e a China<br />
como paÉses que, pelas mais recentes projeÅâes <strong>de</strong>mográficas e mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> acumulaÅÇo <strong>de</strong> capital e crescimento<br />
<strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong>, ten<strong>de</strong>m a superar em conjunto, em menos <strong>de</strong> 40 anos, a economia dos G6, grupo que reëne<br />
Estados Unidos da Amàrica, JapÇo, Alemanha, Reino Unido, FranÅa e Itália.<br />
6 PEREZ, 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009. Entrevista ao Canal Extra (“NamastÖ Brasil”). DisponÉvel em:<br />
.<br />
14
“inaceitáveis”, o que tem matrizes culturais “estranhas”, ou o que à “frágil” e precisa <strong>de</strong><br />
“tutor” externo, ou ainda aquele que, graÅas ä perspectiva <strong>de</strong> tornar-se uma das maiores forÅas<br />
mundiais, à “fashion 7 ”, oculta talentos insuspeitados e grita, libertariamente, contra as forÅas<br />
<strong>de</strong> opressÇo polÉtica, cultural, racial, sexual e religiosa. O fato à que a mÉdia oci<strong>de</strong>ntal, porta-<br />
voz do sistema capitalista, tem feito do Oriente um rentável produto <strong>de</strong> consumo. Nas<br />
prateleiras <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>roso supermercado, estÇo expostos lado a lado o fanatismo religioso <strong>de</strong><br />
Bin La<strong>de</strong>n e a riqueza da arte afegÇ; os avanÅos cientÉficos do mundo árabe e a opressÇo<br />
feminina expressa em burkas e cÑdigos <strong>de</strong> obediÖncia; o colorido e o brilho das sedas que<br />
embrulham as mulheres em sáris indianos preciosos e a sujeira <strong>de</strong> um Ganges milagroso que<br />
banha as esperanÅas <strong>de</strong> um povo e os mortos a càu aberto.<br />
No rastro dos atentados ao World Tra<strong>de</strong> Center e da estreia <strong>de</strong> “O Clone” no Brasil,<br />
várias faces da cultura muÅulmana vieram ä tona, invadindo o noticiário, a vitrine <strong>de</strong> livrarias,<br />
a indëstria <strong>de</strong> eventos festivos (vi<strong>de</strong> a sëbita procura por tendas árabes, a contrataÅÇo <strong>de</strong><br />
danÅarinas do ventre para “<strong>de</strong>corar” festas temáticas e a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>manda por fantasias <strong>de</strong><br />
odalisca), os documentários <strong>de</strong> tevÖ e as telas <strong>de</strong> cinema (vi<strong>de</strong> “Paradise Now”, do palestino<br />
Hany Abu-Assad, lanÅado em 2005, ficÅÇo que acompanha o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> dois homens-bomba<br />
recrutados para um ataque suicida, e que recebeu uma indicaÅÇo ao Oscar <strong>de</strong> Melhor Filme<br />
Estrangeiro, alàm <strong>de</strong> ter conquistado vários prÖmios, como o Globo <strong>de</strong> Ouro <strong>de</strong> Melhor Filme<br />
Estrangeiro, o European Film Awards <strong>de</strong> Melhor Roteiro e o In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt Spirit Awards <strong>de</strong><br />
Melhor Filme Estrangeiro).<br />
Igualmente, no rastro da ascensÇo da índia ao grupo dos BRIC’s e da estreia <strong>de</strong><br />
“Caminho das índias”, tudo o que tem origem indiana foi ungido pelo toque encantado da<br />
mÉdia. Como disse a jornalista Cora RÑnai em sua coluna semanal no Segundo Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> O<br />
Globo 8 , “tornou-se impossÉvel entrar em qualquer livraria sem encontrar logo ali, no balcÇo da<br />
frente, pequenas coleÅâes <strong>de</strong>dicadas ao paÉs”. Ela mesma confessava ter sucumbido ä febre da<br />
literatura indiana: “Do alto da minha mesinha <strong>de</strong> cabeceira quase vinte livros me<br />
contemplam”. De naturezas diversas, as obras que trazem a índia como tema e ocupam espaÅo<br />
7 Ao mesmo tempo em que a estàtica indiana torna-se fashion na moda, na <strong>de</strong>coraÅÇo e na gastronomia em todo<br />
o mundo, a índia se consagra tambàm como um mercado fashion. Em outubro <strong>de</strong> 2007, a ediÅÇo brasileira da<br />
Vogue comemorava em matària <strong>de</strong> duas páginas o lanÅamento da revista na índia com a seguinte afirmaÅÇo:<br />
“Quando a bÉblia fashion Vogue se instala em um novo paÉs, à sinal que [sic.] o mercado <strong>de</strong> luxo <strong>de</strong>finitivamente<br />
chegou por lá”. E completa: “No rastro da migraÅÇo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s marcas como Chanel, Hermös e Jimmy Choo, a<br />
Con<strong>de</strong> Nast lanÅa sua Vogue índia convicta <strong>de</strong> que à apenas questÇo <strong>de</strong> (pouco) tempo para que milhares <strong>de</strong><br />
indianas aposentem seus saris e kurtas e saiam em busca <strong>de</strong> novas aventuras no campo do estilo ─ cá entre nÑs,<br />
coragem para cometer extravagências nÇo vai faltar, muito menos po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> consumo, já que o paÉs vem<br />
galopando rumo ao topo do mundo”. OVERMEER, outubro <strong>de</strong> 2007, pp. 33.<br />
8 RñNAI, 7/05/2009, Segundo Ca<strong>de</strong>rno, O Globo, p. 8.<br />
15
majoritário nas vitrines das livrarias brasileiras sÇo narrativas que revelam certamente os<br />
efeitos dos Estudos PÑs-coloniais na libertaÅÇo das vozes que durante tanto tempo quedaram<br />
subjugadas pela cultura dominante europàia ─ inglesa, no caso. Mais do que trazer ä tona a<br />
versÇo do mundo silenciada pelo imperialismo, muitos <strong>de</strong>stes livros trazem a versÇo feminina<br />
do Oriente, revelando uma dimensÇo inesperada do olhar da mulher sobre a cultura indiana. A<br />
visÇo <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong>stas autoras, manifesta <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> confinamento ao segundo plano<br />
da vida cultural em seu paÉs, on<strong>de</strong> eram muitas vezes proibidas <strong>de</strong> expressar-se, possibilita a<br />
<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> nuances riquÉssimas e <strong>de</strong>sconhecidas <strong>de</strong>ste novo cenário.<br />
Tambàm o cinema foi surpreendido com um relato feminino sobre a índia, inovador<br />
no formato (um documentário subjetivo, em narrativa engajada) e no foco (as crianÅas filhas<br />
<strong>de</strong> prostitutas), lanÅado por uma fotÑgrafa inglesa estreante na indëstria cinematográfica.<br />
“Nascidos em bordàis”, <strong>de</strong> Zana Briski e Ross Kauffman, ganhou o Oscar <strong>de</strong> melhor<br />
documentário em 2005, categoria que lhe ren<strong>de</strong>u tambàm o prÖmio do National Board of<br />
Review e dos Los Angeles Film Critics. O filme da inglesa Briski, que conquistou o mundo<br />
com as tristes imagens da antiga colònia da Inglaterra, foi eleito ainda o melhor documentário<br />
pelo jëri popular no Sundance Film Festival, em 2004. Cinco anos <strong>de</strong>pois, pouco antes da<br />
estreia <strong>de</strong> “Caminhos das índias”, novo filme sobre o paÉs, novamente dirigido por um inglÖs,<br />
ganhava os holofotes da mÉdia: “Quem quer ser um milionário?”, do cineasta Danny Boyle,<br />
totalmente rodado na índia e com atores indianos, sagrou-se vencedor <strong>de</strong> oito Oscar, inclusive<br />
o <strong>de</strong> melhor filme e melhor diretor.<br />
Indiscutivelmente, as novas regras do jogo da polÉtica e da economia mundial fizeram<br />
do Oriente uma peÅa <strong>de</strong> fundamental importência. Para alàm da curiosida<strong>de</strong> que Gloria Perez<br />
afirma sentir pelos povos árabes e indianos, nÇo terá sido por mero capricho que a autora<br />
elegeu o Marrocos e a índia como <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> uma viagem fascinante pelas culturas<br />
muÅulmana e hindu. Potencialmente, a simples escolha <strong>de</strong>stes paÉses como locaÅÇo e<br />
contraponto para a cultura brasileira já garante para suas telenovelas um alcance incalculável<br />
<strong>de</strong> pëblico e um faturamento altÉssimo em exportaÅÇo. NÇo se po<strong>de</strong> esquecer que a telenovela<br />
hoje no Brasil movimenta nÇo sÑ o mercado interno com a venda vigorosa <strong>de</strong> espaÅo<br />
publicitário, merchandising e produtos com a marca da trama, mas tambàm fatura no mercado<br />
externo com sua exportaÅÇo, replicando em culturas as mais diversas o forte impacto que<br />
exerce no pëblico brasileiro e funcionando como um eficiente porta-voz da cultura nacional<br />
no exterior. Desnecessário lembrar que, alàm do valor <strong>de</strong> exportaÅÇo das telenovelas, tal<br />
iniciativa ainda ren<strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong> divisa para o paÉs, capitalizada sob a forma <strong>de</strong><br />
“embaixada” e propaganda do jeito <strong>de</strong> ser brasileiro junto ao mercado global. Apesar do alto<br />
16
investimento na produÅÇo <strong>de</strong>stas obras <strong>de</strong> ficÅÇo televisiva, nÇo há como negar que seu po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> comunicaÅÇo garante rendimentos <strong>de</strong> amplo espectro.<br />
A longevida<strong>de</strong> do gÖnero no Brasil ─ a <strong>de</strong>speito dos sucessivos anëncios <strong>de</strong> sua morte<br />
─, os altÉssimos Éndices <strong>de</strong> audiÖncia e a fortÉssima cotaÅÇo no mercado internacional há muito<br />
fazem da telenovela uma narrativa que tem conquistado pëblicos <strong>de</strong> todas as classes sociais e<br />
ida<strong>de</strong>s, resistindo ao tempo e cruzando fronteiras culturais. Alguns personagens e tramas<br />
marcam àpoca, ditam moda, introduzem bordâes, alteram o comportamento do pëblico, forÅam<br />
o mercado a se a<strong>de</strong>quar a novos padrâes <strong>de</strong> consumo. Numerosas revistas sÇo editadas tendo as<br />
telenovelas, seus autores e atores como foco, assim como à crescente o nëmero <strong>de</strong> blogs e sites<br />
sobre o assunto. Os <strong>de</strong>sfechos das tramas chegam mesmo a ganhar <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>,<br />
conquistando espaÅo na primeira página <strong>de</strong> jornais como se fatos fossem. Isso sem contar a<br />
proliferaÅÇo do gÖnero em boa parte das emissoras nacionais, ocupando gran<strong>de</strong> espaÅo em suas<br />
gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> programaÅÇo e criando a prática da “reserva <strong>de</strong> atores” para produÅâes futuras (<strong>de</strong><br />
modo a impedir sua escalaÅÇo em outras produÅâes ou mesmo sua evasÇo para a emissora<br />
concorrente), e investimento maciÅo em tecnologia, cenografia e figurino.<br />
Com uma histÑria que se confun<strong>de</strong> com a histÑria da televisÇo no Brasil ─ a primeira<br />
telenovela, “Sua vida me pertence”, <strong>de</strong> Walter Foster, foi veiculada na TV Tupi em<br />
1951/1952, pouco mais <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong>pois da inauguraÅÇo da televisÇo no paÉs ─ e com uma<br />
trajetÑria que vem atravessando quase 60 anos <strong>de</strong> transformaÅâes polÉticas, sÑcio-econòmicas<br />
e culturais, a ficÅÇo televisiva brasileira nÇo sÑ conquistou um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na cultura<br />
nacional como tambàm se tornou referÖncia internacional <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> em termos <strong>de</strong> narrativa<br />
ficcional e produÅÇo. Mais que um produto bem sucedido <strong>de</strong> mÉdia, tornou-se fenòmeno<br />
sÑcio-cultural e riquÉssimo objeto <strong>de</strong> investigaÅÇo para aqueles que percebem no gosto das<br />
massas uma importante abertura para o conhecimento <strong>de</strong> um povo e sua cultura. Apesar das<br />
polÖmicas sobre o esgotamento do gÖnero e sobre a “qualida<strong>de</strong>” literária da narrativa, a<br />
telenovela inegavelmente se firmou como “um dos mais importantes e amplos espaÅos <strong>de</strong><br />
problematizaÅÇo do Brasil, das intimida<strong>de</strong>s privadas äs polÉticas pëblicas” 9 , sintetizando o<br />
pëblico e o privado, o polÉtico e o domàstico, a notÉcia e a ficÅÇo, convenÅâes formais do<br />
documentário e do melodrama. Como escreve Jesës MartÉn-Barbero, “à nas telenovelas e<br />
programas dramáticos que o paÉs se relata e se <strong>de</strong>ixa ver” 10 .<br />
Encantei-me com elas ainda menina, talvez pelo simples fato <strong>de</strong> ter nascido mulher no<br />
paÉs da telenovela. Naquele tempo, as ficÅâes televisivas seriadas ainda eram vistas como<br />
9 “RepresentaÅÇo”. DisponÉvel em: .<br />
10 MARTíN-BARABERO e REY, 2001, p. 161.<br />
17
entretenimento raso, <strong>de</strong>stinado ao consumo frÉvolo <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>socupadas e alienadas.<br />
Assistir a telenovelas nÇo era coisa que homem fizesse impunemente. Do encantamento<br />
adolescente, fui me dando conta, já estudante <strong>de</strong> Jornalismo, do gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> comunicaÅÇo<br />
das tramas folhetinescas e do quanto aquela narrativa atualizada diariamente funcionava como<br />
ponto <strong>de</strong> contato entre os diferentes estratos da populaÅÇo brasileira, estabelecendo uma troca<br />
possÉvel entre a elite e a populaÅÇo carente, a crianÅa e o idoso, o intelectual e os milhâes <strong>de</strong><br />
analfabetos. Po<strong>de</strong>rosa em sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer esta inusitada ligaÅÇo entre pÑlos tÇo<br />
opostos e eficaz em seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “agendar” as conversas <strong>de</strong> brasileiros do Oiapoque ao ChuÉ,<br />
a telenovela logo <strong>de</strong>spertou minha atenÅÇo por seu potencial <strong>de</strong> mobilizaÅÇo das massas:<br />
vivÉamos sob a ditadura militar e, num Brasil cuja governabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendia da construÅÇo <strong>de</strong><br />
um projeto <strong>de</strong> naÅÇo, nÇo se podia abrir mÇo da telenovela como instrumento polÉtico. NÇo foi<br />
por outro motivo que muitos dramaturgos <strong>de</strong> esquerda, diante do silÖncio imposto pela<br />
censura a seus textos teatrais, correram para a televisÇo, assumiram pseudònimos, e passaram<br />
a assinar telenovelas, fazendo-as abandonar o dramalhÇo cartático (que muitas vezes foi<br />
acusado <strong>de</strong> servir apenas para distrair a populaÅÇo dos horrores da ditadura) para adotar, nas<br />
entrelinhas, o tom <strong>de</strong> manifesto polÉtico.<br />
Encantei-me novamente e <strong>de</strong> forma diferente pela telenovela quando tive que ficar<br />
dois anos sem ela: um curso <strong>de</strong> Mestrado em Jornalismo na Southern Illinois University me<br />
levaria a viver por dois anos nos Estados Unidos, e a experiÖncia particular <strong>de</strong><br />
interculturalida<strong>de</strong> acabaria me conduzindo a tomar a ficÅÇo seriada como objeto <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong><br />
minha dissertaÅÇo. Interessava-me, naquele momento, <strong>de</strong> que maneira as culturas brasileira e<br />
norte-americana <strong>de</strong>ixavam sua marca na estàtica <strong>de</strong> produtos midiáticos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
repercussÇo, como as telenovelas e as soap operas. Os cÑdigos culturais manifestos nos<br />
diversos discursos ─ o enredo, as personagens, o cenário, a ediÅÇo <strong>de</strong> imagens, a mësica, o<br />
“espetáculo” e a representaÅÇo da vida ─ eram o foco do estudo comparativo entre a<br />
telenovela brasileira “Roque Santeiro” (entÇo recàm veiculada com extraordinário sucesso) e<br />
a soap opera norte-americana “Dallas” (produÅÇo que ganhou o mundo no formato seriado).<br />
O suporte teÑrico eram as concepÅâes <strong>de</strong> drama <strong>de</strong> AristÑteles (espetáculo cartático,<br />
“alienante”) e <strong>de</strong> Bertolt Brecht (teatro àpico, social e politicamente “conscientizante”). A<br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo da telenovela e da soap opera enquanto mero entretenimento ou veÉculo <strong>de</strong><br />
conscientizaÅÇo foi possÉvel atravàs da análise do conjunto <strong>de</strong> elementos que compunham a<br />
dramaturgia televisiva nas duas produÅâes e da maneira pela qual cada cultura emergia<br />
atravàs <strong>de</strong>stes elementos. Alàm <strong>de</strong> contar com o acompanhamento <strong>de</strong> duas codificadoras do<br />
material analisado como forma <strong>de</strong> garantir imparcialida<strong>de</strong>, fui honrada com a contribuiÅÇo<br />
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valiosÉssima do Prof. Dr. K. S. Sitaram 11 , professor da Escola <strong>de</strong> Rádio e TelevisÇo da<br />
Southern Illinois University at Carbondale, um indiano naturalizado americano cujas<br />
observaÅâes a respeito dos capÉtulos que compunham a amostra <strong>de</strong> cada um dos programas<br />
introduziram novas nuances culturais ao estudo. O trabalho acabou se revelando um<br />
interessante passaporte para as culturas brasileiras e norte-americanas, alàm <strong>de</strong> um <strong>de</strong>talhado<br />
roteiro para <strong>de</strong>sbravar as especificida<strong>de</strong>s da teledramaturgia produzida no Brasil e nos Estados<br />
Unidos naquele momento.<br />
Passados 18 anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a dissertaÅÇo <strong>de</strong> mestrado e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> minha volta ao Brasil, on<strong>de</strong><br />
acabei por constituir famÉlia e retomar minha carreira <strong>de</strong> professora universitária (lecionei na<br />
PontifÉcia Universida<strong>de</strong> CatÑlica do Rio <strong>de</strong> Janeiro por 14 anos, sempre ä frente da disciplina<br />
“Sistemas <strong>de</strong> ComunicaÅÇo”, cujo programa conduzi como uma viagem por diferentes<br />
culturas), as telenovelas ainda permaneciam no foco <strong>de</strong> minha atenÅÇo, os cruzamentos<br />
interculturais e o multiculturalismo tambàm persistiam como preferÖncia <strong>de</strong> abordagem, mas<br />
havia agora um novo olhar. O fenòmeno midiático já havia sido suficientemente explorado.<br />
Se as pesquisas sobre telenovelas apenas engatinhavam quando iniciei o mestrado, em 1985,<br />
<strong>de</strong> lá para cá o paÉs dos folhetins televisivos tinha passado a contar com o trabalho <strong>de</strong><br />
investigaÅÇo sistemática do Centro <strong>de</strong> Pesquisa sobre Telenovela da Escola <strong>de</strong> ComunicaÅÇo e<br />
Artes da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> SÇo Paulo. Funcionando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1992 com o objetivo <strong>de</strong> legitimar a<br />
ficÅÇo televisiva como objeto cientÉfico, muito tinha sido feito ao longo <strong>de</strong>ste perÉodo para<br />
comprovar a legitimida<strong>de</strong> e a valida<strong>de</strong> das investigaÅâes acadÖmicas acerca do gÖnero<br />
ficcional como produto <strong>de</strong> mÉdia, o que impulsionou significantemente o nëmero <strong>de</strong><br />
publicaÅâes no Brasil sobre a telenovela brasileira e latinoamericana.<br />
Neste momento em que a mÉdia está tÇo fortemente marcada pelo puramente visual e<br />
tÇo impregnada <strong>de</strong> realismo documental, as tramas <strong>de</strong> Gloria Perez <strong>de</strong>spertam meu olhar para<br />
o novo: muito mais do que um po<strong>de</strong>roso produto <strong>de</strong> mÉdia, a telenovela se revela hoje como a<br />
maior veiculadora <strong>de</strong> narrativas. Ancorada numa narrativa que se afirma como ficÅÇo, que<br />
resgata a vigÖncia do pacto ficcional e da alegoria, a dramaturgia da discÉpula <strong>de</strong> Janete Clair<br />
renova o gÖnero telenovela. Sua fÑrmula parece misturar com sabedoria e sensibilida<strong>de</strong> traÅos<br />
11 K. S. Sitaram à fundador da Intercultural and Development Communication Division da International<br />
Communications Association, da qual foi presi<strong>de</strong>nte entre 1970-1972; foi jornalista e oficial do ministro <strong>de</strong><br />
Information and Broadcasting na índia; e autor <strong>de</strong> livros como Foundations of Intercultural Communication<br />
(Columbus, Ohio: C.E. Merril Pub. Co., 1976), Culture and Communication: A World View (New York:<br />
McGraw-Hill, 1970) e co-editor, com Michael Prosser, <strong>de</strong> Civic Discourse: Multiculturalism, Cultural Diversity,<br />
and Global Communication (volume 1) e <strong>de</strong> Civic Discourse: Intercultural, International, and Global Media<br />
(volume 2) (Greenwitch, CT: Ablex, 1999). Mais recentemente publicou o artigo “South Asian Theories of<br />
Speech Communication: Origins and applications in Ancient, Mo<strong>de</strong>rn, and Postmo<strong>de</strong>rn Times” no Human<br />
Communication: A Journal of the Pacific and Asian Communication Association (volume 7, 2004, pp. 83-101).<br />
19
valiosos <strong>de</strong> nosso passado literário, temáticas <strong>de</strong> algumas telenovelas pioneiras e inquietaÅâes<br />
que marcam as publicaÅâes contemporêneas. Gloria Perez resgata a essÖncia feminina do<br />
romance epistolar do sàculo VIII, revisita a emoÅÇo sequenciada do folhetim francÖs que<br />
encantou gran<strong>de</strong>s nomes da literatura brasileira do sàculo XIX, retoma o valor da imaginaÅÇo<br />
explorado nas primeiras telenovelas brasileiras, avanÅa sobre o imaginário da globalizaÅÇo<br />
presente em gran<strong>de</strong> parte das obras editadas neste inÉcio <strong>de</strong> sàculo XXI, dialoga com a estàtica<br />
narrativa das mÉdias eletrònicas, assimila a pauta do jornalismo na discussÇo <strong>de</strong> questâes<br />
fundamentais da vida mo<strong>de</strong>rna, explora o fascÉnio pelas imagens e ainda acomoda as<br />
imposiÅâes da regÖncia do mercado, como o “merchandising social” e a interferÖncia do gosto<br />
popular manifesto nas pesquisas <strong>de</strong> opiniÇo.<br />
Tais observaÅâes impuseram-me uma guinada acadÖmica: a perspectiva do Jornalismo<br />
e da ComunicaÅÇo Social, com sua exigÖncia “cientÉfica” <strong>de</strong> carregar sentido do emissor ao<br />
receptor, nÇo mais dava conta <strong>de</strong> <strong>de</strong>scortinar o que me interessava ver. Era preciso treinar o<br />
olhar sob a lÑgica do sensÉvel: converter o objetivo em subjetivo, o tàcnico em estàtico;<br />
acolher a forma e a matària do verbo pelo espÉrito; sorver e organizar o mundo pelos sentidos.<br />
Refugiei-me na Literatura: o Doutorado em Letras me abriu novas portas <strong>de</strong> percepÅÇo.<br />
Voltei-me para a telenovela disposta a mapear-lhe a narrativida<strong>de</strong>. Se o que Gloria Perez faz à<br />
Literatura ou literatura, <strong>de</strong>ixo a questÇo como entretenimento duradouro para os guardiâes do<br />
cênone. Importa-me aqui sua habilida<strong>de</strong> em contar histÑrias. Entrecortada em capÉtulos diários<br />
que se esten<strong>de</strong>m por mais <strong>de</strong> oito meses, a escritura da autora nÇo tem o ritmo alucinante dos<br />
vi<strong>de</strong>oclips, nÇo explora cenas <strong>de</strong> sexo nem se apoia no suspense da revelaÅÇo <strong>de</strong> um crime,<br />
ingredientes que tradicionalmente potencializam o interesse do pëblico. Embora a temática <strong>de</strong><br />
“O Clone” e <strong>de</strong> “Caminho das índias” introduza surpreen<strong>de</strong>nte fascÉnio junto ä audiÖncia, ela<br />
parece ser apenas a cereja da poÅÇo mágica da nova “Maga das Oito”. Para alàm do tema, sua<br />
forÅa se sustenta mesmo na narrativa, no “como” a trama se <strong>de</strong>sdobra pelos nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo.<br />
Conhecer a forma com que os recursos textuais e cÖnicos sÇo utilizados por Gloria Perez na<br />
construÅÇo <strong>de</strong> suas histÑrias ─ eis o caminho original que ouso percorrer neste trabalho, na<br />
esperanÅa <strong>de</strong> contribuir para a acolhida do universo da telenovela no campo das Letras.<br />
O entusiasmo <strong>de</strong> falar do novo, no entanto, esbarra na solidÇo da falta <strong>de</strong> interlocutores<br />
(bibliografia especÉfica) e no receio <strong>de</strong> ser traÉda pela precipitaÅÇo. Como pon<strong>de</strong>ra Beatriz<br />
Resen<strong>de</strong> 12 (para <strong>de</strong>pois subverter o ensinamento do senso comum), a tendÖncia normal seria<br />
apelar para a prudÖncia, “<strong>de</strong>ixar passar algum tempo antes <strong>de</strong> se ocupar do novo,<br />
12 RESENDE, 2008, p. 8.<br />
20
especialmente quando se trata <strong>de</strong> literatura, a arte que continua ligada a suportes que se<br />
querem duráveis, transmissÉveis <strong>de</strong> geraÅÇo em geraÅÇo [...]”. Entretanto, a prÑpria autora<br />
concorda que ocupar-se do presente à um imperativo em se tratando <strong>de</strong> “literatura televisiva”<br />
ou <strong>de</strong> telenovela, essa arte ligada a um suporte nada durável ─ a televisÇo. Apesar da<br />
intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu efeito sobre o pëblico e da profusÇo <strong>de</strong> comentários que suscita durante sua<br />
exibiÅÇo, a telenovela, dada a natureza do veÉculo que a transmite e dado o formato “fatiado”<br />
<strong>de</strong> sua emissÇo, constitui uma narrativa extremamente fugaz, sendo praticamente esquecida<br />
com a estreia do folhetim seguinte. Desse modo, nÇo há tempo para prudÖncias. Por outro<br />
lado, sendo a narrativida<strong>de</strong> das telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez o novo <strong>de</strong> que me ocupo aqui, e<br />
tomando como objeto <strong>de</strong> análise (por forÅa da semelhanÅa estàtica entre elas) obras exibidas<br />
em dois diferentes momentos (“O Clone”, em 2001/2002 e “Caminho das índias”, em 2009,<br />
ao longo <strong>de</strong>ste estudo), nÇo se po<strong>de</strong> dizer que houve precipitaÅÇo: <strong>de</strong> certa forma este trabalho<br />
<strong>de</strong>u lugar ä prudÖncia, <strong>de</strong>ixando passar algum tempo para que a prÑpria novida<strong>de</strong> narrativa da<br />
autora se consolidasse.<br />
O tom terroso <strong>de</strong> “O Clone” já estava esmaecido na memÑria volátil do pëblico<br />
quando, em 2005, voltei meus olhos para a forÅa narrativa <strong>de</strong> Gloria Perez. GraÅas ä<br />
“generosida<strong>de</strong>” do site da novela, que äquela altura ainda mantinha seus capÉtulos disponÉveis<br />
para acesso, pu<strong>de</strong> retomar o contato com a escritura cÖnica da autora e reafirmar minha<br />
intenÅÇo <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>sta ficÅÇo televisiva o foco <strong>de</strong> minha tese <strong>de</strong> Doutorado. Naquele<br />
momento, o Oriente presente nos inëmeros tÉtulos expostos nas livrarias do paÉs (muitos <strong>de</strong>les<br />
assinados por mulheres, como A distância entre nós e O livreiro <strong>de</strong> Cabul, lanÅados no Brasil<br />
em 2006, escritos por Thrity Umrigar e õsne Seierstad, respectivamente) e no documentário<br />
<strong>de</strong> Zana Briski sobre as crianÅas <strong>de</strong> bordàis oferecia-se como um interessante contraponto<br />
para meu estudo, já que pretendia analisar a narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “O Clone” como ponto <strong>de</strong><br />
partida para o estudo da representaÅÇo do Outro na teledramaturgia (no caso, a representaÅÇo<br />
da cultura muÅulmana diante da brasileira). Tal corpus já me parecia suficientemente legÉtimo<br />
quando fui surpreendida pela notÉcia da estreia, em 2009, <strong>de</strong> “Caminho das índias”, telenovela<br />
que reafirmaria a autora como contadora <strong>de</strong> histÑrias sobre o Outro e que revigoraria, no<br />
ëltimo ano <strong>de</strong> minha pesquisa <strong>de</strong> tese, o peso e a consistÖncia <strong>de</strong> sua assinatura sobre meu<br />
objeto <strong>de</strong> estudo. O fato <strong>de</strong> Gloria Perez ter escrito uma segunda novela tendo o Outro oriental<br />
como foco e o fato <strong>de</strong> ela ser mais uma voz feminina neste vasto cenário <strong>de</strong> vozes que falam<br />
do Oriente (embora ela, diferente da maioria, tenha um olhar estrangeiro sobre estas culturas)<br />
fazem com que “O Clone” e “Caminho das índias” se materializem como um corpus <strong>de</strong><br />
estudo nÇo sÑ original como oportuno.<br />
21
Assim, a partir da observaÅÇo da narrativida<strong>de</strong>, este trabalho tem por objetivo<br />
examinar <strong>de</strong> que modo a representaÅÇo do Eu e do Outro à construÉda nas telenovelas<br />
brasileiras “O Clone” e “Caminho das índias”, exibidas no horário nobre da Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong><br />
TelevisÇo. Alàm disso, no contexto da pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> as narrativas retomam seu<br />
lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, on<strong>de</strong> tudo tem <strong>de</strong> contar uma histÑria, este estudo preten<strong>de</strong>, atravàs da<br />
análise <strong>de</strong>stas duas obras da dramaturgia seriada televisiva, discutir o lugar do intelectual<br />
contemporêneo e as possibilida<strong>de</strong>s da narrativa que se apresentam como relato feminino <strong>de</strong><br />
ficÅÇo e marca autoral <strong>de</strong> Gloria Perez.<br />
As telenovelas serÇo tratadas aqui em sua completu<strong>de</strong>, respeitando a natureza da TV<br />
como suporte e a natureza do gÖnero enquanto obra aberta e seriada, e levando em conta o<br />
papel das telenovelas na cultura brasileira. Como se trata <strong>de</strong> uma narrativa televisiva, tanto os<br />
elementos textuais quanto os cÖnicos serÇo observados com o intuito <strong>de</strong> extrair sinais que<br />
possam indicar as mëltiplas linguagens que concorrem para a representaÅÇo do Outro em “O<br />
Clone” e “Caminho das índias”, bem como para a representaÅÇo do Eu brasileiro/carioca. A<br />
análise da subjetivida<strong>de</strong> e da alterida<strong>de</strong> na narrativa ficcional <strong>de</strong> Gloria Perez será atravessada<br />
pela observaÅÇo dos elementos que i<strong>de</strong>ntificam sua assinatura como mulher, revelando a voz<br />
autoral feminina em traÅos inconfundÉveis.<br />
Enten<strong>de</strong>r a complexida<strong>de</strong> que envolve os cruzamentos multiculturais das narrativas da<br />
dramaturga requer conhecer a trajetÑria das telenovelas no contexto acadÖmico, rever a<br />
histÑria do gÖnero no Brasil e discutir os fundamentos dos argumentos que anunciam sua crise<br />
e sua morte iminente. Requer tambàm situar suas diferentes temáticas no contexto histÑrico-<br />
polÉtico brasileiro; discutir o binòmio criaÅÇo/<strong>de</strong>manda na cultura <strong>de</strong> mercado; e analisar o<br />
papel do autor/intelectual no cenário da arte contemporênea, sobretudo na arte <strong>de</strong> massa<br />
veiculada em mÉdia comercial. Embora nÇo caiba aqui estudar a recepÅÇo das narrativas<br />
televisivas junto a seu pëblico, nÇo se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> investigar a participaÅÇo da audiÖncia<br />
nos rumos da trama e em que medida esta caracterÉstica da obra aberta interfere na concepÅÇo<br />
autoral. ï preciso conhecer, sobretudo, as exteriorida<strong>de</strong>s do Oriente e os estudos sobre o<br />
Orientalismo 13 e sobre os movimentos pÑs-coloniais que tentam resgatar a voz feminina e o<br />
direito <strong>de</strong> o Outro falar <strong>de</strong> si; discutir os conceitos “Eu” e “Outro”, “Subjetivida<strong>de</strong>” e<br />
“Alterida<strong>de</strong>”, “RepresentaÅÇo” e “I<strong>de</strong>ntificaÅÇo”; e ainda explorar as construÅâes acerca da<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “autor” e <strong>de</strong> “narrativa como histÑria”.<br />
13 Termo cunhado por Edward Said em livro do mesmo nome (SAID, Orientalismo, 1979).<br />
22
A fundamentaÅÇo <strong>de</strong> tais discussâes se servirá do pensamento <strong>de</strong> autores como Ismael<br />
Fernan<strong>de</strong>s, Josà Marques <strong>de</strong> Melo, Jesës MartÉn-Barbero, Artur da Távola, Esther Hamburger<br />
e Maria Immacolata Vassalo Lopes (sobre telenovela); Antonio Gramsci, Michel Foucault,<br />
Albert Camus e Edward Said (sobre o intelectual/autor); Jesës MartÉn-Barbero, Nàstor GarcÉa<br />
Canclini, Stuard Hall, Armand e Michele Mattelart, Fredric Jameson, Jean-FranÅois Lyotard,<br />
Jaques Ranciöre, Andreas Huyssen, Raymond Williams, Walter Benjamin e Hegel (sobre arte,<br />
cultura <strong>de</strong> massa e realismo na pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>); Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Jean<br />
Paul Sartre, Umberto Eco, Bertolt Brecht e Wofgang Iser (sobre narrativa ficcional/folhetim);<br />
e AristÑteles, Michel Foucault, Tzvetan Tudorov, Edward Said, Gayatri Spivak, Homi Bhabha<br />
e Anya Looba (sobre representaÅÇo).<br />
Para alàm do suporte teÑrico <strong>de</strong>stes autores, a observaÅÇo da narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “O<br />
Clone” e “Caminho das índias” será apoiada em dois registros <strong>de</strong> Gloria Perez: um pëblico,<br />
expresso em seu blog “De tudo um pouco”, e outro particular, concedido a mim em seis horas<br />
<strong>de</strong> entrevista. Devo dizer que tal material consistiu um universo riquÉssimo <strong>de</strong> informaÅâes,<br />
especialmente sobre sua ëltima novela, uma vez que a simultaneida<strong>de</strong> entre a exibiÅÇo <strong>de</strong><br />
“Caminho das índias” e este estudo <strong>de</strong>ixou-me sem interlocutores confiáveis com quem<br />
dialogar sobre a obra. Certa <strong>de</strong> que uma telenovela hoje, na era das comunicaÅâes digitais,<br />
nÇo se resume ao que vai pela tela ─ ultrapassa a dimensÇo televisiva na antecipaÅÇo dos<br />
capÉtulos pelos jornais e publicaÅâes especializadas e na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso ao site do<br />
folhetim para informaÅâes adicionais ─, nÇo me furtei a incorporar o blog da novelista como<br />
um caminho novo e legÉtimo para alcanÅar sua obra. Mais que isso, ao perceber a forte<br />
incidÖncia <strong>de</strong> erro e informaÅÇo truncada no noticiário <strong>de</strong> telenovela, fiz questÇo <strong>de</strong> tomar a<br />
palavra da autora em primeira mÇo.<br />
Acredito que, percorrido este caminho teÑrico, A menor distância entre dois mundos:<br />
um estudo sobre a representação do Eu e do Outro em telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez po<strong>de</strong>rá<br />
sintetizar um complexo e rico recorte <strong>de</strong> nosso tempo e da cultura brasileira. Primeiro, porque,<br />
no universo ficcional televisivo, dominado pela narrativa masculina, ele oferece o olhar <strong>de</strong><br />
uma mulher sobre culturas orientais. Segundo, porque, tendo sido o Oriente sempre visto<br />
pelas lentes do Oci<strong>de</strong>nte, numa Ñtica que revela a relaÅÇo assimàtrica <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre<br />
“dominador” e “subalterno” (embora muitas <strong>de</strong>stas culturas ditas subalternas tenham<br />
recentemente conquistado voz prÑpria), este estudo permite questionar se uma leitura<br />
brasileira do Oriente po<strong>de</strong> ser construÉda a <strong>de</strong>speito do tradicional ranÅo do imaginário criado<br />
pela dominaÅÇo. Terceiro, porque, ao contrapor a representaÅÇo do Outro em relaÅÇo ä<br />
representaÅÇo do Eu, o trabalho possibilita investigar a legitimida<strong>de</strong> da tÇo <strong>de</strong>cantada (e ao<br />
23
mesmo tempo questionada) “brasilida<strong>de</strong>” como marca registrada das telenovelas brasileiras.<br />
Quarto, porque, num momento em que a retÑrica da globalizaÅÇo preconiza as trocas culturais<br />
e em que o jornalismo mundial focaliza o Oriente como o lugar do terrorismo, das potÖncias<br />
econòmicas emergentes e das práticas sociais, polÉticas e religiosas estranhas ao Oci<strong>de</strong>nte, o<br />
estudo <strong>de</strong>sta narrativa autoral permitirá a comparaÅÇo entre o discurso “real” e o discurso<br />
ficcional do Outro oriental, alàm da investigaÅÇo das intencionalida<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>olÑgicas <strong>de</strong> cada<br />
um na construÅÇo da cooperaÅÇo intercultural. E, por ëltimo, embora nÇo menos importante,<br />
porque, em meio äs inquietaÅâes sobre a morte da arte e sobre o predomÉnio da estàtica <strong>de</strong><br />
mercado, esta tese po<strong>de</strong>rá oferecer um viàs para a discussÇo do lugar do consumo e do gosto<br />
da massa na re<strong>de</strong>finiÅÇo dos limites do “Belo”. Enfim, a análise da narrativa ficcional no<br />
êmbito dos folhetins seriados exibidos na mÉdia <strong>de</strong>ve permitir o questionamento <strong>de</strong> alguns<br />
conceitos caros ä Literatura e alargar os horizontes das Letras na percepÅÇo do <strong>de</strong>slocamento<br />
<strong>de</strong> suas fronteiras, trazendo contribuiÅâes para a correlaÅÇo interdisciplinar com os Estudos<br />
Culturais em seus <strong>de</strong>bates sobre pÑs-colonialismo, diferenÅas culturais e o sentido da cultura<br />
na dominante pÑs-mo<strong>de</strong>rna.<br />
Desnecessário lembrar que, neste final da primeira dàcada do sàculo XXI, a aca<strong>de</strong>mia<br />
insiste na <strong>de</strong>fesa da multidisciplinarida<strong>de</strong>, no questionamento dos cênones, na convergÖncia<br />
dos gÖneros, na valorizaÅÇo dos pequenos relatos e das narrativas populares, e atà mesmo na<br />
constataÅÇo <strong>de</strong> que a arte já se ren<strong>de</strong>u ä inevitabilida<strong>de</strong> do mercado 14 . E à justamente este o<br />
contexto que faz da telenovela um tema tratável no universo da Literatura: há muito que a<br />
pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, enquanto condiÅÇo cultural da socieda<strong>de</strong> pÑs-industrial, tem <strong>de</strong>fendido a<br />
i<strong>de</strong>ia da flui<strong>de</strong>z, da interpenetraÅÇo, da convergÖncia, da multidisciplinarida<strong>de</strong> e da entropia<br />
na <strong>de</strong>sconstruÅÇo da Verda<strong>de</strong> e da HistÑria; nos cÉrculos acadÖmicos, os Estudos Culturais<br />
incorporaram práticas da cultura <strong>de</strong> um povo como “manifestaÅâes <strong>de</strong> uma cultura inserida<br />
em um espaÅo simbÑlico <strong>de</strong> luta” 15 e vÖm promovendo o diálogo entre saberes atà entÇo<br />
fechados em seus compartimentos disciplinares. Como comemora Ortiz 16 , “Os Estudos<br />
Culturais caracterizam-se por sua dimensÇo multidisciplinar, a quebra [e nÇo o fim,<br />
observação nossa] das fronteiras tradicionalmente estabelecidas nos <strong>de</strong>partamentos e nas<br />
universida<strong>de</strong>s”. Assim à que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita polÖmica sobre o lugar da fronteira entre a<br />
literatura e a cultura <strong>de</strong> massa, sobre a distência entre a arte e a indëstria cultural, o<br />
14 Há quase 30 anos, Canclini já dizia ser impossÉvel dissociar as obras <strong>de</strong> suas condiÅâes materiais <strong>de</strong> produÅÇo,<br />
<strong>de</strong> sua circulaÅÇo e <strong>de</strong> seu consumo, já que no sistema capitalista, “as obras <strong>de</strong> arte, como todos os bens, sÇo<br />
mercadorias”. CANCLINI, 1980, p. 24.<br />
15 ORTIZ, disponÉvel em: . Acesso em 25 maio 2009.<br />
16 ORTIZ, loc. cit..<br />
24
compartimento on<strong>de</strong> a intelectualida<strong>de</strong> vinha preservando do contágio o “Belo” do “lixo” tem<br />
dado mostras <strong>de</strong> permeabilida<strong>de</strong>. Tendo adquirido porosida<strong>de</strong>, a fronteira entre a escritura<br />
literária, antes confinada aos escaninhos da “arte elevada”, e o folhetim televisivo, entregue<br />
ao consumo fácil das massas, permite hoje o cruzamento inevitável <strong>de</strong> ambos e a visualizaÅÇo<br />
da cultura em sua totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scontÉnua. Resultado da <strong>de</strong>scompartimentalizaÅÇo do<br />
conhecimento, as manifestaÅâes culturais <strong>de</strong> diferentes matizes e origens, a <strong>de</strong>speito da<br />
resistÖncia dos nëcleos entrincheirados sob o escudo da estàtica “elevada”, passaram a<br />
integrar a pauta <strong>de</strong> pesquisa dos meios acadÖmicos com igual <strong>de</strong>senvoltura e dignida<strong>de</strong> 17 , na<br />
medida em que expressam os gostos e as referÖncias <strong>de</strong> estratos da socieda<strong>de</strong>: “o universo da<br />
cultura passou a ser percebido como uma encruzilhada <strong>de</strong> intenÅâes diversas, como se<br />
constituÉsse um espaÅo <strong>de</strong> convergÖncia <strong>de</strong> movimentos e ritmos diferenciados (...)” e o povo,<br />
no contexto das práticas culturais, passou a ser entendido nÇo apenas como um receptor, mas<br />
tambàm como um “produtor da cultura” 18 .<br />
Para <strong>de</strong>sespero dos puristas, no capitalismo tardio, pÑs-industrial, pÑs-mo<strong>de</strong>rno, o que<br />
iguala a arte <strong>de</strong> elite ä arte <strong>de</strong> massa e ä arte popular à a conversÇo <strong>de</strong> tudo em mercadoria e a<br />
sua exposiÅÇo, enquanto produto, nas inëmeras e atraentes vitrines dos shopping centers da<br />
cultura. Na Literatura, a quebra das fronteiras e das hierarquias entre gÖneros literários, sua<br />
convergÖncia com outras modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> narrativas ─ como a jornalÉstica (<strong>de</strong> “informaÅÇo”) e<br />
a folhetinesca (<strong>de</strong> “mero entretenimento”) ─, e a coisificaÅÇo <strong>de</strong> livros, jornais, revistas e<br />
telenovelas em produtos <strong>de</strong> mercado banalizaram, como veremos mais adiante, alguns <strong>de</strong> seus<br />
conceitos fundadores, como a aura da obra, a autonomia da criaÅÇo e a genialida<strong>de</strong> do autor.<br />
Por hora, basta a convicÅÇo <strong>de</strong> que a telenovela no Brasil à, <strong>de</strong> fato, a maior veiculadora <strong>de</strong><br />
narrativas <strong>de</strong> ficÅÇo. E a suposiÅÇo <strong>de</strong> que as telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, especialmente, sÇo<br />
uma fonte <strong>de</strong> narrativida<strong>de</strong> fàrtil, renovável e inesgotável.<br />
17 Muitos se surpreen<strong>de</strong>ram quando o filÑsofo marxista Leandro Kon<strong>de</strong>r <strong>de</strong>dicou o espaÅo <strong>de</strong> sua coluna no<br />
Jornal do Brasil no dia 28 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009 para comentar as telenovelas. “NÇo po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sprezar as<br />
telenovelas”, alertou. “A novela <strong>de</strong> televisÇo à, provavelmente, a produÅÇo literária que mais amplamente<br />
consegue sensibilizar o pëblico popular”, completou. In, KONDER, 2009, p. L6.<br />
18 ORTIZ, disponÉvel em: . Acesso em 25 maio 2009.<br />
25
2 A TELENOVELA E OS ESTUDOS DE CULTURA<br />
NÇo foi senÇo a partir dos anos 1980 que os dramas seriados televisivos passaram a ser<br />
consi<strong>de</strong>rados temas dignos <strong>de</strong> análise pelos cientistas sociais. A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> sua popularida<strong>de</strong><br />
junto ä audiÖncia e <strong>de</strong> sua importência como um significativo fenòmeno <strong>de</strong> cultura <strong>de</strong> massa,<br />
durante longo perÉodo <strong>de</strong> tempo os folhetins televisivos permaneceram confinados ä categoria<br />
das irrelevantes formas <strong>de</strong> comunicaÅÇo e arte.<br />
Em artigo <strong>de</strong> 1972, o pesquisador norte-americano Nathan Katzman 19 registrava que,<br />
curiosamente, nenhuma pesquisa havia sido publicada atà entÇo sobre seriado televisivo nos<br />
Estados Unidos. O <strong>de</strong>sdàm com o qual a teledramaturgia era vista comeÅou se dissipar apenas<br />
nos anos 1970, quando teorias estruturalistas e semiÑticas comeÅaram a inspirar discursos<br />
estàticos sobre cinema e televisÇo 20 .<br />
Tanto nos Estados Unidos, on<strong>de</strong> a primeira telenovela foi exibida em 1950 (“The first<br />
hundred years”) como no Brasil, on<strong>de</strong> o gÖnero estreou no ano seguinte (“Sua vida me<br />
pertence”), as CiÖncias Sociais custaram a reconhecer que, nÇo apenas como produto da mÉdia<br />
<strong>de</strong> massa, mas como fenòmeno social, a análise do drama seriado po<strong>de</strong>ria oferecer uma<br />
abertura para a compreensÇo dos conflitos e contradiÅâes da socieda<strong>de</strong>. Embora houvesse<br />
produÅÇo <strong>de</strong> telenovelas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1951 no Brasil, e embora se possa registrar aqui e ali alguma<br />
iniciativa esparsa <strong>de</strong> tomá-las como objeto digno <strong>de</strong> pesquisa cientÉfica, sÑ em 1992, com a<br />
criaÅÇo do Nëcleo <strong>de</strong> Pesquisa em Telenovelas da Escola <strong>de</strong> ComunicaÅÇo e Artes da USP, o<br />
trabalho foi sistematizado no paÉs. Primeiro grupo acadÖmico do mundo formado com o<br />
objetivo <strong>de</strong> pesquisar e documentar a produÅÇo da telenovela, o NPTN hoje reëne trabalhos<br />
sobre a histÑria e os antece<strong>de</strong>ntes do gÖnero; a autoria, a linguagem e a relaÅÇo com o cinema;<br />
a seleÅÇo <strong>de</strong> elenco; a influÖncia da tecnologia na produÅÇo; as relaÅâes <strong>de</strong> novelas e<br />
minissàries com a polÉtica, com o cotidiano, com a religiÇo, questâes raciais e <strong>de</strong> movimentos<br />
sociais; a recepÅÇo do pëblico infantil e o uso da telenovela na pedagogia, entre outros 21 .<br />
Hoje, apesar do preconceito que ainda persiste, o drama televisivo seriado à visto<br />
como uma expressÇo da cultura em que à gerado, um dos canais atravàs dos quais a socieda<strong>de</strong><br />
expressa e apren<strong>de</strong> seus cÑdigos. Atravàs da análise <strong>de</strong> sua estrutura, <strong>de</strong> sua narrativa e <strong>de</strong> sua<br />
produÅÇo, à possÉvel investigar o sistema <strong>de</strong> valores <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, suas crenÅas, sua<br />
19 KATZMAN, 1972, p.200.<br />
20 ALLEN, 1985, pp. 11-12.<br />
21 TELES, disponÉvel em: . Acesso em 22 maio 2009.<br />
26
linguagem silenciosa e sua dimensÇo oculta 22 , e o modo como o grupo social está organizado.<br />
Segundo MartÉn-Barbero e Rey,<br />
[...] a telenovela tem a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> revelar a cartografia dos sentimentos tanto<br />
como as tensâes do social, as proprieda<strong>de</strong>s da imaginaÅÇo cultural como as<br />
aspiraÅâes secretas e explÉcitas das pessoas que a acompanham com fervor.<br />
Contribui para criar ─ como escreve Cabrera Infante ─ os “càus imaginários” <strong>de</strong><br />
nossos dias 23 .<br />
Dado que, como diz Sitaram e Cog<strong>de</strong>ll 24 , cada “comunicaÅÇo humana à fortemente<br />
relacionada äs referÖncias culturais do comunicador e <strong>de</strong> sua audiÖncia [tradução nossa]”, os<br />
produtos culturais <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> tambàm revelam a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong>sta socieda<strong>de</strong>.<br />
Sendo assim, e a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> o gÖnero se mostrar cativante e popular em diferentes pontos do<br />
planeta, os estudiosos sobre telenovela ten<strong>de</strong>m a concordar que nÇo se po<strong>de</strong> tomar o drama<br />
seriado televisivo como uma forma universal <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> massa, como um gÖnero encapsulado<br />
em si mesmo. Um fenòmeno sÑ po<strong>de</strong> ser entendido se observado no contexto particular do<br />
qual <strong>de</strong>riva. Vinculado a diferentes variáveis culturais, ele <strong>de</strong>ve ser visto sob as luzes <strong>de</strong> suas<br />
prÑprias raÉzes histÑricas, <strong>de</strong> sua heranÅa literária e <strong>de</strong> seu contexto sÑcio-polÉtico.<br />
Embora i<strong>de</strong>ntificadas sob o selo genàrico <strong>de</strong> novelas latino-americanas, produzidas em<br />
intensida<strong>de</strong> e responsáveis por altÉssimas audiÖncias em seus paÉses <strong>de</strong> origem, as telenovelas<br />
realizadas no Brasil, Màxico, Venezuela e Colòmbia carregam distinÅâes estàticas, <strong>de</strong><br />
narrativa, <strong>de</strong> conteëdo e <strong>de</strong> produÅÇo. MartÉn-Barbero e Rey i<strong>de</strong>ntificam pelo menos dois<br />
mo<strong>de</strong>los dominantes no mercado latino-americano <strong>de</strong> telenovelas: o tradicional, encontrado<br />
nas produÅâes mexicanas e venezuelanas; e o mo<strong>de</strong>rno, associado äs produÅâes brasileiras<br />
(segundo os autores, as telenovelas colombianas teriam construÉdo uma narrativa mediadora<br />
entre os dois mo<strong>de</strong>los) 25 . O mo<strong>de</strong>lo tradicional, explicam, “dá forma a um gÖnero sério [grifo<br />
dos autores], no qual predomina a inclinaÅÇo trágica”: somente os sentimentos e as paixâes<br />
primordiais sÇo postos em imagem, os conflitos <strong>de</strong> parentesco assumem papel central, “a<br />
estrutura dos estratos sociais à cruamente maniqueÉsta e os personagens sÇo puros signos”,<br />
“excluindo do espaÅo dramático toda ambiguida<strong>de</strong> ou complexida<strong>de</strong> histÑrica e neutralizando,<br />
com frequÖncia, as referÖncias <strong>de</strong> lugar e <strong>de</strong> tempo” 26 . Já o mo<strong>de</strong>lo mo<strong>de</strong>rno à aquele que,<br />
sem romper completamente o esquema melodramático, incorpora “um realismo que<br />
possibilita a ‘cotidianizaÅÇo da narrativa’ e o encontro do gÖnero com a histÑria e com<br />
22 Linguagem Silenciosa e DimensÇo Oculta sÇo tÉtulos <strong>de</strong> duas obras <strong>de</strong> Edward T. Hall, 1965 e 1966.<br />
23<br />
MARTíN-BARBERO e REY, 2001, p. 174.<br />
24<br />
SITARAM E COGDELL, 1976, p. 1.<br />
25<br />
MARTIN-BARBERO e REY, op. cit., p. 120.<br />
26<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 120 e 121.<br />
27
algumas matrizes culturais do Brasil”: os “personagens se libertam, em alguma medida, do<br />
peso do <strong>de</strong>stino e, afastando-se dos gran<strong>de</strong>s sÉmbolos, se aproximam das rotinas cotidianas e<br />
das ambiguida<strong>de</strong>s da histÑria, da diversida<strong>de</strong> das falas e dos costumes” 27 . Enquanto o primeiro<br />
compensa o esquematismo com “a espessura da cenografia, o luxo da <strong>de</strong>coraÅÇo e a sofisticaÅÇo<br />
do vestuário”, o segundo abre brechas na rigi<strong>de</strong>z dos esquemas e nas ritualizaÅâes para os<br />
“imaginários <strong>de</strong> classe e territÑrio, <strong>de</strong> gÖnero e geraÅÇo, ao mesmo tempo que se exploram<br />
possibilida<strong>de</strong>s expressivas abertas pelo cinema, pela publicida<strong>de</strong> e pelo vi<strong>de</strong>oclip” 28 .<br />
2.1 TELENOVELA BRASILEIRA E REALISMO<br />
NÇo sÇo poucos os estudos que <strong>de</strong>stacam a telenovela brasileira do conjunto das<br />
congÖneres latino-americanas pela presenÅa <strong>de</strong> “realismo”. Tal singularida<strong>de</strong> marca dois<br />
importantes momentos da teledramaturgia brasileira: primeiramente, no inÉcio dos anos 1970,<br />
quando as telenovelas abandonaram a prática <strong>de</strong> importaÅÇo <strong>de</strong> textos, roteiristas e diretores<br />
latino-americanos, substituÉram os cenários remotos por tramas ambientadas no Brasil, e<br />
privilegiaram a linguagem coloquial e o tempo contemporêneo, conquistando autonomia<br />
estilÉstica em relaÅÇo ä produÅÇo estrangeira 29 ; e mais recentemente, a partir <strong>de</strong> meados dos<br />
anos 1980, quando o folhetim seriado televisivo passou a introduzir referÖncias aos fatos da<br />
vida polÉtica, social e cultural do paÉs, tentando manter a ficÅÇo em sintonia com a realida<strong>de</strong>,<br />
fazendo referÖncias ao que está nos jornais ─ “um filme recàm-lanÅado, um cantor da moda,<br />
um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> carro do ano” 30 , uma passeata, um escêndalo polÉtico, uma campanha nacional.<br />
De acordo com o teÑrico da comunicaÅÇo Muniz Sodrà 31 , “a telenovela brasileira à um dos<br />
melhores exemplos <strong>de</strong>sse drama especificamente televisivo em que se percebe o imaginário<br />
comandado pelo princÉpio <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> ou pelo real histÑrico”: neste gÖnero, o texto à<br />
“pontilhado <strong>de</strong> alusâes a situaÅâes reais contemporêneas e mesmo condicionado por tais<br />
situaÅâes, que vÇo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> fatos noticiosos atà livros ou filmes em <strong>de</strong>staque”. Ainda hoje,<br />
afirmam os estudos, o que i<strong>de</strong>ntifica e mesmo distingue a telenovela brasileira como original<br />
no cenário internacional à o fato <strong>de</strong> sua narrativa estar carregada <strong>de</strong> “realismo” e <strong>de</strong> apresentar<br />
marcas explÉcitas <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”.<br />
27<br />
MARTíN-BARBERO e REY, 2001, p. 120 e 121.<br />
28<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 121.<br />
29<br />
HAMBURGER, 2005, pp. 84-120; BORELLI e RAMOS, 1989, pp. 80-108; MATTELART e MATTELART,<br />
1989, p. 31.<br />
30<br />
KEHL, Maria Rita, in COSTA, SIMùES e KEHL, 1986, p. 281.<br />
31 SODRï, 1984, p. 79.<br />
28
ï preciso, no entanto, investigar a natureza <strong>de</strong>stes dois termos. Aplicado<br />
indistintamente aos dois momentos <strong>de</strong>scritos acima, “realismo”, neste contexto, encerra<br />
diferentes idàias: no primeiro momento, quando da substituiÅÇo do formato estrangeiro por<br />
uma narrativa brasileira, “realismo” significa aproximaÅÇo da realida<strong>de</strong> brasileira na<br />
ambientaÅÇo, na temática e na linguagem; no segundo momento, quando da adiÅÇo <strong>de</strong> agendas<br />
polÉticas e sociais ao enredo da ficÅÇo, “realismo” significa presenÅa da realida<strong>de</strong> factual<br />
brasileira na trama, ou seja, a inclusÇo <strong>de</strong> fatos e temas presentes no noticiário nacional.<br />
Enquanto no primeiro caso, as personagens circulam por uma cida<strong>de</strong> brasileira ou por uma<br />
locaÅÇo que recria uma cida<strong>de</strong> brasileira (fictÉcia ou nÇo), experimentam uma realida<strong>de</strong><br />
verossÉmil e usam a linguagem tÉpica dos diferentes estratos sociais locais, no segundo, alàm<br />
<strong>de</strong> transitarem num universo consi<strong>de</strong>rado tipicamente brasileiro, elas participam <strong>de</strong><br />
manifestaÅâes pëblicas e eventos reais, contracenam com figuras pëblicas reais ou comentam<br />
fatos noticiados na mÉdia nacional no dia seguinte <strong>de</strong> sua divulgaÅÇo. Como, <strong>de</strong> modo geral,<br />
as telenovelas latino-americanas passaram todas por uma fase <strong>de</strong> nacionalizaÅÇo que vai <strong>de</strong><br />
fins dos anos 1970 atà inÉcio dos anos 1990, tornando-se fortes instrumentos <strong>de</strong><br />
reconhecimento sociocultural e <strong>de</strong>slocando drasticamente a atà entÇo dominante presenÅa dos<br />
seriados norte-americanos, o “realismo” que se atribui äs produÅâes brasileiras como traÅo<br />
distintivo em relaÅÇo äs suas congÖneres na regiÇo refere-se, sobretudo, ä incorporaÅÇo das<br />
agendas do jornalismo nas tramas, e nÇo ä ambientaÅÇo. Ao comentar os fatos do noticiário, e<br />
mesmo tomar parte neles, as telenovelas brasileiras, dizem os estudiosos, acrescentam<br />
atualida<strong>de</strong> a uma ambientaÅÇo já carregada <strong>de</strong> “referÖncias nacionais”. A combinaÅÇo dos dois<br />
tipos <strong>de</strong> realismo concorreria para promover na audiÖncia uma sensaÅÇo <strong>de</strong> pertencimento ao<br />
universo da trama que sÑ acentuaria os efeitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo.<br />
No Brasil, as telenovelas, ao lado do Carnaval e do futebol, ten<strong>de</strong>m a ser vistas como<br />
alegorias da socieda<strong>de</strong> brasileira: ora exageram ora simplificam seletivamente a realida<strong>de</strong><br />
empÉrica como forma <strong>de</strong> apresentar uma narrativa que seja divertida <strong>de</strong> assistir. Como<br />
genuÉno produto da mÉdia <strong>de</strong> massa, <strong>de</strong>vem servir ao gosto popular, valendo-se <strong>de</strong> estratàgias<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo voltadas ao homem màdio e reproduzindo sua realida<strong>de</strong>: “Meus personagens<br />
sÇo gente comum, sem gran<strong>de</strong>s vòos...”, afirmou em 1976 a telegramaturga Janete Clair,<br />
falecida em 1983. Segundo <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Ivani Ribeiro, importante autora <strong>de</strong> telenovelas<br />
(tambàm já falecida), em 1979,<br />
O que importa à uma histÑria que corresponda, <strong>de</strong> certa forma, ao que acontece na<br />
vida real. O telespectador gosta <strong>de</strong> ver-se i<strong>de</strong>ntificado com as histÑrias e os locais<br />
29
<strong>de</strong> minhas novelas. Por isso, todas elas se passam no Brasil e todas contÖm<br />
conflitos que se enquadram em nossa àpoca 32 .<br />
Ao retratar o cotidiano do brasileiro comum, suas aspiraÅâes e conflitos, acredita-se<br />
que as telenovelas brasileiras favoreÅam a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo horizontal do pëblico com os<br />
habitantes do folhetim eletrònico. Ao mesmo tempo, com base na máxima criada pelo<br />
executivo da TV Globo Josà Bonifácio Sobrinho e <strong>de</strong>pois alar<strong>de</strong>ada pelo carnavalesco<br />
JoÇozinho Trinta <strong>de</strong> que “pobre gosta <strong>de</strong> luxo; quem gosta <strong>de</strong> misària à intelectual”, era<br />
preciso que o brasileiro comum passasse a ser representado entÇo por uma versÇo <strong>de</strong> si mesmo<br />
mais afinada com o mo<strong>de</strong>lo civilizatÑrio vigente: o homem urbano e mo<strong>de</strong>rno, o profissional<br />
liberal bem vestido que circula em ambientes finamente <strong>de</strong>corados e cultiva a cultura<br />
“elevada”. Neste esforÅo <strong>de</strong> promover nÇo sÑ a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo, mas tambàm, e principalmente,<br />
a projeÅÇo, a elite foi humanizada, o pobre, glamourizado, e a favela, eliminada dos cenários<br />
<strong>de</strong> telenovela, com rarÉssimas exceÅâes. Atualmente, o universo árido, nada glamouroso e<br />
muitas vezes violento das favelas tem ficado restrito ao que à exibido fora da TV Globo 33 , nas<br />
emissoras que comeÅam a investir mais pesadamente em telenovela, como a Record e o SBT.<br />
Para alguns autores, a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo parece ser a chave do sucesso dos dramas<br />
televisivos. Piemme, por exemplo, acredita que à impossÉvel assistir ao folhetim eletrònico<br />
sem algum tipo <strong>de</strong> envolvimento pessoal: “Assistir ao seriado à muito mais do que<br />
compartilhar os sentimentos dos personagens, discutir sua motivaÅÇo psicolÑgica e sua<br />
conduta, <strong>de</strong>cidir se está certo ou errado, em outras palavras, ‘viver seu mundo’” 34 [tradução<br />
nossa]. Edmonson 35 <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que esta participaÅÇo imaginativa proporcionada pela<br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo leva a uma “aceitaÅÇo renovada da prÑpria vida da audiÖncia” [tradução nossa],<br />
um fenòmeno conhecido como catarse. Segundo Muniz Sodrà, a “vinculaÅÇo da linguagem do<br />
vÉ<strong>de</strong>o ao real histÑrico indica que a simulaÅÇo televisiva sÑ à efetiva se o medium sabe captar<br />
traÅos caracterÉsticos <strong>de</strong> seu pëblico, para bem realizar o ‘contato’” 36 . Para a psicanalista<br />
Maria Rita Kehl, um “autor <strong>de</strong> novela nÇo po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar as <strong>de</strong>mandas inconscientes <strong>de</strong> seu<br />
pëblico: o espectador vÖ novela entre outras coisas (ou principalmente?) para liberar essas<br />
32 RIBEIRO apud ORTIZ, 1989, p. 70.<br />
33 Depois do sucesso da novela <strong>de</strong> enredo realista “Vidas Opostas”, <strong>de</strong> MarcÉlio Moraes, exibida na TV Record<br />
em 2007 (que falava da violÖncia no Rio, mostrava a aÅÇo do tráfico <strong>de</strong> drogas nos morros e a corrupÅÇo na<br />
polÉcia, alàm <strong>de</strong> crÉticas ä má distribuiÅÇo <strong>de</strong> renda no paÉs), a TV Globo, emissora on<strong>de</strong> o dramaturgo trabalhou<br />
durante anos, resolveu investir na produÅÇo do seriado policial “ForÅa-tarefa”, com cenas <strong>de</strong> aÅÇo e violÖncia.<br />
Nas telenovelas da emissora, no entanto, essa violÖncia nÇo tem lugar. Seja em seriado ou em telenovela, a<br />
violÖncia mostrada na TV Globo nem <strong>de</strong> longe lembra o realismo <strong>de</strong> “Vidas Opostas”, novela responsável por<br />
fazer a Record bater a programaÅÇo da lÉ<strong>de</strong>r <strong>de</strong> audiÖncia no ranking do IBOPE.<br />
34 PIEMME, J.-M., 1975, p. 114.<br />
35 EDMONSON, M. e ROUNDS, 1973, p. 182.<br />
36 SODRï, 1984, p. 80.<br />
30
<strong>de</strong>mandas” 37 . Assim, segundo ela, os “autores e diretores <strong>de</strong> telenovelas passam a falar cada<br />
vez mais em realismo, realida<strong>de</strong> brasileira, vida real, procurando imitar em suas obras as<br />
aparÖncias da realida<strong>de</strong> e favorecendo ainda mais a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo emocional dos espectadores<br />
com os dramas vividos na tela” 38 .<br />
O realismo nas telenovelas tem sido consi<strong>de</strong>rado, portanto, uma eficaz estratàgia <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo (atravàs da qual permite que o pëblico se veja no cotidiano das personagens) e<br />
tambàm um sofisticado instrumento <strong>de</strong> projeÅÇo (no qual o espectador vÖ seus <strong>de</strong>sejos<br />
inconscientes reproduzidos na vida glamourizada da elite).<br />
2.2 “BRASILIDADE” EM QUESTîO<br />
Para muitos autores, aquilo que confere realismo ao folhetim eletrònico brasileiro à o<br />
que eles chamam <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”, uma categoria tÇo genàrica quanto equivocada em sua<br />
pretensÇo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o que traduz o Brasil. A <strong>de</strong>speito da atual ina<strong>de</strong>quaÅÇo <strong>de</strong> seu<br />
emprego (como veremos adiante), a expressÇo se consolidou como caráter constitutivo da<br />
telenovela brasileira e conquistou estudiosos, leigos e profissionais da área, como o (já<br />
falecido) dramaturgo Dias Gomes 39 que, em entrevista <strong>de</strong> 1985, afirmou que a forÅa do<br />
gÖnero no paÉs residia em oferecer ä audiÖncia uma narrativa em que os personagens sÇo<br />
“pura essÖncia <strong>de</strong> brasilida<strong>de</strong>”.<br />
O termo, que passou a ser utilizado a partir da estreia <strong>de</strong> “Beto Rockfeller” (novela <strong>de</strong><br />
Bráulio Pedroso que foi ao ar pela TV Tupi <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1968 a novembro <strong>de</strong> 1969),<br />
pretendia marcar a inauguraÅÇo <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> ficÅÇo televisiva mais prÑxima da realida<strong>de</strong><br />
brasileira. Alguns fatores contribuÉram para o fato <strong>de</strong> esta telenovela ter ficado consagrada por<br />
revelar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional: a novida<strong>de</strong> do vi<strong>de</strong>otape permitiu que a encenaÅÇo per<strong>de</strong>sse seu<br />
tom <strong>de</strong>masiado dramatizado, herdado das radionovelas e dos teleteatros; a adoÅÇo <strong>de</strong><br />
linguagem coloquial nos diálogos levou ä introduÅÇo <strong>de</strong> gÉrias e expressâes do cotidiano; sua<br />
ambientaÅÇo em um bairro <strong>de</strong> SÇo Paulo nacionalizava a trama, abandonando o cenário latino<br />
ou europeu; a utilizaÅÇo <strong>de</strong> notÉcias jornalÉsticas como foco do comentário dos personagens<br />
aproximou a realida<strong>de</strong> fictÉcia da realida<strong>de</strong> cotidiana dos telespectadores; e, por fim, a<br />
introduÅÇo <strong>de</strong> um novo tipo <strong>de</strong> herÑi ─ errante, urbano, disposto a vencer na vida para alàm<br />
do Bem e do Mal ─ trazia ä tona o brasileiro màdio, seus dramas e aspiraÅâes. Beto<br />
37 KEHL, 1986, p. 286.<br />
38 Ibi<strong>de</strong>m, p. 291.<br />
39 GOMES apud. CASTELO e AJUZ, 1985, p. 38.<br />
31
Rockfeller, o protagonista, era “um indivÉduo <strong>de</strong> origem mo<strong>de</strong>sta, habitante da cida<strong>de</strong>, sujeito<br />
a erros, cheios <strong>de</strong> dëvidas, inseguro, buscando estima, pondo em prática todos os seus<br />
recursos <strong>de</strong> astëcia para subir na escala social” 40 . Por permitir ä socieda<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> entÇo<br />
o seu reconhecimento a partir dos personagens-tipo representados na ficÅÇo, a telenovela<br />
entrou para a histÑria do gÖnero no paÉs como a primeira a trazer traÅos <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”, uma<br />
representaÅÇo que buscava sintetizar a essÖncia do que à ser brasileiro e do que à o Brasil.<br />
Criado na forja do espÉrito polÉtico da àpoca, o conceito <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>” nÇo mais faz<br />
sentido hoje, embora ainda seja evocado muitas vezes como traÅo distintivo da telenovela<br />
brasileira em relaÅÇo äs suas congÖneres estrangeiras. Se o Brasil que <strong>de</strong>u origem a Beto<br />
Rockfeller dava seus primeiros e sombrios passos no regime ditatorial e se os militares <strong>de</strong><br />
entÇo empreendiam esforÅos para a unificaÅÇo dos brasileiros em torno <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong><br />
naÅÇo, conclamando a populaÅÇo ä militência do nacionalismo 41 , era natural que a idàia <strong>de</strong><br />
brasilida<strong>de</strong> evocasse um valor a ser exaltado, amplificando temas nacionais como progresso,<br />
crescimento, mo<strong>de</strong>rnizaÅÇo e educaÅÇo. Nada mais oportuno e conveniente para o i<strong>de</strong>ário do<br />
golpe militar <strong>de</strong> 1964 no Brasil do que a exaltaÅÇo do pertencimento, um valor cultivado pela<br />
Sociologia na primeira meta<strong>de</strong> do sàculo XX 42 . Mais do que nunca, naquele perÉodo <strong>de</strong><br />
exceÅÇo, era o paradigma da unicida<strong>de</strong> sujeito/naÅÇo que iria garantir a governabilida<strong>de</strong> e<br />
<strong>de</strong>finir o papel <strong>de</strong>sejável (e supostamente previsÉvel) dos brasileiros na socieda<strong>de</strong>. Era preciso<br />
exacerbar o vÉnculo clássico <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre o sujeito e a estrutura: como diz Stuart Hall,<br />
ao estabilizar tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
torna “ambos reciprocamente mais unificados e predizÉveis” 43 .<br />
A “brasilida<strong>de</strong>” inaugurada com Beto Rockfeller foi ganhando novos contornos com o<br />
correr dos anos e, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> finda a ditadura, nÇo havia mais como dissociar a vida da<br />
ficÅÇo televisiva da vida dos brasileiros. Hall explica:<br />
40<br />
“O Cinema Novo e a Telenovela no Brasil”. DisponÉvel em: . Acesso em 23<br />
abr. 2009.<br />
41<br />
Em sua pesquisa sobre a presenÅa <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>” nas HistÑrias em Quadrinho, Marcelo Marat afirma que<br />
“1964 trouxe nÇo sÑ os militares, como tambàm os militantes do nacionalismo nas HQs. Fosse no humor, no<br />
terror ou na aventura, os herÑis precisavam ter sua brasilida<strong>de</strong> bem exposta e atà exaltada nas histÑrias.” In<br />
GUIMARîES (Org.), 2005, p. 12.<br />
42<br />
Embora refletisse a complexida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna (notadamente na primeira meta<strong>de</strong> do sàculo XX) que<br />
o gerou, o conceito <strong>de</strong> sujeito sociolÑgico ainda serviria <strong>de</strong> inspiraÅÇo ao i<strong>de</strong>ário daquilo que hoje, olhando<br />
retrospectivamente, chamamos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia (perÉodo iniciado a partir da segunda meta<strong>de</strong> do sàculo<br />
XX). A ausÖncia <strong>de</strong> ruptura entre os dois perÉodos (que justifica inclusive a rejeiÅÇo do termo “pÑs-mo<strong>de</strong>rno” por<br />
muitos) fez com que o alcance <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sujeito avanÅasse para alàm da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e continuasse em<br />
vigor ainda hoje, quando se constata a presenÅa <strong>de</strong> um sujeito <strong>de</strong>scentrado <strong>de</strong> sua suposta matriz social e cultural.<br />
A idàia do sujeito sociolÑgico repercutiu, por exemplo, como foi mostrado, na fundamentaÅÇo polÉtica do Golpe<br />
Militar <strong>de</strong> 1964 no Brasil e na consolidaÅÇo da “brasilida<strong>de</strong>” como traÅo estàtico da telenovela brasileira durante<br />
toda a segunda meta<strong>de</strong> do sàculo XX e inÉcio do sàculo XXI.<br />
43<br />
HALL, 2005, p. 12.<br />
32
O fato <strong>de</strong> que projetamos a ‘nÑs mesmos’ nessas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais, ao mesmo<br />
tempo [sic] que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte <strong>de</strong> nÑs’,<br />
contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que<br />
ocupamos no mundo social e cultural. 44<br />
Assim, a telenovela passou a exercer um papel <strong>de</strong> fundamental importência na<br />
representaÅÇo da socieda<strong>de</strong> brasileira no meio televisivo.<br />
[...] Os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> homem e mulher, <strong>de</strong> relacionamentos, <strong>de</strong> organizaÅÇo familiar e<br />
social sÇo amplamente divulgados e constantemente atualizados pela telenovela para<br />
todo o territÑrio nacional. Ela estabelece padrâes com os quais os telespectadores nÇo<br />
necessariamente concordam mas que servem como referÖncia legÉtima para que eles se<br />
posicionem e dá visibilida<strong>de</strong> a certos assuntos, comportamentos, produtos e nÇo a<br />
outros. O vestuário, a <strong>de</strong>coraÅÇo, as gÉrias e as mësicas que cada telenovela lanÅa<br />
transmitem uma certa noÅÇo do que à ser contemporêneo. Personagens usam telefones<br />
sem fio, celulares, faxes, computadores, trens, helicÑpteros, aviâes, meios <strong>de</strong><br />
comunicaÅÇo e <strong>de</strong> transporte que atualizam <strong>de</strong> modo recorrente os padrâes vigentes na<br />
socieda<strong>de</strong>. 45<br />
A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira traduzida nas telenovelas pela representaÅÇo “brasilida<strong>de</strong>”, no<br />
entanto, tornou-se conceito sem correspondÖncia teÑrica no contexto da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia.<br />
De acordo com Hall, a concepÅÇo do sujeito sociolÑgico, na qual as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais<br />
surgem do “[...] ‘pertencimento’ a culturas àtnicas, raciais, linguÉsticas, religiosas e, acima <strong>de</strong><br />
tudo, nacionais”, <strong>de</strong>u lugar ao sujeito “pÑs-mo<strong>de</strong>rno”, aquele que nÇo tem “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> fixa,<br />
essencial ou permanente”, uma vez que o prÑprio processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo tornou-se “mais<br />
provisÑrio, variável e problemático” 46 , formado e transformado continua e historicamente pela<br />
globalizaÅÇo. O autor reitera sua <strong>de</strong>fesa:<br />
A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> plenamente unificada, completa, segura e coerente à uma fantasia. Ao<br />
invàs disso, ä medida em [sic.] que os sistemas <strong>de</strong> significaÅÇo e representaÅÇo<br />
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcertante e<br />
cambiante <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s possÉveis, com cada uma das quais po<strong>de</strong>rÉamos nos<br />
i<strong>de</strong>ntificar ─ ao menos temporariamente. 47<br />
Apesar disso, ainda hoje se verifica, nos estudos sobre telenovela, a utilizaÅÇo do<br />
paradigma da unicida<strong>de</strong> sujeito/naÅÇo justamente para reforÅar aquilo que se consolidou como<br />
sua marca distintiva: a “brasilida<strong>de</strong>”, sua configuraÅÇo como dramaturgia tipicamente<br />
brasileira. Embora tanto estudiosos quanto leigos percebam e discutam o caráter mëltiplo e<br />
fragmentado do indivÉduo e da socieda<strong>de</strong>, parece ser difÉcil <strong>de</strong>svencilhar-se da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
44 HALL, 2005, pp. 11-12.<br />
45 “RepresentaÅÇo”. DisponÉvel em: . Acesso<br />
em 7 jul. 2009.<br />
46 HALL, op. cit., p. 12.<br />
47 Ibi<strong>de</strong>m, p. 13.<br />
33
pertencimento nacional como balizadora da análise da telenovela. DifÉcil <strong>de</strong>sfazer-se <strong>de</strong><br />
elementos que durante anos foram percebidos como “genuÉnos” da cultura nacional. DifÉcil<br />
explicar a originalida<strong>de</strong> da telenovela brasileira e seu lugar diferenciado no cenário latino-<br />
americano e mesmo mundial sem o conceito da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, plena e totalizante.<br />
Reavaliá-la no êmbito da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia requer o aparato <strong>de</strong> novos instrumentos teÑricos<br />
capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar a percepÅÇo da “brasilida<strong>de</strong>” <strong>de</strong> outrora para o lugar fluido da<br />
representaÅÇo das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s construÉdas, das “coletivida<strong>de</strong>s imaginadas” 48 , com as quais os<br />
sujeitos agora fragmentados mantÖm vÉnculos apenas transitÑrios e nas quais se reconhecem<br />
apenas temporariamente. Segundo Andreas Huyssen, “Numa era <strong>de</strong> estruturas supranacionais<br />
emergentes, o problema da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional está sendo cada vez mais discutido em termos<br />
<strong>de</strong> memÑria cultural ou coletiva, ao invàs <strong>de</strong> em termos <strong>de</strong> uma suposta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> naÅÇo e<br />
do Estado baseada na linhagem <strong>de</strong> sangue ou mesmo <strong>de</strong> cidadania” 49 .<br />
Assim, com o impacto da globalizaÅÇo sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural nacional, cai por<br />
terra o trunfo da “brasilida<strong>de</strong>” como recurso teÑrico <strong>de</strong> representaÅÇo <strong>de</strong> uma lealda<strong>de</strong><br />
nacional ä “essÖncia” do brasileiro, e ganha <strong>de</strong>staque a discussÇo das representaÅâes sociais e<br />
culturais como construÅâes problematizadoras das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s provisÑrias. Para alàm <strong>de</strong> uma<br />
entida<strong>de</strong> polÉtica, a naÅÇo à uma comunida<strong>de</strong> simbÑlica que se <strong>de</strong>sloca ao sabor dos mëltiplos<br />
discursos que, a cada momento, dÇo sentido e organizam a concepÅÇo que os sujeitos tÖm <strong>de</strong><br />
si mesmos. ï um sistema <strong>de</strong> representaÅÇo que, atravàs <strong>de</strong> numerosas narrativas, tenta<br />
costurar as novas e mutantes i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s como “hÉbridos culturais”, sobreposiÅâes <strong>de</strong><br />
diferenÅas. Enquanto narrativas, os discursos que expressam as representaÅâes culturais, como<br />
observa Homi Bhabha, guardam suas origens “nos mitos do tempo e efetivam plenamente<br />
seus horizontes apenas nos olhos da mente” 50 .<br />
Constantemente perturbados pela diferenÅa, os cÑdigos que as representaÅâes culturais<br />
oferecem como guia a ser compartilhado pelos sujeitos ten<strong>de</strong>m a ser multimodulados e<br />
instáveis, e colocam em movimento significados capazes <strong>de</strong> fazer sentido em leituras cada vez<br />
mais plurais. ï com este olhar multifacetado e liberto da centralida<strong>de</strong> subjacente ä i<strong>de</strong>ia clássica<br />
<strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>” que pretendo observar as telenovelas “O Clone” e “Caminho das índias”, <strong>de</strong><br />
Gloria Perez, disposta a seguir as pistas <strong>de</strong> sua narrativa ficcional e os <strong>de</strong>sdobramentos do<br />
sistema <strong>de</strong> representaÅÇo oferecido pela autora em suas leituras do Eu e do Outro.<br />
48 ANDERSON, 1989.<br />
49 HUYSSEN, 1996, p. 15.<br />
50 BHABHA, apud. HALL, 2005, p. 51.<br />
34
3 A TELENOVELA ENQUANTO GÊNERO NARRATIVO<br />
Folhetinesco. O adjetivo acompanha o drama seriado televisivo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascedouro:<br />
ao invàs <strong>de</strong> qualificar a narrativa segundo o gÖnero que inspirou seus traÅos, <strong>de</strong> honrar a<br />
heranÅa <strong>de</strong>ixada pelo folhetim do sàculo XIX nas obras <strong>de</strong> sucesso que atravessaram o sàculo<br />
seguinte e ainda hoje encantam milhâes <strong>de</strong> pessoas no mundo, o termo apenas contamina a<br />
telenovela com seu tom pejorativo, empanando-lhe o brilho e questionando-lhe o valor, numa<br />
prova <strong>de</strong> que o pedantismo <strong>de</strong> outrora ainda estigmatiza as narrativas populares, con<strong>de</strong>nando-<br />
as ao rol insidioso da “baixa literatura”. Se a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha dos cênones e<br />
orgulha-se <strong>de</strong> dar voz äs periferias e aos relatos populares, soa ina<strong>de</strong>quado insistir na<br />
reproduÅÇo <strong>de</strong> uma hostilida<strong>de</strong> cultivada no passado ao sabor das <strong>de</strong>marcaÅâes exclu<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
uma elite que sÑ via “qualida<strong>de</strong>” no que era produzido pela “alta cultura”. Assim, mais que<br />
percorrer aqui os já conhecidos caminhos que fizeram da telenovela um gÖnero narrativo e<br />
recuperar suas raÉzes no folhetim, espero justamente po<strong>de</strong>r mostrar que a forÅa do drama<br />
fatiado na televisÇo e aquilo que lhe permitiu fòlego para chegar renovado ao sàculo XXI<br />
estÇo precisamente na repaginaÅÇo orgulhosa <strong>de</strong> sua matriz folhetinesca. Folhetinesca!<br />
3.1 ORIGEM DO FOLHETIM<br />
Remonta ao sàculo XVIII a matriz mais remota da telenovela enquanto gÖnero narrativo:<br />
o drama burguÖs, forma literária que elevou o homem comum ä condiÅÇo <strong>de</strong> personagem,<br />
trazendo ä tona os aspectos cotidianos da famÉlia e do lar, fazendo da ficÅÇo, com base na<br />
verossimilhanÅa, um espelho da realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>spertando a empatia e a compaixÇo dos leitores<br />
da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O teatro burguÖs inspiraria <strong>de</strong>sdobramentos estàticos, num longo percurso que<br />
chegaria atà os dias <strong>de</strong> hoje, <strong>de</strong>terminando uma combinaÅÇo singular <strong>de</strong> elementos colhidos em<br />
diferentes gÖneros literários na configuraÅÇo do que conhecemos como telenovela.<br />
Um <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>sdobramentos do drama burguÖs foi o melodrama. Mais ao final do<br />
sàculo XVIII, a crònica da burguesia passou a incorporar o espÉrito do entretenimento<br />
catártico e adotou o melodrama como estàtica para atrair o pëblico. GÖnero <strong>de</strong> excesso <strong>de</strong><br />
real, expressionismo da imaginaÅÇo moral, como <strong>de</strong>fine Peter Brooks 51 , o melodrama<br />
explorou a prosa numa linguagem popular; valorizou o tempo presente; intensificou os vÉcios<br />
51 BROOKS, 1995.<br />
35
e virtu<strong>de</strong>s dos personagens; investiu no sentimentalismo para falar do e para o homem comum<br />
(o proletariado) atravàs do sofrimento, da alegria, do suspense, do mistàrio, da surpresa e da<br />
intriga. O objetivo do melodrama era impressionar e comover o espectador atravàs do<br />
exagero, expressando as marcas do sentimento e da sensibilida<strong>de</strong>. Essa sensibilida<strong>de</strong> que era<br />
“sempre aliada a uma visÇo e uma proposta didáticas e morais” 52 .<br />
Outro <strong>de</strong>sdobramento do drama burguÖs que teve papel <strong>de</strong>cisivo na composiÅÇo da<br />
estrutura da telenovela latino-americana e brasileira foi o folhetim. Influenciado pela estàtica<br />
<strong>de</strong> entretenimento do melodrama, o folhetim surgiu no sàculo XIX na Europa, corrigindo os<br />
excessos que eram consi<strong>de</strong>rados efeitos <strong>de</strong> apelo fácil e gratuito ao espectador. Assim como o<br />
melodrama buscava atrair mais pëblico para o teatro, o folhetim nasceu do interesse em<br />
incrementar a venda diária <strong>de</strong> jornais. A RevoluÅÇo Burguesa <strong>de</strong> 1830, “ao chamar um<br />
nëmero muito maior <strong>de</strong> cidadÇos ä vida polÉtica”, havia alargado o cÉrculo eleitoral e criado<br />
“uma nova classe <strong>de</strong> assinantes” 53 para o jornal. Sintonizado com as mudanÅas da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />
o folhetim a<strong>de</strong>quava a linguagem literária e jornalÉstica a um novo tipo <strong>de</strong> pëblico.<br />
Naquele momento, no Velho Continente, as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicaÅÇo se ampliavam, a<br />
populaÅÇo se alfabetizava e os primeiros jornais <strong>de</strong>stinados ä venda em massa ganhavam as<br />
ruas, na esteira das novida<strong>de</strong>s que davam mais agilida<strong>de</strong> ä impressÇo e permitiam<br />
transmissibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informaÅâes ä distência. Como <strong>de</strong>finiu o entÇo “prosador novato”<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, em uma <strong>de</strong> suas colaboraÅâes para a revista O Espelho: revista <strong>de</strong><br />
literatura, modas, indústrias e arte no ano <strong>de</strong> 1858, o jornal era “o gran<strong>de</strong> veÉculo do espÉrito<br />
mo<strong>de</strong>rno” 54 . E o folhetim, um dos gÖneros jornalÉsticos mo<strong>de</strong>rnos que inaugurava uma nova<br />
entida<strong>de</strong> literária.<br />
Le feuilleton nasceu na FranÅa como novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris. Tratava-se inicialmente <strong>de</strong> um<br />
espaÅo <strong>de</strong>dicado ao entretenimento no rodapà da primeira página do jornal, um “espaÅo vale-<br />
tudo”, on<strong>de</strong> se podia abrigar todas as formas e modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “diversÇo escrita”: “[...] se<br />
contam piadas, se fala <strong>de</strong> crimes e <strong>de</strong> monstros, se propâem charadas, se oferecem receitas <strong>de</strong><br />
cozinha ou <strong>de</strong> beleza”, “se criticam as ëltimas peÅas, os livros recàm-saÉdos” e tambàm se<br />
treina a narrativa <strong>de</strong> ficÅÇo, abrigando textos <strong>de</strong> “mestres ou noviÅos do gÖnero” e fatiando ä<br />
moda inglesa a narrativa em sàries, “se houver mais textos e menos coluna” 55 . Com o tempo,<br />
52 MEYER, 1993, p. 62.<br />
53 Expressâes extraÉdas do prospecto <strong>de</strong> lanÅamento do jornal Le Siècle, <strong>de</strong> 1û <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1836, publicaÅÇo que<br />
<strong>de</strong>dicou lugar <strong>de</strong> honra ao folhetim por perceber as vantagens financeiras que tal inovaÅÇo jornalÉstica ren<strong>de</strong>ria,<br />
isso sem contar que a exaltaÅÇo <strong>de</strong>ste espaÅo <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e recreaÅÇo no jornal era vista por seus sÑcios tambàm<br />
como uma “missÇo altamente civilizadora”. Apud MEYER, 1998, p. 115 e 116.<br />
54 ASSIS, apud. MEYER, op. cit., p. 110.<br />
55 MEYER, op. cit., p. 114.<br />
36
o espaÅo no rez-<strong>de</strong>-chaussée do jornal foi <strong>de</strong>ixando para as seÅâes internas <strong>de</strong>nominadas<br />
agora <strong>de</strong> Varieda<strong>de</strong>s o “pout-pourri <strong>de</strong> assuntos”, o “sarrabulho lÉtero-jornalÉstico” 56 , como o<br />
<strong>de</strong>finiu Martins Pena, e fixando na primeira página o gÖnero do “continua amanhÇ”, que tanta<br />
expectativa passou a suscitar nos leitores. Com alguns ajustes na receita, passava a ser servido<br />
aos cada vez mais famintos assinantes o prato principal do jornal diário, o folhetim-romance,<br />
as fatias diárias <strong>de</strong> ficÅÇo seriada, que em seguida se transformariam no Folhetim, com<br />
maiëscula. O sucesso da fÑrmula junto aos assinantes do jornal acabou <strong>de</strong>terminando a<br />
substituiÅÇo da publicaÅÇo fatiada <strong>de</strong> romances pela publicaÅÇo <strong>de</strong> narrativas já<br />
confeccionadas para a apresentaÅÇo seriada. As histÑrias concebidas sob as novas condiÅâes<br />
<strong>de</strong> corte passaram a incorporar dois recursos literários como estratàgia para contornar o fluxo<br />
intermitente da narrativa: o suspense, para manter o interesse do leitor na continuaÅÇo do dia<br />
seguinte, e a redundência, para reavivar a memÑria do que havia sido lido na vàspera ou para<br />
esclarecer o leitor que estava pegando o “bon<strong>de</strong> andando”. Estruturada em capÉtulos “a per<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> vista” que sempre terminam “<strong>de</strong> forma a excitar ao máximo a curiosida<strong>de</strong> do leitor”, a<br />
narrativa folhetinesca se alimentava, segundo Pina Coco 57 , <strong>de</strong> “uma outra lÑgica, emocional,<br />
semelhante ä dos sonhos, on<strong>de</strong> as contradiÅâes sÇo aceitas e tudo à possÉvel”, a <strong>de</strong>speito da<br />
verossimilhanÅa.<br />
O novo romance, segundo Meyer, pedia “a construÅÇo <strong>de</strong> tipos fortes e facilmente<br />
i<strong>de</strong>ntificáveis, sentimentos em branco e preto, amor e Ñdio, pureza e perversÇo, espichamentos<br />
ou ressurreiÅâes a pedido etc” 58 . Autores franceses como Honorà <strong>de</strong> Balzac, Eugöne Sue,<br />
Alexandre Dumas, pai, Fràdàric Soulià, Paul Fàval, Ponson Du Terrail, Berthet, Souvestre e<br />
Montàpin consagraram a escrita seriada e inspiraram escritores em todo o mundo que, com<br />
suas “máquinas <strong>de</strong> sonhar”, alimentaram o imaginário dos que já sabiam ler e dos que sÑ<br />
sabiam ouvir 59 .<br />
Em 1836, antes mesmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarcar no Brasil como literatura seriada <strong>de</strong> rodapà, o<br />
Feuilleton já era anunciado na publicaÅÇo brasileira O Chronista como uma revoluÅÇo. Um <strong>de</strong><br />
seus editores, o jornalista e romancista Justiniano Josà da Rocha, comemorava:<br />
[...] abenÅoada invenÅÇo periÑdica; filho mimoso <strong>de</strong> brilhante imaginaÅÇo, que trajas<br />
ricas galas, que te cobres <strong>de</strong> jÑias preciosas, tu, que distrais a virgem <strong>de</strong> seus<br />
melancÑlicos pensares, o jovem estudioso <strong>de</strong> seus cálculos dinheirosos, o <strong>de</strong>socupado<br />
proprietário <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>scanso insÉpido, o ar<strong>de</strong>nte ambicioso <strong>de</strong> seus planos ilusÑrios, tu<br />
que fazes esquecer o trabalho ao pobre, tu que fazes esquecer o Ñcio ao rico, permite,<br />
56 ExpressÇo <strong>de</strong> Martins Pena apud. MEYER, 1998, p. 114 .<br />
57 COCO, 1990, p. 16.<br />
58 MEYER, 1998, p. 117.<br />
59 Ibi<strong>de</strong>m, p. 122.<br />
37
3.2 FOLHETIM NO BRASIL<br />
oh! permite, duen<strong>de</strong> da civilizaÅÇo mo<strong>de</strong>rna, que nosso proselitismo te procure<br />
sectários em o nosso Brasil ─ que à digno <strong>de</strong> adorar-te. 60<br />
A novida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna que encantava o “plurifocado <strong>de</strong>stinatário” francÖs nÇo tardaria a<br />
chegar ä Corte brasileira. Já consagrado dramaturgo, Alexandre Dumas, pai, inaugurou a<br />
ponte literária folhetinesca com o Brasil pouco tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> estrear no romance-folhetim<br />
com “Le Capitaine Paul”, publicado como fora escrito, em fatias, no Le Siècle entre maio e<br />
junho <strong>de</strong> 1838, “arrastando com ele mais <strong>de</strong> 5.000 novos assinantes” para o jornal. No Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, apenas trÖs meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua publicaÅÇo francesa 61 , “Le Capitaine Paul” ganhou<br />
as páginas do carioca Echo Français reproduzido no original e abriu as portas para o gÖnero<br />
no Jornal do Commercio 62 , on<strong>de</strong> foi publicado pela primeira vez traduzido para o portuguÖs<br />
como “O capitÇo Paulo”. Segundo Meyer, esta quase concomitência entre as publicaÅâes<br />
francesa e brasileira, resultado <strong>de</strong> uma fina sintonia com o que a moda europàia fazia ecoar<br />
mundo afora, se repetiria com outros tÉtulos “gloriosos” como “Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Monte Cristo”,<br />
tambàm <strong>de</strong> Dumas, pai, e “Mistàrios <strong>de</strong> Paris” e “Ju<strong>de</strong>o Errante”, <strong>de</strong> Eugöne Sue, dois autores<br />
gigantes no gÖnero folhetinesco, companheiros do gran<strong>de</strong> Ponson <strong>de</strong> Terrail na genialida<strong>de</strong><br />
que o fez produzir o càlebre “As aventuras <strong>de</strong> Rocambole”, lanÅado no Jornal do Commercio<br />
com estardalhaÅo em 1859, relanÅado posteriormente algumas vezes e eternizado enquanto<br />
estilo “rocambolesco” nas narrativas <strong>de</strong> folhetim que ganharam o mundo e perduram atà hoje<br />
em diferentes vertentes. A repercussÇo na Corte em nada <strong>de</strong>ixava a <strong>de</strong>ver ä coqueluche que os<br />
folhetins causaram na iluminada Paris: “Estrondoso sucesso aqui, traduzido pelos anëncios <strong>de</strong><br />
página inteira, repetidas chamadas, retomada em fascÉculos, reediÅâes dos mesmos,<br />
imediatamente esgotados, filas para comprá-los etc” 63 . Inicialmente publicado na seÅÇo <strong>de</strong><br />
Varieda<strong>de</strong>s e, <strong>de</strong>pois, acolhido com honra no rodapà dos jornais e periÑdicos brasileiros, o<br />
romance traduzido aos poucos abre espaÅo para as produÅâes nacionais, moldadas já aos<br />
cortes cotidianos.<br />
60 MEYER, 1998, pp. 120-121.<br />
61 Segundo Meyer, o jornal Echo Français pertencia ao mesmo dono do Jornal do Commercio carioca, o exlivreiro<br />
franÅÖs exilado no Rio Pierre Plancher ─ daÉ a agilida<strong>de</strong> na traduÅÇo e publicaÅÇo da versÇo em<br />
portuguÖs da ficÅÇo <strong>de</strong> Dumas, que viria a <strong>de</strong>tonar a “revoluÅÇo folhetinesca (o vero Folhetim) entre nÑs, o<br />
criador do padrÇo pelo qual todos os outros vÇo se reger”. MEYER, ibi<strong>de</strong>m, pp. 133 e 135.<br />
62 Ibi<strong>de</strong>m, p. 136.<br />
63 MEYER, loc. cit.<br />
38
No Jornal do Commercio, os folhetins escritos por brasileiros proliferaram na<br />
esteira das novelas traduzidas: em 1839, por exemplo, sÇo publicados “A ressurreiÅÇo do<br />
amor: Chronica Rio Gran<strong>de</strong>nse”, assinada pelo pseudònimo Hum Rio Gran<strong>de</strong>nse,<br />
“ReligiÇo, amor e pátria”, <strong>de</strong> Pereira da Silva, “A paixÇo dos diamantes”, <strong>de</strong> Justiniano<br />
Josà da Rocha, “O Engeitado” [sic], <strong>de</strong> Paula Brito 64 . No ano seguinte estourou “A<br />
Moreninha”, <strong>de</strong> Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo, primeiro gran<strong>de</strong> sucesso do folhetim<br />
brasileiro. O Öxito <strong>de</strong> pëblico consagrava a fÑrmula do romance seriado eximiamente<br />
explorada pelo autor nesta obra: sentimentalismo ao gosto popular; linguagem simples e<br />
clara; diálogos ágeis, äs vezes sem a interferÖncia do narrador (conferindo teatralida<strong>de</strong>);<br />
herÑi romêntico <strong>de</strong> princÉpios morais; protagonista feminina como personificaÅÇo do mito<br />
brasileiro (“moreninha”); personagens principais planos para dar <strong>de</strong>staque ä aÅÇo;<br />
personagens secundários tipificados para retratar a socieda<strong>de</strong> burguesa da capital do<br />
Impàrio; ambientaÅÇo que valoriza os elementos urbanos em contraponto com os<br />
elementos naturais; valorizaÅÇo dos elementos culturais da naÅÇo brasileira. NÇo ä toa,<br />
Macedo à consi<strong>de</strong>rado um dos fundadores do romance no Brasil.<br />
Entre 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1852 e 31 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1853, sob o pseudònimo <strong>de</strong> Um<br />
Brasileiro, Manuel Antònio <strong>de</strong> Almeida publicou suas “MemÑrias <strong>de</strong> um Sargento <strong>de</strong><br />
MilÉcias” fatiadas na seÅÇo humorÉstica dominical intitulada Pacotilha do Correio Mercantil<br />
(um dos principais jornais da àpoca), reunidas posteriormente sob a forma <strong>de</strong> livro em dois<br />
volumes (um publicado no final <strong>de</strong> 1854 e outro no inÉcio <strong>de</strong> 1855). O emprego <strong>de</strong> linguagem<br />
jornalÉstica ─ simples e direta ─, a apropriaÅÇo dos fraseados populares colhidos nas ruas, a<br />
opÅÇo pelas personagens comuns vindas das classes màdia e baixa, a construÅÇo <strong>de</strong> um anti-<br />
herÑi (nem vilÇo nem herÑi-romêntico, alguàm entre o pÉcaro e o malandro) e a ambientaÅÇo<br />
da trama longe dos cenários aristocráticos permitiram ao autor <strong>de</strong> “MemÑrias” retratar a<br />
realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma àpoca (o narrador está no presente, mas a aÅÇo se dá no “tempo do rei”,<br />
perÉodo sob o comando <strong>de</strong> D. JoÇo VI) sem as distorÅâes costumeiras do Romantismo,<br />
valendo-se do humor para compor uma crònica <strong>de</strong> costumes realista. A composiÅÇo <strong>de</strong>sta<br />
narrativa em sequÖncia para ser publicada semanalmente (sempre aos domingos, no caso)<br />
obrigou-o a temperar o enredo melodramático com os ingredientes sabiamente usados, já há<br />
muito, por Scheraza<strong>de</strong>: Manuel Antònio <strong>de</strong> Almeida abusou do suspense, do mistàrio e da<br />
aventura, cozinhando a aÅÇo com peripàcias e reviravoltas que prometiam se consumar no<br />
capÉtulo seguinte e mantendo acesa a curiosida<strong>de</strong> do leitor atà o <strong>de</strong>sfecho final 65 .<br />
64 MEYER, 1998, p. 137.<br />
65 JAROUCHE, 2007, pp. 28 e 50.<br />
39
O formato folhetim seduziu mais um jornalista que viria a se <strong>de</strong>stacar como<br />
importante escritor brasileiro: Josà <strong>de</strong> Alencar, cronista <strong>de</strong> jornal que se tornaria gran<strong>de</strong> nome<br />
da prosa romêntica no paÉs, estreou como folhetinista no Diário do Rio <strong>de</strong> Janeiro com<br />
“Cinco Minutos”, em 1856. No ano seguinte, publicou tambàm em capÉtulos diários “A<br />
Viuvinha” e “O Guarani”, obra com a qual ganhou notorieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>spertando gran<strong>de</strong><br />
entusiasmo entre os apreciadores das letras. Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Taunay, em suas reminiscÖncias,<br />
registrou o impacto que tal “novida<strong>de</strong> emocional” causou nos “cÉrculos femininos da<br />
socieda<strong>de</strong> fina e no seio da mocida<strong>de</strong>”:<br />
Relembrando, sem gran<strong>de</strong> exageraÅÇo, o càlebre verso: “Tout Paris pour Chimöne a<br />
les yeux <strong>de</strong> Rodrigue”, o Rio <strong>de</strong> Janeiro em pÖso, para assim dizer, lia o Guarani e<br />
seguia comovido e enleado os amòres tÇo puros e discretos <strong>de</strong> Peri e Ceci e com<br />
estremecida simpatia acompanhava, no meio dos perigos e ardis dos bugres selvagens,<br />
a sorte vária e periclitante dos principais personagens do cativante romance, vazado<br />
nos mol<strong>de</strong>s do indianismo <strong>de</strong> Chateaubriand e Fenimore Cooper, mas cujo estilo à tÇo<br />
caloroso, opulento, sempre terso, sem <strong>de</strong>sfalecimento e como perfumado pelas flores<br />
exÑticas das nossas virgens e luxuriantes florestas. Quando a SÇo Paulo chegava o<br />
correio, com muitos dias <strong>de</strong> intervalo entÇo, reuniam-se muitos e muitos estudantes<br />
numa “repëblica”, em que houvesse qualquer feliz assinante do Diário do Rio, para<br />
ouvirem, absortos e sacudidos, <strong>de</strong> vez em quando, por elàtrico frÖmito, a leitura feita<br />
em voz alta por alguns <strong>de</strong>les, que tivesse ÑrgÇo mais forte. E o jornal era <strong>de</strong>pois<br />
disputado com impaciÖncia e pelas ruas se via agrupamentos em torno dos fumegantes<br />
lampiâes da iluminaÅÇo pëblica <strong>de</strong> outrora ─ ainda ouvintes a cercarem ávidos<br />
qualquer improvisado leitor. 66<br />
VÖ-se pela <strong>de</strong>scriÅÇo acima que o encantamento dos folhetins junto ao pëblico nÇo se<br />
limitava aos assinantes dos jornais em cujas páginas eram publicados: as narrativas se<br />
replicavam tanto entre os letrados que muitas vezes liam as histÑrias a partir <strong>de</strong> exemplares<br />
emprestados (a ponto <strong>de</strong> este hábito ameaÅar a estrutura <strong>de</strong> assinatura dos veÉculos ─ os<br />
jornais nÇo eram vendidos em bancas nesta àpoca) como entre a maioria analfabeta que<br />
acompanhava <strong>de</strong> ouvido as aventuras e peripàcias, graÅas ä boa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um leitor paciente.<br />
Tal alcance comprova a eficácia <strong>de</strong> uma narrativa concebida com o objetivo <strong>de</strong> atrair leitores<br />
para o jornal. O veÉculo mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong>via falar em especial äs massas urbanas e os textos ali<br />
publicados <strong>de</strong>viam ser consumÉveis por uma ampla faixa <strong>de</strong> pëblico. Submetidas ä lÑgica do<br />
mundo industrial mo<strong>de</strong>rno entÇo em vigÖncia, as fatias da ficÅÇo seriada <strong>de</strong>viam levar em<br />
conta a efemerida<strong>de</strong> da vida ëtil <strong>de</strong> um jornal diário, a atualida<strong>de</strong> e a instantaneida<strong>de</strong> da<br />
comunicaÅÇo jornalÉstica, a a<strong>de</strong>quaÅÇo da linguagem ao pëblico leitor e a limitaÅÇo do volume<br />
<strong>de</strong> texto ao espaÅo disponÉvel na página. Nas linhas do folhetim, tais caracterÉsticas<br />
jornalÉsticas equivaleriam a 1) criaÅÇo <strong>de</strong> pendÖncias (suspenses e complicaÅâes na aÅÇo) a<br />
66 ReproduÅÇo <strong>de</strong> citaÅÇo feita por Cavalcanti ProenÅa em sua introduÅÇo ä ediÅÇo Aguilar da Obra completa <strong>de</strong><br />
Josà <strong>de</strong> Alencar (Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1959, v. 1, p. 26) colhida em MEYER, 1998, pp. 131-132.<br />
40
serem resolvidas posteriormente como forma <strong>de</strong> expandir da duraÅÇo diária do capÉtulo; 2)<br />
permanente apresentaÅÇo <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s que garantissem o frescor da trama; 3) uso <strong>de</strong><br />
linguagem simples, direta e coloquial, reproduzindo as falas das pessoas comuns; e 4)<br />
exploraÅÇo da redundência, da repetiÅÇo, da adjetivaÅÇo, do uso <strong>de</strong> clichÖs e frases feitas<br />
como recurso dramático e estratàgia para preencher o espaÅo previsto para o capÉtulo do dia.<br />
Embora ocupasse lugar privilegiado no rodapà da primeira página, a vizinhanÅa com<br />
os espaÅos <strong>de</strong>stinados ä crònica e äs notÉcias factuais certamente contaminou em alguma<br />
medida o folhetim com as condicionantes da “noticiabilida<strong>de</strong>”: a novida<strong>de</strong>, o vulto, a<br />
proximida<strong>de</strong> e a relevência, convertidos pelo dicionário folhetinesco em originalida<strong>de</strong>,<br />
exagero melodramático, verossimilhanÅa e forÅa pedagÑgica. A proximida<strong>de</strong> que os<br />
assinantes mantinham com o jornal, expressando sua opiniÇo, cobrando imparcialida<strong>de</strong> ou<br />
coerÖncia polÉtica do veÉculo se reproduziu tambàm na relaÅÇo entre o folhetim e seus leitores:<br />
segundo Eliana Fochi, o leitor do romance <strong>de</strong> folhetim<br />
[...] está presente, participando do <strong>de</strong>senvolvimento da obra, seja <strong>de</strong> forma esporádica<br />
e explÉcita, pela correspondÖncia que troca com o folhetinista e por meio da qual<br />
consegue interferir nos caminhos da intriga e nos <strong>de</strong>stinos dos personagens, seja <strong>de</strong><br />
forma sistemática e subjacente, por constituir o “perfil” <strong>de</strong>finido do leitor para o qual<br />
e a partir do qual existe o periÑdico. 67<br />
Embora o <strong>de</strong>senrolar da trama do folhetim nÇo fosse composto <strong>de</strong> partes autònomas e sim<br />
orientadas pela tensÇo do final, sua estrutura episÑdica, construÉda e divulgada em partes,<br />
permitia esta participaÅÇo do leitor e sua configuraÅÇo hoje como obra aberta. A estratàgia <strong>de</strong><br />
provocar o sobressalto, fazer o corte “na hora mais in<strong>de</strong>vida” e adiar sempre a conclusÇo<br />
permitia ao leitor, fisgado pelo prazer da curiosida<strong>de</strong>, manifestar-se sugerindo caminhos para<br />
a trama. Ponson Du Terrail, o mago do folhetim mo<strong>de</strong>rno francÖs que enca<strong>de</strong>ava aventuras<br />
sem fim, foi forÅado pelo apelo dos leitores a “ressuscitar n vezes seu Rocambole” 68 .<br />
Assim como a aproximaÅÇo estilÉstica do melodrama com o romance <strong>de</strong> folhetim<br />
permitiu, como diz Fochi, o vÉnculo dos artifÉcios da trama lacrimosa com os da rocambolesca<br />
e a incorporaÅÇo <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s teatrais, sua proximida<strong>de</strong> fÉsica com o jornalismo permitiu a<br />
“prontidÇo <strong>de</strong> uma escrita” que acabou por reforÅar sua vocaÅÇo para a teatralida<strong>de</strong> atravàs da<br />
opÅÇo pelo fluxo do diálogo e pelo entremeio sumário 69 . Assim, do cruzamento da linguagem<br />
jornalÉstica com a linguagem da ficÅÇo, entrelaÅadas pela lÑgica do consumo e do<br />
67 FOCHI, disponÉvel em:<br />
, p. 2. Acesso em 17 jul. 2009.<br />
68 MEYER, 1998, p. 122.<br />
69 FOCHI, op. cit., pp. 4-5.<br />
41
entretenimento e pela missÇo pedagÑgica, consolidou-se, ao sabor da gran<strong>de</strong> aceitaÅÇo<br />
popular, a narrativa <strong>de</strong> folhetim ─ hÉbrida o suficiente para ser con<strong>de</strong>nada pelos crÉticos<br />
puristas ä condiÅÇo <strong>de</strong> subliteratura, para ser explorada por escritores sensibilizados com o<br />
novo universo realista em plena vigÖncia do Romantismo, para ser abraÅada por leitores<br />
letrados como novida<strong>de</strong> literária e para ser celebrada pelos analfabetos como passaporte para<br />
o mundo da literatura.<br />
Mais que uma simples tàcnica <strong>de</strong> publicaÅÇo fracionada <strong>de</strong> histÑrias 70 , o folhetim,<br />
segundo Ana Lëcia Reis e Cláudia Braga, alterou profundamente as caracterÉsticas do<br />
romance enquanto gÖnero literário 71 : a elevaÅÇo da aÅÇo (os fatos narrativos) ä condiÅÇo <strong>de</strong><br />
protagonista da histÑria, o <strong>de</strong>sdobramento da aÅÇo em uma ca<strong>de</strong>ia vertiginosa <strong>de</strong> eventos (as<br />
peripàcias) e a construÅÇo <strong>de</strong> numerosas subtramas <strong>de</strong>ixavam a caracterizaÅÇo das<br />
personagens em segundo plano. NÇo que elas fossem menores; eram menos i<strong>de</strong>alizadas e mais<br />
tipificadas, na medida certa para dar andamento ä aÅÇo. Eram tambàm personagens mais<br />
prÑximas ao homem comum, urbano, entida<strong>de</strong>s facilmente passÉveis <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo: segundo<br />
Meyer, herÑis romênticos, mosqueteiros e vingadores, herÑis canalhas, mulheres fatais e<br />
sofredoras, crianÅas trocadas, raptadas, abandonadas, ricos maldosos e pobres honestos 72 . No<br />
folhetim (e <strong>de</strong>pois na telenovela, como se verá), se as personagens sÇo tipificadas, os temas<br />
sÇo codificados: Artur da Távola 73 i<strong>de</strong>ntifica-os como mitos ─ os suplÉcios (Prometeu,<br />
Têntalo e SÉsifo), Eros e Psique, Cin<strong>de</strong>rela, e SansÇo e Dalila; Cristiane Costa 74 , como<br />
ingredientes romênticos ─ obstáculos, triêngulos amorosos, ruptura com a or<strong>de</strong>m social e<br />
sonhos <strong>de</strong> ascensÇo. Mas, acima do tema, da aÅÇo e das personagens, havia o jogo. NÇo sÑ<br />
pelo ritmo, mas precisamente e sobretudo pelo corte, a narrativa <strong>de</strong> folhetim enfeitiÅava o<br />
leitor com o que a crÉtica Liliane Durand-Dessert chama <strong>de</strong> “erotizaÅÇo do texto” 75 : “manipula<br />
com habilida<strong>de</strong> a dialàtica do <strong>de</strong>sejo e do obstáculo, do algoz e da vÉtima, do mestre e do<br />
escravo...”<br />
NÇo admira que, ao longo do tempo e a <strong>de</strong>speito da preconceituosa qualificaÅÇo <strong>de</strong><br />
“literatura industrial”, o romance-folhetim tenha seduzido letrados e analfabetos, e atà mesmo<br />
70 ï preciso <strong>de</strong>stacar que a publicaÅÇo fracionada <strong>de</strong> uma histÑria e sua publicaÅÇo em jornais e periÑdicos nÇo fazem<br />
da obra um folhetim. Como à o caso <strong>de</strong> “Quincas Borba”, <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, publicado quinzenalmente em A<br />
Estação entre os anos <strong>de</strong> 1886 e 1891, com interrupÅâes, e muitas vezes i<strong>de</strong>ntificado equivocadamente como<br />
folhetim: como afirma Marlyse Meyer, estudiosa do gÖnero, “nÇo à, nunca foi, um romance-folhetim” (MEYER,<br />
1996, p. 16.).<br />
71 REIS e BRAGA, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 21 jul. 2009.<br />
72 MEYER, 1998, p. 122.<br />
73 TôVOLA, 1996, p. 28.<br />
74 COSTA, 2000, pp. 19-29, 31.<br />
75 DURAND-DESSERT apud. MEYER, op. cit., p. 78.<br />
42
autores da “alta cultura”, como Graciliano Ramos, James Joyce e Robert Louis Stevenson 76 . E<br />
que tenha transbordado para outros suportes e atravessado escolas literárias, permitindo a<br />
sucessivas geraÅâes este fascinante mergulho no mundo da fantasia. Sempre conduzido pelo<br />
gosto popular, o folhetim chegaria com fòlego renovado ao sàculo XX, pronto para se a<strong>de</strong>quar<br />
äs especificida<strong>de</strong>s do rádio e da televisÇo.<br />
3.3 DO FOLHETIM IMPRESSO è RADIONOVELA E è TELENOVELA<br />
Muitos autores acreditam que, na Amàrica Latina e no Brasil, o percurso do romance-<br />
folhetim apresentado nas entÇo estreantes mÉdias eletrònicas tenha sido trilhado a partir do<br />
mo<strong>de</strong>lo norte-americano das soap operas. Dramas seriados <strong>de</strong> ficÅÇo transmitidos pelo rádio<br />
ou pela televisÇo, as soap operas foram inicialmente exibidas em horário diurno, sob o<br />
patrocÉnio <strong>de</strong> fabricantes <strong>de</strong> sabÇo (soap), e estruturadas em comeÅo e fim, com um meio<br />
expansÉvel que permitia seu <strong>de</strong>sdobramento em inëmeras subtramas, enredando o pëblico em<br />
inëmeros conflitos e permitindo seu envolvimento com as personagens.<br />
As radio soap operas surgiram durante a Gran<strong>de</strong> DepressÇo americana como um<br />
modo <strong>de</strong> entreter as massas que nÇo podiam se valer do teatro ou do cinema, nem mesmo<br />
pagar por revistas: as novelas radiofònicas eram distraÅÇo a baixo custo. Mas eram tambàm,<br />
sobretudo, o resultado <strong>de</strong> uma estratàgia <strong>de</strong>senvolvida por agÖncias <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong> para<br />
<strong>de</strong>senvolver programas <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> como um meio <strong>de</strong> assegurar aos patrocinadores que<br />
“milhâes <strong>de</strong> americanos estavam ouvindo <strong>de</strong>terminados programas em horários especÉficos e<br />
com habitual frequÖncia [tradução nossa]” 77 . Já em 1929, a novela “Amos and Andy”,<br />
transmitida pela WGN, havia se tornado um fenòmeno do rádio, com uma audiÖncia semanal<br />
estimada em 40 milhâes <strong>de</strong> ouvintes americanos 78 . Em 1930, “Painted Dreams”, consi<strong>de</strong>rada<br />
a primeira soap opera americana, foi transmitida durante um ano, em episÑdios <strong>de</strong> quinze<br />
minutos por dia, seis dias por semana (exceto domingo). Contava a singela e domàstica<br />
histÑria <strong>de</strong> uma mulher irlan<strong>de</strong>sa, seu lar, sua filha e a amiga <strong>de</strong> sua filha. SÑ mais tar<strong>de</strong>, por<br />
volta <strong>de</strong> 1959 foi que o rádio passou a transmitir dramas mais pesados, combinando crime e<br />
violÖncia. Em gran<strong>de</strong> parte, as radio soap operas traziam o germe <strong>de</strong> dois gÖneros bastante<br />
populares nos Estados Unidos: os romances domàsticos femininos que haviam gozado <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> sucesso no fim do sàculo XIX e inÉcio do sàculo XX, e o vau<strong>de</strong>ville, espetáculo teatral<br />
76 MEYER, 1998, p. 16.<br />
77 ALLEN, 1985, p. 103.<br />
78 Ibi<strong>de</strong>m, p. 104.<br />
43
<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s conduzido como mero entretenimento comercial. Do primeiro, o folhetim<br />
radiofònico teria herdado sua condiÅÇo <strong>de</strong> arte feminina e a estrutura narrativa continuada<br />
(embora no rádio a exacerbaÅÇo do “expansÉvel meio” tenha levado a histÑria a adiar<br />
in<strong>de</strong>finidamente o seu fim, o que o distanciaria do romance); do segundo, teria se valido da<br />
curta duraÅÇo <strong>de</strong> cenas e <strong>de</strong> seu caráter <strong>de</strong> entretenimento puro, fácil <strong>de</strong> digerir.<br />
No final <strong>de</strong> 1950, a soap opera “The First Handred Years” inauguraria o gÖnero na<br />
televisÇo, aproveitando que a entÇo sensÉvel queda na audiÖncia das emissoras <strong>de</strong> rádio<br />
facilitaria a transferÖncia do investimento dos patrocinadores para a programaÅÇo <strong>de</strong> tevÖ. Os<br />
15 minutos <strong>de</strong> episÑdio do formato dos primeiros anos logo se mostraram insuficientes para<br />
correspon<strong>de</strong>r ä expectativa da audiÖncia: em 1965 os episÑdios diários dobrariam <strong>de</strong> tamanho<br />
e no inÉcio dos anos 1970 já chegavam a uma hora <strong>de</strong> duraÅÇo. As TV soap operas, tanto as<br />
diurnas como as do prime time (horário nobre, que vai das 20h äs 23h), já haviam se tornado<br />
um vÉcio! 79 Em 1980, “Dallas”, produÅÇo da CBS que havia estreado dois anos antes no<br />
horário nobre, atingiu uma audiÖncia estimada em 83 milhâes <strong>de</strong> americanos, performance<br />
que garantiu sua exportaÅÇo para inëmeros paÉses.<br />
Com base na longa tradiÅÇo latino-americana <strong>de</strong> divulgar histÑrias em formato seriado<br />
no rádio e nos jornais, há quem, como Tunstall 80 , discor<strong>de</strong> da suposta relaÅÇo entre as<br />
radionovelas e as radio/TV soap operas. Outro argumento: embora as mulheres tenham sido<br />
um significativo segmento da audiÖncia <strong>de</strong> massa, as telenovelas, diferentemente das soap<br />
operas, nÇo foram produzidas para satisfazer o gosto feminino e sim para agradar a todos os<br />
segmentos da audiÖncia em potencial da televisÇo. Tanto que, com o tempo, a TV Globo, a<br />
maior veiculadora <strong>de</strong> telenovelas brasileiras, acabou sendo obrigada a <strong>de</strong>sdobrar o folhetim<br />
televisivo em diferentes linguagens e estilos, <strong>de</strong> modo a aten<strong>de</strong>r os diferentes tipos <strong>de</strong> pëblico,<br />
<strong>de</strong> acordo com a faixa etária:<br />
ès 18 horas eram transmitidas tramas água-com-aÅëcar que reproduziam a literatura<br />
clássica brasileira para os jovens; äs 19 horas, comàdias romênticas; äs 20 horas,<br />
horário nobre, eram discutidos assuntos mais complexos, temas sociais que tinham<br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo do pëblico, e äs 22 horas, eram reservadas as crÉticas e reflexâes<br />
sociais. 81<br />
Como assinalava o Latin American Daily Post em 1981, as telenovelas brasileiras sÇo um<br />
gÖnero singular, diferente das soap operas norte-americanas tambàm pelo fato <strong>de</strong> nÇo serem<br />
“um produto <strong>de</strong> ambiÅÇo limitada, produzido com baixo orÅamento e dirigido äs donas-<strong>de</strong>-<br />
79 ALLEN, 1985, pp. 249-250.<br />
80 TUNSTALL, 1977, p. 197.<br />
81 FERNANDES, 1987, pp. 131-132.<br />
44
casa [tradução nossa]” 82 . Tais argumentos fazem recair somente sobre o folhetim a origem<br />
das radio e telenovelas. Mais especificamente, segundo Cristiane Costa, a telenovela seria um<br />
fenòmeno <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa genuinamente latinoamericano que teria em seu DNA a<br />
marca precisa da influÖncia do que Marlyse Meyer i<strong>de</strong>ntifica como a terceira fase do<br />
romance-folhetim, aquela que se <strong>de</strong>dica aos “dramas da vida”, tambàm <strong>de</strong>finida como<br />
“<strong>de</strong>sgraÅa pouca à bobagem”. A primeira fase, que vai <strong>de</strong> 1836 a 1859, chamada <strong>de</strong> folhetim<br />
romêntico ou <strong>de</strong>mocrático, e a segunda fase, <strong>de</strong> 1851 a 1871, conhecida como rocambolesca,<br />
nÇo teriam <strong>de</strong>ixado traÅos tÇo expressivos na telenovela do continente como a fase <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira,<br />
que vai <strong>de</strong> 1871 a 1914: “EmoÅÇo a qualquer preÅo, imagens violentas que saltam do<br />
noticiário para a ficÅÇo, temas como amor, Ñdio, paixÇo, ciëme, <strong>de</strong>sejo, ganência, ambiÅÇo,<br />
morte, crime, luxëria, loucura” 83 ; “e no final, recompensa para os bons, puniÅÇo para os<br />
maus” 84 ─ o indispensável happy end.<br />
No Brasil, assim como o romance <strong>de</strong> rodapà havia sido um indiscutÉvel fenòmeno <strong>de</strong><br />
leitura nos jornais do sàculo XIX, os folhetins radiofònicos ou as radionovelas<br />
potencializaram a audiÖncia do novo veÉculo <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa nos anos 1950. O<br />
colorido vocal e as nuances <strong>de</strong> interpretaÅÇo contribuÉram para conferir ainda mais<br />
dramaticida<strong>de</strong> e teatralida<strong>de</strong> a narrativas que materializavam, atravàs do trabalho <strong>de</strong> bons<br />
atores e <strong>de</strong> efeitos sonoros, o que ia pela imaginaÅÇo dos ouvintes. Inicialmente, como no<br />
jornal, as radionovelas no Brasil reproduziam adaptaÅâes <strong>de</strong> textos estrangeiros, sobretudo<br />
franceses e cubanos. “O Direito <strong>de</strong> Nascer”, do cubano Felix Caignet, transmitida em 1951,<br />
ficou trÖs anos no ar pela Rádio Nacional, conquistando estrondoso sucesso <strong>de</strong> pëblico, e foi<br />
posteriormente adaptada para a televisÇo em trÖs diferentes versâes, transmitidas<br />
simultaneamente pela TV Tupi e TV Rio entre <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1964 e agosto <strong>de</strong> 1965, e, mais<br />
tar<strong>de</strong>, pela Re<strong>de</strong> Tupi entre julho <strong>de</strong> 1978 e maio <strong>de</strong> 1979, e pelo SBT entre maio e outubro <strong>de</strong><br />
2001. O sucesso no Brasil apenas reproduzia a repercussÇo que o texto alcanÅara na regiÇo: a<br />
radionovela “O Direito <strong>de</strong> Nascer” foi o maior fenòmeno <strong>de</strong> audiÖncia em toda a Amàrica<br />
Latina. O formato folhetim radiofònico nÇo tardaria a conquistar autores nacionais como<br />
Oduvaldo Vianna, pai, (autor <strong>de</strong> 75 novelas para a Rádio Nacional!), Amaral Gurgel, Gilberto<br />
Martins, Dias Gomes, Mario Lago, Mário Brassini, Janete Clair e Ivani Ribeiro.<br />
82 Latin American Daily Post, outubro <strong>de</strong> 1981, página nÇo disponÉvel.<br />
83 COSTA, 2000, p. 45.<br />
84 MEYER, 1996, quarta capa.<br />
45
3.4 CAMINHOS DA TELENOVELA NO BRASIL<br />
Com o advento da televisÇo, o folhetim logo incorporaria a dimensÇo visual do novo<br />
veÉculo, introduzindo novas narrativas e novos cÑdigos <strong>de</strong> percepÅÇo que ampliariam ainda<br />
mais sua forÅa dramática: os temas e a estàtica do rádio foram adaptados, obrigando autores,<br />
atores, diretores e tàcnicos a encontrar linguagem prÑpria. Diferentemente das soap operas<br />
americanas, cujos capÉtulos iam ao ar diariamente no perÉodo diurno e semanalmente durante<br />
o prime time, e cuja duraÅÇo podia se esten<strong>de</strong>r infinitamente 85 , as telenovelas brasileiras<br />
sempre foram construÉdas com a perspectiva do final e logo perceberam que teriam que<br />
investir em periodicida<strong>de</strong> mais estreita se quisessem pren<strong>de</strong>r o telespectador e forjar novo<br />
hábito. Se as primeiras produÅâes iam ao ar duas ou trÖs vezes por semana por apenas 20<br />
minutos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1963 as telenovelas no Brasil passaram a adotar o formato atual <strong>de</strong> exibiÅÇo<br />
diária, <strong>de</strong> segunda a sábado. E há muito que tÖm em màdia oito ou 10 meses <strong>de</strong> duraÅÇo 86 , o<br />
que totaliza <strong>de</strong> 180 a 200 capÉtulos, nëmero já consi<strong>de</strong>rado elevado para os padrâes nacionais.<br />
O alto custo dos televisores no inÉcio dos anos 1950 <strong>de</strong>terminou uma audiÖncia <strong>de</strong><br />
elite, que a princÉpio resistia em aceitar o gÖnero “barato e popular” trazido do rádio. Com a<br />
introduÅÇo <strong>de</strong> uma estratàgia comercial-publicitária para a televisÇo, emissoras foram<br />
estimuladas a cooptar a a<strong>de</strong>sÇo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s nomes do teatro nacional, forjando assim a quebra<br />
da resistÖncia inicial das elites e ampliando sua frente junto äs camadas populares. Com o<br />
tempo e a adoÅÇo <strong>de</strong> temas “sàrios” nas tramas, a telenovela tornou-se o programa favorito da<br />
famÉlia brasileira 87 . Tal transformaÅÇo no comportamento da audiÖncia reflete os caminhos<br />
por que passou a dramaturgia brasileira no perÉodo.<br />
Durante os anos 1950 e 1960, as narrativas das telenovelas eram impregnadas da<br />
estàtica do rádio e do teatro, e foram levadas a cabo por escritores e atores <strong>de</strong> renome no<br />
teatro. Os textos, em sua maioria, eram traduzidos e adaptados, muitos <strong>de</strong>les a partir <strong>de</strong><br />
85 A americana “The Guiding Light” à a mais longa soap opera produzida na histÑria da televisÇo e do rádio. Foi<br />
veiculada primeiramente na Rádio NBC entre janeiro <strong>de</strong> 1937 e novembro <strong>de</strong> 1946; passou para a Rádio CBS<br />
em junho <strong>de</strong> 1947, on<strong>de</strong> ficou atà junho <strong>de</strong> 1956; em junho <strong>de</strong> 1952 passou a ser exibida diurnamente na TV<br />
CBS (simultaneamente ä transmissÇo pela rádio da emissora); e em 18 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009 exibiu seu ëltimo<br />
capÉtulo. Ao longo <strong>de</strong>stes 72 anos, mais <strong>de</strong> 15.700 episÑdios foram ao ar. Atores foram substituÉdos, personagens<br />
foram envelhecendo e a trama foi ganhando diferentes contornos para se a<strong>de</strong>quar äs transformaÅâes vividas pela<br />
audiÖncia, inicialmente constituÉda apenas por donas-<strong>de</strong>-casa. Ver e<br />
tambàm .<br />
86 Ressalve-se que as primeiras telenovelas brasileiras nÇo eram exibidas diariamente (sÑ em 1963 foi ao ar a<br />
primeira novela diária, “2-54 99 Ocupado”, <strong>de</strong> Dulce Santucci, na TV Excelsior) e duravam nÇo mais que quatro<br />
ou seis semanas. Mas, a partir <strong>de</strong> 1963, o formato que tem sido adotado no paÉs consiste em 50 minutos <strong>de</strong> drama<br />
veiculado durante seis dias por semana por um perÉodo <strong>de</strong> oito a <strong>de</strong>z meses.<br />
87 ARAüJO, 1983, página nÇo disponÉvel.<br />
46
originais da consagrada autora exilada cubana GlÑria Magadan (inicialmente contratada pela<br />
TV Tupi e, ao final <strong>de</strong> 1965, pela TV Globo), sem qualquer compromisso com a realida<strong>de</strong><br />
nacional e impregnados do estilo “<strong>de</strong>sgraÅa pouca à bobagem”. Magadan, exÉmia arquiteta do<br />
folhetim latinoamericano, <strong>de</strong>fendia a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o brasileiro à um povo muito pouco<br />
romêntico, indiferente äs tramas dramáticas, e por isso suas novelas nÇo tratavam da realida<strong>de</strong><br />
local: preferia alimentá-lo <strong>de</strong> melodrama e romantismo, ambientando suas tramas em<br />
localida<strong>de</strong>s distantes do Brasil, como a Espanha, a Rëssia e o Oriente Màdio 88 .<br />
A partir <strong>de</strong> 1966, autores brasileiros como Ivani Ribeiro e Raimundo Lopes comeÅam<br />
a introduzir narrativas ambientadas em cenário local, histÑrias como “Almas <strong>de</strong> Pedra” (1966,<br />
TV Excelsior) ou “Re<strong>de</strong>nÅÇo” (1966-1968, TV Excelsior). Nesta àpoca, embora o universo<br />
fantasioso <strong>de</strong> Magadan ainda fosse marcante, a opÅÇo <strong>de</strong> alguns autores pelos temas nacionais<br />
se por um lado contribuÉa para a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo do pëblico com o “projeto mo<strong>de</strong>rnizante do<br />
‘milagre brasileiro’” 89 , por outro dava inÉcio a alguns embates com o regime militar: por<br />
discutir problemas polÉticos, “A ponte dos suspiros”, novela <strong>de</strong> 1969 exibida äs 19 horas pela<br />
TV Globo e escrita por Dias Gomes sob o pseudònimo <strong>de</strong> Stela Cal<strong>de</strong>rÑn, acabou censurada e<br />
con<strong>de</strong>nada a ser exibida mais tar<strong>de</strong>, obrigando a emissora a <strong>de</strong>stinar o horário das 22 horas<br />
para telenovelas “mais experimentais” (cabe <strong>de</strong>stacar que a abordagem <strong>de</strong> temas consi<strong>de</strong>rados<br />
<strong>de</strong>licados para o momento em “A ponte dos suspiros” sÑ foi possÉvel graÅas a uma guinada<br />
radical na trama introduzida pelo autor logo apÑs a <strong>de</strong>missÇo da entÇo supervisora GlÑria<br />
Magadan). A patrulha da censura aos textos da teledramaturgia exigiu prudÖncia: sutileza e<br />
emprego <strong>de</strong> metáforas foram as armas <strong>de</strong> autores que nÇo se contentavam apenas em ambientar<br />
sua trama no Brasil. A partir <strong>de</strong> 1970, a chamada “dramaturgia do regime”, que produziu tramas<br />
para os horários anteriores ao das 22 horas, passou a enfatizar problemas existenciais apoiando-<br />
se no chamado “dramalhÇo” como forma <strong>de</strong> evitar confrontos com a ditadura.<br />
Expoente <strong>de</strong>sta vertente catártica, Janete Clair, que havia assessorado Magadan e<br />
<strong>de</strong>spertado o ciëme da supervisora com seu talento, passou a assumir, soberana, o processo <strong>de</strong><br />
nacionalizaÅÇo das telenovelas no horário das 20 horas, contribuindo para a conquista da<br />
li<strong>de</strong>ranÅa da TV Globo junto a audiÖncia e para o estabelecimento <strong>de</strong> um padrÇo nacional <strong>de</strong><br />
telenovelas. Segundo Muniz Sodrà 90 , foi durante este perÉodo que teve inÉcio a cobranÅa da<br />
intelectualida<strong>de</strong> brasileira sobre o papel educativo e a funÅÇo cultural da televisÇo como meio<br />
88 PIQUEIRA, 2008, disponÉvel em:<br />
, p. 2. Acesso em 6 nov. 2009.<br />
89 COSTA, 2000, p. 71.<br />
90 SODRï, 1984, p. 110.<br />
47
<strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa. Tal pressÇo teria <strong>de</strong>terminado uma nova orientaÅÇo no estilo da<br />
produÅÇo das telenovelas: a televisÇo abandonava o velho mo<strong>de</strong>lo mexicano-argentino<br />
melodramático e retomava a linha <strong>de</strong> caracterizaÅâes culturais brasileiras, tendo ä frente a TV<br />
Tupi como forte concorrente äs produÅâes da TV Globo. As telenovelas “Beto Rockfeller”<br />
(1968/69, TV Tupi), <strong>de</strong> Bráulio Pedroso, e “Assim na Terra como no Càu” (1970/71, TV<br />
Globo), <strong>de</strong> Dias Gomes, foram os marcos <strong>de</strong>sta revoluÅÇo. Como diz Sodrà, a primeira,<br />
especialmente, inaugurou a telenovela enquanto gÖnero especificamente televisivo e <strong>de</strong>u<br />
inÉcio ao know-how brasileiro na produÅÇo do gÖnero.<br />
A partir <strong>de</strong> 1975, <strong>de</strong> modo a acomodar as exigÖncias da censura e a nova Önfase na<br />
abordagem nacional <strong>de</strong> temas, a telenovela soube encontrar porto seguro na literatura<br />
nacional: em diferentes horários, o gÖnero explorou com maestria os romances <strong>de</strong> autores<br />
brasileiros como Jorge Amado, Martins Pena, Josà <strong>de</strong> Alencar, Joaquim Manoel <strong>de</strong> Macedo e<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, garantindo uma resposta positiva tanto dos censores como do pëblico. ï<br />
preciso <strong>de</strong>stacar que um pouco antes disso, ainda em plena vigÖncia do dramalhÇo, alguns<br />
autores nacionais <strong>de</strong> renome, muitos <strong>de</strong>les vindos do teatro, conseguiram, como diz Lauro<br />
Càsar Muniz 91 , emplacar “produtos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> na TV”, especialmente no horário mais<br />
tardio (horário nobre e faixa das 22 horas). Segundo ele, a teledramaturgia ofereceu “textos<br />
primorosos”, como “O Bem-Amado” (<strong>de</strong> Dias Gomes, em 1973), “O Rebu” (<strong>de</strong> Bráulio<br />
Pedroso, em 1974), “Escalada” (do prÑprio Lauro Càsar Muniz, em 1975), “Pecado Capital”<br />
(<strong>de</strong> Janete Clair, em 1975), “Gabriela” e “Nina” (ambas <strong>de</strong> Walter George Durst, a primeira<br />
exibida em 1975 e a segunda, em 1977). Já em 1979, como diz Dias Gomes, a sëbita<br />
interrupÅÇo da censura permitiu o abandono das metáforas e, ao mesmo tempo, instaurou um<br />
“estado <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> no processo criativo dos autores nacionais”, levando as telenovelas a<br />
enfrentar duras crÉticas e discussâes antecipando o fim do gÖnero 92 . Nos anos 1980, chegou-se<br />
a <strong>de</strong>cretar que a telenovela estava com os dias contados no Brasil e que o gÖnero seria logo<br />
substituÉdo por formatos mais curtos e mo<strong>de</strong>rnos.<br />
Neste contexto, a estreia <strong>de</strong> “Roque Santeiro” em junho <strong>de</strong> 1985, <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
ter tido sua produÅÇo abortada pela censura, foi recebida como um “milagre”: sua narrativa<br />
carregada <strong>de</strong> humor, <strong>de</strong> crÉtica social e <strong>de</strong> crÉtica polÉtica revigorou o gÖnero, trazendo <strong>de</strong><br />
volta ä mesa <strong>de</strong> jantar dos brasileiros um Brasil rural ameaÅado pelo progresso, pelo<br />
coronelismo e pela dificulda<strong>de</strong> da Igreja CatÑlica em acomodar sua vertente progressista no<br />
91 JACINTHO, disponÉvel em:<br />
, <strong>de</strong> 25/05/03. Acesso em 28 set. 2008.<br />
92 “As telenovelas pe<strong>de</strong>m socorro”. Folha <strong>de</strong> S. Paulo, 1û <strong>de</strong> abril, 1985.<br />
48
universo dos exploradores da fà. A extraordinária popularida<strong>de</strong> alcanÅada pela trama das 20<br />
horas (o IBOPE chegou a registrar cem por cento <strong>de</strong> audiÖncia!) estava calcada na mesma<br />
estratàgia que fizera <strong>de</strong> “Beto Rockfeller” um marco na televisÇo brasileira: a assim chamada<br />
“brasilida<strong>de</strong>”. Ao procurar eliminar qualquer caracterÉstica que pu<strong>de</strong>sse expressar uma cultura<br />
importada e ao investir em uma linguagem que refletisse a cultura brasileira (na performance<br />
dramática dos atores, no estilo da narrativa, no comportamento das personagens, na<br />
cenografia, na parÑdia aos fatos reais), “Roque Santeiro” investiu nos traÅos <strong>de</strong> localida<strong>de</strong><br />
para garantir i<strong>de</strong>ntificaÅÇo. è receita básica <strong>de</strong> “brasilida<strong>de</strong>”, Dias Gomes adicionou, a tÉtulo<br />
<strong>de</strong> promover entretenimento em larga escala, doses generosas <strong>de</strong> fantasia e realismo mágico,<br />
renovando no pëblico o gosto pela viagem possÉvel ao mundo da ficÅÇo, e oferecendo o<br />
humor com distanciamento crÉtico como substituto ao drama catártico. Neste entre-lugar on<strong>de</strong><br />
repousa Asa Branca (a cida<strong>de</strong> fictÉcia da novela) e por on<strong>de</strong> passeiam Santinhas e lobisomens,<br />
atores e prostitutas, padres e coronàis, “Roque Santeiro” restabelece o novo na telenovela<br />
brasileira e abre caminho para mais um longo capÉtulo na histÑria do gÖnero no paÉs.<br />
“Pantanal”, <strong>de</strong> Benedito Ruy Barbosa, exibida em 1990 pela TV Manchete, <strong>de</strong>stacou-<br />
se nesta nova fase da telenovela brasileira pela trama rural simples com Önfase na cultura<br />
popular e no folclore, pelo ritmo lento e contemplativo, e pela elevaÅÇo da natureza ä<br />
condiÅÇo <strong>de</strong> personagem. “O Clone” (2001/2002, TV Globo), <strong>de</strong> Gloria Perez, foi outro<br />
marco da teledramaturgia brasileira já em sua fase industrial: diferente do universo ficcional<br />
da maioria das produÅâes nacionais, a narrativa resgatou com forte apelo popular o<br />
melodrama folhetinesco, combinando peripàcias resultantes dos (<strong>de</strong>s)encontros culturais com<br />
merchandising 93 social, discussÇo <strong>de</strong> temas cientÉficos e fantasia.<br />
3.5 O PODER DA OBRA ABERTA<br />
Apesar da alar<strong>de</strong>ada queda em seus Éndices <strong>de</strong> audiÖncia, fruto da concorrÖncia com as<br />
novas mÉdias (internet, DVD e TV a cabo) 94 , o nëmero <strong>de</strong> domicÉlios brasileiros sintonizados<br />
93 Embora o termo merchandising social tenha se cristalizado como uma marca <strong>de</strong> Gloria Perez, o uso da palavra<br />
merchandising nÇo me parece apropriado: sugere uma ferramenta <strong>de</strong> marketing quando a autora já <strong>de</strong>monstrou,<br />
<strong>de</strong>ntro e fora <strong>de</strong> suas tramas, seu compromisso com as campanhas que promove. Ao que parece, as novelas à que<br />
servem <strong>de</strong> veÉculo para a divulgaÅÇo <strong>de</strong> suas campanhas, e nÇo o contrário.<br />
94 De acordo com Renata Pallottini, a queda na audiÖncia das novelas globais tem sido registrada há cerca <strong>de</strong> 11<br />
anos e coinci<strong>de</strong> com a expansÇo da TV paga e da internet resi<strong>de</strong>ncial. “Se nos anos 1990 era comum as novelas<br />
das oito marcarem 60 pontos, no inÉcio da dàcada <strong>de</strong> 2000, elas passaram a fazer 50 pontos. Agora, já à um alÉvio<br />
para a emissora quando uma novela tem 40 pontos <strong>de</strong> audiÖncia.” PALLOTTINI, In: “AudiÖncia das telenovelas<br />
49
nos dramas seriados ainda à prova contun<strong>de</strong>nte do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> comunicaÅÇo das histÑrias<br />
contadas em fatias seriadas pela televisÇo. Especialmente em se tratando das tramas exibidas<br />
no horário nobre da TV Globo.<br />
Mesmo consi<strong>de</strong>rando que as diferentes metodologias empregadas na contabilizaÅÇo da<br />
audiÖncia pelo IBOPE ao longo do tempo dificultam a comparaÅÇo entre os Éndices das<br />
telenovelas (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1991/92, por exemplo, a audiÖncia passou a ser medida em tempo real),<br />
nÇo se po<strong>de</strong> discutir a magnitu<strong>de</strong> da penetraÅÇo das telenovelas no Brasil. Quatro momentos<br />
distintos dÇo a medida da forÅa <strong>de</strong> sua narrativida<strong>de</strong>: “sabe-se, por exemplo, que um capÉtulo<br />
<strong>de</strong> “IrmÇos Coragem”, <strong>de</strong> Janete Clair, foi mais visto que a vitÑria do Brasil sobre a Itália na<br />
final da Copa do Mundo <strong>de</strong> 1970, um dia antes” 95 , diz Renata Pallottini, pesquisadora ligada<br />
ao Nëcleo <strong>de</strong> Pesquisa em Telenovela da USP; “Roque Santeiro”, <strong>de</strong> Dias Gomes, exibida<br />
entre 1985 e 1986, chegou a alcanÅar cem por cento <strong>de</strong> audiÖncia; “O Clone”, <strong>de</strong> Gloria Perez,<br />
exibida entre 2001 e 2002, foi consi<strong>de</strong>rada a novela <strong>de</strong> “maior audiÖncia global dos ëltimos<br />
anos, alcanÅando, em màdia, 47 pontos no IBOPE, o que correspon<strong>de</strong> a mais <strong>de</strong> 2 milhâes <strong>de</strong><br />
TVs ligadas na Gran<strong>de</strong> SÇo Paulo”, sendo que seu ëltimo capÉtulo alcanÅou “a incrÉvel marca<br />
<strong>de</strong> 62 pontos màdios <strong>de</strong> audiÖncia, cerca <strong>de</strong> 3 milhâes <strong>de</strong> TVs ligadas em SÇo Paulo), com<br />
pico <strong>de</strong> 68” 96 ; e “Caminho das índias”, tambàm <strong>de</strong> Gloria Perez, atingiu em seu ëltimo<br />
capÉtulo uma màdia <strong>de</strong> 79% (com picos <strong>de</strong> 81%) <strong>de</strong> share, ou seja, <strong>de</strong> porcentagem dos<br />
aparelhos ligados que assistiam a novela, e 55 pontos (com picos <strong>de</strong> 59) em SÇo Paulo, o que<br />
equivale a mais <strong>de</strong> trÖs milhâes <strong>de</strong> domicÉlios (cada ponto equivale a cerca <strong>de</strong> 56.000<br />
domicÉlios) na cida<strong>de</strong> sintonizados na trama. Isso sem contar o nëmero <strong>de</strong> acessos pela<br />
internet, on<strong>de</strong> nÇo sÑ se podia assistir aos capÉtulos como obter informaÅâes sobre os rumos<br />
do <strong>de</strong>sfecho: sÑ no dia 9 <strong>de</strong> setembro, dois dias antes do final <strong>de</strong> “Caminhos”, foram<br />
registrados 2.757.183 acessos! O ëltimo capÉtulo da trama registrou ainda um tipo curioso <strong>de</strong><br />
superaÅÇo <strong>de</strong> Éndices: o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Economia <strong>de</strong> O Globo trazia, no dia 16 <strong>de</strong> setembro, a<br />
informaÅÇo <strong>de</strong> que a audiÖncia recor<strong>de</strong> <strong>de</strong> “Caminho das índias” tinha alterado atà a curva do<br />
consumo <strong>de</strong> energia do paÉs, configurando um fenòmeno que ocorre sempre que o Brasil<br />
interrompe a rotina e para em frente da TV, como nos finais <strong>de</strong> Copa do Mundo e, em menor<br />
intensida<strong>de</strong>, nos finais <strong>de</strong> novela. Segundo o jornal, “nos oito minutos seguintes ä <strong>de</strong>spedida<br />
na Globo”, disponÉvel em: ,<br />
<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2008. Acesso em 14 jul. 2009.<br />
95 PALLOTTINI, In: “AudiÖncia das telenovelas na Globo”, disponÉvel em:<br />
,<br />
<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2008. Acesso em 14 jul. 2009.<br />
96 “ConheÅa os sucessos e fracassos das telenovelas da Globo”, 16 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2003, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 14 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009.<br />
50
<strong>de</strong> Maya e Raj”, o consumo <strong>de</strong> energia do paÉs <strong>de</strong>u um saldo <strong>de</strong> 4.200 MW: “ï como se todo<br />
o Gran<strong>de</strong> Rio se acen<strong>de</strong>sse ao mesmo tempo” 97 .<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do universo ficcional e do estilo narrativo do teledramaturgo, e a<br />
<strong>de</strong>speito das concessâes que cada autor venha a fazer aos <strong>de</strong>sejos da audiÖncia, aos interesses<br />
econòmicos da emissora e do anunciante, ou aos caprichos da socieda<strong>de</strong>, o fato à que a<br />
telenovela brasileira, em pleno sàculo XXI, ainda paralisa o paÉs com suas histÑrias.<br />
No inÉcio <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009, as tevÖs Globo, SBT e Record exibiam, juntas, sete<br />
telenovelas (uma a menos que em 2006) em diferentes horários (“MalhaÅÇo”, “ParaÉso”,<br />
“Caras e Bocas”, “Caminho das índias” 98 , “Ven<strong>de</strong>-se um vàu <strong>de</strong> noiva”, “Bela, a feia” e<br />
“Po<strong>de</strong>r paralelo”, quatro <strong>de</strong>las em horário nobre, sustentando a gra<strong>de</strong> da programaÅÇo. Para<br />
um gÖnero ameaÅado <strong>de</strong> morte por suposto esgotamento do folhetim, o nëmero <strong>de</strong> produÅâes<br />
em exibiÅÇo impressiona. NÇo apenas a quantida<strong>de</strong> impressiona, como pontuou o crÉtico <strong>de</strong><br />
cinema Ricardo Calil em 2006, “mas tambàm o fato <strong>de</strong> que algumas <strong>de</strong>las vÖm batendo<br />
recor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> audiÖncia para seus horários ou emissoras, como ‘Páginas da vida’, a [entÇo]<br />
recàm-terminada ‘Cobras & lagartos’ e ‘Vidas opostas’ (maior IBOPE para uma estràia na<br />
Record)” 99 . Alàm da quantida<strong>de</strong> e da popularida<strong>de</strong> das narrativas da teledramaturgia brasileira<br />
registradas naquele ano, Calil <strong>de</strong>stacava ainda a ambiÅÇo das produÅâes, especialmente em<br />
emissoras sem tradiÅÇo <strong>de</strong> telenovelas como a Ban<strong>de</strong>irantes e a Record. Sabe-se que o màtodo<br />
<strong>de</strong> aferiÅÇo <strong>de</strong> audiÖncia nÇo à o mesmo da àpoca <strong>de</strong> ouro das telenovelas e que hoje a<br />
competiÅÇo das mÉdias eletrònicas pela atenÅÇo do pëblico dispersou sensivelmente o outrora<br />
cativo telespectador <strong>de</strong> drama seriado, mas se registra ainda um investimento maciÅo no setor,<br />
investimento certamente calcado na gran<strong>de</strong> penetraÅÇo do produto no mercado.<br />
Como entÇo tais evidÖncias da saë<strong>de</strong> das telenovelas convivem com o diagnÑstico <strong>de</strong> que<br />
elas estariam morrendo por saturaÅÇo do mo<strong>de</strong>lo? Embora tenha um dia chegado a concordar com<br />
Pignatari em suas previsâes apocalÉpticas para o gÖnero, Ester Hamburger hoje reconhece que “ï<br />
incrÉvel que, em um mundo com tantas opÅâes, como a internet e a TV a cabo, a novela ainda<br />
ocupe espaÅo tÇo gran<strong>de</strong> na vida nacional. E nÇo há sinais <strong>de</strong> que isso irá mudar tÇo cedo” 100 .<br />
Uma das principais razâes que explicam a resistÖncia da telenovela no Brasil, segundo ela, à o<br />
fato <strong>de</strong> seu formato permitir uma a<strong>de</strong>quaÅÇo <strong>de</strong> seu conteëdo ao pëblico:<br />
97 “Mais um recor<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caminho: consumo <strong>de</strong> energia”, in “De tudo um pouco”, disponÉvel em:<br />
. Postagem <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009. Acesso em 16 set. 2009.<br />
98 A novela “Viver a vida”, <strong>de</strong> Manoel Carlos, estreou em 14 <strong>de</strong> setembro.<br />
99 CALIL, disponÉvel em: . Acesso em 16 jul. 2009.<br />
100 HAMBURGER apud CALIL, loc. cit.<br />
51
Como os folhetins <strong>de</strong> jornal do sàculo 19 da qual <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>, a novela po<strong>de</strong> se moldar<br />
<strong>de</strong> acordo com a resposta do pëblico e po<strong>de</strong> fazer uma crònica muito imediata <strong>de</strong> seu<br />
tempo. O final <strong>de</strong> ‘Cobras & Lagartos’, em que Foguinho abre uma barraquinha <strong>de</strong><br />
profiteroles e cidra, à um comentário muito preciso sobre o aumento do consumo na<br />
classe baixa. Nesse sentido, a novela à um formato proto-interativo. 101<br />
Esta sintonia entre o conteëdo abordado e o gosto do pëblico, resultante da natureza da<br />
telenovela como obra aberta, tem se revelado tanto mais apurada quanto mais sofisticados e<br />
complexos se tornam os instrumentos <strong>de</strong> aferiÅÇo da pesquisa <strong>de</strong> opiniÇo. Sendo essa narrativa<br />
construÉda ao longo da exibiÅÇo da ficÅÇo televisiva seriada, seu <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>sfecho<br />
sofrem influÖncias dos acontecimentos reais, do comportamento e da opiniÇo da audiÖncia<br />
(apurados em pesquisas permanentes e em entrevistas com grupos <strong>de</strong> discussÇo), dos valores<br />
da socieda<strong>de</strong> e atà mesmo do <strong>de</strong>sempenho dos atores. ï precisamente por esta razÇo que a<br />
telenovela muitas vezes ten<strong>de</strong> a ser tomada nÇo como um texto <strong>de</strong> autor, mas como uma<br />
“bricolagem estàtica” 102 , um conjunto hÉbrido <strong>de</strong> conexâes comerciais, sociais, morais, polÉticas<br />
e artÉsticas. Alci<strong>de</strong>s Nogueira, autor <strong>de</strong> 13 novelas da TV Globo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1984, concorda:<br />
Na televisÇo, como a novela à uma obra aberta, o texto está sujeito a interferÖncias do<br />
diretor, do ator, do cenÑgrafo, do diretor <strong>de</strong> arte, do iluminador, <strong>de</strong> todo mundo ─ e,<br />
mais ainda, ä gran<strong>de</strong> interferÖncia do pëblico. O pëblico, <strong>de</strong> certa forma, à autor <strong>de</strong><br />
novela. Ele acaba conduzindo a histÑria. Se ele nÇo está assimilando a trama, se nÇo<br />
está gostando do enredo, <strong>de</strong> um personagem, <strong>de</strong> um nëcleo, <strong>de</strong> uma situaÅÇo, vocÖ<br />
acaba embarcando na opiniÇo <strong>de</strong>le, porque a novela à um entretenimento lëdico, que<br />
envolve interativida<strong>de</strong>. 103<br />
Mesmo assim ─ e diferentemente do cinema, cuja “autoria” se concentra na figura do<br />
diretor ─, telenovela tem autor: à ele quem <strong>de</strong>lineia o perfil da obra e assume o controle sobre<br />
a narrativa (uma novela <strong>de</strong> Manoel Carlos em nada se parece com uma <strong>de</strong> Gilberto Braga,<br />
assim como as <strong>de</strong> Gloria Perez diferem radicalmente das <strong>de</strong> Benedito Ruy Barbosa). Sendo<br />
uma obra para a televisÇo, simultaneamente textual e imagàtica, a autoria do produto final<br />
teoricamente chega a ser compartilhada com o diretor, pois à a fina sintonia entre ele e quem<br />
escreve a histÑria que garante ä novela sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> em relaÅÇo ä imaginaÅÇo do criador.<br />
Segundo Manoel Carlos, autor <strong>de</strong> 17 telenovelas: “Quanto a novela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um script, ou<br />
seja, quando ela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser literatura ─ com ou sem aspas ─ e passa a ser imagem, ela ganha<br />
a autoria do diretor. Trata-se <strong>de</strong> uma co-autoria” 104 .<br />
101 HAMBURGER apud. CALIL, disponÉvel em: . Acesso em<br />
16 jul. 2009.<br />
102 SODRï, 1999, p. 157.<br />
103 MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, pp. 135-136.<br />
104 MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 102.<br />
52
Embora alguns autores cheguem a afirmar que o diretor seja um co-autor, na prática<br />
raramente ele à lembrado pelo pëblico. O fato <strong>de</strong> o autor eventualmente trabalhar com<br />
colaboradores (que fazem as escaletas 105 , escrevem alguns diálogos ou mesmo se<br />
responsabilizam por certos nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo) nÇo diminui sua assinatura autoral. Eles<br />
reconhecem a importência da parceria (Gilberto Braga, por exemplo, admite que nÇo gosta <strong>de</strong><br />
fazer escaleta e que sempre apela para os colaboradores quando tem crianÅa em cena: “Sou<br />
pàssimo para criar histÑria para crianÅa” 106 ), mas muitos assumem para si o texto final como<br />
forma <strong>de</strong> garantir uma unida<strong>de</strong> narrativa e estilÉstica ─ prática que reforÅa a tese <strong>de</strong> que<br />
telenovela à obra <strong>de</strong> autor. Atà porque, por mais que a imagem seja fundamental na construÅÇo<br />
do po<strong>de</strong>r comunicativo <strong>de</strong> uma telenovela, à o texto que dá suporte ä sua existÖncia: “A novela<br />
comeÅa a partir <strong>de</strong> um bom argumento e da maneira como vocÖ estrutura esse argumento”;<br />
“Sem um bom argumento, nÇo se faz nada”, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Miguel Falabela 107 , autor <strong>de</strong> trÖs<br />
telenovelas. Como diz Aguinaldo Silva, autor <strong>de</strong> 13 folhetins televisivos, uma das<br />
caracterÉsticas mais marcantes da telenovela à justamente a forÅa do texto: “Novela à diálogo o<br />
tempo inteiro. Há poucas cenas <strong>de</strong> aÅÇo pura” 108 . ï por isso que Manoel Carlos, mesmo<br />
trabalhando com colaboradores e reconhecendo diplomaticamente a co-autoria do diretor, à<br />
categÑrico: “Eu sou o autor, sou o responsável por tudo que está sendo dito” 109 .<br />
Tendo o eixo narrativo em suas mÇos, o autor sabe que sua trama tem <strong>de</strong> agradar ä<br />
emissora e ao pëblico e que, eventualmente, terá <strong>de</strong> fazer concessâes aos interesses externos e<br />
ä preferÖncia da audiÖncia. As alteraÅâes que se fizerem necessárias, no entanto, nÇo <strong>de</strong>vem<br />
trair a sinopse, muito embora se saiba que muitos finais <strong>de</strong> novela sÇo modificados em funÅÇo<br />
da preferÖncia do pëblico. Em 1967, por exemplo, o expediente <strong>de</strong> Janete Clair, chamada äs<br />
pressas pela entÇo supervisora GlÑria Magadan para salvar a novela “Anastácia, a mulher sem<br />
<strong>de</strong>stino”, escrita por Emiliano QueirÑz, tornou-se emblemático <strong>de</strong> quÇo drástica po<strong>de</strong> ser uma<br />
intervenÅÇo quando os Éndices <strong>de</strong> audiÖncia <strong>de</strong>spencam sem parar. Tantas eram as<br />
personagens criadas pelo autor no <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> melhorar a trama, que Janete nÇo teve outro<br />
recurso senÇo comeÅar do zero: um terremoto matou gran<strong>de</strong> parte das personagens, inclusive<br />
(por <strong>de</strong>scuido!) aquele que sabia o segredo central da histÑria, obrigando a novela a dar um<br />
salto <strong>de</strong> vinte anos na aÅÇo, numa retomada que contava apenas com quatro personagens.<br />
Mais recentemente, uma explosÇo num shopping em “Torre <strong>de</strong> Babel”, novela <strong>de</strong> SÉlvio <strong>de</strong><br />
105 Escaleta à a relaÅÇo e o enca<strong>de</strong>amento das cenas <strong>de</strong> um capÉtulo.<br />
106 BRAGA apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, p. 414.<br />
107 FALABELA apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 210.<br />
108 SILVA apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, p. 79.<br />
109 CARLOS apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 102.<br />
53
Abreu, exibida em 1999, foi um recurso dramático que, embora previsto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o roteiro<br />
original, revelou-se oportuno quando o pëblico, a imprensa e a Igreja comeÅaram a se<br />
manifestar contra a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o autor exibir cenas <strong>de</strong> sexo entre duas personagens<br />
femininas. Embora a trama já apresentasse um casal <strong>de</strong> làsbicas (segundo o autor, muito bem<br />
aceito pelos espectadores), a veiculaÅÇo na imprensa <strong>de</strong> que uma <strong>de</strong>las morreria (o que já<br />
estava previsto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sinopse), <strong>de</strong> que a outra teria sua amiza<strong>de</strong> com uma terceira mulher<br />
i<strong>de</strong>ntificada como um caso <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> que haveria cenas <strong>de</strong> sexo entre elas (informaÅÇo<br />
inverÉdica, <strong>de</strong> acordo com o autor) e <strong>de</strong> que estas cenas envolveriam as personagens das<br />
atrizes Silvia Pfeifer e GlÑria Menezes (o pëblico nÇo tolerou o boato <strong>de</strong> que a consagrada<br />
atriz namoraria outra mulher, diz o autor), nÇo <strong>de</strong>ixou a Silvio <strong>de</strong> Abreu outra saÉda senÇo<br />
fazer com que o primeiro casal <strong>de</strong> homossexuais morresse na explosÇo. Se a manifestaÅÇo da<br />
audiÖncia forÅou a alteraÅÇo na trama, neste caso, segundo ele, ainda foi possÉvel preservar a<br />
mensagem original <strong>de</strong> mostrar o preconceito contra o homossexualismo.<br />
A morte <strong>de</strong> Rafaela e Leila, as duas unidas, foi a melhor soluÅÇo. Ao sacrificá-las<br />
juntas, clamando contra o preconceito, como foi feito na cena, nÇo traÉ minha i<strong>de</strong>ia,<br />
respeitei a escolha sexual <strong>de</strong>las e fiz com que as personagens virassem dois sÉmbolos<br />
da intolerência contra o homossexualismo feminino na televisÇo. 110<br />
Gloria Perez 111 <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a importência <strong>de</strong> se “ler” a audiÖncia, mas adverte que o autor,<br />
no entanto, nÇo po<strong>de</strong> se ren<strong>de</strong>r äs soluÅâes oferecidas pelo pëblico:<br />
Quando vocÖ escreve uma cena, está, ao mesmo tempo, construindo uma emoÅÇo em<br />
quem assiste. Se nÇo emocionou, eu mudo a forma <strong>de</strong> contar. NÇo adianta mudar a<br />
histÑria, porque, se ela continuar sendo contada <strong>de</strong> um jeito pouco atraente, nÇo vai<br />
interessar do mesmo jeito. EntÇo, nÇo à que o pëblico <strong>de</strong>termine o caminhar da<br />
histÑria, nem ele quer isso. O indivÉduo à criativo; as plateias, nÇo. As plateias pensam<br />
nas soluÅâes que já viram, e, quando a trama segue o caminho que elas querem, acaba<br />
sendo tachada <strong>de</strong> previsÉvel e chata. O pëblico gosta <strong>de</strong> ser surpreendido, faz parte do<br />
jogo, e cabe ao autor surpreendÖ-lo.<br />
Na obra aberta, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auscultar permanentemente os humores do pëblico e<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar com precisÇo capilar aquilo que o <strong>de</strong>sagrada permite ao autor e ä audiÖncia uma<br />
experiÖncia <strong>de</strong> interativida<strong>de</strong> que inexiste em outras obras. De um lado, o teledramaturgo<br />
percebe os ajustes que se fazem necessários para o sucesso da trama; <strong>de</strong> outro, a plateia<br />
percebe seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> participaÅÇo e fica gratificada por exercer seu direito <strong>de</strong> opinar e<br />
interferir <strong>de</strong>mocraticamente. Como diz Artur da Távola, “Se por um lado limita o produto<br />
artÉstico a sua eficácia mercadolÑgica, por outro <strong>de</strong>mocratiza a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicaÅÇo,<br />
110 ABREU apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 315.<br />
111 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, pp. 480-481.<br />
54
porque sai do amanho exclusivo do artista, ausculta o universo conceitual do pëblico e lhe<br />
obe<strong>de</strong>ce” 112 . Seja silenciosamente atravàs dos Éndices <strong>de</strong> audiÖncia, seja em entrevistas nos<br />
grupos <strong>de</strong> discussÇo, seja atravàs <strong>de</strong> carta dirigida ä emissora ou ao autor, o espectador<br />
acredita que será ouvido. Em carta dirigida ä autora da novela “Amàrica”, Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s<br />
Oliveira, uma assÉdua espectadora, escreve: “Eu te imploro, Gloria Perez, <strong>de</strong>ixa este casal (Sol<br />
e Ed) terminar junto no final. Eu peÅo atà que <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>re uma carta que man<strong>de</strong>i mais no<br />
princÉpio da novela [...] pedindo para a Sol ficar com o TiÇo” 113 .<br />
Como a telenovela à escrita em fatias, sua unida<strong>de</strong> à o capÉtulo e nÇo a obra ─ esta,<br />
como diz Távola, quando se completa, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir, <strong>de</strong>saparece! 114 SÑ se tem olhos para a<br />
novela seguinte. Na mÉdia, nem sequer o tÇo esperado ëltimo capÉtulo à comentado <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
sua exibiÅÇo. No instantêneo e na fugacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada capÉtulo, o pëblico vai acompanhando a<br />
trama com a velocida<strong>de</strong> lenta da realida<strong>de</strong> que se pâe em cena a cada dia. Ele sabe que, entre<br />
uma fatia e outra, o <strong>de</strong>stino reserva surpresas äs personagens e à aÉ que se dispâe a colaborar<br />
com o autor. De sua parte, o dramaturgo, ao <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar inëmeras subtramas, <strong>de</strong>ixa espaÅo<br />
para mëltiplas e inesperadas reviravoltas. Como diz Falabela, o autor <strong>de</strong> novelas à um<br />
“blefador por natureza” 115 , alguàm que tem <strong>de</strong> ter sempre um ás ─ ou vários ases ─ na manga.<br />
Embora os teledramaturgos tenham controle sobre a histÑria que narram, nem sempre o<br />
mesmo ocorre em relaÅÇo aos <strong>de</strong>sdobramentos diários. Gloria Perez, por exemplo, ao explicar<br />
a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever uma novela a quatro mÇos (no caso, “Partido Alto”, com Agnaldo<br />
Silva) revela a relaÅÇo <strong>de</strong> cada autor com o todo e com as partes da telenovela: “Agnaldo<br />
precisava saber o que ia acontecer com os personagens, ter o mapa nas mÇos, e eu nÇo sei<br />
trabalhar assim. NÇo faÅo escaleta. Gosto quando <strong>de</strong>sligo o computador sem ter i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
como, no dia seguinte, vou solucionar o gancho que <strong>de</strong>ixei” 116 . “Diante do papel em branco,<br />
viajo. Vou sentindo a pulsaÅÇo, o ritmo das cenas” 117 , completa. Tal abertura para as<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criaÅÇo resgata o espÉrito do folhetim: a telenovela, embora seja escrita com<br />
a perspectiva <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sfecho, o longo tempo <strong>de</strong> duraÅÇo da trama permite que seja conduzida<br />
como uma “obra em progresso”, diferentemente das minissàries, por exemplo, cuja produÅÇo<br />
se dá a partir <strong>de</strong> um texto acabado. Como diz Gloria Perez,<br />
A novela à folhetim, uma histÑria pensada para ser contada em extensÇo, nÇo em<br />
profundida<strong>de</strong>. VocÖ precisa bolar uma trama que tenha muitas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
112<br />
TôVOLA, 1996, p. 8.<br />
113<br />
OLIVEIRA, in: Revista da TV, O Globo, 25 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2005, p. 22.<br />
114<br />
TôVOLA, 1996, p. 22.<br />
115<br />
FALABELA apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 210.<br />
116<br />
PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, p. 437.<br />
117 Ibi<strong>de</strong>m, p. 480.<br />
55
<strong>de</strong>sdobramento. ï uma obra aberta, nÇo se po<strong>de</strong> trabalhar seu conjunto. VocÖ nÇo a<br />
visualiza inteira, a nÇo ser <strong>de</strong>pois que ela saiu do ar. NÇo há tempo <strong>de</strong> polimento como<br />
na minissàrie. A arte do novelista está em pren<strong>de</strong>r a atenÅÇo do espectador <strong>de</strong> modo<br />
que ele volte no dia seguinte para assistir ao <strong>de</strong>sdobramento da histÑria. Sendo assim,<br />
cotidiana, a novela compete com muitas coisas ─ nÇo sÑ com o que as outras<br />
emissoras apresentam, mas com a prÑpria vida. ï uma visita que chega, o telefone que<br />
toca, alguàm que bate ä porta ou puxa uma conversa. VocÖ briga com isso o tempo<br />
inteiro. EntÇo, tem que lanÅar mÇo <strong>de</strong> apelos sensacionalistas para evitar que o pëblico<br />
se distraia e <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> prestar atenÅÇo no que vocÖ está contando. ï mais ou menos<br />
como contar uma histÑria comprida numa sala on<strong>de</strong> há pessoas <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s ─<br />
crianÅas, adolescentes, adultos, velhos. VocÖ tem que saber misturar temperos,<br />
sabores e cores que atraiam e prendam a atenÅÇo <strong>de</strong> todas aquelas pessoas <strong>de</strong><br />
interesses tÇo diversos. Já a minissàrie tem um pëblico diferente, com outra postura<br />
diante do programa. Nela, nÇo po<strong>de</strong>mos sacrificar a coerÖncia em prol do sensacional.<br />
O que na minissàrie seria um erro na novela à um acerto. 118<br />
Segundo Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral, escritora que tem seis novelas em seu currÉculo, mas<br />
que manifesta sua preferÖncia pelas obras em que há mais “tempo <strong>de</strong> polimento”, como as<br />
minissàries, os textos para o teatro e os romances, a diferenÅa entre a minissàrie e a novela “à<br />
mais ou menos a diferenÅa entre o artesanato e o produto industrializado” 119 . Isto porque a<br />
primeira ten<strong>de</strong> a ser mais bem cuidada, permitindo uma pesquisa mais aprofundada e um<br />
domÉnio sobre a completu<strong>de</strong> da obra; já a segunda à produzida em ritmo industrial: “os<br />
autores das novelas das oito escrevem 40 laudas por dia durante seis dias na semana” 120 .<br />
O volume da produÅÇo diária e a premÖncia com que os capÉtulos sÇo concebidos, se<br />
revelam o esquema industrial das telenovelas, mostram sobretudo a prepon<strong>de</strong>rência das fatias<br />
sobre a completu<strong>de</strong> da obra. Se a cada dia a sequÖncia <strong>de</strong> cenas <strong>de</strong>ve pren<strong>de</strong>r a atenÅÇo da<br />
audiÖncia para que ela nÇo mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> canal, os ganchos (pendÖncias) <strong>de</strong>ixados pelo autor ao longo<br />
do capÉtulo, o gancho da cena final, principalmente, tÖm a incumbÖncia <strong>de</strong> fisgar a curiosida<strong>de</strong> do<br />
espectador, fazendo-o <strong>de</strong>sejar voltar no dia seguinte. Depen<strong>de</strong>ndo do dia da semana em que o<br />
capÉtulo será exibido, a aÅÇo anda mais rapida ou lentamente: à preciso nÇo “queimar” revelaÅâes<br />
em dia <strong>de</strong> audiÖncia sabidamente mais baixa, como aos sábados, por exemplo. O tempo da<br />
narrativa, no entanto, à marcado nÇo somente pelo texto do autor como tambàm pelos recursos<br />
audiovisuais e cÖnicos: äs aÅâes e diálogos das personagens, juntam-se as imagens que,<br />
sublinhadas pela trilha sonora, indicam a ambiÖncia, a passagem <strong>de</strong> tempo, a mudanÅa <strong>de</strong> locaÅÇo,<br />
o estado psicolÑgico <strong>de</strong> quem está em cena, e juntam-se ainda as cenas em flashback evocadas<br />
como lembranÅas saudosas e projeÅâes da imaginaÅÇo das personagens, trechos das apresentaÅâes<br />
<strong>de</strong> mësica, teatro e cinema mencionadas na trama, e cenas complementares que nada acrescentam<br />
ä trama senÇo pelo fato <strong>de</strong> conferir-lhes colorido adicional.<br />
118 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, pp. 460-461.<br />
119 AMARAL apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 2, p. 163.<br />
120 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit..<br />
56
A cada capÉtulo e ao longo da divisÇo da trama em capÉtulos, mais importante do que a<br />
histÑria que se tem a contar, à como se vai contar essa histÑria: à a narrativida<strong>de</strong> que constitui a<br />
forÅa da telenovela. Alàm da fina sintonia que a obra aberta mantàm com seu pëblico, o que faz<br />
o gÖnero resistir aos tempos, äs novas mÉdias e linguagens à a forma <strong>de</strong> contar a histÑria,<br />
construir as personagens, conduzir seus <strong>de</strong>stinos, entrelaÅar as tramas, dominar a curiosida<strong>de</strong> e<br />
as emoÅâes do pëblico e seduzi-lo com fatias <strong>de</strong> conflitos e intrigas em permanente pendÖncia.<br />
3.6 A NARRATIVIDADE<br />
Num paÉs como o Brasil, em que a palavra escrita encontra tÇo poucos leitores entre a<br />
massa <strong>de</strong> analfabetos, a telenovela se inscreve como a maior veiculadora <strong>de</strong> narrativas.<br />
Particularmente neste mundo <strong>de</strong> urgÖncias, <strong>de</strong> exposiÅÇo crua <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s ─ reais, virtuais,<br />
mediadas ou presenciais ─, o telespectador, ao <strong>de</strong>ixar-se levar pelos meandros <strong>de</strong> uma<br />
histÑria, pelas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> suas versâes, pelas nuances <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e pela magia do<br />
<strong>de</strong>svendamento dos acontecimentos futuros, parece querer resgatar em si uma condiÅÇo<br />
humana ancestral <strong>de</strong> apreensÇo cognitiva do mundo pelos mitos. (Atà mesmo o jornalismo e o<br />
filme documentário tÖm recorrido ä narrativida<strong>de</strong>: tudo tem <strong>de</strong> contar uma histÑria!) Na<br />
televisÇo, o folhetim alcanÅa ainda mais potÖncia com a dimensÇo imagàtica da narrativa e<br />
com o recurso <strong>de</strong> sublinhar a dramaticida<strong>de</strong> atravàs da intervenÅÇo da trilha sonora e dos<br />
efeitos <strong>de</strong> ediÅÇo. Mas, se por um lado a dramaticida<strong>de</strong> e o mergulho na imaginaÅÇo<br />
proporcionam o resgate do mito junto a um pëblico saturado pela hiper-realida<strong>de</strong> pÑs-<br />
mo<strong>de</strong>rna, por outro, o cruzamento da narrativa ficcional da telenovela com a realida<strong>de</strong><br />
jornalÉstica tem sido festejado como um tempero bem ao gosto da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia: o<br />
hibridismo estilÉstico que justapâe dialeticamente os opostos. Cada vez mais o que tem<br />
<strong>de</strong>stacado a telenovela brasileira no mercado internacional à o fato <strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> factual,<br />
matària-prima dos jornais, se interpâe no universo ficcional, numa interpenetraÅÇo <strong>de</strong> gÖneros<br />
que fundou a categoria “novela-verda<strong>de</strong>” 121 .<br />
Enquanto obra narrativa, a telenovela compartilha com o texto jornalÉstico e com o<br />
folhetim os mesmos elementos estruturais e estilÉsticos: parte dos questionamentos prÑprios<br />
do lead ─ quem?, que?, quando?, on<strong>de</strong>?, por que?. Tal motivaÅÇo, no entanto, quando<br />
submetida äs condicionantes do drama enquanto gÖnero literário, produz respostas cuja<br />
121 Samira Youssef Campe<strong>de</strong>lli classifica as telenovelas em “folhetim melodramático”, “folhetim exÑtico”,<br />
“telenovela alternativa”, que cria o clima psicolÑgico, “telenovela chanchada” e “novela-verda<strong>de</strong>”. In: CAMPE-<br />
DELLI, 1985.<br />
57
teatralida<strong>de</strong> mantàm a telenovela e o folhetim distantes do texto jornalÉstico (embora este<br />
tenha cada vez mais tentado explorar os recursos do drama para fixar a atenÅÇo do pëblico nos<br />
fatos que anuncia). Na telenovela como no folhetim impresso, um narrador onisciente,<br />
enquanto observador externo, narra na terceira pessoa uma sàrie <strong>de</strong> acontecimentos (enredo,<br />
<strong>de</strong>sdobrado em subtramas, com comeÅo, meio e fim, num <strong>de</strong>senrolar progressivo) que se<br />
apresentam atravàs da aÅÇo <strong>de</strong> personagens fictÉcios num tempo cronolÑgico (presente, mas<br />
repleto <strong>de</strong> flashbacks) e num espaÅo situado no entre-lugar da ficÅÇo (um mundo imaginário,<br />
criado, apesar das referÖncias ä realida<strong>de</strong>) que, mais que pano <strong>de</strong> fundo, se pâe a serviÅo da<br />
unida<strong>de</strong> estàtica, <strong>de</strong> uma visÇo artÉstica da vida. Na tensÇo entre o real e o imaginário, a<br />
telenovela se faz obra literária na medida em que “<strong>de</strong>srealiza o real concreto” e cria<br />
mimeticamente a realida<strong>de</strong>.<br />
Narrativa concebida para ser encenada e exibida segundo os cÑdigos televisivos, a<br />
telenovela, diferentemente do filme ou do romance, nÇo conta com a amplitu<strong>de</strong> da tela (que<br />
amplifica a forÅa da imagem em <strong>de</strong>trimento do texto e que favorece as cenas <strong>de</strong> aÅÇo) nem<br />
com o po<strong>de</strong>r evocativo e a perenida<strong>de</strong> das palavras impressas em papel (que estimula a<br />
imaginaÅÇo do leitor e permite a releitura, respectivamente). Nela, texto e imagem caminham<br />
juntos, o segundo dando vida e sublinhando o primeiro. O enquadramento mais fechado,<br />
exigÖncia da tela pequena, favorece a sequÖncia <strong>de</strong> diálogos e o foco nos rostos que falam. A<br />
velocida<strong>de</strong> dos cortes, prÑpria da mensagem televisiva; a alternência entre nëcleos <strong>de</strong> aÅÇo,<br />
requisito da narrativa fatiada; e a intermitÖncia entre cenas dramáticas e còmicas, recurso para<br />
captar a atenÅÇo dispersa do pëblico <strong>de</strong> televisÇo ─ tais caracterÉsticas, se por um lado agitam<br />
em <strong>de</strong>masia com o objetivo <strong>de</strong> impedir a mudanÅa <strong>de</strong> canal, por outro impâem a urgÖncia e a<br />
fugacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma narrativa que nÇo po<strong>de</strong> ser retomada. DaÉ seu caráter reiterativo: texto,<br />
imagem e trilha sonora reiteram a todo tempo o que já foi dito, reforÅam uma i<strong>de</strong>ia, um traÅo<br />
da personalida<strong>de</strong> da personagem, uma passagem <strong>de</strong> seu passado, um laÅo <strong>de</strong> parentesco, um<br />
fato importante. ï preciso repetir sempre ao espectador que nÇo ouviu, que chegou atrasado,<br />
que já esqueceu, que à distraÉdo, que pegou a novela pelo meio. Embora hoje seja possÉvel<br />
pela Internet assistir novamente <strong>de</strong>terminadas cenas ou recuperar o capÉtulo perdido, para a<br />
gran<strong>de</strong> maioria da populaÅÇo, a exibiÅÇo <strong>de</strong> uma fatia da novela à ënica e irrecuperável, sem<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> releitura.<br />
Alàm da reiteraÅÇo, outros recursos concorrem para facilitar a captaÅÇo e o<br />
entendimento da histÑria. A linguagem simples e coloquial, as frases curtas e o uso <strong>de</strong> gÉrias<br />
tornam a trama palatável e enfática: segundo Artur da Távola, “ou o personagem ‘fala’ como<br />
58
o espectador ou este o rejeitará, e ä obra” 122 . A opÅÇo por temas codificados, personagens<br />
tipificados e narrativas romênticas impregnadas <strong>de</strong> realismo apela <strong>de</strong> forma simbÑlica,<br />
arquetÉpica, para os conflitos fundamentais do ser, para os estereÑtipos e para a<br />
emocionalida<strong>de</strong>, instrumentos cognitivos do homem. Atemporal e apolÉtica, a essÖncia da<br />
telenovela está ao alcance <strong>de</strong> qualquer um.<br />
Embora elaborada para funcionar como uma comunicaÅÇo <strong>de</strong> amplo espectro,<br />
atingindo diferentes segmentos da populaÅÇo, a narrativa da telenovela brasileira nÇo<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha <strong>de</strong> sua dimensÇo popular. Sabe que, para alàm do espectador analfabeto ou letrado,<br />
existe um pëblico expert em telenovela: a longa relaÅÇo da audiÖncia com a linguagem e o<br />
universo do folhetim televisivo exige da narrativa uma intrincada combinaÅÇo <strong>de</strong><br />
superficialida<strong>de</strong> e complexida<strong>de</strong>. A rejeiÅÇo do pëblico a personagens rasos, como vilâes e<br />
mocinhos construÉdos segundo as categorias mau-mau e bom-bom, sem nuances <strong>de</strong> caráter, à<br />
prova cabal <strong>de</strong> que nÇo há mais lugar para simplificaÅâes dramáticas. Se, por um lado, fatos e<br />
personagens <strong>de</strong>vem ser verossÉmeis, guardar semelhanÅas com a realida<strong>de</strong>, por outro, a trama<br />
nÇo po<strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r em realismos: enquanto entretenimento, a telenovela, revelando sua<br />
complexa alquimia entre ficÅÇo e realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve dar lugar ä fantasia e ao sensacional. Texto,<br />
direÅÇo <strong>de</strong> imagem, direÅÇo <strong>de</strong> arte, cenografia, sonoplastia e interpretaÅÇo <strong>de</strong>vem estar em<br />
fina sintonia <strong>de</strong> modo a materializar o que foi concebido pelo autor e permitir que a narrativa<br />
emocione a audiÖncia. A narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da combinaÅÇo <strong>de</strong> fatores que ultrapassam o<br />
roteiro: a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do ator ao modo <strong>de</strong> agir e falar da personagem, a plasticida<strong>de</strong> das<br />
imagens, a precisÇo dos cortes, a qualida<strong>de</strong> tàcnica <strong>de</strong> som e imagem, a a<strong>de</strong>quaÅÇo da trilha<br />
sonora, a concepÅÇo dos cenários e dos figurinos... Mais que verossÉmil, a narrativa tem <strong>de</strong> ser<br />
fiel ä verda<strong>de</strong> da cena.<br />
Por mais que o universo televisivo imponha novas dimensâes e <strong>de</strong>safios ä narrativa <strong>de</strong><br />
telenovela, a qualida<strong>de</strong> do folhetim eletrònico resi<strong>de</strong> precisamente no respeito ä sua matriz<br />
folhetinesca, no equilÉbrio dinêmico entre a verossimilhanÅa e o rocambolesco, o romêntico e<br />
o “<strong>de</strong>sgraÅa pouca à bobagem”, a crònica social e o “happy end”.<br />
3.7 UMA NARRATIVA POPULAR<br />
Nesta rápida viagem pelos pontos que marcaram a dramaturgia seriada <strong>de</strong> televisÇo no<br />
Brasil, nota-se que a a<strong>de</strong>sÇo maciÅa da audiÖncia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inÉcio (ou seja, a partir da<br />
122 TôVOLA, 1996, p. 18.<br />
59
popularizaÅÇo do aparelho televisor), a corrida <strong>de</strong> anunciantes em atrelar o nome da empresa<br />
ao programa <strong>de</strong> sucesso, e o <strong>de</strong>senvolvimento tecnolÑgico (aparecimento do vi<strong>de</strong>otape,<br />
portabilida<strong>de</strong> do equipamento e agilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong> ediÅÇo e transmissÇo <strong>de</strong> sinal <strong>de</strong> TV)<br />
impulsionaram a criaÅÇo <strong>de</strong> estàtica singular para a telenovela, a experimentaÅÇo <strong>de</strong> uma<br />
temática mais ousada e a ruptura com mo<strong>de</strong>los tradicionais norte-americanos e<br />
latinoamericanos.<br />
Embora os encontros e <strong>de</strong>sencontros amorosos, a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> secreta e a<br />
mobilida<strong>de</strong> social sejam temas recorrentes nas telenovelas brasileiras, a partir da dàcada <strong>de</strong><br />
1970, a crÉtica social comeÅou a ganhar espaÅo, com a introduÅÇo <strong>de</strong> temas polÖmicos como<br />
exploraÅÇo imobiliária, corrupÅÇo, coronelismo, drogas, preconceito racial, <strong>de</strong>semprego,<br />
barriga <strong>de</strong> aluguel e clonagem humana, libertando o folhetim televisivo do estilo dramalhÇo<br />
mexicano, cubano e argentino que serviu <strong>de</strong> inspiraÅÇo para as tramas brasileiras atà meta<strong>de</strong><br />
dos anos 1960. Mais que mero entretenimento, as telenovelas passaram a encerrar<br />
contun<strong>de</strong>nte crÉtica social e <strong>de</strong> costumes, apresentando i<strong>de</strong>ias prÑprias do Brasil mo<strong>de</strong>rno e<br />
industrial (oposiÅÇo <strong>de</strong> classe, <strong>de</strong> gÖnero e <strong>de</strong> meio ─ rural e urbano) e abordando questâes <strong>de</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong> social (como inclusÇo social, respeito aos idosos e cidadania).<br />
Atravàs do entrelaÅamento dos <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> personagens fictÉcios, pinceladas <strong>de</strong><br />
realida<strong>de</strong> ganhavam corpo na referÖncia a figuras pëblicas e a fatos cotidianos estampados nos<br />
jornais da vida real, fazendo da telenovela uma po<strong>de</strong>rosa crònica da atualida<strong>de</strong>. Alàm disso, a<br />
exploraÅÇo <strong>de</strong> valores caros ao <strong>de</strong>senvolvimento brasileiro e ä mo<strong>de</strong>rnizaÅÇo do paÉs (durante<br />
os anos que cobriram boa parte do perÉodo <strong>de</strong> ditadura militar no Brasil) e o investimento em<br />
tramas que evocassem as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia e liberda<strong>de</strong> (durante o perÉodo seguinte)<br />
permitiram a utilizaÅÇo da telenovela como forte instrumento <strong>de</strong> educaÅÇo cÉvica e moral.<br />
Como bem traduz Gloria Perez, “Se vocÖ faz um paÉs inteiro discutir com quem vai ficar a<br />
mocinha, tambàm po<strong>de</strong> fazer todo mundo discutir algo que mu<strong>de</strong> a vida das pessoas” 123 .<br />
Os caminhos percorridos pela telenovela brasileira atà aqui ─ seja em sua fase<br />
embrionária, quando os televisores eram raros artigos <strong>de</strong> luxo e a imagem era novida<strong>de</strong>, seja<br />
na atual fase digital, quando as narrativas po<strong>de</strong>m ser acompanhadas pelas telas reduzidas <strong>de</strong><br />
um aparelho celular e disputam atenÅÇo com todo tipo <strong>de</strong> mÉdia ─ comprovam a forÅa <strong>de</strong> sua<br />
narrativida<strong>de</strong> e sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encantar geraÅâes atravàs dos tempos. As inëmeras<br />
produÅâes que foram ao ar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> “Sua Vida me Pertence” reproduzem o percurso cumprido<br />
123 PEREZ, 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009, Canal Extra. DisponÉvel em:<br />
.<br />
Acesso em 25 jul. 2009.<br />
60
por sua matriz literária: como o folhetim, amargam a crÉtica por sua narrativa popular (como<br />
se o popular nÇo pu<strong>de</strong>sse ter qualida<strong>de</strong>!), cativam nomes importantes da literatura e da<br />
dramaturgia nacional, provocam a curiosida<strong>de</strong> do pëblico com pendÖncias diárias em suas<br />
tramas, mostram-se sintonizadas com o gosto da audiÖncia e com os temas em voga e, acima<br />
<strong>de</strong> tudo, oferecem um mergulho envolvente no mundo da ficÅÇo. Conflitos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />
amores impossÉveis, triêngulos amorosos e mobilida<strong>de</strong> social; ciëme, traiÅÇo, intriga;<br />
corrupÅÇo, po<strong>de</strong>r, honestida<strong>de</strong>, ingenuida<strong>de</strong>; personagens comuns, “gente como a gente”,<br />
burgueses, operários, milionários, herÑis e anti-herÑis, a gran<strong>de</strong> vÉtima, o “bandido sedutor”, a<br />
gran<strong>de</strong> mÇe, o homem honrado, a mulher lutadora, o sonhador, o <strong>de</strong>svalido; <strong>de</strong>stinos<br />
entrecruzados, fatalida<strong>de</strong>s, casualida<strong>de</strong>s; <strong>de</strong>sencontros, mal entendidos, reviravoltas;<br />
suspense, humor, drama, tragàdia: com uma pitada <strong>de</strong> realismo, gran<strong>de</strong>s doses <strong>de</strong><br />
verossimilhanÅa e o toque mágico da fantasia, eis o universo narrativo da telenovela brasileira<br />
no que ela tem <strong>de</strong> melhor ─ sua natureza folhetinesca!<br />
61
4 A NARRATIVIDADE COMO TECNOLOGIA COGNITIVA DO REAL<br />
Embora o vÉnculo narrativo da telenovela remeta äs origens impressas do folhetim e<br />
do romance ─ matrizes literárias cujo po<strong>de</strong>r estava na aventura da imaginaÅÇo proporcionada<br />
pela palavra escrita ─, a forÅa do drama seriado televisivo se funda na sintonia do encontro da<br />
comunicaÅÇo textual com a imagàtica. O texto, que nÇo se sustenta sozinho enquanto obra,<br />
enquanto peÅa literária, à concebido para ser transfigurado em imagem sonora: ele inspira e dá<br />
corpo ä imagem, se materializa em diálogos dramatizados, cenários, figurinos,<br />
enquadramentos, movimentos <strong>de</strong> cêmera e trilha musical. Texto e imagem: à sÑ na fusÇo<br />
<strong>de</strong>stas duas narrativas que a telenovela se dá a conhecer. Observar esta dupla narrativida<strong>de</strong><br />
requer treinar o olhar para encontrar o horizonte on<strong>de</strong> o domÉnio da literatura à invadido pela<br />
narrativa visional, oferecendo uma representaÅÇo mëltipla da realida<strong>de</strong>. Se na telenovela a<br />
alma da narrativa à textual e sua face à imagàtica ─ o que exige cumplicida<strong>de</strong> entre autor e<br />
diretor, subordinaÅÇo perfeita da estàtica visual ao universo imaginário do texto ─, que<br />
recursos teria a narrativa visional para apreen<strong>de</strong>r o real quando a imagem comanda a<br />
narrativida<strong>de</strong> (relegando a textualida<strong>de</strong> ä condiÅÇo <strong>de</strong> quase legenda) e para criar o ficcional<br />
quando a imagem capta o factual? A investigaÅÇo do po<strong>de</strong>r imagàtico da narrativida<strong>de</strong><br />
visional oferece um rico caminho para o estudo da telenovela.<br />
A elevaÅÇo da imagem ä condiÅÇo <strong>de</strong> dominante da cultura pÑs-mo<strong>de</strong>rna fez da<br />
narrativida<strong>de</strong> audiovisual a chave para a cogniÅÇo do real. Tendo como sua matriz cultural o<br />
entretenimento, a imagem ─ quer em sua apreensÇo fiel do real ou em versÇo estetizada <strong>de</strong>le<br />
─ parece ter o dom <strong>de</strong> converter tudo em espetáculo <strong>de</strong> fácil digestÇo. Assim à que, por seu<br />
po<strong>de</strong>r contagiante <strong>de</strong> enredar os homens em histÑrias, a dramatizaÅÇo do real prÑpria da<br />
narrativa audiovisual tem impregnado <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong>s imaginárias universos que sempre<br />
construÉram sua existÖncia sobre os pilares da objetivida<strong>de</strong> e da isenÅÇo. Tanto o jornalismo<br />
como o filme-documentário vÖm servindo, na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia, narrativas cada vez mais<br />
romanescas, prÑximas da fábula e do mito (do chamado interesse humano, enfim) ─<br />
narrativas que se apoiam em recursos literários como a teatralida<strong>de</strong> da linguagem, o uso <strong>de</strong><br />
diálogos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriÅÇo da cena, e a troca do “empenho da verda<strong>de</strong> pelo da<br />
verossimilhanÅa” 124 . No jornalismo, sob a legenda do New Journalism, fizeram escola o fait<br />
divers e os features, <strong>de</strong>fendidos bravamente por Tom Wolfe e Gay Talese. No filme-<br />
documentário, ganharam <strong>de</strong>staque produÅâes que questionam a isenÅÇo do olhar e provam que<br />
124 SODRï, 1996, p. 148.<br />
62
todo documento parte <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista, oferece uma versÇo da realida<strong>de</strong> 125 , como os<br />
filmes <strong>de</strong> Michael Moore e a versÇo engajada <strong>de</strong> Zana Briski sobre os “Nascidos em bordàis”,<br />
narrativa documentária subjetiva, carregada <strong>de</strong> impressâes e emoÅâes da narradora.<br />
Assim como na ficÅÇo, na narrativa da soft news (notÉcia <strong>de</strong> interesse humano, em<br />
contraponto com a hard news, estritamente factual) e do documentário subjetivo, o mundo<br />
vivido tambàm à construÉdo. NÇo se traduz na simples sequÖncia <strong>de</strong> acontecimentos, mas se<br />
revela pela narrativida<strong>de</strong>, pela expressÇo do discurso resultante <strong>de</strong> uma escolha, <strong>de</strong> uma<br />
construÅÇo. A expressÇo <strong>de</strong> tal construÅÇo se assume como voz particular (autoral, em certa<br />
medida), afirmaÅÇo subjetiva sobre a realida<strong>de</strong>; conta uma histÑria cujos elementos (trama,<br />
personagens e estrutura narrativa) cada vez mais se organizam <strong>de</strong> modo a atingir o pëblico<br />
usando os recursos literários que cativam a emoÅÇo. A prática <strong>de</strong> construir o mundo vivido<br />
parece concordar com Jacques Ranciöre: “o real precisa ser ficcionado para ser pensado” 126 .<br />
Para o filÑsofo francÖs, “Escrever a histÑria e escrever histÑrias pertencem a um mesmo<br />
regime <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>” 127 assim como “o testemunho e a ficÅÇo pertencem a um mesmo regime<br />
<strong>de</strong> sentido” 128 . Assim, por exemplo, o cinema-documentário, que se <strong>de</strong>dica ao “real”, à capaz<br />
<strong>de</strong> uma “invenÅÇo ficcional mais forte que o cinema <strong>de</strong> ‘ficÅÇo’”: isto porque, segundo<br />
Ranciöre, o cinema “eleva a sua maior potÖncia o duplo expediente da impressÇo muda que<br />
fala e da montagem que calcula as potÖncias <strong>de</strong> significência e os valores <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>” 129 .<br />
Talvez pela saturaÅÇo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> exposta em sua crueza em imagens captadas<br />
por todo tipo <strong>de</strong> cêmera domàstica e em reality shows, jornalistas e documentaristas estejam<br />
tentando resgatar o humano da dimensÇo pasteurizada das massas. Talvez <strong>de</strong>sejem que suas<br />
histÑrias assim estetizadas, narradas sob o signo da versÇo subjetiva da verda<strong>de</strong>, dos vestÉgios<br />
e resÉduos da verda<strong>de</strong>, possam tocar o real <strong>de</strong> forma mais significativa e mais reveladora.<br />
A retÑrica do jornalismo factual e o registro impassÉvel <strong>de</strong> imagens que cruamente<br />
expâem a realida<strong>de</strong> nÇo mais dÇo conta <strong>de</strong> inspirar a compaixÇo, a indignaÅÇo, a revolta e o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanÅa. Mero espetáculo embrulhado para presente pelos meios <strong>de</strong> comunicaÅÇo,<br />
a realida<strong>de</strong> já nÇo se dá a ver diante <strong>de</strong> olhos tÇo acostumados ä estàtica formal da dor e da<br />
125 No Festival Internacional <strong>de</strong> Documentários “ï Tudo Verda<strong>de</strong>”, uma das tendÖncias que vem se firmando à a<br />
produÅÇo <strong>de</strong> documentários subjetivos, on<strong>de</strong>, como diz Consuelo Lins (co-autora do livro Filmar o real, sobre o<br />
documentário brasileiro contemporâneo), “o motivo da realizaÅÇo do documentário <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a alterida<strong>de</strong><br />
clássica para se relacionar a aspectos da experiÖncia pessoal e da subjetivida<strong>de</strong> dos prÑprios realizadores” (LINS<br />
apud. GONTIJO, 2008, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 30<br />
jul. 2009.<br />
126 RANCI†RE, 2005, p. 58.<br />
127 RANCI†RE, loc. cit.<br />
128 Ibi<strong>de</strong>m, p. 57.<br />
129 RANCI†RE, loc. cit.<br />
63
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. A angëstia e a perplexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outrora, elementos geradores da coragem <strong>de</strong><br />
transformaÅÇo e do experimentalismo, foram substituÉdas pela indiferenÅa e pela acomodaÅÇo,<br />
frutos <strong>de</strong> uma solitária consciÖncia <strong>de</strong> que nÇo se po<strong>de</strong> alterar o mundo.<br />
Com a queda do Muro <strong>de</strong> Berlin, o fim das utopias e o fim da histÑria, mergulhamos no<br />
<strong>de</strong>sencanto, na apatia. O agravamento das tensâes <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m, ao invàs <strong>de</strong> trazer ä tona<br />
nosso vigor <strong>de</strong> transformaÅÇo, faz sucumbir o impulso inovador na indëstria do <strong>de</strong>sênimo. A<br />
“causa” que nos movia entÇo agora se per<strong>de</strong> por trás da tàcnica que tudo po<strong>de</strong>. Se a insatisfaÅÇo<br />
e a indignaÅÇo ampliavam os horizontes e impunham saltos no escuro na busca por liberda<strong>de</strong> e<br />
igualda<strong>de</strong>, a aceitaÅÇo das leis do mercado restringe iniciativas ä lÑgica do lucro, ä<br />
previsibilida<strong>de</strong> da estatÉstica e ä seguranÅa do “novo” sem risco. Na flui<strong>de</strong>z da ambiguida<strong>de</strong>, no<br />
labirinto da multiplicida<strong>de</strong>, na permeabilida<strong>de</strong> entre fronteiras e conceitos, na efemerida<strong>de</strong> do<br />
presenteÉsmo, e na confusÇo entre o Mesmo, o Outro e o Duplo, a pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> instala o<br />
vale-tudo da conjunÅÇo do que se supâe oposto. Neste cenário em que os homens foram<br />
igualados como mero consumidores, em que as diferenÅas se acomodam em favor da<br />
padronizaÅÇo, em que o novo nada inaugura, em que a tàcnica reproduz o real e esgota o<br />
possÉvel, os experimentalismos per<strong>de</strong>m seu horizonte <strong>de</strong> transcendÖncia e superaÅÇo.<br />
A aceitaÅÇo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que caminha a <strong>de</strong>speito da vonta<strong>de</strong> dos sujeitos e a<br />
consciÖncia da insignificência das aÅâes humanas fazem da acomodaÅÇo uma experiÖncia<br />
trágica: vivemos marcados pela fatalida<strong>de</strong>, pela fortuna e pelo <strong>de</strong>stino. O contraste cada vez<br />
mais exposto entre a riqueza e a pobreza, entre o dominador e o subalterno, entre o consumo e<br />
a misària sÇo amortecidos pela indiferenÅa da constataÅÇo. As tàcnicas tradicionais <strong>de</strong><br />
reproduÅÇo do real nos mantÖm igualmente prÑximos e alheios äs <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s: o que<br />
somos, o que fomos, o que po<strong>de</strong>mos ser e o que po<strong>de</strong>mos fazer sÇo questâes que se dissipam<br />
diante do espetáculo produzido para entreter. Nele, purgamos a culpa coletiva do capitalismo<br />
que fez <strong>de</strong> nÑs objeto <strong>de</strong> experiÖncia e nos con<strong>de</strong>nou a viver no mundo dos shopping centers,<br />
no qual afeto, compaixÇo e revolta sÇo mercadorias com prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> vencido. Na<br />
hegemonia da objetivida<strong>de</strong>, que usa e abusa da razÇo instrumental, as subjetivida<strong>de</strong>s parecem<br />
perturbar a compreensÇo do real. Assim a cultura oci<strong>de</strong>ntal, em sua lÑgica do progresso<br />
tàcnico e cientÉfico, selou a impermeabilida<strong>de</strong> afetiva, con<strong>de</strong>nando a estàtica e a poàtica ä<br />
estetizaÅÇo para consumo ligeiro.<br />
Como mercadorias, consumimos igualmente as imagens da guerra e as aÅâes<br />
humanitárias <strong>de</strong>stinadas a aplacar a dor por ela causada. NÇo passam <strong>de</strong> cenas que <strong>de</strong>sfilam<br />
diante <strong>de</strong> nossos olhos indiferentes ao que ainda à humano. Na superfÉcie nos comovemos e<br />
no consumo praticamos a tele-compaixÇo: comprar a camiseta do projeto humanitário à o<br />
64
modo pÑs-mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar afeto ─ nÇo o afeto da esfera da subjetivida<strong>de</strong>, mas o afeto<br />
<strong>de</strong> resultado, interessado no “lucro” simbÑlico, aquele que cola nossa imagem a um produto<br />
“do bem”, “agregando-nos valor”.<br />
Neste contexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sênimo e apatia, <strong>de</strong> crise dos experimentalismos, que papel<br />
<strong>de</strong>sempenham o intelectual e o artista? Como romper o limite da mercadoria e do consumo e<br />
promover transformaÅÇo e libertaÅÇo? Que contribuiÅâes po<strong>de</strong>m oferecer a razÇo e o sensÉvel<br />
na emergÖncia das i<strong>de</strong>ias? Que caminhos a narrativida<strong>de</strong> aponta para tocar a verda<strong>de</strong> dos<br />
homens?<br />
Uma boa pista para estas respostas po<strong>de</strong> ser encontrada no documentário engajado<br />
“Nascidos em Bordàis”. A análise da narrativa subjetiva <strong>de</strong> um filme supostamente concebido<br />
para ser objetivo, a observaÅÇo do afeto como medida para a cogniÅÇo do real e a <strong>de</strong>scriÅÇo do<br />
papel da cineasta em sua tentativa <strong>de</strong> mudar o cotidiano abrem as portas para a compreensÇo<br />
da narrativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gloria Perez em suas telenovelas. Para alàm do fato <strong>de</strong> a documentarista e<br />
a novelista abordarem em suas obras os invisÉveis da índia, parece-me significativo que<br />
ambas sejam mulheres, que se mostrem comprometidas com as causas que exploram, que se<br />
voltem para o Outro estrangeiro e diferente com a disposiÅÇo <strong>de</strong> ouvi-lo e fazer ecoar sua voz,<br />
que se <strong>de</strong>ixem conduzir pela subjetivida<strong>de</strong> na construÅÇo <strong>de</strong> suas narrativas, que suas histÑrias<br />
se alimentem da urgÖncia e do imprevisÉvel, que saibam contornar os caprichos do mercado<br />
para levar adiante a proposta <strong>de</strong> tocar o que à humano e inspirar nele o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanÅa...<br />
4.1 NASCIDOS EM BORDïIS ─ O FILME<br />
O documentário “Nascidos em bordàis”, filme <strong>de</strong> estreia dos diretores Ross Kauffman<br />
e Zana Briski, produzido na índia em 2004, explora o real e o possÉvel no universo tÇo<br />
violento quanto invisÉvel dos filhos <strong>de</strong> prostitutas da ôrea da Luz Vermelha <strong>de</strong> Calcutá. Lá,<br />
estÇo presentes a con<strong>de</strong>naÅÇo e o enfrentamento do <strong>de</strong>stino, a arte como libertaÅÇo, o artista<br />
como um ser revoltado, o <strong>de</strong>svelamento da auto-percepÅÇo, a tàcnica como mediadora do<br />
olhar, e a cultura da mercadoria como uma realida<strong>de</strong> inescapável. Sem apresentar rupturas<br />
estàticas, o filme marca o contraste entre o olhar profissional captado pela cêmera<br />
cinematográfica dos diretores e o olhar inocente das crianÅas que pela primeira vez<br />
empunham uma cêmera fotográfica. Cinema e fotografia dialogam para apresentar o novo: a<br />
realida<strong>de</strong> que agora se revela mutável.<br />
65
O filme à resultado <strong>de</strong> um projeto pessoal da fotÑgrafa inglesa baseada em Nova<br />
Iorque Zana Briski. Seu interesse pela índia, mais particularmente pela violÖncia<br />
experimentada pelas mulheres indianas, levou-a, em 1995, a produzir um ensaio sobre o<br />
infanticÉdio feminino. TrÖs anos <strong>de</strong>pois, Briski estava <strong>de</strong> volta ao paÉs para dar inÉcio ao seu<br />
projeto <strong>de</strong> fotografar e filmar as prostitutas do distrito da Luz Vermelha, em Calcutá.<br />
Apesar da ilegalida<strong>de</strong> da prostituiÅÇo na índia, as autorida<strong>de</strong>s nÇo a reprimem, e mais<br />
<strong>de</strong> sete mil mulheres e meninas trabalham como prostitutas em Sonagachi, a maior e mais<br />
pobre área <strong>de</strong> bordàis <strong>de</strong> Calcutá. No distrito da Luz Vermelha, se a <strong>de</strong>gradaÅÇo humana<br />
chegou a nÉveis intoleráveis para estas mulheres, a situaÅÇo à ainda pior para seus filhos, que<br />
nascem con<strong>de</strong>nados a um <strong>de</strong>stino inescapável: tais crianÅas, por condiÅÇo <strong>de</strong> nascimento, sÇo<br />
colocadas num sistema <strong>de</strong> castas no qual a mulher à obrigada a assumir a prostituiÅÇo como<br />
forma <strong>de</strong> ajudar no sustento da famÉlia e pagar por sua criaÅÇo. Em incontáveis cubÉculos<br />
escuros e sujos, num amontoado <strong>de</strong> objetos, gentes e ratos, vivem meninos e meninas <strong>de</strong> todas<br />
as ida<strong>de</strong>s que nÇo tÖm alternativa senÇo esperar na porta ou brincar no telhado enquanto suas<br />
avÑs e mÇes trabalham. Muitos ficam responsáveis pela cobranÅa dos clientes ou pelo<br />
comàrcio <strong>de</strong> bebidas. Alàm disso, ainda cabe äs meninas fazer limpeza na “casa” <strong>de</strong> outras<br />
prostitutas e retirar do ënico poÅo local a água para o abastecimento do bor<strong>de</strong>l.<br />
O filme, todo narrado pela fotÑgrafa, comeÅa com uma explicaÅÇo sobre um <strong>de</strong>svio <strong>de</strong><br />
rota: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muita negociaÅÇo com proprietários dos bordàis, cafetâes, policiais, polÉticos<br />
locais e o sindicato do crime organizado, Briski consegue autorizaÅÇo para morar no bor<strong>de</strong>l e<br />
fotografar as prostitutas, mas acaba se envolvendo com as crianÅas e, sensibilizada com o<br />
<strong>de</strong>stino <strong>de</strong>las, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ensinar-lhes fotografia. Diante da mudanÅa <strong>de</strong> planos, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> arriscar-se<br />
pela primeira vez com uma cêmera <strong>de</strong> filmagem, convoca Ross Kauffman para co-assinar as<br />
filmagens e encomenda a ele a aquisiÅÇo <strong>de</strong> máquinas fotográficas para as crianÅas.<br />
Munidas <strong>de</strong> cêmeras 35mm, as mais simples do mercado, “tia Zana”, como à chamada<br />
carinhosamente pelas crianÅas, reëne o grupo em uma sala improvisada e lhes ensina os<br />
rudimentos da fotografia: luz, enquadramento, composiÅÇo, ponto <strong>de</strong> vista. A i<strong>de</strong>ia nÇo à<br />
propriamente ensinar; Briski espera proporcionar aos filhos <strong>de</strong> prostitutas uma oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> olhar a realida<strong>de</strong> com seus prÑprios olhos (e nÇo com os olhos da tradiÅÇo local) e<br />
expressar o que veem atravàs da fotografia. De inÉcio, apenas duas liÅâes simples: como<br />
empunhar a cêmera e nÇo ter pressa para fotografar (“Quando segurar a cêmera, olhe com<br />
calma. Se nÇo está bem certinho aqui [no visor], eu me movimento para que tudo <strong>de</strong>ntro do<br />
enquadramento fique bonito, e aÉ eu tiro a foto”, orienta a fotÑgrafa.). Como qualquer crianÅa<br />
que ganha um brinquedo novo, os alunos <strong>de</strong> Briski vÇo para as ruas e becos <strong>de</strong> Sonagachi e<br />
66
disparam suas cêmeras. Enfrentam a falta <strong>de</strong> jeito com o equipamento e o constrangimento<br />
diante da reaÅÇo dos passantes (“Eles dizem coisas maldosas; querem saber como<br />
conseguimos as cêmeras”). Depois, diante da folha <strong>de</strong> contato, comentam o resultado,<br />
explicam a motivaÅÇo <strong>de</strong> cada foto e ouvem as observaÅâes da professora. A primeira <strong>de</strong>las à<br />
no sentido <strong>de</strong> libertar os fotÑgrafos-mirins da estàtica da TV, atravàs da qual conhecem o<br />
mundo fora dos limites do distrito da Luz Vermelha, e da estàtica dos retratistas, que<br />
registram com enquadramento ënico o busto dos habitantes dos bordàis. Os olhos quase<br />
virgens <strong>de</strong>stes fotÑgrafos-mirins foram capazes, ao longo do projeto, <strong>de</strong> filtrar, com a alegria e<br />
a objetivida<strong>de</strong> das crianÅas, a realida<strong>de</strong> dos bordàis 130 , <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> fora a escuridÇo das vielas<br />
e quartos sujos e avermelhados para realÅar o colorido <strong>de</strong> um cotidiano agora iluminado pela<br />
esperanÅa e pelo novo.<br />
No filme, as aventuras das crianÅas sÇo intercaladas com cenas dos prostÉbulos<br />
colhidas por cêmeras escondidas (“Tudo aqui à ilegal. ï perigoso filmar <strong>de</strong>ntro dos bordàis;<br />
mantÉnhamos a filmadora voltada para baixo para disfarÅar”, explica a diretora) e<br />
<strong>de</strong>poimentos pessoais dos alunos, colhidos já no final da experiÖncia, quando os laÅos <strong>de</strong><br />
confianÅa com a professora estavam sedimentados. Neles, sÇo apresentados os lares das<br />
crianÅas, suas relaÅâes familiares com a mÇe e a avÑ, seu trabalho quase escravo, suas<br />
reflexâes sobre a vida nos bordàis e suas aspiraÅâes. “ï preciso aceitar que a vida à dura e<br />
dolorosa”, diz Kochi, 10 anos. “Quero tirar Puja daqui, porque, quando crescer, vai ser<br />
prostituta, irá para a rua, usará drogas e roubará dinheiro das pessoas”, diz Gour, 13,<br />
preocupado com o futuro da amiga. “Em nosso quarto, as bebidas sÇo vendidas logo <strong>de</strong><br />
manhÇ; os homens bebem e vÇo ter as garotas. Alguns bebem e nÇo pagam. Preciso ir atrás<br />
<strong>de</strong>les e ser duro. Porque isso à tudo que temos”, diz Avijit, 11.<br />
Nos <strong>de</strong>poimentos, o encantamento com a fotografia revela diferentes engajamentos na<br />
arte: “Posso tirar foto <strong>de</strong> alguàm que foi embora, que morreu ou <strong>de</strong>sapareceu. E tenho algo<br />
para o qual posso olhar pelo resto <strong>de</strong> minha vida” (Avijit). “Quando eu tenho a cêmera em<br />
minhas mÇos, eu me sinto feliz. Eu sinto que estou apren<strong>de</strong>ndo alguma coisa... que posso ser<br />
alguàm” (Suchitra, 14). “Preciso ganhar dinheiro com o bordado e as fotos. Preciso ganhar a<br />
vida, cuidar <strong>de</strong> minha irmÇ e <strong>de</strong> mim” (Tapasi, 11). “Quero ser fotÑgrafo para mostrar como<br />
as pessoas vivem nesta cida<strong>de</strong>. (...) Quero mostrar o comportamento do homem” (Gour).<br />
“Essa à uma boa foto. Dá uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> como as pessoas vivem, embora ela dÖ uma sensaÅÇo<br />
<strong>de</strong> tristeza. ï difÉcil olhar, mas à necessário porque à verda<strong>de</strong>” (Avijit).<br />
130 Para ver as fotos das crianÅas, ver .<br />
67
Em dois anos <strong>de</strong> aulas <strong>de</strong> fotografia, a experiÖncia com as crianÅas nascidas em<br />
bordàis acaba ultrapassando os limites da área da Luz Vermelha em passeios fotográficos que<br />
proporcionam aos alunos o conhecimento <strong>de</strong> outros lugares e realida<strong>de</strong>s. Acaba extrapolando<br />
tambàm a proposta <strong>de</strong> libertaÅÇo atravàs da arte, já que Briski se engaja na luta para<br />
encaminhar seus fotÑgrafos a uma instituiÅÇo <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> Calcutá, invariavelmente um<br />
internato. Seus esforÅos esbarram nÇo sÑ no preconceito das escolas que nÇo aceitam filhos <strong>de</strong><br />
prostitutas, como na burocracia indiana, na falta <strong>de</strong> documentaÅÇo das crianÅas, na exigÖncia<br />
<strong>de</strong> testes <strong>de</strong> HIV e na resistÖncia das famÉlias que, apesar <strong>de</strong> reconhecer a boa intenÅÇo da<br />
iniciativa, tÖm dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar seus filhos livres para assumir um futuro mais promissor<br />
fora da tradiÅÇo dos bordàis.<br />
A experiÖncia com as crianÅas nascidas em bordàis, nesse ponto, extrapola a lÑgica dos<br />
documentários, na qual os fatos <strong>de</strong>vem falar por si e as imagens <strong>de</strong>vem ser registradas para<br />
efeito <strong>de</strong> constataÅÇo. O engajamento afetivo <strong>de</strong> Briski com as crianÅas faz a documentarista<br />
interferir no <strong>de</strong>senrolar dos fatos, nÇo sÑ na busca por instruÅÇo como tambàm na arrecadaÅÇo<br />
<strong>de</strong> fundos para garantir um futuro mais digno para os meninos e meninas do projeto.<br />
Ao perceber a qualida<strong>de</strong> das fotos produzidas pelas crianÅas, algumas <strong>de</strong>las, segundo<br />
sua percepÅÇo, alcanÅando nÉvel artÉstico, a cêmera do documentário <strong>de</strong>ixa a índia para seguir<br />
Briski atà Nova Iorque, on<strong>de</strong> ela consegue que as fotos dos filhos das prostitutas <strong>de</strong> Calcutá nÇo<br />
sÑ sejam expostas em duas galerias e leiloadas na Sotheby’s, como tambàm ilustrem o<br />
calendário da Anistia Internacional. “A i<strong>de</strong>ia à tirar as crianÅas dos bordàis”, explica a fotÑgrafa.<br />
O esforÅo acaba atraindo para o projeto a contribuiÅÇo do fotÑgrafo Robert Pedge, dono da<br />
agÖncia Contact Press Images, <strong>de</strong> Nova Iorque, que vai atà Calcutá olhar <strong>de</strong> perto o trabalho<br />
das crianÅas. De lá, diante do talento <strong>de</strong> Avijit, um menino que já colecionava prÖmios com seus<br />
<strong>de</strong>senhos e pinturas, o fotÑgrafo se mobiliza no sentido <strong>de</strong> obter a indicaÅÇo do jovem artista<br />
para compor um jëri <strong>de</strong> crianÅas do mundo todo que, a cada ano, examina mais <strong>de</strong> quatro mil<br />
fotos na World Press Photo Foundation, em AmsterdÇ. “Avijit tem talento natural”, comemora.<br />
Briski consegue ainda que a livraria Oxford, <strong>de</strong> Calcutá, exponha as fotos das crianÅas<br />
invisÉveis da índia: pela primeira vez numa livraria, os jovens artistas assinam suas fotos, dÇo<br />
entrevista ä imprensa e recebem o reconhecimento e o afago dos convidados. O repÑrter <strong>de</strong><br />
tevÖ encerra a matària da exposiÅÇo com uma frase <strong>de</strong> apoio ä iniciativa <strong>de</strong> buscar “educaÅÇo<br />
<strong>de</strong>cente e uma chance <strong>de</strong> conhecer o mundo fora do distrito da Luz Vermelha”.<br />
O filme segue com a ida das meninas para o internato e sua <strong>de</strong>spedida das famÉlias, a<br />
aceitaÅÇo dos meninos na escola Future Hope (<strong>de</strong>stinada a meninos em condiÅâes difÉceis), a<br />
dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter passaporte para Avijit ir a AmsterdÇ e a <strong>de</strong>pressÇo do artista-mirim diante<br />
68
da notÉcia da morte <strong>de</strong> sua mÇe numa “explosÇo na cozinha” (cÑdigo para acobertar o<br />
assassinato <strong>de</strong> mulheres por seu rufiÇo atravàs <strong>de</strong> incÖndios domàsticos). Termina com um<br />
reencontro da documentarista com seus protegidos alguns anos mais tar<strong>de</strong> e a constataÅÇo <strong>de</strong><br />
que muitos tinham, por vonta<strong>de</strong> prÑpria ou <strong>de</strong>terminaÅÇo da famÉlia, <strong>de</strong>ixado a escola. O<br />
trabalho da fotÑgrafa, no entanto, nÇo tinha sido <strong>de</strong> todo em vÇo: diferentemente <strong>de</strong> suas<br />
colegas, Kochi optou por ficar no internato, Tapasi fugiu <strong>de</strong> casa e foi para uma escola<br />
feminina, e Avijit, que estava <strong>de</strong>sanimado com os estudos, voltou <strong>de</strong> AmsterdÇ para a Future<br />
Hope. Ainda em Sonagachi, Gour sonha com a universida<strong>de</strong>.<br />
“Nascidos em Bordàis” ganhou o Oscar <strong>de</strong> melhor documentário em 2005, categoria que<br />
lhe ren<strong>de</strong>u tambàm o prÖmio do National Board of Review e dos Los Angeles Film Critics. Foi<br />
eleito ainda o melhor documentário pelo jëri popular no Sundance Film Festival, em 2004.<br />
4.2 BRISKI, A INTELECTUAL ENGAJADA<br />
Zana Briski à uma profissional da fotografia que faz arte com sua cêmera. Como<br />
fotÑgrafa, está engajada no uso da arte para a <strong>de</strong>nëncia social. Quer dar visibilida<strong>de</strong> (esta<br />
categoria tÇo importante nesse mundo <strong>de</strong> imagens) ä realida<strong>de</strong> invisÉvel e violenta do ser<br />
humano. Escolhe como foco as mulheres e, por extensÇo, as crianÅas. Como cenário, a índia,<br />
uma terra <strong>de</strong> contrastes, que <strong>de</strong>sponta como fornecedora mundial <strong>de</strong> tecnologia <strong>de</strong> informaÅÇo<br />
e, ao mesmo tempo, figura como o segundo paÉs mais afetado pela Aids. A fotÑgrafa que<br />
mora em Nova Iorque escolhe como màtodo <strong>de</strong> trabalho o exÉlio: no caso <strong>de</strong> “Nascidos em<br />
Bordàis”, Briski se muda para o distrito da Luz Vermelha e fica morando com as prostitutas<br />
durante anos (a projeto original <strong>de</strong> fotografar as mulheres se inicia em 1998 e a escola <strong>de</strong><br />
fotografia com as crianÅas dura <strong>de</strong> 2002 a 2003).<br />
Muitos dirÇo tratar-se <strong>de</strong> mais uma investida arrogante do i<strong>de</strong>ário imperialista (Zana à<br />
inglesa <strong>de</strong> origem) sobre uma cultura subalterna. Ruy Gardnier, crÉtico da revista <strong>de</strong> cinema<br />
Contracampo, se alinha nesta fileira:<br />
Um filme sobre como uma documentarista, dotada <strong>de</strong> todas as verda<strong>de</strong>s egocÖntricas e<br />
etnocÖntricas sobre como dar liberda<strong>de</strong> aos outros, vai num paÉs "exÑtico e atrasado"<br />
para com a arte (a fotografia, o cinema) salvar quem ainda po<strong>de</strong> ser salvo do mar <strong>de</strong><br />
lama: as pobres criancinhas. Há um quÖ <strong>de</strong> Michael Moore (a professora-cineasta<br />
lutando contra a burocracia terceiromundista e preconceituosa da índia para tirar os<br />
vistos <strong>de</strong> raÅÇo <strong>de</strong> seus alunos), como há um nojento fedor <strong>de</strong> autopromoÅÇo (as<br />
crianÅas sendo entrevistadas pela televisÇo indiana dizendo como tudo que a tia Zana<br />
ensina vai direto pro càrebro, como ela à boazinha e atenciosa, etc.) nessa enquete<br />
69
assistencialista que tenta aplacar a culpa social atravàs <strong>de</strong> saÉdas voluntaristas que<br />
"fazem a diferenÅa". 131<br />
A trajetÑria <strong>de</strong> sucesso do documentário em mostras competidoras <strong>de</strong> cinema parece<br />
confirmar sua vocaÅÇo para esta estàtica humanitária-salvacionista tÇo cara ao mercado das<br />
emoÅâes superficiais, as “emoÅâes-pipoca”.<br />
Talvez seja <strong>de</strong>masiado simplista <strong>de</strong>ixar-nos convencer pela lÑgica do <strong>de</strong>sencanto que<br />
<strong>de</strong> tudo <strong>de</strong>sconfia, como se nÇo houvesse mais lugar para os arroubos da subjetivida<strong>de</strong> ou para<br />
o <strong>de</strong>sgoverno da vonta<strong>de</strong>. Se o impulso obrigatÑrio da visibilida<strong>de</strong> faz tudo parecer auto-<br />
promoÅÇo, e se toda aÅÇo contra a misària e a opressÇo cai na vala negra do assistencialismo,<br />
<strong>de</strong> que nos servem a <strong>de</strong>nëncia e o engajamento? NÇo seria o ceticismo a <strong>de</strong>sculpa racional<br />
para a acomodaÅÇo? NÇo estaria mais uma vez a razÇo dando uma rasteira na subjetivida<strong>de</strong>,<br />
con<strong>de</strong>nando ä impureza os (<strong>de</strong>s)mandos da consciÖncia?<br />
Se para Antonio Gramsci qualquer pessoa po<strong>de</strong> ser um intelectual 132 , Briski, com sua<br />
cêmera, certamente se enquadraria em um dos graus <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> em que um intelectual<br />
<strong>de</strong>sempenha sua funÅÇo:<br />
A ativida<strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong>ve distinguir-se em graus, mesmo do ponto <strong>de</strong> vista<br />
intrÉnseco; graus que nos momentos <strong>de</strong> extrema oposiÅÇo indicam uma autÖntica<br />
diferenÅa qualitativa: no mais alto grau, <strong>de</strong>vem pòr-se os criadores das várias ciÖncias,<br />
da filosofia, da arte, etc.; no mais baixo, os 'administradores' e divulgadores mais<br />
mo<strong>de</strong>stos da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumulada. 133<br />
NÇo chega a ser uma criadora da arte nem tampouco uma mo<strong>de</strong>sta divulgadora da<br />
riqueza intelectual. Mas em algum lugar nesta escala está prevista a funÅÇo intelectual<br />
<strong>de</strong>sempenhada pela professora <strong>de</strong> fotografia dos filhos das prostitutas que, em seu<br />
espontaneÉsmo educador, se faz agente da socieda<strong>de</strong> civil na práxis da arte como instrumento<br />
<strong>de</strong> libertaÅÇo. Se nÇo chega a produzir elementos <strong>de</strong> construÅÇo <strong>de</strong> uma contra-hegemonia, sua<br />
coragem e sensibilida<strong>de</strong> produzem uma obra que <strong>de</strong>sperta a consciÖncia e aponta para um<br />
mundo melhor. Como diz Huyssen, rompe “a torre <strong>de</strong> marfim da arte” e contribui para uma<br />
“mudanÅa do cotidiano” 134 .<br />
No caso <strong>de</strong> “Nascidos em Bordàis”, a iniciativa inicial <strong>de</strong> Briski nÇo era tirar as<br />
crianÅas dos prostÉbulos. Sua aÅÇo inicial como fotÑgrafa da realida<strong>de</strong> das prostitutas<br />
<strong>de</strong>spertou nas crianÅas a curiosida<strong>de</strong> pela fotografia e levou-a a sugerir as aulas como uma<br />
131 GARDNIER, “Nascidos em Bordàis”. DisponÉvel em: .<br />
Acesso em 23 jan. 2007.<br />
132 GRAMSCI, 1978, p. 346.<br />
133 Ibi<strong>de</strong>m, p. 349.<br />
134 HUYSSEN, 1996, p. 116.<br />
70
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proporcionar, pela lente da cêmera, uma perspectiva para ver fora da tradiÅÇo<br />
trágica dos <strong>de</strong>stinos imutáveis, um olhar diferenciado sobre a realida<strong>de</strong> em que viviam. Das<br />
trocas que se estabeleceram a partir <strong>de</strong>stes contatos tàcnicos e afetivos à que surgiu o <strong>de</strong>sejo<br />
manifesto das crianÅas <strong>de</strong> estudar para nÇo repetir a trajetÑria <strong>de</strong> suas mÇes e avÑs. Vieram<br />
<strong>de</strong>las o pedido <strong>de</strong> ajuda e a indicaÅÇo da escola como caminho. Ao <strong>de</strong>sempenhar casualmente<br />
a funÅÇo <strong>de</strong> intelectual, Brisk nÇo po<strong>de</strong> ser confundida com o orientalista <strong>de</strong>scrito por Said:<br />
nÇo se porta como um sujeito transcen<strong>de</strong>ntal kantiniano para quem o outro à apenas matària<br />
<strong>de</strong> conhecimento, nem como uma representante da cultura imperialista (ela à inglesa e as<br />
crianÅas, indianas) disposta a pòr em prática sua missÇo civilizadora, subordinando o<br />
colonizado como alguàm incapaz <strong>de</strong> construir seu prÑprio percurso histÑrico.<br />
Briski <strong>de</strong>sempenha entÇo o papel do professor como intelectual. De acordo com a<br />
pensadora argentina Beatriz Sarlo 135 , à prÑprio da ativida<strong>de</strong> intelectual do professor<br />
questionar o que “parece inscrito na natureza das coisas” com o objetivo <strong>de</strong> mostrar que “as<br />
coisas nÇo sÇo inevitáveis”. Como diz Raymond Williams a propÑsito da diferenÅa entre a<br />
tragàdia aristotàlica, que con<strong>de</strong>na o herÑi ao seu <strong>de</strong>stino, e o teatro didático <strong>de</strong> Brecht, que<br />
aponta para uma mudanÅa, “Temos <strong>de</strong> enxergar nÇo apenas que o sofrimento po<strong>de</strong> ser<br />
evitado, mas tambàm que ele nÇo tem, necessariamente, <strong>de</strong> nos esmagar” 136 . Segundo Sarlo, a<br />
“<strong>de</strong>snaturalizaÅÇo” daquilo que oprime os indivÉduos à a forma pela qual o intelectual<br />
expressa seu compromisso polÉtico.<br />
Como professora ou documentarista, Briski parece motivada pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
solidarieda<strong>de</strong> e fraternida<strong>de</strong> num momento em que a acomodaÅÇo faz crer que um outro<br />
mundo nÇo à possÉvel. A pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> nem se sabe ao certo que mundo seria este. Talvez<br />
a documentarista faÅa parte, guardada a limitaÅÇo <strong>de</strong> alcance <strong>de</strong> sua aÅÇo, daquele tipo <strong>de</strong><br />
intelectual que ainda se alimenta <strong>de</strong> utopias. E pela lente <strong>de</strong> sua cêmera tenha aprendido a<br />
enfrentar os obstáculos <strong>de</strong> olhos postos em outro mundo possÉvel. Foi isso que tentou ensinar<br />
a seus alunos.<br />
4.3 AVIJIT, O ARTISTA REVOLTADO<br />
Ao contrário das oito crianÅas envolvidas no projeto <strong>de</strong> Briski, Avijit, <strong>de</strong> 11 anos, já<br />
chegou artista. Sentado no chÇo do quarto on<strong>de</strong> vive com a avÑ prostituta e o pai drogado,<br />
135 SARLO, 1999.<br />
136 WILLIAMS, 2002, p. 262.<br />
71
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito pequeno projetava em papel a vida fora dos bordàis. De sua paleta já quase sem<br />
tinta, pintava as cores do mundo que lhe chegava pela tevÖ: telhados vermelhos, árvores em<br />
diferentes tons <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>, gente em trajes oci<strong>de</strong>ntais e càu azul. A alegria <strong>de</strong> suas pinturas e a<br />
beleza <strong>de</strong> seu traÅo ren<strong>de</strong>ram-lhe inëmeros prÖmios, medalhas que a avÑ coleciona orgulhosa<br />
num armário abarrotado <strong>de</strong> coisas.<br />
“Eu gosto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar porque quero expressar o que tenho em mente. Quero expressar<br />
o meu pensamento usando as cores”, diz o pequeno artista. As cores e formas do pensamento<br />
<strong>de</strong> Avijit nÇo estÇo em Sonagachi; elas projetam um mundo que sÑ ele vÖ, o mundo melhor<br />
que sÑ à possÉvel em sua mente.<br />
Quando Briski pâe em suas mÇos uma cêmera fotográfica, ele <strong>de</strong>scobre um outro<br />
veÉculo para sua arte e uma Sonagachi que precisa ser vista. Sua primeira investida no mundo<br />
da fotografia ren<strong>de</strong>u um excelente material. Atà mesmo a pequena Shanti, 11, percebe que sÇo<br />
<strong>de</strong> Avijit as melhores fotos. A professora se surpreen<strong>de</strong>:<br />
Adoro isto porque à um auto-retrato, mas vocÖ tambàm po<strong>de</strong> ver a rua, o ambiente<br />
on<strong>de</strong> ele está. Os <strong>de</strong>talhes, as janelas, as persianas, os fios... Tantos êngulos diferentes.<br />
Coisas na frente e atrás. Homens dormindo, andando e muito mais. Uma folha <strong>de</strong><br />
contato muito boa.<br />
Diante dos elogios, Avijit sorri, mas está sàrio a maior parte do tempo. O olhar duro,<br />
inquieto e äs vezes perdido, revela nÇo sÑ a dor das crianÅas que, pela violÖncia, sÇo obrigadas<br />
a amadurecer antes da hora, mas a angëstia do artista que se sabe maior que seu tempo: “Eu<br />
queria ser màdico; entÇo eu quis ser artista. Agora eu quero ser fotÑgrafo. NÇo há uma coisa<br />
chamada ‘esperanÅa’ em meu futuro”.<br />
Suas circunstências <strong>de</strong> vida parecem mesmo nÇo cre<strong>de</strong>nciá-lo para “essa coisa<br />
chamada esperanÅa” ─ muito menos parecem reservar-lhe qualquer futuro.<br />
Mas a fotografia já espreitava Avijit. Do armário <strong>de</strong> prÖmios do neto, a avÑ saca uma<br />
foto amarelada do bebÖ Avijit; o menino exibe, orgulhoso, sua foto com a mÇe, mulher nova e<br />
bonita que mora na “vila”, fora <strong>de</strong> Sonagachi. “Ninguàm se importa com ela”, lamenta o filho<br />
que se diverte lembrando-se da mÇe que lhe acenou com estudos em Londres. “Mal temos<br />
dinheiro para viver, quanto mais para estudar”, comenta. O pai já foi homem forte, <strong>de</strong> bater<br />
em muitos, <strong>de</strong> fama corrida <strong>de</strong> bravo. Hoje, à um trapo humano, esquálido, o rosto encovado<br />
<strong>de</strong> tanto fumar haxixe. “Meu pai era um homem bom. Minha mÇe partiu e ele fuma o dia todo,<br />
por isso ninguàm presta atenÅÇo em meu pai. Mesmo assim eu tenho que gostar <strong>de</strong>le, ao<br />
menos um pouco”, conta o menino que à obrigado a ser bravo com os clientes que nÇo pagam<br />
pela bebida vendida em seu quarto-casa.<br />
72
O orgulho <strong>de</strong> assinar suas fotos como artista reconhecido, a alegria <strong>de</strong> ver suas obras<br />
expostas na cida<strong>de</strong> natal e em Nova Iorque, a surpresa <strong>de</strong> ter seu nome estampado na primeira<br />
página do principal jornal da índia, e o sonho <strong>de</strong> ser indicado para o jëri <strong>de</strong> crianÅas <strong>de</strong><br />
AmsterdÇ parecem apenas fazer parte <strong>de</strong> um roteiro trágico que prepara a dor que nÇo se po<strong>de</strong><br />
explicar nem expressar em cores. Avijit nÇo chora diante da notÉcia da morte da mÇe. Mais<br />
que a perda afetiva <strong>de</strong> alguàm que sÑ existia no retrato que ele vai guardar para o resto da<br />
vida, a intuiÅÇo lhe avisava sobre a violÖncia do <strong>de</strong>stino nos bordàis. Talvez nem tenha<br />
chegado a saber que sua mÇe fora queimada num “aci<strong>de</strong>nte” forjado por seu rufiÇo. Nem teria<br />
como se indignar com o <strong>de</strong>scaso da polÉcia que sequer investiga casos como o <strong>de</strong>la. Avijit<br />
apenas se <strong>de</strong>ixa sucumbir pela angëstia que lhe corrÑi a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo. NÇo estuda para os<br />
exames do colàgio, falta äs aulas <strong>de</strong> fotografia, <strong>de</strong>ixa os rolos <strong>de</strong> filme fora da cêmera.<br />
Mais do que <strong>de</strong>primido, o pequeno artista está revoltado. Como sugere o ensaio <strong>de</strong><br />
Camus 137 , o homem revoltado à aquele que diz nÇo: ele nega alguma coisa porque antes ele<br />
afirma algo que lhe à negado. A revolta, entÇo, à positiva, ativa, se dá em favor <strong>de</strong> princÉpios<br />
que transcen<strong>de</strong>m o indivÉduo, que reclamam valores comuns a outros homens: frente a um<br />
mundo repleto <strong>de</strong> absurdos, a revolta, em vez <strong>de</strong> romper com limites, afirma o direito do<br />
homem e estabelece os limites da opressÇo. Avijit sempre fez <strong>de</strong> sua arte um instrumento da<br />
revolta contra a violÖncia, a injustiÅa e a falta <strong>de</strong> esperanÅa da invisibilida<strong>de</strong> da vida <strong>de</strong><br />
mulheres e crianÅas con<strong>de</strong>nadas ao vermelho angustiante dos bordàis. Mas a morte da mÇe<br />
havia <strong>de</strong>generado seu espÉrito revoltado em um espÉrito ressentido, e Avijit agora experimenta<br />
a negaÅÇo absoluta, a aniquilaÅÇo total, o niilismo.<br />
Briski sabe que Avijit está no limite: apela para o Future Hope acolhÖ-lo como aluno,<br />
ren<strong>de</strong>-se a um pistolÇo para conseguir o passaporte para AmsterdÇ.<br />
Avijit agora está <strong>de</strong> roupa nova, mala na mÇo e, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um táxi amarelo rumo ao<br />
aeroporto, pe<strong>de</strong> para o motorista ir com calma, pois um aci<strong>de</strong>nte o impediria <strong>de</strong> realizar seu<br />
sonho. No ar, vendo a imensidÇo do càu e na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> colocar o rosto para fora da<br />
janela (como fizera no ònibus que o <strong>de</strong>ixara pela primeira vez diante do mar), renasce a alma <strong>de</strong><br />
fotÑgrafo. Pela lente da cêmera, registra tudo o que vÖ pela frente, sempre em enquadramentos<br />
inusitados. No aviÇo, no aeroporto, nas ruas <strong>de</strong> AmsterdÇ, na World Press Photo Foundation.<br />
Em sua retina, guarda tambàm a composiÅÇo das fotos que tem que julgar: no olhar do outro, as<br />
emoÅâes do menino afloram em explicaÅâes estàticas. Um exercÉcio <strong>de</strong> ver a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
137 CAMUS, 1999.<br />
73
outrem. Ver outras vidas filtrando realida<strong>de</strong>s e possibilida<strong>de</strong>s. Avijit está impregnado <strong>de</strong> arte.<br />
Ainda traz a revolta, a indignaÅÇo com a injustiÅa, mas a fotografia à uma esperanÅa.<br />
Na volta <strong>de</strong> AmsterdÇ, o pequeno artista ingressa na Future Hope, nome significativo<br />
para a escola do menino revoltado que superou o ressentimento e enfrenta seu <strong>de</strong>stino trágico<br />
na busca do possÉvel.<br />
4.4 A MERCADORIA E O AFETO: O CAMINHO POSSíVEL E A AUTONOMIA<br />
Inegável a aÅÇo libertadora da arte na dimensÇo existencial das crianÅas nascidas em<br />
bordàis. Na dimensÇo material, entretanto, os caminhos da transcendÖncia artÉstica foram<br />
obrigados a um <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> sobrevivÖncia: motivada nÇo apenas pelo talento expresso nas<br />
obras, mas pela consciÖncia do apelo que fotos-<strong>de</strong>-filhos-<strong>de</strong>-prostitutas-indianas tÖm no<br />
mercado da solidarieda<strong>de</strong>, Briski nÇo se furtou a vendÖ-las como mercadoria para garantir äs<br />
crianÅas a autonomia financeira necessária para escapar do <strong>de</strong>stino.<br />
Talvez a conversÇo <strong>de</strong> arte em mercadoria tenha sido menos traumática neste caso<br />
particular por se tratar <strong>de</strong> arte fotográfica, um gÖnero prÑprio para a reproduÅÇo, no qual seu<br />
valor <strong>de</strong> exibiÅÇo se sobrepâe ao valor <strong>de</strong> culto. Se, quando surgiu, a fotografia foi, como diz<br />
Walter Benjamin, “a primeira tàcnica <strong>de</strong> reproduÅÇo verda<strong>de</strong>iramente revolucionária” 138 , hoje,<br />
ela se dissolve na versatilida<strong>de</strong> da imagem, a forma mais <strong>de</strong>senvolvida <strong>de</strong> mercadoria.<br />
Ao ven<strong>de</strong>r as fotos das crianÅas para ilustrar o calendário da Anistia Internacional, por<br />
exemplo, Briski se ren<strong>de</strong> ao mundo da publicida<strong>de</strong>, ao mundo da mercadoria mais<br />
sentimental. A visibilida<strong>de</strong> e os dÑlares obtidos com a operaÅÇo serviram nÇo sÑ para garantir<br />
a sobrevivÖncia dos jovens artistas, mas tambàm para “agregar valor” inestimável <strong>de</strong><br />
solidarieda<strong>de</strong> ä instituiÅÇo. A transformaÅÇo da arte em mercadoria parece impor-se hoje<br />
como condiÅÇo inescapável <strong>de</strong> sobrevivÖncia do artista e <strong>de</strong> exibiÅÇo da obra que, <strong>de</strong> outra<br />
forma, sucumbiria sem a vitrine indispensável da visibilida<strong>de</strong> nesse mundo da imagem e da<br />
super-exposiÅÇo. Dos bordàis mais pobres <strong>de</strong> Calcutá, invisÉveis numa índia que trata com<br />
indiferenÅa suas mulheres ilegais, as fotos dos alunos <strong>de</strong> Briski ganham o mundo com uma<br />
simples ida a Nova Iorque, a capital dos shopping centers da fraternida<strong>de</strong> prête-à-porter.<br />
Se a visibilida<strong>de</strong>, essa categoria do mundo da racionalida<strong>de</strong> funcional, ajuda a<br />
arrecadar fundos para a educaÅÇo das crianÅas, à o afeto, essa categoria do mundo das<br />
subjetivida<strong>de</strong>s, que lhes garante autonomia. NÇo foram somente as aulas <strong>de</strong> fotografia que<br />
138 BENJAMIN, 1980, p. 10.<br />
74
libertaram os filhos <strong>de</strong> prostitutas <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>stinos: foi, sobretudo, a relaÅÇo afetuosa<br />
construÉda pela fotÑgrafa que cativou nas crianÅas a confianÅa, a crenÅa na esperanÅa possÉvel<br />
e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanÅa.<br />
Neste sentido, a intelectual-professora Zana Briski pò<strong>de</strong> trazer o novo para seus alunos<br />
sob a forma <strong>de</strong> futuro. E seu filme pò<strong>de</strong> inovar a linguagem do documentário pela<br />
impregnaÅÇo do afeto: mais que a constataÅÇo, a sequÖncia <strong>de</strong> cenas constrÑi uma narrativa<br />
que revela o engajamento, a participaÅÇo e a aÅÇo efetiva da fotÑgrafa. Talvez esse impulso<br />
inovador <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o subjetivo se impor num terreno tradicionalmente ocupado pela<br />
objetivida<strong>de</strong> tenha sido fruto <strong>de</strong> uma autonomia prÑpria do estreante, um vigor que se funda<br />
apenas na vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer diferente, fora das amarras das fÑrmulas já estabelecidas. O<br />
“documentário engajado” <strong>de</strong> Briski traz a costura afetiva <strong>de</strong> imagens e discursos. A opÅÇo<br />
pelo afeto como ponto <strong>de</strong> vista nÇo perturba a percepÅÇo clara das coisas, nÇo reduz a<br />
compreensÇo do real, nÇo simplifica nem se <strong>de</strong>ixa escorregar na pieguice. Numa estàtica<br />
feminina, com <strong>de</strong>svelo materno e disciplina <strong>de</strong> professora primária, o filme cuida para que os<br />
vetores no sentido da vida possam oferecer a liberda<strong>de</strong> pela percepÅÇo simbÑlica dos laÅos<br />
verda<strong>de</strong>iramente solidários. Com acolhimento, Briski permite que seus alunos vejam com<br />
outros olhos a realida<strong>de</strong> hostil do mundo em que vivem. O <strong>de</strong>spertar para o compromisso <strong>de</strong><br />
assumir as rà<strong>de</strong>as da histÑria e do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> suas vidas resulta em mera consequÖncia <strong>de</strong>sse<br />
olhar crÉtico. A abordagem <strong>de</strong>licada <strong>de</strong> Briski nÇo diminui a crueza da injustiÅa e da<br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Ao contrário, alimenta <strong>de</strong> poesia o sonho <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> das crianÅas.<br />
A <strong>de</strong>speito da padronizaÅÇo exigida pela lÑgica da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massa, o filme segue<br />
indiferente ä estàtica do documentário tradicional. Tanto quanto na arte das crianÅas, a<br />
autonomia se dá pela espontaneida<strong>de</strong> e pelo afeto. Talvez esteja aÉ a inovaÅÇo <strong>de</strong> “Nascidos em<br />
Bordàis”: sem rupturas ou gran<strong>de</strong>s saltos estàticos, apenas introduz a subjetivida<strong>de</strong> no reino da<br />
racionalida<strong>de</strong> documentarista. Enquanto filme, repete o valor consagrado no projeto<br />
humanitário sincero: impâe-se como uma brecha que <strong>de</strong>ixa entrever um horizonte <strong>de</strong> esperanÅa<br />
na revisÇo crÉtica da tradiÅÇo. ï como a foto <strong>de</strong> Avijit. O menino po<strong>de</strong>ria apenas ter enquadrado<br />
a janela suja do bor<strong>de</strong>l com a luz <strong>de</strong> fora enchendo <strong>de</strong> um amarelo triste o interior do còmodo.<br />
Mas nÇo. O pequeno artista escolheu dar um passo atrás e abrir o foco apenas o suficiente para<br />
<strong>de</strong>ixar ver a ràstia <strong>de</strong> luz limpa e brilhante que passava pela fresta da porta entreaberta.<br />
75
5 A TELENOVELA ENQUANTO ARTE<br />
Com raras exceÅâes, o mundo acadÖmico torce o nariz para a telenovela: artigo <strong>de</strong><br />
consumo da cultura <strong>de</strong> massa, sem po<strong>de</strong>r criativo (apenas repetitivo) e sem valor artÉstico;<br />
mero entretenimento <strong>de</strong>stinado a a<strong>de</strong>strar autoritariamente as reaÅâes do espectador, a<br />
atrofiar-lhe a imaginaÅÇo e a espontaneida<strong>de</strong>. Assim, con<strong>de</strong>nada pelo suposto “espÉrito<br />
elevado” ao limbo das narrativas <strong>de</strong> segunda classe, a dramaturgia televisiva sucumbe no<br />
purgatÑrio da indëstria cultural como produto barato, peÅa <strong>de</strong> liquidaÅÇo: exposta em<br />
prateleira atraente (a mÉdia), oferecida quase <strong>de</strong> graÅa (programaÅÇo da tevÖ aberta) e pronta<br />
para agradar o gosto do freguÖs (aten<strong>de</strong>r a uma <strong>de</strong>manda massiva), poucos se arriscam a<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r sua qualida<strong>de</strong>. No Brasil, exaltam-na por sua gran<strong>de</strong> penetraÅÇo popular, por ter<br />
conquistado o mercado externo, por se manter viva apesar nos inëmeros prenëncios <strong>de</strong><br />
falÖncia, por provocar polÖmicas, mobilizar a opiniÇo pëblica, ser o cartÇo <strong>de</strong> visitas da maior<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> televisÇo do paÉs. Todos estes màritos, no entanto, nÇo tÖm sido capazes <strong>de</strong> outorgar-<br />
lhe a honra <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada obra <strong>de</strong> arte.<br />
Mesmo na baixa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, quando se constata a perda das referÖncias, a ruptura <strong>de</strong><br />
fronteiras estilÉsticas e o hibridismo como justaposiÅÇo dos contrários; mesmo na era das<br />
tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo, quando a arte per<strong>de</strong> seu valor <strong>de</strong> culto, sua aura e sua autenticida<strong>de</strong>, e<br />
a verda<strong>de</strong> nÇo passa <strong>de</strong> uma ilusÇo virtual; mesmo na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, quando tudo se<br />
submete ao mercado e ä fruiÅÇo do instantêneo, dos estereÑtipos e do espetáculo ― mesmo<br />
neste momento em que a nova histÑria volta-se äs narrativas dos atores anònimos, aos<br />
vestÉgios da verda<strong>de</strong>, aos <strong>de</strong>talhes mÉnimos da vida ordinária, impondo a revisÇo <strong>de</strong> conceitos,<br />
dogmas e cênones, ainda há quem se julgue curador da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> arte e quem cultive o “Belo”,<br />
reservando um altar para obras cuja autorida<strong>de</strong> seja confirmada pela presenÅa tradicional do<br />
po<strong>de</strong>r criativo, do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> testemunho histÑrico (“hic et nunc” do original), da genialida<strong>de</strong>,<br />
do valor <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong>, do valor <strong>de</strong> mistàrio, da I<strong>de</strong>ia.<br />
5.1 A ARTE TRADICIONAL<br />
Para os admiradores das “belas-letras”, telenovela à um produto <strong>de</strong> mÉdia <strong>de</strong>stinado ao<br />
consumidor da indëstria cultural: nÇo requer <strong>de</strong>le concentraÅÇo, promove apenas distraÅÇo.<br />
Esta literatura tida como “menor”, pronta para ser usada, para ser fruÉda, consumida, <strong>de</strong> fácil<br />
“leitura” e digestÇo, mero entretenimento, distingue-se por completo, na visÇo aristotàlica e na<br />
76
visÇo do beletrista, da literatura-arte, aquela que faz a linguagem, e da Ñpera, a obra <strong>de</strong> arte<br />
total, na qual o teatro (a representaÅÇo presentificada diante da plateia), o texto e a mësica<br />
celebram o sublime.<br />
Segundo Walter Benjamin, a questÇo se fundamenta nas condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo:<br />
enquanto produto da indëstria cultural, a telenovela teria na reproduÅÇo o elemento fundador<br />
que sustenta seu valor <strong>de</strong> exibiÅÇo; já a literatura “plena” e o teatro, enquanto arte, teriam na<br />
autenticida<strong>de</strong> a confirmaÅÇo <strong>de</strong> sua autorida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> sua presenÅa histÑrica, com valor <strong>de</strong> culto.<br />
Se por um lado reconhece seu potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratizaÅÇo estàtica, por outro Benjamin<br />
constata que a reproduÅÇo tàcnica torna sem sentido a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>: como diferenciar<br />
o original da cÑpia se o que a tàcnica proporciona à a re-produÅÇo e nÇo a falsificaÅÇo? Para o<br />
autor, a obra reproduzida, multiplicada em cÑpias, nÇo tem “a ënica apariÅÇo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong><br />
longÉnqua, por mais prÑxima que ela esteja” 139 : sem aura, ela se imporia como uma forma<br />
original <strong>de</strong> arte, fora do conceito tradicional <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte; e sem vestÉgios <strong>de</strong> sua presenÅa<br />
histÑrica, transformaria o evento produzido apenas uma vez em fenòmeno <strong>de</strong> massas.<br />
Descolada do “hic et nunc” do original, a reproduÅÇo tàcnica conquistaria in<strong>de</strong>pendÖncia e se<br />
aproximaria do pëblico, indo buscá-lo em casa, e abrindo mÇo da reverÖncia exigida pela obra<br />
<strong>de</strong> arte tradicional. O problema nÇo estaria na infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> com relaÅÇo ao conteëdo da obra<br />
“original” (“Po<strong>de</strong> ser que as novas condiÅâes assim criadas pelas tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo, em<br />
paralelo, <strong>de</strong>ixem intacto o conteëdo da obra <strong>de</strong> arte” 140 ). De acordo com Benjamin, no i<strong>de</strong>ário<br />
tradicional, a falta da “unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua presenÅa no prÑprio local on<strong>de</strong> se encontra” (do “hic et<br />
nunc”) torna a obra <strong>de</strong> reproduÅÇo vulnerável justamente naquilo que lhe confere autorida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> arte: a autenticida<strong>de</strong>.<br />
O que caracteriza a autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma coisa à tudo aquilo que ela contàm e à<br />
originalmente transmissÉvel, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua duraÅÇo material atà seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> testemunho<br />
histÑrico. Como este prÑprio testemunho baseia-se naquela duraÅÇo, na hipÑtese da<br />
reproduÅÇo, on<strong>de</strong> o primeiro elemento (duraÅÇo) escapa aos homens, o segundo ― o<br />
testemunho histÑrico da coisa ― fica i<strong>de</strong>nticamente abalado. Nada <strong>de</strong>mais,<br />
certamente, mas o que fica assim abalado à a prÑpria autorida<strong>de</strong> da coisa. 141<br />
Ao associar-se a uma realida<strong>de</strong> fugidia que po<strong>de</strong> se reproduzir in<strong>de</strong>finidamente, a<br />
reproduÅÇo tàcnica per<strong>de</strong>ria, assim, sua unida<strong>de</strong> e duraÅÇo. Per<strong>de</strong>ria, por conseguinte, seu<br />
valor <strong>de</strong> culto, resultante <strong>de</strong> sua posiÅÇo inatingÉvel enquanto imagem. Mas, ganharia,<br />
entretanto, uma dimensÇo social: ao possibilitar a multiplicaÅÇo <strong>de</strong> si mesma, permite a<br />
139 BENJAMIN, 1980, p. 9.<br />
140 Ibi<strong>de</strong>m, p. 7.<br />
141 Ibi<strong>de</strong>m., p. 8.<br />
77
<strong>de</strong>mocratizaÅÇo <strong>de</strong> acesso ao seu conteëdo ou como diz Umberto Eco, “o acesso das classes<br />
subalternas ä fruiÅÇo dos bens culturais” 142 .<br />
O fenòmeno, segundo Eco, produziria a estandardizaÅÇo da percepÅÇo: “O alinhamento<br />
da realida<strong>de</strong> pelas massas, o alinhamento conexo das massas pela realida<strong>de</strong>, constituem um<br />
processo <strong>de</strong> alcance in<strong>de</strong>finido, tanto para o pensamento, como para a intuiÅÇo” 143 . De acordo<br />
com Benjamin, diante <strong>de</strong> uma reproduÅÇo tàcnica, nÇo se à mais <strong>de</strong>safiado pelo enigma da<br />
I<strong>de</strong>ia, pelo espÉrito do “Belo”; a funÅÇo artÉstica da obra parece mero acessÑrio ä sua condiÅÇo<br />
<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> exibÉvel. Enquadrada tradicionalmente a partir <strong>de</strong> sua funÅÇo alegÑrica e<br />
simbÑlica e <strong>de</strong> seu caráter imanente (“A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-<br />
nos outra coisa” 144 ), a obra <strong>de</strong> arte nÇo fala <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> dada. Segundo Martin Hei<strong>de</strong>gger,<br />
A verda<strong>de</strong>, como clareira e ocultaÅÇo do ente, acontece na medida em que se poetiza.<br />
Toda arte, enquanto <strong>de</strong>ixar-acontecer da adveniÖncia da verda<strong>de</strong> do ente como tal, à<br />
na sua essência Poesia. A essÖncia da arte, na qual repousam simultaneamente a obra<br />
<strong>de</strong> arte e o artista, à o pòr-em-obra-da-verda<strong>de</strong>. A partir da essÖncia poetante da arte<br />
acontece que, no meio do ente, ela erige um espaÅo aberto, em cuja abertura tudo se<br />
mostra <strong>de</strong> outro modo que nÇo o habitual. 145 [grifos do autor]<br />
Neste espaÅo aberto pela obra <strong>de</strong> arte, o ser, <strong>de</strong> acordo com o autor, vÖ-se diante <strong>de</strong> um<br />
“abismo intranquilizante” que subverte o famÉliar, faz a histÑria comeÅar <strong>de</strong> novo e <strong>de</strong>sperta o<br />
povo para a sua tarefa. ï neste “pòr-em-obra-da-verda<strong>de</strong>” que o “Belo” se instauraria, um<br />
belo cujo valor estaria mais no <strong>de</strong>spertar que promove do que no que sua essÖncia possa ter <strong>de</strong><br />
sagrado. DaÉ a importência social da arte: segundo Benjamin, quando a obra <strong>de</strong> arte per<strong>de</strong> sua<br />
aura, seu valor <strong>de</strong> culto, compensa essa ruptura do elo remoto com a religiÇo com a<br />
capacida<strong>de</strong> emancipatÑria que a reprodutibilida<strong>de</strong> proporciona. A tradicional discussÇo sobre<br />
a arte aurática e a arte “menor” se funda na constataÅÇo <strong>de</strong> Benjamin <strong>de</strong> que “Na medida em<br />
que diminui a significaÅÇo social <strong>de</strong> uma arte, assiste-se, no pëblico, a um divÑrcio crescente<br />
entre o espÉrito crÉtico e o sentimento <strong>de</strong> fruiÅÇo” 146 . Para ele, nas obras <strong>de</strong> reproduÅÇo, o<br />
pëblico, “pela virtualida<strong>de</strong> imediata <strong>de</strong> seu caráter coletivo”, reage maciÅamente ao que à<br />
exibido, nÇo separando a crÉtica da fruiÅÇo. Atà porque, na velocida<strong>de</strong> imposta pela tàcnica,<br />
nÇo há tempo para a contemplaÅÇo: as imagens se suce<strong>de</strong>m <strong>de</strong> tal modo que o olho, na<br />
tentativa <strong>de</strong> fixá-las, vÖ-se atropelado pela sequÖncia seguinte.<br />
142 ECO, 1998, p. 11.<br />
143 Ibi<strong>de</strong>m, p. 10.<br />
144 HEIDEGGER, 1977, p.13.<br />
145 Ibi<strong>de</strong>m, p. 58.<br />
146 BENJAMIN, 1980, p. 21.<br />
78
Por mais que as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger e Benjamin sobre o caráter sublime da obra <strong>de</strong> arte<br />
tenham se consagrado como referÖncia mo<strong>de</strong>lar, nÇo se po<strong>de</strong> ignorar que elas foram<br />
concebidas num momento em que as entÇo novas tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo inauguravam<br />
ameaÅas aos conceitos fundadores da arte, como autenticida<strong>de</strong> e originalida<strong>de</strong>, cristalizados<br />
durante sàculos pelos “espÉritos elevados” guardiâes do cênone. (O prÑprio Benjamin, mais<br />
tar<strong>de</strong>, em suas Passagens 147 , iria reavaliar suas observaÅâes sobre a reproduÅÇo tàcnica,<br />
obtidas com base no uso que o fascismo fez do cinema, para incorporar a dimensÇo<br />
mercadoria.) Nesse sentido, à preciso contextualizar o conceito <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte e repensá-lo a<br />
partir do nosso tempo, atualizando-o. NÇo estamos, como aqueles autores, diante do advento<br />
do cinema falado, surpresos com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> registrar, por meio da tàcnica, fragmentos<br />
da realida<strong>de</strong>, e assustados com o “autoritarismo” da imagem. Nem mesmo percebemos a<br />
reproduÅÇo como uma novida<strong>de</strong>, uma interposiÅÇo ameaÅadora entre o autÖntico e o exibido.<br />
Vivemos no mundo da tàcnica, experimentamos a realida<strong>de</strong> atravàs <strong>de</strong> intermediaÅâes<br />
midiáticas, numa apreensÇo inevitavelmente virtual do real. Os mais jovens sequer seriam<br />
capazes <strong>de</strong> conceber a vida sem tais aparatos. A massa nem mesmo se dá conta <strong>de</strong> que à por<br />
meio da tàcnica que o real se dá a conhecer. Como diz Huyssen, se nos anos 1920, “as<br />
tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo punham em xeque a tradiÅÇo cultural burguesa; hoje elas confirmam o<br />
mito do progresso tecnolÑgico em todos os nÉveis” 148 . Por outro lado, os intelectuais alertam<br />
para o fato <strong>de</strong> que tudo sÇo versâes, relatos mediados por outrem. De tal forma nosso tempo<br />
se ren<strong>de</strong>u äs reproduÅâes tàcnicas que atà mesmo o real se dá ao capricho <strong>de</strong> se fazer<br />
acontecer a tempo <strong>de</strong> ser transmitido em horário nobre.<br />
Neste tempo <strong>de</strong> imagens vertiginosas, <strong>de</strong> performances e instalaÅâes que se querem<br />
instantêneas e fugazes, <strong>de</strong> apreensÇo do real pelo virtual (ou da justaposiÅÇo <strong>de</strong> mëltiplas<br />
versâes do real), <strong>de</strong> <strong>de</strong>scràdito do original em favor da versÇo patrocinada, <strong>de</strong> clonagens e<br />
manipulaÅÇo da matriz genàtica, <strong>de</strong> fruiÅÇo e consumo, <strong>de</strong> niilismo e hedonismo ― nesse<br />
tempo <strong>de</strong> “simulacros e simulaÅÇo”, temos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar as alteraÅâes inevitavelmente<br />
impostas pela tàcnica em nossa percepÅÇo e constatar que nÇo mais se sustenta a noÅÇo <strong>de</strong><br />
autenticida<strong>de</strong> sobre a qual se fundou o conceito tradicional <strong>de</strong> arte. Brecht, <strong>de</strong>fensor da arte<br />
transformadora, antecipando o enfraquecimento das forÅas <strong>de</strong> resistÖncia artÉstica diante das<br />
pressâes do mercado do espetáculo, chegou mesmo a sugerir a a<strong>de</strong>quaÅÇo do conceito aos<br />
novos paradigmas como forma <strong>de</strong> qualificar uma outra realida<strong>de</strong> a partir da indëstria cultural<br />
e preservar a integrida<strong>de</strong> da arte tradicional:<br />
147 BENJAMIN, 2007.<br />
148 HUYSSEN, 1996, p. 113.<br />
79
Des<strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong> arte se torna mercadoria, essa noÅÇo (<strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte) já nÇo se<br />
lhe po<strong>de</strong> mais ser aplicada; assim sendo, <strong>de</strong>vemos, com prudÖncia e precauÅÇo ― mas<br />
sem receio ― renunciar ä noÅÇo <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte, caso <strong>de</strong>sejemos preservar sua funÅÇo<br />
<strong>de</strong>ntro da prÑpria coisa como tal <strong>de</strong>signada. [...] essa virada nÇo à gratuita, ela conduz<br />
a uma transformaÅÇo fundamental do objeto e que apaga seu passado a tal ponto, que,<br />
caso a nova noÅÇo <strong>de</strong>va reencontrar seu uso ― e por que nÇo? ― nÇo evocará mais<br />
qualquer das lembranÅas vinculadas ä sua antiga significaÅÇo. 149<br />
Ainda havia, na constataÅÇo do dramaturgo, a certeza <strong>de</strong> que, no seio da indëstria<br />
cultural, a arte se tornaria mercadoria. Havia tambàm a preocupaÅÇo <strong>de</strong> que “as novas tàcnicas<br />
artÉsticas levariam a uma eliminaÅÇo da cultura burguesa” 150 .<br />
5.2 A ARTE NA PñS-MODERNIDADE<br />
Fruto <strong>de</strong> outro tempo, Ranciöre discorda da tese benjaminiana: “As artes mecênicas<br />
induziriam, enquanto artes mecânicas [grifo do autor], uma modificaÅÇo <strong>de</strong> paradigma<br />
artÉstico e uma nova relaÅÇo com seus temas” 151 . Ele sugere que se tome a questÇo ao inverso,<br />
pois à o fato <strong>de</strong> o tema do anònimo tornar-se arte e ser <strong>de</strong>positário do belo no regime estàtico<br />
das artes que faz <strong>de</strong> sua reproduÅÇo tàcnica uma arte:<br />
Para que as artes mecênicas possam dar visibilida<strong>de</strong> äs massas ou, antes, ao indivÉduo<br />
anònimo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto à, <strong>de</strong>vem primeiro ser<br />
praticadas e reconhecidas como outra coisa, e nÇo como tàcnicas <strong>de</strong> reproduÅÇo e<br />
difusÇo. 152<br />
Para que um dado modo <strong>de</strong> fazer tàcnico ─ um uso das palavras ou da cêmera ─ seja<br />
qualificado como pertencendo ä arte, à preciso primeiramente que seu tema o seja. [...]<br />
A revoluÅÇo tàcnica vem <strong>de</strong>pois da revoluÅÇo estàtica. Mas a revoluÅÇo estàtica à<br />
antes <strong>de</strong> tudo a glÑria do qualquer um [grifo do autor] ─ que à pictural e literária,<br />
antes <strong>de</strong> ser fotográfica ou cinematográfica. 153<br />
Ranciöre, entÇo, reconfigura a <strong>de</strong>finiÅÇo <strong>de</strong> arte no bojo da revoluÅÇo estàtica que trocou<br />
a escala <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za da tradiÅÇo representativa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s personagens e acontecimentos<br />
pelos subterrêneos da vida ordinária protagonizada pelo anònimo perdido nas massas, pelas<br />
“testemunhas mudas” da “nova histÑria” 154 . Mais que a autenticida<strong>de</strong> e a originalida<strong>de</strong>, a arte<br />
na pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> se funda na escolha do banal como tema, esse banal que se torna “belo<br />
149 BRECHT apud. BENJAMIN, 1980, p. 12.<br />
150 HUYSSEN, 1996, p. 115.<br />
151 RANCI†RE, 2005, p. 45.<br />
152 Ibi<strong>de</strong>m, p. 46.<br />
153 Ibi<strong>de</strong>m, p. 47-48.<br />
154 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 59-60.<br />
80
como rastro do verda<strong>de</strong>iro” 155 . Na literatura, segundo o filÑsofo francÖs, a nova<br />
ficcionalida<strong>de</strong>, a nova maneira <strong>de</strong> contar histÑrias <strong>de</strong>ixa para trás o enca<strong>de</strong>amento causal<br />
aristotàlico das aÅâes para investir na or<strong>de</strong>naÅÇo <strong>de</strong> signos que dÇo sentido “ao universo<br />
‘empÉrico’ das aÅâes obscuras e dos objetos banais” 156 . Ranciöre explica:<br />
A soberania estàtica da literatura nÇo à, portanto, o reino da ficÅÇo. ï, ao contrário, um<br />
regime <strong>de</strong> indistinÅÇo ten<strong>de</strong>ncial entre a razÇo das or<strong>de</strong>naÅâes <strong>de</strong>scritivas e narrativas<br />
da ficÅÇo e as or<strong>de</strong>naÅâes da <strong>de</strong>scriÅÇo e interpretaÅÇo dos fenòmenos do mundo<br />
histÑrico e social. 157<br />
A revoluÅÇo estàtica transforma radicalmente as coisas: o testemunho e a ficÅÇo<br />
pertencem a um mesmo regime <strong>de</strong> sentido. De um lado, o “empÉrico” traz as marcas<br />
do verda<strong>de</strong>iro sob a forma <strong>de</strong> rastros e vestÉgios. “O que suce<strong>de</strong>u” remete pois<br />
diretamente a um regime <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, um regime <strong>de</strong> mostraÅÇo [grifo do tradutor, do<br />
neologismo francÉs “monstration”] <strong>de</strong> sua prÑpria necessida<strong>de</strong>. Do outro, “o que<br />
po<strong>de</strong>ria suce<strong>de</strong>r” nÇo tem mais a forma autònoma e linear da or<strong>de</strong>naÅÇo <strong>de</strong> aÅâes. A<br />
“histÑria” poàtica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> entÇo, articula o realismo que nos mostra os rastos poàticos<br />
inscritos na realida<strong>de</strong> mesma e o artificialismo que monta máquinas <strong>de</strong> compreensÇo<br />
complexas. 158<br />
Desobrigada <strong>de</strong> toda e qualquer regra e hierarquia (<strong>de</strong> temas, gÖneros e manifestaÅâes<br />
artÉsticas), a arte no que Ranciöre chama <strong>de</strong> regime estàtico das artes à singular e nÇo se<br />
submete a nenhum critàrio pragmático <strong>de</strong>ssa singularida<strong>de</strong>. Regras e hierarquias sÇo<br />
condicionantes do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> arte tradicional, esta arte que se impâe como revelaÅÇo, que<br />
busca uma Beleza I<strong>de</strong>alizada, que à dona <strong>de</strong> uma essÖncia invariável, que transcen<strong>de</strong> as<br />
transformaÅâes histÑricas e as diferenÅas culturais. Regras e hierarquias sÇo frutos <strong>de</strong> um<br />
mo<strong>de</strong>lo autoritário e elitista <strong>de</strong> arte que serviu a um dado momento histÑrico em que o<br />
impàrio dos gran<strong>de</strong>s era a dominante. Segundo Nàstor GarcÉa Canclini,<br />
Essa universalida<strong>de</strong> abstrata nunca existiu na realida<strong>de</strong> e sÑ alcanÅou certa vigÖncia,<br />
nos ëltimos sàculos, pela imposiÅÇo dos padrâes estàticos europeus e norteamericanos<br />
aos paÉses <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Junto com a dominaÅÇo econòmica, os paÉses<br />
imperialistas impuseram sua concepÅÇo estàtica a quase todas as culturas<br />
contemporêneas [...]. 159<br />
Para o autor, nÇo faz sentido cultuar a originalida<strong>de</strong> e a apariÅÇo ënica na era das<br />
reproduÅâes tàcnicas:<br />
155 RANCI†RE, 2005, p. 50.<br />
156 Ibi<strong>de</strong>m, p. 55.<br />
157 RANCI†RE , loc. cit.<br />
158 Ibi<strong>de</strong>m, p. 57.<br />
159 CANCLINI, 1980, p. 8.<br />
Os inumeráveis procedimentos para a reproduÅÇo maciÅa das mensagens (fotografia,<br />
cinema, televisÇo, cassetes, gravadores, fotocopiadoras, vi<strong>de</strong>otapes, etc.) converteram<br />
num capricho luxuoso e anacrònico a exigÖncia <strong>de</strong> que as obras <strong>de</strong> arte sejam ënicas e<br />
81
irrepetÉveis. O acesso maciÅo ao consumo da arte, possÉvel graÅas aos novos meios <strong>de</strong><br />
comunicaÅÇo, e a extensÇo da criativida<strong>de</strong> estàtica ao <strong>de</strong>senho, ä moda, ä vida<br />
cotidiana tornam insustentável a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> sua autonomia e da genialida<strong>de</strong><br />
excepcional dos criadores. 160<br />
Assim, entre o “sublime” da arte tradicional e o “banal” do regime estàtico das artes,<br />
Canclini toma o fenòmeno artÉstico como manifestaÅÇo <strong>de</strong> um processo social e<br />
comunicacional on<strong>de</strong> o autor, a obra, os difusores e o pëblico compâem um todo que se<br />
articula segundo as condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo e recepÅÇo da obra. Segundo o autor, nÇo se po<strong>de</strong><br />
separar as obras das forÅas econòmicas em que sÇo geradas, ignorando que elas sÇo<br />
“produzidas, distribuÉdas e vendidas”. Mais que representar as relaÅâes <strong>de</strong> produÅÇo, a arte as<br />
realiza: “o modo <strong>de</strong> representaÅÇo, <strong>de</strong> figuraÅÇo, <strong>de</strong> composiÅÇo, <strong>de</strong> filmagen, como tambàm o<br />
modo <strong>de</strong> percepÅÇo, sÇo consequÖncia do modo <strong>de</strong> produÅÇo da arte e variam com ela” 161 . Por<br />
forÅa <strong>de</strong> sua dimensÇo comunicacional, Canclini lembra que “Uma obra <strong>de</strong> arte nÇo chega a<br />
sÖ-lo se nÇo à recebida” ─ o que faz do consumo uma parte integrante do fato artÉstico:<br />
“modifica seu sentido segundo a classe social e a formaÅÇo cultural dos espectadores [...]” 162 .<br />
Como tudo o mais, assegura ele, no sistema capitalista, as obras <strong>de</strong> arte tambàm sÇo<br />
mercadorias 163 ! E enquanto tal, diz o autor, estÇo segmentadas em classes, segundo suas<br />
condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo e recepÅÇo ─ arte <strong>de</strong> elite, arte para as massas e arte popular ─ e sÇo<br />
julgadas com diferentes critàrios <strong>de</strong> valor, já que expressam estàticas separadas.<br />
Entre a relaÅÇo <strong>de</strong> reverÖncia cultivada pela alta arte e a <strong>de</strong> consumo, prevista para as<br />
obras da indëstria cultural, há que se consi<strong>de</strong>rar a nova (porque histÑrica) relaÅÇo do pëblico<br />
com a arte. Tomando a experiÖncia estàtica como algo que se dá no horizonte <strong>de</strong><br />
representaÅâes do receptor, a obra <strong>de</strong> arte nÇo mais, como se queria antes, encerra uma<br />
essÖncia, um discurso imanente a ela, presidido por conceitos e juÉzos pràvios, autònomos,<br />
viciados pelo gosto canònico. Ao contrário: como diz o teÑrico da literatura Luiz Costa<br />
Lima 164 a propÑsito da arte mimàtica, ela à “o discurso <strong>de</strong> um significante errante, em busca<br />
dos significados que o leitor lhe trará”, significados sempre transitÑrios, “cuja mutabilida<strong>de</strong><br />
está em correspondÖncia com o tempo histÑrico do receptor”. Assim, explica Wolfgang Iser,<br />
“A significaÅÇo da obra, entÇo, nÇo se encontra no significado selado <strong>de</strong>ntro do texto, mas no<br />
fato <strong>de</strong> que este significado revela o que estivera selado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nÑs” 165 . Ao recuperar o<br />
160 CANCLINI, 1980, p. 9.<br />
161 Ibi<strong>de</strong>m, p. 23.<br />
162 Ibi<strong>de</strong>m, p. 39.<br />
163 Ibi<strong>de</strong>m, p. 24.<br />
164 LIMA, 1981, p. 232.<br />
165 ISER apud LIMA, 1981, p. 231.<br />
82
leitor e a histÑria como partes integrantes do poàtico, e ao libertar a experiÖncia estàtica do<br />
juÉzo estàtico, o receptor, diante da arte, reage: ou se i<strong>de</strong>ntifica com a obra (e seu estoque <strong>de</strong><br />
saber pràvio nÇo à questionado, mas fruÉdo) ou sente-se agredido pela obra, o que po<strong>de</strong> abrir-<br />
lhe a perspectiva <strong>de</strong> uma segunda leitura na qual po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>safiado a repensar e modificar<br />
seu prà-saber (encontrar “o modo <strong>de</strong> absorver a agressÇo e <strong>de</strong> usufruir esteticamente seu<br />
‘contestador’”) 166 . Esta seria a nova dimensÇo da arte na pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: para alàm da mera<br />
fruiÅÇo, a arte se abriria diante do receptor em possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> modificaÅÇo do seu saber<br />
pràvio, dos valores arraigados pelo hábito cotidiano.<br />
Neste contexto, há que se consi<strong>de</strong>rar o papel da tecnologia e <strong>de</strong> seus instrumentos <strong>de</strong><br />
reproduÅÇo do real na configuraÅÇo da nova arte. Se a obra <strong>de</strong> arte nÇo se esgota em si mesma<br />
(pelo contrário: a produÅÇo receptiva do receptor supre os vazios daquilo que ele experimenta<br />
esteticamente); e se a experiÖncia historicizada do pëblico está irremediavelmente permeada<br />
pela tecnologia, entÇo havemos <strong>de</strong> concordar com Huyssen sobre o papel crucial <strong>de</strong>sta (e da<br />
experiÖncia <strong>de</strong> vida tecnologizada) sobre a arte: segundo o autor, a tecnologia, atravàs da<br />
indëstria cultural 167 , conseguiu muito mais do que transformar “substancialmente o cotidiano<br />
no sàculo XX” ─ ela, cuja mecanicida<strong>de</strong> e reprodutibilida<strong>de</strong> teriam comprometido a<br />
criativida<strong>de</strong> e a autenticida<strong>de</strong>, conseguiu, ironicamente, transformar a arte, propiciando a<br />
“obra <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> vanguarda e sua ruptura radical com a tradiÅÇo” na tentativa <strong>de</strong> “superar a<br />
dicotomia arte/vida e tornar a arte produtiva para a transformaÅÇo do cotidiano” 168 . A<br />
integraÅÇo da arte na práxis da vida, resultado da rejeiÅÇo por parte do pÑs-mo<strong>de</strong>rnismo äs<br />
teorias e práticas do “Gran<strong>de</strong> Divisor” entre alta arte e cultura <strong>de</strong> massa, permitiu ä crÉtica pòr<br />
<strong>de</strong> lado a “ansieda<strong>de</strong> contra a contaminaÅÇo” da cultura popular e consi<strong>de</strong>rar fenòmenos<br />
culturais antes indignos <strong>de</strong> serem tomados como arte. O novo paradigma pÑs-mo<strong>de</strong>rno,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Huyssen, impâe um cenário <strong>de</strong> relaÅâes mëtuas (negociaÅâes constantes) entre o<br />
mo<strong>de</strong>rnismo, a vanguarda e a cultura <strong>de</strong> massa. Neste contexto, a indëstria cultural passaria a<br />
ser vista nÇo mais como mera produtora <strong>de</strong> lixo, como background contra o qual a alta arte<br />
resplan<strong>de</strong>ceria sua glÑria, mas sim como dimensÇo inescapável da realida<strong>de</strong> industrial on<strong>de</strong><br />
nem tudo à mera mercadoria e on<strong>de</strong> atà mesmo o kitsch tem a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se converter<br />
em obra <strong>de</strong> alta qualida<strong>de</strong> 169 . Aliás, o escritor mo<strong>de</strong>rnista austrÉaco Hermann Broch já dizia<br />
em 1955 que nÇo há arte “sem uma pitada <strong>de</strong> kitsch” 170 .<br />
166 LIMA, 1981, p. 204.<br />
167 HUYSSEN, 1996, p. 37.<br />
168 Ibi<strong>de</strong>m, p. 37.<br />
169 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 10-11.<br />
170 BROCH apud LIMA, op. cit., p. 232.<br />
83
ï inegável que o conceito tradicional <strong>de</strong> arte nÇo se aplica ä arte produzida no contexto<br />
da indëstria cultural. Critàrios como autenticida<strong>de</strong>, permanÖncia, e abertura para o novo nÇo<br />
po<strong>de</strong>rÇo ser utilizados na <strong>de</strong>finiÅÇo da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma obra concebida pela lÑgica da<br />
reproduÅÇo, da instantaneida<strong>de</strong> e da a<strong>de</strong>quaÅÇo ä <strong>de</strong>manda. A negaÅÇo do cênone como<br />
referÖncia, no entanto, nÇo eleva qualquer produto da indëstria cultural ä condiÅÇo <strong>de</strong> arte. No<br />
novo paradigma pÑs-mo<strong>de</strong>rno, o belo po<strong>de</strong> estar no banal, na repetiÅÇo, na performance fugaz,<br />
no pastiche, na intervenÅÇo sobre linguagens prà-existentes, na reciclagem da estàtica, na<br />
histÑria do anònimo. O sublime e a revoluÅÇo dÇo lugar ao comum da vida diária e ä<br />
transformaÅÇo do cotidiano.<br />
5.3 MAIS QUE MERCADORIA<br />
Na cartilha dos tradicionais crÉticos da cultura, a expressÇo literatura “prête-à-porter”<br />
revela a con<strong>de</strong>naÅÇo da telenovela ao limbo da subcultura, da “arte <strong>de</strong> supermercado” 171 .<br />
Baseada em critàrios “qualitativos” que emergem da Gran<strong>de</strong> DivisÇo entre a alta arte e a<br />
cultura <strong>de</strong> massa, a tradicional distinÅÇo entre literatura e telenovela comeÅou a per<strong>de</strong>r o<br />
discurso com a emergÖncia do Pop, na meta<strong>de</strong> dos anos 1960, embora ainda inspire muitos<br />
crÉticos. Tal distinÅÇo traduz uma àpoca em que a experiÖncia da arte e da cultura exigia<br />
tempo, atenÅÇo e concentraÅÇo <strong>de</strong> um pëblico disposto a reverenciar o “Belo” com olhar<br />
contemplativo e solitário em museus concebidos como templos sagrados, espaÅos educativos<br />
e <strong>de</strong> memÑria. Ainda nÇo vigoravam com a volëpia <strong>de</strong> hoje o universo do consumo, a<br />
ambiÖncia mediatizada e a estàtica do espetáculo; e o pëblico nÇo exibia seu olhar distraÉdo <strong>de</strong><br />
consumidor. Os museus ainda nÇo tinham a<strong>de</strong>rido ä estàtica dos shopping centers, ainda nÇo<br />
tinham se convertido, como diz Huyssen, “em um lugar <strong>de</strong> uma mise em scène espetacular e<br />
<strong>de</strong> uma exuberência operÉstica” 172 . Segundo o autor, a Pop Art secularizaria a arte, fazendo-a<br />
per<strong>de</strong>r seu valor <strong>de</strong> culto; libertaria a arte “do tàdio monumental do Informel e do<br />
Expressionismo Abstrato” e romperia “os limites da torre <strong>de</strong> marfim <strong>de</strong>ntro dos quais a arte<br />
tinha rodado em cÉrculos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a dàcada <strong>de</strong> 50” 173 .<br />
171 HUYSSEN, 1996, p. 94.<br />
172 Ibi<strong>de</strong>m, p. 223.<br />
173 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 96-97.<br />
O “realismo” do Pop, sua proximida<strong>de</strong> aos objetos, imagens e reproduÅâes da vida<br />
diária estimulavam um novo <strong>de</strong>bate sobre a relaÅÇo entre arte e vida, imagem e<br />
realida<strong>de</strong> [...]. Des<strong>de</strong> seu inÉcio, o Pop proclamou que eliminaria a histÑrica separaÅÇo<br />
84
entre o estàtico e o nÇo-estàtico, juntando e reconciliando, portanto, a arte e a<br />
realida<strong>de</strong>. [...] Na i<strong>de</strong>ologia burguesa, a obra <strong>de</strong> arte ─ apesar <strong>de</strong> sua quase completa<br />
distência do ritual ─ ainda funcionava como uma espàcie <strong>de</strong> substituto da religiÇo;<br />
com o Pop, no entanto, a arte se tornou profana, concreta e pronta para a recepÅÇo <strong>de</strong><br />
massa. 174<br />
Neste sentido, ao tornar a arte popular, ao substituir o conceito burguÖs <strong>de</strong> “Belo” pela<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Andy Warhol <strong>de</strong> que “tudo à bonito”, ao valorizar as trivialida<strong>de</strong>s da vida diária e<br />
exaltar os princÉpios da reproduÅÇo por sua funÅÇo <strong>de</strong>mocratizante, a Por Art nÇo sÑ <strong>de</strong>struiu a<br />
aura da obra <strong>de</strong> arte (<strong>de</strong>sprezando o que entÇo se acreditava ser a fonte <strong>de</strong> sua autonomia,<br />
autenticida<strong>de</strong> e originalida<strong>de</strong>) e rompeu a histÑrica separaÅÇo entre o estàtico e o nÇo-estàtico,<br />
como tambàm inscreveu as manifestaÅâes artÉsticas na realida<strong>de</strong> da indëstria cultural,<br />
libertando a arte do constrangimento <strong>de</strong> suas condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo e distribuiÅÇo em uma<br />
economia <strong>de</strong> mercado. Se a <strong>de</strong>struiÅÇo da aura e o fim da distinÅÇo entre estàtico e nÇo-<br />
estàtico indicaram um caminho <strong>de</strong> aproximaÅÇo entre a “alta” e a “baixa” artes, a aceitaÅÇo da<br />
indëstria cultural como mediadora entre a produÅÇo e a recepÅÇo artÉstica expòs o caráter<br />
mercantilista da arte sem, no entanto, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a reduÅÇo da arte ä mera mercadoria. Huyssen<br />
adverte para o equÉvoco <strong>de</strong>, ao circunscrever a arte ä esfera da indëstria cultural, con<strong>de</strong>ná-la ä<br />
manipulaÅÇo total do capital, reduzindo-a ao seu valor <strong>de</strong> troca, como se seu conteëdo nÇo<br />
tivesse valor, como se, necessariamente, o que à produzido se igualasse äs relaÅâes <strong>de</strong><br />
produÅÇo e o que à distribuÉdo se igualasse ao sistema <strong>de</strong> distribuiÅÇo. ï preciso nÇo<br />
subestimar a natureza dialàtica da arte!, alerta o autor.<br />
Mesmo sob as condiÅâes dadas pela indëstria cultural capitalista, e seus mecanismos<br />
<strong>de</strong> distribuiÅÇo, a arte em ëltima instência po<strong>de</strong> abrir avenidas emancipatÑrias, se nÇo<br />
por outra coisa, porque se acredita em sua autonomia e falta <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> prática. A<br />
tese da total sujeiÅÇo da arte ao mercado tambàm subestima as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
emancipaÅÇo inerentes ao consumo; em geral, o consumo satisfaz necessida<strong>de</strong>s, e<br />
mesmo que as necessida<strong>de</strong>s humanas possam ser distorcidas a um nÉvel absurdo, toda<br />
necessida<strong>de</strong> contàm um menor ou maior nÉvel <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>. 175<br />
No rastro <strong>de</strong>ixado pela banalizaÅÇo do belo e pela <strong>de</strong>fesa da eliminaÅÇo entre a alta e a<br />
baixa artes, a Pop Art abriu pelo menos uma importante “avenida emancipatÑria”: mais que<br />
propor o cotidiano como foco do imaginário e chamar a atenÅÇo para o “imaginário do<br />
cotidiano”, o movimento inspirou os artistas a impregnar <strong>de</strong> estàtica todas as esferas da<br />
produÅÇo humana e a fazer da ativida<strong>de</strong> estàtica um instrumento <strong>de</strong> mudanÅa do cotidiano.<br />
Evocar o “sentido prático” da arte ao invàs <strong>de</strong> evocar o sublime po<strong>de</strong> permitir ao artista ver,<br />
174 HUYSSEN, 1996, p. 97.<br />
175 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 108-109.<br />
85
sob as “necessida<strong>de</strong>s pela meta<strong>de</strong>” criadas pelo consumo, um rastro <strong>de</strong> sonho e <strong>de</strong> utopia que<br />
fazem <strong>de</strong>las “necessida<strong>de</strong>s progressistas” 176 .<br />
5.4 A ARTE DA TELENOVELA<br />
Dadas suas condiÅâes <strong>de</strong> produÅÇo, sua submissÇo ä lÑgica do mercado, sua rendiÅÇo ao<br />
gosto da audiÖncia, sua efÖmera duraÅÇo e sua fruiÅÇo como espetáculo, a dramaturgia<br />
televisiva seria <strong>de</strong>scrita por Canclini como arte para as massas. Embora seus autores muitas<br />
vezes sejam egressos da literatura, ou mesmo exilados do teatro, os textos produzidos para<br />
exibiÅÇo num veÉculo <strong>de</strong> massa como a televisÇo, escapam, por sua prÑpria natureza, da noÅÇo<br />
tradicional <strong>de</strong> arte. Entretanto apresentam, por outro lado, <strong>de</strong>masiada qualida<strong>de</strong> literária para<br />
serem jogados no limbo como refugo da cultura industrializada.<br />
Cria das narrativas midiáticas disseminadas para gran<strong>de</strong>s plateias por intermàdio <strong>de</strong><br />
aparatos tàcnicos, a telenovela herdou a maldiÅÇo do berÅo em que foi acalentada: renegada<br />
pela literatura “plena”, vaga entre a indiferenÅa da crÉtica e o aplauso da audiÖncia, con<strong>de</strong>nada<br />
ä condiÅÇo <strong>de</strong> literatura “prête-à-porter”. De sua inserÅÇo original como folhetim impresso no<br />
rodapà das páginas <strong>de</strong> jornal e <strong>de</strong> sua posterior transmissÇo oral em ondas <strong>de</strong> rádio, a novela<br />
televisiva trouxe a linguagem simples, <strong>de</strong> fácil compreensÇo, capaz <strong>de</strong> ser captada por todo<br />
tipo <strong>de</strong> plateia, letrada ou nÇo. Da sonorida<strong>de</strong> das palavras interpretadas ao vivo para serem<br />
apenas ouvidas, ficou a constataÅÇo <strong>de</strong> que a instantaneida<strong>de</strong> da transmissÇo impunha a<br />
impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma segunda “leitura”: o texto <strong>de</strong>via ser entendido <strong>de</strong> uma vez por todas.<br />
De sua origem como “programa patrocinado”, manteve o compromisso <strong>de</strong> agradar o pëblico e<br />
acatar os interesses do mercado. De sua introduÅÇo no mundo mágico das imagens<br />
eletrònicas, com seus recursos <strong>de</strong> enquadramento, ediÅÇo e efeitos especiais, a telenovela<br />
extraiu sua vocaÅÇo para o espetáculo. Do alcance <strong>de</strong> sua popularida<strong>de</strong>, veio a missÇo ainda<br />
que velada <strong>de</strong> funcionar como aliada do governo na formaÅÇo <strong>de</strong> uma consciÖncia nacional e<br />
na integraÅÇo do povo brasileiro em torno do projeto <strong>de</strong> naÅÇo concebido durante o regime<br />
militar. E ainda, dialeticamente: <strong>de</strong> obra muitas vezes nascida do refëgio <strong>de</strong> dramaturgos <strong>de</strong><br />
esquerda con<strong>de</strong>nados ao silÖncio pela ditadura, ficou a oportunida<strong>de</strong> imperdÉvel <strong>de</strong> oferecer ao<br />
povo a crÉtica social, polÉtica e <strong>de</strong> costumes; um espaÅo para levantar questâes <strong>de</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong> social e <strong>de</strong> cidadania, elevando a estatura polÉtica das telenovelas. Na<br />
conjunÅÇo <strong>de</strong> todos estes “dons”, a teledramaturgia, ao longo <strong>de</strong> sua existÖncia, configurou-se<br />
176 HUYSSEN, 1996, pp. 116-118.<br />
86
como o mais importante produto da indëstria cultural brasileira ― e tambàm o mais lucrativo.<br />
Exatamente pelo mesmo motivo tem tido seu passaporte negado para o paraÉso da arte.<br />
A julgar pela <strong>de</strong>manda (esse critàrio da estàtica <strong>de</strong> mercado), as telenovelas tÖm lugar<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na prateleira <strong>de</strong> “gÖneros <strong>de</strong> primeira qualida<strong>de</strong>” <strong>de</strong>ste supermercado em que se<br />
tornou a cultura na baixa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ali, a mÉdia lhe ren<strong>de</strong> homenagens, os festivais lhe<br />
<strong>de</strong>dicam prÖmios, os anunciantes reforÅam seus patrocÉnios. Mas seria justo para com a<br />
teledramaturgia ter sua qualida<strong>de</strong> aferida apenas em termos <strong>de</strong> audiÖncia, <strong>de</strong> nëmeros <strong>de</strong><br />
televisores sintonizados na histÑria narrada?<br />
ï inegável que o altÉssimo Éndice <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> das novelas brasileiras já à por si sÑ<br />
digno <strong>de</strong> louvor. Afinal, uma <strong>de</strong>manda assim tÇo consistente, uma <strong>de</strong>manda que se distribui<br />
entre todas as classes sociais e que consegue aproximar letrados e analfabetos <strong>de</strong>monstra uma<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao gÖnero que nÇo se <strong>de</strong>ixa abalar nem mesmo pela oferta tentadora dos canais <strong>de</strong><br />
televisÇo a cabo. Alguàm dirá que a massa da populaÅÇo brasileira sÑ tem acesso ä tevÖ<br />
aberta, que a questÇo da escolha entÇo nÇo se apresenta, e que a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> äs telenovelas foi<br />
forjada durante os anos em que se negou äs famÉlias brasileiras o conforto e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
zapping proporcionado pelo controle remoto, forÅando o pëblico a se acostumar com o que<br />
lhe oferecia a mais forte emissora <strong>de</strong> tevÖ do paÉs, nÇo por acaso uma emissora que se tornou<br />
referÖncia na produÅÇo <strong>de</strong> novelas. ï verda<strong>de</strong>. Mas, à tambàm verda<strong>de</strong> que as classes <strong>de</strong><br />
maior po<strong>de</strong>r aquisitivo que dispâem <strong>de</strong> acesso aos inëmeros canais a cabo nÇo se <strong>de</strong>ixaram<br />
seduzir pela oferta glamourosa do mundo globalizado nem pela estàtica das produÅâes dos<br />
paÉses <strong>de</strong>senvolvidos. As classes A e B permaneceram fiàis ao folhetim televisivo 177 .<br />
O fato <strong>de</strong> a telenovela ser uma narrativa talhada para a recepÅÇo <strong>de</strong> massa nÇo lhe retira<br />
necessariamente a expressÇo artÉstica. (Nos anos 1960, a Pop Art atraÉa milhares <strong>de</strong> pessoas<br />
para a abertura <strong>de</strong> uma exposiÅÇo, quando na dàcada anterior as exposiÅâes da alta arte eram<br />
eventos exclusivos <strong>de</strong> um pequeno nëmero <strong>de</strong> “experts e compradores” 178 .) Assim, se a<br />
audiÖncia, ou a aprovaÅÇo popular, nÇo po<strong>de</strong> ser tomada isoladamente como prova do valor<br />
artÉstico da telenovela, tambàm nÇo lhe <strong>de</strong>scre<strong>de</strong>ncia para a condiÅÇo <strong>de</strong> arte. Sua<br />
popularida<strong>de</strong> seria uma funÅÇo nÇo da medianida<strong>de</strong> da linguagem ou <strong>de</strong> seu caráter<br />
totalizante, mas sim da riqueza polissÖmica <strong>de</strong> sua narrativa, capaz <strong>de</strong> oferecer aos diferentes<br />
177 Segundo pesquisa do IBOPE realizada no inÉcio <strong>de</strong> 2008, as classes mais altas chegaram mesmo a registrar<br />
um aumento <strong>de</strong> sua preferÖncia pela telenovela: “Cerca <strong>de</strong> 30% dos espectadores <strong>de</strong> Senhora do Destino eram<br />
das classes A e B, 43% da C e 28% <strong>de</strong> D e E. Já Duas Caras teve 35% <strong>de</strong> espectadores das classes A e B, 50%<br />
da classe C e 15% das D e E”. In: “AudiÖncia das novelas da Globo”, disponÉvel em:<br />
.<br />
Acesso em 20 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2009.<br />
178 HUYSSEN, 1996, p. 96.<br />
87
segmentos <strong>de</strong> pëblico uma possibilida<strong>de</strong> singular <strong>de</strong> leitura. Igualmente, o fato <strong>de</strong> ser uma<br />
obra concebida nos mol<strong>de</strong>s da indëstria cultural nÇo faz <strong>de</strong>la uma mercadoria reduzida a seu<br />
valor <strong>de</strong> troca, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> seu conteëdo (o que tambàm nÇo quer dizer que toda<br />
telenovela alcance per se a dimensÇo artÉstica). Alàm disso, o fato <strong>de</strong> ser exposta na tela <strong>de</strong><br />
tevÖ e <strong>de</strong> ter sua recepÅÇo pelo pëblico limitada pela natureza midiática do veÉculo tambàm<br />
nÇo restringe seu potencial artÉstico. Para alàm <strong>de</strong> sua configuraÅÇo enquanto produto, <strong>de</strong> sua<br />
veiculaÅÇo mediatizada e <strong>de</strong> sua popularida<strong>de</strong>, a telenovela po<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r as dominantes<br />
econòmicas <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> produÅÇo, distribuiÅÇo e consumo e alcanÅar a dimensÇo da<br />
obra <strong>de</strong> arte pela riqueza <strong>de</strong> sua narrativida<strong>de</strong>. Deixando para trás a tradicional e ultrapassada<br />
separaÅÇo entre a alta arte e a baixa arte, ela po<strong>de</strong>, pelo po<strong>de</strong>r mimàtico da realida<strong>de</strong> expresso<br />
em seu conteëdo, conquistar a autonomia prÑpria da arte (mesmo sob as condiÅâes dadas pela<br />
indëstria cultural) e ainda, pelo po<strong>de</strong>r transformador do cotidiano expresso na trivialida<strong>de</strong><br />
estàtica, abrir uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emancipaÅÇo artÉstica.<br />
Talvez o potencial artÉstico e emancipatÑrio das telenovelas advenha da combinaÅÇo <strong>de</strong><br />
caracterÉsticas as mais distintas, herdadas da tragàdia aristotàlica, do teatro brechtiano, do<br />
jornalismo, do romantismo, do realismo e do sensacional: a catarse alienante, o distanciamento<br />
revolucionário, o factual, o subjetivo, a reproduÅÇo da vida diária e o fantástico ─ tudo isso<br />
correndo paralelamente em suas mëltiplas dimensâes narrativas, a textual, a imagàtica, a<br />
cÖnica e a sonora. ContribuiÅâes literárias <strong>de</strong> diferentes momentos histÑricos se entrelaÅam ao<br />
sabor do contemporêneo com os fios do real e do ficcional para compor uma narrativa que<br />
resulta, como diz Artur da Távola, em um “espetáculo lÉtero-sonoro-dramático-visual”, um<br />
verda<strong>de</strong>iro mosaico estàtico. Regida pela estàtica contemporênea <strong>de</strong> cada àpoca, a narrativa<br />
polissÖmica da telenovela soube justapor/abandonar/adaptar tais contribuiÅâes <strong>de</strong> modo a<br />
priorizar o catártico no dramalhÇo <strong>de</strong> àpoca da fase inicial do gÖnero televisivo; o drama <strong>de</strong><br />
fundo psicolÑgico, o realismo urbano, a <strong>de</strong>nëncia e a crÉtica social, o <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> temas do<br />
jornalismo (ecologia, reforma agrária) e o realismo fantástico nas tramas que tiveram que<br />
contornar por caminhos distintos os difÉceis anos da ditadura; a parÑdia, a alegoria e o<br />
distanciamento crÉtico nos momentos iniciais da abertura polÉtica; e a combinaÅÇo <strong>de</strong> drama<br />
psicolÑgico, comàdia e realismo, pontuada por campanhas <strong>de</strong> cunho social, na fase mais<br />
recente. Ao longo dos quase 60 anos <strong>de</strong> sua histÑria, a telenovela brasileira soube alimentar-se<br />
da tàcnica e da estàtica <strong>de</strong> seu tempo para atualizar, muitas vezes dialeticamente, os espÉritos<br />
literários que a inspiram.<br />
As fatias <strong>de</strong> ficÅÇo que se enca<strong>de</strong>iam capÉtulo a capÉtulo diante da audiÖncia atravàs da<br />
tela da tevÖ recriam a arte milenar <strong>de</strong> contar histÑrias a partir das tecnologias da indëstria<br />
88
cultural que tanto favorecem a produção e a recriação ficcional. Pela narrativida<strong>de</strong> das<br />
telenovelas, a imaginação, a emoção e a produção <strong>de</strong> sentido mobilizam, no Brasil, milhões<br />
<strong>de</strong> telespectadores fascinados com a possibilida<strong>de</strong> que a arte da imitação do cotidiano<br />
proporciona: a transcendência pela fábula, o prazer estético na aventura da literatura.<br />
Percorridos os caminhos preliminares para o entendimento dos muitos <strong>de</strong>sdobramentos do<br />
tema telenovela, cabe agora <strong>de</strong>sbravar o universo narrativo das telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez.<br />
89
6 NARRATIVAS SOBRE MUNDO MUÇULMANO<br />
Oci<strong>de</strong>nte-Oriente: mais que pontos car<strong>de</strong>ais opostos, imagens que encerram uma visÇo <strong>de</strong><br />
mundo concebida pela cultura dos binarismos. Um “ou isto ou aquilo” que, ao longo dos<br />
sàculos, serviu para contrapor, a partir do discurso hegemònico oci<strong>de</strong>ntal, o “colonizador” ao<br />
“colonizado”, o “civilizado” ao “primitivo”, a “ciÖncia” ä “superstiÅÇo”, o “<strong>de</strong>senvolvido” ao<br />
“em <strong>de</strong>senvolvimento”. Embora tenha sido oferecida como uma mera constataÅÇo <strong>de</strong><br />
polarida<strong>de</strong>s ─ um “fato da natureza” ─, esta apreensÇo dicotòmica do mundo revelou-se um<br />
instrumento polÉtico necessário para a configuraÅÇo da Europa, e mais tar<strong>de</strong> (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Segunda<br />
Guerra Mundial) dos Estados Unidos, como o “lugar da plenitu<strong>de</strong> civilizacional” 179 , para usar a<br />
expressÇo <strong>de</strong> Leela Gandhi. Assim, o Oriente foi esvaziado <strong>de</strong> sentido para que sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
fosse construÉda e sua cultura inventada como um alter ego diferente e concorrente do Oci<strong>de</strong>nte.<br />
Esse à, no entanto, um processo relacional em que Oriente e Oci<strong>de</strong>nte sÇo igualmente<br />
narrativas. Ocorre que o Oci<strong>de</strong>nte, alàm <strong>de</strong> ter voz prÑpria, fala tambàm em nome do Oriente. E<br />
este, sem chance <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> si, permanece em sua condiÅÇo <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong> como uma<br />
representaÅÇo formulada por outrem.<br />
Embora os movimentos <strong>de</strong> liberaÅÇo que vieram ä tona no sàculo XX atestem com<br />
eloquÖncia que o subalterno po<strong>de</strong> falar (“Houve uma revoluÅÇo tÇo po<strong>de</strong>rosa na consciÖncia<br />
das mulheres, das minorias, e dos marginais que afetou o pensamento dominante no mundo<br />
inteiro” 180 ), e embora a globalizaÅÇo comemore a quebra <strong>de</strong> fronteiras, a <strong>de</strong>scentralizaÅÇo do<br />
emissor, a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discursos e a abertura para o multiculturalismo, o que se observa à<br />
que o Oriente, assim como outras culturas que vivem sob o efeito “duradouro e injusto” 181 da<br />
colonizaÅÇo, ainda à apresentado ao mundo a partir das lentes distorcidas do Oci<strong>de</strong>nte.<br />
Segundo o pensador palestino-americano Edward Said, a histÑria das gran<strong>de</strong>s narrativas<br />
à repleta <strong>de</strong> distorÅâes e imprecisâes, e vem ganhando complexida<strong>de</strong> com o passar do tempo:<br />
se a partir do ëltimo terÅo do sàculo XVIII a amplitu<strong>de</strong> da representaÅÇo do Oriente se<br />
expandiu enormemente, os estereÑtipos culturais e a standardizaÅÇo a respeito <strong>de</strong>sta regiÇo<br />
tÖm sido exponencialmente reforÅados no mundo pÑs-mo<strong>de</strong>rno e eletrònico com a forÅa da<br />
televisÇo, do cinema e <strong>de</strong> outros meios <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa 182 . De fato, os relatos agora<br />
ganharam uma aparentemente incontestável dimensÇo visual: dÇo a impressÇo <strong>de</strong> transformar<br />
o pëblico em testemunha e conferem äquele que narra uma objetivida<strong>de</strong> impossÉvel. Cada vez<br />
179 GANDHI, 1998, p. 15.<br />
180 SAID, 1979, p. 348.<br />
181 SAID, 1990, p. 207.<br />
182 SAID, 1979, p. 26.<br />
90
mais, as narrativas nada inocentes sobre o Oriente ─ porque nenhuma narrativa à inocente! ─<br />
ganham status <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, com a pretensÇo <strong>de</strong> estar <strong>de</strong>screvendo o Oriente em “essÖncia” 183 .<br />
Todos vimos com espanto as imagens dos aviâes comerciais americanos chocando-se<br />
contra as torres gÖmeas do World Tra<strong>de</strong> Center. Subitamente, graÅas ä instantaneida<strong>de</strong> dos<br />
veÉculos <strong>de</strong> comunicaÅÇo, todo o mundo se colocou na posiÅÇo privilegiada <strong>de</strong> testemunha<br />
virtual da histÑria. As imagens capturadas <strong>de</strong>savisadamente eram sublinhadas inicialmente por<br />
interjeiÅâes <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> e horror. TÇo logo ficou caracterizado o atentado, os textos da<br />
mÉdia internacional se alinharam ä versÇo do governo americano e passaram a divulgar o<br />
perfil do inimigo da vez: Osama bin La<strong>de</strong>n, seus seguidores, os terroristas suicidas e, por<br />
extensÇo, o AfeganistÇo, o TalibÇ, o Islamismo fundamentalista, numa generalizaÅÇo que<br />
engloba todo o Oriente. O horror do atentado, a morte dos inocentes, o drama dos familiares<br />
das vÉtimas e a dimensÇo fÉsica do ato pareciam autorizar o consenso em torno do discurso<br />
ënico que associava muÅulmanos e islamismo a práticas terroristas. Se o 11 <strong>de</strong> setembro<br />
entrou para a histÑria como o mais brutal atentado <strong>de</strong> todos os tempos e inaugurou nos<br />
Estados Unidos a era do pênico, po<strong>de</strong>-se dizer tambàm que a data marcou o inÉcio <strong>de</strong> uma<br />
nova gran<strong>de</strong> narrativa sobre o Oriente.<br />
Uma análise comparativa da alterida<strong>de</strong> a partir dos discursos oci<strong>de</strong>ntais sobre os<br />
muÅulmanos e sobre o islamismo neste cenário pÑs-11 <strong>de</strong> setembro dá a medida <strong>de</strong>ssa nova<br />
narrativa. Numa comparaÅÇo entre o discurso factual e o ficcional, o foco aqui se atàm aos<br />
relatos jornalÉsticos a respeito do atentado publicados na revista Veja e ä narrativa<br />
dramatërgica do nëcleo muÅulmano na telenovela “O Clone”, <strong>de</strong> Gloria Perez, veiculada na<br />
TV Globo. Embora estas narrativas tenham tido circulaÅÇo quase simultênea (a telenovela<br />
estreou menos <strong>de</strong> um mÖs <strong>de</strong>pois dos atentados), cada uma se fundamentou numa fonte<br />
diferente: o noticiário se alimentou <strong>de</strong> <strong>de</strong>claraÅâes oficiais e relatos <strong>de</strong> agÖncias <strong>de</strong> notÉcias e<br />
correspon<strong>de</strong>ntes internacionais; a telenovela foi inspirada em textos literários, histÑricos,<br />
polÉticos, antropolÑgicos, fotos, filmes, relatos pessoais e assessoria profissional ─ enfim,<br />
toda sorte <strong>de</strong> registro que costuma compor o imaginário <strong>de</strong> quem fala do Oriente. Dessa<br />
maneira, o brasileiro que assistiu ao noticiário e ä telenovela naquela àpoca acabou<br />
183 Da mesma forma que, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Said, nÇo se po<strong>de</strong> estudar ou enten<strong>de</strong>r i<strong>de</strong>ias, culturas ou histÑrias sem<br />
estudar suas configuraÅâes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, tambàm nÇo se po<strong>de</strong> isolar o pesquisador ou o narrador <strong>de</strong> suas<br />
circunstências <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong> seus envolvimentos com uma classe, um conjunto <strong>de</strong> crenÅas, uma posiÅÇo social, uma<br />
ativida<strong>de</strong> profissional etc. Assim, tanto a produÅÇo acadÖmica quanto a jornalÉstica, por exemplo, nÇo po<strong>de</strong> se<br />
preten<strong>de</strong>r nÇo-polÉtica e imparcial ― o que equivale a dizer que nÇo há discurso inocente. Igualmente, a<br />
preocupaÅÇo do narrador com a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> em relaÅÇo a algum gran<strong>de</strong> original parece <strong>de</strong>sconhecer ou ignorar o<br />
fato <strong>de</strong> que o que ele divulga nÇo à a verda<strong>de</strong> e sim uma representaÅÇo exterior äquilo que à <strong>de</strong>scrito: impossÉvel<br />
conhecer uma cultura em sua essÖncia; sendo a histÑria relacional e dinêmica, cristalizar a cultura num mo<strong>de</strong>lo<br />
puro e incondicional à negar a mudanÅa e a complexida<strong>de</strong> da realida<strong>de</strong> humana.<br />
91
confrontando duas imagens do muÅulmano e do islamismo: a factual e a ficcional, a<br />
supostamente verda<strong>de</strong>ira e a verossÉmil. Cabe investigar que relaÅÇo mantinham entre si estas<br />
duas narrativas, já que o noticiário sobre o 11 <strong>de</strong> setembro se esten<strong>de</strong>u por todo o perÉodo em<br />
que a telenovela foi ao ar e a mÉdia brasileira nÇo se furtou a oferecer um cruzamento entre<br />
eles. Os perfis traÅados seriam contrastantes, contraditÑrios ou complementares? Po<strong>de</strong>riam ser<br />
claramente i<strong>de</strong>ntificados como factuais (o jornalÉstico) e como ficcionais (a telenovela)? Em<br />
que medida o texto jornalÉstico se aproxima do ficcional em estilo, gÖnero e propÑsito? Ou<br />
seria parte do <strong>de</strong>safio do texto ficcional <strong>de</strong> telenovela manter estreita relaÅÇo com a<br />
“realida<strong>de</strong>”? Ao tomarem para si a tarefa <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver uma outra cultura, nÇo teriam ambas as<br />
narrativas sucumbido ao que Said chama <strong>de</strong> Orientalismo, um conjunto <strong>de</strong> crenÅas ou sistema<br />
completo <strong>de</strong> pensamento e conhecimento externo aos orientais que vem produzindo<br />
afirmaÅâes e divulgando versâes <strong>de</strong>le para que seja usado como objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriÅÇo, ensino,<br />
colonizaÅÇo e governo? Sendo assim, a que interesses serviriam tais versâes? E ainda: que<br />
tipo <strong>de</strong> imagem do Oci<strong>de</strong>nte se contrapâe äquela divulgada do Oriente nestes dois casos?<br />
Said acusa o Oci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> pintar o Oriente como exÑtico, diferente, tradicionalmente<br />
sensual e fanático. E insiste que “a construÅÇo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> [...] envolve a construÅÇo <strong>de</strong><br />
opostos e ‘outros’ cuja atualida<strong>de</strong> está sempre sujeita ä contÉnua interpretaÅÇo e re-<br />
interpretaÅÇo das suas diferenÅas em relaÅÇo ao ‘nÑs’” 184 . Desse modo, que tipo <strong>de</strong> “outro” e<br />
<strong>de</strong> “nÑs” emerge <strong>de</strong>stas duas narrativas? E se à verda<strong>de</strong> que o 11 <strong>de</strong> setembro estabeleceu um<br />
novo marco zero da histÑria, que tipo <strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>nte e Oriente está sendo construÉdo para o novo<br />
milÖnio, justo neste momento em que o mundo comeÅa a se convencer do fim dos binarismos<br />
e da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o subalterno ter voz?<br />
Transcorridos mais <strong>de</strong> oito anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os atentados e a estreia <strong>de</strong> “O Clone”, estes<br />
episÑdios, cada um a sua maneira, continuam vivos no imaginário coletivo: <strong>de</strong> um lado pò<strong>de</strong>-se<br />
acompanhar, no rastro do 11 <strong>de</strong> setembro, a caÅada americana a Osama bin La<strong>de</strong>n, os<br />
<strong>de</strong>sdobramentos da invasÇo do AfeganistÇo e da guerra contra o Iraque, os violentos protestos<br />
contra a publicaÅÇo <strong>de</strong> charges <strong>de</strong> Maomà em jornais oci<strong>de</strong>ntais, a pressÇo da socieda<strong>de</strong><br />
americana contra a aceitaÅÇo por Hollywood da indicaÅÇo <strong>de</strong> um filme palestino ao prÖmio do<br />
Oscar 2006, e o permanente estado <strong>de</strong> alerta americano contra novos ataques; <strong>de</strong> outro, sabe-se<br />
que, seguindo a trajetÑria <strong>de</strong> outras telenovelas <strong>de</strong> sucesso da Re<strong>de</strong> Globo, “O Clone” já foi<br />
exportado para mais <strong>de</strong> 90 paÉses, possibilitando ainda hoje uma leitura paralela ä narrativa<br />
jornalÉstica do mundo muÅulmano. Por conta do sucesso <strong>de</strong> “O Clone” nos Estados Unidos (a<br />
184 SAID, 1990, p. 332.<br />
92
telenovela ficou em primeiro lugar <strong>de</strong> audiÖncia entre as tevÖs hispênicas do paÉs em 2002 185 ),<br />
foi firmado em 2008, pela primeira vez, um acordo para a produÅÇo <strong>de</strong> uma versÇo hispênica da<br />
telenovela no canal <strong>de</strong> tevÖ a cabo norte americano Telemundo, o segundo maior em lÉngua<br />
espanhola dos Estados Unidos e o ënico em produÅÇo <strong>de</strong> telenovelas no paÉs. “El Clon” acaba<br />
<strong>de</strong> estrear no dia 15 <strong>de</strong> fevereiro no mercado americano, on<strong>de</strong> há 40 milhâes <strong>de</strong> hispênicos, dos<br />
quais dois milhâes sÇo muÅulmanos 186 .<br />
DistorÅÇo, violÖncia e intolerência sÇo efeitos da <strong>de</strong>sinformaÅÇo gerada por sàculos <strong>de</strong><br />
dominaÅÇo do Oci<strong>de</strong>nte sobre o Oriente ─ uma dominaÅÇo marcada nÇo somente por aÅâes<br />
fÉsicas e palpáveis, mas principalmente pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> que garantiu sempre ao<br />
primeiro a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar o segundo ao mundo. Se os atentados <strong>de</strong> 2001 parecem ter<br />
autorizado os Estados Unidos a endurecer ainda mais seu discurso hegemònico contra esse<br />
“outro”, qualificado por Bush, entÇo presi<strong>de</strong>nte americano, como o “Mal” que ameaÅa o estilo<br />
<strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal, a telenovela “O Clone” trouxe a magia das burkas, das tënicas e da danÅa<br />
do ventre para SÇo CristÑvÇo, tradicional bairro carioca. Se o discurso <strong>de</strong> Bush sublinhou o<br />
Ñdio, o <strong>de</strong> Gloria Perez cultivou o encantamento. O fato <strong>de</strong> terem sido emitidos<br />
simultaneamente (mesmo que por obra do acaso) proporciona uma leitura comparativa entre o<br />
mundo da polÉtica e o da literatura que sÑ vem enriquecer este estudo, confirmando a tese <strong>de</strong><br />
Said segundo a qual “socieda<strong>de</strong> e cultura literária sÑ po<strong>de</strong>m ser entendidas e estudadas<br />
conjuntamente” 187 . Alàm disso, o fato <strong>de</strong> ambos os “textos” estarem circulando ainda hoje<br />
conferiu inegável atualida<strong>de</strong> a este trabalho. Atà porque nÇo há nada mais atual do que estudar<br />
a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> muÅulmana e islêmica nesta primeira dàcada <strong>de</strong> sàculo em que, apesar da<br />
violÖncia dos noticiários <strong>de</strong> guerra, o Oriente parece ter sido consi<strong>de</strong>rado fashion pela mÉdia<br />
global: ele está presente nos editoriais <strong>de</strong> moda, nas revistas <strong>de</strong> <strong>de</strong>coraÅÇo, nas novelas <strong>de</strong><br />
tevÖ, nos clips <strong>de</strong> mësica e nas tendÖncias da gastronomia.<br />
6.1 JORNALISMO E TELEDRAMATURGIA: NATUREZA DA NARRATIVA<br />
Embora a revista Veja, da Editora Abril, e a telenovela “O Clone”, da Re<strong>de</strong> Globo,<br />
sejam narrativas que apresentem gÖneros prÑprios e naturezas distintas, ambas po<strong>de</strong>m ser<br />
185 “Novela ‘O Clone’ ganha prÖmio nos Estados Unidos”. VersÇo digital da ediÅÇo do dia 12/03/2003 do “Jornal<br />
Nacional”, disponÉvel em:
tomadas como produtos <strong>de</strong> massa, mercadorias confeccionadas com a perspectiva da venda<br />
em uma economia <strong>de</strong> mercado. Isto significa dizer que, por mais que cada uma <strong>de</strong>las tenha a<br />
sua missÇo ─ informar, entreter ─, o que conta verda<strong>de</strong>iramente na produÅÇo industrial <strong>de</strong><br />
suas narrativas à satisfazer a <strong>de</strong>manda do pëblico 188 e, por conseguinte, garantir o retorno do<br />
investimento dos anunciantes. Tanto que orientam sua produÅÇo nÇo sÑ pelo nëmero <strong>de</strong><br />
exemplares vendidos ou pelo nëmero <strong>de</strong> aparelhos <strong>de</strong> tevÖ sintonizados, como pela opiniÇo <strong>de</strong><br />
seu pëblico expressa em cartas ou e-mails dirigidos ä redaÅÇo da revista ou ä produÅÇo da<br />
novela. O fato <strong>de</strong> serem produtos <strong>de</strong> mercado nÇo exclui, no entanto, a interferÖncia nem<br />
sempre explÉcita e assumida da “linha editorial/i<strong>de</strong>olÑgica” da publicaÅÇo ou do conjunto <strong>de</strong><br />
opiniâes e valores do autor. ï preciso lembrar, contudo, que, se toda narrativa (e aqui o termo<br />
se refere a qualquer relato, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sua forma <strong>de</strong> expressÇo ou estratàgia <strong>de</strong><br />
divulgaÅÇo) à necessariamente subjetivo e polÉtico, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do esforÅo para se obter<br />
objetivida<strong>de</strong> e distanciamento, entÇo a narrativa <strong>de</strong> uma matària jornalÉstica ou <strong>de</strong> uma<br />
telenovela resulta no produto final <strong>de</strong> sucessivos filtros (o do repÑrter, do editor, do editor <strong>de</strong><br />
fotografia e do proprietário do veÉculo, no caso do jornalismo; e do autor, do diretor, do<br />
produtor e do proprietário do veÉculo, no caso da teledramaturgia). Nesse processo industrial e<br />
i<strong>de</strong>olÑgico <strong>de</strong> produÅÇo, o relato final que chega ao pëblico nÇo po<strong>de</strong> ser tomado<br />
romanticamente como mero resultado <strong>de</strong> uma apuraÅÇo minuciosa ou como pura inspiraÅÇo<br />
literária. Nem tampouco, po<strong>de</strong> ser tomado como texto autoral no sentido estrito do termo.<br />
O fato <strong>de</strong> serem narrativas contingenciadas 189 em nada diminui seu valor. Pelo<br />
contrário. SÇo relatos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> penetraÅÇo popular e, justamente por isso, prestam-se como<br />
poucos a conduzir o observador mais atento äs entranhas da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massa. No caso<br />
<strong>de</strong>ste estudo em particular, a representaÅÇo dos muÅulmanos e do islamismo em dois dos<br />
principais meios <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa brasileiros <strong>de</strong>verá ser capaz <strong>de</strong> fornecer um<br />
panorama abrangente do imaginário popular a respeito <strong>de</strong>ste Outro, como tambàm ajudar a<br />
perceber, <strong>de</strong> forma relacional, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira (e Oci<strong>de</strong>ntal, por extensÇo) que se quer<br />
construir a partir <strong>de</strong>ste contraste.<br />
Cabe <strong>de</strong>stacar que a leitura <strong>de</strong> cada narrativa (matària jornalÉstica e telenovela) à sempre<br />
<strong>de</strong>terminada pela natureza prÑpria da mÉdia-suporte (revista e tevÖ). Nesse sentido, à preciso<br />
levar em conta as caracterÉsticas <strong>de</strong> cada universo. O material jornalÉstico em questÇo à<br />
construÉdo em linguagem escrita elaborada: seus textos sÇo impressos em papel, publicados<br />
188<br />
“As publicaÅâes da Editora Abril sÇo voltadas para os interesses <strong>de</strong> seus leitores”, reza o princÉpio nëmero 1<br />
do Manual <strong>de</strong> Estilo da Editora (1990, p. 9).<br />
189<br />
As telenovelas, por serem obras escritas ao longo do perÉodo <strong>de</strong> exibiÅÇo, sofrem ainda interferÖncia da<br />
opiniÇo pëblica e dos fatos do cotidiano.<br />
94
em revista <strong>de</strong> periodicida<strong>de</strong> semanal, sÇo simples como manda a cartilha do bom jornalismo,<br />
poràm mais elaborados 190 e mais longos do que os que aparecem em publicaÅâes diárias<br />
(jornais) ou no jornalismo eletrònico; sÇo para ser lidos <strong>de</strong>moradamente ao longo da semana,<br />
po<strong>de</strong>m ser relidos ou ter sua leitura adiada para um momento mais oportuno; <strong>de</strong>stinam-se a<br />
um pëblico letrado ─ mais que isso, um pëblico <strong>de</strong> nÉvel <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> elevado. A narrativa<br />
da telenovela, no entanto, por ser veiculada numa emissora <strong>de</strong> tevÖ aberta e por ser vista e<br />
ouvida, nÇo lida portanto, atinge um pëblico mais abrangente e <strong>de</strong>ve ser facilmente<br />
compreendida tanto por letrados como por iletrados, sem subjugar a capacida<strong>de</strong> intelectual<br />
dos primeiros e sem ir alàm das limitaÅâes dos segundos. Apesar <strong>de</strong> a tevÖ exercer um gran<strong>de</strong><br />
fascÉnio sobre os telespectadores, ela nunca reina absoluta no ambiente, como o cinema, cuja<br />
narrativa se ilumina numa sala escura, ou mesmo o jornal impresso, cuja leitura exige<br />
concentraÅÇo e atà certo recolhimento. A narrativa no veÉculo eletrònico disputa a atenÅÇo do<br />
pëblico com tudo o mais que está em seu entorno, e por isso <strong>de</strong>ve ter como missÇo<br />
permanente manter os olhos e ouvidos do telespectador voltados para a “telinha”. Como<br />
resume o Manual <strong>de</strong> Telejornalismo da Re<strong>de</strong> Globo,<br />
A palavra à tÇo importante na televisÇo quanto no jornal. A diferenÅa à que o texto <strong>de</strong><br />
jornal à para ser lido pelo pëblico e o da televisÇo para ser ouvido. Na televisÇo, nÇo<br />
dá para voltar atrás e ler <strong>de</strong> novo ou ouvir <strong>de</strong> novo. ï importante pois que o texto seja<br />
claro, direto, simples, enfim, tenha as virtu<strong>de</strong>s da linguagem coloquial. O locutor<br />
conversa com o telespectador. 191<br />
Alàm disso, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar, uma vez que ambos sÇo produtos <strong>de</strong> mercado, os<br />
diferentes hábitos <strong>de</strong> consumo. O “consumo” do texto da Veja resulta, na maioria das vezes,<br />
<strong>de</strong> um investimento: a compra <strong>de</strong> um exemplar (à bem verda<strong>de</strong> que há muitos que leem<br />
revista emprestada ou mesmo tÖm acesso a sua versÇo on-line). O tipo <strong>de</strong> produto (revista <strong>de</strong><br />
informaÅÇo com fotos, impressa em papel couchet, tendo cerca <strong>de</strong> 100 páginas), o prestÉgio do<br />
veÉculo (uma das mais importantes publicaÅâes <strong>de</strong>ste segmento no paÉs) e o investimento feito<br />
pelo leitor (cada ediÅÇo custa para o consumidor hoje R$ 8,90, valor quase quatro vezes<br />
superior ao preÅo <strong>de</strong> um exemplar <strong>de</strong> jornal) levam o pëblico a uma atitu<strong>de</strong> quase <strong>de</strong><br />
reverÖncia no consumo. Muitos chegam a arquivar as ediÅâes semanais como fonte <strong>de</strong><br />
pesquisa. Por outro lado, o comportamento do consumidor diante da narrativa da telenovela,<br />
por mais fiel que seja, revela uma informalida<strong>de</strong> prÑpria do tipo <strong>de</strong> presenÅa da televisÇo na<br />
190 Segundo seu Manual <strong>de</strong> Estilo, a Editora Abril “vem se <strong>de</strong>dicando ä publicaÅÇo <strong>de</strong> revistas <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong><br />
superior”, nÇo apenas “em termos <strong>de</strong> conteëdo, mas tambàm [...] do ponto <strong>de</strong> vista da linguagem, do estilo e do<br />
vocabulário utilizados”.<br />
191 Manual <strong>de</strong> Telejornalismo da Re<strong>de</strong> Globo, 1982, p. 9.<br />
95
vida dos telespectadores: a um apertar <strong>de</strong> botÇo a programaÅÇo surge na tela todo dia no<br />
mesmo horário, numa relaÅÇo <strong>de</strong> gratuida<strong>de</strong> e intimida<strong>de</strong>; o espetáculo vem ao espectador.<br />
Quase impossÉvel reverenciar a narrativa com silÖncio ou atenÅÇo total. Quer solitária ou<br />
coletiva, a “leitura” <strong>de</strong>sta narrativa à sempre interativa: fala-se sozinho, com a tela, com os<br />
personagens, com o autor, com o companheiro <strong>de</strong> sofá. NÇo há reverÖncia sequer na postura:<br />
assiste-se ä telenovela <strong>de</strong>itado na cama, durante as refeiÅâes, enquanto se realiza outra tarefa...<br />
Impresso ou eletrònico, formal ou coloquial, “erudito” ou popular, semanal ou diário,<br />
pago ou gratuito: mais que todas estas distinÅâes, a narrativa do jornalismo e a <strong>de</strong> telenovela<br />
encerram teoricamente gÖneros e estilos prÑprios, sustentados pela fronteira entre a<br />
informaÅÇo e o entretenimento, o factual e o ficcional. (Em alguns casos, no entanto, esta<br />
fronteira torna-se mais porosa, como no caso das feature stories do new journalism e nas<br />
intromissâes factuais nas narrativas da telenovela.) A credibilida<strong>de</strong> do jornalismo se sustenta<br />
nas supostas veracida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong> da informaÅÇo divulgada. Já a telenovela se<br />
fundamenta no verossÉmil: a aparÖncia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e a familiarida<strong>de</strong> com que o texto aborda o<br />
espectador fazem com que ele creia no “real” da cena.<br />
Embora uma notÉcia jornalÉstica seja o relato <strong>de</strong> um fato, aos olhos do pëblico a notÉcia<br />
à o fato em si. Segundo Josà Arbex Jr., “A mÉdia cria diariamente a sua prÑpria narrativa e a<br />
apresenta aos telespectadores ou aos leitores como se essa narrativa fosse a prÑpria histÑria do<br />
mundo” 192 . “Os fatos, transformados em notÉcia, sÇo <strong>de</strong>scritos como eventos autònomos,<br />
completos em si mesmos”, completa o autor.<br />
Variáveis como grau <strong>de</strong> instruÅÇo, conhecimento da produÅÇo da notÉcia ou<br />
<strong>de</strong>sconfianÅa do discurso da mÉdia po<strong>de</strong>m promover reaÅâes menos cràdulas, mas à<br />
<strong>de</strong>snecessário salientar o papel <strong>de</strong>terminante das novas tecnologias <strong>de</strong> captaÅÇo e transmissÇo<br />
<strong>de</strong> imagem e som na consolidaÅÇo <strong>de</strong>sta impressÇo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> oferecida pelos relatos<br />
jornalÉsticos. Convencidos do discurso da imparcialida<strong>de</strong> do jornalismo e <strong>de</strong>slumbrados com<br />
a precisÇo, a agilida<strong>de</strong> e a instantaneida<strong>de</strong> dos recursos tecnolÑgicos, os leitores costumam<br />
inebriar-se <strong>de</strong>ste contato tÇo prÑximo com o “fato”, nÇo percebendo a intermediaÅÇo do<br />
repÑrter, do editor, do fotÑgrafo etc. Isto se dá mesmo no caso do jornalismo interpretativo,<br />
esta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> jornalismo que, segundo Carlos Alberto RabaÅa e Gustavo Barbosa, vai<br />
alàm do informativo e oferece ─ mais que a notÉcia “objetiva”, a informaÅÇo “pura”,<br />
“imparcial”, “impessoal” e “direta” ─ a dimensÇo qualitativa das informaÅâes, estabelecendo<br />
comparaÅâes, fazendo remissâes ao passado e interligaÅâes com outros fatos 193 . O jornalismo<br />
192 ARBEX JR., 2001, p. 103.<br />
193 RABAóA e BARBOSA, 2001, p. 405.<br />
96
interpretativo praticado pela revista Veja faz questÇo <strong>de</strong> reiterar que opiniÇo à um artigo que<br />
fica reservado apenas ao espaÅo do editorial (“Carta ao leitor”).<br />
Ao contrário do jornalismo, a narrativa <strong>de</strong> telenovela à assumida como uma peÅa<br />
autoral, mesmo que seja uma autoria compartilhada: expressa a opiniÇo, o estilo e os<br />
interesses do autor em histÑrias inspiradas no cotidiano. Aqui o que vale à a criaÅÇo <strong>de</strong> uma<br />
trama atraente, capaz <strong>de</strong> sustentar a atenÅÇo do pëblico por pelo menos oito meses, a<br />
apresentaÅÇo <strong>de</strong> temas suficientemente polÖmicos para mobilizar a opiniÇo pëblica, o<br />
estabelecimento <strong>de</strong> paralelos <strong>de</strong> natureza temporal ou factual com a realida<strong>de</strong> presente (a nÇo<br />
ser que seja um texto <strong>de</strong> àpoca) e, no caso particular <strong>de</strong> Gloria Perez, a escolha <strong>de</strong> boas<br />
campanhas <strong>de</strong> sociais (conhecidas impropriamente por merchandising social). Some-se a isto<br />
a parceria sintonizada com o diretor, a <strong>de</strong>finiÅÇo <strong>de</strong> um estilo <strong>de</strong> ediÅÇo atraente, a seleÅÇo <strong>de</strong><br />
uma trilha sonora sedutora e a escalaÅÇo cuidadosa do elenco. Os autores garantem que nÇo há<br />
receita, mas cada um parece ter escolhido um caminho. Como se fossem editorias <strong>de</strong> uma<br />
redaÅÇo <strong>de</strong> jornal, a gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> programaÅÇo <strong>de</strong> telenovelas da Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong>finiu os estilos <strong>de</strong><br />
texto compatÉveis com os horários <strong>de</strong> exibiÅÇo: temas adocicados, <strong>de</strong> humor ou dramáticos<br />
avanÅam noite a<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> acordo com o perfil <strong>de</strong> pëblico disponÉvel diante da tela <strong>de</strong> tevÖ. No<br />
horário nobre sÇo exibidas novelas que tenham <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> suficiente para nÇo sÑ funcionarem<br />
como carro-chefe da programaÅÇo, mas tambàm serem capazes <strong>de</strong> alavancar a audiÖncia dos<br />
programas subsequentes. Neste vale-tudo pelos Éndices do IBOPE, nÇo há necessariamente<br />
preocupaÅÇo com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> histÑrica, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> em relaÅÇo ao episÑdio inspirador, respeito ä<br />
geografia dos espaÅos ou ao protocolo do tempo: bastam imaginaÅÇo, criativida<strong>de</strong>, ritmo,<br />
sustentaÅÇo <strong>de</strong> ganchos narrativos e verossimilhanÅa. Parecer verda<strong>de</strong>iro já à suficiente para<br />
promover a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo do espectador com a histÑria e os personagens. Aqui, se o que à<br />
contado à fato ou relato do fato nÇo importa. O objetivo à o entretenimento do pëblico,<br />
aferido em Éndices <strong>de</strong> audiÖncia, porcentagem <strong>de</strong> share e incidÖncia <strong>de</strong> cartas para o autor ou<br />
atores da trama.<br />
A questÇo entÇo entre a narrativa jornalÉstica e a <strong>de</strong> telenovela parece estar reduzida ao<br />
constrangimento da primeira em nÇo assumir sua condiÅÇo <strong>de</strong> versÇo (relato dos fatos) e ao<br />
esforÅo da segunda, enquanto ficÅÇo, em reproduzir a “realida<strong>de</strong>” do pëblico. Acusar um<br />
relato jornalÉstico <strong>de</strong> parcial e uma narrativa da teledramaturgia <strong>de</strong> inverossÉmil parece retirar<br />
<strong>de</strong>les a “essÖncia” <strong>de</strong> que sÇo constituÉdos. Curioso este purismo quando se nota que a<br />
fronteira entre o factual e o ficcional já foi há muito <strong>de</strong>smantelada pelo impàrio do espetáculo.<br />
As revistas abusam das features (com estrutura narrativa mais para o ficcional) e se ren<strong>de</strong>m ä<br />
primazia da imagem para proporcionar ao leitor a experiÖncia fascinante <strong>de</strong> testemunhar o<br />
97
fato com a agilida<strong>de</strong> e o recurso imagàtico da tevÖ, e as telenovelas reproduzem o noticiário<br />
para marcar o seu compasso com a atualida<strong>de</strong> histÑrica. Alàm disso, <strong>de</strong>sfechos <strong>de</strong> novela sÇo<br />
<strong>de</strong>staque <strong>de</strong> primeira página <strong>de</strong> jornal, enquanto personalida<strong>de</strong>s pëblicas fazem ponta na<br />
ficÅÇo para conferir autenticida<strong>de</strong> ä trama. Tanto no jornalismo quanto na telenovela, cria-se o<br />
fato, a opiniÇo pëblica e o consenso.<br />
6.2 O MUóULMANO E O ISLAMISMO EM VEJA<br />
No dia 11 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2001, o mundo todo foi atraÉdo para as telas <strong>de</strong> tevÖ e para os<br />
sites jornalÉsticos, e pò<strong>de</strong> partilhar, como testemunha virtual, do <strong>de</strong>sespero daquele primeiro<br />
momento em que atà mesmo os mais conceituados comentaristas da mÉdia ficaram sem texto.<br />
Entre o choque do primeiro e o do segundo aviÇo, o olhar eletrònico da mÉdia já estava a<br />
postos para oferecer a imagem que sozinha sintetizava o conceito <strong>de</strong> notÉcia 194 : era atual,<br />
verÉdica, oportuna, rara, curiosa, suscitava interesse humano, tinha importência e<br />
consequÖncia para a comunida<strong>de</strong> mundial, cada vez mais prÑxima. A partir do choque do<br />
segundo aviÇo e do anëncio <strong>de</strong> que mais aviâes estavam sendo <strong>de</strong>sviados <strong>de</strong> suas rotas, o<br />
texto da mÉdia, atà entÇo vazio <strong>de</strong> informaÅâes, comeÅava a ganhar contornos <strong>de</strong> atentado. Na<br />
versÇo oficial do episÑdio, as palavras do presi<strong>de</strong>nte Bush ecoadas pela mÉdia mundial <strong>de</strong>ram<br />
o tom do discurso da vÉtima que evocava a solidarieda<strong>de</strong> do mundo civilizado numa vinganÅa<br />
contra o terrorismo: “A liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mocracia estÇo sob ataque”, “Essa será uma<br />
monumental luta entre o Bem e o Mal”. Naquele momento o inimigo ainda nÇo tinha rosto,<br />
reconhecia-se apenas a covardia <strong>de</strong> seu gesto: “Esse à um inimigo predador <strong>de</strong> pessoas<br />
inocentes e <strong>de</strong>savisadas”.<br />
A ediÅÇo <strong>de</strong> Veja daquela semana já estava pronta e foi para as bancas no dia seguinte<br />
com a foto do milionário Jack Welch sob a manchete “LiÅâes <strong>de</strong> vida do empresário mais<br />
bem-sucedido do mundo”. Welch tinha preparado um mega lanÅamento em Nova Iorque para<br />
o livro com suas liÅâes, mas o evento fora atropelado pelos aviâes terroristas algumas horas<br />
antes. A data do atentado tambàm pegou Veja no contra-pà: a revista teve <strong>de</strong> esperar uma<br />
semana para falar do assunto. Dedicou-lhe, em compensaÅÇo, uma ediÅÇo especial com 140<br />
páginas no dia 19 <strong>de</strong> setembro. Sua capa exibia uma foto das torres em chamas on<strong>de</strong> se lia: “O<br />
impàrio vulnerável”. Na lateral esquerda, sobre fundo preto, as chamadas para as diferentes<br />
matàrias, todas a respeito do atentado. No interior da ediÅÇo, no espaÅo <strong>de</strong>stinado ä opiniÇo e<br />
194 RABAóA e BARBOSA, 2001, p. 514.<br />
98
nÇo ä notÉcia, a indignaÅÇo e a adjetivaÅÇo que, por forÅa da suposta imparcialida<strong>de</strong><br />
jornalÉstica, nÇo podiam ser expostas nas páginas <strong>de</strong> informaÅÇo:<br />
O verda<strong>de</strong>iro alvo visado pelos terroristas que atacaram Nova York e Washington na<br />
semana passada nÇo foram as torres gÖmeas do sul <strong>de</strong> Manhattan nem o edifÉcio do<br />
Pentágono. O atentado foi cometido contra um sistema social e econòmico que,<br />
mesmo longe da perfeiÅÇo, à o mais justo e livre que a humanida<strong>de</strong> conseguiu fazer<br />
funcionar ininterruptamente atà hoje. [...] Foi uma agressÇo perpetrada contra os mais<br />
caros e mais frágeis valores oci<strong>de</strong>ntais: a <strong>de</strong>mocracia e a economia <strong>de</strong> mercado.<br />
O que realmente incomoda a ponto da exasperaÅÇo os fundamentalistas, apontados<br />
como os principais suspeitos <strong>de</strong> autoria dos atentados, nÇo à sÑ a arrogência americana<br />
ou seu apoio ao Estado <strong>de</strong> Israel. O que os radicais nÇo toleram, mais que tudo, à a<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. ï a existÖncia <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> em que os justos po<strong>de</strong>m viver sem ser<br />
incomodados e os pobres tÖm possibilida<strong>de</strong>s reais <strong>de</strong> atingir a prosperida<strong>de</strong> com o<br />
fruto <strong>de</strong> seu trabalho. Esse à o verda<strong>de</strong>iro anátema dos terroristas que atacaram os<br />
Estados Unidos. Eles sÇo enviados da morte, da elite teocrática, medieval, tirênica que<br />
exerce o po<strong>de</strong>r absoluto em seus feudos. Para eles, a <strong>de</strong>mocracia à satênica. Por isso<br />
tem <strong>de</strong> ser combatida e <strong>de</strong>struÉda. 195<br />
Em uma <strong>de</strong>cisÇo editorial incomum, Veja <strong>de</strong>dicou ao 11 <strong>de</strong> setembro a capa <strong>de</strong> mais<br />
quatro ediÅâes consecutivas: no dia 26, trouxe a manchete “Guerra ao terror” sobre a foto <strong>de</strong><br />
um aviÇo <strong>de</strong> guerra; no dia 3 <strong>de</strong> outubro, a ban<strong>de</strong>ira americana em chamas ilustrava a<br />
chamada “O vÉrus anti-EUA: a <strong>de</strong>magogia que transformou a vÉtima em culpada”; no dia 10, a<br />
foto <strong>de</strong> uma pessoa coberta com um manto branco da cabeÅa aos pàs sublinhava a frase<br />
“Fundamentalismo: Fà cega e mortal”; por fim, na ediÅÇo do dia 17, a imagem <strong>de</strong> Osama bin<br />
La<strong>de</strong>n i<strong>de</strong>ntificava “O profeta do terror”.<br />
A mera <strong>de</strong>scriÅÇo das capas acima, ainda sem a análise do texto jornalÉstico propriamente<br />
dito, já permite concordar com a <strong>de</strong>finiÅÇo <strong>de</strong> notÉcia proposta por Marcon<strong>de</strong>s Filho:<br />
NotÉcia à a informaÅÇo transformada em mercadoria com todos os seus apelos<br />
estàticos, emocionais e sensacionais; para isso, a informaÅÇo sofre um tratamento que<br />
a adapta äs normas mercadolÑgicas <strong>de</strong> generalizaÅÇo, padronizaÅÇo, simplificaÅÇo e<br />
negaÅÇo do subjetivismo. 196<br />
Inegáveis a magnitu<strong>de</strong> do fato e o tratamento espetacular que o atentado recebeu da<br />
imprensa como um todo. Tudo o que se escreveu sobre o episÑdio parecia ficar sempre aquàm<br />
daquelas imagens plasticamente concebidas e enca<strong>de</strong>adas para simbolizar a humilhaÅÇo do<br />
impàrio americano. Talvez por isso as palavras escolhidas para <strong>de</strong>screver a <strong>de</strong>struiÅÇo, narrar<br />
o estado <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> do mundo diante daquela cena e <strong>de</strong>linear a nova face do inimigo<br />
tenham sido tÇo ricas em dramaticida<strong>de</strong>. Ou talvez essa intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cores e o tom belicoso<br />
do discurso midiático internacional tenha sido apenas resultado do consenso que se<br />
195 Veja, 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2001, p. 9.<br />
196 MARCONDES FILHO, 1988, p. 13.<br />
99
estabeleceu em torno dos Estados Unidos em seu papel <strong>de</strong> vÉtima. ApÑs os atentados, o<br />
discurso oficial americano teria partido para a ofensiva aos inimigos “bárbaros e covar<strong>de</strong>s”,<br />
abandonando, segundo a prÑpria revista, “o relativismo cultural”, teoria formulada na dàcada<br />
<strong>de</strong> 1930 pelo antropÑlogo americano Melville Jean Herskovitz, que preconiza que nenhuma<br />
cultura à superior a outra, que cada uma <strong>de</strong>ve ser entendida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu prÑprio contexto e,<br />
por isso mesmo, nÇo cabem comparaÅâes entre elas.<br />
Assim como a mÉdia internacional, as páginas <strong>de</strong> Veja reproduziram o relato americano<br />
e seguiram as suspeitas expressas dois dias <strong>de</strong>pois dos atentados <strong>de</strong> que tamanha violÖncia<br />
contra o estilo <strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal tinha a marca <strong>de</strong> extremistas islêmicos sob o comando do<br />
milionário saudita refugiado no AfeganistÇo Osama bin La<strong>de</strong>n, figura tÇo misteriosa quanto<br />
perigosa que já tinha tido seu nome atrelado a outros atos terroristas. A maneira como a<br />
revista apontou na direÅÇo <strong>de</strong>stes radicais religiosos já <strong>de</strong>notava o estranhamento em relaÅÇo ä<br />
submissÇo aos fundamentos do islamismo:<br />
100<br />
Com o surgimento dos primeiros indÉcios <strong>de</strong> que a onda <strong>de</strong> terror nos Estados Unidos<br />
foi obra <strong>de</strong> radicais islêmicos, uma questÇo tornou-se inevitável: quem à essa gente<br />
que se suicida jogando aviâes contra edifÉcios? Que se veste <strong>de</strong> bombas e se explo<strong>de</strong><br />
em supermercados e pizzarias <strong>de</strong> Israel? Que estoura carros recheados <strong>de</strong> explosivos<br />
contra muros <strong>de</strong> quartàis? Quem à, enfim, essa gente que se mata em nome <strong>de</strong> Alá? 197<br />
Embora ressalve que, dos cerca <strong>de</strong> 1,3 bilhÇo <strong>de</strong> muÅulmanos espalhados no mundo,<br />
apenas uma pequena minoria esteja disposta a entregar sua vida pela causa, as ediÅâes <strong>de</strong> Veja<br />
sobre o atentado ilustram suas matàrias com fotos <strong>de</strong> extremistas comemorando as mortes <strong>de</strong><br />
inocentes, festejando com alegria a “<strong>de</strong>sgraÅa do gran<strong>de</strong> SatÇ”. Nelas, aparecem homens<br />
jovens e velhos sempre barbados, <strong>de</strong> turbantes e tënicas, ou mesmo crianÅas empunhando<br />
armas, sempre diante <strong>de</strong> um cenário <strong>de</strong> uma pobreza e <strong>de</strong> uma ari<strong>de</strong>z impactantes. Se os<br />
extremistas sÇo minoria, por que a <strong>de</strong>cisÇo editorial <strong>de</strong> nÇo mostrar sequer um muÅulmano<br />
lamentando o atentado? De um lado, aparecem americanos em trajes civis chorando seus<br />
mortos e bombeiros resgatando vÉtimas; <strong>de</strong> outro, apenas muÅulmanos armados ou uma<br />
galeria <strong>de</strong> fotos <strong>de</strong> lÉ<strong>de</strong>res extremistas <strong>de</strong> todos os tempos. “A maioria dos muÅulmanos, no<br />
entanto, repudia os ataques suicidas e os consi<strong>de</strong>ra pecado extremo, uma ofensa contra Alá, na<br />
medida em que atenta contra o dom da vida, um dom divino” 198 , <strong>de</strong>staca o texto. E cita a<br />
historiadora Maria Aparecida <strong>de</strong> Aquino, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> SÇo Paulo, alertando para o fato<br />
<strong>de</strong> que “O primeiro equÉvoco comum entre oci<strong>de</strong>ntais e cristÇos à consi<strong>de</strong>rar todo islêmico um<br />
197 “Assassinato em nome <strong>de</strong> Alá”, disponÉvel em: . Acesso em 23<br />
jul. 2006.<br />
198 “Assassinato em nome <strong>de</strong> Alá”, loc. cit.
extremista suicida e, por extensÇo, um terrorista em potencial” 199 e <strong>de</strong> que o segundo<br />
equÉvoco à julgar que todos os muÅulmanos sÇo árabes. O contraste entre textos e fotos<br />
publicados na revista parece, no entanto, sublinhar estes equÉvocos.<br />
Feitas as ressalvas sobre o fato <strong>de</strong> que muÅulmanos nÇo sÇo necessariamente terroristas<br />
suicidas, Veja segue listando as razâes para o engajamento das minorias no fundamentalismo:<br />
segundo o texto, “o crescimento do rebanho”, “a fartura do petrÑleo”, “as ditaduras<br />
teocráticas”, “a nÇo distribuiÅÇo das riquezas”, a “misària” e a “ignorência” sÇo dados<br />
paradoxais que, misturados, produzem um “barril <strong>de</strong> pÑlvora”, justificam a “forÅa da<br />
religiÇo”, e permitem que o “extremismo” e o “fanatismo” “sigam achando espaÅo para<br />
ensanguentar a histÑria humana” 200 . A este cenário econòmico-religioso se superpâe o<br />
polÉtico: “naÅâes criminosas”, “santuários do terror”, “escolas do terror”, sÇo expressâes<br />
usadas para i<strong>de</strong>ntificar os paÉses on<strong>de</strong> o fundamentalismo islêmico ganhou forÅa. O<br />
AfeganistÇo propriamente dito à <strong>de</strong>scrito como um “paÉs arruinado por mais <strong>de</strong> duas dàcadas<br />
<strong>de</strong> guerra civil e pela insana polÉtica <strong>de</strong> retorno aos costumes medievais implantada pelo<br />
TalibÇ, a milÉcia fundamentalista que domina a maior parte do territÑrio” 201 . Um paÉs que,<br />
segundo a revista, nem sequer po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado uma naÅÇo pelos padrâes mo<strong>de</strong>rnos:<br />
101<br />
[...] paÉs sem estradas, sem hidrelàtricas, sem pontes nem instalaÅâes <strong>de</strong><br />
telecomunicaÅâes. Pior: o AfeganistÇo, alàm <strong>de</strong> tudo isso, já teve sua economia<br />
primitiva <strong>de</strong>vastada por guerra anterior. Hoje, o paÉs afegÇo à um lugar <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s<br />
fantasmas. 202<br />
O cenário geográfico revela uma paisagem bÉblica, com camelos, montanhas áridas e<br />
cavernas, habitado por seres que parecem viver fora do tempo: gente que vive em fuga “para<br />
as cavernas abertas na rocha bruta, on<strong>de</strong>, nos casos mais extremos, as pessoas conseguem<br />
sobreviver comendo os sais minerais colhidos <strong>de</strong> terra fervida” 203 , gente mantida em “estado<br />
<strong>de</strong> ignorência”, sem contato com o mundo externo graÅas aos rÉgidos controles do “grupo<br />
fundamentalista, que proÉbe a televisÇo e submete a populaÅÇo äs transmissâes <strong>de</strong> uma ënica<br />
rádio” 204 . Segundo Veja, tÇo logo tomou o po<strong>de</strong>r, o TalibÇ pendurou televisâes estraÅalhadas<br />
nos postes, para mostrar ao povo o que pensava <strong>de</strong>sse satênico agente da <strong>de</strong>cadÖncia<br />
199<br />
“Assassinato em nome <strong>de</strong> Alá”, disponÉvel em: . Acesso em 23<br />
jul. 2006.<br />
200<br />
“Assassinato...”, loc. cit.<br />
201<br />
“A <strong>de</strong>scoberta da vulnerabilida<strong>de</strong>”, disponÉvel em: . Acesso em<br />
23 jul. 2006.<br />
202<br />
“Este paÉs já está arrasado”, disponÉvel em: .<br />
Acesso em 23 jul. 2006.<br />
203 “Este paÉs...”, loc. cit.<br />
204 “Este paÉs...”, loc. cit.
oci<strong>de</strong>ntal. O texto entrelaÅa ignorência com manipulaÅÇo i<strong>de</strong>olÑgico-religiosa, pois mostra um<br />
povo que <strong>de</strong>sconhece as imagens dos ataques contra Nova Iorque e Washington, mas, mesmo<br />
assim, se arma para reagir ä possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ataque americano.<br />
102<br />
O universo dos fundamentalistas à aquele em que se queimam livros, se proÉbem<br />
filmes e mësica. As mulheres sÇo cobertas <strong>de</strong> vàus e <strong>de</strong>vem submissÇo ao po<strong>de</strong>r<br />
masculino. Os fundamentalistas usam Deus como <strong>de</strong>sculpa para todas as coisas ─<br />
inclusive as mais terrÉveis atrocida<strong>de</strong>s, como as cometidas em Nova York e<br />
Washington. 205<br />
RetrÑgrados, ignorantes e fanáticos: eis o perfil dos muÅulmanos extremistas.<br />
“Terroristas cujo ënico objetivo à retornar ao sàculo VIII”, esse “bando <strong>de</strong> guerreiros<br />
montados em cavalos e camelos, empunhando fuzis antiquados” sÑ quer “ver sangue”, sÇo<br />
soldados que “surgem das sombras, dispostos a morrer junto com suas vÉtimas”, diz o texto<br />
jornalÉstico que, com <strong>de</strong>boche, chama os afegÇos <strong>de</strong> “turma do turbante”.<br />
Contra o lÉ<strong>de</strong>r dos terroristas suicidas, a narrativa <strong>de</strong> Veja quase fugiu dos mandamentos<br />
do jornalismo: diante <strong>de</strong> uma entÇo suspeita da autoria dos atentados (“Mesmo se nÇo for<br />
responsável pelo ataque infame ao World Tra<strong>de</strong> Center e ao Pentágono, Osama bin La<strong>de</strong>n tem<br />
uma folha corrida que justifica sua fama e as novas e terrÉveis suspeitas que agora pesam sobre<br />
ele”), os adjetivos e figuras <strong>de</strong> linguagem utilizados nÇo <strong>de</strong>ixavam dëvida quanto ä con<strong>de</strong>naÅÇo<br />
pràvia <strong>de</strong> Osama bin La<strong>de</strong>n. Seguida ä menÅÇo <strong>de</strong> seu nome, surgiam expressâes como: “o<br />
inimigo nëmero 1 da Amàrica”, “o fanático islêmico que <strong>de</strong>clarou guerra aos Estados Unidos<br />
em nome <strong>de</strong> Alá”, “um cêncer que, agora mais do que nunca, precisa ser extirpado”, um<br />
milionário que “terceiriza terroristas”, o rosto do “Mal” que “nunca reivindicou a autoria das<br />
brutalida<strong>de</strong>s que levam a sua marca”, alguàm que “assassina, massacra e amedronta, mas se<br />
mantàm na sombra, renunciando ao narcisismo que costuma caracterizar as aÅâes terroristas”,<br />
um “mulá islêmico enlouquecido pelo po<strong>de</strong>r absoluto exercido por meio do braÅo armado <strong>de</strong><br />
seus terroristas suicidas”. Seus seguidores, a Al Qaeda, sÇo <strong>de</strong>scritos como “seu bando”, “Bin<br />
La<strong>de</strong>n e companhia”, uma “re<strong>de</strong> macabra” <strong>de</strong> “facÉnoras”.<br />
Talvez guiada pelo preceito jornalÉstico <strong>de</strong> apresentar os dois lados <strong>de</strong> uma questÇo, a<br />
revista conce<strong>de</strong> a seus leitores, em algum ponto das inëmeras páginas tomadas com os<br />
atentados, a imagem muÅulmana <strong>de</strong> bin La<strong>de</strong>n, qual seja a do “Édolo revolucionário” <strong>de</strong> “boa<br />
parte” do mundo muÅulmano, a do “Che Guevara do IslÇ”. Um texto-legenda sob uma foto <strong>de</strong><br />
artigos <strong>de</strong> consumo estampados com a face do lÉ<strong>de</strong>r diz: “Assim como a do guerrilheiro<br />
205 “A <strong>de</strong>scoberta da vulnerabilida<strong>de</strong>”, disponÉvel em: . Acesso em<br />
23 jul. 2006.
comunista Che Guevara, a imagem do terrorista saudita está estampada em camisetas,<br />
pòsteres e folhetos, que celebram os seus ‘feitos’. No pòster acima ä esquerda, Bin La<strong>de</strong>n à<br />
chamado <strong>de</strong> ‘Guerreiro do IslÇ’”. Digamos que comparar La<strong>de</strong>n com outro inimigo do<br />
capitalismo oci<strong>de</strong>ntal nÇo chega a polir o seu já tÇo odiado perfil. Ainda mais quando o texto<br />
subsequente traz sua <strong>de</strong>scriÅÇo fÉsica segundo o FBI e a impressÇo <strong>de</strong> um americano que o<br />
conheceu <strong>de</strong> perto:<br />
103<br />
Ele tambàm impressionava pela sua figura ascàtica ─ tem entre 1,92 e 1,97 metro <strong>de</strong><br />
altura e pesa 72 quilos, segundo registra a ficha no FBI ─, que emoldurava um<br />
discurso <strong>de</strong> Ñdio temperado com imagens poàticas e proferido sempre em voz suave.<br />
“Suas palavras soam como bons conselhos <strong>de</strong> um velho tio”, compara o jornalista<br />
americano John Miller, que o entrevistou há trÖs anos para a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> televisÇo ABC. 206<br />
As imagens que confrontam os dois lados da guerra nÇo po<strong>de</strong>riam ser mais assimàtricas:<br />
opâem a maior “superpotÖncia” do planeta contra terroristas que se escon<strong>de</strong>m nos grotâes do<br />
Terceiro Mundo; o paÉs on<strong>de</strong> a prosperida<strong>de</strong> à fruto do trabalho contra aquele em que “há<br />
muito pouco a ser <strong>de</strong>struÉdo”; a naÅÇo-mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> polÉtica e individual contra o<br />
“barril <strong>de</strong> pÑlvora” resultante da mistura <strong>de</strong> “fundamentalismo religioso” com “oportunismo<br />
domàstico” e “obscurantismo”. A assimetria se reproduziu tambàm no comportamento<br />
editorial <strong>de</strong> Veja: ouviu apenas autorida<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais sobre o assunto; em suas páginas, o<br />
mundo islêmico nÇo teve voz, ou melhor, <strong>de</strong>ixaram falar apenas os fanáticos, os lÉ<strong>de</strong>res<br />
terroristas <strong>de</strong> todos os tempos 207 , aqueles que, segundo a prÑpria revista, constituem a minoria<br />
dos paÉses islêmicos.<br />
As reportagens reproduzem a ignorência do mundo oci<strong>de</strong>ntal a respeito do Oriente: para<br />
a revista, assim como para os americanos humilhados em sua pretensa superiorida<strong>de</strong>, os<br />
muÅulmanos, “aquela gente”, sÇo uma abstraÅÇo; como diz Said, “nÇo se trata <strong>de</strong> um povo<br />
real, com uma socieda<strong>de</strong> real, constituÉda <strong>de</strong> crianÅas, mÇes e pais que se amam e que estÇo<br />
sendo mortos” 208 . Igualmente, embora nÇo se canse <strong>de</strong> repetir que os fundamentalistas veem<br />
os Estados Unidos como um “paÉs satênico” contra o qual sentem um “Ñdio incontrolável”,<br />
em nenhum momento a revista assumiu que, ao <strong>de</strong>screver o fundamentalismo islêmico como<br />
uma “manifestaÅÇo <strong>de</strong> uma elite que exerce sobre seus povos uma tirania milenar, baseada na<br />
206<br />
“O Che Guevara do IslÇ”, disponÉvel em: . Acesso em 23 jul.<br />
2006.<br />
207<br />
CitaÅâes listadas nas reportagens: "Os americanos vÇo nadar em seu prÑprio sangue", <strong>de</strong> Saddam Hussein, em<br />
1991; "Humilhamos a Amàrica", <strong>de</strong> Muamar Kadafi, em 1986; "Os Estados Unidos sÇo o Gran<strong>de</strong> SatÇ", <strong>de</strong><br />
Aiatolá Khomeini, em 1979. In: “Ou estÇo do nosso lado ou do lado dos terroristas”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 23 jul. 2006.<br />
208<br />
SAID apud DIAS, 2003, p. 6.
eligiÇo e nos costumes imutáveis”, estava presenteando os leitores com a versÇo oci<strong>de</strong>ntal do<br />
inimigo.<br />
Depois das reportagens publicadas nas cinco ediÅâes posteriores aos atentados, Veja<br />
parece partilhar assim da responsabilida<strong>de</strong> atribuÉda pelos oci<strong>de</strong>ntais aos terroristas: a <strong>de</strong><br />
ajudar a <strong>de</strong>struir as “reservas <strong>de</strong> simpatia em relaÅÇo ao povo palestino”. Se tal simpatia se<br />
solidarizava com um povo em busca da criaÅÇo <strong>de</strong> um estado in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, a informaÅÇo <strong>de</strong><br />
que “tudo o que o fundamentalismo islêmico <strong>de</strong>seja à impor sua versÇo fanática do IslÇ a todo<br />
o mundo” à tÇo aterrorizante do ponto <strong>de</strong> vista oci<strong>de</strong>ntal quanto a visÇo <strong>de</strong> terroristas suicidas<br />
golpeando <strong>de</strong> morte a civilizaÅÇo capitalista para conquistar lugar <strong>de</strong> honra no paraÉso.<br />
6.3 O MUóULMANO E O ISLAMISMO EM “O CLONE”<br />
As tropas americanas já tinham invadido o AfeganistÇo quando a telenovela “O Clone”,<br />
<strong>de</strong> Gloria Perez, estreou na TV Globo. Quando terroristas suicidas <strong>de</strong>rrubaram as torres<br />
gÖmeas quase um mÖs antes, colocando na fogueira oci<strong>de</strong>ntal os costumes e o<br />
fundamentalismo islêmico, a sinopse da novela já estava pronta e alguns capÉtulos já tinham<br />
sido gravados. A mistura <strong>de</strong> temas como clonagem, islamismo, drogas e alcoolismo, e a<br />
coincidÖncia temática entre a trama da ficÅÇo e o noticiário ─ sem contar o talento narrativo<br />
da autora ─ garantiram o sucesso da novela durante os oito meses e meio em que foi ao ar no<br />
Brasil. Segundo dados da prÑpria emissora na àpoca, “O Clone” registrou a maior audiÖncia<br />
do horário das oito da Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1997, quando a emissora exibiu “A Indomada”.<br />
Na trama, uma jovem, ÑrfÇ <strong>de</strong> muÅulmanos, nascida e criada no Brasil, vÖ-se obrigada a<br />
se mudar para o Marrocos, on<strong>de</strong> mora seu tio, e enfrenta as dificulda<strong>de</strong>s em se adaptar a uma<br />
cultura tÇo diferente da que estava acostumada no Rio <strong>de</strong> Janeiro, cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vivia. Lá,<br />
apaixona-se ä primeira vista por um jovem brasileiro que visitava o paÉs na companhia <strong>de</strong> seu<br />
irmÇo gÖmeo, do pai, e <strong>de</strong> um cientista amigo. De volta ao Brasil, o irmÇo gÖmeo morre num<br />
aci<strong>de</strong>nte. Inconformado com sua morte, o cientista, padrinho do jovem, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> investir num<br />
sonho antigo: a experiÖncia da clonagem humana. A matriz <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o cientista extrai o DNA<br />
para a criaÅÇo do clone à justamente o rapaz por quem a ÑrfÇ se apaixona. Um casamento<br />
arranjado pelo tio da moÅa com um empresário muÅulmano introduz o conflito entre a liberda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> escolha e o respeito äs tradiÅâes, entre o amor verda<strong>de</strong>iro e aquele <strong>de</strong>signado pela religiÇo e<br />
pela cultura, entre autonomia e <strong>de</strong>stino. A busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> à, para o diretor Jayme<br />
104
Monjardim 209 , o principal tema <strong>de</strong> “O Clone”: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da muÅulmana em crise com sua<br />
cultura, dos gÖmeos idÖnticos, do conflito entre clone e clonado, e do homem diante <strong>de</strong> Deus.<br />
Os conflitos àticos da experiÖncia e os <strong>de</strong>sencontros amorosos do casal protagonista<br />
causados pelas diferenÅas culturais e religiosas <strong>de</strong> suas famÉlias, alàm da exposiÅÇo do drama da<br />
<strong>de</strong>pendÖncia quÉmica garantiram a atualida<strong>de</strong> da narrativa e abasteceram a socieda<strong>de</strong> brasileira<br />
<strong>de</strong> questâes polÖmicas. Por outro lado, as imagens do Marrocos, as cores do Oriente, os tecidos,<br />
a danÅa e os costumes representaram um espetáculo ä parte <strong>de</strong> beleza e plasticida<strong>de</strong>.<br />
A presenÅa do Oriente na tela brasileira foi, segundo a emissora, resultado <strong>de</strong> um<br />
cuidadoso trabalho <strong>de</strong> reproduÅÇo da cultura muÅulmana: o elenco, na composiÅÇo das<br />
personagens, assistiu a vários filmes árabes e iranianos, leu livros sobre os dois temas<br />
principais da histÑria, teve aulas <strong>de</strong> árabe, <strong>de</strong> danÅa, <strong>de</strong> expressÇo corporal e <strong>de</strong> prática <strong>de</strong><br />
oraÅâes, alàm <strong>de</strong> leituras <strong>de</strong> textos; o diretor imprimiu um tom alaranjado äs cenas do<br />
Marrocos com o objetivo <strong>de</strong> trazer a cor da terra do Oriente para a tela, afinando, segundo ele,<br />
“tudo e todos”, como se regesse uma orquestra visual. Levar essa cor para “O Clone” “passou<br />
a nortear toda a preparaÅÇo da novela: do figurino ao cenário, da interpretaÅÇo ä fotografia,<br />
dos diálogos ä trilha sonora, da arte ä iluminaÅÇo” 210 . Alàm disso, as primeiras cenas da<br />
novela foram gravadas em diversas locaÅâes no paÉs (as ruÉnas do kasbah Ait Ben Hadou em<br />
Ouarzazate, o mercado <strong>de</strong> camelos <strong>de</strong> Marrakesh, a cisterna portuguesa <strong>de</strong> El Jadida e a<br />
milenar Medina <strong>de</strong> Fez, que serviu <strong>de</strong> referÖncia para a cida<strong>de</strong> cenográfica marroquina no<br />
Projac). No que diz respeito ä parte textual, a autora contou com a consultoria do xeque Jihad<br />
Hassan Hamma<strong>de</strong>h, vice-presi<strong>de</strong>nte da World Assembly of Muslim Youth (Wamy) e <strong>de</strong> outras<br />
autorida<strong>de</strong>s do mundo muÅulmano no Brasil.<br />
Todos estes cuidados, no entanto, se, por um lado, criaram um universo imaginário<br />
fascinante, por outro, nÇo impediram a crÉtica <strong>de</strong> apontar inverossimilhanÅas em “O Clone” e<br />
reclamar sobre o que chamaram <strong>de</strong> distorÅâes a respeito do mundo muÅulmano e do<br />
islamismo. Sempre há os que esperam da telenovela um retrato fiel da realida<strong>de</strong>, ignorando o<br />
fato <strong>de</strong> o gÖnero ser uma crònica da realida<strong>de</strong>, uma obra <strong>de</strong> ficÅÇo inspirada nela, limitada<br />
pelos reducionismos prÑprios da linguagem televisiva. (ï muito comum ao pëblico e mesmo ä<br />
crÉtica especializada tomar a telenovela como uma reportagem jornalÉstica ou como um<br />
documentário, esperando <strong>de</strong>la que trate o cotidiano das personagens <strong>de</strong> forma naturalista,<br />
209 MONJADIM, in “A busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 ago. 2006.<br />
210 MONJADIM, in “Sinfonia <strong>de</strong> cores”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 ago. 2006.<br />
105
como se fosse o que conhecemos hoje como um reality show, e que reproduza fielmente o<br />
real, como se fosse uma aula <strong>de</strong> histÑria ou uma matària jornalÉstica.)<br />
Talvez esse <strong>de</strong>sencontro tenha sido causado justamente pela escolha do paÉs-locaÅÇo:<br />
geograficamente mais prÑximo do Brasil (o que facilitava o <strong>de</strong>slocamento da produÅÇo), o<br />
Marrocos à um paÉs distante <strong>de</strong> outros paÉses árabes e islêmicos por ser, em alguma medida,<br />
mais “oci<strong>de</strong>ntal”. Segundo Zelia Leal Adghirni, pesquisadora e jornalista brasileira com anos <strong>de</strong><br />
trabalho no Marrocos, “A geografia e a histÑria do Marrocos permitiram que se beneficiasse <strong>de</strong><br />
diversas influÖncias culturais, abrindo-se sobre o mundo e a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> sem abandonar as<br />
tradiÅâes” 211 . Neste sentido, situar justo neste paÉs um nëcleo muÅulmano <strong>de</strong> comportamento<br />
mais arraigado äs remotas tradiÅâes culturais e religiosas revela-se um recurso dramatërgico <strong>de</strong><br />
apresentaÅÇo do diferente que, embora válido do ponto <strong>de</strong> vista da imaginaÅÇo literária, ten<strong>de</strong> a<br />
consolidar o estereÑtipo do árabe como alguàm que vive fora do tempo.<br />
Para Gloria Perez, no entanto, a localizaÅÇo geográfica da trama resultou apenas <strong>de</strong> uma<br />
necessida<strong>de</strong> situacional: a histÑria <strong>de</strong>via se passar em um paÉs muÅulmano <strong>de</strong> modo a permitir a<br />
construÅÇo <strong>de</strong> um quadro genàrico sobre cultura muÅulmana. A escolha do Marrocos, segundo<br />
ela, foi fruto <strong>de</strong> um imprevisto: na sinopse original, o paÉs escolhido era o Egito (tambàm mais<br />
oci<strong>de</strong>ntalizado), e o cenário composto por imagens da capital Cairo e tambàm da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fez,<br />
no Marrocos; a equipe já estava no Cairo escolhendo as locaÅâes quando foi impedida <strong>de</strong><br />
continuar seu trabalho por um Ministro <strong>de</strong> Estado, graÅas ä <strong>de</strong>claraÅÇo da atriz Eliane Giardini,<br />
publicada na imprensa brasileira, segundo a qual a personagem Nazira lhe daria chances <strong>de</strong> falar<br />
sobre a opressÇo sofrida pelas mulheres no mundo muÅulmano 212 . A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> on<strong>de</strong> as cenas<br />
seriam gravadas, a autora já havia <strong>de</strong>ixado claro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a apresentaÅÇo da novela para a emissora<br />
que nÇo estava comprometida em retratar um paÉs em seus traÅos mais especÉficos: “o Egito e<br />
Marrocos sÇo cenários escolhido para botar em cena a cultura muÅulmana <strong>de</strong> uma maneira<br />
geral, seus costumes, sua visÇo <strong>de</strong> mundo”:<br />
106<br />
nÇo vamos, propositalmente, diferenciar as correntes do islamismo, <strong>de</strong> modo a nÇo<br />
tomar o partido <strong>de</strong> nenhuma <strong>de</strong>las. Assim, nÇo se dirá se as personagens que<br />
representam o mundo muÅulmano sÇo xiitas ou sunnitas ─ essa à uma polÖmica<br />
<strong>de</strong>snecessária para a novela, e estaremos atentos para evitá-la. 213<br />
De todo modo, para o pëblico, os hábitos e costumes narrados na trama retratavam a<br />
vida no Marrocos e, para o bem e para o mal, passaram a fazer parte do imaginário coletivo<br />
211 ADGHIRNI, “O falso clone do Marrocos”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 9 mar. 2006.<br />
212 PEREZ, informaÅÇo verbal, 2 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 253.<br />
213 I<strong>de</strong>m, in: “O Clone ─ IntroduÅÇo”, material cedido pela autora e apresentado ä emissora.
do brasileiro sobre aquele paÉs. O que significa dizer que, na apreensÇo da audiÖncia, o que<br />
era para ser um painel composite da cultura muÅulmana como um todo, ficou registrado como<br />
um retrato do Marrocos.<br />
Cabe aqui registrar que a diferenÅa cultural que emerge da apresentaÅÇo (e representaÅÇo)<br />
do Outro, foco central <strong>de</strong>ste estudo, nÇo à a temática principal <strong>de</strong> “O Clone”. Ela está em segundo<br />
plano em relaÅÇo ä temática da clonagem humana (e ä do amor contrariado, eixo da maioria dos<br />
folhetins) 214 . Segundo texto da prÑpria autora, que serviu <strong>de</strong> introduÅÇo ä sinopse,<br />
107<br />
O que está em primeiro plano à a vivÖncia emocionada <strong>de</strong> uma nova situaÅÇo <strong>de</strong> vida,<br />
o confronto entre o clone e o clonado. O tema à atual, polÖmico, capaz <strong>de</strong> mobilizar e<br />
provocar impacto. Ao mesmo tempo, em sendo tÇo novo, guarda ainda a magia das<br />
maravilhas apenas imaginadas pela mente humana.<br />
Essa experiÖncia atualÉssima, que reverte todos os conceitos, todas as certezas que atà<br />
agora tivemos sobre os mistàrios <strong>de</strong> nossa prÑpria origem, terá como contraponto os<br />
muÅulmanos e suas tradiÅâes milenares. A religiosida<strong>de</strong> do oriente, sua fà, sua<br />
preocupaÅÇo com o espÉrito, com a salvaÅÇo da alma, estará em confronto com o<br />
materialismo do oci<strong>de</strong>nte. O homem “submisso” a Deus, e o homem que buscar<br />
“submeter” Deus, tornando-se, ele prÑprio, criador. 215<br />
Ou como diz pesquisador <strong>de</strong> telenovela Nilson Xavier, “O Clone” po<strong>de</strong> ser sintetizado<br />
como “O encontro <strong>de</strong> um homem com sua imagem 20 anos mais jovem” 216 :<br />
[...] No comeÅo da histÑria Lucas à um adolescente alegre, romêntico, cheio <strong>de</strong><br />
projetos, e está apaixonado por uma moÅa muÅulmana: Ja<strong>de</strong>. Mas a vida nÇo correu<br />
bem para ele: separa-se <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong>, e ao longo dos 20 anos que se passam na novela,<br />
<strong>de</strong>caiu fisicamente, seus projetos se per<strong>de</strong>ram pelo caminho, nÇo tem mais a ternura, o<br />
romantismo, a poesia <strong>de</strong> antes. Tornou-se seco e duro. Ja<strong>de</strong>, por outro lado, viveu esse<br />
tempo todo imaginando que sua vida teria sido muito mais feliz se tivesse casado com<br />
ele. Vinte anos mais tar<strong>de</strong> eles se reencontram. Ja<strong>de</strong> se <strong>de</strong>cepciona tentando encontrar,<br />
no Lucas quarentÇo, resquÉcios do adolescente por quem se apaixonara um dia. ï<br />
quando aparece o clone, feito a revelia <strong>de</strong> Lucas por seu padrinho, o geneticista<br />
Albieri. O clone nÇo à Lucas, mas à a imagem que Ja<strong>de</strong> amou e cultivou durante a<br />
vida inteira. Temos entÇo um triêngulo incomum: Lucas se tornando o rival <strong>de</strong> si<br />
prÑprio. O aparecimento do clone revoluciona completamente as vidas <strong>de</strong> todas as<br />
personagens da trama. 217<br />
A sinopse da novela divulgada por Xavier diz:<br />
No Marrocos, nos anos 80, comeÅa essa gran<strong>de</strong> histÑria <strong>de</strong> dilemas: as diferenÅas<br />
culturais e religiosas, a corrupÅÇo com a àtica em nome da ciÖncia e a difÉcil questÇo<br />
do casamento por amor ou conveniÖncia.<br />
Há 18 anos, Ja<strong>de</strong> fica ÑrfÇ e volta para o Marrocos on<strong>de</strong> passará a viver com o tio Ali,<br />
a prima Latiffa, e Zorai<strong>de</strong>. Lá, ela terá que se reconciliar com a religiÇo <strong>de</strong> sua famÉlia,<br />
totalmente formada por muÅulmanos, e conhecerá Lucas, que estará <strong>de</strong> fàrias na<br />
214 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 237.<br />
215 I<strong>de</strong>m, in: “O Clone ─ IntroduÅÇo”, material cedido pela autora e apresentado ä emissora.<br />
216 XAVIER, disponÉvel em: . Acesso em 1 nov. 2009.<br />
217 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.
108<br />
ôfrica. Mas uma sàrie <strong>de</strong> fatos impedirá a uniÇo do casal. O primeiro <strong>de</strong>les à a<br />
oposiÅÇo <strong>de</strong> Ali, que obrigará Ja<strong>de</strong> a seguir os ensinamentos do AlcorÇo, livro sagrado<br />
islêmico, e arranjará para a moÅa um casamento com Said, mesmo com toda a rebeldia<br />
da sobrinha.<br />
O segundo e mais marcante à a morte <strong>de</strong> Diogo, irmÇo gÖmeo <strong>de</strong> Lucas, em<br />
consequÖncia da explosÇo <strong>de</strong> seu helicÑptero no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Antes da tragàdia,<br />
Diogo estava no Marrocos com o irmÇo e havia brigado violentamente com o seu pai,<br />
o milionário Leònidas Ferraz, por este tÖ-lo preterido em favor <strong>de</strong> Yvete, mulher com<br />
quem o rapaz teve uma aventura amorosa sem saber que era a namorada <strong>de</strong> seu pai, na<br />
noite anterior ä chegada <strong>de</strong>le ao Marrocos. O falecimento <strong>de</strong> Diogo causa um<br />
profundo remorso em Leònidas, que passa a fugir constantemente <strong>de</strong> Yvete, cujas<br />
intrigas causaram o <strong>de</strong>sentendimento entre pai e filho. Apesar das mágoas, Leònidas<br />
vai exigir <strong>de</strong> Lucas que cui<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas empresas. O rapaz, retraÉdo e sonhador, bem<br />
diferente do falecido irmÇo, almeja ser mësico. Mas Leònidas nÇo ouvirá seus<br />
argumentos e seus projetos nÇo serÇo concretizados. Com as pressâes do pai, o jovem<br />
à obrigado a abandonar Ja<strong>de</strong>, o seu gran<strong>de</strong> amor. ï a partir daÉ que comeÅa a se<br />
<strong>de</strong>senrolar a trajetÑria <strong>de</strong> sua infeliz uniÇo com Maysa, que foi namorada do Diogo<br />
anteriormente. Os dois viverÇo discutindo e, com isso, Mel, a filha do casal, se<br />
envolverá com drogas.<br />
Quem nÇo se conforma com a morte <strong>de</strong> Diogo à seu padrinho, o cientista Augusto<br />
Albieri, que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> fazer um clone <strong>de</strong> Lucas a partir <strong>de</strong> uma càlula somática. A càlula<br />
à introduzida em segredo nos Ñvulos colhidos em laboratÑrio vindos <strong>de</strong> Deusa, uma<br />
manicure que almeja muito ter um filho atravàs da inseminaÅÇo artificial. Entretanto,<br />
ela <strong>de</strong>scobre a verda<strong>de</strong>: nÇo houve nenhuma fertilizaÅÇo <strong>de</strong> seus Ñvulos com o sÖmen<br />
<strong>de</strong> um doador qualquer, e sim, a experiÖncia genàtica <strong>de</strong> Albieri. Por isso Deusa nÇo à<br />
a mÇe <strong>de</strong> Lào e apenas serviu como mÇe <strong>de</strong> aluguel para o clone <strong>de</strong> Lucas, batizado <strong>de</strong><br />
Leandro. 218<br />
Embora esteja em segundo plano, à a apresentaÅÇo das diferenÅas culturais que me<br />
interessa aqui. Na trama <strong>de</strong> Gloria Perez existem dois nëcleos muÅulmanos ligados por<br />
tortuosos laÅos <strong>de</strong> famÉlia. Embora um viva na Medina <strong>de</strong> Fez, no Marrocos, e o outro em SÇo<br />
CristÑvÇo, na Zona Norte do Rio <strong>de</strong> Janeiro, eles se visitam com a frequÖncia <strong>de</strong> parentes<br />
vizinhos. (Embora a crÉtica reclamasse que a verossimilhanÅa tenha ficado abalada com o<br />
permanente trênsito <strong>de</strong> personagens entre o Marrocos e o Brasil, à possÉvel perceber tal<br />
“proximida<strong>de</strong>” como um recurso narrativo <strong>de</strong> agilizar o ritmo da histÑria, resultado do pacto<br />
ficcional estabelecido entre a autora e o pëblico. Afinal, como diz a prÑpria, “no romance, o<br />
autor dá a volta ao mundo em uma linha!” 219 )<br />
Os conflitos nÇo se dÇo entre as personagens mais idosas e as mais jovens: nas famÉlias<br />
marroquinas da novela nÇo há conflito <strong>de</strong> geraÅâes ─ pelo menos nÇo entre os homens ─,<br />
todos respeitam o “Livro Sagrado” e temem a ira <strong>de</strong> Alá, que à capaz <strong>de</strong> fazer os infiàis “ar<strong>de</strong>r<br />
no mármore do inferno” ou “ser jogados no vento”. Os conflitos se dÇo na esfera do<br />
(<strong>de</strong>s)encontro cultural: a moÅa muÅulmana criada no Brasil que à entregue aos cuidados <strong>de</strong><br />
um tio no Marrocos; as famÉlias constituÉdas em Fez que se mudam para o Rio por conta dos<br />
218 XAVIER, disponÉvel em: . Acesso em 1 nov. 2009.<br />
219 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 238.
negÑcios; ou os tios idosos e a empregada <strong>de</strong> confianÅa que transitam entre os dois paÉses. O<br />
que estabelece, para o conjunto <strong>de</strong> personagens da trama, a fronteira entre o certo e o errado, o<br />
justo e o injusto, a cultura e a religiÇo sÇo os contrastes entre o mundo oci<strong>de</strong>ntal e o oriental, a<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> exigida do muÅulmano em cada gesto do cotidiano, e a arrogência ou submissÇo do<br />
homem em relaÅÇo a Deus.<br />
Em “O Clone”, somente personagens femininas (no caso, a ÑrfÇ Ja<strong>de</strong> e a “criada” e<br />
conselheira Zorai<strong>de</strong>) enfrentam com ousadia e autonomia os <strong>de</strong>safios da interculturalida<strong>de</strong> e<br />
os <strong>de</strong>sÉgnios do <strong>de</strong>stino. Criada no Brasil <strong>de</strong>sligada da religiÇo da mÇe, cuja morte leva a ÑrfÇ<br />
carioca a viver com tios no Marrocos, Ja<strong>de</strong> resiste ä i<strong>de</strong>ia do casamento arranjado, questiona a<br />
obrigaÅÇo <strong>de</strong> submeter-se ao marido e <strong>de</strong>ver-lhe obediÖncia incondicional, <strong>de</strong>safia o <strong>de</strong>stino<br />
traÅado pela famÉlia, rejeita o castigo imposto äs mulheres infiàis (80 chibatadas em praÅa<br />
pëblica) e sente-se <strong>de</strong>sconfortável com o uso do vàu. Mulher muÅulmana madura criada <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
menina pela famÉlia <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong> em Fez, Zorai<strong>de</strong> vale-se das crendices populares e <strong>de</strong> sua longa<br />
experiÖncia <strong>de</strong> vida como mulher numa cultura masculina para brindar os mais jovens com a<br />
sabedoria da conciliaÅÇo: diante <strong>de</strong> qualquer impasse, contornar sempre, pois o confronto,<br />
segundo ela, sÑ produz endurecimento.<br />
Por nÇo estarem motivadas pelo amor impossÉvel intercultural e inter-religioso (como<br />
Ja<strong>de</strong>) ou por nÇo terem a sabedoria da maturida<strong>de</strong> (como Zorai<strong>de</strong>), as <strong>de</strong>mais personagens<br />
femininas que por diversas razâes sÇo obrigadas a lidar com a diferenÅa cultural, sequer<br />
cogitam o caminho da resistÖncia ä tradiÅÇo, seja ela pelo embate ou pela conciliaÅÇo<br />
estratàgica. A filha <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong>, Khadija, apesar <strong>de</strong> viver no Rio com a mÇe questionadora dos<br />
valores muÅulmanos, comemora quando seu pai a presenteia com um vàu, orgulha-se <strong>de</strong> usá-<br />
lo em toda parte e reza para encontrar um marido “bem bonito, bem rico” e que lhe dÖ “muito<br />
ouro”. A cunhada solteirona Nazira se refugia na fantasia dos contos <strong>de</strong> Scheraza<strong>de</strong> para<br />
sobreviver ä opressÇo contra a mulher e cultivar suas esperanÅas <strong>de</strong> conquistar um marido e<br />
cumprir, atravàs do casamento, as tradiÅâes reservadas ä mulher virtuosa e respeitadora dos<br />
costumes. A prima Latiffa, que teve a sorte <strong>de</strong> vir a amar o marido escolhido pelo tio, vive<br />
segundo os costumes, questionando apenas a opÅÇo pela poligamia: usa <strong>de</strong> sua prerrogativa <strong>de</strong><br />
primeira esposa para negar ao parceiro o direito <strong>de</strong> se casar <strong>de</strong> novo (na verda<strong>de</strong>, sendo a<br />
poligamia um direito que está submetido ä concordência da primeira esposa, Latiffa nÇo se<br />
rebela contra os costumes, apenas luta com as armas que lhe foram confiadas pela prÑpria<br />
tradiÅÇo). Vive em casa com seus filhos adolescentes, preocupada em seduzir o marido com<br />
refeiÅâes tÉpicas e com shows particulares <strong>de</strong> danÅa do ventre ─ tudo para <strong>de</strong>movÖ-lo da i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> “contratar” um segundo casamento.<br />
109
O recato da mÇe Latiffa e a rigi<strong>de</strong>z religiosa do pai Mohamed trazem para os filhos um<br />
mo<strong>de</strong>lo difÉcil <strong>de</strong> seguir no bairro carioca. O samba, o carnaval, os passeios ä praia, os trajes <strong>de</strong><br />
verÇo e a convivÖncia com brasileiros na escola criam um cenário favorável para um tipo <strong>de</strong><br />
resistÖncia aos costumes diferente daquele encontrado em Ja<strong>de</strong> e Zorai<strong>de</strong>: os adolescentes<br />
Samira e Amin sÇo filhos <strong>de</strong> muÅulmanos, mas vivem no Rio <strong>de</strong> Janeiro sob as influÖncias da<br />
cultura brasileira, ao contrário <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong> e Zorai<strong>de</strong>, que resistem ä cultura do local on<strong>de</strong> vivem.<br />
Por estarem fisicamente afastados do Marrocos e viverem sob o impacto da cultura brasileira, a<br />
jovem Samira se recusa a usar o vàu; o jovem Amin vive entre a tentaÅÇo do voyeurismo dos<br />
corpos <strong>de</strong>scobertos das brasileiras e a tarefa <strong>de</strong> dar o exemplo <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> religiosa ä irmÇ.<br />
Poligamia, contrato matrimonial, castigo, pecado e <strong>de</strong>stino sÇo preocupaÅâes <strong>de</strong> um<br />
mundo distante, misticamente envolto em vàu e cheiro <strong>de</strong> incenso. Um mundo em que a religiÇo<br />
rege igualmente o Estado, as <strong>de</strong>cisâes <strong>de</strong> negÑcio e a vida da famÉlia. Ao trazer a cultura<br />
muÅulmana e a religiÇo islêmica para <strong>de</strong>ntro do cenário brasileiro, a telenovela <strong>de</strong>spertou a<br />
atenÅÇo do pëblico para o conflito entre as diferenÅas e o fez justamente num momento em que<br />
seus seguidores estavam sendo i<strong>de</strong>ntificados genericamente como fanáticos suicidas. Segundo o<br />
jornalista EugÖnio Bucci, “O Clone” auxilia na compreensÇo intercultural entre brasileiros e<br />
árabes para o bem e para o mal: proporciona a “humanizaÅÇo” dos muÅulmanos, que estÇo<br />
sendo “satanizados” pelos jornais, mas tambàm oferece subsÉdios para a criaÅÇo <strong>de</strong> outros<br />
preconceitos 220 .<br />
6.4 NARRATIVAS EM PERSPECTIVA<br />
Se o mundo muÅulmano que transborda das páginas <strong>de</strong> Veja cheio <strong>de</strong> Ñdio atávico pelo<br />
estilo <strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal à povoado por homens barbudos, vestidos em tënicas e turbantes, e<br />
armados com fuzis ultrapassados, o mundo muÅulmano <strong>de</strong>scrito em “O Clone” à uma terra<br />
habitada por homens severos (barbudos, vestidos em tënicas e turbantes), mas especialmente<br />
dominada pelos encantos da mulher graciosa, danÅarina sedutora, esposa e mÇe <strong>de</strong>dicada,<br />
sábia alquimista <strong>de</strong> especiarias e especialista em negociar sua aparente fragilida<strong>de</strong>. Ao passo<br />
que o <strong>de</strong>serto impresso nas páginas da revista traz para o oci<strong>de</strong>ntal a imagem da opressÇo <strong>de</strong><br />
um mundo fora do tempo, o cinza árido <strong>de</strong> uma terra sem o colorido da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e a<br />
amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um futuro sem horizontes, a vastidÇo das areias <strong>de</strong> “O Clone” parece gritar a<br />
220 BUCCI, “O islÇ segundo Gloria Perez”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 28 set. 2006.<br />
110
pequenez do homem diante da Natureza e ainda confundir os caminhos das personagens com<br />
a plasticida<strong>de</strong> sedutora <strong>de</strong> um cenário que muda ao sabor do vento, sem oferecer resistÖncia.<br />
Num primeiro momento, tais imagens parecem revelar mundos contraditÑrios,<br />
exclu<strong>de</strong>ntes atà. Mas à preciso observá-las contra seus diversos frames, no contexto <strong>de</strong> seus<br />
suportes narrativos e <strong>de</strong> seus tempos histÑricos.<br />
A primeira possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreensÇo <strong>de</strong>stes dois mundos à tomá-los separadamente<br />
enquanto notÉcia e enquanto drama ficcional. Neste sentido, fica claro o enquadramento dos<br />
relatos <strong>de</strong> Veja sobre os atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> setembro como reportagem <strong>de</strong> capa <strong>de</strong> uma das<br />
revistas <strong>de</strong> informaÅÇo mais importantes do paÉs. Dadas a magnitu<strong>de</strong> dos atentados, a<br />
brutalida<strong>de</strong> das imagens já divulgadas pela tevÖ e a dramaticida<strong>de</strong> inerente aos <strong>de</strong>poimentos e<br />
pronunciamentos dos envolvidos, os fatos relacionados ao episÑdio traziam carga <strong>de</strong><br />
“noticiabilida<strong>de</strong>” incontestável. NÇo fosse o ataque ao modo <strong>de</strong> vida oci<strong>de</strong>ntal um tema tÇo<br />
ameaÅador para os americanos e nÇo fosse o jornalismo hoje tÇo se<strong>de</strong>nto <strong>de</strong> espetáculos para<br />
alavancar as vendas <strong>de</strong> seus produtos, teria sido <strong>de</strong>snecessário reforÅar as cores já dramáticas do<br />
fato. Na condiÅÇo <strong>de</strong> obra ficcional, a narrativa dramatizada e imagàtica <strong>de</strong> “O Clone” se<br />
encaixa em lugar privilegiado na gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> programaÅÇo da mais po<strong>de</strong>rosa emissora <strong>de</strong> tevÖ<br />
brasileira. Apesar dos interesses mercadolÑgicos inerentes aos produtos apresentados em<br />
horário nobre na TV Globo, do currÉculo <strong>de</strong> sucessos da autora, da riqueza da produÅÇo 221 e do<br />
calibre do elenco escalado, a novela estreava cercada <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s expectativas e <strong>de</strong> riscos que<br />
excediam a inseguranÅa <strong>de</strong> qualquer estreia <strong>de</strong>vido ä ousadia da temática. Tratava-se <strong>de</strong> uma<br />
narrativa que tinha o atà entÇo estranho mundo muÅulmano como um <strong>de</strong> seus pilares 222 . NÇo<br />
fosse a telenovela o produto cultural <strong>de</strong> maior popularida<strong>de</strong> no Brasil, nÇo fosse a TV Globo<br />
referÖncia mundial <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> na produÅÇo <strong>de</strong> teledramaturgia e nÇo fosse o talento narrativo<br />
da autora, nÇo teria sido fácil, diante do noticiário sobre o 11 <strong>de</strong> setembro, fazer o pëblico<br />
acreditar que o mundo muÅulmano ali apresentado guardava alguma relaÅÇo com o real.<br />
221 Segundo a revista IstoÉ Gente, a TV Globo tratou com esmero a produÅÇo da novela, e abriu os cofres: nÇo sÑ<br />
“Construiu uma cida<strong>de</strong> cenográfica <strong>de</strong> 830 m¢ que reproduz as ruas <strong>de</strong> Fez, no Marrocos”, como gravou os<br />
primeiros episÑdios no Marrocos. Cada episÑdio, segundo a publicaÅÇo, custou R$ 100 mil. A expectativa,<br />
traduzida em cotas <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong> vendidas, e o risco eram gran<strong>de</strong>s: todas as cotas foram vendidas ao preÅo <strong>de</strong><br />
R$ 150 mil cada 30 segundos no intervalo da novela. COHEN, disponÉvel em:<br />
. Acesso 14 out. 2006.<br />
222 A mesma revista informa que a prÑpria diretora-geral da emissora temia pelo sucesso <strong>de</strong> uma trama que<br />
misturava clonagem humana, muÅulmanos e campanha contra drogas. Sua resistÖncia levou a emissora a retardar<br />
em um ano a produÅÇo da novela, colocando no ar “Porto dos milagres”, <strong>de</strong> Agnaldo Silva. Dado o sinal ver<strong>de</strong>, a<br />
autora sofreu com o que qualificou <strong>de</strong> “campanha orquestrada” <strong>de</strong> ataques contra a novela, uma “flagrante<br />
tentativa <strong>de</strong> ridicularizar, inviabilizar o projeto” que resultou na recusa <strong>de</strong> alguns atores em dar vida a algumas<br />
personagens importantes da trama, inclusive aos protagonistas. COHEN, disponÉvel em:<br />
. Acesso 14 out. 2006.<br />
111
Perceber a dimensÇo histÑrica dos relatos do 11 <strong>de</strong> setembro e <strong>de</strong> “O Clone” representa<br />
a segunda possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreensÇo <strong>de</strong>stas duas narrativas. No calor da humilhaÅÇo que<br />
ainda ardia em solo americano, o texto jornalÉstico <strong>de</strong> Veja narrava em tom apocalÉptico o<br />
day-after da infêmia, aquele primeiro momento que o Oci<strong>de</strong>nte chamou <strong>de</strong> “o primeiro dia do<br />
resto <strong>de</strong> nossas vidas”. A impressÇo <strong>de</strong> apocalipse experimentada pelo Oci<strong>de</strong>nte era resultado<br />
<strong>de</strong> uma inversÇo sem prece<strong>de</strong>ntes no sentido da histÑria: como diz o jornalista Ulisses<br />
Capozoli, pela primeira vez as gran<strong>de</strong>s potÖncias guerreiras eram as vÉtimas e nÇo os<br />
perpetradores 223 . A inegável constataÅÇo <strong>de</strong> que aquele era um tempo histÑrico, um divisor <strong>de</strong><br />
águas para o “mundo civilizado”, certamente pesou na hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar tantas capas sucessivas<br />
ao mesmo assunto e <strong>de</strong>terminou a distribuiÅÇo do material pelas páginas <strong>de</strong> cada ediÅÇo,<br />
ampliando fotos, <strong>de</strong>stacando citaÅâes, reforÅando o preto sobre a tipologia e sobre o fundo do<br />
papel. ï preciso lembrar que a narrativa aqui analisada nÇo se resume aos sucessivos<br />
parágrafos impressos na página: a ediÅÇo, o <strong>de</strong>sign gráfico, a tipologia, a disposiÅÇo das<br />
legendas, os grifos e as imagens ─ tudo isso fala pela revista. O luto, as cenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>struiÅÇo, o<br />
pênico nas ruas, o olhar incràdulo do presi<strong>de</strong>nte, a pose ameaÅadora daqueles i<strong>de</strong>ntificados<br />
como “fanáticos”, a face serena <strong>de</strong> La<strong>de</strong>n, as tarjas pretas, os fios vermelhos, as cores da<br />
ban<strong>de</strong>ira americana no “selo” que i<strong>de</strong>ntifica a ediÅÇo especial, as fotos “sangrando” pelas<br />
margens: diversas maneiras jornalÉsticas <strong>de</strong> contar a histÑria da guerra do “obscurantismo” e<br />
da “barbárie” contra a “civilizaÅÇo” e as “liberda<strong>de</strong>s civis”. Na telenovela, antes <strong>de</strong> qualquer<br />
constataÅÇo <strong>de</strong> sua qualida<strong>de</strong>, a narrativa se tornou histÑrica pela simples e casual<br />
simultaneida<strong>de</strong> com o 11 <strong>de</strong> setembro e a invasÇo do AfeganistÇo. NÇo se referia aos TalibÇs,<br />
nÇo exibia fuzis nem terroristas suicidas. Pela perspectiva do humano, tratava dos dramas<br />
inerentes ao cruzamento <strong>de</strong> diferenÅas, dos <strong>de</strong>sencontros, das violÖncias praticadas contra os<br />
sentimentos em nome da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> äs tradiÅâes. Falava <strong>de</strong> dominaÅâes e submissâes, <strong>de</strong><br />
discursos veementes e silÖncios significativos. Mostrava os diferentes caminhos da razÇo e a<br />
àtica subjacente äs razâes antagònicas. Apresentava, no comportamento e no figurino das<br />
personagens, no colorido das cenas, na pontuaÅÇo inspirada da trilha sonora 224 , o Oci<strong>de</strong>nte e o<br />
223 CAPOZOLI, “InformaÅÇo inteligÉvel e os tambores <strong>de</strong> guerra”. DisponÉvel em:<br />
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/download/midiaeterrorismo.pdf, pp. 12-13. Acesso em 7 mar. 2006.<br />
224 A trilha sonora da novela ofereceu ao pëblico uma fartura <strong>de</strong> experiÖncias auditivas, tanto que foram lanÅados<br />
cindo CDs <strong>de</strong> “O Clone”: as tradicionais versâes nacional e internacional da trilha oficial, e mais trÖs trilhas<br />
sonoras complementares (um com as canÅâes apresentadas no bar da Jura, outro com mësicas <strong>de</strong> danÅa do ventre<br />
e um terceiro com o repertÑrio da boate Nefertiti). Instrumentos musicais árabes foram apresentados, “como o<br />
<strong>de</strong>rbouka (tambor <strong>de</strong> terracota recoberto por pele <strong>de</strong> cabra), o târ (tambor <strong>de</strong> 15 cm <strong>de</strong> diêmetro, com cÉmbalos);<br />
os snujs (pequenos cÉmbalos <strong>de</strong> metal); o daff (pan<strong>de</strong>iro), o <strong>de</strong>rback, a flauta, o alaë<strong>de</strong>, a cÉtara e o violino”.<br />
Alàm disso, a trilha musical inci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> “O Clone”, criada pelo mësico mineiro Marcus Viana, à o resultado <strong>de</strong><br />
uma “fusÇo do estilo sinfònico com o universo islêmico musical tradicional e elementos pop”. In: “O Clone”,<br />
112
Oriente que assombram os <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> cada um 225 . Passado, presente e futuro<br />
simultaneamente se materializavam na narrativa verbal e visual <strong>de</strong> seres fictÉcios que,<br />
embalados em burkas, vàus e tënicas, discorriam com igual naturalida<strong>de</strong> sobre a compra <strong>de</strong><br />
noivas, a puniÅÇo em chibatadas e as experiÖncias da genàtica.<br />
A terceira vertente <strong>de</strong> apreensÇo dos dois relatos aqui estudados à econòmica: se a má<br />
notÉcia ven<strong>de</strong>, as gran<strong>de</strong>s catástrofes fazem jornais e revistas esgotarem suas ediÅâes; e se o<br />
novo e o diferente atraem o consumidor, sua exposiÅÇo na vitrine do horário nobre da tevÖ<br />
lanÅa moda e cria <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> consumo massivo. Veja potencializou suas vendas com o<br />
<strong>de</strong>staque intensivo conferido aos ataques suicidas; sua reputaÅÇo <strong>de</strong> revista <strong>de</strong> informaÅÇo<br />
sària, sua retÑrica <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong>, e sua filiaÅÇo ao jornalismo americano<br />
conferiram confiabilida<strong>de</strong> äquilo que publicava. “O Clone”, tendo a máquina e o po<strong>de</strong>r da TV<br />
Globo a seu favor, “ven<strong>de</strong>u” <strong>de</strong> tudo: jÑias e a<strong>de</strong>reÅos inspirados nos mo<strong>de</strong>los usados pelas<br />
personagens, tecidos bordados, tapetes, artigos <strong>de</strong> <strong>de</strong>coraÅÇo, combinaÅâes culinárias, cursos<br />
<strong>de</strong> danÅa do ventre, discos <strong>de</strong> mësica oriental e atà entrevistas <strong>de</strong> uma personagem fictÉcia a<br />
publicaÅâes especializadas em medicina (o ator que interpretava o cientista <strong>de</strong>u várias<br />
<strong>de</strong>claraÅâes sobre clonagem e seus <strong>de</strong>sdobramentos àticos). Mais que tudo, a narrativa<br />
jornalÉstica e a ficcional ven<strong>de</strong>ram espetáculo.<br />
Em mais uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recepÅÇo do que foi publicado em Veja ou exibido em<br />
“O Clone”, as reportagens e o folhetim eletrònico <strong>de</strong>vem ser tomados como narrativas <strong>de</strong><br />
alterida<strong>de</strong>, construÅâes factuais ou ficcionais que falam do Outro. AfegÇos e marroquinos sÇo<br />
emblemas do mundo oriental que se prestam como contraponto ä imagem do Oci<strong>de</strong>nte que se<br />
quer divulgar. Se à possÉvel atribuir ä narrativa <strong>de</strong> Veja e a <strong>de</strong> “O Clone” intenÅâes diversas ─<br />
uma <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m polÉtico-i<strong>de</strong>olÑgica, outra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estàtica ─, à possÉvel tambàm perceber<br />
divergÖncias na autorida<strong>de</strong> com que cada uma <strong>de</strong>las fala do Outro. A revista nÇo o apresenta<br />
como fonte fi<strong>de</strong>digna, restringindo-se a reproduzir <strong>de</strong>claraÅâes <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntais, sejam<br />
personalida<strong>de</strong>s envolvidas nos atentados ou “especialistas” em temas muÅulmanos; Veja nega<br />
voz aos afegÇos ─ fala <strong>de</strong>les, mas pelo foco <strong>de</strong> outrem. A telenovela cercou-se <strong>de</strong> cuidados<br />
para falar do diferente: ouviu lÉ<strong>de</strong>res da comunida<strong>de</strong> muÅulmana no paÉs e turistas árabes em<br />
seu primeiro contato com o Brasil; contratou consultoria para assuntos culturais e religiosos;<br />
promoveu palestras sobre o mundo islêmico, sessâes <strong>de</strong> filmes árabes e iranianos, leitura <strong>de</strong><br />
MemÑria Globo, disponÉvel em . Acesso em 12 set. 2006.<br />
225 Embora a telenovela nÇo possa ser reduzida ao encontro das diferenÅas culturais entre Oriente e Oci<strong>de</strong>nte<br />
(trata principalmente da questÇo da clonagem humana e <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sdobramentos àticos e familiares, e, ainda, da<br />
tragàdia <strong>de</strong>flagrada pelas drogas), meu olhar aqui se <strong>de</strong>tàm somente sobre a problemática do Outro.<br />
113
livros e textos sobre o assunto, aulas <strong>de</strong> árabe, danÅa do ventre, expressÇo corporal e prática<br />
<strong>de</strong> oraÅâes. Ouvir tantas e tÇo diferentes fontes primárias e secundárias foi a estratàgia da<br />
autora, nÇo por acaso uma mulher com formaÅÇo em HistÑria 226 , para que toda a equipe<br />
“entrasse no clima” do universo muÅulmano e fosse capaz <strong>de</strong> apresentar “a vida como ela à”,<br />
<strong>de</strong>ntro do registro ficcional <strong>de</strong> uma telenovela.<br />
Embora o muÅulmano seja o Outro focado aqui em comparaÅÇo com aquele tratado pelo<br />
relato jornalÉstico do 11 <strong>de</strong> setembro, à preciso registrar que a preocupaÅÇo da autora em dar<br />
voz ao diferente se esten<strong>de</strong> a outros grupos, como por exemplo, aos drogados, segmento<br />
tambàm representado em “O Clone”. Se as pesquisas realizadas sobre o muÅulmano<br />
constituÉram um trabalho executado nos bastidores da novela, apenas revelado ao pëblico<br />
atravàs do resultado estàtico das cenas e do comportamento das personagens, a “escuta” do<br />
universo do Outro-drogado foi levada para frente das cêmeras, na apresentaÅÇo <strong>de</strong> pessoas<br />
reais, vÉtimas das drogas e seus familiares, em <strong>de</strong>poimentos que se entrelaÅavam com o<br />
<strong>de</strong>senrolar da trama 227 (estratàgia inclusive já utilizada pela autora em “Barriga <strong>de</strong> Aluguel”,<br />
com os testemunhos <strong>de</strong> representantes das “MÇes da Cinelêndia”, mulheres da vida real que<br />
tinham tido filhos <strong>de</strong>saparecidos).<br />
No caso dos muÅulmanos, o cuidado no falar sobre o diferente, dando-lhe voz atravàs da<br />
realizaÅÇo <strong>de</strong> ampla pesquisa para a fundamentaÅÇo do universo tratado na trama nÇo foi<br />
capaz, por uma limitaÅÇo estàtica prÑpria da telenovela, <strong>de</strong> impedir a narrativa <strong>de</strong> “O Clone”<br />
<strong>de</strong> reproduzir alguns estereÑtipos. Por forÅa <strong>de</strong> sua condiÅÇo <strong>de</strong> espetáculo, da ligeireza e da<br />
relativa superficialida<strong>de</strong> inerentes ä narrativa ficcional televisiva <strong>de</strong> massa, a telenovela,<br />
diferentemente <strong>de</strong> uma reportagem jornalÉstica ou <strong>de</strong> um relato <strong>de</strong> HistÑria, nÇo tem como<br />
avanÅar sobre assuntos tÇo complexos ─ principalmente se vistos por olhos estrangeiros ─,<br />
como a cultura muÅulmana, por exemplo. Assim, se a opÅÇo da narrativa <strong>de</strong> “O Clone” pela<br />
via do conto-<strong>de</strong>-fada trouxe o encantamento e a plasticida<strong>de</strong> que ren<strong>de</strong>ram ä novela uma<br />
espantosa audiÖncia, a natureza do gÖnero como uma obra em extensÇo (e nÇo em<br />
profundida<strong>de</strong>) obrigou a autora a fugir <strong>de</strong> algumas problematizaÅâes mais polÖmicas. Tal<br />
226 Gloria Perez à graduada e “quase” pÑs-graduada em HistÑria: já tendo cumprido todos os cràditos do<br />
mestrado na UFRJ, foi impedida <strong>de</strong> escrever sua dissertaÅÇo pois aceitou o tÇo sonhado convite <strong>de</strong> Janete Clair<br />
para ser sua colaboradora na novela “Eu Prometo”.<br />
227 De acordo com informaÅÇo verbal da autora, colhida em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009, tal entrelaÅamento com a<br />
trama à assim exemplificado por ela na <strong>de</strong>scriÅÇo <strong>de</strong> uma cena: “a Mel vai buscar droga no morro e a mÇe fica<br />
sabendo. Desesperada, vai atrás <strong>de</strong>la e, diante do morro, consi<strong>de</strong>ra todos os perigos que vai enfrentar, mas ela<br />
sabe que vai subir para buscar a filha. No que ela comeÅa a subir o morro, corta para uma mÇe real contando<br />
como ela se sentiu quando foi buscar a filha no alto do morro. Sai o <strong>de</strong>poimento e a mÇe da Mel chega ao alto do<br />
morro e negocia com o traficante a soltura da filha”. Outros autores <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>la passaram a usar <strong>de</strong>poimentos<br />
verÉdicos, mas <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scosturada da trama, exibidos ao final do capÉtulo.<br />
114
contingÖncia narrativa acabou resultando algumas vezes na apresentaÅÇo <strong>de</strong> situaÅâes e<br />
personagens que muitos crÉticos consi<strong>de</strong>raram inverossÉmeis mas que, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vem ser<br />
vistas como verossÉmeis sobretudo em relaÅÇo ao conjunto <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s forjadas no imaginário<br />
coletivo a respeito <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> muÅulmano, formado por homens severos e ligados<br />
atavicamente äs tradiÅâes e por mulheres misteriosas e sedutoras.<br />
ï preciso lembrar que o imaginário coletivo do muÅulmano, como revela Said,<br />
comumente bebe em fontes diversas, tanto cientÉficas como literárias, serve a interesses<br />
civilizatÑrios permanentemente atualizados, e constrÑi um universo tÇo repleto <strong>de</strong><br />
representaÅâes do Oriente que ele passa a existir apenas como entida<strong>de</strong>. Des<strong>de</strong> a antiguida<strong>de</strong>,<br />
diz ele, a regiÇo tem sido um lugar <strong>de</strong> romance, <strong>de</strong> seres exÑticos, <strong>de</strong> memÑrias e paisagens<br />
assombradas, <strong>de</strong> experiÖncias marcantes 228<br />
115<br />
[tradução nossa]; um Oriente separado,<br />
excÖntrico, atrasado, silenciosamente diferente, sensual e passivo. Prática imperialista <strong>de</strong><br />
dominaÅÇo quer pela assimetria polÉtica quer pelo imaginário, a apropriaÅÇo da fala alheia<br />
confere autorida<strong>de</strong> ao Eu sobre o Outro, negando-lhe o direito <strong>de</strong> existir segundo suas<br />
consciÖncias e con<strong>de</strong>nando-o ä subalternida<strong>de</strong>.<br />
A autorida<strong>de</strong> que se estabelece a partir do confisco da fala do diferente nada tem <strong>de</strong><br />
natural, embora tenha sido ao longo dos sàculos prática usual com que o Eu <strong>de</strong>u a “conhecer”<br />
o Outro. De acordo com Said, “Ela à formada, irradiada, disseminada; à instrumental,<br />
persuasiva; tem status, estabelece cênones <strong>de</strong> gosto ou valor, à virtualmente indistinguÉvel <strong>de</strong><br />
certas i<strong>de</strong>ias que ela dignifica como verda<strong>de</strong>iras, e das tradiÅâes, percepÅâes e julgamentos<br />
que ela forma, transmite, reproduz” 229 [tradução nossa].<br />
Assim, Veja e “O Clone”, por forÅa <strong>de</strong> seus instrumentos <strong>de</strong> representaÅÇo e pelo po<strong>de</strong>r<br />
dos veÉculos <strong>de</strong> comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa que lhes <strong>de</strong>ram suporte, conquistaram autorida<strong>de</strong><br />
sobre AfegÇos e Marroquinos. Suas narrativas, enquanto construÅâes oci<strong>de</strong>ntais, traÅaram<br />
perfis complementares do muÅulmano no contexto do imaginário coletivo que o Oci<strong>de</strong>nte<br />
forjou do Oriente. GraÅas ao manifesto preconceito i<strong>de</strong>olÑgico (traduzido em <strong>de</strong>sabafo<br />
jornalÉstico da vÉtima em relaÅÇo ao seu algoz) das reportagens <strong>de</strong> Veja e graÅas ä inevitável<br />
“reduÅÇo” do mundo muÅulmano ä sua versÇo composite em “O Clone” (inspirada na<br />
atmosfera sabiamente empregue por Scheraza<strong>de</strong> no enredamento da curiosida<strong>de</strong> humana),<br />
nenhuma <strong>de</strong>las, isoladamente, portanto, se sustentaria diante dos traÅos <strong>de</strong>lineados pelas mÇos<br />
dos prÑprios perfilados. Sendo Veja um veÉculo <strong>de</strong> informaÅÇo, a sur<strong>de</strong>z <strong>de</strong> suas reportagens<br />
em relaÅÇo ä voz que expressa o “outro lado da histÑria” revela-se inaceitável do ponto <strong>de</strong><br />
228 SAID, 1979, p. 1.<br />
229 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 19-20.
vista <strong>de</strong> sua missÇo jornalÉstica. De outra parte, sendo “O Clone” um drama seriado televisivo,<br />
a preocupaÅÇo da novelista em ouvir as diferentes vozes do Outro para, atravàs <strong>de</strong> licenÅa<br />
poàtica, fundamentar a construÅÇo <strong>de</strong> uma narrativa <strong>de</strong> ficÅÇo revela o respeito da autora em<br />
relaÅÇo ao diferente.<br />
Enquanto a prepotÖncia da autorida<strong>de</strong> construÉda por Veja sobre o AfeganistÇo cultiva o<br />
acirramento do preconceito, a hostilida<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>sconhecimento da realida<strong>de</strong>, o cuidado com<br />
que “O Clone” constrÑi sua autorida<strong>de</strong> sobre o mundo muÅulmano, ao contrário, cultiva a<br />
tolerência, o encantamento e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecer a realida<strong>de</strong> por trás da fantasia.<br />
6.5 O OUTRO POR ELE MESMO<br />
ReligiÇo, Estado e cultura. No mundo muÅulmano, estas dimensâes se entrelaÅam<br />
formando relaÅâes que o mundo oci<strong>de</strong>ntal capitalista rejeita ou <strong>de</strong>sconhece. Parte dos<br />
estereÑtipos contra o Oriente islêmico advàm da dificulda<strong>de</strong> que o oci<strong>de</strong>ntal tem <strong>de</strong> conceber o<br />
papel <strong>de</strong>terminante da religiÇo na atuaÅÇo do Estado, nos princÉpios da economia e na conduta<br />
pessoal. Segundo Samir El-Hayek 230 , o IslÇ tem uma religiÇo monoteÉsta (Deus nÇo tem filhos),<br />
um Estado regulamentado pelo AlcorÇo (o Livro Sagrado do IslÇ), um comportamento<br />
fundamentado em leis escritas há 1.400 anos, e uma economia gerida pelo princÉpio religioso da<br />
produÅÇo máxima, do consumo necessário e da distribuiÅÇo do excesso 231 .<br />
Se, para a civilizaÅÇo oci<strong>de</strong>ntal, a separaÅÇo entre Igreja e Estado à uma <strong>de</strong> suas mais<br />
preciosas conquistas, para os muÅulmanos, a presenÅa do IslÇ no Estado à uma promessa <strong>de</strong><br />
perfeiÅÇo, como explica Ali Mohamed Abdouni, presi<strong>de</strong>nte do Conselho Superior para<br />
Assuntos Islêmicos no Brasil:<br />
116<br />
[...] o IslÇ tambàm se <strong>de</strong>fine como um sistema polÉtico, econòmico, social,<br />
educacional, jurÉdico e familiar. ï um cÑdigo <strong>de</strong> vida completo, <strong>de</strong> fonte divina, que<br />
nÇo po<strong>de</strong> ser dividido. As regras que vÇo <strong>de</strong>finir todos esses sistemas foram<br />
estabelecidas por Deus, e nÇo pelo homem. Como Deus à perfeito e o homem nÇo, a<br />
maior conquista dos muÅulmanos à que a religiÇo possa reger todas as esferas <strong>de</strong> sua<br />
vida. 232<br />
230 Samir El-Hayek à tradutor do AlcorÇo diretamente do árabe para o portuguÖs, volume aqui intitulado <strong>de</strong> O<br />
significado dos versículos do Alcorão sagrado. GraÅas ä sua empreitada e ao interesse <strong>de</strong>spertado pelo 11 <strong>de</strong><br />
setembro e pela novela “O Clone”, a bÉblia islêmica agora tornou-se no Brasil “o livro indispensável para se<br />
compreen<strong>de</strong>r a nova geopolÉtica mundial”. In RODRIGUES e VANNUCHI, “A lei à rÉgida”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 27 nov. 2006.<br />
231 EL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI, loc.cit.<br />
232 ABDOUNI apud. BARELLA, 2005, p. 14.
El-Hayek informa que o texto sagrado à muito claro e nÇo dá margens a interpretaÅâes.<br />
O muÅulmano que segue o Islamismo tem <strong>de</strong> cumprir os cinco fundamentos do IslÇ: a crenÅa<br />
em Deus, a prática da oraÅÇo, o pagamento do tributo, o jejum no mÖs <strong>de</strong> Ramadan e a<br />
peregrinaÅÇo a Meca. SÑ trÖs coisas sÇo proibidas: a agressÇo, a injustiÅa e a <strong>de</strong>suniÇo.<br />
Originalmente, ser fundamentalista era uma condiÅÇo natural do seguidor do IslÇ, que nÇo<br />
po<strong>de</strong> fugir aos fundamentos da religiÇo. Hoje a palavra à usada para caracterizar um povo que<br />
vive segundo regras “ultrapassadas”, regras que se mantÖm imutáveis há 1.400 anos. O<br />
fundamentalista, segundo El-Hayek, no entanto, nÇo à retrÑgrado. Muito pelo contrário: ele<br />
sempre foi a favor da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e da ciÖncia, garante.<br />
117<br />
As maiores <strong>de</strong>scobertas foram dadas ao mundo pelos muÅulmanos. Matemática,<br />
astronomia, fÉsica, quÉmica, todas as ciÖncias. NÇo há conflito entre o AlcorÇo e a<br />
ciÖncia, como acontece com a BÉblia.<br />
(...) A doaÅÇo <strong>de</strong> ÑrgÇos, por exemplo, à praticada há 1.400 anos pelos muÅulmanos e<br />
sÑ agora comeÅa a ser aceita pela Igreja catÑlica. A clonagem tambàm à aceita, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que seja para salvar vidas, e nÇo para incentivar o comàrcio <strong>de</strong> ÑrgÇos. 233<br />
Embora recorrendo ä pujanÅa das contribuiÅâes cientÉficas <strong>de</strong>ixadas pelo Impàrio ôrabe<br />
ainda na Ida<strong>de</strong> Màdia e <strong>de</strong>sprezando o seu rápido <strong>de</strong>clÉnio (graÅas a forÅas conservadoras<br />
ortodoxas que emergiram <strong>de</strong> inëmeros conflitos polÉtico-religiosos, nÇo sÑ inibindo como<br />
consi<strong>de</strong>rando a ciÖncia inimiga da crenÅa em Alá), El-Hayek, ao confundir ciÖncia com<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, expressa o imaginário cultivado ainda hoje pelo mundo árabe, um imaginário<br />
que já nÇo correspon<strong>de</strong> ä realida<strong>de</strong> 234 da regiÇo tÇo castigada por turbulÖncias polÉticas,<br />
econòmicas e religiosas. Ao reafirmar tal imaginário, o muÅulmano seguidor do AlcorÇo,<br />
texto sagrado que parece antecipar os tempos, celebra sua autorida<strong>de</strong> como pioneiro da<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ciente <strong>de</strong> que todo relato à um versÇo inevitavelmente “interessada” (nÇo<br />
inocente) da realida<strong>de</strong>, à preciso aqui ouvir o muÅulmano para conhecer os “interesses” <strong>de</strong> seu<br />
discurso e confrontá-los, no contexto das construÅâes discursivas, com as narrativas<br />
estrangeiras disseminadas sobre ele.<br />
233 EL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI. “A lei à rÉgida”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 27 nov. 2006.<br />
234 Segundo o jornalista Eric Beauchemin, em artigo para a Radio Netherland Wereldomroep, assinado em 24 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2008, ao tomar as contribuiÅâes do mundo árabe hoje no campo da medicina, por exemplo, área das<br />
ciÖncias que, <strong>de</strong> tÇo <strong>de</strong>senvolvida, mereceu a atenÅÇo do prÑprio Maomà, “as naÅâes árabes produzem menos <strong>de</strong><br />
1% das citaÅâes no mundo e publicam menos que 0,5% dos artigos <strong>de</strong> revistas <strong>de</strong> medicina”. BEAUCHEMIN,<br />
“CiÖncia árabe: do apogeu ao <strong>de</strong>scaso”. DisponÉvel em:<br />
.<br />
Acesso em 3 <strong>de</strong>z. 2009.
De acordo com Abdouni, o AlcorÇo nÇo dá margem a interpretaÅâes. Apesar disso,<br />
ressalta ele, “Os fanáticos <strong>de</strong> todas as religiâes, e nÇo apenas do IslÇ, costumam usar trechos<br />
tirados do contexto para justificar suas aÅâes violentas” 235 .<br />
A propÑsito dos atentados ao World Tra<strong>de</strong> Center e ao Pentágono americano, El-Hayek<br />
à claro: nÇo tem lei divina que justifique o ato terrorista. “Está no Livro: ‘todo aquele que<br />
matar uma pessoa que nÇo tenha cometido assassinato ou corrupÅÇo à como se tivesse matado<br />
toda a humanida<strong>de</strong>’” 236 . Alàm disso, o suicÉdio nÇo tem perdÇo. Assim, no 11 <strong>de</strong> setembro, as<br />
atrocida<strong>de</strong>s cometidas em nome <strong>de</strong> Alá foram con<strong>de</strong>nadas categoricamente, <strong>de</strong> acordo com<br />
El-Hayek, por 56 paÉses muÅulmanos. A justiÅa divina impâe o inferno tanto ao suicida, que<br />
atenta contra o dom divino da vida, quanto äquele que mata inocentes.<br />
El-Hayek ressalta, no entanto, que a histÑria está nas mÇos <strong>de</strong> quem controla a mÉdia e<br />
que a arrogência americana parece esquecer que a Europa e os Estados Unidos foram os<br />
autores das maiores atrocida<strong>de</strong>s do mundo. Quem tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> divulgar os fatos distribui,<br />
<strong>de</strong> acordo com seus interesses, os tÉtulos <strong>de</strong> herÑi e vilÇo da histÑria:<br />
118<br />
Al Qaeda era consi<strong>de</strong>rada uma milÉcia herÑica quando lutava para expulsar os soviàticos<br />
<strong>de</strong> seu territÑrio. Atà para os Estados Unidos eles eram herÑis. Quando os soviàticos<br />
foram expulsos, os Estados Unidos abandonaram o paÉs ä prÑpria sorte. NÇo era<br />
interesse <strong>de</strong>les ajudar na reconstruÅÇo do antigo aliado. Hoje, o mesmo grupo passou a<br />
ser chamado <strong>de</strong> terrorista. SÑ porque nÇo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> mais o interesse norte-americano. 237<br />
Entre o terrorista <strong>de</strong> Veja e os homens-bomba <strong>de</strong> “Paradise Now”, filme do diretor<br />
palestino <strong>de</strong> nascimento Hany Abu-Assad que ganhou o Globo <strong>de</strong> Ouro e foi indicado ao<br />
Oscar <strong>de</strong> melhor filme estrangeiro <strong>de</strong> 2005, uma longa distência marca os limites do discurso<br />
etnocÖntrico oci<strong>de</strong>ntal e da tragàdia que relativiza o terrorista islêmico. Em tom belicoso, Veja<br />
expâe bárbaros e fanáticos religiosos, personagens que nÇo passam <strong>de</strong> nëmeros em contagens<br />
estatÉsticas a respeito da ameaÅa do obscurantismo sobre a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Contido em sua<br />
proposta nÇo emocional <strong>de</strong> colocar em questÇo uma i<strong>de</strong>ia, “Paradise Now” humaniza os<br />
homens-bomba, personagens por tudo <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> fanatismo e disciplina.<br />
Said e Khaled, amigos <strong>de</strong> infência, trabalham numa funilaria <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> quintal na<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nablus, na Cisjordênia, fronteira com Tel Aviv, Israel. Nesse territÑrio ocupado que<br />
se revela para eles um nÇo-lugar, ambos esperam o dia passar, sem esperanÅa nem objetivo,<br />
quando sÇo informados <strong>de</strong> que foram escolhidos como protagonistas <strong>de</strong> uma missÇo<br />
235 ABDOUNI apud. BARELLA, 2005, p. 15.<br />
236 AL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI, “A lei à rÉgida”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 27 nov. 2006.<br />
237 AL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI, loc. cit.
<strong>de</strong>signada por Alá em nome da justiÅa: com explosivos colados ao corpo, <strong>de</strong>vem conduzir<br />
ataques suicidas em Tel Aviv.<br />
Abu-Assad <strong>de</strong>ixa a cêmera lentamente acompanhar Said e Khaled nas ëltimas 48 horas<br />
antes da explosÇo: o pëblico vÖ a hesitaÅÇo <strong>de</strong> um e o entusiasmo do outro, a gravaÅÇo <strong>de</strong> uma<br />
vÉ<strong>de</strong>o-mensagem com explicaÅâes sobre a conduta <strong>de</strong> ambos, a <strong>de</strong>spedida das famÉlias, a<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer melhor os motivos que tiraram a vida do pai colaborador da causa, o<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro encontro com a moÅa que <strong>de</strong>sperta o interesse <strong>de</strong> Said, a reuniÇo na vàspera da<br />
missÇo on<strong>de</strong> 13 integrantes da organizaÅÇo sentam-se ä mesa diante da cêmera, e os momentos<br />
<strong>de</strong> nervosismo que antece<strong>de</strong>m a travessia da fronteira, quando o plano insiste em nÇo seguir<br />
pela trilha prevista. Dissecados na ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem acredita ser a morte o paraÉso que se abre<br />
diante do inferno da inferiorida<strong>de</strong>, observados na (in)certeza <strong>de</strong> que o corpo à a ënica arma<br />
capaz <strong>de</strong> “lutar contra a ocupaÅÇo sem fim”, revelados no aparente orgulho dos que se sentem<br />
honrados em per<strong>de</strong>r a vida na promoÅÇo da justiÅa, os rapazes palestinos suicidas estranhamente<br />
conquistam a simpatia da platàia. Nada tÖm <strong>de</strong> fundamentalistas. A imagem dos dois sentados<br />
ao centro da mesa na reuniÇo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida da missÇo evoca a Santa Ceia <strong>de</strong> Leonardo Da Vinci<br />
e sobriamente apresenta-os como mártires, messias <strong>de</strong> Alá nesse mundo <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong>s sem<br />
horizonte <strong>de</strong> paz. “O paraÉso <strong>de</strong>pois da morte exerce uma funÅÇo fundamental na luta palestina”<br />
quando se sabe que nÇo haverá recompensa terrena fora do capitalismo: “o julgamento divino e<br />
a vida eterna no post mortem sÇo as ënicas armas existentes para fazer frente aos valores<br />
burgueses do capital”, diz Abu-Assad 238 .<br />
Quantificados em sua fëria assassina e satanizados pelo nëmero <strong>de</strong> vÉtimas inocentes<br />
que sucumbem aos ataques suicidas, os terroristas <strong>de</strong>scritos a partir do olhar oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> Veja<br />
sÇo <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> existÖncia: nascem e morrem naquele átimo que se passa entre o disparo<br />
do <strong>de</strong>tonador e a explosÇo da bomba. NÇo tÖm famÉlia, escolarida<strong>de</strong>, sonhos. Sequer tÖm<br />
direito ao paraÉso que julgam conquistar com sua missÇo; o efeito que obtÖm com o<br />
estardalhaÅo mortal em nada avanÅa no sentido da liberda<strong>de</strong> que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m com suas vidas:<br />
apenas mancha <strong>de</strong> sangue as páginas da revista, aumenta a venda <strong>de</strong> exemplares e <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia<br />
reaÅâes ainda mais violentas e hostis. Mas quando seus corpos explosivos ganham alma e<br />
enchem-se <strong>de</strong> dor e <strong>de</strong>sesperanÅa nas imagens <strong>de</strong> “Paradise Now”, a tragàdia se materializa<br />
na visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seres atà entÇo invisÉveis. Ao dar voz a personagens con<strong>de</strong>nadas ä mu<strong>de</strong>z<br />
pela arrogência etnocÖntrica do oci<strong>de</strong>ntal, o cineasta palestino confere humanida<strong>de</strong> ä categoria<br />
238 ABU-ASSAD apud. TORRES, “Hany no Alá-lá-ò”, julho <strong>de</strong> 2009, p. 54.<br />
119
dos suicidas assassinos e pâe em <strong>de</strong>bate as <strong>de</strong>formaÅâes resultantes das hostilida<strong>de</strong>s entre<br />
Oci<strong>de</strong>nte e Oriente.<br />
Enquanto Veja e “Paradise Now” expâem os <strong>de</strong>sencontros entre polÉtica e religiÇo, a<br />
telenovela “O Clone” apresenta, segundo os representantes do mundo muÅulmano no Brasil,<br />
distorÅâes que advÖm da <strong>de</strong>sinformaÅÇo sobre o encontro da religiÇo com os costumes <strong>de</strong> um<br />
povo. A submissÇo da mulher ao homem, os casamentos impostos pela famÉlia, os castigos, a<br />
poligamia e o uso <strong>de</strong> vàu sÇo algumas <strong>de</strong>stas imagens recorrentes sobre o Oriente que carecem<br />
<strong>de</strong> esclarecimento.<br />
Apesar <strong>de</strong> terem participado da consultoria que orientou a autora da novela, os Sheikhs<br />
Ali Mohamed Abdouni e Jihad Hassam Hamma<strong>de</strong>h, presi<strong>de</strong>nte e vice-presi<strong>de</strong>nte da<br />
Assemblàia Mundial da Juventu<strong>de</strong> Islêmica no Brasil, <strong>de</strong>smentem o papel submisso da<br />
mulher representado na tevÖ:<br />
120<br />
Em relaÅÇo äs liberda<strong>de</strong>s individuais, o AlcorÇo cita exemplos que <strong>de</strong>monstram que as<br />
mulheres do IslÇ tiveram seus direitos garantidos muito antes das mulheres oci<strong>de</strong>ntais<br />
que ainda lutam por eles. Por exemplo, já há 14 sàculos a mulher muÅulmana à<br />
OBRIGADA [grifo dos autores] a adquirir conhecimento, po<strong>de</strong> pedir o divÑrcio, po<strong>de</strong><br />
escolher o seu parceiro, po<strong>de</strong> ter in<strong>de</strong>pendÖncia <strong>de</strong> nome ao se casar, po<strong>de</strong> possuir<br />
riquezas suas e nÇo tem obrigaÅÇo <strong>de</strong> dividi-las ou gastar <strong>de</strong>las, possui direito a voto,<br />
possui direito a heranÅa como filha, como esposa, como irmÇ, como mÇe. 239<br />
I<strong>de</strong>ntificadas no AlcorÇo como potencialmente iguais aos homens, as mulheres sentem<br />
<strong>de</strong> muitas maneiras a assimetria entre os gÖneros, uma distência entre a teoria e a prática,<br />
imposta, como diz Mernissi, pela simples introduÅÇo da palavra “potencialmente” 240 . Em O<br />
Livreiro <strong>de</strong> Cabul, livro-reportagem em tom literário da jornalista norueguesa õsne Seierstad,<br />
resultado <strong>de</strong> sua convivÖncia com uma famÉlia afegÇ, a autora/narradora <strong>de</strong>smente a teoria da<br />
igualda<strong>de</strong> entre os gÖneros:<br />
A crenÅa na superiorida<strong>de</strong> masculina era tÇo impregnada que raramente era objeto <strong>de</strong><br />
questionamento. Em discussâes ficava claro que, para a maioria <strong>de</strong>les, as mulheres<br />
são <strong>de</strong> fato mais burras que os homens, que o càrebro <strong>de</strong>las é menor e que nÇo po<strong>de</strong>m<br />
pensar <strong>de</strong> maneira tÇo clara quanto os homens [grifos da autora]. 241<br />
Neste sentido, ser uma mulher afegÇ, para Seierstad, dava-lhe a medida <strong>de</strong> “Como à<br />
espremer-se num dos trÖs bancos traseiros <strong>de</strong> um ònibus quando há muitos bancos livres na<br />
239 ABDOUNI e HAMMADEH, “Aos autores e diretores da novela ‘O Clone’”. DisponÉvel em:<br />
. 14 <strong>de</strong> marÅo <strong>de</strong> 2002. Acesso em 12 set. 2006.<br />
240 MERNISSI, 1987.<br />
241 SEIERSTAD, 2006, p. 13.
frente; ou <strong>de</strong> “Como à dobrar-se no porta-malas <strong>de</strong> um taxi porque há um homem no banco <strong>de</strong><br />
trás” 242 .<br />
Nos ëltimos anos, o relato <strong>de</strong> muitas muÅulmanas tem exposto a distência entre a teoria<br />
e a prática: elas se tornaram escritoras para, atravàs <strong>de</strong> suas obras, <strong>de</strong>nunciar ou, na melhor<br />
das hipÑteses, <strong>de</strong>sabafar publicamente sobre a opressÇo <strong>de</strong> que sÇo vÉtimas nos paÉses<br />
islêmicos on<strong>de</strong> as mulheres sÇo tratadas com mais rigor. SÇo conhecidas internacionalmente<br />
como mulheres corajosas, que sÇo obrigadas a se refugiar em paÉses oci<strong>de</strong>ntais (ainda assim<br />
escoltadas por guarda-costas). Outras tantas, sem chance <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar suas raÉzes, se escon<strong>de</strong>m<br />
sob pseudònimos ou se mantÖm reclusas em casa. Muitas contam histÑrias <strong>de</strong> submissÇo ao<br />
homem, <strong>de</strong> puniÅâes medievais, <strong>de</strong> exigÖncia <strong>de</strong> castida<strong>de</strong> atà o casamento arranjado, <strong>de</strong><br />
violaÅâes sexuais e mutilaÅâes. O noticiário oci<strong>de</strong>ntal nÇo se cansa <strong>de</strong> reproduzir cenas<br />
semelhante äs <strong>de</strong>scritas pela escritora feminista marroquina Fatema Mernissi, que em livros<br />
como O Harém e o Oci<strong>de</strong>nte, vÖm trazendo ä tona a vida das mulheres do Oriente Màdio.<br />
Os Women Studies e os Post-colonial Studies tambàm se voltaram ao universo das<br />
mulheres islêmicas ocupando-se <strong>de</strong> suas mëltiplas e por vezes contraditÑrias manifestaÅâes:<br />
as investigaÅâes acadÖmicas <strong>de</strong>screviam-nas ora como subordinadas ao marido e ä famÉlia e<br />
con<strong>de</strong>nadas ao mundo domàstico, ora como “exÉmias tece<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> laÅos polÉticos” 243 extra-<br />
domàsticos ou aspirantes a cargos pëblicos e guerreiras <strong>de</strong> sua emancipaÅÇo. O olhar<br />
estrangeiro que ten<strong>de</strong> a conduzir sua apreensÇo do mundo islêmico a partir da dicotomia<br />
acomodaÅÇo/resistÖncia, confun<strong>de</strong>-se diante <strong>de</strong> mulheres que fazem do respeito äs tradiÅâes<br />
mais arcaicas uma expressÇo, nÇo necessariamente <strong>de</strong> sua subalternida<strong>de</strong>, mas sim <strong>de</strong> uma<br />
afirmaÅÇo <strong>de</strong> gÖnero.<br />
A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tantas e tÇo ricas imagens da mulher como subalterna ou como um ser em<br />
luta por sua emancipaÅÇo, as autorida<strong>de</strong>s islêmicas, entretanto, garantem que o AlcorÇo traz<br />
uma preocupaÅÇo especial com o sexo feminino: a <strong>de</strong> proteger a mulher contra todo tipo <strong>de</strong><br />
abuso.<br />
El-Hayek garante, por exemplo, que a prática <strong>de</strong> o pai escolher o marido para a filha nÇo<br />
à uma regra <strong>de</strong>terminada pelo IslÇ. Pelo contrário, o pai à proibido <strong>de</strong> obrigar a filha a se casar<br />
com o marido que ele quer para ela.<br />
121<br />
ï ela quem escolhe o marido. Mas cada cultura perpetua uma prática diferente,<br />
mesmo que nÇo haja qualquer menÅÇo a isso no ensinamento islêmico. Em algum<br />
momento, todas as civilizaÅâes adotaram a prática <strong>de</strong> escolher o marido das filhas, em<br />
242 SEIERSTAD, 2006, p. 14.<br />
243 SILVA, “As mulheres, os outros e as mulheres dos outros: feminismo, aca<strong>de</strong>mia e IslÇo”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 5 nov. 2009.
122<br />
todos os lugares. Os cristÇos e os ju<strong>de</strong>us fizeram isso durante sàculos, mas nada sobre<br />
esse assunto consta na BÉblia. ï natural que o pai consi<strong>de</strong>re a filha imatura <strong>de</strong>mais<br />
para escolher o melhor marido. Por isso, alguns paÉses islêmicos ainda seguem esse<br />
costume, mas nÇo à lei. Existe muita confusÇo entre religiÇo e cultura. 244<br />
As regras do casamento estÇo nÉtidas no AlcorÇo, diz ele:<br />
Po<strong>de</strong>-se casar com uma, duas, trÖs ou quatro mulheres. No máximo com quatro ao<br />
mesmo tempo. No entanto, existem condiÅâes tÇo rÉgidas que, se tivesse consciÖncia,<br />
nenhum homem casaria com mais <strong>de</strong> uma. Quem casa com várias nÇo cumpre ä risca<br />
a lei do AlcorÇo. Lá está escrito que o homem <strong>de</strong>ve, em primeiro lugar, ser justo com<br />
todas as mulheres e, em segundo lugar, ter a anuÖncia da primeira. Mas qual a mulher<br />
que permite? Os homens com mais <strong>de</strong> uma mulher ignoram essa lei e casam sem<br />
autorizaÅÇo <strong>de</strong>la. Isso à machismo, e todo machismo à con<strong>de</strong>nável. Pelo AlcorÇo, se o<br />
muÅulmano se casa com uma cristÇ, ela nÇo à obrigada sequer a se converter. Ela tem<br />
direito <strong>de</strong> seguir sua prÑpria religiÇo. 245<br />
Segundo El-Hayek, no IslÇ, ninguàm induz o outro a nada, nem mesmo a cumprir o que<br />
está no AlcorÇo: “O profeta dizia: ‘tudo o que a lei ensinar, analise. Se nÇo coaduna com sua<br />
forma <strong>de</strong> pensar, nÇo acate’” 246 .<br />
Isto vale tambàm para o vàu, o hijab. De acordo com Abdouni e Hamma<strong>de</strong>h, Deus<br />
or<strong>de</strong>nou o uso do vàu para todas as mulheres, nÇo sÑ para as muÅulmanas.<br />
Uma mulher po<strong>de</strong> e tem o direito <strong>de</strong> escolher se obe<strong>de</strong>ce a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Deus ou nÇo. Ela<br />
nÇo <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> ser muÅulmana por nÇo usá-lo, mas tem plena consciÖncia <strong>de</strong> que está<br />
<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cendo [sic.] uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Deus, está pecando e será cobrada por este pecado<br />
no dia do juÉzo. Mas será cobrada e punida por Deus e nÇo pelos homens.<br />
[...] O hijab à uma questÇo <strong>de</strong> fà, e a fà entre as pessoas nÇo à igual.<br />
[...] O vàu nÇo po<strong>de</strong> ser retirado em festas, ou diante <strong>de</strong> pessoas com quem uma<br />
mulher possa contrair matrimònio. [...] Quem usa o vàu fora <strong>de</strong> casa à porque conhece<br />
o princÉpio <strong>de</strong> sua utilizaÅÇo e sabe que seu uso <strong>de</strong>ve ser seguido <strong>de</strong>ntro e fora <strong>de</strong> casa,<br />
quando existem estranhos presentes. 247<br />
O vàu, que o Oci<strong>de</strong>nte hasteia como ban<strong>de</strong>ira da sensualida<strong>de</strong> e do mistàrio que<br />
envolvem a mulher muÅulmana, nada tem <strong>de</strong> sedutor na cultura islêmica. Pelo contrário: seria<br />
um antÉdoto contra a ameaÅa que a sexualida<strong>de</strong> feminina representa para a prática da fà.<br />
Segundo Mernissi 248 , embora o islamismo, diferentemente do cristianismo, nÇo veja a<br />
sexualida<strong>de</strong> em si como um perigo e reconheÅa as mulheres como seres po<strong>de</strong>rosos e sexuais,<br />
244<br />
AL-HAYEK apud. RODRIGUES e VANNUCHI, “A lei à rÉgida”, disponÉvel em:<br />
. Acesso em 27 nov. 2006.<br />
245<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
246<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
247<br />
ABDOUNI e HAMMADEH, “Aos autores e diretores da novela ‘O Clone’”. DisponÉvel em:<br />
. 14 <strong>de</strong> marÅo <strong>de</strong> 2002. Acesso em 12 set. 2006.<br />
248<br />
MERNISSI, 1987.
o amor profundo que possa advir das relaÅâes heterossexuais representa para os muÅulmanos<br />
uma fonte <strong>de</strong> distraÅÇo ä primeira obrigaÅÇo do homem: a <strong>de</strong>voÅÇo a Alá. Neste sentido,<br />
<strong>de</strong>nuncia a feminista, a ocultaÅÇo do corpo da mulher sob vàus e burkas se uniria a trÖs outros<br />
instrumentos <strong>de</strong> limitaÅÇo da intimida<strong>de</strong> entre homem e mulher: a poligamia, que permitiria<br />
ao homem pulverizar sua satisfaÅÇo sexual com mais <strong>de</strong> uma pessoa e, ao impedi-lo <strong>de</strong><br />
favorecer uma esposa em <strong>de</strong>trimento das <strong>de</strong>mais, <strong>de</strong>sestimularia cada uma <strong>de</strong>las a procurar<br />
satisfaÅÇo fora do casamento; o repëdio, atravàs do qual um homem po<strong>de</strong> se divorciar <strong>de</strong> sua<br />
esposa quando quiser, a <strong>de</strong>speito da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>la (direito esse que nÇo à igualmente conferido<br />
ä mulher), permitindo a ele buscar satisfaÅÇo sexual sem a contrapartida da intimida<strong>de</strong><br />
emocional; e, por fim, o envolvimento da esposa com a sogra, cuja presenÅa na casa do casal<br />
reduz as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>. Isso sem contar a prática do casamento arranjado, que<br />
ten<strong>de</strong> a unir casais sem amor.<br />
Cada um <strong>de</strong>stes aspectos ganha vida na rotina <strong>de</strong> Sultan Khan, nome fictÉcio do livreiro<br />
<strong>de</strong> O Livreiro <strong>de</strong> Cabul, e <strong>de</strong> sua famÉlia composta <strong>de</strong> duas esposas, cinco filhos, duas irmÇs e<br />
sua mÇe, todos inicialmente morando em quatro còmodos. Homem <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong>, Sultan<br />
estava casado havia 18 anos com Sharifa, com quem tinha trÖs filhos adolescentes e uma filha<br />
caÅula, quando <strong>de</strong>cidiu casar-se <strong>de</strong> novo com uma menina <strong>de</strong> 16 anos, analfabeta, com quem<br />
teve mais uma filha. Diante da notÉcia do segundo casamento do marido, Sharifa, uma<br />
professora <strong>de</strong> persa, fica perplexa com o repëdio: “O que fiz <strong>de</strong> errado? Que vergonha! Por<br />
que nÇo está satisfeito comigo?” 249 Nem o apoio incondicional da sogra (que inclusive se<br />
recusa a fazer o pedido em nome do filho ä famÉlia da preten<strong>de</strong>nte) pò<strong>de</strong> reverter a <strong>de</strong>cisÇo <strong>de</strong><br />
Sultan numa cultura on<strong>de</strong> o homem tem a ëltima palavra e nÇo po<strong>de</strong> ser contrariado, e a<br />
mulher <strong>de</strong>ve apenas aceitar o que o pai ou o marido impâe. “Sharifa vive como uma mulher<br />
divorciada, mas sem a mesma liberda<strong>de</strong>. ï Sultan quem ainda toma as <strong>de</strong>cisâes por ela”,<br />
conta a autora/narradora.<br />
123<br />
O divÑrcio nunca foi uma alternativa para Sharifa. Quando uma mulher pe<strong>de</strong> o<br />
divÑrcio, ela praticamente per<strong>de</strong> todos os seus direitos. Os filhos seguem o marido e<br />
ele po<strong>de</strong> atà impedi-la <strong>de</strong> vÖ-los. A mulher se torna uma vergonha para a famÉlia, à<br />
muitas vezes expulsa, e todos os seus bens cabem ao marido. 250<br />
Ambos os casamentos <strong>de</strong> Sultan, como mandam os costumes, foram arranjados por<br />
acordos entre famÉlias, numa relaÅÇo movida muito mais por interesse financeiro do que por<br />
amor. Segundo Seierstad, “Amor tem pouco a ver com casamento, ao contrário, po<strong>de</strong> ser um<br />
249 SEIERSTAD, 2006, p. 23.<br />
250 Ibi<strong>de</strong>m, p. 42.
grave crime, castigado com a morte”, como foi o caso <strong>de</strong> Jamila, cunhada <strong>de</strong> Sharifa,<br />
sufocada atà a morte pelos irmÇos ─ e com o consentimento da mÇe ─ apÑs ter sido flagrada<br />
com o amante semanas <strong>de</strong>pois do casamento. Como observa a autora, “No AfeganistÇo,<br />
mulher apaixonada à tabu. [...] Os jovens nÇo tÖm o direito <strong>de</strong> se encontrar para amar, nÇo tÖm<br />
o direito <strong>de</strong> escolher. [...] Mulheres jovens sÇo, antes <strong>de</strong> mais nada, um objeto <strong>de</strong> troca e<br />
venda” 251 . Gloria Perez recorda-se <strong>de</strong> ter visto no Marrocos a feira <strong>de</strong> noivas e o casamento<br />
temporário, no qual o noivo compra a noiva, “testa” por alguns meses e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>volvÖ-la ao<br />
antigo proprietário caso nÇo a tenha aprovado! 252<br />
Sob vàus e burkas, as mulheres <strong>de</strong> O Livreiro <strong>de</strong> Cabul seguem com suas vidas<br />
silenciadas, infelizes do casamento arranjado (muitas se suicidam por nÇo po<strong>de</strong>rem se unir ao<br />
ser amado, tendo <strong>de</strong> aceitar um marido escolhido pela famÉlia) e invisÉveis em seus uniformes<br />
disformes. Seierstad sentiu na pele as dores e as insuspeitas <strong>de</strong>lÉcias <strong>de</strong> ver o mundo a partir<br />
do interior <strong>de</strong> uma janela bordada e ser vista como uma afegÇ.<br />
124<br />
A burca aperta e dá dor <strong>de</strong> cabeÅa, enxerga-se mal atravàs da re<strong>de</strong> bordada. ï abafada,<br />
<strong>de</strong>ixando entrar pouco ar, e logo faz suar. ï preciso tomar cuidado o tempo todo on<strong>de</strong><br />
pisar, porque nÇo po<strong>de</strong>mos ver nossos pàs, e como junta um monte <strong>de</strong> lixo, fica suja e<br />
atrapalha. Era um alÉvio tirá-la ao chegar em casa. 253<br />
Eu nÇo era obrigada a seguir os severos cÑdigos <strong>de</strong> vestimenta das mulheres afegÇs e<br />
podia ir aon<strong>de</strong> quisesse. Mesmo assim, quase sempre vestia a burca, simplesmente<br />
para ser <strong>de</strong>ixada em paz. Nas ruas <strong>de</strong> Cabul, uma mulher oci<strong>de</strong>ntal chama muita<br />
atenÅÇo in<strong>de</strong>sejada. Sob a burca eu estava livre para olhar ä vonta<strong>de</strong> sem que ninguàm<br />
me olhasse. E podia observar as outras famÉlias fora <strong>de</strong> casa sem atrair a atenÅÇo para<br />
mim. O anonimato tornou-se uma libertaÅÇo, era o ënico lugar on<strong>de</strong> podia me<br />
refugiar, porque em Cabul praticamente nÇo há um lugar tranquilo para se estar<br />
sozinho. 254<br />
Ver o mundo como uma afegÇ permitiu ä autora oci<strong>de</strong>ntal uma experiÖncia da alterida<strong>de</strong><br />
que, se nÇo a <strong>de</strong>spiu da inescapável condiÅÇo <strong>de</strong> estrangeira, foi capaz <strong>de</strong> fazÖ-la compreen<strong>de</strong>r<br />
quantos orientes cabem <strong>de</strong>ntro do Oriente. Em visita ao Brasil, o diretor <strong>de</strong> “Paradise Now”<br />
pò<strong>de</strong> filtrar com lentes brasileiras a tÇo comentada opressÇo imposta pelo islamismo ao<br />
universo feminino: “ès vezes me pergunto o que à mais cruel: usar o vàu para se cobrir ou ser<br />
obrigada a aparentar eternamente 20 anos” 255 .<br />
Internamente, muitas vozes orientais tÖm oferecido leituras as mais diversas da religiÇo<br />
e da cultura islêmica, apesar <strong>de</strong> os mais ortodoxos insistirem na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o AlcorÇo nÇo dá<br />
251<br />
SEIERSTAD, 2006, p. 55.<br />
252<br />
PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 253.<br />
253<br />
SEIERSTAD, 2006, p. 14.<br />
254<br />
Ibi<strong>de</strong>m, pp. 13-14.<br />
255<br />
ABU-ASSAD apud. TORRES, “Hany no Alá-lá-ò”, julho <strong>de</strong> 2009, p. 54.
margem a interpretaÅâes. Tais divergÖncias internas impediram que “O Clone” fosse visto<br />
pelas autorida<strong>de</strong>s muÅulmanas no Brasil como uma reproduÅÇo fiel da realida<strong>de</strong>. Alàm disso,<br />
o fato <strong>de</strong> a autora sintetizar na trama o multifacetado universo islêmico e ainda situá-lo num<br />
paÉs real (que, por forÅa da ficÅÇo, adquiriu uma dimensÇo simbÑlica <strong>de</strong> modo a servir <strong>de</strong> pano<br />
<strong>de</strong> fundo para a composite dos costumes muÅulmanos), resultou em ruÉdo na percepÅÇo. Numa<br />
apreensÇo “concretista” da locaÅÇo da trama, Adghirni reclamou que as roupas usadas pelas<br />
personagens femininas da novela nÇo fazem parte necessariamente do cotidiano do Marrocos:<br />
125<br />
Nas cida<strong>de</strong>s ou no interior, as mulheres tanto po<strong>de</strong>m usar o vàu e a tënica tradicional<br />
(djelaba) como o jeans e a minissaia. Se algumas mulheres preferem adotar as roupas<br />
tradicionais sem jamais a<strong>de</strong>rir ä moda oci<strong>de</strong>ntal, outras passam do jeans ao kaftan<br />
(vestido tradicional <strong>de</strong> festas) sem nenhum complexo. 256<br />
O uso <strong>de</strong> trajes tradicionais e a recusa em adotar o dress co<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal, está menos<br />
ligado aos vÉnculos que <strong>de</strong>terminado local possa ter com os valores arcaicos ou mo<strong>de</strong>rnos da<br />
cultura do que ä atitu<strong>de</strong> da mulher diante da tradiÅÇo. De acordo com a sociÑloga portuguesa<br />
Maria Johanna Schouten,<br />
Muitas mulheres vestem um traje consi<strong>de</strong>rado islêmico simplesmente por ser tradiÅÇo<br />
no seu ambiente. Outras adoptam-no sob pressÇo, quer do Estado, quer do meio social<br />
directo. Mas nÇo sÇo raras as mulheres islêmicas mo<strong>de</strong>rnas que pâem o vàu por<br />
iniciativa prÑpria, por razâes práticas, como acto <strong>de</strong> auto-afirmaÅÇo ou como uma<br />
forma <strong>de</strong> empowerment. 257<br />
A <strong>de</strong>speito do fato <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>rem ou nÇo aos hábitos da maioria das mulheres<br />
marroquinas (Gloria Perez afirma ter se inspirado no que viu nas ruas das cida<strong>de</strong>s que<br />
serviram <strong>de</strong> locaÅÇo para a novela 258 ), as burkas e djelabas ajudaram a autora na configuraÅÇo<br />
da mÉstica da mulher muÅulmana que nÇo <strong>de</strong>ve se expor diante <strong>de</strong> estranhos. Escondida sob<br />
panos escuros ou esculpida em trajes que valorizam os movimentos da danÅa do ventre, a<br />
mulher em “O Clone” seduz pelo olhar que escapa dos vàus <strong>de</strong> cores vibrantes, combinando<br />
mistàrio e sensualida<strong>de</strong>. A narrativa ao estilo Mil e uma noites enreda o pëblico enquanto o<br />
figurino carnavalizado povoa o imaginário com odaliscas finamente ornamentadas. (NÇo por<br />
acaso, essa foi a fantasia mais procurada no carnaval <strong>de</strong> 2002.) A sobreposiÅÇo <strong>de</strong> a<strong>de</strong>reÅos<br />
materializa o <strong>de</strong>sejo por “muito ouro” e sublinha com a musicalida<strong>de</strong> dos balangandÇs os<br />
movimentos coreografados da danÅarina. Se o figurino <strong>de</strong> odalisca acentua o contorno sensual<br />
256 ADGHIRNI, “O falso clone do Marrocos”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 9 mar. 2006.<br />
257 SCHOUTEN, “Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e indumentária: as mulheres islêmicas”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 5 nov. 2009.<br />
258 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, pp. 253-254.
da mulher que habita o haràm imaginário do oci<strong>de</strong>ntal, as burkas representam um excelente<br />
recurso cÖnico: mais <strong>de</strong> uma vez o jovem apaixonado se apropria do traje feminino para se<br />
aproximar furtivamente da amada.<br />
Com relaÅÇo ä ingerÖncia da religiÇo na economia ou numa ativida<strong>de</strong> econòmica,<br />
Abdouni e Hamma<strong>de</strong>h esclarecem que<br />
126<br />
a religiÇo islêmica proÉbe a utilizaÅÇo <strong>de</strong> todo e qualquer valor, seja ele oci<strong>de</strong>ntal ou<br />
oriental, que venha a prejudicar ou levar qualquer socieda<strong>de</strong> islêmica ou nÇo, qualquer<br />
pessoa, muÅulmana ou nÇo, ao prejuÉzo moral, financeiro, hereditário, <strong>de</strong> honra ou<br />
qualquer outro que venha solapar a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer um <strong>de</strong> seus membros.<br />
Po<strong>de</strong>mos citar como exemplo a usura (cobranÅa e recebimento <strong>de</strong> juros), álcool,<br />
drogas, prostituiÅÇo etc. 259<br />
Pelos olhos muÅulmanos, nÇo há nada <strong>de</strong> absurdo ou opressor na ingerÖncia da religiÇo<br />
sobre o Estado e sobre as ativida<strong>de</strong>s humanas. A aceitaÅÇo da fà implica o compromisso <strong>de</strong><br />
experimentar o mundo ä luz do islamismo.<br />
Com 1,3 bilhÇo <strong>de</strong> seguidores, o islamismo à hoje a religiÇo que mais cresce no mundo,<br />
sendo a a<strong>de</strong>sÇo <strong>de</strong> mulheres a mais expressiva. E cresce principalmente, segundo Abdouni, no<br />
Oci<strong>de</strong>nte. Segundo dados da organizaÅÇo Pew Forum on Religion and Public Life, apenas<br />
20% dos muÅulmanos do mundo moram no Oriente Màdio ou no norte da ôfrica 260 . O<br />
jornalista Josà Eduardo Barella, em dados <strong>de</strong> 2005, anunciava: “Em vários paÉses da Europa,<br />
o islamismo já à a segunda religiÇo. Nos estados Unidos, existem 8 milhâes <strong>de</strong> seguidores.<br />
Aqui no Brasil há 1,5 milhÇo, muitos <strong>de</strong>les novos a<strong>de</strong>ptos.” 261 Para o Pew Forum, no entanto,<br />
os nëmeros brasileiros sÇo um pouco mais mo<strong>de</strong>stos ─ 191 mil a<strong>de</strong>ptos ─, o que nÇo impe<strong>de</strong><br />
o Brasil <strong>de</strong> figurar como o terceiro paÉs do continente americano a abrigar mais muÅulmanos.<br />
6.6 IDENTIDADES EM JOGO<br />
£rior. £ros. Oriri. Do latim, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> movimento ascen<strong>de</strong>nte serviu para i<strong>de</strong>ntificar<br />
como Oriente o ponto do càu on<strong>de</strong> o sol se levanta. A imagem do sol nascente no horizonte<br />
<strong>de</strong>terminou o alcance máximo da visÇo, o limite extremo do olhar. Opostos e extremos,<br />
Oriente e Oci<strong>de</strong>nte mantÖm uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> relacional: duas entida<strong>de</strong>s geográficas que dÇo<br />
259 ABDOUNI e HAMMADEH, “Aos autores e diretores da novela ‘O Clone’”. DisponÉvel em:<br />
. 14 <strong>de</strong> marÅo <strong>de</strong> 2002. Acesso em 12 set. 2006.<br />
260 SOARES, 25 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2009, p. A25.<br />
261 BARELLA, 2003, p. 15.
sustentação e refletem uma à outra. Uma existe para dar sentido à outra. E ambas são<br />
permanentemente construídas pelo homem para conferir realida<strong>de</strong> e presença à sua existência.<br />
Oriente e Oci<strong>de</strong>nte estabelecem sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a partir da criação do oposto <strong>de</strong> sua<br />
imagem no outro, numa relação recorrente entre o Eu e o não-Eu, o igual e o diferente, o<br />
superior e o inferior, o dominador e o dominado. O Outro é sempre ex-ótico, está fora da ótica<br />
do Eu, é sempre visto com olhos alheios. Não fala <strong>de</strong> si, uma vez que não tem voz no mundo<br />
do Eu. É a partir da experiência do Eu que o Outro se materializa. Olhar sempre implica um<br />
ponto <strong>de</strong> vista: por esta perspectiva, a imagem do Outro é relacional, dinâmica,<br />
correspon<strong>de</strong>nte, recorrente. De qualquer modo, inevitavelmente construída.<br />
Assim, para consolidar os avanços <strong>de</strong> um império, é preciso criar povos carentes <strong>de</strong><br />
civilização. Para disseminar o conceito <strong>de</strong> progresso, é necessário configurar a existência <strong>de</strong><br />
povos atrasados. Para consolidar a supremacia econômica é indispensável que se perpetuem<br />
os traços da miséria. Igualmente, para expandir uma doutrina religiosa é preciso salvar do<br />
inferno seres supostamente sem alma. Neste sentido, as narrativas hegemônicas se sustentam<br />
apenas na medida em que cassam a voz dos subalternos. Silenciados e impotentes, resta aos<br />
subalternos <strong>de</strong>senvolver mecanismos <strong>de</strong> resistência: os pacifistas, como Mahatma Gandhi,<br />
propõem o restabelecimento afirmativo das vozes e dos saberes subalternos a partir da<br />
reforma e do esclarecimento cultural; os radicais, como Frantz Fanon, acreditam que só a<br />
violência é capaz <strong>de</strong> libertar os nativos <strong>de</strong> seu complexo <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sespero e<br />
sua inércia, só a violência coletiva resgata o respeito próprio e os torna <strong>de</strong>stemidos 262 . De<br />
qualquer que seja o lado em que se esteja, é preciso criar o inimigo para que sejam<br />
estabelecidas as fronteiras da alterida<strong>de</strong> e retirar-lhe o direito <strong>de</strong> voz para que as narrativas<br />
sobre ele possam ser ouvidas e disseminadas.<br />
Com isso, não foi surpresa encontrar em Veja a reprodução do discurso raivoso da<br />
vítima humilhada que <strong>de</strong>stila seu ódio contra o inimigo. Tampouco surpreen<strong>de</strong>u o fato <strong>de</strong> a<br />
telenovela, com a licença poética natural dos textos ficcionais, reproduzir os estereótipos do<br />
imaginário coletivo sobre o Outro muçulmano. O que chama atenção é a sintonia (e a<br />
sincronia) <strong>de</strong>stas duas narrativas <strong>de</strong> naturezas tão distintas na reprodução complementar <strong>de</strong><br />
uma narrativa hegemônica sobre o Oriente, narrativa esta que, apesar da dinamicida<strong>de</strong> da<br />
história, dos avanços da globalização, do esvaziamento das i<strong>de</strong>ologias, e do fim dos<br />
binarismos, tem atravessado os tempos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong>. Apesar da ampliação do número<br />
<strong>de</strong> veículos <strong>de</strong> comunicação no mercado, da <strong>de</strong>scentralização dos discursos, das facilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
262 GANDHI, 1998.<br />
127
acesso a todo tipo <strong>de</strong> fonte <strong>de</strong> informaÅÇo, mais do que nunca o homem pÑs-mo<strong>de</strong>rno vive a<br />
ditadura do discurso ënico e a soberania da ignorência.<br />
ï compreensÉvel que as gran<strong>de</strong>s narrativas, por interesses diversos, se fechem para o<br />
saber originário do Outro. O que nÇo se compreen<strong>de</strong> à que o homem contemporêneo, este ser<br />
bombar<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> dados por todos os lados, supostamente curioso com o estreitamento das<br />
fronteiras e com a proximida<strong>de</strong> das diferenÅas, esteja alheio ä sua prÑpria ignorência e cràdulo<br />
diante da retÑrica <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> presente nos discursos da mÉdia, essa disseminadora <strong>de</strong><br />
simulacros. Quando a telenovela “O Clone” foi lanÅada, quase dois anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido<br />
concebida por Gloria Perez e pouquÉssimo tempo <strong>de</strong>pois dos ataques äs torres gÖmeas, muitos<br />
ficaram assombrados com o que foi chamado <strong>de</strong> “a bola <strong>de</strong> cristal” da autora, capaz <strong>de</strong><br />
antecipar com tanta antecedÖncia a agenda <strong>de</strong> interesses do Oci<strong>de</strong>nte sobre o muÅulmano.<br />
128<br />
NÇo há mágica nenhuma nisso: o islÇ e os muÅulmanos, seus conflitos e a tragàdia <strong>de</strong><br />
sua gente está todo dia nos jornais há muitos anos. Muitos os veem apenas como<br />
notÉcia. Como me interesso por gente, vejo o lado humano daquelas cenas e intuo<br />
sobre o confronto <strong>de</strong> tanta diferenÅa num mundo cada vez mais globalizado. Basta<br />
olhar e saber ver. 263<br />
Ao ler o noticiário <strong>de</strong> Veja sobre o 11 <strong>de</strong> setembro ou ao assistir a novela “O Clone”,<br />
este ser ignorante que habita a “era <strong>de</strong> informaÅÇo” vÖ apenas na superfÉcie, aceita como<br />
verda<strong>de</strong> o que à versÇo, se satisfaz com a verossimilhanÅa, “compra” sem questionar a<br />
retÑrica da objetivida<strong>de</strong> do jornalismo, <strong>de</strong>sconhece a manipulaÅÇo presente em qualquer<br />
ediÅÇo, e se <strong>de</strong>ixa seduzir pela mágica do espetáculo. A <strong>de</strong>speito do que dizem a revista e as<br />
personagens do teledrama, pouco importa se o muÅulmano <strong>de</strong> carne e osso que reverencia<br />
Meca numa profissÇo <strong>de</strong> fà milenar ultrapassa o imaginário coletivo que o Oci<strong>de</strong>nte produziu<br />
sobre ele ao longo <strong>de</strong> tantos sàculos. A análise da representaÅÇo do muÅulmano e do<br />
Islamismo no discurso factual da revista Veja sobre o 11 <strong>de</strong> setembro sugere a consolidaÅÇo,<br />
no mundo globalizado, <strong>de</strong> um imaginário recorrente que se fundamenta em práticas<br />
expansionistas e civilizatÑrias, inicialmente implementadas pela Europa e, <strong>de</strong>pois da Segunda<br />
Guerra Mundial, pelos Estados Unidos.<br />
Na certeza <strong>de</strong> que o jornal à a expressÇo da verda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> que o jornalismo brasileiro<br />
alinhado ä objetivida<strong>de</strong> do jornalismo americano à isento, o pëblico equivocadamente <strong>de</strong>gusta<br />
a versÇo etnocÖntrica <strong>de</strong> Veja como se fosse um banquete digno <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> e toma os<br />
relatos editados com cores flagrantemente i<strong>de</strong>olÑgicas como se fatos fossem. Interessa-lhe o<br />
263 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 246.
espetáculo proporcionado pela bem cuidada ediÅÇo, a plasticida<strong>de</strong> trágica das fotos e o drama<br />
convertido em notÉcia <strong>de</strong> forte apelo emocional.<br />
Em menor escala, uma vez que se apresenta como discurso ficcional, a telenovela “O<br />
Clone” recorre ao imaginário mÉstico e sedutor do Oriente <strong>de</strong> As Mil e uma noites e dos contos-<br />
<strong>de</strong>-fada para expressar a fantasia que esse mundo diferente evoca no Oci<strong>de</strong>nte. GraÅas ao<br />
cuidado da autora em ouvir as diferentes vozes do Outro muÅulmano e <strong>de</strong> respeitar os preceitos<br />
da religiÇo islêmica ─ diferentemente <strong>de</strong> Veja, que sequer ouviu fontes do outro lado da notÉcia<br />
─, a telenovela foi capaz nÇo sÑ <strong>de</strong> proporcionar menos <strong>de</strong>sconhecimento pelo objeto tratado<br />
como tambàm suscitou no pëblico o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecer melhor a realida<strong>de</strong> daquele povo. Tal<br />
<strong>de</strong>sejo foi prontamente satisfeito pela mÉdia em geral: sentindo a <strong>de</strong>manda resultante do<br />
estrondoso sucesso da novela, tanto o jornalismo como o mercado editorial <strong>de</strong> livros fez chegar<br />
ao brasileiro todo tipo <strong>de</strong> informaÅÇo complementar ä fantasia <strong>de</strong> Gloria Perez.<br />
Curiosamente, enquanto a figura masculina bárbara, arcaica e ameaÅadora em sua<br />
fragilida<strong>de</strong> insana emerge das fotos e dos textos para manchar <strong>de</strong> sangue o noticiário e<br />
instaurar o pênico na maior potÖncia econòmica do mundo, a presenÅa feminina <strong>de</strong>licada,<br />
sedutora sob os vàus do pudor e corajosa em sua submissÇo vagueia inebriante pela tela <strong>de</strong><br />
tevÖ para subjugar pelo encantamento o paÉs do Carnaval. O olhar brasileiro sobre o<br />
muÅulmano, numa experiÖncia <strong>de</strong>rivada do olhar oci<strong>de</strong>ntal, reproduz a imagem do oriental já<br />
há muito i<strong>de</strong>ntificada por Edward Said: embora <strong>de</strong>scrito como feminino e fraco, o homem se<br />
mostra estranhamente perigoso e ameaÅador, enquanto a mulher, atraentemente exÑtica,<br />
cultiva o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser dominada. Nesse jogo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e cÑdigos contraditÑrios, ficam os<br />
traÅos <strong>de</strong> penetrabilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> passiva maleabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse Oriente fortemente visto <strong>de</strong> cima e<br />
<strong>de</strong> longe, a partir <strong>de</strong> e em comparaÅÇo com o Oci<strong>de</strong>nte conquistador.<br />
De outra parte e finalmente, a revelaÅÇo do olhar muÅulmano sobre as narrativas aqui<br />
estudadas à tÇo-somente um gesto <strong>de</strong> esclarecimento que preten<strong>de</strong>, no bojo dos estudos pÑs-<br />
coloniais, chamar a atenÅÇo para, e assim tentar recuperar, como diz Loomba, “todo um<br />
amplo espectro <strong>de</strong> saber que foi consi<strong>de</strong>rado ilegÉtimo, <strong>de</strong>squalificado ou subjugado 264 .<br />
264 LOOMBA, 1998, p. 53.<br />
129
7 NARRATIVAS SOBRE O MUNDO INDIANO<br />
Com sua milenar tradiÅÇo, impactante populaÅÇo e pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses, religiâes,<br />
lÉnguas e modos <strong>de</strong> vida, a índia há muito vem alimentando o imaginário oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>slumbramentos, exotismos e mistàrios. Diante <strong>de</strong>sse Outro tÇo estrangeiro, os olhares<br />
invariavelmente oscilaram entre a “atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo”, cultivada na àpoca dos viajantes e<br />
conquistadores, e a reverÖncia religiosa: segundo o dramaturgo e roteirista frrancÖs Jean-<br />
Clau<strong>de</strong> Carriöre 265 , a primeira resultou na disseminaÅÇo da imagem (muito conveniente para a<br />
retÑrica da dominaÅÇo colonial) <strong>de</strong> um “povo bárbaro, idÑlatra, <strong>de</strong> uma ignorência obscura”,<br />
ao passo que a segunda, consolidou mais recentemente o clichÖ oposto, o <strong>de</strong> uma “índia<br />
serena, contemplativa”, “espiritual”. Encantados com a riqueza cultural e religiosa, ou<br />
intrigados com a coexistÖncia <strong>de</strong> contrastes radicais, o cinema, a literatura e o jornalismo<br />
inëmeras vezes voltaram-se para o mundo indiano em busca <strong>de</strong> conhecÖ-lo, apresentá-lo para<br />
alàm <strong>de</strong> suas fronteiras e, sobretudo, promover o espetáculo da diferenÅa.<br />
CobiÅada por europeus <strong>de</strong> muitas nacionalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o sàculo XVI e dominada pela<br />
Inglaterra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o sàculo XVIII, a índia colonizada foi <strong>de</strong>scrita como inferior e incapaz <strong>de</strong><br />
resolver seus problemas sem a ajuda do impàrio britênico em sua “generosa” disposiÅÇo <strong>de</strong><br />
transferir ä colònia as marcas <strong>de</strong> sua superiorida<strong>de</strong> ─ o “progresso” e a “civilizaÅÇo”. Os<br />
contornos <strong>de</strong> uma Babel <strong>de</strong> gentes, animais, etnias, religiâes e idiomas davam forma ä “jÑia<br />
mais cara da coroa”: preciosa como fornecedora <strong>de</strong> matària prima e importadora <strong>de</strong> produtos<br />
industrializados, o conjunto <strong>de</strong> naÅâes outrora exportador <strong>de</strong> tecidos para a GrÇ-Bretanha<br />
ren<strong>de</strong>ria espantoso lucro ao impàrio, nÇo sem a contrapartida da falÖncia das tecelagens<br />
indianas e da apresentaÅÇo dos que se rebelavam contra a dominaÅÇo como “cruàis” e<br />
“fanáticos”. Estranho e atrasado, o paÉs tornou-se “conhecido” atravàs <strong>de</strong> seu colonizador.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, e com ainda mais eficácia, o cinema exploraria em imagens marcantes<br />
uma índia exÑtica e fora do tempo, consolidando o imaginário internacional sobre o paÉs e seu<br />
povo. Serpentes hipnotizadas por flautas mágicas, faquires em camas <strong>de</strong> pregos, homens <strong>de</strong><br />
aparÖncia frágil com mirabolantes turbantes na cabeÅa e mulheres embrulhadas em panos sÇo<br />
algumas marcas <strong>de</strong>ste exotismo resultante do preconceito e da retÑrica da dominaÅÇo inglesa.<br />
Este foi o discurso sobre o Outro indiano que serviu ä Inglaterra na àpoca da conquista e da<br />
consolidaÅÇo da “missÇo civilizatÑria” sobre sua mais preciosa colònia. Muitos ainda viriam a<br />
florescer, já que, como diz Said, “cada era e socieda<strong>de</strong> recria seus Outros” 266 .<br />
265 CARRI†RE, 2002, p. 12.<br />
266 SAID, 2007, p. 441.<br />
130
No sàculo XX, tendo <strong>de</strong>ixado para trás duas guerras mundiais e estando ainda no calor<br />
da Guerra do Vietnam, o mundo ganhava nova configuraÅÇo e o tempo bafejava sobre os<br />
jovens uma indignaÅÇo, um <strong>de</strong>sejo por paz ─ interna e externa ─ e a busca por novos<br />
paradigmas. Novamente os caminhos da Inglaterra e da índia cruzaram-se na construÅÇo <strong>de</strong><br />
uma nova oposiÅÇo: durante oito semanas, os ingleses mais famosos do planeta <strong>de</strong>ixaram os<br />
shows <strong>de</strong> rock’n’roll e o assàdio da imprensa e dos fÇs para se internarem aos pàs do<br />
Himalaia. Os Beatles buscavam na meditaÅÇo em um ashram indiano algo que a fama e a<br />
fortuna nÇo tinham sido capazes <strong>de</strong> lhes dar. Ao final dos anos 1960, a especiaria mais<br />
cobiÅada por aqueles ingleses famosos atendia pelo nome <strong>de</strong> “espiritualida<strong>de</strong>” e a mÉdia, no<br />
boom <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> colonizaÅÇo eletrònica, construiria para o resto do mundo a nova<br />
face da índia. “ültimo reduto da espiritualida<strong>de</strong> para um Oci<strong>de</strong>nte tÇo completamente<br />
dominado pelo materialismo” 267 , o paÉs passou a ser visto como um “spa espiritual” que atrai<br />
pessoas <strong>de</strong> todo o mundo em busca <strong>de</strong> paz e renovaÅÇo.<br />
Recentemente, com sua elevaÅÇo ä condiÅÇo <strong>de</strong> paÉs emergente do sàculo XXI, a índia<br />
novamente ganhou projeÅÇo internacional alimentada pelo noticiário que a i<strong>de</strong>ntifica como<br />
gran<strong>de</strong> potÖncia econòmica mundial. O interesse por esse paÉs <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s dimensâes<br />
territoriais (o sàtimo maior em área, cerca <strong>de</strong> trÖs mil quilòmetros quadrados), alta <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />
populacional (<strong>de</strong>pois da China, à o segundo mais populoso do mundo, reunindo mais <strong>de</strong> um<br />
bilhÇo <strong>de</strong> habitantes) e gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> cultural e religiosa estimulou a curiosida<strong>de</strong><br />
oci<strong>de</strong>ntal, gerando uma <strong>de</strong>manda que se traduz em inëmeros produtos <strong>de</strong> informaÅÇo: livros,<br />
documentários, filmes <strong>de</strong> ficÅÇo e atà telenovela sobre o assunto. A curiosa equaÅÇo que<br />
combina mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> com arcaÉsmo, resultando em prosperida<strong>de</strong>, à no mÉnimo intrigante<br />
para um Oci<strong>de</strong>nte que vive sob a marca do progresso ─ um progresso alcanÅado<br />
necessariamente com a superaÅÇo do passado antigo e atrasado, um progresso que caminha<br />
obstinadamente em direÅÇo ao futuro.<br />
A nova índia que o Oci<strong>de</strong>nte está construindo em numerosas e variadas narrativas tem<br />
se alimentado nÇo sÑ do resgate do imaginário coletivo consolidado ao longo do tempo como<br />
tambàm das vozes que cada vez mais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a in<strong>de</strong>pendÖncia da Inglaterra, tÖm falado <strong>de</strong> si e<br />
por si sobre o paÉs, dispensando os intermediários <strong>de</strong> outrora. Depois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 30 viagens ä<br />
índia, Jean-Clau<strong>de</strong> Carriöre comemora o fato <strong>de</strong> que muitos oci<strong>de</strong>ntais há muito abandonaram<br />
a “atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo”, embora muitas vezes ainda sejam tentados a reforÅar o clichÖ da<br />
267 PEREZ, “Caminho das índias - IntroduÅÇo”, material cedido pela autora e apresentado ä TV Globo.<br />
131
“espiritualida<strong>de</strong>”. ï o Orientalismo impregnado no olhar do Oci<strong>de</strong>nte que ainda teima em<br />
<strong>de</strong>ixar seu rastro nas narrativas contemporêneas.<br />
Assim como em 2001 o brasileiro pò<strong>de</strong> confrontar a representaÅÇo do muÅulmano<br />
oferecida pelo noticiário sobre o 11 <strong>de</strong> setembro com aquela que emergia das telas em “O<br />
Clone”, novamente, em 2009, duas narrativas <strong>de</strong> peso voltaram-se para o indiano: a do filme<br />
<strong>de</strong> ficÅÇo “Quem quer ser um milionário?”, dirigido pelo inglÖs Danny Boyle, ganhador <strong>de</strong><br />
oito Oscars, inclusive o <strong>de</strong> melhor filme, e a da telenovela “Caminho das índias”, <strong>de</strong> Gloria<br />
Perez, exibida em horário nobre na TV Globo entre janeiro e setembro, vencedora, em<br />
novembro, do International Emmy Awards, o Oscar da televisÇo, na categoria <strong>de</strong> melhor<br />
novela (aliás, a ënica telenovela brasileira a conquistar um prÖmio internacional <strong>de</strong>ssa<br />
importência). Embora o filme <strong>de</strong> Boyle tenha sido lanÅado no final <strong>de</strong> 2008, sua exibiÅÇo no<br />
Brasil ocorreu apenas no inÉcio <strong>de</strong> marÅo do ano seguinte, apenas um mÖs e meio <strong>de</strong>pois da<br />
estreia <strong>de</strong> “Caminho das índias”, o que permitiu ä gran<strong>de</strong> audiÖncia da novela e ä gran<strong>de</strong> parte<br />
do pëblico que assistiu ao filme no paÉs (mais <strong>de</strong> um milhÇo <strong>de</strong> espectadores) a contraposiÅÇo<br />
<strong>de</strong>stas duas narrativas.<br />
A análise das representaÅâes sobre o Outro indiano como aparecem em “Quem quer<br />
ser um milionário?” e em “Caminho das índias” à o foco <strong>de</strong>ste capÉtulo. Sendo ambas<br />
narrativas estrangeiras sobre o indiano, sirvo-me dos dados fornecidos pelo Consulado Geral<br />
da índia no Brasil e dos relatos oferecidos pela autora indiana Thrity Umrigar em dois <strong>de</strong> seus<br />
romances, A distância entre nós e A doçura do mundo, como contraponto entre o indiano<br />
falado por outrem e o indiano falado por si. Sirvo-me tambàm <strong>de</strong> relatos mais documentais e<br />
analÉticos vindo <strong>de</strong> estrangeiros consi<strong>de</strong>rados insi<strong>de</strong>rs, como o <strong>de</strong> Jean-Clau<strong>de</strong> Carriöre (em<br />
Índia: um olhar amoroso) e Mira Kamdar (em Planeta Índia: ascensão turbulenta <strong>de</strong> uma<br />
nova potência global).<br />
7.1 DUAS NARRATIVAS FICCIONAIS<br />
Duas narrativas ficcionais, duas índias. “Quem quer ser um milionário?” e “Caminho<br />
das índias” oferecem recortes diferentes, antagònicos atà, <strong>de</strong>sse paÉs tÇo cheio <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong>s<br />
e contrastes. Para alàm das diferenÅas entre a narrativa cinematográfica e a <strong>de</strong> telenovela,<br />
cada uma <strong>de</strong>las reproduz um universo ficcional completamente singular, embora ambas<br />
tenham sido conduzidas como contos <strong>de</strong> fadas.<br />
132
“Quem quer ser um milionário?” conta a histÑria <strong>de</strong> Jamal Malik, um jovem<br />
muÅulmano <strong>de</strong> 18 anos, ÑrfÇo criado numa favela <strong>de</strong> Mumbai, que está prestes a ganhar 20<br />
milhâes <strong>de</strong> rëpias num game show da tevÖ indiana. Preso sob suspeita <strong>de</strong> ter trapaceado<br />
(afinal, como alguàm sem instruÅÇo e sem nenhum interesse por dinheiro sabe todas as<br />
respostas?), ele conta ä polÉcia sua histÑria. Na pobreza e na violÖncia da vida da favela, Jamal<br />
e seu irmÇo Salim ficam ÑrfÇos ainda pequenos e, junto com a amiga Latika, sÇo obrigados a<br />
sobreviver <strong>de</strong> sua esperteza. Jamal per<strong>de</strong> Latika <strong>de</strong> vista quando o trio foge <strong>de</strong> um explorador<br />
<strong>de</strong> menores. No submundo do crime organizado, do comàrcio ilegal e dos pequenos <strong>de</strong>litos,<br />
Jamal cresce, afasta-se do irmÇo quando este se envolve com gêngsters, arranja emprego<br />
servindo chá num call center <strong>de</strong> uma empresa <strong>de</strong> telefonia e <strong>de</strong>dica sua vida a reencontrar<br />
Latika. Participar do famoso show “Quem quer ser um milionário?”, mesmo sem chances <strong>de</strong><br />
ganhar, à a oportunida<strong>de</strong> que tem <strong>de</strong> ser visto por ela, já que o programa conta com gran<strong>de</strong><br />
popularida<strong>de</strong> no paÉs. Jamal, no entanto, sabe todas as respostas. Falta provar sua inocÖncia,<br />
ganhar o prÖmio e o coraÅÇo <strong>de</strong> sua amada. A intuiÅÇo <strong>de</strong> quem vive no risco lhe traz a<br />
resposta certa e os 20 milhâes <strong>de</strong> rëpias, transformando-o imediatamente em celebrida<strong>de</strong><br />
nacional. O irmÇo perdido para o crime, aquele que tantas vezes o havia traÉdo, facilita a fuga<br />
<strong>de</strong> Latika, traindo o gêngster para quem trabalhava (ousadia esta que lhe custou a vida) e<br />
permitindo o encontro do casal.<br />
A trama central <strong>de</strong> “Caminho das índias” conta a histÑria do amor impossÉvel entre<br />
Maya, funcionária <strong>de</strong> telemarketing do RajastÇo, moÅa <strong>de</strong> famÉlia tradicional, <strong>de</strong> casta, e<br />
Bahuam, um dálit (sem casta) que, apesar <strong>de</strong> ter sido adotado por um brâmane (sábio da casta<br />
mais alta) e ter estudado no exterior, à rejeitado pelos pais <strong>de</strong> sua amada. Estes, diante do<br />
perigo do envolvimento da filha com um intocável, entregam-na em casamento a Raj, jovem e<br />
rico empresário, filho <strong>de</strong> famÉlia da casta dos comerciantes. As juras <strong>de</strong> amor entre Maya e<br />
Bahuam e o plano <strong>de</strong> fuga para o exterior, on<strong>de</strong> estariam livres dos <strong>de</strong>sÉgnios familiares e do<br />
preconceito indiano, nÇo impe<strong>de</strong>m o ambicioso Bahuam <strong>de</strong> partir sozinho para os Estados<br />
Unidos, na esperanÅa <strong>de</strong> ganhar a vida antes <strong>de</strong> buscar a amada e assim livrar-se das<br />
constantes humilhaÅâes. Ele parte sozinho e Maya, <strong>de</strong>sesperada com o abandono e, mais<br />
ainda, por <strong>de</strong>scobrir-se grávida, nÇo tem outra alternativa senÇo aceitar o casamento arranjado<br />
por seus pais em acordo com a famÉlia <strong>de</strong> Raj. Este por sua vez aceita o casamento com Maya<br />
apenas por respeito a seus pais e ä tradiÅÇo indiana. Raj na verda<strong>de</strong> ama Duda, moÅa brasileira<br />
a quem tinha pedido em casamento pouco antes <strong>de</strong> saber dos arranjos <strong>de</strong> sua famÉlia para vÖ-<br />
lo casado <strong>de</strong>ntro dos costumes. Tendo estudado na Inglaterra, vive dividido entre os valores<br />
do Oriente e do Oci<strong>de</strong>nte. Ao romper com Duda, Raj <strong>de</strong>ixa a brasileira incràdula diante do<br />
133
motivo alegado: seus pais já haviam escolhido uma noiva para ele. Certa <strong>de</strong> que o indiano à<br />
um canalha que a enganou durante todo o tempo, Duda tenta se <strong>de</strong>sligar <strong>de</strong> Raj, embora<br />
<strong>de</strong>scubra estar grávida, informaÅÇo que omite <strong>de</strong>le. Raj casa-se com Maya sem saber que o<br />
filho que ela espera à <strong>de</strong> Bahuam, o dálit a quem ele tanto rejeita por sua condiÅÇo <strong>de</strong><br />
intocável e a quem tanto o<strong>de</strong>ia por insistir em cruzar o caminho <strong>de</strong> sua vida com Maya sem<br />
motivo aparente. MoÅa honesta e bem intencionada, Maya <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> esquecer Bahuam e<br />
“construir um amor” com seu marido, mas vive atormentada pela mentira que criou: <strong>de</strong> um<br />
lado, quer contar a verda<strong>de</strong> e livrar-se da culpa; <strong>de</strong> outro, teme ser rejeitada pelo marido, a<br />
quem passou a amar verda<strong>de</strong>iramente, e sabe que será afastada <strong>de</strong> seu filho e ainda submetida<br />
a todo tipo <strong>de</strong> humilhaÅÇo e puniÅÇo, manchando a honra <strong>de</strong> sua famÉlia para sempre.<br />
Apegado aos costumes, Opash Ananda, pai <strong>de</strong> Raj, ao saber do filho <strong>de</strong> Duda, faz acordo com<br />
ela, proibindo-a <strong>de</strong> contar sobre a crianÅa. Em contrapartida, cria como seu neto o menino<br />
dálit <strong>de</strong> Maya, i<strong>de</strong>ntificando nele as qualida<strong>de</strong>s da casta do avò.<br />
Como se trata <strong>de</strong> uma telenovela, e nÇo <strong>de</strong> um filme, a narrativa <strong>de</strong> “Caminho das<br />
índias” precisa ren<strong>de</strong>r 203 capÉtulos <strong>de</strong> uma hora <strong>de</strong> duraÅÇo cada, o que significa que a<br />
histÑria se sustenta nÇo sÑ pela trama central acima <strong>de</strong>scrita como tambàm por várias outras<br />
subtramas que convergem em algum ponto para o triêngulo amoroso Bahuam-Maya-Raj. O<br />
<strong>de</strong>sencontro amoroso entre Láksmi, mÇe <strong>de</strong> Opash, e Shankar, pai adotivo <strong>de</strong> Bahuam,<br />
reproduz na geraÅÇo mais velha o drama <strong>de</strong> Maya: Shankar e Opash <strong>de</strong>scobrem ser pai e filho<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos anos <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong>s mëtuas; e Láksmi, feroz <strong>de</strong>fensora dos costumes e<br />
intolerante com as transgressâes, revela ter ocultado a gravi<strong>de</strong>z ilegÉtima e ter se casado com<br />
o preten<strong>de</strong>nte escolhido por seus pais para livrar-se da vergonha pëblica. No Brasil, os irmÇos<br />
Ramiro e Raul Cadore fazem parceria entre a empresa farmacÖutica da famÉlia e a empresa <strong>de</strong><br />
comàrcio eletrònico <strong>de</strong> Raj, situada na índia, dando inÉcio a uma relaÅÇo comercial entre os<br />
dois paÉses, relaÅÇo que acaba tambàm por envolver Bahuam. Descontente com a<br />
invisibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu gran<strong>de</strong> empenho profissional e enciumado pela forte visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />
irmÇo no comando da empresa, Raul dá um <strong>de</strong>sfalque para chamar a atenÅÇo para si, e,<br />
entediado, vive crise no casamento com SÉlvia e acaba se envolvendo com Yvone, a doce<br />
amiga <strong>de</strong> sua esposa que se apresenta como màdica e o convence a simular a prÑpria morte<br />
como forma <strong>de</strong> dar fim a tudo aquilo e recomeÅar a vida em outro lugar. A “ajuda” e a<br />
“doÅura” <strong>de</strong> Yvone encobrem suas intenÅâes golpistas e sua personalida<strong>de</strong> psicopata.<br />
Enganado, Raul foge com ela para Dubai, à abandonado e per<strong>de</strong> toda sua fortuna, sendo<br />
ajudado por um motorista <strong>de</strong> taxi indiano que tem ligaÅâes com a famÉlia Ananda. Ramiro,<br />
diante do <strong>de</strong>sfalque e da suposta morte do irmÇo, <strong>de</strong>speja a cunhada da casa em que vivia com<br />
134
Raul, <strong>de</strong>spertando a ira da sobrinha Jëlia. No afÇ <strong>de</strong> preparar um sucessor na Cadore, o<br />
empresário pressiona seu filho Tarso a assumir os negÑcios da famÉlia, sem suspeitar que suas<br />
insistentes e autoritárias investidas acabariam <strong>de</strong>spertando no jovem e sensÉvel aspirante a<br />
mësico o <strong>de</strong>senvolvimento da esquizofrenia. EntrelaÅadas ä trama central do amor impossÉvel,<br />
as subtramas <strong>de</strong> Shankar, Ramiro, Raul, Yvone e Tarso, se unem a muitas outras na tarefa <strong>de</strong><br />
colorir a histÑria principal e <strong>de</strong>senvolver temas paralelos, como a esquizofrenia e a psicopatia.<br />
“Caminho as índias” e “Quem quer ser um milionário?” sÇo narrativas que falam do<br />
amor e que se apoiam no melodrama para cativar a audiÖncia: a telenovela se vale do<br />
sensacional, das peripàcias prÑprias do folhetim, para surpreen<strong>de</strong>r os telespectadores a cada<br />
capÉtulo; o filme se vale do suspense e da aÅÇo para <strong>de</strong>spertar no pëblico a emoÅÇo <strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>ixar encantar pela histÑria mesmo que o final seja previsÉvel. Ambas sÇo exemplos bem<br />
sucedidos da arte <strong>de</strong> contar histÑrias, embora trilhem caminhos diferentes.<br />
7.2 O TEMPO NARRATIVO<br />
Contar histÑrias à uma arte engendrada pela imaginaÅÇo e pela tàcnica do contador, e<br />
explora mëltiplos percursos narrativos. A contraposiÅÇo <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?” e<br />
“Caminho das índias” dá uma medida da importência da utilizaÅÇo do tempo como linguagem<br />
e como instrumento <strong>de</strong> construÅÇo da emoÅÇo. Cabe ao tempo conduzir a histÑria.<br />
Baseado no romance Q and A, do escritor e diplomata indiano Vikas Swarup, o filme<br />
inglÖs “Quem quer ser um milionário?” foi adaptado para o cinema por Simon Beaufoy ─<br />
trata-se, portanto, <strong>de</strong> uma produÅÇo cinematográfica concebida a partir <strong>de</strong> uma obra literária,<br />
o que acabou conferindo nÇo sÑ ao autor do livro como ao roteirista do filme um <strong>de</strong>staque<br />
pouco comum, geralmente concedido apenas ao diretor 268 . O que chega äs telas, assim, à a<br />
histÑria <strong>de</strong> Swarup (re)contada com o enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> “cenas” <strong>de</strong> Beaufoy e filmada (e<br />
editada) sob o olhar <strong>de</strong> Boyle em sua concepÅÇo Émpar <strong>de</strong> cinema. ï uma obra com trÖs<br />
assinaturas diferentes, cada uma <strong>de</strong>las introduzindo a marca singular dos “autores”. Ao<br />
roteirizar o livro, Beaufoy respeitou a trama central, fez os ajustes necessários para sua<br />
a<strong>de</strong>quaÅÇo ä duraÅÇo limitada do filme e introduziu sua contribuiÅÇo autoral ao sobrepor trÖs<br />
recortes temporais: o presente que conduz o suspense da aÅÇo (o do programa <strong>de</strong> auditÑrio),<br />
outro presente que busca explicaÅâes para a aÅÇo (o da investigaÅÇo policial) e o passado,<br />
trazido em flashbacks, que explica a aÅÇo pela memÑria do protagonista. A justaposiÅÇo<br />
268 Como cinema à arte <strong>de</strong> diretor, o nome do autor <strong>de</strong> roteiro original raramente à lembrado pelo pëblico.<br />
135
<strong>de</strong>stas três linhas <strong>de</strong> enca<strong>de</strong>amento da narrativa permite que se acompanhe quase que<br />
simultaneamente a tensão <strong>de</strong> Jamal diante da improbabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conseguir respon<strong>de</strong>r mais<br />
uma pergunta, a violência da <strong>de</strong>sconfiança policial diante <strong>de</strong> um favelado que tudo sabe, e o<br />
doloroso resgate <strong>de</strong> uma memória que Jamal quer esquecer.<br />
A opção <strong>de</strong> Beaufoy pela tripla possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> percepção do drama daquele jovem<br />
improvável não só confere fôlego à narrativa roteirizada e potencializa sua dramaticida<strong>de</strong><br />
como também presenteia Boyle com riquíssimas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> explorar o que sua<br />
assinatura cinematográfica tem <strong>de</strong> melhor: a ligeireza na captação dos movimentos, a urgência<br />
dos instantes registrados com a câmera na mão, a estranheza dos primeiríssimos planos e o<br />
enquadramento <strong>de</strong> baixo para cima. A velocida<strong>de</strong> estonteante dos movimentos <strong>de</strong> quem tem<br />
pressa <strong>de</strong> fugir é exposta por uma câmera ágil, posicionada muito próxima do que é captado,<br />
uma câmera que acelera sem <strong>de</strong>ixar nítidos os contornos do que é visto, que entrecorta a<br />
imagem fugidia captada por entre os vagões do trem, que sobrevoa os telhados da favela<br />
abrindo o foco e acentuando a sensação <strong>de</strong> confinamento <strong>de</strong> quem não tem saída, e que<br />
vasculha a multidão como quem teme encontrar o algoz em qualquer rosto.<br />
Sem a estabilida<strong>de</strong> do tripé ou da grua, a câmera muitas vezes corre nervosa captando na<br />
mão a insegurança dos <strong>de</strong>stinos daqueles meninos e jovens sem futuro. Perseguições por entre<br />
barracos e ruelas atravessam vagões e moradias, atropelam mulheres, crianças e animais,<br />
acompanham a ira da polícia e dos rivais religiosos, e encurralam meninos que zombam da<br />
morte, essa vizinha tão pouco temida. A opção pelo foco em primeiríssimo plano permite a<br />
sobreposição dos tempos, fazendo o presente lembrar o passado em imagens simultâneas: o<br />
rosto agigantado <strong>de</strong> Jamal no canto da tela recorta as cenas <strong>de</strong> sua memória. O contraste entre os<br />
planos <strong>de</strong> enquadramento também estreita a distância com o que é mostrado e sublinha sua<br />
importância: <strong>de</strong>staca o golpe mortal <strong>de</strong>sferido contra a mãe enquanto <strong>de</strong>ixa a dor do filho sem<br />
niti<strong>de</strong>z; as orelhas <strong>de</strong> abano <strong>de</strong> Jamal, exacerbadas pelo enquadramento inusitado, mostram a<br />
sensibilida<strong>de</strong> das antenas <strong>de</strong>ste favelado sem estudo que tudo sabe; o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> rumo para<br />
seguir a enorme galinha que foge assustada parece acentuar a impotência dos mais fracos,<br />
muitas vezes explorada cruelmente em brinca<strong>de</strong>ira inocente <strong>de</strong> menino. Tomada <strong>de</strong> baixo para<br />
cima, a percepção da realida<strong>de</strong> vista pelos olhos das crianças pobres da Índia é sempre<br />
ameaçadora: ao oferecer o ângulo <strong>de</strong> visão dos menores, Boyle redimensiona os riscos, a<br />
covardia, a exploração, a impotência. Por outro lado, <strong>de</strong>scortina também o céu como horizonte.<br />
Aqui, roteirista e diretor, contadores <strong>de</strong> história que usam diferentes linguagens,<br />
imprimem respectivamente suas assinaturas textuais e imagéticas na condução do maior trunfo<br />
narrativo do filme: o tempo. Coincidência ou não, o presente que avança rapidamente enquanto<br />
136
o menino cai do trem (ou que transcorre lentamente enquanto as cêmeras do game show<br />
questionam se ele sabe ou nÇo a resposta) e a sobreposiÅÇo do tempo, que <strong>de</strong>sdobra o presente<br />
em dois e corre paralelo ao passado, se contribui para quebrar a linearida<strong>de</strong> e potencializar a<br />
dramaticida<strong>de</strong> da narrativa, tambàm funciona como uma referÖncia ao universo indiano<br />
retratado: tradiÅÇo milenar e mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, na índia, sÇo as duas faces do contemporêneo. Como<br />
diz o roteirista e escritor Carriöre sobre o paÉs que tantas vezes visitou, o “passado nÇo à o<br />
passado”; “ele à apenas uma das formas do presente, que o assimila e o prolonga”: “a índia<br />
reivindica cinco milÖnios <strong>de</strong> existÖncia aos quais se refere constantemente” 269 .<br />
Diferentemente <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?”, a trama original <strong>de</strong> “Caminho das<br />
índias” tem uma ënica assinatura: a <strong>de</strong> Gloria Perez, uma das mais talentosas e criativas<br />
contadoras <strong>de</strong> histÑria da televisÇo brasileira. Dispensando uma prática comumente adotada<br />
pela maioria dos autores <strong>de</strong> telenovelas brasileiras para driblar o forte trabalho braÅal <strong>de</strong><br />
escrever mais <strong>de</strong> duzentos capÉtulos, Gloria Perez trabalha sozinha, sem colaboradores. “Acho<br />
impossÉvel dividir fantasia” 270 , explica. Embora conte com o apoio <strong>de</strong> pesquisadoras e se valha<br />
da contribuiÅÇo <strong>de</strong> consultores especializados para obter informaÅâes a respeito dos temas<br />
abordados, a escolha da trama e das sub-tramas, a <strong>de</strong>finiÅÇo das personagens, o enca<strong>de</strong>amento<br />
das cenas no capÉtulo, o rumo da histÑria, e muitas vezes atà a trilha sonora ─ tudo sai <strong>de</strong> seu<br />
roteiro. Diferentemente do cinema, em telenovela, à a cabeÅa do autor que comanda. Nesse<br />
sentido, embora o diretor tenha autonomia para compor imageticamente a cena e conduzir o<br />
trabalho dos atores, nada <strong>de</strong>ve fugir ao que está no texto 271 . Especialmente no caso <strong>de</strong> Gloria<br />
Perez, uma autora que se vale apenas <strong>de</strong> sua imaginaÅÇo (muitos autores se inspiram em<br />
personagens ou tramas já existentes para construir a base <strong>de</strong> suas histÑrias), nÇo se po<strong>de</strong> dizer<br />
que o diretor <strong>de</strong> suas novelas seja um co-autor: a autora parte do zero, conta apenas com seu<br />
universo criativo, ao passo que o diretor cria a partir do que ela escreve. Assim, “Caminho das<br />
índias” à uma obra <strong>de</strong> Gloria Perez, com a direÅÇo <strong>de</strong> Marcos Schechtman. Sendo a telenovela<br />
uma obra audiovisual, o que configura a telenovela que chega ao pëblico à a traduÅÇo imagàtica<br />
que o diretor faz da narrativa da novelista. Nela, todo um complexo universo <strong>de</strong> relaÅâes e aÅâes<br />
269 CARRI†RE, 2002, p. 6.<br />
270 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, vol. 1, p. 428.<br />
271 A sintonia entre autor e diretor <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m que o segundo nÇo po<strong>de</strong> criar para alàm do que está no<br />
texto. Prova disso à que, em “Amàrica”, outra novela <strong>de</strong> Gloria Perez, o diretor inicial foi substituÉdo com a<br />
trama já no ar porque a maneira como estava conduzindo a personagem Sol contradizia o espÉrito criado para ela<br />
pela autora. Na novela, Sol, atraÉda pelas promessas do sonho americano, se dispâe a atravessar o <strong>de</strong>serto do<br />
Màxico para entrar nos Estados Unidos e tentar a vida. Para a autora, uma mulher que conhece os <strong>de</strong>safios que<br />
irá enfrentar e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> enfrentá-los mesmo assim à alguàm forte, lutador, cheio <strong>de</strong> esperanÅa. A Sol que foi para<br />
as telas nos capÉtulos iniciais, graÅas ä direÅÇo <strong>de</strong> Jaime Monjardim, era uma mulher fraca, cheia <strong>de</strong> dëvidas e<br />
chorona. O <strong>de</strong>scompasso resultou no <strong>de</strong>sligamento do diretor.<br />
137
se oferece ä apreensÇo, possibilitando leituras paralelas e transversais ao eixo central da histÑria,<br />
costuradas entre si pelo tempo narrativo adotado.<br />
Ao longo <strong>de</strong> 203 capÉtulos, Gloria Perez administra a vida <strong>de</strong> 79 personagens fixos<br />
(fora outros tantos inci<strong>de</strong>ntais) distribuÉdos entre dois bairros do Rio <strong>de</strong> Janeiro (Lapa e Barra)<br />
e a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaipur, capital do RajastÇo, na índia (na verda<strong>de</strong> as imagens que compâem a<br />
locaÅÇo foram colhidas em diferentes cida<strong>de</strong>s indianas e combinadas com as da cida<strong>de</strong><br />
cenográfica construÉda no Projac da Re<strong>de</strong> Globo 272 ). Embora a extensÇo e a apresentaÅÇo<br />
fatiada da trama possam dispersar a apreensÇo do conjunto da obra “Caminho das índias” (atà<br />
porque ela à mesmo para ser vista capÉtulo a capÉtulo), uma visÇo estruturada <strong>de</strong> sua<br />
completu<strong>de</strong> revela parte do traÅado autoral da teledramaturga. O triêngulo amoroso Bahuan-<br />
Maya-Raj constitui a trama central <strong>de</strong> “Caminho das índias” (todas as peÅas <strong>de</strong> divulgaÅÇo da<br />
novela insistentemente reforÅam a imagem do trio); sua forÅa está na impossibilida<strong>de</strong> do amor<br />
entre uma moÅa <strong>de</strong> casta e um intocável, na certeza <strong>de</strong> que muitas serÇo as barreiras que o<br />
casal terá <strong>de</strong> enfrentar para que o sentimento verda<strong>de</strong>iro prevaleÅa sobre as antigas tradiÅâes<br />
indianas. Algumas sub-tramas sÇo construÉdas para dar sustentaÅÇo ä trama central: o<br />
triêngulo familiar Láksmi-Shamkar-Opash, o casal intercultural Camila e Ravi, a dupla <strong>de</strong><br />
irmÇos Ramiro e Raul, seus familiares Sr. Cadore, SÉlvia, Jëlia, Melissa, Tarso e InÖs, e o<br />
triêngulo <strong>de</strong>sdobrado da famÉlia Cadore Melissa-Tarso-Tònia (mÇe e namorada <strong>de</strong> Tarso,<br />
respectivamente), por exemplo. Sem a mesma forÅa, outras sub-tramas apenas dÇo colorido ou<br />
complementam as <strong>de</strong>mais: os casais Amithab e Surya, Norminha e Abel, a famÉlia proprietária<br />
da pastelaria (Ashima, Ana Purna, Indra e Málika), o casal Dr. Castanho e Suelen, a famÉlia<br />
Galo (Càsar, Ilana e Zeca), as amigas Duda e Chiara etc.<br />
Assim, apoiada numa trama central que se ramifica para diversos lados, dando<br />
abertura para a discussÇo dos <strong>de</strong>mais temas escolhidos pela autora (diferenÅas culturais,<br />
doenÅas mentais e juventu<strong>de</strong> sem limites parentais), a narrativa <strong>de</strong> “Caminho das índias” se<br />
<strong>de</strong>senrola explorando dois eixos temporais transversais: um diacrònico, outro sincrònico. O<br />
primeiro atravessa toda a telenovela, do primeiro ao ëltimo capÉtulo, e marca o lento<br />
<strong>de</strong>senrolar do nÑ que amarra Maya a Bahuam e a Raj: na ficÅÇo, cerca <strong>de</strong> dois anos se passam<br />
entre o dia em que Maya vÖ Bahuam pela primeira vez e a cena final que sacramenta o seu<br />
amor pelo marido arranjado Raj. Nesse eixo diacrònico, que caminha em compasso prÑximo<br />
ao tempo real e que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da sucessÇo histÑrica <strong>de</strong> aÅâes, muito pouca coisa acontece: sÇo<br />
cenas recheadas <strong>de</strong> lembranÅas, projeÅâes, hesitaÅâes, <strong>de</strong>sencontros, quase encontros,<br />
272 Para maiores informaÅâes sobre o investimento na criaÅÇo da cida<strong>de</strong> cenográfica, ver ROGAR, “A<br />
Bollywood da Globo”. DisponÉvel em: . Acesso em 25 jul. 2009.<br />
138
ameaÅas que nÇo se verificam, “conto-nÇo-conto-a-verda<strong>de</strong>”. Esse à o tempo da telenovela na<br />
completu<strong>de</strong> da obra. No tempo sincrònico, muitas outras aÅâes se <strong>de</strong>senrolam e se concluem,<br />
<strong>de</strong> certa forma <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas pelos acontecimentos do tempo diacrònico. Várias pequenas<br />
histÑrias caminham transversalmente ä trama central, alimentando o eixo <strong>de</strong> aÅÇo: <strong>de</strong> soluÅÇo<br />
relativamente rápida, elas se <strong>de</strong>senvolvem simultaneamente a outras histÑrias e sÇo sucedidas<br />
por novos nÑs, mantendo a novela carregada <strong>de</strong> acontecimentos que exigem do pëblico um<br />
acompanhamento diário. Esse à o tempo da telenovela na unida<strong>de</strong> do capÉtulo.<br />
7.3 A CARTOGRAFIA DE DUAS íNDIAS<br />
Tal e qual uma personagem po<strong>de</strong>rosa, a índia entra em cena <strong>de</strong> forma arrebatadora.<br />
Tanto em “Quem quer ser um milionário?” como em “Caminho das índias” à ela que, entre<br />
sedutora e intrigante, atrai o olhar do pëblico, chocando-o com seus contrastes ou encantando-<br />
o com suas cores e exotismo. NÇo por acaso o filme situa sua histÑria em Mumbai, uma das<br />
cida<strong>de</strong>s mais populosas do mundo, a metrÑpole que melhor con<strong>de</strong>nsa os traÅos mais<br />
marcantes do paÉs ─ o luxo das construÅâes mo<strong>de</strong>rnas e a pobreza das favelas. Na telenovela,<br />
a índia aparece mais tradicional: a escolha do RajastÇo, terra dos marajás, permitiu a<br />
composiÅÇo <strong>de</strong> um cenário mais prÑximo do imaginário popular.<br />
Capital do estado <strong>de</strong> Maharashtra e se<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bollywood, a maior indëstria cinematográfica<br />
do planeta, Mumbai cresce e ganha nova roupagem ä medida que Jamal, o menino sujo e<br />
favelado do inÉcio do filme, amadurece, consegue um lugar no mundo do trabalho e conquista<br />
alguma cidadania. Jamal, enquanto crianÅa perseguida em sua indigÖncia, habita uma das<br />
muitas favelas <strong>de</strong> Bombaim, a cida<strong>de</strong> que foi renomeada Mumbai em 1996 e que, por sua<br />
antiga vocaÅÇo comercial (alimentada pela gran<strong>de</strong> movimentaÅÇo <strong>de</strong> seu porto cosmopolita), à<br />
o centro econòmico e financeiro do paÉs, concentrando enorme contingente populacional<br />
(cerca <strong>de</strong> 16 milhâes <strong>de</strong> habitantes ─ ou 19 milhâes, como contabiliza o filme) e expressiva<br />
combinaÅÇo multicultural e religiosa. Se a misària <strong>de</strong> Bombaim rouba a cena durante a<br />
infência <strong>de</strong> Jamal, os fortes contrastes entre arranha-càus e barracos, riqueza e pobreza,<br />
marcam a vida nova da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois da troca <strong>de</strong> nome para Mumbai. Do alto <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />
edifÉcio em construÅÇo, os irmÇos Jamal e Salim contemplam, espantados, a evoluÅÇo da<br />
cida<strong>de</strong>: a favela suja e miserável da infência agora dá lugar a um canteiro <strong>de</strong> obra. Salim, o<br />
irmÇo aliciado pelo crime, dá o tom da nova configuraÅÇo: “Mumbai está no centro do<br />
mundo”, e ele, assessor <strong>de</strong> gêngster, está no “centro do centro”.<br />
139
Na Mumbai <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?”, a índia se apresenta igualmente<br />
cosmopolita, mo<strong>de</strong>rna, prÑspera, e sub<strong>de</strong>senvolvida: os novos contornos da arquitetura, a<br />
numerosa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> edifÉcios em construÅÇo, o glamour Bollywoodiano dos estëdios do<br />
game show, os carros em profusÇo, o cenário turÉstico ─ toda a urbanida<strong>de</strong> rica e promissora<br />
convive com a sujeira dos rostos, roupas e vielas, com o ar pesado dos subterrêneos da cida<strong>de</strong>,<br />
com a promiscuida<strong>de</strong> dos barracos, a falta <strong>de</strong> conforto dos banheiros comunitários, a fossa a<br />
càu aberto, a mendicência, a exploraÅÇo das crianÅas, o crime, a corrupÅÇo, o comàrcio da<br />
misària, a intolerência e o <strong>de</strong>sprezo da polÉcia pelos <strong>de</strong>sassistidos. Num <strong>de</strong> seus trambiques <strong>de</strong><br />
sobrevivÖncia, o menino Jamal se faz <strong>de</strong> guia turÉstico em dupla jornada <strong>de</strong> trabalho: diz o que<br />
lhe vem ä cabeÅa sobre os monumentos da cida<strong>de</strong> para merecer os trocados que lhe dÇo, e<br />
distrai o turista para que o irmÇo e seus comparsas “<strong>de</strong>penem” o carro <strong>de</strong> mais uma vÉtima.<br />
Sobra para Jamal, que apanha da polÉcia diante <strong>de</strong> turistas americanos penalizados e<br />
indignados com a violÖncia. O guia turÉstico <strong>de</strong> araque, agora caÉdo ao chÇo todo machucado,<br />
grita seu <strong>de</strong>sabafo: “Querem ver a verda<strong>de</strong>ira índia? AÉ está!”. Numa sÉntese da<br />
<strong>de</strong>sinformaÅÇo do Oci<strong>de</strong>nte sobre o Oriente, a cena termina com a pergunta nonsense da<br />
turista, em sua preocupaÅÇo maternal: “VocÖ tem plano <strong>de</strong> saë<strong>de</strong>?”<br />
Nas inëmeras fugas dos irmÇos ÑrfÇos, a índia do filme passeia para alàm <strong>de</strong> Mumbai.<br />
No amontoado escuro das gentes jogadas nos vagâes populares ou no teto do trem que corta<br />
as fronteiras da cida<strong>de</strong>, a errência do itinerário daqueles meninos encontra outros cenários,<br />
surpreen<strong>de</strong>ndo seus olhos saturados <strong>de</strong> misària e injustiÅa social. Mal po<strong>de</strong>m acreditar quando<br />
encontram o Taj Mahal, em Agra: “ï um sonho, um hotel?” 273 , perguntam-se, espantados com<br />
o que veem, revelando o <strong>de</strong>sconhecimento do mais valioso cartÇo postal da índia. ï o trem,<br />
sÉmbolo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> inglesa dos tempos coloniais, que lhes proporciona a aventura da<br />
liberda<strong>de</strong> e do conhecimento. Seja na metrÑpole ou no interior, a experiÖncia impactante dos<br />
contrastes se soma ä experiÖncia asfixiante das multidâes: ambas revelam os incontáveis e<br />
variados rostos da índia. Ao partilhar a experiÖncia da multidÇo com a platàia (na escola da<br />
favela, nas estaÅâes <strong>de</strong> trem, nas ruas, nos aglomerados diante da tevÖ, na informaÅÇo <strong>de</strong> que<br />
sÇo 90 milhâes <strong>de</strong> pessoas no paÉs a assistir ä final do show), o filme franqueia ao pëblico o<br />
passaporte para a verda<strong>de</strong>ira índia: como diz Carriöre, a “multidÇo à aqui a principal<br />
paisagem”, à o “ator <strong>de</strong> todas as coisas”. Boyle parece ter seguido ä risca o conselho do autor<br />
francÖs ao permitir que “o visitante estrangeiro” “aceite a multidÇo”, “se misture com ela” e<br />
“nela se perca” 274 .<br />
273 A frase remete ao espanto da populaÅÇo diante da apariÅÇo do Superhomem: “ï um pássaro, um aviÇo?”.<br />
274 CARRI†RE, 2002, p. 5.<br />
140
No filme, a maioria dos indianos veste roupas oci<strong>de</strong>ntais; os homens jamais trajam<br />
kurtas; sÑ as mulheres ─ as mais velhas, em gran<strong>de</strong> parte ─ usam sáris e vàus. Shorts e<br />
camisas <strong>de</strong> tecido, sujas e maltrapilhas, vestem as crianÅas da favela; calÅas, camisas e<br />
vestidos dÇo ares contemporêneos aos irmÇos já adultos, aos gêngsters e seus comparsas, aos<br />
funcionários do call center; terno completo confere universalida<strong>de</strong> ao apresentador do show<br />
do milhÇo indiano. O ënico homem a aparecer em trajes tÉpicos à o ator indiano <strong>de</strong><br />
Bollywood; sua caracterizaÅÇo à marcada pelo simbÑlico, afinal trata-se do “indiano mais<br />
famoso do paÉs”. Sáris <strong>de</strong> um colorido <strong>de</strong>sbotado pelo sol inclemente vestem as mÇes da<br />
favela; a tradiÅÇo na vestimenta tambàm à respeitada pelas mulheres <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong> e pelas<br />
idosas nas ruas, na estaÅÇo <strong>de</strong> trem e na platàia do game show; tecidos ricamente bordados<br />
embrulham o corpo excessivamente adornado das prostitutas que precisam excitar o<br />
imaginário <strong>de</strong> indianos e turistas; sobrieda<strong>de</strong> e elegência dÇo o tom nos sáris usados pelas<br />
moÅas que sobem ao palco para entregar o cheque simbÑlico <strong>de</strong> 20 milhâes <strong>de</strong> rëpias ä nova<br />
celebrida<strong>de</strong> nacional Jamal. Latika, já sem os andrajos <strong>de</strong> crianÅa favelada, aparece adulta<br />
com os ombros ä mostra em uma tënica indiana <strong>de</strong> alÅas largas na cena que traduz sua<br />
passagem <strong>de</strong> tempo; na casa <strong>de</strong> seu “protetor”, está <strong>de</strong> jeans e camiseta; e, ao fugir para<br />
encontrar Jamal, complementa a roupa oci<strong>de</strong>ntal com um vàu amarelo (cor da maioria <strong>de</strong> suas<br />
roupas): usado inicialmente em volta do pescoÅo, o que parecia mero a<strong>de</strong>reÅo estàtico ganha<br />
ares indianos ao cobrir os cabelos da moÅa no encontro que marca o final feliz, a consagraÅÇo<br />
do <strong>de</strong>stino que une pelo amor duas vidas tantas vezes separadas.<br />
A índia <strong>de</strong> contrastes sociais e econòmicos que se materializa na Mumbai <strong>de</strong> “Quem<br />
quer ser um milionário?” em nada se assemelha ao paÉs que abriga a Jaipur <strong>de</strong> “Caminho das<br />
índias”. A Mumbai metropolitana e cosmopolita que se abre para o mundo impulsionada por<br />
sua condiÅÇo <strong>de</strong> importante cida<strong>de</strong> portuária parece encerrar uma vida incompatÉvel com a<br />
realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaipur, uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> dois milhâes <strong>de</strong> habitantes, encravada no interior<br />
do paÉs, rota <strong>de</strong> passagem para o <strong>de</strong>serto, um lugar habitado por homens <strong>de</strong> turbante, mulheres<br />
<strong>de</strong> sári, camelos e elefantes.<br />
A Jaipur <strong>de</strong> “Caminho das índias”, no entanto, à uma cida<strong>de</strong> composta por um pout-<br />
pourri <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> vários locais expressivos do imaginário indiano. Imagens <strong>de</strong> fachadas,<br />
<strong>de</strong> ruas, <strong>de</strong> templos e monumentos <strong>de</strong> Jaipur (como o Palácio dos Ventos); imagens <strong>de</strong> Agra,<br />
on<strong>de</strong> reina majestoso o Taj Mahal; imagens <strong>de</strong> Varanasi, on<strong>de</strong>, sob as margens do Ganges, os<br />
mortos sÇo oferecidos em purificaÅÇo; e imagens da cida<strong>de</strong> cenográfica construÉda no Centro<br />
<strong>de</strong> ProduÅÇo da Re<strong>de</strong> Globo, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. A alma que dá vida ä Jaipur televisiva foi<br />
ainda inspirada em alguma medida pelo visual e pelo ar <strong>de</strong> Jodhpur e Mumbai, cida<strong>de</strong>s<br />
141
visitadas pela produÅÇo da novela. Fruto da imaginaÅÇo e da licenÅa poàtica <strong>de</strong> Gloria Perez,<br />
essa à obviamente uma Jaipur fictÉcia, construÉda imageticamente para con<strong>de</strong>nsar os<br />
principais traÅos da cultura indiana e assim abrigar o imaginário que ao longo dos sàculos<br />
vem se consolidando na referÖncia coletiva dos brasileiros sobre a índia. Nesse sentido, a<br />
telenovela buscou no interior do RajastÇo, na terra dos marajás, uma cartografia que pu<strong>de</strong>sse<br />
permitir o trênsito da tradiÅÇo e da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, que pu<strong>de</strong>sse ser atravessada pelos vários<br />
tempos que se sobrepâem na experiÖncia do contemporêneo indiano.<br />
TÇo arrebatadora como a cida<strong>de</strong>/personagem <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?”, a<br />
Jaipur <strong>de</strong> “Caminho das índias” à onipresente: mais que apenas cenário, pano <strong>de</strong> fundo on<strong>de</strong><br />
as personagens <strong>de</strong> carne e osso se movimentam, a locaÅÇo da telenovela expressa a índia que<br />
se quer mostrar ─ colorida, vibrante, caÑtica, majestosa, sedutora em sua diferenÅa,<br />
encantadora em seus mistàrios. Nas fachadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho rebuscado e linhas arredondadas,<br />
femininas, a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za do refinamento e a soli<strong>de</strong>z dos materiais revelam uma sensualida<strong>de</strong> e<br />
um compromisso estàtico que atravessa os tempos. No interior das casas dos comerciantes e<br />
sábios, uma combinaÅÇo que excita o olhar oci<strong>de</strong>ntal pelo excesso <strong>de</strong> formas, texturas e<br />
brilho: relevos e rendilhados, mosaicos <strong>de</strong> espelhos, panejamentos e transparÖncias; sÉmbolos<br />
religiosos, guirlandas, velas e oferendas; panelas, especiarias e flores; cores e dourados em<br />
profusÇo ─ tudo concorre para a rica experiÖncia tátil, visual e espiritual da vida indiana. As<br />
<strong>de</strong>mais locaÅâes (lojas comerciais, palácios e templos) igualmente proporcionam uma<br />
apreensÇo caleidoscÑpica da índia, um estÉmulo vigoroso e constante que <strong>de</strong>ixa todos os<br />
sentidos em alerta. ImpossÉvel ficar indiferente a tanta informaÅÇo!<br />
Nas ruas, o movimento aparentemente caÑtico <strong>de</strong> gentes, animais, carros, bicicletas e<br />
outros curiosos meios <strong>de</strong> transporte faz <strong>de</strong>ste “cenário” em constante mutaÅÇo uma metáfora<br />
do modo <strong>de</strong> vida do povo indiano: o indivÉduo na índia à necessariamente um ser coletivo. A<br />
multidÇo que povoa as ruas tambàm se acotovela nas casas, on<strong>de</strong> muitas geraÅâes da mesma<br />
famÉlia convivem, on<strong>de</strong> privacida<strong>de</strong> aten<strong>de</strong> pelo nome <strong>de</strong> rejeiÅÇo ao grupo, e silÖncio soa<br />
como tristeza. Na sala da casa dos Ananda, avÑ, tio, pais, filhos, noras e netos participam<br />
coletivamente <strong>de</strong> cada pequeno drama particular: uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negÑcio na loja <strong>de</strong><br />
tecidos familiar, uma <strong>de</strong>cisÇo profissional, a educaÅÇo das crianÅas, a preparaÅÇo do tchai, as<br />
brigas <strong>de</strong> casal, o ciëme entre irmÇos e noras, o <strong>de</strong>srespeito a algum costume. E comemoram<br />
qualquer pequena alegria: o anëncio <strong>de</strong> mais um neto, um bom prenëncio dos astros, uma<br />
refeiÅÇo em famÉlia, um casamento arranjado. A casa abriga as discussâes domàsticas, o<br />
conselho dos mais velhos, as idiossincrasias familiares, a alfabetizaÅÇo das crianÅas e a lua-<br />
<strong>de</strong>-mel dos jovens casais.<br />
142
Na Jaipur da telenovela nÇo sÇo os contrastes econòmicos entre riqueza e pobreza que<br />
se <strong>de</strong>stacam; sÇo os contrastes sociais do sistema <strong>de</strong> castas hinduista. Ao construir a trama<br />
indiana tendo por base os fundamentos do sistema <strong>de</strong> castas, “Caminho das índias” parte <strong>de</strong><br />
impedimentos sociais e religiosos que se revelam barreiras intransponÉveis e, exatamente por<br />
isso, potencializam os impasses dramáticos ali explorados: sendo um sistema <strong>de</strong> estratificaÅÇo<br />
social hereditário, o indivÉduo nasce e morre <strong>de</strong>ntro da sua casta e a transmite a seus<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, nÇo havendo possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilizaÅÇo entre castas, quer por fortuna quer<br />
por matrimònio. Mesmo tendo sido criado por um brâmane, um sábio da mais alta casta, e<br />
tendo sido educado no exterior, Bahuam, um dálit, nÇo tem permissÇo dos <strong>de</strong>uses para amar<br />
uma moÅa <strong>de</strong> casta como Maya. Esta, por sua vez, <strong>de</strong>sconhecendo a origem do amado (sua<br />
referÖncia sobre ele era a casta <strong>de</strong> seu pai, que ela nÇo sabia ser pai adotivo) e captando os<br />
sinais exteriores emitidos por seus trajes elegantes e a educaÅÇo apurada no exterior, imagina<br />
que sua escolha por Bahuam em nada <strong>de</strong>sagradará a seus pais. Po<strong>de</strong>rá assim harmonizar o<br />
<strong>de</strong>sejo das famÉlias com o <strong>de</strong>sejo dos noivos, realizando um casamento arranjado e uma uniÇo<br />
por amor. Enquanto Maya inocentemente sonha com a felicida<strong>de</strong> como qualquer moÅa<br />
apaixonada, Bahuam, calejado pelas rejeiÅâes e humilhaÅâes que a vida lhe impòs, omite o<br />
quanto po<strong>de</strong> a informaÅÇo sobre sua verda<strong>de</strong>ira casta. Chega a se apresentar ä famÉlia <strong>de</strong><br />
Maya como seu preten<strong>de</strong>nte, permitindo que todos pensem que à um brâmane, como seu pai.<br />
Quando a verda<strong>de</strong> à enfim revelada, a moÅa mo<strong>de</strong>rna, filha <strong>de</strong> pais que se dizem liberais por<br />
permitir que ela trabalhe ä noite em um call center, compreen<strong>de</strong> que o que sente por Bahuam<br />
à forte <strong>de</strong>mais: nem a obediÖncia a seus pais nem o respeito ä tradiÅÇo religiosa à capaz <strong>de</strong><br />
fazer com que renuncie ao amor pelo dálit. Para assumi-lo, no entanto, será necessário romper<br />
com tudo ─ famÉlia, religiÇo, cultura, socieda<strong>de</strong> ─ e fugir, pois na índia tradicional ela seria<br />
tambàm um pária. A uniÇo com um intocável e a consequente fuga <strong>de</strong>terminariam sua<br />
exclusÇo da socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sgraÅariam todas as geraÅâes <strong>de</strong> sua famÉlia. O amor, no entanto,<br />
fala mais alto e invoca os <strong>de</strong>sÉgnios <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong> muito cara aos hindus: o <strong>de</strong>stino. SÑ ele<br />
seria capaz <strong>de</strong> se interpor aos mandamentos da tradiÅÇo religiosa, sÑ ele tramaria tamanha<br />
armadilha, cruzando a emoÅÇo do sentimento mais puro com a razÇo da “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” que<br />
<strong>de</strong>safia os costumes que nÇo se sustentam fora da fà. Ao trabalhar fora e ä noite, Maya já tinha<br />
sido fisgada pela lÑgica <strong>de</strong> uma índia mo<strong>de</strong>rna e cosmopolita, celeiro mundial dos serviÅos <strong>de</strong><br />
informaÅÇo ä distência; ao se ren<strong>de</strong>r ao amor incondicional por um intocável, a moÅa hindu<br />
questiona as fronteiras erguidas por uma índia tradicional e arcaica que ainda rege a vida <strong>de</strong><br />
seus habitantes pela intolerência, a <strong>de</strong>speito do que diz a lei.<br />
143
A <strong>de</strong>terminaÅÇo da moÅa disposta a tudo em nome do amor esbarra na ambiÅÇo do<br />
amado que acredita na fortuna como um escudo contra as humilhaÅâes que a vida <strong>de</strong> dálit<br />
ainda lhe reserva. Esbarra tambàm na soluÅÇo encontrada por seus pais para evitar o <strong>de</strong>sastre<br />
que a notÉcia <strong>de</strong> seu equivocado relacionamento com um intocável provocaria em sua<br />
reputaÅÇo <strong>de</strong> moÅa casadoira: era preciso encontrar-lhe um marido <strong>de</strong> boa famÉlia e acertar<br />
com urgÖncia os trêmites comerciais do casamento. Beleza, cultura, instruÅÇo, respeito aos<br />
costumes, <strong>de</strong>sempenho culinário e talento <strong>de</strong> danÅarina, somados a um precioso dote, valeram<br />
ä Maya um noivo ä altura: o empresário Raj, segundo filho dos Ananda, famÉlia que à<br />
referÖncia nacional no tradicional setor <strong>de</strong> tecelagem e comàrcio <strong>de</strong> tecidos. No pacote do<br />
casamento arranjado entre a moÅa virtuosa e o rapaz <strong>de</strong> futuro promissor, uma informaÅÇo, no<br />
entanto, havia ficado <strong>de</strong> fora: a noiva estava grávida ─ e o pai da crianÅa era um dálit.<br />
Nos encontros e <strong>de</strong>sencontros <strong>de</strong>sta histÑria anunciada como um conto <strong>de</strong> fadas sobre<br />
o amor impossÉvel, uma Jaipur marcada pela tradiÅÇo grita a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> imposta pelo<br />
regime <strong>de</strong> castas. Um regime que <strong>de</strong>safia as leis em nome dos costumes: apesar <strong>de</strong> ter sido<br />
abolido da constituiÅÇo em reforma que se seguiu ä in<strong>de</strong>pendÖncia da Inglaterra em 1947, o<br />
sistema <strong>de</strong> castas que, segundo o hinduÉsmo, vem da criaÅÇo do universo pelo <strong>de</strong>us Brahma<br />
ainda vigora hoje, principalmente em regiâes mais rurais como a do RajastÇo. Embora haja<br />
aÅâes do governo no sentido <strong>de</strong> premiar o casamento entre castas e proporcionar aos dálits o<br />
direito ä educaÅÇo e ao mercado <strong>de</strong> trabalho, a luta pela igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos e pelo fim da<br />
discriminaÅÇo (iniciada pelo libertador da índia Mahatma Gandhi e conduzida pelo “libertador<br />
dos dálits” Bhimrao Ramji Ambedkar, jurista intocável que participou da redaÅÇo da nova<br />
constituiÅÇo) ainda enfrenta a resistÖncia <strong>de</strong> muitos que insistem em viver segundo os mais<br />
rÉgidos ensinamentos <strong>de</strong> Brahma. Da índia, o noticiário dá a medida <strong>de</strong>ste confronto: <strong>de</strong> um<br />
lado a eleiÅÇo <strong>de</strong> Kumari Mayawati, uma intocável, para o governo do estado <strong>de</strong> Uttar Pra<strong>de</strong>sh<br />
indica um avanÅo; <strong>de</strong> outro, a controvàrsia ainda vigora quando o assunto à a aplicaÅÇo prática<br />
do sistema <strong>de</strong> cotas para dálits nas universida<strong>de</strong>s e no serviÅo pëblico. Enquanto muitos<br />
divulgam que há muitos dálits ricos e influentes no paÉs e que a discriminaÅÇo contra os<br />
intocáveis vem “sucumbindo aos imperativos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” 275 (a divisÇo do trabalho na<br />
economia da índia emergente nÇo tem como ren<strong>de</strong>r-se äs tarefas prà-<strong>de</strong>stinadas aos<br />
trabalhadores sem casta), a Newsweek informa: “Segundo o Movimento <strong>de</strong> EducaÅÇo dos<br />
Direitos Humanos da índia, organizaÅÇo nÇo-governamental com se<strong>de</strong> em Madras, a cada hora<br />
dois dálits sÇo agredidos, trÖs mulheres dálits sÇo estupradas, dois dálits sÇo assassinados e duas<br />
275 SOUZA, “Caminho das índias: Castas, call centers e coisas <strong>de</strong> novela”. DisponÉvel em:<br />
, em 03/04/2009. Acesso em 14 nov. 2009.<br />
144
casas <strong>de</strong> dálits sÇo incendiadas” 276 . A revista complementa o quadro <strong>de</strong> discriminaÅÇo e<br />
violÖncia contra os intocáveis com a explicaÅÇo <strong>de</strong> um professor <strong>de</strong> sociologia da<br />
Universida<strong>de</strong> Jawaharlal Nehru, em Nova Dàlhi, para o aumento das atrocida<strong>de</strong>s cometidas:<br />
“à uma conseq§Öncia da reivindicaÅÇo <strong>de</strong> direitos das castas inferiores”; “Nas geraÅâes<br />
anteriores, dálits nÇo eram espancados porque 'conheciam o seu lugar’” 277 .<br />
Em “Caminho das índias”, embora a cida<strong>de</strong>-cenário tenha nome e sobrenome (Jaipur,<br />
capital do RajastÇo), ela foi claramente concebida pela autora para sintetizar o universo<br />
indiano. Talvez a discriminaÅÇo contra os dálits nÇo seja tÇo forte na Jaipur indiana: a cida<strong>de</strong><br />
à um espaÅo urbano bastante populoso para os padrâes do estado em que se situa e em nada<br />
lembra os vilarejos rurais on<strong>de</strong> os sem-casta po<strong>de</strong>m ser facilmente i<strong>de</strong>ntificados. Na trama<br />
televisiva, no entanto, a segregaÅÇo entre castas, as vestimentas tÉpicas indianas, os costumes<br />
da mais antiga tradiÅÇo religiosa, a arquitetura palaciana e os “livros-caixa” ─ vestÉgios <strong>de</strong><br />
uma índia arcaica ─ estÇo lado a lado com a multidÇo, o trênsito <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado, os carros<br />
luxuosos e a tecnologia <strong>de</strong> computadores e celulares prÑprios da índia mo<strong>de</strong>rna e emergente,<br />
paisagens perfeitamente passÉveis <strong>de</strong> serem encontradas na Jaipur da vida real. Na<br />
representaÅÇo da cartografia por on<strong>de</strong> circulam sábios, comerciantes e intocáveis, aviâes, tuc-<br />
tucs, elefantes e vacas, turbantes, kurtas, sáris e vàus, a cida<strong>de</strong> surge como uma alegoria <strong>de</strong><br />
uma cultura marcada pela presenÅa simultênea do passado e do presente em permanente<br />
diálogo. Ali, a ficÅÇo <strong>de</strong>sviou o curso do mais importante rio da índia para que o Ganges e os<br />
gats <strong>de</strong> Varanasi pu<strong>de</strong>ssem abenÅoar e assombrar, respectivamente, a vida <strong>de</strong> almas fiàis e<br />
infiàis. Para ali, a ficÅÇo transpòs o maior e mais famoso monumento <strong>de</strong>dicado ao amor, <strong>de</strong> tal<br />
modo que o Taj Mahal <strong>de</strong> Agra pu<strong>de</strong>sse partilhar da vizinhanÅa do Palácio dos Ventos, a<br />
exuberante construÅÇo cor-<strong>de</strong>-rosa <strong>de</strong> Jaipur, vazada por centenas <strong>de</strong> janelas atravàs das quais,<br />
há mais <strong>de</strong> duzentos anos, as mulheres do haràm do marajá Sawai Patrap Singh podiam<br />
espreitar as ruas sem serem vistas.<br />
NÇo sendo um documentário, a telenovela fez <strong>de</strong> sua locaÅÇo um universo riquÉssimo<br />
<strong>de</strong> referÖncias caleidoscÑpicas sobre as mëltiplas índias que habitam aquela singular regiÇo do<br />
planeta. O tÉtulo original concebido por Gloria Perez expressa tal pluralida<strong>de</strong> com perfeiÅÇo:<br />
“Caminho das índias”, no plural, remete äs muitas realida<strong>de</strong>s e tempos histÑricos presentes no<br />
paÉs igualmente conhecido por seu atraso e sua prosperida<strong>de</strong>. O tÉtulo propâe ainda o resgate<br />
<strong>de</strong> uma curiosida<strong>de</strong> ancestral pelo Oriente e o embarque em uma nova expediÅÇo exploratÑria:<br />
276 POWER, “Pobres reagem ä discriminaÅÇo na índia”. DisponÉvel em:<br />
, em 07/07/2000. Acesso em 14 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009.<br />
277 POWER, “Pobres reagem ä discriminaÅÇo na índia”. DisponÉvel em:<br />
, em 07/07/2000. Acesso em 14 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009.<br />
145
como um Vasco da Gama pÑs-mo<strong>de</strong>rno, a autora leva os brasileiros äs índias nÇo mais <strong>de</strong> em<br />
busca <strong>de</strong> seda e especiarias a serem comercializadas, mas sim em busca <strong>de</strong> sonho e fantasia a<br />
serem vividos a partir <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> tÇo encantadora quanto improvável.<br />
Se a índia <strong>de</strong> Gloria Perez toca o real ou <strong>de</strong>rrapa nas curvas fantásticas do imaginário<br />
popular, uma coisa à certa: ela nÇo à menos verda<strong>de</strong>ira que a índia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, que, segundo<br />
Carriöre, à uma “quimera em exercÉcio”, uma “viagem fÉsica no tempo”:<br />
146<br />
Se reunirmos todos os dados concebÉveis (territÑrios, populaÅâes, lÉnguas, religiâes,<br />
economias, modos <strong>de</strong> vida), se os estudarmos <strong>de</strong> acordo com nossos màtodos, o mais<br />
seriamente e imparcialmente possÉvel, sÑ po<strong>de</strong>remos chegar a uma conclusÇo<br />
implacável: a índia nÇo existe.<br />
Um conjunto como este nÇo po<strong>de</strong> funcionar. Ele à incoerente. Engloba tantos nÉveis<br />
sociais, tantas complexida<strong>de</strong>s mentais, tantas regras pëblicas e secretas, tantas<br />
realida<strong>de</strong>s imaginárias, tanto passado, tanto presente, que uma coesÇo geral<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> um milagre cÑsmico.<br />
Aqui a pluralida<strong>de</strong> parece ser o cimento. ï a diferenÅa que reëne. 278<br />
“Caminho das índias” e “Quem quer ser um milionário?” talvez sejam narrativas<br />
complementares: uma <strong>de</strong>screve o interior do paÉs, outra retrata uma gran<strong>de</strong> metrÑpole; uma se<br />
apoia na tradiÅÇo da principal religiÇo nacional, outra fala dos impactos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>; uma<br />
se apresenta como a saga do amor impossÉvel entre castas, a outra à um conto <strong>de</strong> fadas urbano<br />
sobre o amor apartado pela incerteza da misària. Nenhuma <strong>de</strong>las, isoladamente, traduz a<br />
complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um paÉs como a índia. Tanta diversida<strong>de</strong> e tanto contraste talvez sÑ possam<br />
mesmo ser apreendidos pelo cruzamento dos muitos caminhos que se dispâem a <strong>de</strong>sbravar<br />
este paÉs “impossÉvel” <strong>de</strong> ser visto em sua completu<strong>de</strong>. Como diz Carriöre, “ï preciso admitir<br />
que nunca conheceremos toda a índia” 279 . Narrativas <strong>de</strong> ficÅÇo, textos jornalÉsticos,<br />
testemunhos convertidos em ensaios ou romances sÇo roteiros indiscutivelmente legÉtimos,<br />
poràm sempre limitados, <strong>de</strong> se chegar ä pluralida<strong>de</strong> das índias. A complexa cartografia da<br />
índia exige uma leitura em permanente contraponto.<br />
7.4 A íNDIA FORA DAS TELAS<br />
Plural e singular. A índia à um paÉs ënico: as gran<strong>de</strong>s diferenÅas que imprimem<br />
tantas e tÇo variadas cores e sabores ao mundo indiano, ao invàs <strong>de</strong> dividi-lo em realida<strong>de</strong>s<br />
exclu<strong>de</strong>ntes, funcionam justamente como o amálgama <strong>de</strong> uma curiosa coesÇo que lhe confere<br />
278 CARRI†RE, 2002, p. 6.<br />
279 Ibi<strong>de</strong>m, p. 8.
uma harmonia caleidoscÑpica. Tal riqueza <strong>de</strong> contrastes nÇo por acaso tem inspirado a<br />
curiosida<strong>de</strong> do mundo oci<strong>de</strong>ntal<br />
A índia chega ao sàculo XXI com a tradiÅÇo <strong>de</strong> uma das mais antigas civilizaÅâes do<br />
mundo ─ ela reivindica cinco milÖnios <strong>de</strong> existÖncia ─ e o frescor <strong>de</strong> um paÉs em plena<br />
juventu<strong>de</strong> ─ a ex-colònia britênica conquistou sua in<strong>de</strong>pendÖncia há apenas 62 anos. Trata-se,<br />
como <strong>de</strong>fine o Consulado Geral da índia no Brasil, <strong>de</strong> uma “repëblica soberana, socialista,<br />
secular e <strong>de</strong>mocrática”. No entanto, o paÉs que, por sua populaÅÇo, ostenta a maior<br />
<strong>de</strong>mocracia do mundo convive com um sistema <strong>de</strong> castas que nega muitos dos direitos básicos<br />
do cidadÇo aos sem-casta. Isto significa que o regime hereditário <strong>de</strong> estratificaÅÇo da<br />
populaÅÇo indiana garante aos 15% da populaÅÇo pertencentes äs castas superiores o domÉnio<br />
dos altos escalâes da educaÅÇo e da socieda<strong>de</strong> e o consumo <strong>de</strong> uma fatia consi<strong>de</strong>rável dos<br />
recursos do paÉs, enquanto os <strong>de</strong>mais 75% das chamadas castas inferiores (dálits, adivasis e<br />
outras “castas atrasadas”) sÇo consi<strong>de</strong>rados párias da socieda<strong>de</strong> 280 : estÇo con<strong>de</strong>nados a vestir<br />
as roupas que encontram nos corpos dos mortos, a fazer os trabalhos vistos como indignos ou<br />
<strong>de</strong>gradantes (lidar com os mortos, limpar os excrementos humanos) ─ e por isso mesmo mal<br />
pagos; sÇo tambàm proibidos <strong>de</strong> entrar nos templos e <strong>de</strong> beber da mesma corrente <strong>de</strong> água<br />
usada pelas pessoas <strong>de</strong> casta. No romance A distância entre nÑs, <strong>de</strong> Thrity Umrigar, o<br />
narrador comenta que “Os moradores pagavam a uma harijan que morava do outro lado da<br />
favela para recolher as pilhas <strong>de</strong> fezes [do banheiro comunitário] todas as noites, trabalho<br />
tÉpico <strong>de</strong> uma pessoa da casta dos intocáveis” 281 . O jornal The Times of India, <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> agosto<br />
<strong>de</strong> 2009, ostenta em uma página interna a reportagem intitulada “Intouchability alive &<br />
kicking in India: Dalits have little access to temples, their kids are ma<strong>de</strong> to sit separately in<br />
schools” 282 (“Intocabilida<strong>de</strong> viva e vigorosa na índia: Dalits tÖm pouco acesso aos templos e<br />
seus filhos sÇo obrigados a sentar separados nas escolas” [tradução nossa]). Outra matària<br />
recente, <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2009, publicada na Gazeta do Sul, informa que “Jovem dalit morre<br />
na índia apÑs ser rejeitado em hospital”: màdicos justificam que “o centro hospitalar nÇo<br />
‘tratava <strong>de</strong> pacientes <strong>de</strong> castas mais baixas’” 283 .<br />
A divisÇo da socieda<strong>de</strong> em castas remonta, segundo a crenÅa hinduÉsta, ä criaÅÇo do<br />
mundo pelo <strong>de</strong>us Brahma. O <strong>de</strong>us maior, ao criar a humanida<strong>de</strong>, agrupou os homens <strong>de</strong><br />
280 KAMDAR, 2008, p. 282.<br />
281 UMRIGAR, 2006, p. 16.<br />
282 Reportagem exibida em vi<strong>de</strong>o caseiro para o blog “IndiagestÇo”, em postagem do dia 11 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009,<br />
disponÉvel em: . Acesso em 14 nov. 2009.<br />
283 “Jovem dalit...” DisponÉvel em:<br />
, em 15 <strong>de</strong><br />
junho <strong>de</strong> 2009. Acesso em 14 nov. 2009.<br />
147
acordo com a qualida<strong>de</strong> da energia que predomina neles, que sÇo basicamente trÖs: o Sattva<br />
(forÅa criativa), o Rajas (capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aÅÇo) e o Tamas (inàrcia). A combinaÅÇo maior ou<br />
menor <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>stas energias foi <strong>de</strong>terminante para a estratificaÅÇo da socieda<strong>de</strong> em<br />
quatro castas, uma para cada extensÇo corpo <strong>de</strong> Brahma: <strong>de</strong> sua boca vieram os Brâmanes,<br />
grupo seleto que reëne sacerdotes, filÑsofos e professores; <strong>de</strong> seus braÅos, surgiram os<br />
Kshatriya, formado pelos guerreiros, militares e governantes; <strong>de</strong> suas pernas foram criados os<br />
Vaishyas, integrado pelos comerciantes; <strong>de</strong> seus pàs, ganharam vida os Sudras, servos,<br />
camponeses, artesÇos e operários. Os sem-casta foram assim chamados por terem nascido da<br />
poeira <strong>de</strong>baixo dos pàs <strong>de</strong> Brahma.<br />
O sistema <strong>de</strong> estratificaÅÇo à tÇo forte, que à possÉvel i<strong>de</strong>ntificar um dálit pelas roupas<br />
que veste, pelo trabalho que executa. Para a maioria dos indianos, basta o nome para traÅar<br />
seu lugar na socieda<strong>de</strong>, como diz o narrador <strong>de</strong> A distância entre nós:<br />
148<br />
[...] saber o nome <strong>de</strong> famÉlia <strong>de</strong> alguàm era mais importante do que saber o seu<br />
primeiro nome. Afinal, à o sobrenome que diz tudo o que precisamos saber ─ a que<br />
casta a pessoa pertence, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem, quem eram seus antepassados, qual era a<br />
profissÇo <strong>de</strong>les e a histÑria da famÉlia, seu khandaan. 284<br />
Embora inconstitucional (segundo as novas leis da índia pÑs-in<strong>de</strong>pendÖncia) e<br />
exclu<strong>de</strong>nte (segundo os oci<strong>de</strong>ntais que observam <strong>de</strong> fora a cultura indiana), o sistema <strong>de</strong> casta<br />
ainda vigora nas regiâes mais tradicionais do paÉs, sustentado pela incontestável (para o<br />
hinduÉsta) crenÅa na reencarnaÅÇo: o nascimento <strong>de</strong> uma pessoa <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma casta à resultado<br />
do karma produzido em vidas passadas. O Consulado Geral da índia no Brasil explica:<br />
Na filosofia indiana a vida à um eterno retorno que gravita em ciclos concÖntricos<br />
terminando no seu centro, coisa que os iluminados atingem. Os percalÅos do caminho<br />
nÇo sÇo motivo <strong>de</strong> raiva, assim como os erros nÇo sÇo uma questÇo <strong>de</strong> pecado, mas<br />
sim uma questÇo <strong>de</strong> imaturida<strong>de</strong> da alma. O ciclo completo da vida <strong>de</strong>ve ser<br />
percorrido e a posiÅÇo da pessoa em cada vida à transitÑria. Essa hierarquia implica<br />
em que quanto mais alto se chega na escala, maiores sÇo as obrigaÅâes. A roda da vida<br />
cobra mais <strong>de</strong> quem à mais capaz. Um Brâmane, por exemplo, que à da casta superior,<br />
dos filÑsofos e educadores, tem uma vida <strong>de</strong>dicada aos estudos e tem obrigaÅâes com<br />
a socieda<strong>de</strong>. As outras castas sÇo: Kshatriya, administradores e soldados, Vaishya,<br />
comerciantes e pastores, e Sudras, artesÇos e trabalhadores braÅais. 285<br />
A obediÖncia hindu aos <strong>de</strong>sÉgnios <strong>de</strong> Brahma faz com que existam ainda hoje na índia,<br />
segundo o site da organizaÅÇo Dalit Awakening 286 , 300 milhâes <strong>de</strong> dálits, 60 milhâes <strong>de</strong>les<br />
284 UMRIGAR, 2005, pp. 38-39.<br />
285 CONSULADO GERAL DA íNDIA NO BRASIL, “Cultura e religiÇo”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 26 jul. 2009.<br />
286 DALIT AWAKENING, disponÉvel em: . Acesso em 26 jul. 2009.
explorados atravàs <strong>de</strong> trabalho forÅado, 66% <strong>de</strong>les analfabetos, sendo que as crianÅas dálits<br />
que frequentam a escola sÇo obrigadas a assistir a aula <strong>de</strong> costas ou do lado <strong>de</strong> fora da sala.<br />
ReligiÇo e tradiÅÇo reservam <strong>de</strong>licada condiÅÇo a outro segmento da socieda<strong>de</strong><br />
indiana: as mulheres. Embora no HinduÉsmo as mulheres tenham papel fundamental na<br />
transmissÇo e na manutenÅÇo dos costumes da religiÇo (cabe a elas passar as lendas hindus<br />
para as novas geraÅâes), e embora muitas sejam as divinda<strong>de</strong>s femininas (todos os <strong>de</strong>uses<br />
hindus tÖm a sua consorte, a contraparte feminina <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r), alguns costumes enraizados<br />
pela longa tradiÅÇo tÖm con<strong>de</strong>nado a mulher ä exclusÇo da vida social e polÉtica e, o que à<br />
pior, tÖm negado a ela a prÑpria vida.<br />
A reverÖncia ä mulher po<strong>de</strong> ser localizada nos mëltiplos significados da palavra<br />
sênscrita Shakti: o vocábulo, que <strong>de</strong>signa o ÑrgÇo sexual feminino, encerra, segundo os textos<br />
sagrados, o “princÉpio feminino que antece<strong>de</strong> e inclui o princÉpio masculino” (o princÉpio da<br />
Divinda<strong>de</strong> Suprema); sugere tambàm a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> forÅa inspiradora e, por isso, à associada ä<br />
Gran<strong>de</strong> MÇe (Devi); po<strong>de</strong> ser traduzida no HunduÉsmo como a “manifestaÅÇo do princÉpio<br />
criativo”; filosoficamente, tambàm aparece como “energia cÑsmica”, implicando “po<strong>de</strong>r,<br />
habilida<strong>de</strong>, capacida<strong>de</strong>, forÅa; proeza, ràgio po<strong>de</strong>r; po<strong>de</strong>r gerador; po<strong>de</strong>r poàtico;<br />
genialida<strong>de</strong>”; por fim, <strong>de</strong>signa o “espÉrito <strong>de</strong> uma esposa, ou o anjo guardiÇo, quem se encarna<br />
numa esposa terrena, numa dama ou prostituta, ou numa figura sobrenatural” 287 . DaÉ <strong>de</strong>rivam<br />
as fortes qualida<strong>de</strong>s esperadas <strong>de</strong> uma mulher indiana: modàstia, recato e humilda<strong>de</strong>. As<br />
lembranÅas <strong>de</strong> Tehmina, personagem central do romance A doçura do mundo, <strong>de</strong> Thrity<br />
Umrigar, dÇo testemunho do lugar da mulher na socieda<strong>de</strong> indiana:<br />
149<br />
Tehmina lembrou-se <strong>de</strong> todos os limites rigorosos impostos por sua mÇe: a mulher nÇo<br />
<strong>de</strong>via se olhar no espelho, para que os outros nÇo a julgassem fëtil; nunca <strong>de</strong>via<br />
reclamar <strong>de</strong> nada em sua vida, porque havia milhâes <strong>de</strong> pessoas em pior situaÅÇo;<br />
<strong>de</strong>via cobrir a boca ao rir, porque, <strong>de</strong> outro modo, os homens a consi<strong>de</strong>rariam<br />
promÉscua; <strong>de</strong>via contentar-se com o que Deus lhe <strong>de</strong>sse, porque esse era o seu<br />
<strong>de</strong>stino; nunca <strong>de</strong>via comer na rua, para nÇo <strong>de</strong>spertar a atenÅÇo e a inveja dos<br />
famintos a seu redor; nunca <strong>de</strong>via gabar-se <strong>de</strong> ter dinheiro, para nÇo provocar a inveja<br />
dos vizinhos. 288<br />
Tamanho recato, que prevÖ o uso do vàu diante <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong>sconhecidos e que<br />
impe<strong>de</strong> a mulher <strong>de</strong> andar <strong>de</strong>sacompanhada em lugares pëblicos e <strong>de</strong> manifestar-se em<br />
conversas sem ter sido convidada, tambàm impâe limitaÅâes ä vida conjugal, como nÇo<br />
pronunciar o nome do marido em pëblico e nÇo expor a intimida<strong>de</strong> do casal fora do quarto ─<br />
287 SOCIEDADE INTERNACIONAL GITA DO BRASIL. DsponÉvel em:<br />
. Acesso em 22 jul. 2009.<br />
288 UMRIGAR, 2008, p. 157.
o que significa nÇo dar <strong>de</strong>monstraÅâes pëblicas <strong>de</strong> carinho (como beijar ou andar <strong>de</strong> mÇos<br />
dadas). A aparente contradiÅÇo entre tal proibiÅÇo e a prática, muito comum entre indianos, <strong>de</strong><br />
realizar em pëblico outras ativida<strong>de</strong>s supostamente privadas, como limpar os ouvidos, escovar<br />
os <strong>de</strong>ntes e escarrar, chamou a atenÅÇo <strong>de</strong> Susan, a esposa americana do indiano Sorab, no<br />
mesmo romance <strong>de</strong> Umrigar:<br />
150<br />
Um paÉs inteiro em que as pessoas fazem amor quietinhas feito camundongos, mas<br />
gargarejam e pigarreiam feito tigres selvagens! Um paÉs em que nÇo se po<strong>de</strong> andar <strong>de</strong><br />
mÇos dadas com o prÑprio marido na rua, sem ser alvo <strong>de</strong> olhares severos, mas on<strong>de</strong> à<br />
possÉvel praticar os rituais mais Éntimos em pëblico! 289<br />
Embora a índia mo<strong>de</strong>rna possa oferecer alguns exemplos <strong>de</strong> exceÅÇo äs antigas regras<br />
que rigidamente governam a vida das mulheres (muitas avanÅam nos estudos, assumem<br />
cargos executivos, <strong>de</strong>stacam-se na polÉtica e conquistam visibilida<strong>de</strong> internacional), nÇo se<br />
po<strong>de</strong> negar que o forte respeito ä tradiÅÇo ainda <strong>de</strong>termina o casamento como o ënico<br />
horizonte possÉvel para as representantes do sexo feminino. ï neste contexto que a gran<strong>de</strong><br />
discriminaÅÇo contra as mulheres se materializa: na índia, a graÅa <strong>de</strong> ser aceita na famÉlia do<br />
noivo e <strong>de</strong> ganhar um novo lar <strong>de</strong>ve ser retribuÉda pela mulher com o pagamento <strong>de</strong> um dote<br />
aos familiares do futuro cònjuge. Tal prática, que remonta aos textos sagrados, tem<br />
<strong>de</strong>terminado uma sàrie <strong>de</strong> violÖncias contra a mulher. Segundo reportagem televisiva<br />
intitulada “La mujer en la Índia”, do programa “60 Minutos” 290 do Canal Sur 2, da Espanha,<br />
sendo consi<strong>de</strong>radas improdutivas e fonte <strong>de</strong> altos gastos com o pagamento <strong>de</strong> dotes, milhares<br />
<strong>de</strong> mulheres tÖm sido assassinadas por suas prÑprias famÉlias na esperanÅa <strong>de</strong> escapar das<br />
futuras <strong>de</strong>spesas do contrato matrimonial. Com isso, crescem assustadoramente as estatÉsticas<br />
<strong>de</strong> feticÉdio e <strong>de</strong> infanticÉdio feminino, tanto nas famÉlias pobres como nas ricas: nas<br />
primeiras, por motivos Ñbvios ─ o endividamento que resulta do pagamento do dote; nas<br />
segundas, para nÇo causar reduÅÇo no patrimònio. De tal modo os dados sÇo alarmantes que,<br />
na índia, a ultrassonografia com o objetivo <strong>de</strong> conhecer o sexo do bebÖ à proibida, o que nÇo<br />
impe<strong>de</strong> mesmo os mais pobres <strong>de</strong> recorrer a clÉnicas particulares, estabelecimentos que<br />
chegam oferecer, junto com o serviÅo <strong>de</strong> imagem, o aborto do feto. Paralelamente, cresce<br />
tambàm no paÉs o nëmero <strong>de</strong> meninas abandonadas por suas mÇes e avÑs apÑs o parto,<br />
costume que tem abarrotado os orfanatos, hoje já consi<strong>de</strong>rados casas <strong>de</strong> abrigo feminino.<br />
Segundo a reportagem, se tais práticas forem mantidas, atà 2025 haverá um dàficit <strong>de</strong> um<br />
289 UMRIGAR, 2008, p. 176.<br />
290 “La mujer en la India”. DisponÉvel em: . Acesso em 13 <strong>de</strong> set. 2009.
milhÇo <strong>de</strong> mulheres na socieda<strong>de</strong> indiana, problema que já comeÅa a afetar os jovens que nÇo<br />
encontram noivas para casar e que chegam atà a abrir mÇo do dote para nÇo ficarem solteiros.<br />
A escritora e especialista em índia Mira Kamdar confirma a tragàdia:<br />
151<br />
Na socieda<strong>de</strong> indiana tradicional, as mulheres sÇo consi<strong>de</strong>radas fardos para as<br />
famÉlias. As mulheres sÇo <strong>de</strong>stinadas ao casamento fora da famÉlia, com o qual passam<br />
a pertencer ä famÉlia <strong>de</strong> outra pessoa.<br />
[...] Frequentemente, à preciso reunir gran<strong>de</strong>s dotes quando as moÅas se casam, dotes<br />
que po<strong>de</strong>m seriamente endividar as famÉlias. [...] O patriarcado indiano <strong>de</strong>termina que<br />
se po<strong>de</strong> contar apenas com os filhos para prover assistÖncia aos pais idosos numa<br />
socieda<strong>de</strong> que nÇo dispâe <strong>de</strong> sistema <strong>de</strong> previdÖncia social.<br />
Matar bebÖs do sexo feminino à um costume antigo na índia. [...] De modo geral, o<br />
infanticÉdio feminino à praticado por pessoas pobres a ponto <strong>de</strong> se sentirem incapazes<br />
<strong>de</strong> criar uma menina, que apenas tomará <strong>de</strong>les, sem nunca lhes dar nada em troca. O<br />
feticÉdio feminino, a prática <strong>de</strong> abortar fetos do sexo feminino, à a visÇo mo<strong>de</strong>rna<br />
<strong>de</strong>ste flagelo. 291<br />
Assim como o drama das mulheres tem raÉzes muito antigas nos costumes indianos,<br />
tudo o mais resulta <strong>de</strong>ssa curiosa coexistÖncia <strong>de</strong> àpocas distantes. GraÅas ä sua experiÖncia<br />
circular da vida, os indianos tÖm uma visÇo peculiar do tempo, atravàs da qual passado e<br />
presente se dobram numa convivÖncia simultênea que atravessa todas as eras. Assim à que os<br />
adjetivos “atrasado” e “prÑspero” sÇo usados lado a lado para qualificar o paÉs. O Consulado<br />
no Brasil apresenta a índia como “um paÉs mÉstico, com cheiro <strong>de</strong> insenso e cheio <strong>de</strong><br />
guirlandas e santos vagando pelas ruas” que convive em harmonia com “um povo<br />
extremamente progressista, que gosta da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” 292 . Curiosamente, o dàcimo paÉs<br />
industrializado do mundo, auto-suficiente em produÅÇo agrÉcola e exportador <strong>de</strong> tecnologia <strong>de</strong><br />
informaÅÇo amarga a presenÅa <strong>de</strong> 40% da pobreza do mundo em seu territÑrio 293 . Nas<br />
palavras <strong>de</strong> Kamdar, a índia à um paÉs em <strong>de</strong>senvolvimento que “se divi<strong>de</strong> entre uma<br />
minëscula minoria rica, uma classe màdia ascen<strong>de</strong>nte e oitocentos milhâes <strong>de</strong> pessoas que<br />
vivem com menos <strong>de</strong> dois dÑlares por dia” 294 .<br />
A coexistÖncia <strong>de</strong> contrastes tÇo violentos à um <strong>de</strong>safio para o olhar oci<strong>de</strong>ntal. A<br />
diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lÉnguas, hábitos e modo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>sperta a curiosida<strong>de</strong> e intriga: autores locais<br />
e estrangeiros sÇo unênimes em afirmar que, apesar da gran<strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong>, há uma gran<strong>de</strong><br />
unida<strong>de</strong> na cultura do paÉs. O sentimento <strong>de</strong> amor ä naÅÇo e o orgulho <strong>de</strong> sua civilizaÅÇo<br />
ancestral, assim como a tolerência religiosa, explicariam tal unida<strong>de</strong>, sugere o Consulado. A<br />
291 KAMDAR, 2008, pp. 301-302.<br />
292 CONSULADO GERAL DA íNDIA, “Cinema e arte”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 12 jul. 2009.<br />
293 KAMDAR, op. cit., p. 31.<br />
294 Ibi<strong>de</strong>m, p. 18.
profusÇo <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses adorados por diferentes segmentos da socieda<strong>de</strong> teria acostumado os<br />
indianos a conviver com a diversida<strong>de</strong>. A maciÅa presenÅa do HinduÉsmo (Hindu Dharma) no<br />
paÉs, no entanto, nÇo impe<strong>de</strong> que conflitos religiosos manchem <strong>de</strong> intolerência a imagem <strong>de</strong><br />
harmonia que a índia insiste em divulgar para o mundo. Pelo contrário: o <strong>de</strong>sequilÉbrio entre o<br />
elevado nëmero <strong>de</strong> seguidores do HinduÉsmo e as bem menos expressivas parcelas <strong>de</strong> islêmicos,<br />
cristÇos e budistas resulta invariavelmente na discriminaÅÇo das minorias e nÇo raro <strong>de</strong>riva em<br />
hostilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parte a parte. Consi<strong>de</strong>rado uma filosofia que trata <strong>de</strong> todos os aspectos da vida<br />
humana (espiritual, social, moral, cultural, econòmica, intelectual etc), o Hindu Dharma se<br />
prevalece da condiÅÇo <strong>de</strong> ser uma religiÇo tÇo antiga quanto a civilizaÅÇo da índia e <strong>de</strong><br />
contabilizar entre seus seguidores mais <strong>de</strong> 80% da numerosÉssima populaÅÇo do paÉs.<br />
A literatura está cheia <strong>de</strong> referÖncias a essa assimetria religiosa. Sorab, personagem<br />
filho <strong>de</strong> famÉlia parse 295 em A doçura do mundo, protesta contra a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer da índia um<br />
“HindustÇo”: “Eles querem que o paÉs inteiro seja uma naÅÇo hindu fundamentalista, e estÇo<br />
reescrevendo os livros <strong>de</strong> histÑria para glorificar a maioria hindu”. Para esta maioria, segundo<br />
Sorab, “ï como se os muÅulmanos, os parses e os catÑlicos simplesmente nÇo existissem” 296 .<br />
A hostilida<strong>de</strong> contra os muÅulmanos está <strong>de</strong>scrita ainda na passagem em que Rustom, pai <strong>de</strong><br />
Sorab, dá abrigo ä famÉlia <strong>de</strong> seu vizinho, um arquiteto muÅulmano, que “andava aterrorizado<br />
com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que um bando <strong>de</strong> hindus invadisse sua casa”. Diante da sugestÇo da esposa <strong>de</strong><br />
que os vizinhos fizessem como “inëmeros muÅulmanos” que “já saÉram <strong>de</strong> Bombaim”,<br />
Rustom se zanga:<br />
152<br />
E como vocÖ acha que eles po<strong>de</strong>m sair da cida<strong>de</strong>, com esses bandos <strong>de</strong> hindus<br />
rondando as ruas, procurando muÅulmanos para matar? E, que diabo, por que eles<br />
<strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>ixar Bombaim, afinal? Aqui à a casa <strong>de</strong>les. 297<br />
A ameaÅa contra a os vizinhos muÅulmanos (“a famÉlia <strong>de</strong> comedores <strong>de</strong> carne”) se<br />
materializa na insinuaÅÇo do sem-teto hindu que vivia do outro lado da rua, em frente ä casa<br />
<strong>de</strong> Rustom: “Os irmÇos hindus andam zangados, seth. Dizem que vÇo incendiar qualquer<br />
apartamento que dÖ guarida a esses cÇes muÅulmanos” 298 .<br />
Sendo Umrigar, ela prÑpria, uma parse, a dor das minorias, quer religiosas quer<br />
econòmicas, nÇo lhe à indiferente em seus romances. Muitas sÇo as cenas que <strong>de</strong>screvem a<br />
295 Os parses sÇo uma minoria àtnica que vive na índia, originários do IrÇ, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> fugiram no sàculo VIII para<br />
escapar da intolerência islêmica.<br />
296 UMRIGAR, 2008, p. 83.<br />
297 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
298 Ibi<strong>de</strong>m, p. 132.
vida na Bombaim/Mumbai “<strong>de</strong>sgastada e <strong>de</strong>cràpita” 299 , “suja e imunda”, a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> “os<br />
ònibus enguiÅam e a eletricida<strong>de</strong> nÇo funciona” 300 , on<strong>de</strong> se respira “o ar mais fàtido”, on<strong>de</strong> se<br />
misturam “os milionários, os leprosos, as joalherias, as colònias <strong>de</strong> favelados” 301 , on<strong>de</strong> se<br />
come em “barracas <strong>de</strong> beira <strong>de</strong> estrada” nas quais os pratos sÇo lavados “numa água marrom<br />
feito lama” 302 . Outras tantas falam da precarieda<strong>de</strong> da vida na favela. Em A distância entre<br />
nós, a autora mostra a empregada domàstica Bhima, entre resignada e <strong>de</strong>sesperanÅada, diante<br />
da basti (favela) on<strong>de</strong> mora. O cenário diante si justifica sua relutência em voltar para “casa”:<br />
sÇo “pobres casebres” sem privacida<strong>de</strong> ou água corrente, “barracos <strong>de</strong>salinhados com seus<br />
tetos remendados <strong>de</strong> placas <strong>de</strong> zinco” 303 , “uma estrutura <strong>de</strong> lata e papelÇo”, “precária e<br />
<strong>de</strong>smantelada, mais parecendo um ninho <strong>de</strong> um pássaro gigante feito por um bando <strong>de</strong> corvos<br />
bÖbados do que um local on<strong>de</strong> seres humanos habitam” 304 . A pobreza e a precarieda<strong>de</strong> da<br />
moradia nÇo se comparam ao constrangimento e ä promiscuida<strong>de</strong> dos banheiros comunitários<br />
da favela, locais cheios <strong>de</strong> “mosca e fedor” graÅas äs “valas a càu aberto”. A gran<strong>de</strong><br />
rotativida<strong>de</strong> nas pequenas cabines comunitárias sem esgoto ren<strong>de</strong> diariamente a mesma e<br />
miserável constataÅÇo: “Algumas horas mais tar<strong>de</strong>, vai haver pouco espaÅo para andar por<br />
entre as consi<strong>de</strong>ráveis pilhas <strong>de</strong> excrementos que os moradores da favela <strong>de</strong>ixam no chÇo <strong>de</strong><br />
barro do banheiro comunitário” 305 .<br />
Se as várias <strong>de</strong>scriÅâes <strong>de</strong> Bombaim/Mumbai pintam um quadro <strong>de</strong> cores fortes e<br />
contrastantes, as imagens que chegam <strong>de</strong> Jaipur trazem o pigmento cor-<strong>de</strong>-rosa da<br />
hospitalida<strong>de</strong>. A cida<strong>de</strong> que, por <strong>de</strong>terminaÅÇo <strong>de</strong> um marajá, se pintou <strong>de</strong> rosa para receber<br />
em 1876 o prÉncipe <strong>de</strong> Gales Edward VII ainda guarda os ares da àpoca em que era a capital<br />
da realeza, transpira sua heranÅa cultural em monumentos, templos, fortalezas e jardins, e<br />
ostenta sua vocaÅÇo para o turismo e o comàrcio. De sua visita ä cida<strong>de</strong> em 1953, CecÉlia<br />
Meireles fez poesia 306 , exaltando em versos saudosos, os mais encantadores traÅos <strong>de</strong>ssa<br />
cida<strong>de</strong> bicentenária, testemunha do passado no presente, passarela <strong>de</strong> elefantes em procissÇo,<br />
palco <strong>de</strong> festivais que celebram a tradiÅÇo, centro urbano planejado, situado entre o <strong>de</strong>serto e a<br />
capital indiana Delhi:<br />
299 UMRIGAR, 2008, p. 96.<br />
300 Ibi<strong>de</strong>m, p. 80.<br />
301 Ibi<strong>de</strong>m, p. 84.<br />
302 UMRIGAR, 2008, p. 94.<br />
303 UNRIGAR, 2006, p. 16.<br />
304 Ibi<strong>de</strong>m, p. 46.<br />
305 Ibi<strong>de</strong>m, p. 16.<br />
306 Precisamente 59 poemas compâem a seÅÇo “Poemas escritos na índia”, publicada em 1976 no volume III <strong>de</strong><br />
Poesias Completas <strong>de</strong> Cecília Meireles, pp. 35-94.<br />
153
A<strong>de</strong>us, Jaipur.<br />
A<strong>de</strong>us, casas cor-<strong>de</strong>-rosa com ramos brancos,<br />
pÑrticos, peixes azuis nos arcos <strong>de</strong> entrada.<br />
A<strong>de</strong>us, elefante <strong>de</strong> lÉngua rÑsea.<br />
vestuto irmÇo,<br />
comedor <strong>de</strong> aÅëcar<br />
anciÇo paciente.<br />
A<strong>de</strong>us, Jaipur, e espelhos <strong>de</strong> Amber Palace,<br />
jardins extintos, gra<strong>de</strong>s redondas,<br />
mortos olhos que espiavam por essas rendas <strong>de</strong> mármore.<br />
A<strong>de</strong>us, cortejos dourados, mësica <strong>de</strong> casamentos,<br />
festa bailada e cintilante das ruas, e trinados <strong>de</strong> flauta.<br />
A<strong>de</strong>us, sacerdote <strong>de</strong> can<strong>de</strong>ia fumosa,<br />
tantas luzes por tantos bicos,<br />
e os gongos e os sinos e a porta <strong>de</strong> prata<br />
e a Deusa antiga,<br />
e a existÖncia fora do tempo.<br />
A<strong>de</strong>us, pinturas, corredores, mirantes,<br />
muralhas, escadas <strong>de</strong> castelo, mendigos lá embaixo,<br />
criancinhas que pe<strong>de</strong>m esmola como quem canta.<br />
A<strong>de</strong>us, Jaipur.<br />
A<strong>de</strong>us letras do observatÑrio,<br />
pulseiras <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> mulheres que ven<strong>de</strong>m tangerinas<br />
pelo crepësculo.<br />
A<strong>de</strong>us, fogareiros <strong>de</strong> almòn<strong>de</strong>gas,<br />
a<strong>de</strong>us, tar<strong>de</strong> morna <strong>de</strong> erva-doce, canela e rosa,<br />
cravo, pistache, aÅafrÇo.<br />
A<strong>de</strong>us, cores.<br />
A<strong>de</strong>us, Jaipur, sandálias, vàus,<br />
macio vento <strong>de</strong> marfim.<br />
A<strong>de</strong>us, astrÑlogo.<br />
Muitos <strong>de</strong>uses sobre o Palácio <strong>de</strong> Vento.<br />
(On<strong>de</strong> eu <strong>de</strong>via morar!)<br />
Sobre o Palácio <strong>de</strong> Vento meus a<strong>de</strong>uses: pombos esvoaÅantes.<br />
Meus a<strong>de</strong>uses: rouxinÑis cantores.<br />
Meus a<strong>de</strong>uses: nuvens <strong>de</strong>senroladas.<br />
Meus a<strong>de</strong>uses: luas, sÑis, estrelas cometas mirando-te.<br />
Mirando-te e partindo.<br />
Jaipur, Jaipur. 307<br />
“Jaipur à o reservatÑrio dos costumes, tradiÅâes, civilizaÅÇo e heranÅa da índia”, diz o<br />
site inglÖs <strong>de</strong> turismo da cida<strong>de</strong> 308 . A página eletrònica da agÖncia <strong>de</strong> viagens Rahasthan<br />
Voyage que oferece passeios com o sugestivo nome <strong>de</strong> Passion Tour apresenta Jaipur como<br />
“um labirinto <strong>de</strong> fascinantes bazares, suntuosos palácios e locais histÑricos”, um lugar on<strong>de</strong><br />
“tradiÅÇo e mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> coexistem”: “as ruas vibram com camelos e motorizadas e homens<br />
307 MEIRELES, 1976, vol. III, pp.82-83.<br />
308 “Jaipur, the pink city”, disponÉvel em: . Acesso em 15 nov. 2009.<br />
154
<strong>de</strong> turbante cruzam-se com jovens <strong>de</strong> jeans” 309 . Em seu blog, Giovana Manfredi, pesquisadora<br />
da TV Globo enviada <strong>de</strong> Gloria Perez ä índia para conhecer a atmosfera do paÉs, afirma que<br />
“Jaipur à uma cida<strong>de</strong> para se viver um gran<strong>de</strong> amor”: “Marajás, princesas, palácios, tudo<br />
aquilo que nossos pais contavam ao pà do ouvido, ä beira do sono, e que <strong>de</strong> certa forma<br />
moldaram nossa concepÅÇo <strong>de</strong> amor” 310 . Jaipur, assim como muitas cida<strong>de</strong>s do RajastÇo,<br />
resume a índia do imaginário popular: dos marajás, dos turbantes e dos sáris; dos palácios<br />
suntuosos e dos fortes impenetráveis.<br />
Mumbai e Jaipur retratam bem as diversida<strong>de</strong>s experimentadas na índia: na primeira, o<br />
caos permanente e o contraste entre pobreza e riqueza; na segunda, o encantamento estàtico e<br />
a serenida<strong>de</strong> resultante do equilÉbrio harmònico entre o passado dos marajás e o presente dos<br />
mercados cosmopolitas. Fora das telas, nas narrativas jornalÉsticas, literárias e institucionais, o<br />
paÉs se mostra igualmente equipado para protagonizar gran<strong>de</strong>s tragàdias e fascinantes contos<br />
<strong>de</strong> fada. A mais fantástica ficÅÇo nÇo <strong>de</strong>ixará nada a <strong>de</strong>ver ä realida<strong>de</strong> da índia 311 .<br />
7.5 A VIDA INDIANA NA FICóîO<br />
Muitos sÇo os aspectos da vida indiana presentes nas narrativas ficcionais <strong>de</strong> “Quem<br />
quer ser um milionário?” e “Caminho das índias”. ImpossÉvel ignorar, neste estudo<br />
comparativo, os diferentes registros nos quais as questâes sociais, religiosas, culturais e <strong>de</strong><br />
gÖnero sÇo abordadas no filme e na telenovela.<br />
Em “Quem quer ser um milionário?”, a vida do indiano à recortada pelo viàs da<br />
pobreza da favela: trata-se da realida<strong>de</strong> do favelado Jamal em sua luta contra as adversida<strong>de</strong>s<br />
resultantes <strong>de</strong> sua condiÅÇo social. A sujeira, a escuridÇo, as roupas maltrapilhas, a exploraÅÇo<br />
da mendicência, os pequenos <strong>de</strong>litos, a esperteza, a situaÅÇo subalterna no trabalho ─ ao<br />
lanÅar luz sobre os milhâes <strong>de</strong> indigentes <strong>de</strong> uma índia sub<strong>de</strong>senvolvida, o filme mostra a<br />
cruelda<strong>de</strong> da exclusÇo e da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que mancha <strong>de</strong> vergonha a face <strong>de</strong> uma índia a<br />
caminho <strong>de</strong> sua consagraÅÇo como potencia mundial.<br />
Jamal sente na pele nÇo sÑ a discriminaÅÇo social e o peso <strong>de</strong> seu passado <strong>de</strong> favelado<br />
que o con<strong>de</strong>nam a uma vida sem instruÅÇo, sem possibilida<strong>de</strong>s, sem futuro: contra ele pesa<br />
309<br />
“Jaipur”, disponÉvel em: . Acesso em 15<br />
nov. 2009.<br />
310<br />
MANFREDI, “Jaipur”, disponÉvel em: . Acesso em 3 set. 2009.<br />
311<br />
Para conhecer os diversos êngulos da realida<strong>de</strong> indiana em imagens e crònicas inspiradas, vi<strong>de</strong> o blog da<br />
jornalista Cora RÑnai “InternETC” que traz o diário <strong>de</strong> bordo <strong>de</strong> sua recente viagem ä índia. DisponÉvel em:<br />
.<br />
155
tambàm o fato <strong>de</strong> ser muÅulmano num paÉs <strong>de</strong> maioria hindu. Como ele po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
saber o que Rama traz em sua mÇo direita, terceira pergunta do game show, justamente aquela<br />
cuja resposta lhe traz tÇo dolorosas lembranÅas? “Rama e Alá... Se nÇo fosse por isso, eu teria<br />
mÇe”, comenta Jamal diante do investigador <strong>de</strong> polÉcia, lembrando a perseguiÅÇo dos hindus<br />
aos muÅulmanos da favela, o fogo ateado contra os barracos e o violento golpe que tira a vida<br />
<strong>de</strong> sua mÇe. Em sua errência <strong>de</strong> perseguido, Jamal foi tambàm privado da escola: foi forÅado a<br />
abandonar a sala <strong>de</strong> aula apinhada <strong>de</strong> crianÅas e a trocar o professor que lhe atirava livros na<br />
cabeÅa pelos ensinamentos das ruas. Com isso, viu apagar-se diante <strong>de</strong> seus olhos a lamparina<br />
que <strong>de</strong>ve iluminar os caminhos dos indianos: importante sÉmbolo da cultura hindu, ela<br />
representa o valor atribuÉdo ä “aquisiÅÇo <strong>de</strong> conhecimento” e ä “remoÅÇo da ignorência”.<br />
Apesar <strong>de</strong> todas as adversida<strong>de</strong>s, o menino favelado, ÑrfÇo e irmÇo <strong>de</strong> um agente do crime<br />
organizado sobrevive como uma flor <strong>de</strong> lÑtus, outro sÉmbolo forte para os indianos: cresce<br />
bela e vigorosa, mesmo tendo brotado em água pantanosa. Destino semelhante ao da prÑpria<br />
índia, que <strong>de</strong>sponta como po<strong>de</strong>rosa potÖncia econòmica mesmo <strong>de</strong>ixando atrás <strong>de</strong> si um rastro<br />
<strong>de</strong> misària, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e injustiÅa social.<br />
Diferentemente <strong>de</strong> Jamal, que vive uma índia distante <strong>de</strong> seus rituais mais tradicionais,<br />
em “Caminho das índias”, o indiano à representado como um ser apegado aos costumes.<br />
Embora convivam com a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tecnolÑgica, as personagens do nëcleo indiano da<br />
telenovela respiram espiritualida<strong>de</strong> e pautam sua vida segundo os ensinamentos da tradiÅÇo.<br />
Aqui, a realida<strong>de</strong> indiana à recortada pelo viàs do hinduÉsmo, tendo como foco as classes<br />
sociais mais privilegiadas.<br />
As aÅâes pessoais, as <strong>de</strong>cisâes <strong>de</strong> trabalho, os projetos <strong>de</strong> vida e a percepÅÇo do<br />
mundo sÇo conduzidos pelos ensinamentos religiosos milenares e pela aceitaÅÇo do lugar que<br />
cada um ocupa no sistema <strong>de</strong> castas. Poucos questionam o que está escrito “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o comeÅo<br />
dos tempos”. ExceÅÇo feita a Bahuam, que luta para conquistar riqueza na esperanÅa <strong>de</strong> se<br />
livrar das humilhaÅâes da intocabilida<strong>de</strong>; ä dálit Puja, que se mostra indignada com sua<br />
con<strong>de</strong>naÅÇo ao invisÉvel universo dos párias; e ao sábio Shamkar, que por sua imensa<br />
sabedoria vai alàm da palavra morta dos <strong>de</strong>uses para advogar que Deus está em cada um dos<br />
seres. Maya, inicialmente movida pelo amor a Bahuam e <strong>de</strong>pois pela condiÅÇo <strong>de</strong> mÇe <strong>de</strong> uma<br />
crianÅa dálit, mostra-se dëbia com relaÅÇo ä igualda<strong>de</strong> reivindicada pelos intocáveis: nÇo se<br />
sente impura pela intimida<strong>de</strong> com o amado nem com a maternida<strong>de</strong>, no entanto nÇo<br />
<strong>de</strong>monstra a mesma naturalida<strong>de</strong> diante dos outros sem-casta da novela. As crianÅas Anusha e<br />
Lalit, em sua ingenuida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sconhecimento da complexida<strong>de</strong> dos costumes, nÇo enten<strong>de</strong>m o<br />
156
que torna os dálits impuros nem o que <strong>de</strong> fato impe<strong>de</strong> o amor <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>las por Hari, o neto<br />
<strong>de</strong> Puja. A questÇo aqui nÇo à social, à religiosa.<br />
Tanto Shamkar quanto as famÉlias <strong>de</strong> comerciantes parecem <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> boa condiÅÇo<br />
social: casa espaÅosa, comida farta e disponibilida<strong>de</strong> financeira para manter filhos estudando<br />
no exterior. O contraste entre essa elite e os dálits nÇo à <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estritamente econòmica ou<br />
social; à <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m religiosa. Muito embora na índia existam intocáveis ricos e influentes, na<br />
telenovela eles sÇo sempre meros varredores <strong>de</strong> ruas e limpadores <strong>de</strong> latrinas, moradores <strong>de</strong><br />
barracos, sem direito a tocar numa pessoa <strong>de</strong> casta ou mesmo permitir que sua sombra o faÅa.<br />
Fora isso, todos os outros conflitos giram em torno <strong>de</strong> questâes culturais: preconceito contra<br />
estrangeiros (sobretudo estrangeiras), restriÅâes ä mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> (que leva as famÉlias a<br />
permitir que seus filhos busquem instruÅÇo fora do paÉs, que faz com que moÅas jovens nÇo<br />
tenham o casamento como horizonte <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, que substitui o livro-caixa <strong>de</strong> uma empresa<br />
por um sistema virtual e remoto <strong>de</strong> contabilida<strong>de</strong>), e <strong>de</strong>srespeito aos costumes (<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer<br />
aos mais velhos, casar sem o consentimento dos pais, contradizer a vonta<strong>de</strong> dos astros).<br />
Nesse sentido, “Caminho das índias” apresenta o indiano tradicional, seus hábitos,<br />
seus trajes tÉpicos, sua relaÅÇo com os alimentos, seu compromisso com as festas, seu gosto<br />
pela mësica e pela danÅa, seu respeito aos <strong>de</strong>uses, sua tarefa <strong>de</strong> passar äs novas geraÅâes os<br />
costumes religiosos, seu modo <strong>de</strong> ver o mundo, a humanida<strong>de</strong>, a famÉlia, o amor, o<br />
casamento, o trabalho e a morte. Sáris coloridos, kurtas elegantes, jÑias em profusÇo,<br />
turbantes festivos, vàus, incensos, velas, guirlandas, oferendas, <strong>de</strong>uses, gurus, sacerdotes,<br />
casamento arranjado, dote, matrimònio infantil, maldiÅâes e sinais auspiciosos ─ toda a índia<br />
do imaginário popular à reverenciada na telenovela. A índia das cores vibrantes, da<br />
arquitetura palaciana e rendilhada; a índia mÉstica e suas lamparinas, superstiÅâes,<br />
horÑscopos, vacas sagradas, templos e oraÅâes; a índia sedutora, misteriosa e espiritual; a<br />
índia urbana, com seu comàrcio e seu trênsito caÑtico; a índia dos vilarejos on<strong>de</strong> circulam<br />
elefantes e camelos; a índia turÉstica com seus monumentos, festivais, feiras e mercados<br />
tÉpicos ─ sÑ mesmo as favelas e os arranha-càus <strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?” nÇo tÖm<br />
lugar em “Caminho das índias”.<br />
Filme e telenovela ficam novamente em lados opostos quando a mulher ganha a cena.<br />
Latika, menina <strong>de</strong> rua (possivelmente abandonada pela mÇe <strong>de</strong>pois do parto) que cativa <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o primeiro momento o coraÅÇo <strong>de</strong> Jamal, sÑ à vista como indiana tÉpica, em sáris e adornos<br />
por todo o corpo, quando o explorador <strong>de</strong> menores a interna num prostÉbulo sob o codinome<br />
<strong>de</strong> Cherry para apren<strong>de</strong>r a arte da seduÅÇo. Lá, à vista danÅando o ritmo mais popular da<br />
índia. Lá, à a virgem valiosa apren<strong>de</strong>ndo a ser a indiana dos sonhos erÑticos masculinos. SÑ<br />
157
ao final do filme, quando aguarda por Jamal na estaÅÇo <strong>de</strong> trem, Latika volta a usar o vàu:<br />
para diferenciar da prostituta <strong>de</strong> outrora, combina calÅa comprida, tënica bordada e ombros ä<br />
mostra. Na telenovela, o traje que serviu para compor a garota <strong>de</strong> programa inci<strong>de</strong>ntal Latika<br />
veste as indianas castas em seu rÉgido cÑdigo <strong>de</strong> vestimenta. As mulheres <strong>de</strong> “Caminhos das<br />
índias” cobrem o cabelo diante <strong>de</strong> outros homens. Seus ombros estÇo sempre ocultos sob os<br />
coloridos sáris. SÑ saem <strong>de</strong> casa acompanhadas e <strong>de</strong>votam obediÖncia a seus pais, ao cònjuge<br />
e ä famÉlia do marido. Ainda jovens, foram oferecidas em casamento arranjado entre famÉlias.<br />
Seus pais pagaram dotes; nÇo chegaram a amaldiÅoar suas filhas pela <strong>de</strong>spesa, mas<br />
reclamaram do rombo que o “agrado” causou em seu patrimònio e tentaram poupar suas<br />
rëpias na negociaÅÇo. Isso vale tanto para as famÉlias dos comerciantes abastados como para a<br />
famÉlia <strong>de</strong> Gopal, indiano que à forÅado a abandonar mulher e filha na índia em busca <strong>de</strong><br />
salários mais altos como motorista <strong>de</strong> taxi em Dubai ─ tanto esforÅo sÑ para garantir o futuro<br />
dote <strong>de</strong> sua pequena Lalit.<br />
Mais caseiras e <strong>de</strong>dicadas ao marido, ä famÉlia e äs panelas, as mulheres ficam<br />
expostas ä critica da rÉgida matriarca quando “arrastam seus sáris pelo mercado”. Embora<br />
houvesse trabalhado fora e nÇo fosse mais virgem quando se casou, Maya nÇo se mostrou<br />
resistente a <strong>de</strong>ixar o emprego, ostentou com orgulho os sinais <strong>de</strong> mulher casada e viveu<br />
atormentada pela ameaÅa que os severos costumes indianos representavam para uma moÅa <strong>de</strong><br />
famÉlia como ela, grávida <strong>de</strong> um filho fora do casamento ─ e, ainda por cima, um filho dálit.<br />
Surya, a cunhada, invejosa da condiÅÇo <strong>de</strong> Maya enquanto mÇe <strong>de</strong> menino em sua primeira<br />
gravi<strong>de</strong>z, amaldiÅoava os <strong>de</strong>uses por sÑ lhe darem filha menina, con<strong>de</strong>nando-a ao <strong>de</strong>sprestÉgio<br />
e ä discriminaÅÇo <strong>de</strong>ntro da famÉlia. Na tentativa <strong>de</strong> merecer melhor tratamento na casa <strong>de</strong> seu<br />
marido, forja uma gravi<strong>de</strong>z contratando a barriga <strong>de</strong> aluguel <strong>de</strong> uma mulher <strong>de</strong> casta inferior,<br />
mÇe <strong>de</strong> muitos meninos. A educaÅÇo dispensada a sua filha Anusha, ainda em fase <strong>de</strong><br />
alfabetizaÅÇo, limitava-se a fornecer-lhe os ensinamentos necessários a uma boa noiva: o<br />
conhecimento dos costumes, o domÉnio dos temperos e a danÅa como arte da seduÅÇo. Shanti,<br />
a jovem que sonhava com uma pÑs-graduaÅÇo no exterior, era recriminada pela avÑ por<br />
escolher um caminho que a afastava do casamento: “uma mulher nÇo <strong>de</strong>ve saber mais que seu<br />
marido”, repetia a velha Láksmi. Os <strong>de</strong>scaminhos dos filhos eram sempre creditados ä<br />
incompetÖncia das mÇes: “foi vocÖ que nÇo ensinou nada a eles!”, acusavam maridos e sogras.<br />
Pelo uso <strong>de</strong> roupas tÉpicas, pelo talento <strong>de</strong> danÅarinas, pela <strong>de</strong>dicaÅÇo ä famÉlia, pelo sonho <strong>de</strong><br />
dar ao marido um filho homem e pelo comportamento recatado em pëblico, as mulheres <strong>de</strong><br />
“Caminho das índias” nÇo apenas evocaram o imaginário coletivo sobre as indianas, como<br />
tocaram muito proximamente a realida<strong>de</strong> das mulheres <strong>de</strong> ontem e <strong>de</strong> hoje na índia.<br />
158
7.6 DUAS ESTïTICAS PARA A íNDIA<br />
DifÉcil falar da índia sem ser contaminado pelo fortÉssimo imaginário estàtico<br />
oferecido por Bollywood, a Hollywood da antiga Bombaim, a gigantesca indëstria<br />
cinematográfica situada em Mumbai, responsável pelo lanÅamento <strong>de</strong> “quase mil filmes por<br />
ano e por cerca <strong>de</strong> 4 bilhâes <strong>de</strong> ingressos vendidos” 312 . Esta “fantástica fábrica <strong>de</strong> sonhos” que<br />
“viaja na contramÇo do gosto oci<strong>de</strong>ntal” 313 , à responsável pela criaÅÇo e divulgaÅÇo <strong>de</strong> uma<br />
“linguagem cinematográfica ënica e original, sem paralelos no resto do mundo” 314 .<br />
A originalida<strong>de</strong> dos filmes <strong>de</strong> Bollywood está na combinaÅÇo <strong>de</strong> “canto, danÅa e<br />
melodrama” 315 , em roteiros aparentemente inconsequentes, mas cheios <strong>de</strong> forte conteëdo<br />
social, histÑrias que <strong>de</strong>moram cerca <strong>de</strong> trÖs horas para serem contadas. Segundo Cora RÑnai,<br />
entusiasta da estàtica bollywoodiana,<br />
159<br />
“Realismo” e “Bollywood” sÇo palavras que nÇo po<strong>de</strong>m ser usadas na mesma frase – e<br />
nem precisam. Os filmes <strong>de</strong> Mumbai preocupam-se, sobretudo, em agradar ä platàia,<br />
cuja i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um bom espetáculo à bastante filme, momentos <strong>de</strong> alegria e tristeza,<br />
danÅa e canto ä vonta<strong>de</strong>. Nem à necessário que os atores cantem; para que o fariam, se<br />
há cantores que dÇo conta do recado melhor? De modo que, para os nossos ouvidos<br />
oci<strong>de</strong>ntais, há um choque inicial quando o ator que acabamos <strong>de</strong> ouvir num diálogo<br />
abre a boca e comeÅa a cantar com voz totalmente diferente; mas logo nos<br />
acostumamos, atà porque, em muitos casos, a mësica à o ponto alto dos filmes. Dois<br />
<strong>de</strong>talhes que me chamam a atenÅÇo: como os trajes tradicionais convivem com roupas<br />
oci<strong>de</strong>ntais, atà nas mesmas cenas, e como o inglÖs à tranquilamente misturado ao<br />
hÉndi. Tudo à muito famÉlia e muito romêntico: nÇo há cenas <strong>de</strong> nu<strong>de</strong>z, sexo ou<br />
violÖncia explÉcitos. 316<br />
Embora já existam hoje na índia filmes mais sofisticados e prÑximos da estàtica<br />
oci<strong>de</strong>ntal, ainda prevalece, pela forte <strong>de</strong>manda do pëblico, o tradicional estilo <strong>de</strong> fazer<br />
cinema, on<strong>de</strong> nÇo po<strong>de</strong>m faltar “Amores impossÉveis, triêngulos amorosos, laÅos familiares,<br />
sacrifÉcio, polÉticos corruptos, vilâes terrÉveis, irmÇos separados pelo <strong>de</strong>stino e mudanÅas <strong>de</strong><br />
sorte dramáticas” 317 .<br />
Exagerada, cafona, excessivamente musical. Como diz RÑnai, a estàtica <strong>de</strong> Bollywood<br />
aos olhos do Oci<strong>de</strong>nte acostumado com Hollywood resulta numa experiÖncia cinematográfica<br />
312 Texto <strong>de</strong> divulgaÅÇo <strong>de</strong> curso ministrado por Cora RÑnai sobre Bollywood na Casa do Saber, em setembro <strong>de</strong> 2009.<br />
313 Texto <strong>de</strong> divulgaÅÇo <strong>de</strong> curso ministrado por Cora RÑnai sobre Bollywood na Casa do Saber, em setembro <strong>de</strong> 2009.<br />
314 RONAI, disponÉvel em:<br />
.<br />
DisponÉvel em 22/01/2009. Acesso em 15 nov. 2009.<br />
315 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
316 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
317 “O mundo do cinema à aqui”, ConexÇo índia. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 nov. 2009.
completamente nova que exige superaÅÇo da estranheza inicial. SÑ entÇo, orienta a jornalista,<br />
“abre-se ä nossa frente uma janela para um universo em permanente encanto, tÇo rico em<br />
contrastes quanto em sons e cores” 318 . A experiÖncia da índia pelos filmes <strong>de</strong> Bollywood<br />
produz um encontro verda<strong>de</strong>iro com a cultura nacional, já que o cinema indiano foi<br />
<strong>de</strong>senvolvido como forma <strong>de</strong> afirmaÅÇo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural do paÉs em seu processo <strong>de</strong><br />
“refundaÅÇo” pÑs-in<strong>de</strong>pendÖncia.<br />
Diante das rápidas sequÖncias, dos enquadramentos inusitados e da crueza das cenas<br />
<strong>de</strong> “Quem quer ser um milionário?”, quase nada da estàtica bollywodiana po<strong>de</strong> ser visto ali.<br />
Em sua cinematografia autoral, Boyle brinca com o pop da linguagem dos vi<strong>de</strong>oclips e evita<br />
os exageros dos a<strong>de</strong>reÅos visuais na captaÅÇo <strong>de</strong> cenas <strong>de</strong>spojadas e limpas (apesar da gran<strong>de</strong><br />
sujeira retratada) e na conduÅÇo da interpretaÅÇo contida dos atores indianos. Certamente nÇo<br />
à o estilo Bollywood <strong>de</strong> fazer cinema que se vÖ neste filme inglÖs. No entanto, ali estÇo<br />
presentes alguns traÅos do universo narrativo da indëstria cinematográfica indiana: o<br />
melodrama, com o apelo äs emoÅâes e a caracterÉstica combinaÅÇo <strong>de</strong> amor, corrupÅÇo,<br />
violÖncia e <strong>de</strong>stino; a forte presenÅa narrativa da mësica; a intensida<strong>de</strong> das cores; a histeria em<br />
torno do Édolo cinematográfico, apresentado como o indiano mais famoso; o conto <strong>de</strong> fadas e<br />
o happy end; e o bangra danÅado na cena final.<br />
Da apresentaÅÇo <strong>de</strong> “Caminho das índias” (com seu caleidoscÑpio <strong>de</strong> sÉmbolos<br />
indianos, suas cores vibrantes e riqueza visual) ao conjunto <strong>de</strong> imagens que ilustram as cenas<br />
do nëcleo indiano, quase tudo evoca Bollywood. A inspiraÅÇo confessa se traduz nos <strong>de</strong>talhes<br />
do cenário, na iluminaÅÇo mais quente, no figurino das personagens, no uso das canÅâes e das<br />
danÅas, no exame minucioso das imagens rituais, na estrutura melodramática, na exploraÅÇo<br />
das emoÅâes, na roupagem <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fadas, na conduÅÇo <strong>de</strong> uma histÑria que se apresenta<br />
como um espetáculo agradável <strong>de</strong> se ver, na alternência entre tristeza e alegria, e na elegência<br />
e romantismo com que sÇo conduzidas as cenas <strong>de</strong> amor e sexo nada explicito. SÑ nÇo há<br />
canto nesta telenovela brasileira ä Bollywood. Atà mesmo o exagero e a “breguice”, alvos<br />
comuns das crÉticas äs telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, serviram aqui <strong>de</strong> linguagem para realÅar o<br />
estilo indiano <strong>de</strong> contar histÑrias. Igualmente autoral e bollywoodiana, “Caminho das índias”<br />
à um verda<strong>de</strong>iro mergulho na cultura indiana. Especialmente neste caso, a imagem que a<br />
telenovela apresenta do paÉs à, como se viu, bem prÑxima daquela que o prÑprio indiano<br />
apresenta <strong>de</strong> si, em suas produÅâes cinematográficas.<br />
318 RONAI, disponÉvel em:<br />
.<br />
DisponÉvel em 22/01/2009. Acesso em 15 nov.<br />
2009.<br />
160
Os percursos que conduzem “Quem quer ser um milionário?” e “Caminho das índias”<br />
por narrativas tÇo singulares, apesar <strong>de</strong> complementares, oferecem nÇo apenas a passagem<br />
para duas índias distintas, mas, sobretudo, duas possibilida<strong>de</strong>s distintas <strong>de</strong> experimentar a<br />
mesma índia.<br />
161
8 DUAS TELENOVELAS, UM OLHAR SOBRE A REPRESENTAÇÃO<br />
A obra <strong>de</strong> Gloria Perez traz a marca da obsessÇo da autora pelo novo. Suas telenovelas<br />
parecem caminhar ä frente do tempo, antecipar a realida<strong>de</strong>, levantar o vàu do <strong>de</strong>sconhecido.<br />
Fascinada pelos novos <strong>de</strong>safios impostos pela tecnologia, a autora gosta <strong>de</strong> <strong>de</strong>sbravar questâes<br />
para as quais a humanida<strong>de</strong> ainda nÇo tem resposta, impasses morais e àticos cujos<br />
fundamentos nÇo encontram referÖncias na histÑria 319 . Muitas vezes acusada <strong>de</strong> escrever<br />
ficÅÇo cientÉfica (como quando introduziu a internet em “Explo<strong>de</strong> coraÅÇo”, para espanto da<br />
populaÅÇo brasileira que ainda <strong>de</strong>sconhecia o recurso) e <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirar a respeito dos fenòmenos<br />
naturais da vida (como quando, em “Barriga <strong>de</strong> aluguel”, discutiu a maternida<strong>de</strong> a partir da<br />
experiÖncia entÇo quase <strong>de</strong>sconhecida <strong>de</strong> alugar o ëtero para gerar filho alheio), Gloria Perez<br />
à uma autora antenada aos diversos sinais que a vida mo<strong>de</strong>rna emite. Do dia-a-dia do<br />
noticiário, do testemunho dos dramas humanos, das <strong>de</strong>scobertas da ciÖncia, do burburinho das<br />
ruas ─ da simples experiÖncia da realida<strong>de</strong>, enfim ─ extrai as informaÅâes que a afetam mais<br />
fortemente: essa acreana criada isolada do mundo atà os 16 anos tem profundo interesse por<br />
gente. ï o impacto que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> promove na vida das gentes que lhe inspira a<br />
criativida<strong>de</strong>. A sensibilida<strong>de</strong> para o novo aguÅa seus sentidos e <strong>de</strong>safia sua imaginaÅÇo. A<br />
riqueza <strong>de</strong> seu universo ficcional acaba por oferecer ao pëblico mais que uma simples histÑria<br />
<strong>de</strong> amor em capÉtulos: a novelista convida os telespectadores a experimentar a vida em muitas<br />
dimensâes ─ a realista, que promove o reconhecimento; a da fantasia, que favorece o sonho; a<br />
cultural, que proporciona o conforto; a estrangeira, que <strong>de</strong>sperta o estranhamento; a mÉstica,<br />
que estimula a transcendÖncia; a lëdica, que propicia o encantamento; e a especulativa, que<br />
provoca a criaÅÇo <strong>de</strong> novas referÖncias. Talvez por isso suas telenovelas sejam vistas<br />
igualmente como polÖmicas, diferentes e fascinantes.<br />
Gloria Perez escreve telenovelas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1983, quando foi colaboradora <strong>de</strong> Janete Clair<br />
na novela “Eu prometo”, cujo final assumiu sozinha, <strong>de</strong>pois da morte da titular. De lá para cá,<br />
foram nove telenovelas (apenas uma em parceria com outro autor, no caso “Partido alto”, com<br />
Agnaldo Silva), trÖs minissàries e dois episÑdios <strong>de</strong> seriados. Especialmente em suas<br />
telenovelas, a impressionante imaginaÅÇo criativa da autora e seu faro para o novo costumam<br />
gerar polÖmicas antes mesmo <strong>de</strong> o folhetim ir ao ar: muitas obras ficaram engavetadas na<br />
emissora por alguns anos, <strong>de</strong>vido ao receio <strong>de</strong> levar para a televisÇo brasileira temas-tabu ou<br />
pouco afeitos ä superficialida<strong>de</strong> inerente ao gÖnero. Determinada, a novelista rompeu a<br />
319 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 481.<br />
162
esistÖncia da emissora e do pëblico contra o <strong>de</strong>sconhecido e conquistou sucesso. Falou dos<br />
preconceitos contra a AIDS (em sua adaptaÅÇo do conto Carmem, <strong>de</strong> Merimàe, para a novela<br />
<strong>de</strong> mesmo nome exibida na TV Manchete, em 1987); discutiu a contrataÅÇo <strong>de</strong> uma barriga <strong>de</strong><br />
aluguel por um casal que queria realizar o sonho <strong>de</strong> ter filho (em “Barriga <strong>de</strong> Aluguel”, <strong>de</strong><br />
1990, já <strong>de</strong> volta ä TV Globo); abordou a troca <strong>de</strong> crianÅas na maternida<strong>de</strong> e o transplante <strong>de</strong><br />
ÑrgÇos (em “De corpo e alma”, <strong>de</strong> 1992); chamou a atenÅÇo para o problema das crianÅas<br />
<strong>de</strong>saparecidas (em “Explo<strong>de</strong> coraÅÇo”, <strong>de</strong> 1995); discutiu a cultura muÅulmana, a clonagem<br />
humana e a <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica (em “O Clone”, <strong>de</strong> 2001); abordou a imigraÅÇo ilegal e a<br />
<strong>de</strong>ficiÖncia fÉsica (em “Amàrica”, <strong>de</strong> 2005); e, por fim, pòs em cena a diferenÅa cultural e a<br />
doenÅa mental (em “Caminho das índias”, <strong>de</strong> 2009). Contun<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>safiadores, tais temas<br />
foram abraÅados pela autora com tanto entusiasmo e serieda<strong>de</strong> que acabaram dando origem a<br />
gran<strong>de</strong>s campanhas <strong>de</strong> mobilizaÅÇo popular, o que fez da novelista a pioneira daquilo que veio<br />
a ser conhecido como “merchandising social”. Hoje, as campanhas sociais que tanto enchem<br />
<strong>de</strong> orgulho a teledramaturga sÇo um dos traÅos que mais fortemente i<strong>de</strong>ntificam seu trabalho.<br />
Embora polÖmicos, os folhetins <strong>de</strong> Gloria Perez sÇo, como foi dito anteriormente,<br />
diferentes e fascinantes ─ e estas caracterÉsticas tÖm marcado mais especificamente as tramas<br />
que tratam da diversida<strong>de</strong> cultural. “O Clone” e “Caminho das índias” foram telenovelas tÇo<br />
diferentes <strong>de</strong> tudo o que já se tinha visto na televisÇo brasileira que a crÉtica especializada<br />
chegou a acreditar numa alteraÅÇo <strong>de</strong>finitiva no DNA autoral da novelista: muitos insistiram na<br />
classificaÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez como uma autora que escreve sobre culturas diferentes. “Essa à<br />
uma lenda recente”, comenta ela para, em seguida, reafirmar: “o que os meus trabalhos tÖm em<br />
comum [...] à um empenho em trazer para o pëblico alguma coisa diferente!” 320 . Embora toda<br />
telenovela da autora traga um tema novo e uma abordagem original, nÇo há como negar que as<br />
duas obras aqui estudadas, exatamente por tratarem <strong>de</strong> culturas distantes da brasileira,<br />
ofereceram um conjunto <strong>de</strong> narrativas (textuais, visuais, musicais e simbÑlicas) que se revelou<br />
diferente tambàm na linguagem e no espetáculo televisivo apresentado. O foco no Oriente e a<br />
roupagem <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fada fizeram o resto do trabalho: tornaram fascinante o diferente.<br />
A combinaÅÇo <strong>de</strong>stes trÖs atributos ─ polÖmico, diferente e fascinante ─ serve aqui <strong>de</strong><br />
fio condutor para o estudo da teledramaturgia <strong>de</strong> Gloria Perez a partir da representaÅÇo do Eu<br />
e do Outro que a autora oferece em “O Clone” e “Caminho das índias”.<br />
320 Trechos das respostas enviadas por Gloria Perez ä revista Época (que publicou a entrevista em sua ediÅÇo <strong>de</strong><br />
24/09/2009), postados no blog da autora em 27 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 nov. 2009.<br />
163
8.1 GLñRIA-JANETE-GLORIA, UMA LINHAGEM NO FOLHETIM TELEVISIVO<br />
Gloria Perez à discÉpula <strong>de</strong> Janete Clair que, por sua vez, suce<strong>de</strong>u GlÑria Magadan na<br />
soberania das telenovelas brasileiras. As trÖs gran<strong>de</strong>s damas do folhetim enfeixam uma<br />
linhagem por vezes tortuosa que sugere uma estàtica singular <strong>de</strong> teledramaturgia, um condÇo<br />
especial na arte <strong>de</strong> contar histÑrias e tocar a alma do brasileiro. SÇo mulheres ënicas, que<br />
viveram tempos diferentes, mas que, em suas obras ficcionais, souberam captar e traduzir com<br />
fina sensibilida<strong>de</strong> para os sinais <strong>de</strong> cada àpoca os interesses e <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> um povo.<br />
A novelista cubana exilada no Brasil reinou soberana nos primeiros anos da telenovela<br />
no Brasil, entre 1964 e 1969, impulsionada por seu estilo fantasioso e melodramático <strong>de</strong><br />
contar histÑrias <strong>de</strong> amor que se passavam em terras distantes e exÑticas ou em àpocas<br />
passadas. Segundo Nilson Xavier, GlÑria Magadan, mesmo sem compromisso com a<br />
realida<strong>de</strong> brasileira, fazia estrondoso sucesso com sua fÑrmula inspirada nas radionovelas<br />
latinoamericanas: “histÑrias fantasiosas e extremamente romênticas, ambientadas nos mais<br />
diversos paÉses, com cenários luxuosos e extravagantes” 321 . “Seus vilâes eram maus ao<br />
extremo; suas mocinhas, sofredoras e in<strong>de</strong>fesas; e seus herÑis, corajosos e perfeitos em<br />
caráter” 322 , completa o pesquisador. Pelos tÉtulos <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong> suas novelas po<strong>de</strong>-se ter i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> seu universo ficcional: “O sheik <strong>de</strong> Agadir”, que contava a histÑria da paixÇo <strong>de</strong> um sheik<br />
árabe por uma princesa francesa, na FranÅa ocupada pelos nazistas; “A rainha louca”, drama<br />
vivido pela mulher do imperador francÖs no Màxico durante as guerras <strong>de</strong> anexaÅÇo <strong>de</strong><br />
NapoleÇo III; “Demian, o justiceiro/O homem proibido” (a novela teve tÉtulos diferentes em<br />
SÇo Paulo e no Rio), que traz a saga <strong>de</strong> um marajá <strong>de</strong>stronado em busca do po<strong>de</strong>r e do amor<br />
num principado na índia, no inÉcio do sàculo XX; e “A gata <strong>de</strong> vison”, uma trama <strong>de</strong> violÖncia<br />
envolvendo a mocinha do tÉtulo, gêngsters e policiais na Chicago dos anos 1920.<br />
Depois <strong>de</strong> tantas aventuras em paraÉsos distantes, o reinado <strong>de</strong> GlÑria Magadan estava<br />
por um fio no final da dàcada <strong>de</strong> 1960: com a renovaÅÇo introduzida por “Beto Rockfeller”,<br />
novela <strong>de</strong> Bráulio Pedroso exibida entre 1968 e 1969 na TV Tupi, a audiÖncia e mesmo a<br />
classe artÉstica <strong>de</strong>ixavam claro seu <strong>de</strong>sejo por histÑrias genuinamente brasileiras, com tipos e<br />
cenários locais. Foi a senha para que o talento e a competÖncia <strong>de</strong> Janete Clair <strong>de</strong>stronassem a<br />
po<strong>de</strong>rosa supervisora <strong>de</strong> telenovelas da TV Globo, <strong>de</strong>mitida em 1969. Janete já fazia sucesso<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o rádio, on<strong>de</strong> havia escrito 31 radionovelas. Suas primeiras telenovelas na TV Tupi<br />
eram tÇo populares que a TV Globo recorreu a ela quando precisou <strong>de</strong> um autor que<br />
321 XAVIER, disponÉvel em: . Acesso em 18 nov. 2009.<br />
322 XAVIER, loc. cit.<br />
164
socorresse em 1967 a novela <strong>de</strong> Emiliano Queiroz “Anastácia, a mulher sem <strong>de</strong>stino”, que<br />
amargava baixa audiÖncia e altos custos <strong>de</strong> produÅÇo. Num primeiro momento, entre 1967 e<br />
1969, enquanto trabalhou sob a supervisÇo <strong>de</strong> Magadan, Janete ainda teve <strong>de</strong> se sujeitar ä<br />
estàtica da titular: “Sangue e areia”, a primeira novela que assinou sozinha na emissora, ainda<br />
tinha como personagem central um filho <strong>de</strong> toureiro disposto a seguir os caminhos do pai<br />
contra o <strong>de</strong>sejo da famÉlia; “Passo dos ventos” se <strong>de</strong>senvolvia em torno <strong>de</strong> um casal formado<br />
por um nobre falido e uma her<strong>de</strong>ira milionária no Haiti; “Os acorrentados”, novela escrita<br />
para a TV Rio, falava da luta <strong>de</strong> amor e Ñdio entre um guerrilheiro e uma freira expulsa <strong>de</strong> um<br />
convento na Jamaica; “Rosa Rebel<strong>de</strong>” se passava na Espanha sob as investidas das tropas <strong>de</strong><br />
NapoleÇo, no sàculo XIX.<br />
SÑ <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>missÇo <strong>de</strong> Magadan, Janete pò<strong>de</strong> assumir os temas e cenários<br />
nacionais, inaugurando uma nova era na teledramaturgia brasileira: com “Vàu <strong>de</strong> Noiva”, a<br />
autora abandonou o dramalhÇo, trazendo uma histÑria como as que aconteciam na vida real.<br />
Uma moÅa humil<strong>de</strong>, um rico corredor <strong>de</strong> automÑveis, um amor impossÉvel pela diferenÅa<br />
social, uma gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada, uma mÇe <strong>de</strong> criaÅÇo e a disputa das mÇes legÉtima e adotiva<br />
pela guarda da crianÅa ─ a realida<strong>de</strong> nacional estava nas telas. Como diz Xavier, lá estavam<br />
presentes o automobilismo como esporte da moda (Emerson Fittipaldi <strong>de</strong>spontava nas pistas<br />
<strong>de</strong> corrida), um “Rio <strong>de</strong> Janeiro luminoso, casa <strong>de</strong> campo em PetrÑpolis, autÑdromos<br />
movimentados”, uma trama “mo<strong>de</strong>rna e arejada” 323 . “IrmÇos Coragem”, “Selva <strong>de</strong> pedra”,<br />
“Fogo sobre terra”, “Pecado capital”, “O astro”, “Pai herÑi” e tantas outras <strong>de</strong>ixaram no<br />
imaginário popular a associaÅÇo do nome da autora a tramas capazes <strong>de</strong> mobilizar o paÉs:<br />
personagens marcantes, temas nacionais, tramas centrais fortes e numerosos eixos paralelos.<br />
Janete Clair tornou-se a “Maga das oito”, a mestra reverenciada ainda hoje por sua<br />
contribuiÅÇo ao gÖnero ─ contribuiÅÇo que traz o peso <strong>de</strong> uma produÅÇo impressionante. Entre<br />
1968 e 1983, foi dona absoluta do horário das 20 horas, “latifëndio” que lhe ren<strong>de</strong>u milhâes<br />
<strong>de</strong> espectadores. Sem teorias (“Nunca estu<strong>de</strong>i para isso” 324 , comentava), a autora parecia<br />
escrever por intuiÅÇo, uma sensibilida<strong>de</strong> adquirida em sua vida comum <strong>de</strong> dona-<strong>de</strong>-casa, <strong>de</strong><br />
telespectadora: “Eu faÅo a novela que eu gostaria <strong>de</strong> ver” 325 , sintetiza. Foram a intuiÅÇo e a<br />
i<strong>de</strong>ntificaÅÇo com o povo que assistia suas novelas que lhe permitiram enten<strong>de</strong>r o que o<br />
323 XAVIER, disponÉvel em: . Acesso em 18 nov. 2009.<br />
324 CLAIR, s/d, entrevista concedida a Leda Nagle. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 1 nov. 2009.<br />
325 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
165
pëblico gostaria <strong>de</strong> ver, <strong>de</strong> sentir em cada momento, se era alegria, tristeza ou drama 326 . Em<br />
suas novelas, combinava “romance com aventura numa linguagem mo<strong>de</strong>rna”, sem dramalhÇo,<br />
para que o pëblico tivesse um “bom espetáculo” e tambàm uma boa liÅÇo <strong>de</strong> moral ao final<br />
(Janete assumiu em entrevista ä Veja 327 que sempre tinha o compromisso <strong>de</strong> transmitir algo<br />
importante para o pëblico ─ era o seu jeito <strong>de</strong> cumprir seu papel social com o paÉs):<br />
166<br />
Os ingredientes necessários sÇo amor, aventuras, morte e suspense. Mas nÇo se po<strong>de</strong><br />
abusar <strong>de</strong>les. Sei atà on<strong>de</strong> o pëblico suporta uma emoÅÇo e à essa medida exata que<br />
tem me ajudado. Uma boa novela à justamente aquela bem dosada. NÇo gosto <strong>de</strong><br />
cenas longas. Tambàm nÇo se po<strong>de</strong> abusar da dinêmica. VocÖ joga um impacto na<br />
histÑria, mas atà on<strong>de</strong> ele po<strong>de</strong> ser explorado? NÇo mais do que em trÖs capÉtulos. O<br />
drama tem que ser entremeado com o riso. Nunca chocar sem na cena seguinte dar<br />
uma oportunida<strong>de</strong> para o pëblico respirar. 328<br />
De GlÑria Magadan a Janete Clair, a telenovela ganhou nÇo apenas no realismo dos<br />
temas abordados e na troca do dramalhÇo pelo romance mo<strong>de</strong>rno. Mais prÑximas do mundo<br />
contemporêneo e da realida<strong>de</strong> brasileira, as tramas e as personagens ganharam em<br />
complexida<strong>de</strong>. Com Janete, as tramas abandonaram a linearida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> girar em torno<br />
<strong>de</strong> uma histÑria sÑ, em torno “do herÑi e da heroÉna”, para se <strong>de</strong>sdobrar em várias histÑrias; as<br />
gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e suas contradiÅâes ganharam as telas da tevÖ, trazendo ricos e pobres e<br />
“refletindo o fenòmeno da rápida industrializaÅÇo do Brasil” 329 , apÑs os anos 1960; as<br />
personagens, fossem herÑis ou vilâes, <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser construÉdas <strong>de</strong> forma maniqueÉsta,<br />
passando a ter qualida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>feitos como todo mundo, ganhando em profundida<strong>de</strong> e<br />
procurando “evi<strong>de</strong>nciar o caráter contraditÑrio da criatura humana” 330 . As novida<strong>de</strong>s<br />
atingiram especialmente as personagens femininas, que <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser donzelas in<strong>de</strong>fesas e<br />
passaram a ser produtivas, ocupando lugar no mundo do trabalho. Janete introduziu tambàm a<br />
unida<strong>de</strong> do capÉtulo enquanto espetáculo. Nas palavras da discÉpula e colaboradora Gloria<br />
Perez, os capÉtulos, que antes eram “escritos a metro”, concluÉdos quando o tempo <strong>de</strong> exibiÅÇo<br />
encerrava, passaram a ser concebidos com a perspectiva do final, criados para encerrar num<br />
clÉmax que <strong>de</strong>ixava um gancho para o capÉtulo seguinte.<br />
Muito mais do que reverenciar a gran<strong>de</strong> “Dama das oito” e apontar suas contribuiÅâes<br />
formais e estruturais para o gÖnero folhetim televisivo, Gloria Perez se orgulha <strong>de</strong> ter<br />
compartilhado da cartilha mágica <strong>de</strong> Janete Clair e <strong>de</strong> ter convivido com ela em seus<br />
326 CLAIR, 2003. Entrevista concedida a Lucia Rito, “A arte popular das novelas”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 12 set. 2009.<br />
327 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
328 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
329 NOGUEIRA, 2002, pp. 114-115.<br />
330 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.
momentos <strong>de</strong> criaÅÇo quando a titular precisou da colaboraÅÇo da entÇo aspirante a novelista<br />
para escrever “Eu prometo”, sua <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira novela (Janete já estava doente quando assumiu o<br />
compromisso <strong>de</strong> escrever sua primeira novela para o horário das 22 horas e, pela primeira vez,<br />
precisou <strong>de</strong> colaborador). Tal parceria lhe valeu a experiÖncia ënica <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a escrever no<br />
estilo Janete Clair. Com proprieda<strong>de</strong>, a novata valeu-se <strong>de</strong> seus conhecimentos sobre o<br />
folhetim impresso do sàculo XIX (o uso <strong>de</strong> ganchos para criar expectativa para o episÑdio do<br />
jornal do dia seguinte e a tàcnica <strong>de</strong> privilegiar o sensacional em <strong>de</strong>trimento da coerÖncia)<br />
para se aproximar do jeito contagiante <strong>de</strong> Janete escrever. A principiante acreana valeu-se<br />
tambàm <strong>de</strong> sua intimida<strong>de</strong> regional com a literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l: cresceu ouvindo histÑrias <strong>de</strong><br />
aventura que falavam <strong>de</strong> “vidas que sofriam gran<strong>de</strong>s oscilaÅâes, pessoas que tinham que<br />
vencer gran<strong>de</strong>s obstáculos para ser felizes” 331 . Tais foram as senhas que lhe valeram a sintonia<br />
com a mestra das telenovelas.<br />
Por mais que a proximida<strong>de</strong> com a “Maga das Oito” tenha lhe franqueado o acesso ä<br />
preciosa cartilha da autora, talvez tenha sido justamente a forte influÖncia do cor<strong>de</strong>l que<br />
permitiu ä novata acreana trilhar caminho original <strong>de</strong>ntre os muitos seguidores da “escola Janete<br />
Clair <strong>de</strong> telenovela”. NÇo admira que Gloria Perez tivesse o cor<strong>de</strong>l como referÖncia: trazida da<br />
penÉnsula hispano-lusitana pelos colonos que <strong>de</strong>sembarcaram no Nor<strong>de</strong>ste brasileiro nos idos<br />
dos sàculos XVI e XVII, a literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l criou aqui raÉzes tÇo profundas que o imaginário<br />
da regiÇo ficou <strong>de</strong>finitivamente marcado pelo gÖnero. Costurada em linguagem popular e<br />
acostumada ä errência <strong>de</strong> atrair o povo das praÅas, feiras e mercados, essa narrativa simples e<br />
poàtica se vale da oralida<strong>de</strong> (que posteriormente se materializa no folheto impresso) para<br />
conduzir o pëblico pelos caminhos do humor, da peripàcia, da surpresa, das gran<strong>de</strong>s sagas e dos<br />
<strong>de</strong>vaneios. No exercÉcio ágil da imaginaÅÇo, os poetas <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l misturam enredos <strong>de</strong> romances<br />
famosos com fatos importantes do paÉs, crimes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> repercussÇo e relatos sobrenaturais,<br />
mantendo em tensÇo, segundo Ivan Cavalcanti ProenÅa, “a notÉcia e o acontecimento com a<br />
‘inspiraÅÇo’ e os temas dos folhetos” 332 . Valendo-se <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> poàtica, reinventam e recriam<br />
o mundo ao mesmo tempo em que sÇo tÇo realistas ─ e <strong>de</strong>ssa combinaÅÇo extraem o encanto e a<br />
forÅa do cor<strong>de</strong>l, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Ariano Suassuna 333 . Depois <strong>de</strong> inëmeras visitas dominicais aos<br />
mercados <strong>de</strong> Rio Branco, os traÅos do cor<strong>de</strong>l ficaram irremediavelmente gravados na memÑria<br />
da menina que, já adulta, <strong>de</strong>sembarcou no Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>de</strong>scobriu que podia fazer da rica<br />
matària-prima do cor<strong>de</strong>lista uma inspiraÅÇo para suas novelas <strong>de</strong> tevÖ.<br />
331 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 434.<br />
332 PROENóA, 1976, p. 38.<br />
333 SUASSUNA, “A arte popular do Brasil”, 1969, p. 40.<br />
167
Gloria Perez alÅou vòo prÑprio e construiu uma obra singular: combina a riqueza <strong>de</strong><br />
sua imaginaÅÇo criativa e <strong>de</strong> sua preocupaÅÇo social com a tàcnica herdada <strong>de</strong> Janete Clair e<br />
ainda, em certa medida, resgata a opÅÇo <strong>de</strong> GlÑria Magadan pela fantasia. Especialmente em<br />
“O Clone” e “Caminho das índias”, e tambàm em “Explo<strong>de</strong> coraÅÇo”, novelas que abordam<br />
mundos distantes e culturas arcaicas (a muÅulmana, a indiana e a cigana, respectivamente),<br />
algo do espÉrito da autora cubana parece encarnar nas cenas que trazem cenários<br />
extravagantes, trajes tÉpicos, costumes milenares e danÅas exÑticas. Embora o estilo<br />
excessivamente fantasioso (rocambolesco atà) <strong>de</strong> Magadan nÇo tivesse, lá nos idos da dàcada<br />
<strong>de</strong> 1960, o compromisso <strong>de</strong> Gloria Perez <strong>de</strong> respeitar a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais culturas e <strong>de</strong><br />
estabelecer uma ponte com a realida<strong>de</strong> brasileira, à impossÉvel nÇo encontrar paralelos entre<br />
as duas quando se vasculha a obra da pioneira das telenovelas brasileiras, novelas escritas por<br />
ela ou conduzidas sob sua forte supervisÇo. Lá estÇo a famosa “O sheik <strong>de</strong> Agadir”, cujo<br />
personagem central era um aventureiro árabe; “Demian, o justiceiro/O homem proibido”, que<br />
fala <strong>de</strong> marajás indianos; e “O rei dos ciganos”, que, como o prÑprio tÉtulo diz, narra o<br />
universo cigano.<br />
A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer o pëblico sonhar tambàm está na cartilha <strong>de</strong> Janete, sÑ que nÇo mais<br />
usando o recurso <strong>de</strong> refëgio em terras estrangeiras ou em tempos passados, como fez Magadan.<br />
No terreno da fantasia, Gloria Perez parece beber <strong>de</strong> ambas as fontes: oferece igualmente o<br />
conto <strong>de</strong> fadas e o real, o arcaico e o mo<strong>de</strong>rno, a realida<strong>de</strong> distante e a prÑxima, num equilÉbrio<br />
que produz realismo e fascinaÅÇo. Como suas antecessoras, ela nÇo tem medo do ridÉculo ─<br />
gosta <strong>de</strong> citar Nelson Rodrigues: “SÑ os imbecis tÖm medo do ridÉculo” 334 . Sequer se abala com<br />
as crÉticas que con<strong>de</strong>nam como “brega” a estàtica que reveste o reino <strong>de</strong> suas fantasias.<br />
Assumidamente, procura levar para as telas o “<strong>de</strong>spudor” com que Janete fazia o Brasil inteiro<br />
sonhar; como sua mestra, procura nÇo ter “medo <strong>de</strong> tocar nenhuma corda da emoÅÇo” 335 .<br />
168<br />
Assim, da tàcnica narrativa <strong>de</strong> Janete Clair, muitos foram os traÅos incorporados ä<br />
dramaturgia <strong>de</strong> Gloria Perez: a construÅÇo <strong>de</strong> personagens humanos e complexos, nada<br />
maniqueÉstas; o <strong>de</strong>staque ao po<strong>de</strong>r das personagens femininas; a criaÅÇo <strong>de</strong> uma trama central<br />
forte da qual partem várias sub-tramas importantes; a intercalaÅÇo entre cenas dramáticas e<br />
còmicas; o compromisso <strong>de</strong> transmitir algo importante para o pëblico (suas campanhas<br />
sociais); a exploraÅÇo do sensacional muitas vezes em <strong>de</strong>trimento da coerÖncia; a preparaÅÇo<br />
<strong>de</strong> capÉtulos que terminam em clÉmax, <strong>de</strong>ixando gancho forte para o dia seguinte; a tentativa<br />
<strong>de</strong> abrir e fechar o capÉtulo com cenas da trama principal; e a preocupaÅÇo em distribuir as<br />
334 A frase está impressa num pequeno quadro que a autora <strong>de</strong>ixa em sua mesa <strong>de</strong> trabalho a tÉtulo <strong>de</strong> inspiraÅÇo.<br />
335 Gloria Perez sobre Janete Clair, in MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 435.
aÅâes importantes por entre os primeiros dias da semana, <strong>de</strong> modo a que nenhum nÑ essencial<br />
para a trama se <strong>de</strong>senrole entre a sexta e o sábado, dias <strong>de</strong> menor audiÖncia.<br />
GlÑria Magadan, Janete Clair e Gloria Perez integram uma linhagem <strong>de</strong> autoras<br />
intuitivas e afinadas com o gosto popular, uma sensibilida<strong>de</strong> que lhes <strong>de</strong>u a medida <strong>de</strong> que,<br />
acima <strong>de</strong> tudo, telenovela <strong>de</strong>ve ser um espetáculo bom <strong>de</strong> se ver. Embora Magadan, ao final<br />
<strong>de</strong> sua carreira brasileira <strong>de</strong> sucesso, tenha permitido que a prepotÖncia do pioneirismo<br />
abafasse os sinais da audiÖncia que já clamava por realismo, sua dramaturgia foi construÉda<br />
com base na intuiÅÇo <strong>de</strong> que o brasileiro que testemunhava os primeiros anos da ditadura<br />
carecia <strong>de</strong> sonho e rotas <strong>de</strong> fuga da realida<strong>de</strong>. O faro <strong>de</strong> telespectadora e dona-<strong>de</strong>-casa<br />
permitiu que Janete captasse os novos sinais trazidos pela dàcada <strong>de</strong> 1970: em suas novelas, o<br />
estreitamento da distência entre sonho e vida real parecia indicar que nem sÑ <strong>de</strong> doutrinaÅÇo<br />
i<strong>de</strong>olÑgica se faz a resistÖncia; que a ficÅÇo e a fantasia tambàm po<strong>de</strong>m ajudar a pensar a<br />
realida<strong>de</strong>, mesmo que fosse a realida<strong>de</strong> construÉda por ela na narrativa e mesmo que a<br />
verossimilhanÅa fosse por vezes <strong>de</strong>sprezada. Curiosamente, tal forma <strong>de</strong> ver seu papel como<br />
escritora ren<strong>de</strong>u ä autora aborrecimentos tanto com a censura fe<strong>de</strong>ral quanto com os crÉticos <strong>de</strong><br />
esquerda que a acusavam <strong>de</strong> alienar os brasileiros, oferecendo “Ñpio” ao povo. Já a intuiÅÇo <strong>de</strong><br />
Gloria Perez se alimenta dos muitos canais <strong>de</strong> percepÅÇo que o mundo globalizado e digital lhe<br />
oferece: a autora, que nÇo se isola da vida nem quando está escrevendo novela, nÇo sÑ se<br />
mantàm em contato direto com o pëblico nas ruas da cida<strong>de</strong> como tambàm faz da internet sua<br />
mais ampla janela para o mundo. Por ali chegam o noticiário dos mais distantes pontos do<br />
planeta, as informaÅâes e opiniâes dos sites especializados e os comentários postados por todo<br />
tipo <strong>de</strong> gente em seu blog “De tudo um pouco” 336 . Das ruas e da internet vÖm os mëltiplos<br />
sinais que as antenas sensÉveis <strong>de</strong> Gloria Perez captam sobre a alma <strong>de</strong> seu pëblico.<br />
A sensibilida<strong>de</strong> e a tàcnica narrativa empregadas para atrair o interesse e fascinar a<br />
audiÖncia sÇo o combustÉvel com que Gloria Perez abastece sua máquina <strong>de</strong> seduzir ─ sim,<br />
porque contar histÑrias à um jogo <strong>de</strong> seduÅÇo. Se sua dramaturgia coleciona histÑrias <strong>de</strong><br />
sucesso popular, isso se dá em gran<strong>de</strong> parte graÅas ä maneira arrebatadora com que os temas<br />
escolhidos apaixonam a autora. Portanto, a qualida<strong>de</strong> da obra da novelista se <strong>de</strong>ve nÇo sÑ ä<br />
sua tàcnica narrativa como tambàm ao entusiasmo com que escreve. (NÇo se po<strong>de</strong> negar, no<br />
entanto, que a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser autora <strong>de</strong> horário nobre na TV Globo e a pressÇo <strong>de</strong><br />
emplacar o sucesso esperado pela emissora e pelos patrocinadores (alàm dos resultados<br />
profissionais e financeiros resultantes disso) venham a representar um combustÉvel <strong>de</strong> alto<br />
336 “De tudo um pouco”, disponÉvel em: .<br />
169
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> propulsÇo para sua imaginaÅÇo.) A autora afirma 337 que sÑ se entrega a temas que a<br />
mobilizem, agucem sua curiosida<strong>de</strong>. Em “O Clone” e “Caminho das índias”, a graduada e<br />
quase pÑs-graduada em HistÑria nÇo se conteve diante da dobra do tempo que fez passado e<br />
presente coexistirem nas culturas árabe e indiana. Tanto o que se viu nas telenovelas como o<br />
que ficou registrado em seu blog durante os ëltimos anos dÇo mostra da gran<strong>de</strong> paixÇo <strong>de</strong><br />
Gloria Perez por estes dois mundos.<br />
8.2 <strong>ENTRE</strong> <strong>MUNDOS</strong> DIFERENTES<br />
“O Clone” e “Caminho das índias” foram novelas que se passaram na ponte aàrea<br />
entre o Brasil e o estrangeiro, entre o Oci<strong>de</strong>nte e o Oriente. Cada uma <strong>de</strong>las oferecia dois<br />
eixos narrativos: na primeira, a trama se dividia entre o bairro carioca <strong>de</strong> SÇo CrisÑvÇo e a<br />
Medina <strong>de</strong> Fez, parte islêmica da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fez, no Marrocos; na segunda, a histÑria<br />
transitava entre dois bairros cariocas, Barra da Tijuca e Lapa, e a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jaipur, na índia.<br />
Embora o nëcleo indiano tenha tido presenÅa mais marcante do que o nëcleo muÅulmano (em<br />
“O Clone” o foco central era a clonagem humana), ambas as telenovelas revelaram-se gran<strong>de</strong>s<br />
narrativas sobre o Outro. Se a diferenÅa cultural entre o Brasil e cada um dos paÉses<br />
estrangeiros retratados foi o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>stas duas telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, os<br />
temas paralelos abordados pela autora ofereceram ao pëblico a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver muitos<br />
Outros instalados na cultura brasileira. Sem o alar<strong>de</strong> e os cÑdigos visuais do “Outro-<br />
estrangeiro” (aquele que se encontra fora da cultura local), os “Outros-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo”<br />
(aqueles que a socieda<strong>de</strong> segrega internamente por preconceito ou <strong>de</strong>sconhecimento)<br />
ganharam visibilida<strong>de</strong> pelo compromisso da autora em aproveitar a popularida<strong>de</strong> do gÖnero<br />
para <strong>de</strong>nunciar os dramas dos excluÉdos. Assim, aos Outros muÅulmanos e indianos,<br />
somaram-se os Outros <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes mentais. E a todos eles, a novelista<br />
contrapòs o Eu brasileiro, “normal” e “sÇo”.<br />
Enten<strong>de</strong>r o jogo <strong>de</strong> espelhos que a autora propâe exige uma atenÅÇo especial ao<br />
reconhecimento e ä diferenciaÅÇo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e da alterida<strong>de</strong>. Todorov à prÑdigo em suas<br />
caracterizaÅâes do Eu e do Outro:<br />
170<br />
Po<strong>de</strong>m-se <strong>de</strong>scobrir os outros em si mesmo, e perceber que nÇo se à uma substência<br />
homogÖnea, e radicalmente diferente <strong>de</strong> tudo o que nÇo à si mesmo; eu à um outro.<br />
Mas cada um dos outros à um eu tambàm, sujeito como eu. Somente meu ponto <strong>de</strong><br />
vista, segundo o qual todos estÇo lá e eu estou sÑ aqui, po<strong>de</strong> realmente separá-los e<br />
337 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 243.
171<br />
distingui-los <strong>de</strong> mim. Posso conceber os outros como uma abstraÅÇo, como uma<br />
instência da configuraÅÇo psÉquica <strong>de</strong> todo indivÉduo, como o Outro, outro ou outrem<br />
em relaÅÇo a mim. Ou entÇo como um grupo social concreto ao qual nós nÇo<br />
pertencemos. Este grupo, por sua vez, po<strong>de</strong> estar contido numa socieda<strong>de</strong>: as mulheres<br />
para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. Ou po<strong>de</strong> ser<br />
exterior a ela, uma outra socieda<strong>de</strong> que, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do caso, será prÑxima ou<br />
longÉnqua: seres que em tudo se aproximam <strong>de</strong> nÑs, no plano cultural, moral e<br />
histÑrico, ou <strong>de</strong>sconhecidos, estrangeiros cuja lÉngua e costumes nÇo compreendo, tÇo<br />
estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma<br />
espàcie. 338 [grifos do autor]<br />
Em uma narrativa ficcional que opâe muitos Outros a um Eu, Gloria Perez fala da<br />
relativida<strong>de</strong> das distências estabelecidas na diferenÅa. De que maneira os muÅulmanos, os<br />
indianos, os <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e os doentes mentais sÇo vistos como pertencentes ä<br />
mesma “espàcie” sob a qual se encontra o Eu brasileiro? Ao voltar o seu foco para o mundo<br />
árabe e indiano, à o Brasil que a novelista expâe. Para conhecÖ-lo, à preciso <strong>de</strong>scobrir o Outro<br />
em suas várias representaÅâes.<br />
“O Clone” vestiu seu Outro muÅulmano <strong>de</strong> tënicas, djelabas, burkas e vàus; adotou a<br />
barba para os homens, cabelos longos e soltos para as mulheres; reuniu milhares <strong>de</strong>les em<br />
multidâes nas ruas e nos mercados; abandonou-o no <strong>de</strong>serto e em suas conversas com Deus.<br />
Pintou os homens com tintas autoritárias, senhores soberanos dos <strong>de</strong>stinos da famÉlia; os mais<br />
velhos ganharam cores mais severas, o mais sábio recebeu nuances <strong>de</strong> suavida<strong>de</strong> e contornos<br />
menos rÉgidos, os mais jovens traziam os tons da obediÖncia. Confinou as mulheres aos<br />
domÉnios da submissÇo, mas conce<strong>de</strong>u-lhes o dom da sabedoria intuitiva: em sua experiÖncia<br />
feminina, pu<strong>de</strong>ram escolher entre o caminho da resistÖncia (para lutar pelo amor e pelo<br />
sonho), o do <strong>de</strong>svio (para contornar os obstáculos e costurar harmonias) ou o da aceitaÅÇo<br />
(para buscar a felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro dos costumes). Engendrou para elas amores impossÉveis,<br />
casamentos sem amor, relaÅâes regidas pela obediÖncia, exposiÅâes <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>, shows <strong>de</strong><br />
recato, exibiÅâes <strong>de</strong> danÅa do ventre, ameaÅas e castigos. “O Clone” enfeitou as casas dos<br />
muÅulmanos com a<strong>de</strong>reÅos dourados, espelhos, cortinas transparentes e divisÑrias rendilhadas<br />
─ um universo amplo e <strong>de</strong> pà direito altÉssimo abre-se em arcos e colunas, conduzindo o olhar<br />
por superfÉcies que ora refletem e duplicam (clonam) a vida, os corpos e os <strong>de</strong>stinos, ora<br />
encobrem e preservam da exposiÅÇo os medos, as angëstias e os pecados. Rituais religiosos e<br />
festivos, oraÅâes, casamentos escolhidos pelas famÉlias, vidas guiadas pelos <strong>de</strong>sÉgnios <strong>de</strong> Alá:<br />
no tom terroso das casas e das gentes, na luz ensolarada das ruas, na penumbra das velas que<br />
iluminam o interior dos lares, no labirinto do mercado, um mundo distante visto sob o vàu do<br />
mistàrio, um mundo que vai se apresentando pela explicaÅÇo dos mais sábios, pelas respostas<br />
338 TODOROV, 1999, pp. 3-4.
ao estranhamento estrangeiro e pela resistÖncia da mocinha forÅada a fincar raÉzes no<br />
<strong>de</strong>sconhecido.<br />
Já “Caminho das índias” vestiu seu Outro indiano <strong>de</strong> kurtas, turbantes e sáris<br />
luxuosos; pren<strong>de</strong>u o cabelo das mulheres casadas e cobriu-o com vàu diante <strong>de</strong> estranhos;<br />
sujou a roupa dos dálits das ruas; povoou a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> multidâes multicoloridas; engarrafou o<br />
trênsito com carros, tuc-tucs, bicicletas, camelos e elefantes; sentou no meio-fio limpadores<br />
<strong>de</strong> ouvido e <strong>de</strong>ntistas; espalhou pelas esquinas ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> bijuterias e <strong>de</strong> samozas; fez da<br />
vaca sagrada uma visitante costumeira do comàrcio; encheu os lares <strong>de</strong> filhos, netos, tios e<br />
avÑs. Mostrou os mais velhos como pessoas dignas <strong>de</strong> reverÖncia pelo tempo que viveram: a<br />
uns a experiÖncia trouxe sabedoria e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma; a outros, con<strong>de</strong>nou ä amargura e ä<br />
intransigÖncia; e ainda a alguns, conce<strong>de</strong>u a curiosida<strong>de</strong> pelo novo. Conce<strong>de</strong>u aos patriarcas<br />
pulso forte para guiar a famÉlia e a sorte <strong>de</strong> serem verda<strong>de</strong>iramente amados em sua autorida<strong>de</strong>.<br />
Ofereceu äs mulheres o reino da casa, a soberania na educaÅÇo dos filhos e o domÉnio das<br />
especiarias; <strong>de</strong>u-lhes o segredo do cofre e a chave da <strong>de</strong>spensa; proporcionou-lhes ainda um<br />
lugar no mundo do trabalho e o sonho da vida acadÖmica; apresentou-lhes a castida<strong>de</strong> e o<br />
recato como virtu<strong>de</strong>s, o casamento como horizonte <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, e a obediÖncia como <strong>de</strong>ver.<br />
Em “Caminho das índias”, os amplos espaÅos abertos, entrecortados por colunas e arcos,<br />
abrigavam uma <strong>de</strong>coraÅÇo colorida e luminosa, carregada <strong>de</strong> a<strong>de</strong>reÅos religiosos. Festas<br />
tÉpicas e casamentos movimentavam a vida rotineira dos indianos, levando-os para a rua,<br />
fazendo-os louvar a todos os <strong>de</strong>uses, retribuindo com alegria a graÅa da vida. Pela boca <strong>de</strong><br />
sábios, sacerdotes e gurus eram apresentados os ensinamentos religiosos e filosÑficos do<br />
hinduÉsmo, costumes que eram repetidos pelos mais velhos para as novas geraÅâes. Pelos<br />
ouvidos das crianÅas e dos estrangeiros entravam as explicaÅâes sobre a cultura e a histÑria<br />
dos muitos <strong>de</strong>uses: um universo rico em lendas, crendices e mistàrios <strong>de</strong> fà.<br />
A con<strong>de</strong>nsaÅÇo dos mëltiplos e intrincados aspectos das culturas muÅulmana e indiana<br />
no universo <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias” foi capaz <strong>de</strong> construir uma alegoria que<br />
traduziu <strong>de</strong> forma muito prÑxima a experiÖncia <strong>de</strong>stes povos, nÇo obstante a tarefa fosse mais<br />
complexa no mundo árabe do que no mundo hindu. Espalhada por diferentes paÉses e<br />
compartilhada por povos submetidos a variados regimes polÉticos e condiÅâes econòmicas, a<br />
cultura muÅulmana foi obrigada, pelas contingÖncias da narrativa ficcional, a ganhar uma face<br />
ënica e a ocupar um lugar na geopolÉtica do mundo real. Con<strong>de</strong>nsar tantas e tÇo diversificadas<br />
realida<strong>de</strong>s muÅulmanas e ainda fixá-las no cenário do Marrocos, paÉs com raÉzes longÉnquas e<br />
aberto ä mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, talvez tenha sido um exercÉcio <strong>de</strong> sÉntese ficcional <strong>de</strong>masiado <strong>de</strong>licado.<br />
Nada, no entanto, que nÇo seja prÑprio <strong>de</strong> qualquer processo <strong>de</strong> representaÅÇo, qual seja, o <strong>de</strong><br />
172
localizar as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s no espaÅo e no tempo simbÑlicos das tradiÅâes inventadas, naquilo<br />
que Said, em seu artigo “Narrative and Geography” 339 , chama <strong>de</strong> “geografias imaginárias”.<br />
Excessivamente incomodado com a geografia da novela e concretista na percepÅÇo <strong>de</strong> seu<br />
espaÅo simbÑlico, Ab<strong>de</strong>lmalek Cherkaoui Ghazouani, embaixador do Reino <strong>de</strong> Marrocos no<br />
Brasil, queixou-se <strong>de</strong> que muitos da comunida<strong>de</strong> árabe-muÅulmana no paÉs nÇo se viram<br />
representados nas personagens e no estilo <strong>de</strong> vida presentes em “O Clone”:<br />
173<br />
[...] o que po<strong>de</strong>ria ter sido motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> satisfaÅÇo por parte dos marroquinos e <strong>de</strong><br />
toda a comunida<strong>de</strong> árabe-muÅulmana resi<strong>de</strong>nte no Brasil tornou-se uma gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cepÅÇo, pois, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro capÉtulo da novela, parte do seu elenco carregava a<br />
imagem <strong>de</strong> gente cruel, <strong>de</strong> coraÅâes obscuros e privados <strong>de</strong> qualquer sentimento <strong>de</strong><br />
clemÖncia e pieda<strong>de</strong>.<br />
[...] FamÉlia anacrònica, <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los ultrapassados, carregando a marca da onipresenÅa<br />
<strong>de</strong> um tio autoritário e da ausÖncia absoluta do papel da mulher ─ esta ëltima<br />
submetida, no máximo, ao bem-querer dos homens ─, a poligamia correndo a solta e<br />
paisagens, por mais encantadoras que fossem, oferecendo a imagem <strong>de</strong> um Marrocos<br />
beduÉno ou atà mesmo primitivo. 340<br />
Apesar da reaÅÇo do embaixador, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu paÉs sem se dar<br />
conta <strong>de</strong> que o Marrocos da novela era apenas uma locaÅÇo para que o mundo árabe se<br />
materializasse na ficÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez, à preciso registrar que muitos aspectos da cultura<br />
árabe ali apresentados foram responsáveis por uma mudanÅa radical na percepÅÇo dos<br />
brasileiros sobre o muÅulmano. No contexto do noticiário sobre o 11 <strong>de</strong> setembro, a<br />
telenovela soube oferecer seu contraponto humanizado: a intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua famÉlia, a riqueza<br />
<strong>de</strong> sua cultura, a soli<strong>de</strong>z <strong>de</strong> sua fà. Segundo a autora <strong>de</strong> “O Clone”, se na fase da pesquisa, “os<br />
muÅulmanos mostraram-se assustados, temendo que a novela tambàm fosse ser<br />
preconceituosa” e acabasse reforÅando a rejeiÅÇo sentida nas ruas, ao final da novela “eles<br />
ficaram muito agra<strong>de</strong>cidos” 341 .<br />
Embora o muÅulmano do folhetim nÇo fosse a expressÇo fiel do marroquino<br />
cosmopolita e houvesse muito do universo fantasioso <strong>de</strong> As mil e uma noites (na exploraÅÇo<br />
do erotismo da danÅa do ventre, da mÉstica dos vàus e da seduÅÇo da odalisca), ali estavam<br />
representados todos os mëltiplos aspectos da cultura árabe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os costumes mais arcaicos<br />
ainda vigentes em muitos paÉses atà os traÅos que a projetam com <strong>de</strong>staque na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
(como o domÉnio das ciÖncias, por exemplo), passando pelo imaginário coletivo consolidado<br />
339 SAID, 1990.<br />
340 GHAZOUANI, “’O Clone’ e o simulacro”. DisponÉvel em:<br />
.Acesso em 21 nov. 2009.<br />
341 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 237.
pela literatura. ReferÖncias reais e folclÑricas foram combinadas para construir uma cultura<br />
que, como muitas outras, se <strong>de</strong>sdobra em várias dimensâes.<br />
A multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais dimensâes foi justamente o que atraiu a autora para a cultura<br />
árabe: atravàs <strong>de</strong>las po<strong>de</strong>ria, numa ficÅÇo televisiva <strong>de</strong>stinada ao entretenimento, explorar<br />
tanto o realismo como o sonho, produzindo essa combinaÅÇo mágica que lhe à tÇo cara em<br />
suas obras. Como ela prÑpria diz: “Se um autor vai falar <strong>de</strong>ssa cultura, porque nÇo explorar<br />
esse lado <strong>de</strong> encantamento e fantasia?” 342 . Se a imagem da odalisca sedutora evoca um<br />
exotismo “barato”, um “clichÖ” que nÇo condiz com a proeminÖncia profissional conquistada<br />
pelas mulheres marroquinas, como sugere o embaixador do Marrocos 343 , nÇo à raro encontrar,<br />
entre os prÑprios muÅulmanos, iniciativas que exploram o mesmo imaginário quando da<br />
apresentaÅÇo <strong>de</strong> sua cultura para olhares estrangeiros: a “Casa <strong>de</strong> chá egÉpcia e cafà árabe<br />
Khan el Khalili” 344 , “tradicional ponto turÉstico da cultura árabe” em SÇo Paulo,<br />
estabelecimento “pioneiro” que se orgulha <strong>de</strong> oferecer uma verda<strong>de</strong>ira experiÖncia árabe a<br />
seus clientes, anuncia-se tambàm como a “Casa da arte da danÅa do ventre”, a “maior vitrine<br />
do melhor da danÅa árabe do Brasil”, o local on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> assistir aos domingos o espetáculo<br />
intitulado “Noites no haràm”.<br />
ï preciso chamar atenÅÇo aqui para o fato <strong>de</strong> que, tanto o embaixador quanto o agente<br />
cultural, em suas versâes sobre o Oriente, po<strong>de</strong>m estar contaminados pelo Orientalismo, um<br />
sistema <strong>de</strong> pensamento baseado em representaÅâes distorcidas sobre a regiÇo. Embora<br />
reproduzam construÅâes segundo um modo <strong>de</strong> ver forjado na experiÖncia oci<strong>de</strong>ntal do Oriente<br />
(um discurso equivocado externo aos orientais), as narrativas orientalistas tÖm produzido,<br />
segundo Said, efeitos <strong>de</strong>sastrosos junto ao prÑprio Oriente. Se, <strong>de</strong> um lado, os “meios <strong>de</strong><br />
comunicaÅÇo <strong>de</strong> massa americanos” forjam uma padronizaÅÇo oci<strong>de</strong>ntalizante capaz <strong>de</strong> fazer<br />
com que um árabe se consi<strong>de</strong>re “um árabe do tipo <strong>de</strong>senhado por Hollywood” 345 , <strong>de</strong> outro, o<br />
papel “mo<strong>de</strong>rnizador” disseminado pela economia <strong>de</strong> mercado oci<strong>de</strong>ntal no intercêmbio<br />
econòmico, polÉtico e social entre os Estados Unidos, notadamente, e a intelligentsia árabe faz<br />
com que “o Oriente mo<strong>de</strong>rno, em suma”, participe “<strong>de</strong> sua prÑpria orientalizaÅÇo” 346 .<br />
A evi<strong>de</strong>nte diferenÅa entre a visÇo que Ghazouani e a os donos da “Casa <strong>de</strong> chá Khan<br />
el Khalili” tÖm do árabe-muÅulmano talvez nÇo resida apenas no fato <strong>de</strong> que o primeiro<br />
342 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 248.<br />
343 GHAZOUANI, “’O Clone’ e o simulacro”. DisponÉvel em:<br />
.Acesso em 21 nov. 2009.<br />
344 KHALILI, “Portal Khan el Khalili”. DisponÉvel em: . Acesso<br />
em 10 set. 2009.<br />
345 SAID, 2007, p. 432.<br />
346 Ibi<strong>de</strong>m, p. 433.<br />
174
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> diplomaticamente a imagem cosmopolita do Marrocos junto ao mundo globalizado e<br />
o segundo explora comercialmente a imagem mais exÑtica da cultura junto a clientes<br />
estrangeiros. Talvez resida na constataÅÇo <strong>de</strong> que a “cultura nacional” ä qual cada um <strong>de</strong>les se<br />
apega como referencial <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> e como traÅo <strong>de</strong>finidor <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> enquanto sujeito<br />
nÇo passe <strong>de</strong> uma “comunida<strong>de</strong> imaginada” 347 , construÉda a partir <strong>de</strong> mëltiplos discursos que<br />
produzem sentidos sobre a “naÅÇo” compartilhada. Segundo Benedict An<strong>de</strong>rson, “As<br />
comunida<strong>de</strong>s nÇo <strong>de</strong>vem ser distinguidas por sua falsida<strong>de</strong>/autenticida<strong>de</strong>, mas pelo estilo em<br />
que sÇo imaginadas” 348 . A naÅÇo à imaginada como comunida<strong>de</strong> 349 porque à sempre<br />
concebida como um “companheirismo”, uma “fraternida<strong>de</strong>” profunda e horizontal entre<br />
compatriotas que jamais serÇo conhecidos, mas que compartilham a imagem <strong>de</strong> sua<br />
comunhÇo; à imaginada como limitada 350 porque “possui fronteiras <strong>de</strong>finidas, ainda que<br />
elásticas”, e como soberana 351 porque sonha em ser livre.<br />
Hall 352 lembra que as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s culturais, aquelas que surgem do “‘pertencimento’ a<br />
culturas àtnicas, raciais, linguÉsticas, religiosas e, acima <strong>de</strong> tudo, nacionais”, foram<br />
“<strong>de</strong>scentradas”, “<strong>de</strong>slocadas ou fragmentadas” na pÑs-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, nÇo po<strong>de</strong>ndo mais ser<br />
tomadas com estáveis, unificadas e predizÉveis. GraÅas äs transformaÅâes constantes, rápidas<br />
e permanentes das socieda<strong>de</strong>s na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia, a combinaÅÇo <strong>de</strong> mëltiplas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s,<br />
mesmo que contraditÑrias e nÇo-resolvidas, tornou o processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo, outrora seguro<br />
e confortante, “mais provisÑrio, variável e problemático” 353 . Assim, diz o autor, “A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
torna-se uma ‘celebraÅÇo mÑvel’: formada e transformada continuamente em relaÅÇo äs<br />
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos<br />
ro<strong>de</strong>iam” 354 . A globalizaÅÇo teria afetado irremediavelmente o conjunto <strong>de</strong> significados que<br />
ao longo do tempo havia se solidificado na unificaÅÇo da representaÅÇo cultural <strong>de</strong> cada<br />
socieda<strong>de</strong> nacional.<br />
Ghazouani e a “Casa <strong>de</strong> chá Khan el Khalili” reproduzem diferentes narrativas sobre o<br />
árabe-muÅulmano: uma marcada pela lÑgica do progresso, outra, pela valorizaÅÇo da tradiÅÇo.<br />
Ambas revelam sentidos sobre si mesmos que foram culturalmente construÉdos e<br />
compartilhados quer a partir dos discursos consolidados “nas histÑrias e nas literaturas<br />
347 ANDERSON, 1989.<br />
348 Ibi<strong>de</strong>m, p. 15.<br />
349 Ibi<strong>de</strong>m, p. 16.<br />
350 Ibi<strong>de</strong>m, p. 15.<br />
351 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
352 HALL, 2005, p. 8.<br />
353 HALL, 2005, p. 12.<br />
354 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 12-13.<br />
175
nacionais, na mÉdia e na cultura popular” 355 ; quer a partir da crenÅa “nas origens, na<br />
continuida<strong>de</strong>, na tradição e na intemporalida<strong>de</strong>” 356<br />
176<br />
[grifos do autor] do que se crÖ<br />
essencialmente imutável; quer ainda a partir da “tradiÅÇo inventada” ou do “mito fundacional”<br />
ou entÇo na originalida<strong>de</strong> do povo. Como qualquer discurso sobre uma cultura nacional, as<br />
narrativas <strong>de</strong> ambas as “autorida<strong>de</strong>s” (o embaixador e o comerciante/agente cultural) sobre o<br />
mundo árabe-muÅulmano equilibram-se “entre a tentaÅÇo por retornar a glÑrias passadas e o<br />
impulso por avanÅar ainda mais em direÅÇo ä mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” 357 . Tais diferenÅas na forma <strong>de</strong><br />
representar uma cultura nacional apenas expressam o mito da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural unificada: ao<br />
contrário do que fazem crer as representaÅâes que se produzem sobre elas, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
nacionais nada tÖm <strong>de</strong> unificadas e homogÖneas ─ as travessias e compressâes temporais e<br />
espaciais produzidas pela globalizaÅÇo as tÖm tornado cada vez mais <strong>de</strong>sintegradas e hÉbridas.<br />
Como diz Canclini,<br />
Já nÇo basta dizer que nÇo há i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s caracterizadas por essÖncias autocontidas e<br />
aistÑricas, nem entendÖ-las como as formas em que as comunida<strong>de</strong>s se imaginam e<br />
constroem relatos sobre sua origem e <strong>de</strong>senvolvimento. Em um mundo tÇo<br />
fluidamente interconectado, as dimensâes i<strong>de</strong>ntitárias organizadas em conjuntos<br />
histÑricos mais ou menos estáveis (etnias, naÅâes, classes) se reestruturam em meio a<br />
conjuntos interàtnicos, transclassistas e transnacionais. 358<br />
Valendo-se disso, Gloria Perez construiu uma representaÅÇo que sintetizou na ficÅÇo<br />
as muitas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dos muÅulmanos. Colocou em diálogo o arcaico Tio Abdul com o<br />
religioso progressista Tio Ali, que havia estudado na Inglaterra; os jovens irmÇos<br />
tradicionalistas Mohamed e Said com o mo<strong>de</strong>rno “cidadÇo do mundo” Zein; as odaliscas Ja<strong>de</strong><br />
e Latiffa (a primeira, rebel<strong>de</strong>, e a segunda, submissa) com a tÉpica virgem casadoira Nazira e<br />
ainda com a subalterna maternal Zorai<strong>de</strong>.<br />
ï preciso consi<strong>de</strong>rar que, sendo “O Clone” inicialmente uma histÑria sobre clonagem<br />
humana, o tema muÅulmano tinha importência secundária na trama, embora se <strong>de</strong>stacasse pela<br />
novida<strong>de</strong> e pela curiosida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>spertava no pëblico. Embora Ja<strong>de</strong> fosse a protagonista da<br />
novela e a histÑria <strong>de</strong> seu amor impossÉvel por Lucas fosse o fio condutor que entrelaÅava<br />
clone e clonado, o nëcleo muÅulmano nÇo ocupava o primeiro plano da narrativa.<br />
Comparativamente, em “O Clone” houve muito menos tempo <strong>de</strong> exposiÅÇo da cultura<br />
muÅulmana do que aquele ocupado pela cultura indiana em “Caminho das índias”. Assim, a<br />
complexida<strong>de</strong> e a diversida<strong>de</strong> cultural árabe sofreram muito mais com a con<strong>de</strong>nsaÅÇo exigida<br />
355 HALL, 2005, p. 52.<br />
356 Ibi<strong>de</strong>m, p. 53.<br />
357 Ibi<strong>de</strong>m, p. 56.<br />
358 CANCLINI, 2008, p. XXIII.
na criaÅÇo da alegoria sobre o muÅulmano do que aquela exigida na criaÅÇo da alegoria sobre<br />
o hindu. Intimamente integrado ä centralida<strong>de</strong> da trama, o nëcleo indiano teve presenÅa<br />
marcante na construÅÇo <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>sdobramentos da histÑria, permitindo uma<br />
representaÅÇo on<strong>de</strong> as nuances da cultura e da religiÇo hindu podiam ser notadas na<br />
profundida<strong>de</strong> possÉvel a uma obra televisiva.<br />
Ciente <strong>de</strong> que “ao lado da tendÖncia em direÅÇo ä homogeneizaÅÇo global, há tambàm<br />
uma fascinaÅÇo com a diferença e com a mercantilizaÅÇo da etnia e da “alterida<strong>de</strong>’” 359 [grifo<br />
do autor], Gloria Perez povoa a Medina <strong>de</strong> Fez e a Jaipur da ficÅÇo com seres que transitam<br />
entre o local e o global ─ tal à a sua estratàgia para acentuar a diversida<strong>de</strong>. Tanto no nëcleo<br />
muÅulmano como no indiano, à possÉvel encontrar personagens isolados e exilados na<br />
impermeável i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural local e outros que se mostram verda<strong>de</strong>iros turistas a transitar<br />
permanentemente entre o local e o global. Por forÅa <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s pessoais e profissionais,<br />
personagens como Ja<strong>de</strong>, Zein, Raj, Bahuam e Camila sÇo obrigados a cruzar fronteiras<br />
culturais tantas vezes e tÇo intensamente que acabam adquirindo uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> hÉbrida,<br />
capaz <strong>de</strong> traduzir com mais compreensÇo os cÑdigos estrangeiros ─ ao contrário <strong>de</strong> Abdul,<br />
Opash e Ahmitab, prisioneiros <strong>de</strong> sua localida<strong>de</strong> (embora Opash tenha visitado o Brasil por<br />
duas vezes, manteve-se sempre impermeável ao Outro-nÇo-indiano). Pertencentes a dois<br />
mundos, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s “irrevogavelmente traduzidas” 360 , Ja<strong>de</strong>, Zein, Raj, Bahuam e Camila<br />
carregam a tarefa <strong>de</strong> “falar” duas culturas e <strong>de</strong> negociar entre elas. SÑ o diálogo, segundo<br />
Todorov, po<strong>de</strong> estabelecer tal ponte: porque “à falando ao outro ([...] dialogando com ele), e<br />
somente entÇo, que reconheÅo nele uma qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeito, comparável ao que eu mesmo<br />
sou” 361 [grifo do autor]. O diálogo entre culturas estabelecido pelas personagens “em trênsito”<br />
expressam a missÇo da autora <strong>de</strong> dar a conhecer mutuamente o Eu e o Outro.<br />
Embora costumes rurais e mo<strong>de</strong>rnos estivessem muitas vezes <strong>de</strong>slocados <strong>de</strong> seus<br />
espaÅos originais; embora a geografia das cida<strong>de</strong>s fictÉcias trouxesse cenários que lhe sÇo<br />
externos; embora as nuances do pensamento estivessem simplificadas; e embora a diversida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> lÉnguas e religiâes nÇo tivesse sido explorada em sua dimensÇo real, a sÉntese apresentada<br />
por Gloria Perez ofereceu um retrato que, como foi visto anteriormente, nÇo <strong>de</strong>smentiu a<br />
diversida<strong>de</strong> testemunhada na realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes mundos e em nada contradisse as imagens que<br />
se multiplicam na literatura e nas narrativas ficcionais (vi<strong>de</strong> Bollywood) nem nos relatos<br />
visuais <strong>de</strong> documentários, reportagens e registros domàsticos. Limitada pela superficialida<strong>de</strong><br />
359 HALL, 2005, p. 77.<br />
360 Ibi<strong>de</strong>m, p.89.<br />
361 TODOROV, 1999, p. 157.<br />
177
do gÖnero telenovela e autorizada pela ficÅÇo, a autora construiu uma representaÅÇo <strong>de</strong><br />
muÅulmanos e indianos que contribuiu para a compreensÇo e o respeito das diferenÅas. NÇo sÑ<br />
pelo que foi mostrado em cena e pela maneira com que foi mostrado, mas tambàm pela<br />
curiosida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>spertou no brasileiro sobre mundos tÇo distantes e tÇo <strong>de</strong>sconhecidos entre<br />
nÑs. Publicado no jornal indiano Hinduistan Times, o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> B. S. Prakash,<br />
embaixador da índia no Brasil, atesta a importência da ponte <strong>de</strong> entendimento criada por<br />
Gloria Perez e o efeito positivo da curiosida<strong>de</strong> que a novela <strong>de</strong>spertou sobre o paÉs:<br />
178<br />
Como diplomata há mais <strong>de</strong> 30 anos, tenho representado a índia em todos os<br />
continentes do mundo: Europa, ôsia, Amàrica do Norte, ôfrica e agora, Amàrica do<br />
Sul. E durante todos esses anos, nunca vi nada comparado ao que estou vendo agora: a<br />
mais estranha e forte manifestaÅÇo <strong>de</strong> atraÅÇo pela índia por meio da novela brasileira<br />
“Caminho das índias”.<br />
[...] A índia à um pais complexo e nossas contradiÅâes e hábitos curiosos nÇo sÇo<br />
sempre fáceis <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r. [...] Tenho batalhado sempre para mostrar para o<br />
pëblico <strong>de</strong> um paÉs estrangeiro algo sobre minha terra e seus valores. Mas nunca havia<br />
imaginado que uma novela popular po<strong>de</strong>ria alterar tÇo dramaticamente as impressâes<br />
<strong>de</strong> um paÉs, principalmente um paÉs tÇo gran<strong>de</strong> e populoso quanto o Brasil.<br />
è medida que a novela “Caminho das índias” chega ä casa dos brasileiros todas as<br />
noites, a curiosida<strong>de</strong> e a afeiÅÇo pela índia parecem estar crescendo. NÑs sabemos disso<br />
pelo numero e pelo tipo <strong>de</strong> questionamento que recebemos em nossa embaixada [...].<br />
[...] Nas perguntas mais freq§entes sobre casamentos arranjados, sistemas <strong>de</strong> casta,<br />
dote e similares, aproveitamos a oportunida<strong>de</strong> para mostrar nossa índia mo<strong>de</strong>rna. 362<br />
[tradução nossa]<br />
Gloria Perez nÇo sÑ reconhece que seu papel como autora <strong>de</strong> telenovelas à justamente<br />
o <strong>de</strong> “colocar um assunto em discussÇo”, unir “o paÉs em torno <strong>de</strong> um assunto” 363 , como<br />
assume a responsabilida<strong>de</strong> social que tal constataÅÇo implica: “Se vocÖ faz um paÉs inteiro<br />
discutir com quem vai ficar a mocinha, tambàm po<strong>de</strong> fazer todo mundo discutir algo que<br />
mu<strong>de</strong> a vida das pessoas” 364 . Dessa maneira, a autora faz a ficÅÇo atuar sobre a realida<strong>de</strong>. Foi<br />
precisamente <strong>de</strong>sta consciÖncia polÉtica que surgiram suas campanhas sociais,<br />
equivocadamente chamadas <strong>de</strong> “merchandising social”. Atravàs <strong>de</strong>las, a autora se <strong>de</strong>dicou,<br />
para citar apenas “O Clone” e “Caminho das índias”, a dar visibilida<strong>de</strong> ao drama dos<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes mentais no Brasil, problemas cuja discussÇo lhe pareceu<br />
importante colocar na pauta dos milhâes <strong>de</strong> brasileiros que assistem a suas novelas. Assim,<br />
valendo-se da mesma habilida<strong>de</strong> com que construiu pontes <strong>de</strong> entendimento com o Outro-<br />
362 PRAKASH, “Ma<strong>de</strong> in Brazil”, disponÉvel em: . Acesso em 10 nov. 2009.<br />
363 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 247.<br />
364 PEREZ apud. “Namastà, Brasil: Gloria Perez abre a casa, fala <strong>de</strong> vida, morte e rebate crÉticas”. DÉsponÉvel<br />
em: .<br />
Acesso em 25 jul. 2009.
estrangeiro muÅulmano e indiano, a autora promoveu um olhar mais humanizado sobre os<br />
Outros-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo, aqueles que o brasileiro, “normal e sÇo”, segrega fora dos domÉnios<br />
do Eu, em sua indiferenÅa e <strong>de</strong>sconhecimento. (ImpossÉvel aqui nÇo citar o comentário <strong>de</strong><br />
Luis Costa Lima sobre a metáfora que encobre o mundo dos “normais”, dos “sÇos”, em<br />
relaÅÇo ao mundo do sanatÑrio, no romance Armadilha para Lamartine, <strong>de</strong> Carlos & Carlos<br />
Sussekind: “são à apenas o falso plural do é burguÖs” 365 [grifos nossos], uma armadilha <strong>de</strong><br />
palavras que confun<strong>de</strong> o fato <strong>de</strong> que “o mundo da cura psiquiátrica à, na verda<strong>de</strong>, o mundo da<br />
reeducaÅÇo para o bom funcionamento da socieda<strong>de</strong> alàm muros” 366 .)<br />
As campanhas empreendidas em “O Clone” e “Caminho das índias” seguiram o estilo<br />
inaugurado pela autora na discussÇo <strong>de</strong> temas sociais: foram construÉdas com um pà na<br />
realida<strong>de</strong> e outro na ficÅÇo. Gloria Perez comeÅa apresentando as personagens Mel e Lobato<br />
(e ainda, com menos importência, Nando e Regininha) e Tarso em seus dramas pessoais. Em<br />
“O Clone”, Mel à filha <strong>de</strong> Lucas, um jovem que foi impedido por seu pai <strong>de</strong> seguir o sonho <strong>de</strong><br />
ser mësico e <strong>de</strong> unir-se a sua amada muÅulmana Ja<strong>de</strong> para assumir os negÑcios da empresa<br />
familiar e casar-se com a namorada do irmÇo gÖmeo que morrera num aci<strong>de</strong>nte. Sua mÇe à<br />
Maysa, moÅa fëtil e rica que amava Diogo, o irmÇo irreverente <strong>de</strong> Lucas, e que, diante da<br />
morte do amado, casa-se com o “cunhado”. O pai <strong>de</strong> Mel à um homem frustrado, amargurado<br />
pelo abandono <strong>de</strong> seus sonhos; sua mÇe, uma mulher infeliz no casamento e <strong>de</strong>dicada ao<br />
conforto da vida <strong>de</strong> riqueza. Mel à uma menina que cresce sob os olhares distraÉdos dos pais e<br />
que acaba encontrando refëgio para a indiferenÅa nas drogas. Por outro lado, a novela<br />
apresenta Lobato, advogado das empresas da famÉlia <strong>de</strong> Lucas. Profissional competente, pai<br />
<strong>de</strong> famÉlia, amigo e homem <strong>de</strong> confianÅa do patrÇo Leònidas Ferraz, Lobato tem uma<br />
fraqueza: está livre do vÉcio da cocaÉna há um tempo, mas à alcoÑlatra. Se Mel experimenta o<br />
entusiasmo pela droga, Lobato, que está “limpo” mas sofre recaÉdas, foi concebido para<br />
funcionar como a consciÖncia da <strong>de</strong>struiÅÇo do vÉcio. Em “Caminho das índias”, Tarso à o<br />
filho mais novo <strong>de</strong> Ramiro e Melissa: o pai à um empresário rico que usa sua personalida<strong>de</strong><br />
forte e extrovertida tanto para li<strong>de</strong>rar negociaÅâes profissionais como para pressionar o caÅula<br />
a se preparar para assumir os negÑcios da famÉlia; a mÇe à uma “perua” alienada que sÑ pensa<br />
em estàtica e tem no filho o seu “prÉncipe <strong>de</strong> olhos azuis”. Tarso à um jovem sensÉvel e<br />
brilhante nos estudos e repleto da aptidâes artÉsticas que fica tÇo ameaÅado diante das<br />
pressâes do pai que <strong>de</strong>senvolve esquizofrenia.<br />
365 LIMA, 1981, p. 129.<br />
366 Ibi<strong>de</strong>m.<br />
179
A apresentaÅÇo dos dramas <strong>de</strong> cada um prepara o pëblico para as duras cenas do<br />
martÉrio imposto pela <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica e pela loucura: nunca uma telenovela abordou<br />
com tanta crueza e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za tais universos. Mel, a moÅa <strong>de</strong> famÉlia à presa por porte <strong>de</strong><br />
drogas; participa <strong>de</strong> assalto a ònibus para comprar droga; forja assalto a sua prÑpria casa e<br />
expâe sua mÇe ä mira <strong>de</strong> um revÑlver; à atormentada por <strong>de</strong>lÉrios e <strong>de</strong>pressâes; forÅa a mÇe a<br />
subir o morro para libertá-la dos traficantes; sofre aborto espontêneo, quase morre e pâe a<br />
vida do filho em risco durante o parto. Lobato, o advogado per<strong>de</strong> a famÉlia e o emprego; reluta<br />
diante do reconhecimento <strong>de</strong> seu vÉcio; participa <strong>de</strong> longas sessâes <strong>de</strong> terapia em que narra<br />
cenas tÇo chocantes como as experimentadas por Mel; fraqueja inëmeras vezes em meio ao<br />
tratamento, em cenas <strong>de</strong> violÖncia e auto<strong>de</strong>struiÅÇo. Tarso, o rapaz <strong>de</strong> futuro promissor à<br />
atormentado por vozes; protagoniza atos <strong>de</strong> violÖncia, motivado por seus <strong>de</strong>lÉrios; sofre <strong>de</strong><br />
paranÑia persecutÑria e, apavorado, refugia-se no escuro <strong>de</strong> seu quarto ou <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> sua<br />
escrivaninha; <strong>de</strong>senvolve tiques nervosos e alucinaÅâes; caminha obsessivamente, por dias,<br />
atà ser encontrado exausto, jogado no meio da rua ou na praia. O testemunho da <strong>de</strong>vastaÅÇo<br />
causada pelas drogas e pela doenÅa mental nas vidas <strong>de</strong> personagens atà entÇo queridos do<br />
pëblico, promove empatia imediata e compaixÇo pelo drama da ficÅÇo.<br />
O uso <strong>de</strong> instituiÅâes, reais e fictÉcias, <strong>de</strong> apoio e tratamento da <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica e<br />
da doenÅa mental à a brecha atravàs da qual Gloria Perez traz a realida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>ntro da<br />
ficÅÇo, costurando ä trama <strong>de</strong>poimentos colhidos entre viciados e loucos da vida real e seus<br />
familiares. A autora fez as mÇes <strong>de</strong> Mel e Nando procurarem ajuda junto aos NarcÑticos<br />
Anònimos e levou os prÑprios viciados (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhes impor muito martÉrio) a participar das<br />
reuniâes. Aos <strong>de</strong>poimentos das mÇes da ficÅÇo somaram-se os testemunhos dos parentes e das<br />
vÉtimas reais do vÉcio. Entremeadas äs cenas que expunham todas as cores dos dramas <strong>de</strong> Mel<br />
e Lobato, surgiam tomadas dos olhos, das bocas e das mÇos dos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da vida real.<br />
Para alàm do tratamento imagàtico diferenciado que franqueava ao pëblico o passaporte para<br />
os <strong>de</strong>poimentos verÉdicos, o “fatiamento” dos viciados foi usado pela autora como linguagem:<br />
“Quero mostrar a personalida<strong>de</strong> partida pelo vÉcio” 367 . Enquanto Maysa se preparava para<br />
subir o morro, perguntando-se se conseguiria vencer o pavor <strong>de</strong> talvez encontrar a filha morta<br />
sob os <strong>de</strong>smandos do tráfico, uma mÇe da vida real contava os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> seu drama quando<br />
teve que buscar a filha na favela. O <strong>de</strong>poimento dura o tempo do percurso <strong>de</strong> Maysa atà<br />
367<br />
PEREZ, s/d. Entrevista sem origem no site Youtube (“O Clone: entrevista Gloria Perez sobre a questÇo do uso<br />
das drogas”). DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 21 nov. 2009.<br />
180
chegar ao encontro <strong>de</strong> Mel e segue com a ficÅÇo na mesma linha dos acontecimentos narrados<br />
pela mÇe <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. O mesmo acontece durante as recaÉdas <strong>de</strong> Lobato.<br />
Em “Caminho das índias”, a autora se vale da clÉnica do Doutor Castanho, on<strong>de</strong> Tarso<br />
acaba por fazer tratamento, para dar voz a vários doentes mentais da realida<strong>de</strong>, fazendo ecoar<br />
os anseios dos pacientes por inclusÇo social e suas opiniâes a respeito do tratamento<br />
manicomial no Brasil. Os <strong>de</strong>poimentos estÇo, como em “O Clone”, inseridos na trama: ou<br />
aparecem numa conversa entre Tarso e outros colegas pacientes, ou em resposta äs perguntas<br />
do màdico da ficÅÇo, ou ainda nos testemunhos captados pela lente da cêmera <strong>de</strong> Leinha, a<br />
personagem documentarista. Na campanha pela inclusÇo social dos doentes mentais,<br />
“Caminho das índias” programou shows dos “Cancioneiros do IPUB”, grupo musical<br />
composto por pacientes do Instituto <strong>de</strong> Psiquiatria da UFRJ, e do “Harmonia Enlouquece”,<br />
banda <strong>de</strong> mësica formada por pacientes e funcionários do Centro Psiquiátrico Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
e chegou mesmo a incluir suas canÅâes na trilha sonora da novela.<br />
Tanto no caso dos muÅulmanos e indianos (os Outros-estrangeiros) quanto no caso dos<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes mentais (os Outros-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo), o enfoque na<br />
conduÅÇo das personagens e das questâes (psicolÑgicas, familiares, sociais, polÉticas e<br />
màdicas) que as envolviam foi resultado <strong>de</strong> uma extensa pesquisa realizada nÇo sÑ com<br />
especialistas como, principalmente, com os prÑprios Outros. Gloria Perez teve o cuidado <strong>de</strong><br />
ouvir autorida<strong>de</strong>s na cultura muÅulmana e indiana, consultá-las inëmeras vezes sobre<br />
costumes, expressâes e práticas religiosas, mas nÇo se furtou <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r seu trabalho<br />
etnográfico aos árabes e indianos comuns, gente que morava no Brasil, que estava no paÉs <strong>de</strong><br />
passagem, ou que estava nos seus paÉses <strong>de</strong> origem; ouviu tambàm os brasileiros que viviam<br />
naquelas naÅâes ou que mantinham contato constante com elas. Gravou entrevistas<br />
<strong>de</strong>talhadÉssimas, manteve um canal aberto pela internet com informantes resi<strong>de</strong>ntes fora do<br />
Brasil e contou com a consultoria permanente do xeque Jihad Hassan Hamma<strong>de</strong>h, vice-<br />
presi<strong>de</strong>nte da World Assembly of Muslim Youth (Wamy), e do casal Jayanthy, fÉsicos<br />
nucleares indianos da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Campinas (por serem brêmanes, os Jayanthy nÇo sÑ<br />
orientaram na conduÅÇo dos aspectos culturais e filosÑficos da trama como muitos vezes<br />
oficiaram as cerimònias religiosas encenadas na novela).<br />
O cruzamento <strong>de</strong> tantos e tÇo variados testemunhos na fase da pesquisa e da produÅÇo<br />
expressa a preocupaÅÇo da autora com a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do que escreve. NÇo sÑ para evitar<br />
distorÅâes e <strong>de</strong>srespeitos em relaÅÇo äs culturas abordadas como tambàm para garantir a<br />
divulgaÅÇo do ponto <strong>de</strong> vista dos Outros. Especialmente nas entrevistas com os drogados, os<br />
loucos e seus familiares, fruto da gran<strong>de</strong> relaÅÇo <strong>de</strong> confianÅa estabelecida entre a autora e os<br />
181
entrevistados, a preocupaÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez era dar voz a grupos que raramente eram<br />
ouvidos. Segundo a autora 368 , sua intenÅÇo era abrir espaÅo para estes segmentos que nunca<br />
tÖm voz e que nÇo dispâem <strong>de</strong>ssa janela que à a telenovela para fazer chegar ä socieda<strong>de</strong> o seu<br />
ponto <strong>de</strong> vista. “A mÉdia sempre ouve o que a polÉcia e os psiquiatras pensam <strong>de</strong>les e jamais<br />
se ocupa <strong>de</strong> saber como eles prÑprios pensam a sua condiÅÇo” 369 , comenta a autora. Foi <strong>de</strong>ste<br />
contato franco com drogados e esquizofrÖnicos que saÉram os principais trunfos <strong>de</strong> suas<br />
campanhas em “O Clone” e “Caminho das índias”: a informaÅÇo <strong>de</strong> que “droga à bom” e à<br />
por isso que vicia (informaÅÇo sempre sonegada nas campanhas anti-drogas, segundo<br />
<strong>de</strong>nunciaram os <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos entrevistados) e o esclarecimento da diferenÅa entre<br />
doente mental (louco) e psicopata (confusÇo usual na socieda<strong>de</strong> que resulta no equivocado<br />
temor do louco como violento, segundo <strong>de</strong>nëncia dos doentes mentais consultados).<br />
Talvez por sua formaÅÇo acadÖmica em HistÑria, ciÖncia que se <strong>de</strong>bruÅa sobre os<br />
homens para conhecer suas atuaÅâes no tempo e no espaÅo, Gloria Perez mostrou-se cautelosa<br />
e respeitosa na construÅÇo <strong>de</strong>stes Outros, fugindo da abordagem leviana e sensacionalista dos<br />
estereÑtipos que mais facilmente apelam para as imagens já consolidadas na audiÖncia. Com<br />
base em sua percepÅÇo <strong>de</strong> que “o nosso umbigo nÇo à mesmo a janela mais ampla para se<br />
observar o mundo” 370 ─ à sÑ mais uma janela <strong>de</strong>ntre tantas outras ─, a autora afirma que seu<br />
empenho, nas duas telenovelas aqui estudadas, foi mostrar a “diversida<strong>de</strong> do mundo”, a<br />
existÖncia <strong>de</strong> “povos que enten<strong>de</strong>m a vida <strong>de</strong> maneira singular, que buscam uma forma <strong>de</strong><br />
viver que à diferente e legÉtima” 371 . Segundo a novelista 372 , para que as novelas pu<strong>de</strong>ssem<br />
levar ao ar uma narrativa sem preconceito, que pu<strong>de</strong>ssem ser conduzidas pelo olhar do<br />
diferente, era preciso oferecer ä audiÖncia ─ e mesmo ä direÅÇo e ao elenco da novela ─ uma<br />
experiÖncia <strong>de</strong>safiadora: que todos se <strong>de</strong>spissem <strong>de</strong> seus preconceitos, <strong>de</strong> sua maneira <strong>de</strong><br />
pensar, para que entrassem na pele alheia, para que assumissem um ponto <strong>de</strong> vista externo ao<br />
seu; e que fizessem isso sem assumir um olhar superior em relaÅÇo ao diferente. Ouvir o<br />
diferente sem a arrogência do prà-conhecimento e da superiorida<strong>de</strong> foi a proposta que a autora<br />
ofereceu aos atores: fez com que ouvissem <strong>de</strong> estrangeiros recàm-chegados ao Brasil, por<br />
exemplo, o que lhes chamava a atenÅÇo no paÉs, e assim proporcionou aos profissionais da<br />
telenovela a experiÖncia <strong>de</strong> se sentirem estranhos pelo ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> outra cultura.<br />
368 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 242.<br />
369 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
370 Ibi<strong>de</strong>m, p. 237.<br />
371 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
372 Ibi<strong>de</strong>m, p. 244.<br />
182
Fora dos bastidores, o cuidado na representaÅÇo do Outro chegava äs telas embrulhado<br />
na prÑpria tàcnica da autora, que nÇo sÑ constrÑi personagens extremamente humanos como<br />
tambàm se preocupa em apresentá-los <strong>de</strong> modo a que conquistem o pëblico. Na narrativa,<br />
Mel, Lobato e Tarso sÇo apresentados ao pëblico antes <strong>de</strong> se tornarem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos<br />
e doentes mentais. Ao mostrar seus sonhos, sua alegria, seus talentos e suas frustraÅâes, a<br />
novelista permite que suas angëstias e sofrimentos sejam acolhidos com generosida<strong>de</strong>.<br />
Segundo ela, para que o pëblico se afeiÅoe pelos tipos que habitam a trama da ficÅÇo e<br />
“comprem” sua histÑria, à preciso que se envolvam em seus dramas:<br />
183<br />
Se as pessoas nÇo comprarem o personagem, elas nÇo se interessam pelo que acontece<br />
com ele. Isso está na minha cartilha. Por isso eu jamais comeÅaria uma novela com<br />
uma campanha; primeiro o autor tem que ven<strong>de</strong>r o folhetim. VocÖ se importa com o<br />
que acontece com quem vocÖ se importa. VocÖ tem que se envolver com aquela<br />
personagem para se importar com o que acontece com ela. 373<br />
As duas telenovelas souberam construir representaÅâes bastante legÉtimas do Outro-<br />
estrangeiro (muÅulmano e indiano) e do Outro-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo (os estigmatizados). De tal<br />
modo isso à verda<strong>de</strong> que inëmeras foram as manifestaÅâes que <strong>de</strong>monstraram uma nova ─ e<br />
positiva ─ percepÅÇo <strong>de</strong>stes grupos por parte dos brasileiros. Da fascinaÅÇo ä curiosida<strong>de</strong>, a<br />
reaÅÇo da audiÖncia <strong>de</strong>spertou no paÉs uma febre árabe e uma febre indiana, on<strong>de</strong> foram<br />
registrados um aumento expressivo no nëmero <strong>de</strong> exemplares do AlcorÇo vendidos 374 , a<br />
massiva procura por bijouterias e roupas árabes e indianas, a adoÅÇo <strong>de</strong> expressâes do idioma<br />
árabe ou hÉndi pela populaÅÇo, o aumento da oferta <strong>de</strong> cursos e palestras sobre as culturas<br />
abordadas nas novelas, o gran<strong>de</strong> sucesso das mësicas árabe e indiana incluÉdas na trilha sonora<br />
do folhetim, e a enorme procura por fantasias <strong>de</strong> odalisca e indiana na àpoca do Carnaval.<br />
Da mesma forma, as informaÅâes divulgadas sobre os drogados e doentes mentais e a<br />
visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus dramas nas novelas resultaram em um efeito imediato sobre a populaÅÇo:<br />
o aumento no nëmero <strong>de</strong> jovens viciados que procuraram tratamento ─ muitos <strong>de</strong>les por conta<br />
prÑpria; a expressiva reaproximaÅÇo entre pais e filhos viciados 375 ; a proliferaÅÇo <strong>de</strong><br />
373 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 242.<br />
374 Atà 2002, “adquirir um exemplar da bÉblia islêmica era tarefa árdua”, mas “ApÑs o atentado ao centro<br />
comercial <strong>de</strong> Nova Iorque em 11 <strong>de</strong> setembro, a busca <strong>de</strong>senfreada por informaÅâes sobre a cultura muÅulmana<br />
tornou o livro indispensável para se compreen<strong>de</strong>r a nova geopolÉtica mundial e, quem diria, atà a novela das<br />
oito”. RODRIGUES e VANNUCHI, disponÉvel em: .<br />
Acesso em 27 nov. 2006.<br />
375 Depoimento <strong>de</strong> Pedro Simon in “Simon elogia campanha <strong>de</strong> ‘O Clone’ contra as drogas”, disponÉvel em:<br />
, Acesso<br />
em 2 jul. 2009.
eportagens sobre <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica nos veÉculos <strong>de</strong> comunicaÅÇo 376 ; a criaÅÇo, pelo<br />
Ministàrio da Saë<strong>de</strong>, <strong>de</strong> 120 centros <strong>de</strong> atenÅÇo para <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos 377 ; a votaÅÇo <strong>de</strong><br />
um projeto <strong>de</strong> lei que mudou a regulamentaÅÇo do combate äs drogas 378 ; o aumento <strong>de</strong> 10%<br />
na procura por tratamento da esquizofrenia na Santa Casa <strong>de</strong> MisericÑrdia do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro 379 ; e a expressiva procura pelo livro Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado, que<br />
ficou em primeiro lugar na lista dos mais vendidos durante <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> semanas 380 . O<br />
<strong>de</strong>poimento da psiquiatra PatrÉcia Schmid, vice-diretora do Instituto Nise da Silveira, dá uma<br />
amostra da qualida<strong>de</strong> da representaÅÇo dos doentes mentais em “Caminho das índias” e do<br />
impacto que produziu na humanizaÅÇo e <strong>de</strong>sestigmatizaÅÇo dos pacientes da vida real:<br />
184<br />
Todos os dias na minha sala, eu recebo clientes que vÖm comentar comigo sobre as<br />
cenas da novela. Sentem-se i<strong>de</strong>ntificados com o que Tarso está passando e felizes por<br />
estarem sendo vistos como pessoas que adoeceram e sofreram muito, trincando o<br />
imaginário social para o qual os esquizofrÖnicos sÇo todos violentos e perigosos.<br />
Bruno [o ator Bruno Gagliasso, que interpreta Tarso], com sua atuaÅÇo perfeita, tem<br />
produzido em muitos que assistem ä novela, uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidar. OuÅo as pessoas<br />
dizerem que gostariam <strong>de</strong> ajudá-lo, que <strong>de</strong>sejariam convencer seus pais a aceitarem o<br />
tratamento. Tarso tem <strong>de</strong>spertado mais ainda a curiosida<strong>de</strong> sobre a doenÅa e seu<br />
processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento. A loucura produz horror, mas atravàs da novela tem<br />
produzido empatia e curiosida<strong>de</strong>.<br />
[...] Portanto, imagino que o sucesso <strong>de</strong> Tarso tenha relaÅÇo com a construÅÇo <strong>de</strong> um<br />
olhar sobre o louco que o HUMANIZA [...] [grifo da autora]<br />
[...] Isso toca no processo <strong>de</strong> estigmatizaÅÇo, incidindo sobre um dos seus elementos<br />
geradores, justamente a crenÅa <strong>de</strong> que loucos nÇo sÇo completamente humanos. Tarso<br />
está produzindo dëvidas sobre isso e à ai que eu acredito que ele esteja iniciando um<br />
golpe no estigma!! 381<br />
Captado ainda na fase <strong>de</strong> pesquisa da novela, o anseio dos doentes mentais <strong>de</strong> que<br />
fossem vistos como ëteis e sensÉveis, e nÇo como violentos, <strong>de</strong>terminou a inclusÇo <strong>de</strong> uma<br />
personagem <strong>de</strong>cisiva para o andamento da trama: a psicopata Yvone. Suas aÅâes, movidas<br />
pela falta <strong>de</strong> emoÅÇo, pela indiferenÅa em relaÅÇo ao prÑximo e pela exacerbaÅÇo do racional,<br />
serviram <strong>de</strong> contraponto para marcar as diferenÅas com o doente mental, representado na<br />
novela como excessivamente afetuoso, nada violento e funcionalmente capaz. Na trama, a<br />
376<br />
GOMES e HOLZBACH, “A telenovela como espaÅo <strong>de</strong> reflexÇo sobre as drogas”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 21 nov. 2009.<br />
377<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
378<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
379<br />
PEREZ, “Deu no Extra”. DisponÉvel em: , reproduzindo matària intitulada “Aumenta procura para<br />
tratamento <strong>de</strong> esquizofrenia na Santa Casa do Rio”, publicada no Extra Online, em 7 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009.<br />
380<br />
“Lista estendida dos livros mais vendidos”. DisponÉvel em: .<br />
Acesso em 17 fev. 2010.<br />
381<br />
SCHMID, “Caminhos que ‘<strong>de</strong>sestigmatizam’”. DisponÉvel em: .<br />
Acesso em 21 nov. 2009.
diferenciaÅÇo marcada entre as representaÅâes do esquizofrÖnico Tarso e da psicopata Yvone<br />
serviram para <strong>de</strong>sfazer a confusÇo que injustamente impâe ao psicÑtico, portador <strong>de</strong> uma<br />
doenÅa curável, a imagem violenta do psicopata, esse ser geneticamente <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> afeto<br />
por uma <strong>de</strong>formaÅÇo incurável.<br />
“O Clone” e “Caminho das índias” produziram um efeito sem igual no imaginário<br />
popular brasileiro a respeito <strong>de</strong> muÅulmanos, indianos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes<br />
mentais. Igualmente, provocaram um olhar diferente sobre a cultura nacional. Numa narrativa<br />
repleta <strong>de</strong> contrapontos entre o estrangeiro e o local, a novelista <strong>de</strong>sarma a audiÖncia fazendo-<br />
a estranhar o diferente para em seguida <strong>de</strong>slocar seu foco na direÅÇo do Eu, trazendo ä<br />
consciÖncia (atravàs do riso, da compaixÇo ou da indignaÅÇo) comportamentos e culturas<br />
igualmente “estranhos”, antes con<strong>de</strong>nados ä invisibilida<strong>de</strong>. Gloria Perez fala do Outro nÇo<br />
porque a alterida<strong>de</strong> esteja em voga, mas sim porque à atravàs <strong>de</strong>le que a autora coloca seu<br />
paÉs em xeque. Faz questÇo <strong>de</strong> passear pelo Marrocos, pela índia e pelo Brasil na condiÅÇo <strong>de</strong><br />
estrangeira. E quer levar o estranhamento tambàm para os olhos do pëblico, neutralizando a<br />
aceitaÅÇo <strong>de</strong>liberada, provocando o <strong>de</strong>sconforto, o questionamento e a crÉtica, enfim,<br />
<strong>de</strong>snaturalizando a realida<strong>de</strong>.<br />
NÇo que a autora pintasse o Brasil em cores irreconhecÉveis. Nas duas novelas estÇo o<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro dos cartâes postais com suas praias e relevos inconfundÉveis. Lá estÇo tambàm<br />
os ricos e a classe màdia da Zona Sul carioca e os tipos mais populares da Zona Norte e do<br />
Centro. Casas em condomÉnios fechados, espaÅosas e finamente <strong>de</strong>coradas, convivem com<br />
sobrados <strong>de</strong> pequenos còmodos e sobrecarregados <strong>de</strong> enfeites; edifÉcios mo<strong>de</strong>rnos e imponentes<br />
guardam a se<strong>de</strong> das gran<strong>de</strong>s empresas enquanto lojas simples e <strong>de</strong>spojadas abrigam pastelarias e<br />
pequenos comàrcios. NÇo será atravàs da composiÅÇo dos cenários, da locaÅÇo dos lares e<br />
ambientes <strong>de</strong> trabalho, nem mesmo do figurino das personagens, que as narrativas levarÇo a<br />
audiÖncia ao questionamento. Nas telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, à o convite para assumir o ponto<br />
<strong>de</strong> vista do Outro que proporciona um novo olhar sobre o Eu brasileiro.<br />
Se as personagens “viajantes” que cruzam constantemente as fronteiras nacionais<br />
verbalizam em seu espanto as diferenÅas entre os dois mundos, tal contraponto tambàm se dá<br />
na oferta <strong>de</strong> tramas em “negativo”: a reverÖncia dos indianos com os mais velhos, inspirada<br />
na crenÅa <strong>de</strong> que “quando um velho morre, per<strong>de</strong>-se uma biblioteca inteira”, tem como<br />
contraponto o menosprezo <strong>de</strong> Ramiro em relaÅÇo ä capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliaÅÇo e <strong>de</strong>cisÇo do<br />
patriarca dos Cadore, con<strong>de</strong>nado em sua aposentadoria ä inutilida<strong>de</strong>; a obediÖncia dos filhos<br />
ao pai na famÉlia Ananda se opâe ä falta <strong>de</strong> limites com que Càsar Galo Goulart (<strong>de</strong>s)educa<br />
seu filho “pitboy”; o respeito incondicional pelos brêmanes, casta indiana <strong>de</strong> sábios,<br />
185
sacerdotes e professores, se traduz, no Brasil, pela arrogência, <strong>de</strong>sprezo e atà violÖncia com<br />
que Zeca e sua turma tratam a professora BerÖ; a intocabilida<strong>de</strong> e a invisibilida<strong>de</strong> dos dálits,<br />
párias da socieda<strong>de</strong> hindu, encontra paralelo na exclusÇo social imposta aos doentes mentais<br />
brasileiros. A autora didaticamente faz Camila expressar inëmeras vezes seu espanto com a<br />
falta <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>, com o impedimento <strong>de</strong> manifestar amor ao marido em pëblico, com a<br />
ofensa involuntária que seus momentos <strong>de</strong> reclusÇo representam para a famÉlia Ananda. Muito<br />
mais expressivo, no entanto, à o expediente narrativo <strong>de</strong> contrapor e intercalar cenas que,<br />
dramaticamente, expâem a distência (ou a insuspeita proximida<strong>de</strong>) entre as duas culturas.<br />
Assim, Gloria Perez representa o Eu como uma curiosa antÉtese (para o bem e para o<br />
mal) do Outro muÅulmano e indiano: a permanente oposiÅÇo forÅa a reflexÇo sobre valores<br />
que o brasileiro per<strong>de</strong>u (unida<strong>de</strong> da famÉlia, respeito aos mais velhos, e visÇo do indivÉduo<br />
como um ser coletivo) e o reconhecimento <strong>de</strong> que aquilo que repudiamos no diferente (a<br />
segregaÅÇo social e a intolerência com o estrangeiro) sÇo encontráveis tambàm entre nÑs (a<br />
exclusÇo dos doentes mentais da socieda<strong>de</strong> e a indiferenÅa com o drama do <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
quÉmico). A autora oferece ao pëblico uma representaÅÇo do Eu que forÅa o questionamento<br />
do que nos parece normal: como diz o psiquiatra Joel Birman, “NÇo se po<strong>de</strong> dizer que o Brasil<br />
foi colocado no divÇ, mas o estilo da narrativa se sustenta por uma ironia mordaz sobre os<br />
<strong>de</strong>sdobramentos funestos do jeitinho ä brasileira” 382 . Os “<strong>de</strong>svios <strong>de</strong> conduta das elites” e a<br />
“naturalizaÅÇo da psicopatia nas elites” 383 , segundo ele, sÇo vistos, por exemplo, no sucesso<br />
profissional e financeiro <strong>de</strong> Ramiro (apesar <strong>de</strong> nÇo ser exemplo <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>), no confisco que<br />
empreen<strong>de</strong> aos bens <strong>de</strong> sua cunhada, no engajamento criminoso <strong>de</strong> sua sobrinha para se<br />
vingar do tio que lhe tirou a fortuna, e no expediente <strong>de</strong> Raul <strong>de</strong> forjar a prÑpria morte para<br />
fugir com a amante e gastar no exterior o dinheiro do <strong>de</strong>sfalque produzido contra a empresa<br />
<strong>de</strong> sua famÉlia. O preconceito dos ricos e bem-sucedidos com a doenÅa mental po<strong>de</strong> ser<br />
observado no <strong>de</strong>sconforto <strong>de</strong> Melissa com a esquizofrenia <strong>de</strong> Tarso, vista por ela como uma<br />
mancha no currÉculo perfeito da famÉlia endinheirada, bonita e feliz; e tambàm em sua<br />
resistÖncia a entregar o filho ao tratamento, ao contrário da domàstica Cema, que, mesmo com<br />
dificulda<strong>de</strong>s, reconhece a importência do acompanhamento màdico <strong>de</strong> A<strong>de</strong>mir. O medo dos<br />
doentes mentais e a consequente crenÅa <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vam ser mantidos confinados, fora da<br />
socieda<strong>de</strong>, frutos da <strong>de</strong>sinformaÅÇo <strong>de</strong> muitos sobre as caracterÉsticas da psicose e da<br />
frequente confusÇo com a psicopatia, foram tratados com humor atravàs da personagem<br />
Suellen que, <strong>de</strong> um lado, <strong>de</strong>sfrutava da adorável companhia <strong>de</strong> seu parceiro <strong>de</strong> danÅa sem<br />
382 BIRMAN, “A pornografia no jeitinho brasileiro”, Jornal do Brasil, 23 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009, p. A10.<br />
383 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
186
saber que ele era psicÑtico, e, <strong>de</strong> outro, sequer passava perto da clÉnica psiquiátrica do noivo.<br />
Ao revelar a face velada e envergonhada <strong>de</strong> tantos Outros que habitam o Eu, a autora nÇo sÑ<br />
permite que os Outros-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo sejam vistos como sujeitos comparáveis a si<br />
prÑprios, mas tambàm expâe o lado nÇo tÇo “normal” e “sÇo” dos brasileiros.<br />
Em todas as suas representaÅâes do Eu e do Outro, a autora rejeitou o maniqueÉsmo e<br />
didatismo e abriu mÇo da arrogência do julgamento. No caso dos muÅulmanos e indianos<br />
locais e fiàis aos costumes mais arcaicos, a representaÅÇo nÇo lhes marcava com a pecha <strong>de</strong><br />
retrÑgrados; da mesma forma, os mais flexÉveis, os “turistas” que já haviam confrontado o<br />
universo local com o global nÇo agiam como se estivessem renegando os costumes em troca<br />
da “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”, embora os mais rÉgidos e idosos expressassem seu temor <strong>de</strong> que isso<br />
viesse acontecer e “<strong>de</strong>svirtuar” a famÉlia. Ambos eram somente apresentados como diferentes.<br />
A apresentaÅÇo <strong>de</strong> alguns costumes arcaicos como sendo estranhos (diferentes, curiosos) a nÑs<br />
era sempre contrabalanÅada com uma sabedoria ou um princÉpio filosÑfico que soava como<br />
uma contribuiÅÇo preciosa ä nossa mentalida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal e materialista. Da mesma forma, o<br />
papel das personagens “turistas” na trama nÇo era o <strong>de</strong> confrontar as mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>s do mundo<br />
oci<strong>de</strong>ntal com o arcaismo do mundo oriental ou os valores e a tradiÅÇo do Oriente com o vale-<br />
tudo do Oci<strong>de</strong>nte. Cabia a eles apenas fazer a traduÅÇo das culturas: aqui à assim, lá à assado.<br />
Nem melhor nem pior. Tanto que Raj, que estava prestes a se unir ä carioca Duda por amor<br />
nos mol<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais, foi convocado a contrair matrimònio com uma noiva <strong>de</strong>sconhecida<br />
(moÅa virtuosa escolhida por seus pais), aceitou a <strong>de</strong>terminaÅÇo da famÉlia (nÇo sem alguma<br />
resistÖncia, à verda<strong>de</strong>, afinal ele amava a brasileira), casou-se com Maya e se dispòs a<br />
construir um amor com ela já que assim era como <strong>de</strong>via ser feito. Em seus conselhos para o<br />
irmÇo, que tambàm estava apaixonado por uma “firanghi” estrangeira, Raj insistia em dizer a<br />
Ravi que sabia como ele se sentia por querer casar por amor, mas oferecia seu exemplo como<br />
alguàm que aceitou os costumes e estava feliz. Ambos os casamentos foram mostrados como<br />
uma uniÇo feliz.<br />
No contexto das relaÅâes marcadas pelo contato internacional, a autora ofereceu a<br />
perplexida<strong>de</strong> das personagens locais que eram submetidas ä condiÅÇo <strong>de</strong> estrangeiro, daqueles<br />
que entram em contato com o Outro (mesmo sem ter que viajar para o exterior), mas ainda estÇo<br />
com sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional preservada. Foi assim quando Duda recebeu <strong>de</strong> Raj a notÉcia do<br />
rompimento do noivado: apesar <strong>de</strong> toda a sincerida<strong>de</strong> do indiano em dizer que ainda amava a<br />
brasileira, mas que tinha <strong>de</strong> se casar na índia com uma <strong>de</strong>sconhecida porque sua famÉlia assim<br />
<strong>de</strong>terminava, nÇo havia meios <strong>de</strong> Duda enten<strong>de</strong>r a explicaÅÇo que lhe parecia a mais<br />
esfarrapada das <strong>de</strong>sculpas e que lhe pintava o noivo como o mais perfeito canalha. Foi assim<br />
187
tambàm quando Opash teve que vir ao Brasil: nÇo conseguia se acostumar com a “loirice” <strong>de</strong><br />
Ivete, seu cicerone, nem compreen<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>spudor da mulher brasileira em andar seminua<br />
pelas ruas. Foi assim ainda quando os alpinistas sociais Càsar e Ilana chegaram ä índia para o<br />
casamento da filha: diante da expectativa <strong>de</strong> Opash, pai <strong>de</strong> Ravi, o noivo, em receber o dote<br />
por Camila e da insistÖncia com que tentava encaminhar ao casal a lista <strong>de</strong> presentes a serem<br />
ofertados ä famÉlia do noivo, os brasileiros se negavam a fazer papel <strong>de</strong> otários, certos <strong>de</strong> que<br />
dote e presentes eram golpe do esperto comerciante <strong>de</strong> tecidos e nÇo um costume<br />
tradicionalÉssimo na índia. O mesmo se repetiu durante a conversa entre a mÇe e a madrasta<br />
<strong>de</strong> Camila com sua sogra: enquanto as brasileiras <strong>de</strong>monstravam estranhar o costume familiar<br />
indiano <strong>de</strong> morarem todos ─ pais, filhos, noras, netos, avÑs e tios ─ em uma mesma casa,<br />
prática para elas insuportável pois nÇo dava privacida<strong>de</strong> a ninguàm, a indiana falava da alegria<br />
<strong>de</strong> ter a famÉlia toda por perto e <strong>de</strong>screvia a privacida<strong>de</strong> como algo terrÉvel, con<strong>de</strong>naÅÇo <strong>de</strong><br />
isolamento prÑpria <strong>de</strong> quem está doente ou <strong>de</strong>primido. Tambàm aqui, na representaÅÇo do<br />
estrangeiro diante do local, a atitu<strong>de</strong> da autora à oferecer os dois pontos <strong>de</strong> vista sempre em<br />
contraponto, com estranheza <strong>de</strong> ambos os lados. Para acentuar o tom <strong>de</strong> ruÉdo na comunicaÅÇo<br />
entre culturas tÇo diferentes, a novelista invariavelmente recorria ä comicida<strong>de</strong>.<br />
Com cautela respeitosa e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za inconteste, Gloria Perez construiu representaÅâes<br />
do Outro-estrangeiro e do Outro-<strong>de</strong>ntro-do-mesmo que se revelaram fruto <strong>de</strong> um olhar<br />
amoroso e humanista sobre a diferenÅa, <strong>de</strong> uma curiosida<strong>de</strong> pela diversida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>fesa<br />
da inclusÇo social. A arte da novelista foi alàm do entretenimento que se espera <strong>de</strong> uma<br />
telenovela: estabeleceu uma ponte <strong>de</strong> compreensÇo entre o Eu e o Outro e levantou questâes<br />
que afetam o cotidiano brasileiro.<br />
8.3 <strong>ENTRE</strong> A FANTASIA E O REAL<br />
FicÅÇo e realida<strong>de</strong> caminham juntas na obra <strong>de</strong> Gloria Perez. Na prà-produÅÇo <strong>de</strong> suas<br />
novelas, a autora garimpa informaÅâes do mundo real em jornais, sites e blogs; entrevista<br />
autorida<strong>de</strong>s e gente comum; colhe <strong>de</strong>poimentos e confissâes Éntimas ─ <strong>de</strong>dica-se com<br />
serieda<strong>de</strong> ao trabalho <strong>de</strong> etnÑgrafa, jornalista e psicÑloga para pintar com as cores da realida<strong>de</strong><br />
as histÑrias originais e criativas que saem <strong>de</strong> sua imaginaÅÇo. Nas telas, expâe a dor <strong>de</strong> gente<br />
<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>; dá voz a quem nÇo tem vez na socieda<strong>de</strong> brasileira; transforma pessoas comuns,<br />
artistas e autorida<strong>de</strong>s em personagens; convida celebrida<strong>de</strong>s a abrilhantar a cena ─ cruza sem<br />
cerimònia a fronteira entre a vida real e a vida da ficÅÇo para que o diálogo entre estes dois<br />
188
mundos possa dar credibilida<strong>de</strong> ä fantasia e possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sonhos (e transformaÅÇo) ä<br />
realida<strong>de</strong>. No dia-a-dia, pâe em aÅÇo na televisÇo a vida encenada do folhetim. Em seu<br />
blog 384 , registra as idàias que lhe inspiram a criativida<strong>de</strong>, os projetos <strong>de</strong> novela, a escalaÅÇo do<br />
elenco, os dados importantes da pesquisa antropolÑgica, as notÉcias pertinentes, os<br />
comentários (seus e <strong>de</strong> outrem) sobre os fatos do cotidiano, os bastidores da produÅÇo da<br />
novela, os resultados do IBOPE, a preocupaÅÇo contÉnua com as causas que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, os<br />
efeitos sociais <strong>de</strong> suas campanhas, as homenagens e prÖmios recebidos ─ esteja ou nÇo<br />
escrevendo ficÅÇo, a autora mantàm aberto um canal paralelo <strong>de</strong> comunicaÅÇo com o pëblico<br />
atravàs do qual escoam, em registros pessoais e realistas, as inquietaÅâes, os <strong>de</strong>sejos e as<br />
conquistas <strong>de</strong> sua alma profissional e cidadÇ.<br />
Embora o trabalho <strong>de</strong> pesquisa da autora tenha sido fundamental para a construÅÇo <strong>de</strong><br />
uma representaÅÇo nada leviana sobre o Outro e embora a os registros da novelista em seu<br />
blog tenham permitido uma leitura paralela das telenovelas, à preciso aqui concentrar a<br />
atenÅÇo apenas na narrativa televisiva <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias”. Pela coragem<br />
em abordar temas <strong>de</strong>licados da realida<strong>de</strong> brasileira (a <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica e a doenÅa mental)<br />
e pela estratàgia <strong>de</strong> utilizar <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> drogados/familiares da vida real e ainda pela<br />
inclusÇo <strong>de</strong> doentes mentais reais como personagens ─ pelo realismo, enfim ─ ambas as<br />
telenovelas foram festejadas em seu compromisso <strong>de</strong> trazer o real para as telas, provocando<br />
discussâes e mudanÅas na socieda<strong>de</strong>. Por outro lado, tais folhetins foram severamente<br />
criticados por <strong>de</strong>ixarem <strong>de</strong> lado os cÑdigos <strong>de</strong> tempo, espaÅo e lÉngua nacional, <strong>de</strong>srespeitando<br />
a regra básica da telenovela: a verossimilhanÅa. A crÉtica se concentrou basicamente na forma<br />
com que a autora apresentou o trênsito entre o Brasil e o Marrocos e entre o Brasil e a índia<br />
(como se tais paÉses estivessem “logo ali”), na frequÖncia com que incluiu cenas <strong>de</strong> danÅa nos<br />
nëcleos estrangeiros (como se todos “vivessem danÅando”) e no emprego do portuguÖs como<br />
a lÉngua falada naqueles dois paÉses (como se esta fosse uma lÉngua universal).<br />
A idàia <strong>de</strong> verossimilhanÅa como elemento constitutivo do folhetim vem das regras <strong>de</strong><br />
AristÑteles para a tragàdia. Para o filÑsofo, os atos narrados nÇo precisam se ren<strong>de</strong>r äquilo que<br />
384 As confluÖncias entre ficÅÇo e realida<strong>de</strong> ─ já se sabe ─ sÇo um traÅo forte da novelista, mas foram suas<br />
aventuras pelo mundo da tecnologia que lhe apresentaram o blog como uma alternativa para sua verve<br />
comunicativa. GraÅas ao seu diário digital “De tudo um pouco”, o pëblico e qualquer estudioso sobre Gloria<br />
Perez po<strong>de</strong> contar com uma leitura paralela e extremamente rica sobre a autora e seus trabalhos. As visitas ao<br />
blog da novelista serviram a este estudo como fonte adicional <strong>de</strong> pesquisa e permitiram o acesso a informaÅâes<br />
raramente encontráveis nas inëmeras (e superficiais) publicaÅâes sobre televisÇo e nos quase inexistentes<br />
espaÅos seriamente <strong>de</strong>dicados ä crÉtica <strong>de</strong> telenovela. Especialmente no caso <strong>de</strong> “Caminho das índias”, novela<br />
cuja exibiÅÇo transcorreu simultaneamente a este trabalho, os dados do blog permitiram uma rara possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> diálogo, já que o cenário acadÖmico ainda nÇo tinha tido tempo <strong>de</strong> produzir reflexâes sobre obra tÇo recente.<br />
As visitas ao blog permitiram tambàm perceber a intensida<strong>de</strong> da troca que este canal <strong>de</strong> comunicaÅÇo promove<br />
com o pëblico: em 17 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2010, o contador registrava a marca <strong>de</strong> 920.357 visitantes!<br />
189
precisamente aconteceu: o poeta que escreve uma tragàdia, ao contrário do historiador,<br />
tambàm narra o que po<strong>de</strong>ria ter acontecido, o possÉvel, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se apÑie na verossimilhanÅa<br />
ou na necessida<strong>de</strong>, importando para isso que o conjunto <strong>de</strong> fatos escolhidos seja enca<strong>de</strong>ado<br />
segundo uma or<strong>de</strong>m necessária. Ao poeta nÇo sÇo exigidas nem a invenÅÇo original nem a<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aos mitos tradicionais 385 . Ser verossÉmil à, pois, parecer verda<strong>de</strong>iro, parecer<br />
possÉvel. Tal regra diz respeito ä arte <strong>de</strong> contar histÑrias que arrebatem o pëblico e produzam<br />
nele o sentimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo com o que à narrado e uma posterior purgaÅÇo (catarse) das<br />
emoÅâes suscitadas pela mÉmese. Contestadas, no entanto, como instrumentos <strong>de</strong> alienaÅÇo<br />
pelo teatro revolucionário <strong>de</strong> Brecht, a catarse e a verossimilhanÅa prescritas nos anos 300<br />
antes <strong>de</strong> Cristo carecem <strong>de</strong> revisÇo diante dos novos tempos. Talvez o que arrebate as platàias<br />
hoje seja a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mergulhar na emoÅÇo da trama e, dialeticamente, manter-se<br />
afastado para perceber o jogo ficcional.<br />
Umberto Eco, em Seis passeios pelos bosques da ficção, ensina que lidar com uma<br />
obra <strong>de</strong> ficÅÇo implica na aceitaÅÇo tácita, por parte do leitor, <strong>de</strong> um “acordo ficcional”: “O<br />
leitor tem <strong>de</strong> saber que o que está sendo narrado à uma histÑria imaginária, mas nem por isso<br />
<strong>de</strong>ve pensar que o escritor está contanto mentiras”; ele <strong>de</strong>ve “fingir” que “o que à narrado <strong>de</strong><br />
fato aconteceu” 386 . A ficÅÇo, para ele, “<strong>de</strong>screve um mundo que temos que aceitar tal como à,<br />
em confianÅa” 387 . ï um pacto <strong>de</strong> cooperaÅÇo para que o leitor possa se aventurar num mundo<br />
imaginário, “passÉvel <strong>de</strong> representaÅâes várias, inclusive irreconhecÉveis” 388 para ele. Eco<br />
explica que, nos romances pÑs-mo<strong>de</strong>rnos, o autor vai “<strong>de</strong>sarmando o leitor, em um primeiro<br />
momento, para que ele possa se aventurar pela realida<strong>de</strong> da ficÅÇo e, apÑs assinado o pacto <strong>de</strong><br />
verossimilhanÅa, volta a armá-lo para que, enfim, ele esteja apto para <strong>de</strong>svendar as ficÅâes<br />
que permeiam a nossa realida<strong>de</strong>” 389 . A literatura, entÇo, enquanto máquina ficcional, <strong>de</strong>ve<br />
reelaborar o empÉrico tendo como horizonte o papel do leitor na produÅÇo <strong>de</strong> sentidos do texto<br />
e a pluralida<strong>de</strong> discursiva daÉ resultante. Como <strong>de</strong>fine Jaques Ranciöre em uma <strong>de</strong> suas<br />
conferÖncias no Brasil, uma ficÅÇo, à “a construÅÇo <strong>de</strong> uma nova relaÅÇo entre a aparÖncia e a<br />
realida<strong>de</strong>, o visÉvel e o seu significado, o singular e o comum” 390 .<br />
Sendo assim, a verossimilhanÅa nÇo mais se refere ao real externo, empÉrico, mas ao<br />
real da ficÅÇo. Neste sentido, as crÉticas formuladas contra “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
385 AristÑteles, s/data, pp. 303-304.<br />
386 ECO, 1994, p. 81.<br />
387 Ibi<strong>de</strong>m, p. 95.<br />
388 Ibi<strong>de</strong>m, p. 81.<br />
389 Ibi<strong>de</strong>m, p. 95.<br />
390 RANCI†RE, “PolÉtica da arte”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 3 set. 2009.<br />
190
parecem exigir da telenovela que abra mÇo <strong>de</strong> sua natureza fictÉcia. “O tempo da ficÅÇo à<br />
outro”, argumenta Gloria Perez: “No romance, o autor vocÖ dá a volta ao mundo em uma<br />
linha” 391 . Toda histÑria contada recorta a aÅÇo a partir dos interesses da narrativa que se quer<br />
contar. Segundo a autora, se as personagens levassem dois dias para chegar ä índia, nÇo sÑ a<br />
novela nÇo andaria, como a ficÅÇo estaria se sujeitando ao tempo dos reality shows. Quanto ä<br />
reclamaÅÇo pelo fato <strong>de</strong> o portuguÖs ser a lÉngua falada no Marrocos e na índia da ficÅÇo<br />
televisiva, a novelista comenta:<br />
191<br />
ï o mesmo que nÇo gostar <strong>de</strong> [do filme] Ben-Hur, porque falava inglÖs e nÇo latim,<br />
que abominar [o filme] Gandhi, por nÇo ter sido filmado em hÉndi, que ridicularizar o<br />
cinema porque, em todos os filmes, o taxi está sempre na porta quando alguàm<br />
precisa, ou apedrejar “A Favorita”, porque, <strong>de</strong> dupla sertaneja a presidiária, Flora<br />
<strong>de</strong>sembarcou com a maior <strong>de</strong>senvoltura na presidÖncia <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> empresa. 392<br />
SÇo as liberda<strong>de</strong>s da ficÅÇo ─ como o uso das danÅas nÇo sÑ em momentos festivos<br />
como no dia-a-dia das famÉlias muÅulmanas e indianas, recurso muito usado pela autora para<br />
acentuar a cor cultural da trama, colocando em cena a fantasia. Gloria Perez nÇo abre mÇo <strong>de</strong><br />
danÅa e fantasia em suas novelas: a primeira à uma paixÇo pessoal, a segunda, um recurso que<br />
julga fundamental para produzir encantamento, a principal missÇo do folhetim, segundo ela.<br />
As duas promovem bom espetáculo. No caso especÉfico <strong>de</strong> “Caminho das índias”, as danÅas<br />
serviram tambàm para evocar a estàtica <strong>de</strong> Bollywood, on<strong>de</strong> os nëmeros musicais sÇo um<br />
emblema da cultura, o verda<strong>de</strong>iro chamariz da indëstria cinematográfica indiana para atrair o<br />
pëblico local. As cenas <strong>de</strong> danÅa funcionaram ainda como um eficaz recurso para alongar o<br />
tempo. ï preciso lembrar que, como diz a novelista, telenovela à uma obra <strong>de</strong> 200 capÉtulos<br />
em màdia, que implica a produÅÇo <strong>de</strong> 32 páginas <strong>de</strong> roteiro por dia. Ou seja: à uma obra<br />
extensa que precisa ser preenchida <strong>de</strong> aÅâes. No folhetim, “a arte à chegar aos acontecimentos<br />
pelo caminho mais longo, sem que seja chato, sem <strong>de</strong>ixar o pëblico perceber que à longo, sem<br />
per<strong>de</strong>r o interesse do pëblico, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> apresentar coisas novas” 393 . ï justamente para<br />
dar conta <strong>de</strong> sua extensÇo que a telenovela tem como pilar a peripàcia e o sensacional,<br />
recursos que permitem a construÅÇo <strong>de</strong> cenas muitas vezes consi<strong>de</strong>radas fantasiosas,<br />
inverossÉmeis, “coisas <strong>de</strong> novela”: como quando tudo parece indicar que o casal central vai<br />
finalmente se encontrar, mas algo inesperado acontece e eles nÇo se encontram; ou quando<br />
alguàm dispara vários tiros contra uma pessoa e no capÉtulo seguinte se <strong>de</strong>scobre que nenhum<br />
391 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 238.<br />
392 PEREZ, 26 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2009. Entrevista a Lu Dias (“Gloria Perez respon<strong>de</strong>”). DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 8 ago. 2009.<br />
393 PEREZ, op. cit., p. 239.
dos disparos acertou o alvo. Diferentemente da tragàdia grega, na lÑgica folhetinesca da<br />
telenovela, muitas vezes o verossÉmil tem que ce<strong>de</strong>r lugar ao sensacional, aos rocamboles da<br />
fantasia. Assim, exigir da telenovela que nÇo tenha fantasia à como “reclamar do soneto<br />
porque tem rima” 394 .<br />
Gloria Perez serve-se da verossimilhanÅa para criar cenas comoventes como as <strong>de</strong><br />
Maysa e Melissa, impotentes, diante da dor dos filhos, ou as <strong>de</strong> Mel e Tarso, vagando na<br />
angëstia solitária da doenÅa. Mas joga para o alto as regras <strong>de</strong> AristÑteles e assume o pacto<br />
ficcional quando precisa fazer a trama seguir na velocida<strong>de</strong> televisiva ou quando precisa<br />
semear o sonho. Os sinais <strong>de</strong> que tudo nÇo passava <strong>de</strong> ficÅÇo estiveram presentes <strong>de</strong> forma<br />
ostensiva em “O Clone” quando Doutor Albieri teve <strong>de</strong> ouvir as opiniâes <strong>de</strong> outros dois<br />
màdicos sobre a clonagem humana: a autora, brincando com sua prÑpria obra, convocou<br />
Doutor Molina e Miss Brown, personagens <strong>de</strong> “Barriga <strong>de</strong> Aluguel”, <strong>de</strong> 1990, para dar palpite<br />
na novela <strong>de</strong> 2001/2002. O pacto ficcional lhe foi essencial na conduÅÇo <strong>de</strong> seus folhetins. De<br />
outra forma, teria tido que legendar boa parte das cenas <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
e botar a aÅÇo “em banho-Maria”, aguardando que a personagem <strong>de</strong>sembarcasse do outro lado<br />
do oceano. Igualmente, tem consciÖncia <strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> empÉrica <strong>de</strong> uma cultura nÇo cabe<br />
no formato <strong>de</strong> uma novela e por isso cria alegorias que sintetizem o espÉrito do paÉs.<br />
Embora os crÉticos muitas vezes pareÅam <strong>de</strong>sconhecer a natureza do folhetim,<br />
cobrando aspectos que nÇo lhe sÇo prÑprios, nÇo sÇo poucos os que enten<strong>de</strong>m o pacto<br />
ficcional e embarcam na fantasia da novelista. Diante da insistente pergunta sobre a<br />
autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “Caminho das índias” em relaÅÇo ä realida<strong>de</strong> encontrada em seu paÉs, o<br />
embaixador da índia reenquadra a questÇo com luci<strong>de</strong>z ao afirmar que “novela à novela, nÇo<br />
um documentário”: “Por sua prÑpria natureza, ela exagera, glamouriza e seleciona o que à<br />
exÑtico mais do que aquilo que à habitual e comum. Os brasileiros [...] parecem enten<strong>de</strong>r<br />
isso” 395 . E relativiza sobre a realida<strong>de</strong> da índia: a<strong>de</strong>mais, “o que à REAL num paÉs com tanta<br />
diversida<strong>de</strong>, complexida<strong>de</strong> e contradiÅâes?” 396 [grifo do autor].<br />
Alegorias e simbolismos sÇo recursos legÉtimos da narrativa <strong>de</strong> ficÅÇo quando se quer<br />
transmitir uma i<strong>de</strong>ia ou forÅar a dramaticida<strong>de</strong> ─ mesmo que para isso seja necessário<br />
introduzir irrealida<strong>de</strong>s na realida<strong>de</strong> imitada, truncando a i<strong>de</strong>ntificaÅÇo e o reconhecimento.<br />
Para questionar os limites morais da clonagem humana e, sobretudo, para criticar a arrogência<br />
do ser humano em brincar <strong>de</strong> Deus, produzindo vida fora da natureza, Gloria Perez construiu<br />
394 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 239.<br />
395 PRAKASH, “Ma<strong>de</strong> in Brazil”. DisponÉvel em: . Acesso em 10 <strong>de</strong> nov. 2009.<br />
396 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
192
uma telenovela sem mÇes: em “O Clone”, Ja<strong>de</strong>, Latiffa e os gÖmeos Lucas e Diogo eram<br />
ÑrfÇos <strong>de</strong> mÇe; Said e Mohamed sÇo criados por um tio. Ironicamente, a autora fez uma<br />
personagem que luta <strong>de</strong>sesperadamente pela maternida<strong>de</strong> gerar, sem saber, por inseminaÅÇo<br />
artificial, um ser concebido em laboratÑrio. è “mÇe” do clone Lào, a novelista <strong>de</strong>u o<br />
sugestivo nome <strong>de</strong> Deusa! ï o simbÑlico a serviÅo da narrativa dramática.<br />
Como foi dito, o pacto ficcional tambàm ajuda a autora a construir o sonho. No ëltimo<br />
capÉtulo <strong>de</strong> “Caminho das índias”, Maya, arrasada pela suposta viuvez e pela revelaÅÇo <strong>de</strong> seu<br />
caso fora do casamento, caminha abatida äs margens do Ganges com as vestes brancas do<br />
viuvário quando, por entre a multidÇo, vÖ Raj, que tinha sido equivocadamente dado como<br />
morto. Raj está em busca da esposa, disposto a perdoá-la. Os olhos dos dois se cruzam e,<br />
quando a cêmera reencontra Maya, as escadas do Ganges estÇo <strong>de</strong>sertas e ela já está sem<br />
nenhum vestÉgio da dor, maquiada e exuberante em um sári vermelho, com as jÑias que lhe<br />
haviam sido subtraÉdas em seguida ä notÉcia da morte do marido. A transformaÅÇo <strong>de</strong> Maya<br />
nÇo respeita a lÑgica da realida<strong>de</strong> e sim a falta <strong>de</strong> lÑgica da fantasia. NÇo foi preciso<br />
acompanhar sua surpresa ao ver o marido vivo, suas perguntas sobre como tinha sobrevivido;<br />
nÇo foi preciso ouvir as razâes <strong>de</strong> Raj para perdoá-la nem suas juras <strong>de</strong> amor incondicional;<br />
igualmente nÇo foi necessário mostrar Maya procurando abrigo para trocar-se, nem vÖ-la<br />
livrando-se da tënica branca e embrulhando-se no vibrante sári para perceber que o simples<br />
perdÇo do marido tinha sido o condÇo que lhe havia <strong>de</strong>volvido a vida. E que o “amor<br />
construÉdo” estava ali consagrado: “NÑs construÉmos um amor; nÑs construÉmos, sim; agora<br />
eu tenho certeza”, <strong>de</strong>clara Raj. Nesse encontro, on<strong>de</strong> um sÑ tinha olhos para o outro, nada<br />
mais importa, nada mais existe ─ por isso a autora oferece ao pëblico um Ganges, agora<br />
<strong>de</strong>serto, abenÅoando a uniÇo do casal e preparando o “happy end”.<br />
O sonho, segundo a autora, tem funÅÇo social: preten<strong>de</strong> suprir uma carÖncia do<br />
pëblico, tÇo sobrecarregado <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s duras e cruas. Seria ingenuida<strong>de</strong>, no entanto, aceitar<br />
tal dimensÇo <strong>de</strong> seu trabalho sem consi<strong>de</strong>rar aqui as funÅâes “mercadolÑgicas” da telenovela<br />
enquanto produto. A mistura entre fantasia e realismo à certamente o trunfo criativo <strong>de</strong> Gloria<br />
Perez, seu valioso cacife no milionário jogo das telenovelas <strong>de</strong> horário nobre da TV Globo.<br />
Fazer sonhar e pensar a realida<strong>de</strong> na medida certa do gosto popular faz crescer a audiÖncia,<br />
eleva a arrecadaÅÇo com publicida<strong>de</strong> e amplia seu potencial <strong>de</strong> exportaÅÇo, entre muitos<br />
outros ganhos contabilizados pela emissora. Isso sem contar que o valor da originalida<strong>de</strong> da<br />
novelista ren<strong>de</strong> divi<strong>de</strong>ndos consi<strong>de</strong>ráveis em seu salário, na cotaÅÇo do merchandising, em<br />
seu currÉculo profissional, na valorizaÅÇo <strong>de</strong> seu vÉnculo <strong>de</strong> trabalho e em seu prestÉgio <strong>de</strong><br />
193
ficcionista. A funÅÇo social, portanto, nÇo po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista o horizonte do sucesso. No<br />
caso especÉfico <strong>de</strong> Gloria Perez, o inverso à igualmente verda<strong>de</strong>iro.<br />
NÇo se po<strong>de</strong> negar, no entanto, que o excesso <strong>de</strong> realismo experimentado hoje atravàs<br />
das cada vez mais populares tecnologias <strong>de</strong> captaÅÇo <strong>de</strong> imagem tem colocado o pëblico em<br />
permanente contato com a realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ixando-o carente <strong>de</strong> fantasia: as cenas <strong>de</strong> guerra sÇo<br />
testemunhadas na tevÖ como se a platàia estivesse nos campos <strong>de</strong> batalha, as cenas da<br />
violÖncia urbana captadas por cêmeras digitais e telefones celulares sÇo facilmente<br />
compartilhadas na mÉdia e na internet, e as cenas da vida privada ganham o domÉnio pëblico<br />
em todo tipo <strong>de</strong> reality show. Para contrabalanÅar o realismo em excesso, a sensibilida<strong>de</strong> da<br />
autora recomenda boas doses <strong>de</strong> sonho. Para ela, a fantasia à uma dimensÇo essencial do real,<br />
sem a qual ninguàm vive: “vocÖ nÇo lida sÑ com o que existe; vocÖ lida com o <strong>de</strong>sejo, com<br />
aquilo que vocÖ quer que exista” 397 . “Para se realizar uma coisa”, torná-la real, “à preciso<br />
sonhar antes” 398 , diz a novelista.<br />
Para os viciados em realida<strong>de</strong>, no entanto, a fantasia à o passaporte para a alienaÅÇo.<br />
No Brasil da intelligentsia, ao que parece, fantasia e alienaÅÇo parecem estar con<strong>de</strong>nadas a<br />
viver juntas. Segundo Gloria Perez, há um gran<strong>de</strong> patrulhamento contra a imaginaÅÇo no<br />
paÉs 399 . Para ela, pior do que conviver com o crivo dos “eruditos”, que insiste em classificar as<br />
gran<strong>de</strong>s narrativas <strong>de</strong>stinas äs massas como obras <strong>de</strong> baixa qualida<strong>de</strong> artÉstica, à constatar que,<br />
para muitos, tais narrativas <strong>de</strong>vem ser apenas veÉculo <strong>de</strong> doutrinaÅÇo e educaÅÇo. Por esta<br />
mentalida<strong>de</strong>, telenovela à alienaÅÇo, já que “aqui o povo nÇo po<strong>de</strong> apenas se distrair, ele tem<br />
que ser educado o tempo todo” 400 . A funÅÇo <strong>de</strong> educar, moralizar e doutrinar o povo nÇo à do<br />
folhetim, reclama ela: äs telenovelas cabe “divertir o pëblico”, muito embora algumas tramas<br />
cheguem a prestar um gran<strong>de</strong> serviÅo ä populaÅÇo.<br />
194<br />
Uma telenovela à apenas um folhetim. Se ela está fazendo o papel do Estado à porque<br />
algum problema há neste paÉs. Se ela está fazendo o papel que as instituiÅâes <strong>de</strong>viam<br />
fazer, se ela está dando respostas que cabiam ao Estado e prestando os serviÅos que as<br />
instituiÅâes <strong>de</strong>viam fazer, algo está mal no paÉs. Vamos questionar o paÉs e nÇo a<br />
telenovela. 401<br />
Triste o paÉs em que se cobra da indëstria <strong>de</strong> entretenimento aquilo que cabe äs<br />
escolas! Tambàm me incomoda que, muitas vezes, as pessoas estejam mais<br />
empenhadas em interferir no mundo ficcional do que no mundo real, mais revoltada<br />
com o comportamento <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong> novela do que com o comportamento <strong>de</strong><br />
personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> carne e osso, cujos atos interferem, <strong>de</strong> fato, na vida real. 402<br />
397<br />
PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 248.<br />
398<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
399<br />
PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 241.<br />
400<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
401<br />
Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
402<br />
PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, pp. 440-441.
Da mesma forma, a funÅÇo <strong>de</strong> ser realista, acredita a autora, à do jornalismo: “Quem tem que<br />
fazer a reportagem e se ater ao real à o jornal, nÇo à o folhetim” 403 . “A funÅÇo da telenovela à<br />
encantar as pessoas, fazer sonhar”, afirma.<br />
Entre a fantasia e o real, as telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez transitam por um domÉnio que<br />
a um tempo po<strong>de</strong> parecer mera ficÅÇo cientÉfica, exercÉcio <strong>de</strong> imaginaÅÇo fantasiosa, e em<br />
seguida se revelar real. A curiosida<strong>de</strong> e a sensibilida<strong>de</strong> da autora para o novo muitas vezes<br />
colocam-na ä frente <strong>de</strong> seu tempo, antecipando realida<strong>de</strong>s que nem o jornalismo foi ainda<br />
capaz <strong>de</strong> captar. Dizem que ela tem “bola <strong>de</strong> cristal”, mas a novelista garante que, embora<br />
po<strong>de</strong>rosas, suas “antenas” nÇo sÇo mágicas. Por serem <strong>de</strong>sconhecidas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte do<br />
pëblico e mesmo da gran<strong>de</strong> mÉdia, as situaÅâes criadas por ela ou os temas abordados foram<br />
muitas vezes con<strong>de</strong>nados pela distência que guardavam do real. Mera ignorência <strong>de</strong> quem nÇo<br />
está atento ä realida<strong>de</strong>, garante a novelista.<br />
195<br />
Acharam inverossÉmil que uma mulher pu<strong>de</strong>sse carregar o filho <strong>de</strong> outra em sua<br />
barriga. Na sequÖncia, tambàm acharam inverossÉmil transplante <strong>de</strong> coraÅÇo, troca <strong>de</strong><br />
bebÖs na maternida<strong>de</strong>, costumes muÅulmanos, clonagem humana, internet, cultura<br />
indiana, brasileiro atravessando o <strong>de</strong>serto pra chegar aos EUA. Nada disso existia, era<br />
tudo invenÅÇo da minha cabeÅa! Acho que o coro mais forte foi quando escrevi<br />
Explo<strong>de</strong> coração em 96. Gritaram que a internet era pura invenÅÇo minha. NÇo à<br />
incrÉvel? 404<br />
A propÑsito <strong>de</strong> “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, os “<strong>de</strong>lÉrios visionários” <strong>de</strong>sta acreana criada no<br />
meio do nada experimentaram um casamento perfeito quando o roteiro da novela caiu nas<br />
mÇos do <strong>de</strong>signer <strong>de</strong> televisÇo Hans Donner, incumbido <strong>de</strong> criar a abertura da novela. O<br />
encontro da vocaÅÇo para a fantasia da autora com a capacida<strong>de</strong> imaginativa do <strong>de</strong>signer<br />
resultou numa sequÖncia <strong>de</strong> imagens que antecipa o futuro em mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos! Na<br />
abertura 405 , um homem assiste a uma tevÖ <strong>de</strong> tela plana, fina como as <strong>de</strong> plasma, e sensÉvel ao<br />
toque, quase como as que se vÖ hoje. Nela à possÉvel movimentar a imagem com o recurso<br />
das fuÅâes drag e drop, bem como acionar o zoom com dois toques rápidos. Neste exercÉcio<br />
bem sucedido <strong>de</strong> futurologia, resta saber quanto tempo ainda levará para chegar atà nÑs a<br />
funÅÇo criada por Donner, que materializa uma pessoa apÑs um simples comando <strong>de</strong> tela!<br />
Na confluÖncia entre a linguagem realista, a linguagem simbÑlica e a linguagem da<br />
representaÅÇo simbÑlica da realida<strong>de</strong>, as telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, como as <strong>de</strong>mais, ainda<br />
tÖm <strong>de</strong> experimentar a interferÖncia da realida<strong>de</strong> na ficÅÇo. Sendo obra escrita durante a<br />
403<br />
PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 239.<br />
404<br />
PEREZ apud. CALIL, “Dias <strong>de</strong> GlÑria”. DisponÉvel em: .<br />
Acesso em 12 set. 2009.<br />
405<br />
Ver em “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo (1995-1996) Abertura”. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 15 jan. 2010.
exibiÅÇo dos capÉtulos, e sendo arte que <strong>de</strong>ve agradar o pëblico, o folhetim televisivo à sensÉvel<br />
ao gosto popular. A novelista, no entanto, insiste que nÇo se ren<strong>de</strong> a ele nem o <strong>de</strong>ixa conduzir a<br />
histÑria. Prefere dizer que gosta <strong>de</strong> “expressar” a audiÖncia, proporcionando-lhe as emoÅâes que<br />
<strong>de</strong>seja sentir. A sutil distinÅÇo preserva a autonomia do autor sobre sua obra, mantendo-a, no<br />
entanto, aberta. Sob a luz das contribuiÅâes <strong>de</strong> Umberto Eco, em Obra Aberta: forma e<br />
in<strong>de</strong>terminação nas poéticas contemporâneas 406 , a discussÇo merece mais atenÅÇo.<br />
I<strong>de</strong>ntificada tradicionalmente como obra aberta pelo fato <strong>de</strong> a narrativa ser construÉda<br />
no correr <strong>de</strong> sua exibiÅÇo e <strong>de</strong> sofrer a influÖncia da audiÖncia ao longo <strong>de</strong> sua produÅÇo, a<br />
telenovela muitas vezes teve o pëblico como co-autor. Tal “parceria”, que chegava a ren<strong>de</strong>r<br />
finais <strong>de</strong> novelas ambÉguos, capazes <strong>de</strong> agradar os diferentes gostos do espectador, nÇo mais<br />
tem lugar no contexto dos caros investimentos em produÅÇo <strong>de</strong> telenovela. Ao invàs <strong>de</strong> obra<br />
aberta, o que se tem agora à, no máximo, interativida<strong>de</strong>: resultante da sofisticaÅÇo dos<br />
equipamentos <strong>de</strong> aferiÅÇo da audiÖncia, da prÑpria polissemia da narrativa televisiva e do<br />
compromisso comercial do gÖnero com a satisfaÅÇo do consumidor, a participaÅÇo do receptor<br />
à um pressuposto da abertura inerente a toda obra <strong>de</strong> arte. Na distinÅÇo entre a obra aberta e a<br />
abertura <strong>de</strong> toda obra <strong>de</strong> arte, Eco foi muito claro. A primeira <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma intenÅÇo <strong>de</strong><br />
ambiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberada no processo <strong>de</strong> criaÅÇo, uma opÅÇo estàtica do artista que <strong>de</strong>ixa ao<br />
receptor a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha entre sequÖncias possÉveis, <strong>de</strong>safiando-o a construir<br />
sentido. A segunda resulta da in<strong>de</strong>terminaÅÇo inerente äs poàticas contemporêneas,<br />
polissÖmicas, em que o conteëdo da arte possibilita mëltiplas interpretaÅâes que se modificam<br />
segundo o ênimo, o tempo histÑrico e a linguagem do receptor (já que a recepÅÇo à parte<br />
inerente da obra). Nesse sentido, a telenovela traz a abertura que permite proporcionar várias<br />
“leituras” ao pëblico. Tais “leituras”, no entanto, estÇo circunscritas äs condicionantes<br />
prÑprias do perÉodo <strong>de</strong> exibiÅÇo da trama, uma vez que a novela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir quando o<br />
ëltimo capÉtulo vai ao ar, impossibilitando interpretaÅâes geracionais atravàs do tempo. Por<br />
outro lado, a telenovela contemporênea nÇo parece po<strong>de</strong>r correspon<strong>de</strong>r aos preceitos da obra<br />
aberta: sua narrativa nÇo oferece diferentes percursos possÉveis <strong>de</strong> inferÖncia. As numerosas<br />
interferÖncias do pëblico nos rumos da trama folhetinesca nÇo propiciam a configuraÅÇo <strong>de</strong><br />
ambiguida<strong>de</strong>s na construÅÇo <strong>de</strong> sentido ─ apenas indicam o caminho seguro para o autor<br />
“fechar” a narrativa com maior aceitaÅÇo. Tecnicamente, portanto, a participaÅÇo da audiÖncia<br />
nos rumos da trama à mais uma medida da abertura da obra do que <strong>de</strong> sua configuraÅÇo como<br />
obra aberta.<br />
406 ECO, 2005.<br />
196
197<br />
Assim, a ausculta apurada da recepÅÇo empreendida por Gloria Perez e a<br />
interativida<strong>de</strong> daÉ resultante constituem um jogo <strong>de</strong> forÅas entre a originalida<strong>de</strong> autoral, o<br />
gosto popular, o prazer do previsÉvel e a graÅa da surpresa. O hábito <strong>de</strong> encerrar os capÉtulos<br />
sem ter i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> como vai conduzi-los no dia seguinte parece <strong>de</strong>ixá-la suscetÉvel a <strong>de</strong>ixar sua<br />
histÑria ser guiada pela cabeÅa da audiÖncia. A novelista garante que à a prÑpria narrativa que<br />
lhe dá a direÅÇo. Segundo ela, o gran<strong>de</strong> pëblico enquanto massa sÑ lida com um repertÑrio <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ias que à preexistente 407 , que ele já viu em algum lugar ─ diferentemente do indivÉduo, que<br />
à capaz <strong>de</strong> imaginar coisas originais. Por isso crÖ que se o autor segue as sugestâes da<br />
audiÖncia estará fadado a ser consi<strong>de</strong>rado previsÉvel por ela. O autor, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve sempre<br />
surpreen<strong>de</strong>r a plateia com sua imaginaÅÇo criativa, mantendo-se fiel ä i<strong>de</strong>ia que quer<br />
transmitir. Aqui, a intuiÅÇo servirá apenas para captar o tipo <strong>de</strong> emoÅÇo que <strong>de</strong>ve ser tocada a<br />
cada cena. E isso à uma missÇo a ser executada pela narrativida<strong>de</strong>, por seu talento na arte <strong>de</strong><br />
contar a histÑria, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mente do tema abordado ou do <strong>de</strong>stino que o autor reserva para as<br />
personagens. Escrever uma cena, para a novelista, à construir uma emoÅÇo em quem assiste:<br />
“NÇo adianta mudar a histÑria [se a cena nÇo emocionou], porque, se ela vai continuar sendo<br />
contada <strong>de</strong> um jeito pouco atraente, nÇo vai interessar do mesmo jeito” 408 .<br />
Por linhas tortas, Gloria Perez parece ter sido surpreendida por sua prÑpria<br />
narrativida<strong>de</strong>: em “Caminho das índias”, embora tenha se preparado para escrever a histÑria<br />
do amor impossÉvel entre a moÅa <strong>de</strong> casta e o dálit, e acompanhar a saga do casal para romper<br />
a resistÖncia do preconceito, seu talento <strong>de</strong> contadora <strong>de</strong> histÑrias construiu com tamanha<br />
<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e sensibilida<strong>de</strong> o romance entre Maya e Raj, o marido que lhe coube apÑs ter sido<br />
abandonada pelo intocável, que a trama acabou tomando um rumo inusitado, graÅas ä<br />
inesperada e arrebatadora empatia do pëblico com o noivo arranjado e a histÑria do amor<br />
construÉdo com a convivÖncia. A emoÅÇo do romance que transpirava em cada cena do casal<br />
improvável e a intensida<strong>de</strong> com que a audiÖncia se mostrou seduzida por esta novida<strong>de</strong><br />
conduziram a novelista a intuir que, numa trama on<strong>de</strong> a tònica à o diferente, o amor entre dois<br />
jovens <strong>de</strong>sconhecidos unidos por uma imposiÅÇo que <strong>de</strong>sprezava seus sentimentos soava<br />
muito menos familiar aos brasileiros ─ e, por isso mesmo, mais original ─ do que o amor<br />
impossÉvel tantas vezes explorado em telenovelas.<br />
Contudo, para nÇo abandonar <strong>de</strong> todo um dos pilares mais fortes da cartilha do<br />
folhetim, a engenhosida<strong>de</strong> da autora promoveu uma “torÅÇo” num dos pÑlos do amor<br />
impossÉvel: se, no inÉcio da novela, era Maya quem estava impedida <strong>de</strong> amar um homem sem<br />
407 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 249.<br />
408 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 480-481.
casta, ao <strong>de</strong>cidir pelo casal Maya-Raj, Gloria Perez colocou sobre Raj o foco do amor<br />
impossÉvel, fazendo-o amargar todo tipo <strong>de</strong> sofrimento para superar os impedimentos<br />
religiosos, culturais e masculinos do marido que <strong>de</strong>scobre a mentira da esposa, a gravi<strong>de</strong>z fora<br />
do casamento e a origem sem casta do filho que pensava ser seu. O conto <strong>de</strong> fadas indiano<br />
abandonou a trama do amor que <strong>de</strong>safia o sistema <strong>de</strong> castas e manteve o dálit apenas como<br />
uma ameaÅa ao amor construÉdo pelo casal arranjado. A <strong>de</strong>cisÇo da autora em assumir a<br />
reviravolta e ainda assim manter o folhetim <strong>de</strong>ixa claro o controle exclusivo <strong>de</strong> Gloria Perez<br />
sobre uma obra interativa, sim, mas nada aberta.<br />
Costurado com as linhas rÉgidas da tradiÅÇo hindu, o nÑ original criado por Gloria<br />
Perez nÇo seria facilmente <strong>de</strong>satado. SÑ mesmo pela invocaÅÇo do “po<strong>de</strong>r inquebrantável do<br />
amor” e pela aÅÇo das “forÅas imprevisÉveis do <strong>de</strong>stino”, a trama po<strong>de</strong>ria fazer Maya e<br />
Bahuam consumar seu projeto <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> ao lado do filho. Os <strong>de</strong>scaminhos prÑprios <strong>de</strong><br />
uma obra que vai se construindo aos poucos como a telenovela acabaram por <strong>de</strong>safiar os<br />
<strong>de</strong>stinos ensaiados em sua sinopse. ï bem verda<strong>de</strong> que a sinopse nÇo previa o final da novela:<br />
as tramas foram alinhavadas atà seu ponto <strong>de</strong> virada, quando “Bahuam [...] volta para a índia<br />
e fica entre casar com a milionária ou tentar reconquistar o amor <strong>de</strong> Maya” 409 . ï verda<strong>de</strong><br />
tambàm que a autora gosta <strong>de</strong> escrever <strong>de</strong> forma imprevisÉvel, ousadia assegurada pelo<br />
profundo domÉnio da tàcnica do folhetim: “NÇo sou daquelas pessoas que sabem exatamente o<br />
que vai acontecer”; “Gosto muito <strong>de</strong> me surpreen<strong>de</strong>r, [...] me divirto com tudo isso” 410 . Mas à<br />
igualmente verda<strong>de</strong> que, diante da originalida<strong>de</strong> das emoÅâes proporcionadas pelo casal<br />
arranjado, nÇo restava outra alternativa ä novelista senÇo seguir os passos do amor construÉdo.<br />
Quando a elegência, a sincerida<strong>de</strong> e o cavalheirismo do marido arranjado Raj entraram em<br />
cena dispostos a abrir mÇo do amor por Duda para “construir um amor” com Maya,<br />
arrebatando <strong>de</strong>finitivamente a simpatia da audiÖncia e sinalizando para autora um novo<br />
caminho para a emoÅÇo e o romance, a narrativa ficcional viu-se inesperadamente enredada<br />
pela realida<strong>de</strong> (do IBOPE e do real da ficÅÇo) e irremediavelmente seduzida pelo sonho (do<br />
amor verda<strong>de</strong>iro).<br />
As mëltiplas maneiras com que a fantasia e a realida<strong>de</strong> tocaram-se em “O Clone” e<br />
“Caminho das índias” dÇo a dimensÇo dos diferentes percursos trilhados pela narrativa<br />
ficcional <strong>de</strong> Gloria Perez no sentido <strong>de</strong> pòr em cena telenovelas que sejam igualmente<br />
realistas e fantasiosas, que possam entreter, divertir, encantar, informar e transformar.<br />
409 PEREZ, 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2009. Entrevista ao Canal Extra (“NamastÖ, Brasil”). DisponÉvel em:<br />
.<br />
Acesso em 14 ago. <strong>de</strong> 2009.<br />
410 PEREZ, loc. cit.<br />
198
8.4 UMA ASSINATURA FEMININA<br />
Embora em seus primeiros anos o folhetim televisivo brasileiro tenha sido reduto <strong>de</strong><br />
mulheres (eram <strong>de</strong>las as obras <strong>de</strong> maior apelo popular, a tal ponto que alguns escritores<br />
chegaram a escrever sob pseudònimos femininos), há muito que o seleto grupo <strong>de</strong> autores <strong>de</strong><br />
“novela das oito” à formado majoritariamente por homens. A publicaÅÇo Autores - histórias<br />
da teledramaturgia, editada pela TV Globo, reëne <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> 16 novelistas<br />
contemporêneos, todos integrantes do primeiro time da emissora que à a principal produtora<br />
<strong>de</strong> telenovelas do paÉs. Nesse conjunto que pâe lado a lado escritores consagrados e<br />
representantes da nova geraÅÇo <strong>de</strong> autores <strong>de</strong> telenovela, há apenas duas mulheres: Maria<br />
A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral e Gloria Perez!<br />
Consi<strong>de</strong>rando que Maria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral nÇo escreve telenovela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1997, ano em<br />
que assinou o remake <strong>de</strong> “Anjo Mau”, e que a autora tem <strong>de</strong>ixado clara a sua preferÖncia por<br />
minissàries 411 ; e ainda consi<strong>de</strong>rando que, <strong>de</strong> 1998 a 2009, Gloria Perez <strong>de</strong>ixou sua assinatura<br />
em quatro novelas (“Pecado Capital”, “O Clone”, “Amàrica” e “Caminho das índias”), po<strong>de</strong>-<br />
se seguramente afirmar que, nos ëltimos 11 anos, as narrativas <strong>de</strong> autoria feminina da<br />
novelista acreana tÖm reinado absolutas num universo <strong>de</strong> histÑrias escritas por homens.<br />
Talvez por isso suas telenovelas ─ e aÉ “O Clone” e “Caminho das índias” tÖm papel<br />
fundamental ─ tenham sido tÇo i<strong>de</strong>ntificadas como diferentes das <strong>de</strong>mais.<br />
Muito se tem discutido sobre “literatura feminina” e “literatura feminista” 412 , termos<br />
que ganham diferentes contornos na polÖmica militência da mulher em suas afirmaÅâes <strong>de</strong><br />
gÖnero. Há muito que a mulher que escreve luta para conseguir escoar sua voz no<br />
tradicionalmente fechado e masculino mundo acadÖmico e literário. ExcluÉda do universo da<br />
escrita por diversos motivos (sociolÑgicos, histÑricos e comportamentais) atà o Romantismo,<br />
a mulher vem ganhando terreno: na dàcada <strong>de</strong> 1970, no bojo dos <strong>de</strong>bates em torno da questÇo<br />
da alterida<strong>de</strong>, consagrou-se como uma nova forÅa polÉtica; <strong>de</strong>pois, no contexto da cultura pÑs-<br />
mo<strong>de</strong>rna, ao conseguir introduzir a questÇo gÖnero na imprensa, no cinema e nos estudos<br />
acadÖmicos, conquistou para a escrita das mulheres um “lugar potencialmente privilegiado<br />
para a experiÖncia social feminina” 413 . A fala das mulheres atravàs da narrativa <strong>de</strong> autoria<br />
feminina passou a revelar um ponto <strong>de</strong> vista novo, original, um sujeito <strong>de</strong> enunciaÅÇo<br />
411 Sua ëltima obra foi a microssàrie (<strong>de</strong> cinco capÉtulos!) “Dalva e Herivelto ─ uma canÅÇo <strong>de</strong> amor”, exibida<br />
em janeiro <strong>de</strong> 2010.<br />
412 BUARQUE DE HOLLANDA, 1994.<br />
413 BUARQUE DE HOLLANDA, 1994, p. 11.<br />
199
consciente <strong>de</strong> seu papel social e uma experiÖncia subjetiva capaz <strong>de</strong> oferecer uma leitura<br />
alternativa, diferente (daquela do universo cultural masculino), sobre o mundo. Enquanto<br />
construÅÇo cultural, o gÖnero impâe um Eu subjetivo que vai alàm dos binarismos cartesianos<br />
que opâem homem/macho, mulher/fÖmea, forte, fraco: a escrita das mulheres, fruto <strong>de</strong> uma<br />
experiÖncia feminina construÉda por fatores histÑricos, culturais e polÉticos, traz as marcas da<br />
diferenÅa que obriga a mulher a expressar sua vivÖncia a partir <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista e <strong>de</strong> um<br />
sujeito <strong>de</strong> representaÅÇo prÑprios.<br />
Neste sentido, à inegável que a narrativa autoral <strong>de</strong> Gloria Perez se <strong>de</strong>staca no<br />
universo das telenovelas contemporêneas por sua assinatura feminina, pela forma com que sua<br />
experiÖncia <strong>de</strong> mulher percebe a realida<strong>de</strong>, traduzindo-a para a ficÅÇo com <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e<br />
responsabilida<strong>de</strong>. A autora tem certa resistÖncia em rotular sua escrita como feminina: “A<br />
pintura <strong>de</strong> mulher que eu acho mais bonita à Madame Bovary, que foi escrita por um<br />
homem”; AlmodÑvar, tambàm, “fala <strong>de</strong> mulher como ninguàm, e à homem” 414 . Mas concorda<br />
que a experiÖncia feminina <strong>de</strong>termina o olhar: segundo ela,<br />
200<br />
A mulher tem uma experiÖncia muito rica porque tem que lutar contra preconceitos, e<br />
preconceitos que hoje estÇo muitas vezes velados. Quando eu era mais jovem, as<br />
barreiras contra a mulher eram muito claras [...]. EntÇo, por causa da experiÖncia pelas<br />
quais a mulher passa, o olhar <strong>de</strong>la à diferente do olhar do homem. O ponto <strong>de</strong> vista à<br />
outro. 415<br />
Desse modo, a narrativa construÉda pelo olhar feminino <strong>de</strong> Gloria Perez expressa seu<br />
interesse por tudo que à humano, um interesse que permeia a escolha do tema, a construÅÇo da<br />
trama, a composiÅÇo das personagens e a forma <strong>de</strong> contar. Na cartilha da novelista, esse<br />
interesse aguÅa sua intuiÅÇo, um trunfo que ela nÇo consegue explicar, mas que certamente<br />
está associado ao domÉnio tàcnico <strong>de</strong> sua arte. Escrever sob a regÖncia da intuiÅÇo significa,<br />
para a autora, manter os sentidos em alerta: comeÅa por <strong>de</strong>ixar que um tema arrebate sua<br />
atenÅÇo (“VocÖ nÇo escolhe, o tema procura vocÖ” 416 ); <strong>de</strong>pois, à preciso sentir que o tema<br />
ren<strong>de</strong> uma novela (“Precisa ter capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramentos” e “<strong>de</strong> possibilitar o<br />
sensacional” 417 ); em seguida, para tramar vidas na imaginaÅÇo, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>spertar uma<br />
memÑria existencial (“Tem algum lugar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> vocÖ on<strong>de</strong> as coisas que vocÖ vive ficam<br />
guardadas” e quando se comeÅa a escrever “elas vÖm” 418 ); mais adiante, com <strong>de</strong>svelo quase<br />
maternal, concebe-se as personagens (“Todos os meus personagens sÇo carregados <strong>de</strong><br />
414 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 240.<br />
415 I<strong>de</strong>m, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 252.<br />
416 PEREZ apud. MEMñRIA GLOBO, 2008, p. 445.<br />
417 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 247.<br />
418 I<strong>de</strong>m, loc. cit.
humanida<strong>de</strong>, mesmo os vilâes” 419 ); por fim, à sÑ <strong>de</strong>ixar-se levar pela narrativa (“ï como uma<br />
danÅa: tem-se que sentir para on<strong>de</strong> o cavalheiro vai” 420 ). Os ensinamentos estÇo repletos <strong>de</strong><br />
práticas e sabedorias femininas: contornar assuntos-tabu para nÇo provocar a rejeiÅÇo da<br />
plateia (apresentar as qualida<strong>de</strong>s da personagem antes <strong>de</strong> dar a conhecer o problema); nÇo se<br />
ren<strong>de</strong>r ä emoÅÇo alheia (do pëblico, no caso), dialogar com ela, seduzindo a audiÖncia (“ï<br />
bacana quando o pëblico vem e vocÖ percebe que conseguiu!” 421 ).<br />
Pela vivÖncia feminina e por sua consciÖncia do gÖnero, Gloria Perez parece sentir que a<br />
escrita lhe conce<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> criar mulheres-personagens capazes <strong>de</strong> expressar assertivamente<br />
sua condiÅÇo <strong>de</strong> mulher. Por mais que enfrentem adversida<strong>de</strong>s, muitas <strong>de</strong>las impostas pela<br />
prÑpria configuraÅÇo patriarcal da socieda<strong>de</strong>, suas personagens femininas nunca vestem o<br />
papel <strong>de</strong> vÉtima: sÇo mulheres fortes que usam da “esperteza feminina” para driblar a opressÇo<br />
e as armadilhas do <strong>de</strong>stino, mulheres <strong>de</strong>cididas que assumem as rà<strong>de</strong>as <strong>de</strong> suas vidas,<br />
mulheres sonhadoras e romênticas, mas bravas em sua disposiÅÇo <strong>de</strong> lutar pelo que querem.<br />
Em “Amàrica”, a novelista nÇo gostou <strong>de</strong> ver a personagem Sol, a quem havia dado alma <strong>de</strong><br />
guerreira, ser convertida em “moÅa chorona” nas mÇos do diretor da trama. “Uma mulher<br />
capaz <strong>de</strong> aceitar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> atravessar um <strong>de</strong>serto e <strong>de</strong> enfrentar os perigos <strong>de</strong>ssa travessia<br />
para realizar o sonho <strong>de</strong> ‘fazer a vida na Amàrica’ à uma mulher forte, lutadora, corajosa ─<br />
nÇo po<strong>de</strong> ser uma chorona” 422 , explica a autora. O conflito entre sua percepÅÇo da personagem<br />
e a leitura que o diretor fizera <strong>de</strong>la acabou ren<strong>de</strong>ndo o afastamento <strong>de</strong> Jayme Monjardim da<br />
trama quando a novela já estava no ar.<br />
Ja<strong>de</strong> e Maya sÇo igualmente sonhadoras e guerreiras. A primeira à moÅa rebel<strong>de</strong>,<br />
enfrentou os costumes da famÉlia muÅulmana ─ tanto, que foi ameaÅada com 80 chibatadas!<br />
─, recusou o casamento arranjado pela famÉlia e dispòs-se a fugir do Marrocos com Lucas;<br />
diante da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser expulsa da famÉlia, contornou sua rebeldia e aceitou casar-se<br />
com Said; no Brasil, tentou ser feliz com o marido, mas nÇo conseguiu esquecer o amor por<br />
Lucas, com quem manteve caso turbulento, pois o amado já estava amargo pelo abandono <strong>de</strong><br />
seus sonhos; ao encontrar Lào, clone <strong>de</strong> Lucas, ficou perturbada com a imagem do homem<br />
por quem havia se apaixonado 20 anos antes; contrariando a tradiÅÇo religiosa e os votos <strong>de</strong><br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do casamento, separou-se do marido e uniu-se finalmente a Lucas, concretizando<br />
mesmo que tardiamente seu sonho <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>.<br />
419 PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 252.<br />
420 Ibi<strong>de</strong>m, p. 249.<br />
421 Ibi<strong>de</strong>m, p. 250.<br />
422 Ibi<strong>de</strong>m, p. 256.<br />
201
Maya à moÅa forte, alegre e <strong>de</strong>cidida, que nÇo se <strong>de</strong>ixou oprimir pelos rÉgidos<br />
costumes indianos impostos äs mulheres: rompendo a resistÖncia dos pais, foi trabalhar fora e<br />
ä noite; <strong>de</strong>safiando o sectário sistema <strong>de</strong> castas e a tradiÅÇo religiosa que exige castida<strong>de</strong>s äs<br />
moÅas atà o casamento, apaixonou-se por um jovem sem casta e entregou-se a ele;<br />
abandonada pelo amado e grávida, aceitou o casamento arranjado com Raj para poupar sua<br />
famÉlia da vergonha e livrar-se das severas puniÅâes previstas na socieda<strong>de</strong>; já casada e cada<br />
vez mais apaixonada pelo marido, nÇo hesitou em mentir, forjar exames e encenar um parto<br />
“prematuro” para encobrir a gravi<strong>de</strong>z do filho dálit e para nÇo comprometer o “amor<br />
construÉdo”; quando a situaÅÇo tornou-se insustentável, encheu-se <strong>de</strong> coragem para que o<br />
marido ouvisse a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua prÑpria boca; <strong>de</strong>sesperada com a notÉcia da morte <strong>de</strong> Raj,<br />
com sua expulsÇo da casa do marido e com a con<strong>de</strong>naÅÇo ä vida num viuvário, entregou seu<br />
filho para que fosse criado fora da índia, on<strong>de</strong> costumes mais “mo<strong>de</strong>rnos” nÇo amaldiÅoariam<br />
a crianÅa por ter sido concebida num arroubo <strong>de</strong> paixÇo jovem; por fim, <strong>de</strong>pois do martÉrio <strong>de</strong><br />
ter sido expulsa da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> ter tido <strong>de</strong> se afastar do filho e <strong>de</strong> acreditar que havia<br />
perdido tambàm o amor <strong>de</strong> sua vida, Maya livrou-se rapidamente do luto ao reencontrar Raj,<br />
ao ter o filho aceito na famÉlia Ananda e ao retomar seu sonho <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Se o luto chegou<br />
a abater Maya momentaneamente, na crenÅa <strong>de</strong> que sua vida sem o amor e a presenÅa <strong>de</strong> Raj<br />
havia perdido o sentido, nada mais, nem mesmo sua expulsÇo <strong>de</strong> casa, da socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sua<br />
casta, foi capaz <strong>de</strong> retirar-lhe a altivez <strong>de</strong> quem assume que fez o que fez por amor, sempre<br />
por amor: entregou-se a Bahuam por amor e mentiu para preservar o amor construÉdo com o<br />
marido arranjado. Maya entrou no viuvário triste com a morte <strong>de</strong> Raj e com a iminÖncia <strong>de</strong><br />
afastar-se do filho, mas estava <strong>de</strong> cabeÅa erguida, certa <strong>de</strong> que nÇo tinha nada do que se<br />
envergonhar ou se arrepen<strong>de</strong>r. Foi o arcaÉsmo dos costumes, e nÇo suas aÅâes, que fez com<br />
que fosse vista como uma errante. Decidida a fazer valer seu sonho <strong>de</strong> amor com Raj e a levar<br />
adiante tudo o que fosse preciso para driblar a rigi<strong>de</strong>z das tradiÅâes e salvar-lhe a vida e a <strong>de</strong><br />
seu filho, Maya nÇo se <strong>de</strong>ixou paralisar nem diante dos maiores impasses. Sabia precisamente<br />
o que <strong>de</strong>veria ser feito e nÇo questionou se era certo ou errado: era a ënica saÉda que tinha, era<br />
a ënica saÉda possÉvel numa socieda<strong>de</strong> tÇo pouco flexÉvel.<br />
Gloria Perez pòs em cena, especialmente no caso <strong>de</strong> Maya, um ensinamento legado<br />
por outra autora que se dizia intuitiva, a novelista-dona-<strong>de</strong>-casa que escrevia a partir <strong>de</strong> sua<br />
sensibilida<strong>de</strong> para as emoÅâes domàsticas, a mestra Janete Clair. Ao discutir o <strong>de</strong>stino da<br />
mocinha <strong>de</strong> “Eu prometo”, Janete teria dito a Gloria Perez, diante dos temores <strong>de</strong> sua<br />
colaboradora <strong>de</strong> que fosse chocar o pëblico com a <strong>de</strong>cisÇo <strong>de</strong> fazer a protagonista da novela<br />
mentir para o marido, dizendo ser <strong>de</strong>le o filho fruto <strong>de</strong> um outro relacionamento: “NÇo seja<br />
202
tonta, a ënica coisa que uma mulher nÇo po<strong>de</strong> fazer à maltratar o filho; tudo que fizer por<br />
amor ao filho será perdoado” 423 . Tal liÅÇo expressa a crenÅa consolidada em anos <strong>de</strong><br />
experiÖncia <strong>de</strong> que, aos olhos da audiÖncia, as representaÅâes da mulher po<strong>de</strong>m tomar<br />
mëltiplas e ousadas formas, mas <strong>de</strong>vem sempre respeitar a maternida<strong>de</strong> como uma dimensÇo<br />
sagrada da alma feminina. Nesse sentido, os conselhos da “Maga das Oito” elevam o amor<br />
mÇe-filho ä categoria <strong>de</strong> ënico sentimento que nÇo à passÉvel <strong>de</strong> traiÅÇo. Em “Caminho das<br />
índias”, a autora parece ter estendido a regra para o domÉnio dos homens: uma vez superadas<br />
as explosâes <strong>de</strong> orgulho masculino, Raj e Opash, personagens marcadas pela rejeiÅÇo aos<br />
intocáveis, ren<strong>de</strong>m-se a uma compreensÇo humana ─ quase maternal ─ da vida, passando a<br />
aceitar o filho e neto dálit acima das barreiras das castas, numa <strong>de</strong>monstraÅÇo <strong>de</strong> que um amor<br />
acalentado na generosida<strong>de</strong> amorosa da relaÅÇo pai-filho e avò-neto nÇo sucumbe aos<br />
caprichos da genàtica.<br />
A consciÖncia <strong>de</strong> gÖnero <strong>de</strong> Gloria Perez faz com que pinte suas personagens<br />
femininas com cores sempre fortes, <strong>de</strong>ixando no pëblico a marca <strong>de</strong> sua assertivida<strong>de</strong> a<br />
respeito da ousadia, da in<strong>de</strong>pendÖncia, da rebeldia e do papel ativo da mulher hoje. Mesmo<br />
personagens quase còmicas como Melissa, perua, fëtil e apreciadora do dinheiro como<br />
passaporte para a felicida<strong>de</strong>, traziam uma esperteza feminina: ciente das traiÅâes do marido e<br />
<strong>de</strong> seu papel <strong>de</strong> esposa-enfeite, valia-se das transgressâes do parceiro para nÇo per<strong>de</strong>r seu<br />
reinado e ainda mantÖ-lo sob seu po<strong>de</strong>r. Personagens como Indira, dona-<strong>de</strong>-casa e mÇe <strong>de</strong><br />
extensa famÉlia que <strong>de</strong>ve ren<strong>de</strong>r obediÖncia ao marido e submeter-se äs implicências da sogra,<br />
encontrava o caminho possÉvel para fazer valer seu po<strong>de</strong>r: guardiÇ do produto das vendas na<br />
loja do marido, dava sempre um jeito <strong>de</strong> reservar uma parte para si <strong>de</strong> tal modo que nÇo<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse do Opash para suas compras (graÅas a isso podia viver “arrastando o sári pelo<br />
mercado”); guardiÇ dos segredos da culinária apreciada na famÉlia, fazia da chave da <strong>de</strong>spensa<br />
um instrumento <strong>de</strong> barganha para manter suas noras disputando sua confianÅa; distraÉda na<br />
educaÅÇo dos filhos e dramática na <strong>de</strong>fesa retÑrica dos costumes, valia-se do expediente <strong>de</strong><br />
fingir <strong>de</strong>smaios (e assim mudar o foco da atenÅÇo <strong>de</strong> todos) quando a sogra apontava suas<br />
falhas na conduÅÇo da casa e da famÉlia. Atà mesmo personagens secundárias como as<br />
domàsticas Cema, Sheila e Ondina, ganharam <strong>de</strong> Gloria Perez um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, fora da<br />
subserviÖncia ou da usual exploraÅÇo da sensualida<strong>de</strong>: a primeira era lutadora, trabalhava <strong>de</strong><br />
passa<strong>de</strong>ira na casa <strong>de</strong> Ramiro para garantir a escola <strong>de</strong> Maico e o tratamento psiquiátrico <strong>de</strong><br />
A<strong>de</strong>mir; a segunda, vaidosa, conquistou a confianÅa da patroa, a difÉcil e temperamental<br />
423 CLAIR apud. PEREZ, informaÅÇo verbal em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 251.<br />
203
Melissa, tornando sua confi<strong>de</strong>nte e parceira nos cosmàticos; conselheira da patroa SÉlvia na<br />
educaÅÇo da filha, a terceira era, sobretudo, a principal interlocutora do patriarca dos Cadore.<br />
Mais do que mostrá-las em suas funÅâes, vestindo impecáveis uniformes profissionais e<br />
servindo a mesa dos ricos, a novelista fez com que fossem vistas tambàm e muitas vezes em<br />
roupas <strong>de</strong> passeio, divertindo-se na gafieira, espaÅo <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> lazer escolhido por<br />
personagens <strong>de</strong> várias classes sociais.<br />
Para alàm <strong>de</strong> fazer das personagens femininas expressâes humanizadas das mëltiplas<br />
dimensâes afirmativas da mulher, Gloria Perez ofereceu o feminino quando permitiu que suas<br />
narrativas sobre a diferenÅa cultural fossem conduzidas por vários pontos <strong>de</strong> vista.<br />
Acostumada a vir a pëblico pela representaÅÇo <strong>de</strong> outrem, a mulher que conquista voz, que<br />
escreve, sabe da importência <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar que cada um fale por si. Assim à que sua escrita <strong>de</strong><br />
autoria feminina teve a generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar o muÅulmano e o indiano pelo olhar dos<br />
locais, assim como mostrou o drogado e o doente mental pela Ñtica dos que vivem o<br />
problema. Alàm disso, num exercÉcio <strong>de</strong> resistÖncia <strong>de</strong> gÖnero contra os discursos totalizantes<br />
(a vivÖncia feminina conhece na carne os efeitos da prepotÖncia), a novelista propòs sempre o<br />
contraponto: mais que oferecer aos sujeitos um espaÅo para a prÑpria representaÅÇo, ampliava<br />
os focos <strong>de</strong> percepÅÇo, trazendo para o “<strong>de</strong>bate”, no caso dos muÅulmanos e indianos, o olhar<br />
do oriental arcaico, o do oriental que teve a experiÖncia do Oci<strong>de</strong>nte e o do estrangeiro. No<br />
caso dos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quÉmicos e doentes mentais, trouxe o ponto <strong>de</strong> vista dos pacientes, <strong>de</strong><br />
seus familiares, dos màdicos e dos populares que lidam apenas com os estereÑtipos das<br />
doenÅas. NÇo fosse isso, Maya nÇo teria sido perdoada por Raj: por mais verda<strong>de</strong>iro que seu<br />
amor construÉdo fosse, seu perdÇo o faria confrontar preconceitos muito sÑlidos na cultura<br />
indiana, barreiras impossÉveis <strong>de</strong> serem transpostas por um indiano arcaico. Para perdoá-la, sÑ<br />
mesmo o amor <strong>de</strong> um indiano atravessado pela experiÖncia oci<strong>de</strong>ntal: por “falar” as culturas<br />
do Oriente e do Oci<strong>de</strong>nte, Raj consegue avaliar os atos da esposa amorosamente para alàm do<br />
ponto <strong>de</strong> vista dos “costumes”.<br />
Assim como ocorreu com Janete Clair, a escrita autoral feminina <strong>de</strong> Gloria Perez<br />
<strong>de</strong>sperta o preconceito contra a mulher e contra a mulher que escreve, que conquista voz ─ e<br />
voz que atinge um paÉs inteiro. NÇo por acaso as duas sempre foram muito criticadas por suas<br />
fantasias televisivas. Com uma produÅÇo impressionante, Janete Clair foi a soberana das<br />
telenovelas brasileiras das 20 horas na TV Globo entre 1968 e 1983. Suas tramas, no entanto,<br />
conviveram com muitas novelas exibidas em outros horários e assinadas por autores homens,<br />
como as do prÑprio marido Dias Gomes, e as <strong>de</strong> Bráulio Pedroso, Cassiano Gabus Men<strong>de</strong>s,<br />
Lauro Càsar Muniz, Vicente Sesso, Walter NegrÇo, Walter Avancini e outros. Apesar da<br />
204
unanimida<strong>de</strong> sobre seu domÉnio tàcnico sobre o folhetim e do sucesso <strong>de</strong> suas histÑrias (e talvez<br />
porque suas novelas arrebatassem a maior fatia da audiÖncia ─ os horários no comeÅo da noite,<br />
com tramas mais aÅucaradas, e os mais tardios, ocupados com estàticas experimentais ─ tinham<br />
pëblico mais restrito), recaiu sobre Janete, mais do que sobre qualquer um dos os <strong>de</strong>mais<br />
autores, a acusaÅÇo <strong>de</strong> estar a serviÅo da ditadura, oferecendo o “Ñpio do povo”. Fora isso,<br />
segundo Gloria Perez 424 , muitas vezes circulou o boato maldoso <strong>de</strong> que as novelas <strong>de</strong> Janete<br />
na verda<strong>de</strong> eram escritas pelo marido e sÑ assinadas por ela. O jornalista Artur Xexào, autor<br />
do perfil da novelista, afirma que “ela sofria muito por nÇo ter o mesmo respeito intelectual<br />
que o marido” 425 . Alàm do preconceito polÉtico contra sua narrativa romêntica e folhetinesca<br />
(“alienante”) e do preconceito intelectual contra a qualida<strong>de</strong> do que escrevia (era “popular”),<br />
Janete ainda sentia <strong>de</strong> perto o preconceito profissional que exigia das mulheres o que nÇo era<br />
exigido dos homens. Sua colaboradora conta que ela costumava dizer, em tom <strong>de</strong> constataÅÇo<br />
crÉtica: “Mulher nÇo po<strong>de</strong>” 426 ─ nÇo po<strong>de</strong> ficar doente, nÇo po<strong>de</strong> ter crise criativa, nÇo po<strong>de</strong><br />
ter <strong>de</strong>pressÇo nem atrasar entrega <strong>de</strong> capÉtulo.<br />
Gloria Perez sabe bem o que à isso: os crÉticos <strong>de</strong> plantÇo reclamam que suas<br />
personagens rapidamente chegam ao outro lado do mundo e que sua escrita ficcional à<br />
inverossÉmil. E quando a autora se apoia em fatos reais para armar sua trama, ainda assim<br />
criticam-na por produzir ficÅÇo cientÉfica, “maluquice” “<strong>de</strong>lÉrio”:<br />
205<br />
“Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, valia-se da Internet, que ainda nÇo era muito conhecida no Brasil,<br />
para aproximar o casal improvável: um polÉtico importante e uma moÅa cigana. Fui<br />
chamada <strong>de</strong> louca, <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirante, porque diziam que uma pessoa nÇo falava com outra<br />
pelo computador. E aÉ eu ficava pensando: como à que po<strong>de</strong> o jornalismo nÇo saber<br />
que Internet existe, e que isso vai mudar o mundo? A página <strong>de</strong> apresentaÅÇo <strong>de</strong><br />
“Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo” que foi para a imprensa naquela àpoca [1995] à a <strong>de</strong>scriÅÇo exata<br />
do que à a Internet hoje e <strong>de</strong> como ela transformou o mundo. Como à que um<br />
preconceito po<strong>de</strong> ser tÇo gran<strong>de</strong> a ponto <strong>de</strong> cegar a pessoa, impedindo-a <strong>de</strong> ver que o<br />
que a outra está dizendo à uma coisa muito coerente? 427<br />
Certamente nÇo se supunha que uma mulher pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>monstrar conhecimento sobre<br />
uma área ainda tÇo “masculina”, na àpoca, como a tecnologia digital <strong>de</strong> informaÅÇo. E, no<br />
entanto, o envolvimento da mulher Gloria Perez na comunicaÅÇo digital data da prà-histÑria<br />
da Internet, do tempo dos BBS’s, computadores pequenos ligados ä linha telefònica via<br />
mo<strong>de</strong>m atravàs do qual era possÉvel enviar mensagens a um fÑrum <strong>de</strong> discussÇo que<br />
424 PEREZ, informaÅÇo verbal em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009. Ver Anexo A, p. 245.<br />
425 XEXïO, 2006, entrevista a Cláudio Carneiro. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 20 jul. 2009.<br />
426 PEREZ, op. cit., p. 251<br />
427 I<strong>de</strong>m, p. 240.
interligava gente <strong>de</strong> todo o mundo. Sua curiosida<strong>de</strong> (feminina?) a havia feito invadir uma área<br />
que muitos homens ainda nem conheciam.<br />
Sendo o preconceito o horizonte no qual a mulher constrÑi suas diversas<br />
competÖncias, Gloria Perez apenas ri do que dizem sobre ela, recorta as crÉticas que chama <strong>de</strong><br />
“bobagens” para que seus netos possam um dia ler e se divertir com a avÑ que à capaz <strong>de</strong><br />
emocionar um paÉs inteiro em seus “<strong>de</strong>lÉrios”. A ënica mulher escritora <strong>de</strong> telenovelas <strong>de</strong><br />
horário nobre no Brasil hoje sabe que promover tal sintonia à uma arte e um po<strong>de</strong>r ─ orgulha-<br />
se <strong>de</strong> sua escritura popular. Sabe que sua missÇo à encantar o povo, entretÖ-lo e fazÖ-lo<br />
pensar. Já se acostumou a ir ä frente <strong>de</strong>sbravando novos caminhos, convertendo realida<strong>de</strong> em<br />
ficÅÇo, dando vida ä imaginaÅÇo. Tudo para colocar em pauta, por intermàdio da fantasia,<br />
questâes que po<strong>de</strong>m mudar o cotidiano dos brasileiros. Ao estabelecer com o pëblico uma<br />
“comunicaÅÇo <strong>de</strong> gente para gente, <strong>de</strong> emoÅÇo para emoÅÇo” 428 , a autora <strong>de</strong> “O Clone” e<br />
“Caminho das índias” constrÑi os vÉnculos que permitirÇo a todos muito mais que a<br />
experiÖncia original da realida<strong>de</strong> proposta por ela: ela lhes proporciona um mergulho num<br />
universo <strong>de</strong> afetos a ser compartilhado capÉtulo a capÉtulo. Com coragem e ousadia, Gloria<br />
Perez recria o real a partir <strong>de</strong> seus olhos <strong>de</strong> mulher sem abandonar a agu<strong>de</strong>za e a crÉtica e sem<br />
envergonhar-se da <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za. Deixando-se guiar pela experiÖncia feminina, extrai o humano<br />
<strong>de</strong> tudo o que vÖ. Nesse universo tÇo masculino <strong>de</strong> autores <strong>de</strong> telenovela, Gloria Perez<br />
promove um <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> perspectiva tÇo radical que o mÉnimo que se po<strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> suas<br />
obras à que sÇo diferentes. A diferenÅa à o trunfo maior <strong>de</strong> sua escrita <strong>de</strong> autoria feminina.<br />
428 ExpressÇo usada por Janete Clair para <strong>de</strong>finir seu trabalho ä frente das telenovelas em entrevista conduzida<br />
pela jornalista Leda Nagle para o “Jornal Hoje”, da TV Globo. DisponÉvel em:<br />
. Acesso em 30 out. 2009.<br />
206
9 CONCLUSÃO<br />
Recuperar uma trama exibida no passado ou tentar apreen<strong>de</strong>r o sentido <strong>de</strong> outra<br />
durante sua exibiÅÇo sÇo tarefas que impâem ao pesquisador uma abordagem curiosa,<br />
impensável no campo dos estudos literários: em telenovela, necessariamente, ou se fala do<br />
que já nÇo existe ou daquilo que ainda nÇo à. Assim, “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
constituem um corpus sui generis que nÇo se ren<strong>de</strong> ao formalismo <strong>de</strong> uma existÖncia material<br />
enquanto obra ─ consultável, recuperável e <strong>de</strong>sfrutável a qualquer tempo. Tal qual uma<br />
performance, tÖm apariÅÇo transitÑria e se <strong>de</strong>smancham no ar no mesmo instante em que<br />
conquistam sua completu<strong>de</strong>. Aprisioná-las nos limites da teoria po<strong>de</strong> parecer uma violÖncia<br />
contra um <strong>de</strong> seus trunfos fundadores, prÑprio <strong>de</strong> sua natureza fatiada e televisiva: oferecer-se<br />
como prazer estàtico fugaz. Na certeza <strong>de</strong> que à impossÉvel substituir o vigor das tramas ou<br />
resgatar-lhes a alma, a reflexÇo teÑrica das telenovelas espera apenas garantir-lhes uma<br />
sobrevida, acrescentando-lhes outras dimensâes.<br />
Arte perecÉvel e efÖmera, o folhetim eletrònico tem curta existÖncia, dura apenas o<br />
tempo <strong>de</strong> sua exibiÅÇo. Quando enfim chega ao ëltimo episÑdio e conquista seu estatuto <strong>de</strong><br />
obra, a novela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir. Irrecuperável, o conjunto <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> duzentos capÉtulos passa<br />
a sobreviver apenas como mero registro nos anais da histÑria da teledramaturgia. Ou como<br />
imagem <strong>de</strong>sbotada na memÑria dos que acompanharam durante tantos meses as histÑrias<br />
apresentadas. Por mais que arrebatem o coraÅÇo <strong>de</strong> milhâes <strong>de</strong> brasileiros, telenovelas sÇo<br />
obras cujo valor artÉstico e cuja consagraÅÇo popular nÇo lhe garantem a perenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras<br />
artes: o “volume completo” nÇo permite “releitura”; eventualmente, apenas algumas cenas ou<br />
certos capÉtulos adquirem permanÖncia prolongada na vitrine digital <strong>de</strong> sites especializados.<br />
Enquanto corre a trama, a fruiÅÇo e a análise ficam ä espera do <strong>de</strong>sfecho; <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua<br />
exibiÅÇo, estudá-la ou mesmo apreciá-la torna-se trabalho arqueolÑgico. O novo e urgente<br />
rondam tanto a experiÖncia <strong>de</strong> consumo da obra quanto a experiÖncia teÑrica com a obra.<br />
NÇo à ä toa que Gloria Perez escreve suas novelas <strong>de</strong> pà. O sentido <strong>de</strong> urgÖncia que<br />
imprime ritmo veloz e percurso imprevisÉvel a uma escrita programada para preencher 32<br />
páginas <strong>de</strong> roteiro por dia à prÑprio <strong>de</strong> uma narrativa que nÇo sobrevive ao dia seguinte do<br />
ëltimo capÉtulo. A velocida<strong>de</strong> com que se substitui uma telenovela à marcada pela pressa da<br />
mÉdia em garantir audiÖncia para a produÅÇo que estreia em seguida: raramente se vÖ na<br />
crÉtica especializada comentários sobre o tÇo esperado final <strong>de</strong> uma trama. No universo das<br />
narrativas televisivas, falar do novo à um imperativo. No universo da teoria que se <strong>de</strong>bruÅa<br />
207
sobre elas, no entanto, a urgÖncia <strong>de</strong>ve se fazer acompanhar da cautela e da crÉtica para evitar<br />
as <strong>de</strong>formaÅâes inerentes ä razÇo a priori proposta e para garantir o interesse polimorfo da<br />
experiÖncia estàtica. Assim, para alcanÅar aqui a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos <strong>de</strong> “O Clone” e<br />
“Caminho das índias”, foi necessário, como veremos a seguir, <strong>de</strong>scortinar e explorar as<br />
mëltiplas dimensâes do folhetim eletrònico.<br />
Telenovela à paixÇo ─ para quem escreve e para quem assiste. ï histÑria <strong>de</strong> amor<br />
oferecida em fatias que se <strong>de</strong>sdobram em peripàcias para manter a aÅÇo em suspense,<br />
aguardando um <strong>de</strong>sfecho que à sempre adiado. ï jogo <strong>de</strong> “escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong>”, brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />
“tá quente-tá frio”, manobra <strong>de</strong> “mor<strong>de</strong>-e-assopra”: à preciso surpreen<strong>de</strong>r, virar a mesa,<br />
frustrar as apostas, blefar, ter cartas na manga; vale fazer crer e <strong>de</strong>smentir, aproximar e<br />
afastar; imprescindÉvel fazer rir e chorar, amar e odiar. Todos os <strong>de</strong>svios sÇo válidos para<br />
rechear <strong>de</strong> aÅÇo e novida<strong>de</strong> o longo caminho atà o final. Nenhuma emoÅÇo po<strong>de</strong> ser sonegada:<br />
tudo para provocar a imaginaÅÇo, seduzir, fazer o pëblico querer mais; tudo para potencializar<br />
o feitiÅo do corte estratàgico que fatia a emoÅÇo na hora do clÉmax, que impâe obstáculo ao<br />
<strong>de</strong>sejo, que joga com os papàis <strong>de</strong> mestre e escravo, algoz e vÉtima. Escrever telenovela à<br />
brincar com o erotismo.<br />
Telenovela tambàm à tàcnica, combinaÅÇo <strong>de</strong> truques que a audiÖncia nÇo vÖ, mas que<br />
produzem encantamento. A escolha <strong>de</strong> temas passÉveis <strong>de</strong> serem <strong>de</strong>sdobrados em muitas<br />
tramas, a <strong>de</strong>finiÅÇo <strong>de</strong> um eixo central forte, a concepÅÇo do caráter das personagens, sua<br />
apresentaÅÇo clara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inÉcio, a criaÅÇo da linguagem dos figurinos, a seleÅÇo da trilha<br />
sonora, a produÅÇo <strong>de</strong> arte na elaboraÅÇo dos cenários, a amarraÅÇo das tramas e sub-tramas, o<br />
enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> cenas num capÉtulo, a intercalaÅÇo <strong>de</strong> emoÅâes, o uso <strong>de</strong> flashbacks, a<br />
criaÅÇo <strong>de</strong> ganchos, a construÅÇo do clÉmax, a distribuiÅÇo <strong>de</strong> histÑrias ao longo da semana, a<br />
conduÅÇo do <strong>de</strong>stino das personagens, o fechamento das tramas ─ tudo expressa a tàcnica <strong>de</strong><br />
contar histÑria. Arte <strong>de</strong> autor, o folhetim eletrònico nasce do domÉnio <strong>de</strong> uma escrita cuja<br />
especificida<strong>de</strong> inclui nÇo sÑ os aspectos textuais da narrativa como tambàm os <strong>de</strong> produÅÇo<br />
cÖnica e ainda os inerentes ä sua comunicabilida<strong>de</strong> com o pëblico 429 . Produto <strong>de</strong> equipe, a<br />
novela chega äs telas da tevÖ pelas mÇos <strong>de</strong> muitos artistas que, em suas diferentes narrativas,<br />
pâem em cena, coletiva e afinadamente, o projeto do novelista. Escrever telenovela exige<br />
refinada carpintaria <strong>de</strong> texto e perfeita sintonia com as <strong>de</strong>mais linguagens áudio-visuais.<br />
Telenovela muitas vezes à arte: sendo dramaturgia televisiva, o texto que dá origem äs<br />
outras narrativas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m sonora e imagàtica à literário: tem comeÅo, meio e fim;<br />
429 Ver o roteiro do primeiro capÉtulo <strong>de</strong> “Caminho das índias” em Anexo B.<br />
208
fundamenta-se na palavra escrita; baseia-se em técnicas narrativas (criação e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> conflitos e intrigas), na construção <strong>de</strong>scritiva <strong>de</strong> seres ficcionais e no uso <strong>de</strong> diálogos.<br />
Através <strong>de</strong> narrativa ficcional, a telenovela, como uma crônica visual, oferece contun<strong>de</strong>nte e<br />
rico recorte <strong>de</strong> nosso tempo. Como toda arte transpassada pela tecnologia <strong>de</strong> reprodução, a<br />
telenovela, enquanto narrativa áudio-visual, flerta com o literário na busca <strong>de</strong> um lugar<br />
próprio <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> sentido, proporcionando uma experiência estética que, em muitos<br />
casos, ultrapassa a mera fruição e o consumo. A arte na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> passou a acolher<br />
como belo o banal, a repetição, a performance fugaz, o pastiche, a história do anônimo; e a<br />
experiência estética passou a conciliar prazer estético e transformação do cotidiano. Escrever<br />
telenovela também é oferecer uma crônica do contemporâneo, um olhar diferente sobre ele e<br />
uma provocação para modificá-lo.<br />
Telenovela é folhetim, história rocambolesca contada em pílulas para manter o público<br />
curioso sobre os múltiplos <strong>de</strong>sdobramentos da trama. Concebida para ser <strong>de</strong>gustada aos<br />
poucos e cortada diariamente no momento <strong>de</strong> clímax, a telenovela, como o folhetim impresso,<br />
tem por função maior entreter a audiência, fazê-la ligar a tevê no dia seguinte para<br />
acompanhar o que havia ficado pen<strong>de</strong>nte na véspera. Por sua longa extensão, precisa manter<br />
em ação vários eixos <strong>de</strong> narrativa e criar falsos ganchos <strong>de</strong> modo a fazer a história ren<strong>de</strong>r. Ao<br />
mesmo tempo em que ten<strong>de</strong> a se apoiar na verossimilhança, narrando histórias que pareçam<br />
possíveis (embora muitas vezes vire-lhe as costas), a telenovela não existe sem o sensacional,<br />
sem a peripécia, que obriga o autor a abandonar a coerência para <strong>de</strong>dicar-se a reviravoltas<br />
mirabolantes. Com um pé na realida<strong>de</strong> e outro na fantasia, expõe dramas reais, traz a crítica<br />
social e faz o público sonhar. Na conjunção entre o realismo e o fantasioso, propõe ao público<br />
um mergulho na emoção da trama para <strong>de</strong>pois, dialeticamente, fazê-lo <strong>de</strong>svendar as<br />
artimanhas do jogo ficcional. Centradas em histórias <strong>de</strong> amor impossível, on<strong>de</strong> o casal<br />
apaixonado tem <strong>de</strong> superar impedimentos <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m até encontrar a felicida<strong>de</strong>, as<br />
telenovelas fazem do triângulo amoroso o pilar sobre o qual sustentam o inevitável drama dos<br />
<strong>de</strong>sencontros, da intriga, do ciúme e da traição. Tudo isso para exacerbar o <strong>de</strong>sejo do encontro<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, cultivado em românticas cenas <strong>de</strong> amor e sonhos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Na telenovela, o<br />
adjetivo folhetinesco, tantas vezes usado pejorativamente, <strong>de</strong>screve uma qualida<strong>de</strong> que lhe é<br />
inerente e que respon<strong>de</strong> por aquilo que o gênero tem <strong>de</strong> melhor! Escrever telenovela requer<br />
imaginação para criar o inusitado e sensibilida<strong>de</strong> para tocar as emoções da audiência.<br />
Telenovela é produto da indústria cultural, mercadoria feita para agradar as massas e<br />
dar audiência à emissora. Sensível ao gosto e aos valores da socieda<strong>de</strong>, atinge igualmente as<br />
elites e as classes populares sem subestimar a inteligência dos letrados nem avançar sobre os<br />
209
limites dos analfabetos. Carro-chefe da programaÅÇo das emissoras, o folhetim televisivo tem<br />
compromisso com o sucesso: obra patrocinada, <strong>de</strong>ve compensar com audiÖncia massiva os<br />
altos valores nela investido. Como tudo o mais que foi reificado na socieda<strong>de</strong> pÑs-mo<strong>de</strong>rna, a<br />
telenovela à <strong>de</strong>stinada ao consumo, ä fruiÅÇo ─ nÇo ä toa as tevÖs reservam para ela a<br />
prateleira <strong>de</strong> mais visibilida<strong>de</strong> do mercado. A <strong>de</strong>voÅÇo ao entretenimento e o posicionamento<br />
mercadolÑgico como mercadoria, no entanto, nÇo impe<strong>de</strong>m a telenovela <strong>de</strong> ser mais que mera<br />
válvula <strong>de</strong> escape äs tensâes cotidianas do espectador: eventualmente po<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>ntro da lÑgica<br />
do espetáculo, oferecer conteëdo, informaÅÇo e i<strong>de</strong>ias transformadoras. Escrever telenovela<br />
muitas vezes requer embrulhar com papel atraente o mais indigesto tema.<br />
Telenovela, entÇo, à narrativa popular, que fala direto ao coraÅÇo do povo. Mais<br />
extensa e superficial que a minissàrie, <strong>de</strong>ve captar e expressar as emoÅâes da populaÅÇo e ser<br />
compreendida por todos. Frases curtas, i<strong>de</strong>ias claras, diálogos simples, encenaÅÇo limpa,<br />
reiteraÅâes, redundências, estereÑtipos, cÑdigos conhecidos, personagens reconhecÉveis, temas<br />
simplificados ─ recursos textuais e cÖnicos garantem a eliminaÅÇo <strong>de</strong> qualquer ruÉdo<br />
comunicacional. Ao contrário do que muitos eruditos pensam, tais condicionantes, em vez <strong>de</strong><br />
reduzir a qualida<strong>de</strong> da obra, fazem <strong>de</strong>la arte ainda mais bela. A chancela <strong>de</strong> obra popular livra<br />
a telenovela da prepotÖncia e do pedantismo: a narrativa nÇo fala em tom superior äs massas,<br />
nÇo lhes nega a compreensÇo. ConstrÑi discurso inclusivo e <strong>de</strong>mocrático, livre do ranÅo do<br />
preconceito que insiste em con<strong>de</strong>nar o povo a uma posiÅÇo subalterna. Na simplicida<strong>de</strong> e na<br />
clareza da linguagem do folhetim, a telenovela ren<strong>de</strong> homenagem a quem lhe renova o fòlego:<br />
o povo. Escrever telenovela requer a sintonia com as emoÅâes mais genuÉnas da populaÅÇo.<br />
A todas estas dimensâes do drama seriado televisivo, Gloria Perez acrescenta mais<br />
uma: telenovela à narrativa sobre o Outro. De forma original e pioneira, a autora fez <strong>de</strong> duas<br />
<strong>de</strong> suas telenovelas um discurso sobre a alterida<strong>de</strong>: tratou nÇo sÑ do Outro estrangeiro, que<br />
vive em outra cultura, em paÉs distante do Brasil, mas tambàm se voltou para o Outro que<br />
circula entre nÑs com o estigma da diferenÅa. Em “O Clone” e “Caminho das índias”, Eu e<br />
Outro sÇo permanentemente apresentados em contraponto, apartados apenas pela distência<br />
cultural que guardam entre si.<br />
De um lado, o Brasil, <strong>de</strong> outro, o Marrocos e a índia, o muÅulmano e o indiano ─<br />
narrativas sobre diferenÅas culturais construÉdas a partir <strong>de</strong> trÖs pontos <strong>de</strong> vista: o local, o<br />
estrangeiro e o “turista”, aquele que transita entre culturas, que à atravessado por ambas, que<br />
adquire i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> hÉbrida. A representaÅÇo do muÅulmano e do indiano sintetizou as muitas e<br />
provisÑrias i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s experimentadas em cada uma <strong>de</strong>stas “comunida<strong>de</strong>s imaginadas”.<br />
Porque sÇo representaÅâes, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s das fábulas <strong>de</strong> Gloria Perez ganharam as telas como<br />
210
alegorias, oferecendo em sÉntese os vários rostos <strong>de</strong> uma cultura em sua pluralida<strong>de</strong><br />
simbÑlica. Tendo em vista a natureza <strong>de</strong>scentrada e fragmentada das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s na pÑs-<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, resultado do impacto da globalizaÅÇo na concepÅÇo unificada do sujeito e na<br />
noÅÇo homogÖnea <strong>de</strong> cultura nacional, tais alegorias exacerbam e reduzem simultaneamente<br />
os mëltiplos discursos que a cada momento dÇo sentido ä i<strong>de</strong>ia que o muÅulmano e o indiano<br />
tÖm <strong>de</strong> si mesmos. Alàm disso, somam a elas as representaÅâes existentes no imaginário<br />
coletivo sobre tais i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s estrangeiras, imaginário muitas vezes inspirado na ficÅÇo<br />
literária, mas nem por isso distante da auto-imagem que os sujeitos constroem para si.<br />
Reënem ainda sob um <strong>de</strong>terminado espaÅo fÉsico ─ simbÑlico, mas com se<strong>de</strong> no territÑrio<br />
geográfico daqueles paÉses ─ as realida<strong>de</strong>s da cena urbana e da cena rural. Em cenários<br />
carregados <strong>de</strong> sinais ostensivos da cultura local e religiosa, Gloria Perez fez circular famÉlias<br />
tradicionais, guardiÇes dos mais severos costumes, e indivÉduos mais liberais; pessoas<br />
conformadas com o <strong>de</strong>stino e rebel<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>safiam o traÅado <strong>de</strong> Deus; gente endinheirada e<br />
serviÅais. Neste universo <strong>de</strong> contrastes, os mais rÉgidos traziam o olhar local, o ponto <strong>de</strong> vista<br />
sempre entrincheirado nos limites das raÉzes nacionais; os mais flexÉveis traduziam o olhar<br />
local na experiÖncia do global, comportamento relativista prÑprio dos que cruzam as<br />
fronteiras da naÅÇo e retornam com a perspectiva renovada pela confrontaÅÇo da diferenÅa.<br />
Havia ainda o estrangeiro, este ser impactado pela sëbita revelaÅÇo <strong>de</strong> um mundo ex-ótico,<br />
alguàm que vive no espanto e na perplexida<strong>de</strong> da constataÅÇo visceral da multiplicida<strong>de</strong> e da<br />
diversida<strong>de</strong> cultural. Com o olhar sempre aberto para o novo, a autora tem a cautela <strong>de</strong> nÇo<br />
nomear, nÇo tomar partido: satisfaz-se com a <strong>de</strong>safiante missÇo <strong>de</strong> dar a conhecer a diferenÅa.<br />
Oferece cada ponto <strong>de</strong> vista sem impor juÉzo <strong>de</strong> valor: bastam-lhe a constataÅÇo dos muitos<br />
sentidos inventados pela cultura, o <strong>de</strong>slocamento do olhar, a <strong>de</strong>snaturalizaÅÇo da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
cada um, o convite para ver o outro em sua rica singularida<strong>de</strong>.<br />
No contexto das relaÅâes entre o Eu e o Outro brasileiros o tom do convite para o<br />
enfrentamento à mais dramático. De um lado, o “normal e o sÇo”, <strong>de</strong> outro, o <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
quÉmico e o doente mental. As narrativas sobre o Eu burguÖs e o Outro-estigmatizado foram<br />
construÉdas a partir <strong>de</strong> quatro pontos <strong>de</strong> vista: o do paciente, o da famÉlia, o do màdico e o do<br />
doente da vida real. Cada um <strong>de</strong>les trazia ä tona uma face do problema: o primeiro<br />
apresentava o drama daqueles que nÇo tÖm forÅas para combater a experiÖncia traumática e<br />
nova da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegrada; o segundo mostrava o drama <strong>de</strong> nÇo mais reconhecer em seu<br />
filho/parente a pessoa que foi, <strong>de</strong> nÇo mais po<strong>de</strong>r sonhar para ele um futuro tÇo promissor; o<br />
terceiro expâe a perspectiva dos que conhecem o drama, sabem como ajudar, mas sentem-se<br />
impotentes diante da resistÖncia do paciente ou da famÉlia; e o quarto oferece o viàs daqueles<br />
211
que sofrem a doenÅa e que estÇo sendo chamados a refletir sobre seus dramas e<br />
<strong>de</strong>sdobramentos. O paciente era representado em sua perplexida<strong>de</strong> diante da falta <strong>de</strong> controle<br />
sobre si; a famÉlia, em seus expedientes <strong>de</strong> negar a doenÅa atà que o trágico se abatesse sobre<br />
todos; o màdico, em seu papel <strong>de</strong> mediador entre o doente, a doenÅa e a famÉlia; e o doente da<br />
vida real, em suas queixas e reivindicaÅâes sobre tratamento, inclusÇo social e visibilida<strong>de</strong>.<br />
Um tratamento amoroso <strong>de</strong> cada realida<strong>de</strong> permitiu ver o problema sob vários êngulos,<br />
novamente sem julgamento. Atà mesmo a negaÅÇo da doenÅa pela famÉlia era apresentada<br />
como uma limitaÅÇo <strong>de</strong> cada personagem: a mÇe fragilizada pelo casamento infeliz, pela falta<br />
<strong>de</strong> amor e pela traiÅÇo do marido, era tragada pela realida<strong>de</strong> do sofrimento maior <strong>de</strong> ver a<br />
filha entregue ä <strong>de</strong>pendÖncia quÉmica; a outra mÇe, cujo alheamento conveniente da vida<br />
burguesa criava para si e seu filho um horizonte <strong>de</strong> aparÖncia e sonhos <strong>de</strong> perfeiÅÇo, era<br />
atropelada pela feia realida<strong>de</strong> ─ como aceitar que seu prÉncipe estava louco?, como conviver<br />
com o estigma da loucura impedindo o futuro tÇo sonhado para o rapaz?<br />
O cuidado <strong>de</strong> Gloria Perez em expressar os mëltiplos pontos <strong>de</strong> vista sobre a alterida<strong>de</strong><br />
sem julgá-los, apenas apresentando-os como possibilida<strong>de</strong>s singulares e legÉtimas <strong>de</strong> perceber<br />
a diferenÅa, garante äs suas obras autonomia e in<strong>de</strong>pendÖncia em relaÅÇo ao ponto <strong>de</strong> vista<br />
hegemònico que sempre contamina com pretensa superiorida<strong>de</strong> o olhar sobre o Outro. Sem se<br />
valer dos estereÑtipos costumeiros que marcam a alterida<strong>de</strong> como sendo formada por<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s rotuladas apenas e exclusivamente <strong>de</strong> “indiana”, “muÅulmana”, “drogada” ou<br />
“louca”, Gloria Perez constrÑi seus Outros generosamente, conce<strong>de</strong>ndo-lhes alma humana:<br />
sÇo complexos, singulares e contraditÑrios ─ “gente como a gente”, que vive a partir das<br />
lentes <strong>de</strong> sua cultura, do compartilhamento imaginado da comunida<strong>de</strong>. A ausÖncia <strong>de</strong><br />
julgamento, a representaÅÇo dialàtica da vida e a abertura para o Outro falar por si revelam<br />
uma narrativa livre <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s etnocÖntricas ou “orientalistas”, fruto do rigor metodolÑgico<br />
utilizado pela autora na pesquisa para a construÅÇo dos Outros <strong>de</strong> suas tramas (“[...] se a<br />
novela vai retratar um universo, vou atà ele conhecer, sentir, conviver, sem intermediaÅÇo <strong>de</strong><br />
terceiros” 430 ).<br />
Se o fato <strong>de</strong> representá-los em obra <strong>de</strong> ficÅÇo na televisÇo exige <strong>de</strong>la uma con<strong>de</strong>nsaÅÇo<br />
dos vários traÅos encontrados no Outro e uma versÇo mais simplificada da alterida<strong>de</strong> para que<br />
possa ser compreendida pelo pëblico <strong>de</strong> massa, a novelista nÇo se furta a tomar o caminho da<br />
alegoria para falar <strong>de</strong>sta multiplicida<strong>de</strong>. A realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> nÇo ser precisamente tal como à<br />
430 PEREZ, “Escrevendo novelas: a pesquisa”. DisponÉvel em:<br />
, em 21 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2008.<br />
Acessado em 13 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009.<br />
212
apresentada na ficÅÇo, mas, nas telenovelas <strong>de</strong> Gloria Perez, as diversas realida<strong>de</strong>s estÇo<br />
presentes, formando um painel dos muitos discursos existentes sobre o diferente. A reduÅÇo<br />
estàtica à o preÅo que paga para botar em cena temas tÇo ricos e novos para o pëblico ─ <strong>de</strong><br />
outra forma nÇo po<strong>de</strong>ria abordá-los em telenovela.<br />
Consciente da dimensÇo popular e comercial <strong>de</strong> sua arte, a novelista sabe que o<br />
suporte televisÇo e a natureza do folhetim nÇo lhe permitem vòos acadÖmicos na abordagem<br />
dos temas que escolhe compartilhar com a audiÖncia. LanÅa mÇo <strong>de</strong> recursos jornalÉsticos nas<br />
pitadas <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> que acrescenta ä sua narrativa ficcional, vale-se <strong>de</strong> temperos menos<br />
verossÉmeis para tornar encantadora a fantasia que conduz o pëblico ao questionamento<br />
travestido <strong>de</strong> entretenimento. A acreana acrescenta ainda forte sabor regional ao combinar com<br />
originalida<strong>de</strong> a errência e a curiosa poàtica da literatura <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l na criaÅÇo <strong>de</strong> histÑrias <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaÅÇo popular. Conta tambàm com a natureza interativa (nÇo mais aberta) da<br />
telenovela para expressar a emoÅÇo da audiÖncia captada na ausculta da recepÅÇo. Como a<br />
documentarista <strong>de</strong> “Nascidos em Bordàis” Zana Briski, a novelista nÇo <strong>de</strong>sconhece os <strong>de</strong>svios<br />
<strong>de</strong> percurso que sua arte <strong>de</strong>ve tomar para <strong>de</strong>spertar o <strong>de</strong>bate e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanÅa para alàm<br />
do prazer estàtico. Ambas sabem que a visibilida<strong>de</strong> e o consumo sÇo condiÅâes inerentes a<br />
qualquer arte já que a dimensÇo comunicacional do fenòmeno artÉstico inclui as forÅas<br />
econòmicas <strong>de</strong> sua produÅÇo, nelas incluÉdas a difusÇo e o consumo. E nÇo se incomodam<br />
com o <strong>de</strong>sdàm do mo<strong>de</strong>lo autoritário e elitista da arte, que insiste em classificar as artes<br />
mecênicas como mercadoria. Preocupam-se com as “avenidas emancipatÑrias” abertas em<br />
suas obras e com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, atravàs <strong>de</strong>las, fazer o pëblico pensar o cotidiano.<br />
“O Clone” e “Caminho das índias” sÇo exemplos <strong>de</strong> obra capaz <strong>de</strong> fazer a audiÖncia<br />
repensar seu prà-saber e modificá-lo, permitindo assim uma “abertura para o<br />
conhecimento” 431 . Tal resultado sÑ à possÉvel justamente porque a alterida<strong>de</strong> e mesmo a<br />
subjetivida<strong>de</strong> nÇo assumem um ënico e hierzarquizante ponto <strong>de</strong> vista. Ao <strong>de</strong>ixar falar tantos<br />
Outros por eles mesmos e ao proporcionar ao pëblico o exercÉcio <strong>de</strong> ouvir e ver a diferenÅa<br />
sem a prepotÖncia da superiorida<strong>de</strong> do observador, estas narrativas permitem que a audiÖncia<br />
se veja tambàm nos muitos Outros que a princÉpio lhe parecem estranhos. Ou mesmo<br />
<strong>de</strong>sconhecidos. ï aÉ que a autora se aproxima novamente <strong>de</strong> Briski e tambàm do diretor <strong>de</strong><br />
“Paradise Now” Hany Abu-Assad em sua missÇo <strong>de</strong> falar sobre a invisibilida<strong>de</strong> do Outro que<br />
vaga no nÇo-lugar da indiferenÅa social: o drogado, o doente mental, os filhos <strong>de</strong> prostitutas e<br />
os homens-bomba, gente cuja existÖncia à meramente estatÉstica<br />
431 LIMA, 1981, p. 205.<br />
213
Olhar para si pela Ñtica da alterida<strong>de</strong> à o caminho que Gloria Perez recorre para<br />
produzir estranhamento tambàm sobre o Eu. De um lado, a “mostraÅÇo” isenta oferecida pela<br />
autora permite ä audiÖncia que a experiÖncia estàtica opere sem conceitos diretores (como à<br />
prÑprio <strong>de</strong> sua relaÅÇo com a arte), <strong>de</strong>ixando sua aceitaÅÇo a cargo do “estoque pràvio <strong>de</strong><br />
saber trazido pelo receptor” 432 , mediante o acordo estabelecido entre ele e a obra. De outro, a<br />
nÇo-i<strong>de</strong>ntificaÅÇo do pëblico, num primeiro momento, com o que à mostrado a respeito <strong>de</strong>sse<br />
Eu que rejeita o drogado e o doente mental permite que sua representaÅÇo seja acatada como<br />
uma agressÇo. Como diz Luiz Costa Lima a propÑsito do relacionamento entre a experiÖncia<br />
estàtica e o juÉzo estàtico, o acordo do pëblico com a obra “nÇo se realiza porque o receptor<br />
encontra seus valores na obra e os reconhece 433 [grifos do autor]: tal encontro resulta apenas<br />
em fruiÅÇo. “Ao contrário”, continua ele, “a obra, principalmente a da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, sÑ po<strong>de</strong><br />
ser acolhida se o leitor acatar a ‘agressÇo’ que <strong>de</strong>la recebe” 434 e, numa segunda leitura,<br />
encontrar o “modo <strong>de</strong> absorver a agressÇo e usufruir esteticamente seu ‘contestador’” 435 . SÑ<br />
nesse caso o prà-saber do receptor será questionado. Nesse sentido, po<strong>de</strong>-se dizer que as duas<br />
telenovelas aqui estudadas operaram o questionamento, e nÇo apenas a mera fruiÅÇo. Isto se<br />
<strong>de</strong>u porque, ao invàs <strong>de</strong> provocarem as “emoÅâes esperadas” ou confirmar “noÅâes pràvias”, a<br />
experiÖncia estàtica das duas obras permitiram ao espectador (tomando emprestadas as<br />
palavras <strong>de</strong> Costa Lima) “enten<strong>de</strong>r por que algo antes nÇo lhe agradava” e converter em<br />
“prazer estàtico o que antes hostilizaria” 436 .<br />
A engenhosida<strong>de</strong> da autora, no entanto, permitiu que sua narrativa ficcional brincasse<br />
com os opostos, provocando simultaneamente o reconhecimento e a agressÇo, a fruiÅÇo e o<br />
questionamento. Gloria Perez embaralhou personagens saÉdos <strong>de</strong> sua imaginaÅÇo com<br />
anònimos e figuras pëblicas da realida<strong>de</strong>, entrelaÅou histÑrias mirabolantes com campanhas<br />
sociais, cruzou falas fictÉcias com <strong>de</strong>poimentos verÉdicos: na cartilha da autora, fantasia e<br />
realida<strong>de</strong> sÇo territÑrios sem fronteira. Num instante, a novelista traz o factual para <strong>de</strong>ntro da<br />
ficÅÇo; no momento seguinte <strong>de</strong>svenda as ficÅâes que rondam a realida<strong>de</strong>. O jogo permanente<br />
promove a catarse folhetinesca e aposta na verossimilhanÅa para em seguida abandoná-la em<br />
favor da confianÅa conquistada junto ao pëblico <strong>de</strong> que tudo nÇo passa <strong>de</strong> imaginaÅÇo. O<br />
pacto ficcional estabelece o distanciamento que permite a aceitaÅÇo do imaginário criado pela<br />
novelista como uma aventura possÉvel, mesmo que muitas vezes irreconhecÉvel. No conto <strong>de</strong><br />
432 LIMA, 1981, p. 204.<br />
433 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
434 Ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />
435 LIMA, loc. cit..<br />
436 Ibi<strong>de</strong>m, p. 205.<br />
214
fadas da ficÅÇo, a realida<strong>de</strong> ocupa lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, dando visibilida<strong>de</strong> aos dramas cotidianos<br />
e forÅando o enfrentamento daquilo que nÇo se quer reconhecer.<br />
Novamente como Briski, Gloria Perez parece empenhar-se em suas campanhas<br />
sociais com a alma do artista revoltado. Indignada com a indiferenÅa, a invisibilida<strong>de</strong> e a<br />
impunida<strong>de</strong>, valores comuns que sÇo negados a alguns e que comprometem a esperanÅa e a<br />
justiÅa social, a novelista faz ecoar a voz dos oprimidos atravàs <strong>de</strong> sua arte. ï positiva e ativa<br />
a revolta que a move: luta em nome dos que nÇo tem vez apenas dando-lhes uma janela para o<br />
mundo. Faz a telenovela transcen<strong>de</strong>r os limites da mercadoria para provocar o <strong>de</strong>bate que o<br />
capitalismo escon<strong>de</strong> sob o espesso tapete do espetáculo do progresso.<br />
ï nesse contexto que a autora semeia o germe da mudanÅa. Se à fácil mobilizar<br />
bilhâes <strong>de</strong> brasileiros na escolha do casal perfeito para encerrar suas obras <strong>de</strong> ficÅÇo, por que<br />
nÇo aproveitar a atenÅÇo <strong>de</strong> tantos espectadores e trazer ä tona discussâes que po<strong>de</strong>m mudar o<br />
cotidiano das pessoas? Se há tantos que manifestam repëdio ä atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />
personagens e se empenham em interferir no mundo da ficÅÇo, como nÇo tocá-los para que se<br />
envolvam nos <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> gente <strong>de</strong> carne e osso e nas <strong>de</strong>cisâes que po<strong>de</strong>m mudar a vida real?<br />
Tais sÇo as questâes que povoam as preocupaÅâes da novelista contratada para apenas distrair<br />
e entreter o povo. Sob o fascÉnio que envolve suas telenovelas encontra-se o compromisso<br />
sincero <strong>de</strong> prestar serviÅo ä populaÅÇo.<br />
Resultado <strong>de</strong>sse empenho pessoal, a ficÅÇo <strong>de</strong> Gloria Perez promove mudanÅas<br />
sensÉveis no cotidiano <strong>de</strong> sua audiÖncia e o faz sem o ranÅo da doutrinaÅÇo e do didatismo.<br />
Suas armas sÇo o romance, o encantamento, a comàdia e ─ por que nÇo? ─ a fantasia e o<br />
entretenimento. Atravàs dos recursos da ficÅÇo foi possÉvel construir uma ponte <strong>de</strong><br />
compreensÇo intercultural e um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> nossos Outros. A curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertada<br />
pelas diferenÅas respeitosamente apresentadas sobre o muÅulmano e o indiano criou uma forte<br />
re<strong>de</strong> <strong>de</strong> informaÅÇo sobre o Oriente. O olhar amoroso lanÅado sobre drogados e doentes<br />
mentais dissipou estigmas equivocados, estimulou a busca por tratamento e conquistou a<br />
solidarieda<strong>de</strong> do pëblico. Ambas as campanhas reorientaram os valores e práticas da<br />
audiÖncia com relaÅÇo aos Outros-estrangeiros e aos Outros-estigmatizados, estabelecendo<br />
novos cÑdigos para uma comunicaÅÇo possÉvel e encurtando distências antes intransponÉveis.<br />
Se as campanhas sociais empreendidas por Gloria Perez constituem hoje o diferencial<br />
<strong>de</strong> suas telenovelas, igualmente po<strong>de</strong>-se dizer que sua escrita à marcada pela singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sua vivÖncia feminina. No universo ficcional televisivo hoje predominantemente atravessado<br />
pela Ñtica masculina, as telenovelas da autora se <strong>de</strong>stacam pelo <strong>de</strong>slocamento da perspectiva.<br />
Ao captar com agu<strong>de</strong>za singular os sinais da realida<strong>de</strong> e transformá-los em ficÅÇo, a novelista<br />
215
tem o cuidado <strong>de</strong> nÇo repetir em suas narrativas a prática autoritária <strong>de</strong> falar em nome do<br />
Outro comumente usada contra a mulher pelo discurso hegemònico patriarcal. Assim, tendo<br />
sempre experimentado, enquanto mulher, o preconceito como horizonte, sua construÅÇo<br />
ficcional estrutura-se, em sÉntese, na oferta <strong>de</strong> mëltiplos pontos <strong>de</strong> vistas, na insistÖncia do<br />
contraponto como forma <strong>de</strong> confrontar as diferenÅas sem julgamento, e na apresentaÅÇo <strong>de</strong><br />
personagens femininas como paradigma assertivo sobre o papel da mulher hoje.<br />
As muitas dimensâes reveladas na análise <strong>de</strong> “O Clone” e “Caminho das índias”<br />
sugerem a riqueza e a originalida<strong>de</strong> da obra <strong>de</strong> Gloria Perez. Mais que isso, expressam o<br />
fascÉnio pelo novo, a preferÖncia pelo diferente e o compromisso com as questâes sociais.<br />
Pòr em cena a alterida<strong>de</strong> num momento em que as culturas se ocupam <strong>de</strong> reinventar suas<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s para marcar terreno na retÑrica universalizante da globalizaÅÇo foi apenas mais um<br />
dos <strong>de</strong>safios abraÅados com ousadia pela novelista. Apresentar o muÅulmano em seu universo<br />
familiar, em sua fragilida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong> Deus, na alegria das festas e na sensualida<strong>de</strong> dos corpos<br />
danÅantes ─ e fazÖ-lo em pleno day after dos atentados terroristas que abalaram o mundo ─ foi<br />
certamente mais um ato <strong>de</strong> coragem <strong>de</strong> quem constrÑi a fantasia com olhos postos na realida<strong>de</strong>.<br />
Oferecer o indiano em seus <strong>de</strong>stinos prà-<strong>de</strong>terminados, na obediÖncia a tantos <strong>de</strong>uses, no<br />
respeito äs tradiÅâes, na con<strong>de</strong>naÅÇo pràvia das castas, no colorido dos festivais, na<br />
musicalida<strong>de</strong> do bangra e na seduÅÇo das sedas ─ mostrá-lo, enfim, tÇo preso ao passado<br />
justamente no momento em que a índia <strong>de</strong>sponta como potÖncia do futuro ─ foi sobretudo um<br />
insight <strong>de</strong> aguda sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem tece histÑrias entrelaÅadas pelos caprichos do tempo.<br />
Por fim, voltar o foco para o brasileiro em sua hipocrisia burguesa, em sua indiferenÅa para com<br />
os <strong>de</strong>svalidos, na <strong>de</strong>sinformaÅÇo que estigmatiza, nas transgressâes oficializadas das elites, na<br />
exacerbaÅÇo da estàtica e na malemolÖncia da gafieira ─ e apresentá-lo tÇo moral e socialmente<br />
questionável justo quando a prepotÖncia o fazia olhar com superiorida<strong>de</strong> para os muÅulmanos e<br />
indianos da trama ─ foi o golpe <strong>de</strong> mestre certeiro <strong>de</strong> quem reconhece no espelho o melhor<br />
recurso dramatërgico para mostrar a vida sempre em contraponto.<br />
Na ponte aàrea entre o Brasil e o Marrocos e entre o Brasil e a índia, os <strong>de</strong>svios<br />
narrativos <strong>de</strong> Gloria Perez ofereceram mëltiplas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reconhecimento e<br />
questionamento da diferenÅa. Na representaÅÇo ficcional do Eu e do Outro, “O Clone” e<br />
“Caminho das índias” tornaram o que à distante e <strong>de</strong>sconhecido estranhamente familiar ─ tais<br />
narrativas da diferenÅa provaram ser, acima <strong>de</strong> tudo, a menor distência entre dois mundos.<br />
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ANEXO A - <strong>ENTRE</strong>VISTA COM GLORIA PEREZ<br />
Entrevista realizada em 12 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009<br />
“O Clone” estreou praticamente junto com os atentados <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> setembro. Como foi<br />
falar do diferente na ficéÜo tendo a realida<strong>de</strong> do noticiçrio no encaléo da novela?<br />
No comeÅo da pesquisa da novela, os muÅulmanos mostraram-se assustados, temendo<br />
que a novela tambàm fosse ser preconceituosa, que fosse reforÅar o preconceito com o qual<br />
sÇo vistos. No final da novela, eles ficaram muito agra<strong>de</strong>cidos porque, com o 11 <strong>de</strong> setembro,<br />
eles passaram a ser vistos como terroristas, como pessoas que podiam atirar uma bomba em<br />
qualquer lugar. E como eles tÖm um visual (no modo <strong>de</strong> se vestir) diferente em relaÅÇo ao<br />
nosso, uma estàtica diferente (tem a barba, a mulher <strong>de</strong> lenÅo), enfim, eles eram facilmente<br />
i<strong>de</strong>ntificáveis. Com os atentados, eles sentiam a reaÅÇo assustada das pessoas e a rejeiÅÇo em<br />
relaÅÇo ä figura <strong>de</strong>les. Isso magoava, mexia muito com eles. Depois da novela eles ficaram<br />
muito agra<strong>de</strong>cidos. Isso à resultado <strong>de</strong> um cuidado que tenho ao falar do diferente. Eu sempre<br />
fiz questÇo <strong>de</strong> mostrar para os atores que a gente nÇo estava querendo mostrar que o nosso<br />
ponto <strong>de</strong> vista era superior. Fazia isso mostrando aspectos que eram engraÅados na cultura<br />
<strong>de</strong>les e tambàm da nossa. Levava pessoas para conversar com os atores. Uma vez levei um<br />
rapaz que tinha chegado ao Brasil havia 20 dias e foi muito engraÅado porque perguntei a ele<br />
como à que ele via o paÉs, o que o assustava, buscando no olhar <strong>de</strong>le as mesmas reaÅâes que<br />
tÉnhamos sobre a cultura <strong>de</strong>le, buscando o contraponto. E aÉ ele disse uma coisa muito<br />
interessante: o que mais o impressionou foi que se ele mexesse com uma mulher que passasse,<br />
fosse grosseiro com ela, ele era preso na terra <strong>de</strong>le, e que aqui os homens chamavam a mulher<br />
<strong>de</strong> cachorra e ela ficava tÇo feliz que atà danÅavam se insinuando (porque tinha na àpoca um<br />
rap que falava cachorra, tchutchuca). Ele ficava muito impressionado como à que se podia<br />
chamar uma mulher <strong>de</strong> cachorra e como à que ela reagia <strong>de</strong>ssa maneira, alegre, fazendo<br />
charme. Isso permitiu que os atores comeÅassem a sentir como eles tambàm eram estranhos<br />
do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> outra cultura.<br />
O que eu busquei, tanto no “Clone” como em “Caminho das índias”, foi mostrar a<br />
diversida<strong>de</strong> do mundo. ï isso que me encanta: o fato <strong>de</strong> existirem povos que enten<strong>de</strong>m a vida<br />
<strong>de</strong> maneira singular, buscam uma forma <strong>de</strong> viver que à diferente e legÉtima. E essa noÅÇo <strong>de</strong><br />
que isso nÇo à pior nem melhor, à apenas diferente, à muito difÉcil <strong>de</strong> as pessoas assimilarem.<br />
Nestas duas novelas, o projeto era exatamente esse: fazer com que a cultura diferente<br />
funcionasse como um espelho pra refletir a nossa cultura e passar a noÅÇo <strong>de</strong> que o nosso<br />
umbigo nÇo à mesmo a janela mais ampla para observar o mundo; à sÑ mais uma janela, mas<br />
existem muitas outras. SÑ que, no “Clone”, a cultura diferente <strong>de</strong> certa forma estava em<br />
segundo plano e no “Caminho das índias” ela passou para o primeiro plano, ela passou a ser<br />
parte da histÑria central. No “Clone” era a histÑria da clonagem, era a histÑria <strong>de</strong> um amor<br />
contrariado por questâes culturais tambàm. Mas eu acho que a cultura apareceu menos do que<br />
apareceu na índia. Na construÅÇo <strong>de</strong> “Caminho”, a histÑria da índia estava tÇo interligada,<br />
existiam tantos personagens que se interligavam, que <strong>de</strong>u para fazer esse jogo <strong>de</strong> espelho <strong>de</strong><br />
uma maneira mais profunda. A novela mostrou muito os personagens indianos na índia, com<br />
tramas que se passavam lá na terra <strong>de</strong>les.<br />
A idåia do espelho era vista nas cenas dos personagens que iam e vinham, como a<br />
Camila.<br />
Mas tambàm havia cenas lá e cá que faziam contraponto uma com a outra: a maioria<br />
das personagens tinha um correspon<strong>de</strong>nte nas duas culturas. E aÉ quando fazia uma cena<br />
237
(comum na nossa cultura) em que o mais velho era humilhado, era posto <strong>de</strong> lado como<br />
alguàm que já passou, nÇo tem mais nada a dizer, cortava para uma cena em que o idoso <strong>de</strong> lá<br />
era reverenciado, mesmo que fosse numa cena <strong>de</strong> muito humor, nÇo importa. Assim, a<br />
comparaÅÇo passava <strong>de</strong> uma forma subliminar. Nem sempre à preciso dizer na cena<br />
(didaticamente). Tem uma cena em “Caminho das índias” que à aquela em que o Raj rompe<br />
com a Duda porque a famÉlia nÇo aceita e ela reage como uma mulher da nossa cultura. Para<br />
ela aquilo à uma <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> malandro. Porque nÇo à possÉvel: o que a famÉlia <strong>de</strong>le tem a ver<br />
com isso, o que à essa subordinaÅÇo? Nem ela nem nenhuma das amigas <strong>de</strong>la engole esta<br />
histÑria e, no entanto, ele está sofrendo, está falando com a máxima sincerida<strong>de</strong>. A cena<br />
mostra o valor da famÉlia, como ela à vista. Claro que a Duda tambàm dá valor ä famÉlia <strong>de</strong>la<br />
(a famÉlia aqui tambàm tem um valor), mas ela tem a sua vida <strong>de</strong>stacada em relaÅÇo ä famÉlia.<br />
A privacida<strong>de</strong> à um valor muito forte para nÑs e para eles nÇo. Eu conversei pela internet com<br />
muitas mulheres brasileiras que foram morar na índia (tem muitas <strong>de</strong>las casadas com<br />
indianos, o casal na maioria das vezes se conhece pela internet). Elas casam e quando chegam<br />
lá à um susto, claro. ï um mundo completamente diferente. E todas elas contam histÑrias<br />
parecidas <strong>de</strong> que tinha um dia em que queriam ficar sozinhas no quarto, sem ver ninguàm, e a<br />
sogra praticamente chorava: “o que nÑs fizemos com vocÖ para vocÖ se sentir assim, a ponto<br />
<strong>de</strong> nÇo querer ficar com ninguàm?” As duas (sogra e nora) estÇo querendo se agradar<br />
mutuamente, mas, na verda<strong>de</strong>, acabam produzindo ruÉdo na comunicaÅÇo entre elas. Porque a<br />
forma <strong>de</strong> ver as coisas à diferente. Isso foi uma tentativa minha <strong>de</strong> mostrar essa diferenÅa,<br />
porque à muito difÉcil as pessoas aceitarem o outro diferente.<br />
Tenho trabalhado sempre nessa linha, tanto com personagens que sÇo diferentes como<br />
atravàs <strong>de</strong> culturas que sÇo diferentes. Em “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo” era o cigano. Eles tambàm<br />
ficaram muito contentes porque no caso <strong>de</strong>les eu tive um resultado muito positivo. Eles<br />
sempre foram vistos como ladrâes <strong>de</strong> crianÅa, ladrâes <strong>de</strong> qualquer coisa, <strong>de</strong> tal forma que o<br />
jovem cigano procurava sempre escon<strong>de</strong>r sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. E o que foi bonito no final foi que<br />
vários ciganos me escreveram dizendo que, por causa da novela, muito jovens passaram a ter<br />
orgulho da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cigana. Atà hoje eu tenho contato com eles. A cultura <strong>de</strong>les passou a ser<br />
valorizada: antes, as pessoas se afastavam quando sentiam que um cigano se aproximava,<br />
<strong>de</strong>pois, durante a novela, todos se chegavam a eles para conversar, queriam saber, como à que<br />
à, à assim mesmo que as coisas acontecem? E o cigano comeÅou a ter orgulho porque passou<br />
a ser visto <strong>de</strong> forma diferente.<br />
Existe uma expectativa muito gran<strong>de</strong> em relação à telenovela <strong>de</strong> que ela fale da<br />
realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que não traia a verossimilhança, negando à telenovela sua essência<br />
folhetinesca....<br />
Mas a novela à um folhetim! O tempo da ficÅÇo à outro. No romance, o autor dá a<br />
volta ao mundo em uma linha. Imagina se vocÖ vai levar dois dias para chegar ä índia! As<br />
prÑprias vidas retratadas no folhetim sÇo fracionadas porque na verda<strong>de</strong> a ficÅÇo faz um<br />
recorte na vida <strong>de</strong> uma pessoa. A ficÅÇo vai se restringir aos momentos mais interessantes,<br />
nÇo pega o cafà-da-manhÇ... SenÇo a coisa nÇo anda, vira um reality show. Existe essa<br />
cobranÅa sim e eu acho que ela revela a importência que a novela tem. Num paÉs em que vocÖ<br />
tem uma maioria analfabeta, que a maioria dos alfabetizados ganha muito pouco, o livro à<br />
caro, o teatro à caro, o cinema à caro. Agora já teve uma abertura maior por outro lado, mas a<br />
televisÇo tem sido a diversÇo máxima, a janela por on<strong>de</strong> estas pessoas po<strong>de</strong>m enxergar o<br />
mundo. Muita gente diz pra mim assim: “Ah, adorei ‘Caminho das índias’, adorei ‘O Clone’<br />
porque a gente viajou; eu que nÇo posso ir pra estes lugares, agora sei como à lá, aprendi com<br />
a novela”. De um lado, fazer alguma coisa que tenha esse alcance compensa a gente que à<br />
autor <strong>de</strong> telenovela, mas por outro lado, à muito triste porque vocÖ joga para uma obra <strong>de</strong><br />
238
ficÅÇo que tem a funÅÇo maior <strong>de</strong> divertir as obrigaÅâes que sÇo <strong>de</strong> outras instituiÅâes. Quem<br />
tem que educar as pessoas à a escola, nÇo à a telenovela. Quem tem que fazer a reportagem e<br />
se ater ao real à o jornal, nÇo à o folhetim. E muitas vezes a gente vÖ que entre nÑs (porque o<br />
americano nÇo tem essa <strong>de</strong>fesa, esse pà atrás com a imaginaÅÇo, tanto que eles tÖm<br />
programas, sàries as mais variadas, que trazem fantasmas cobrando situaÅâes que foram<br />
<strong>de</strong>ixadas pen<strong>de</strong>ntes...), a gente vÖ que aqui no Brasil já tem um pà atrás com a imaginaÅÇo.<br />
Mas eu vejo que o jornalismo troca com a gente: muitas vezes ele faz ficÅÇo e fica cobrando<br />
da gente um realismo quando na verda<strong>de</strong> o folhetim nÇo tem que ser realista, ele tem que ser<br />
bom, tem que encantar as pessoas, fazer sonhar, enfim. Eu sinto essa cobranÅa sim. Mas isso<br />
tudo revela a importência da novela: atravàs <strong>de</strong>la vocÖ se comunica com qualquer pessoa<br />
<strong>de</strong>ste paÉs, e todas as classes se comunicam entre si. A novela cria um assunto comum, vocÖ<br />
po<strong>de</strong> chegar em qualquer lugar do paÉs, atà numa tribo do Acre, que eles assistiam “O Clone”.<br />
Atravàs do assunto novela, vocÖ po<strong>de</strong> iniciar uma conversa com alguàm <strong>de</strong> qualquer classe <strong>de</strong><br />
qualquer lugar do paÉs. Isso à <strong>de</strong> uma importência extraordinária num paÉs <strong>de</strong> diferenÅas tÇo<br />
gran<strong>de</strong>s. Essa importência transcen<strong>de</strong> o que era para a telenovela ser: uma diversÇo. Logo que<br />
foi criado nos jornais, o folhetim tambàm unia as pessoas porque falava ao emocional <strong>de</strong>las.<br />
NÇo tinha o alcance nacional porque as pessoas nÇo sabiam ler. ès vezes, essa cobranÅa e<br />
essas crÉticas a respeito do realismo vÖm vestidas <strong>de</strong> uma linguagem acadÖmica que sÇo <strong>de</strong><br />
uma ignorência profunda. Se vocÖ for estudar Literatura, vai ver que à caracterÉstica do<br />
folhetim que o sensacional esteja ä frente da coerÖncia. Como à que vocÖ vai contar uma<br />
histÑria em 200 capÉtulos, seja no jornal, no folhetim do sàculo XIX, seja no folhetim<br />
eletrònico como o que a gente faz hoje para a televisÇo? Tem que ser tipo Rocambole,<br />
fazendo com que ela vá pelo caminho mais longo. Enquanto que no filme o limite <strong>de</strong> tempo<br />
exige que se con<strong>de</strong>nse a histÑria (a arte do cinema ou a arte da minissàrie à con<strong>de</strong>nsar os<br />
acontecimentos), no folhetim a arte à chegar aos acontecimentos pelo caminho mais longo,<br />
sem que seja chato, sem <strong>de</strong>ixar o pëblico perceber que à longo, sem per<strong>de</strong>r o interesse do<br />
pëblico, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> apresentar coisas novas. O que se queria com o folhetim no sàculo<br />
XIX? Ven<strong>de</strong>r jornal no dia seguinte (o pëblico comprava para saber como a histÑria<br />
continuava). EntÇo os autores daquela àpoca tinham <strong>de</strong> se valer do sensacional. Da mesma<br />
forma a gente: por que à que o sensacional vem ä frente da coerÖncia? Todo o capÉtulo à feito<br />
para que vocÖ nÇo <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> assistir o capÉtulo seguinte. Atà Balzac fez isso. Se vocÖ pegar A<br />
mulher <strong>de</strong> trinta, que à um romance lindo, <strong>de</strong> repente aparece uma coisa completamente fora<br />
do contexto do livro: a mocinha à sequestrada por uns piratas, o pai à sequestrado e encontra a<br />
filha como a rainha dos piratas! NÇo à que o autor pirou, ele nÇo tomou uma bola. Por que ele<br />
fez isso? Por que à maluco? NÇo. Ele sabe que estava sendo pago para ven<strong>de</strong>r o jornal do dia<br />
seguinte. Essa era a arte ali. VocÖ faz coisas bonitas, mas o que te norteia à que vocÖ tem que<br />
ven<strong>de</strong>r o capÉtulo do dia seguinte. Por isso à importante o sensacional. E reclamar disso à<br />
igual a criticar o soneto porque tem rima! ï seu elemento constitutivo, faz parte <strong>de</strong> sua<br />
estrutura.<br />
Sobre o seu método <strong>de</strong> trabalho: dizem que você escreve <strong>de</strong> pé e que fecha o capítulo<br />
sem saber o que vai acontecer no dia seguinte...<br />
sentido <strong>de</strong> urgência: é uma tensão, a criação exige uma tensão.<br />
O meu màtodo à esse! Eu nÇo gosto <strong>de</strong> ter um norte. Nem quando vou escrever o<br />
capÉtulo, faÅo escaleta. Eu nÇo sei o que vai acontecer no capÉtulo quando eu comeÅo a<br />
escrever. Assim como eu o termino sem saber como vai ser o prÑximo. Eu vou escrevendo e<br />
ele vai se criando ä medida que vou escrevendo. Isso à o meu estilo, à a minha maneira. Por<br />
isso escrevo sozinha. NÇo haveria como ter colaborador trabalhando <strong>de</strong>ste jeito. Para ter<br />
colaborador, eu teria que articular o capÉtulo antes. Para mim, para o meu estilo <strong>de</strong> fazer, esta<br />
239
articulaÅÇo pràvia empobrece. Na medida em que as cenas vÇo se <strong>de</strong>senrolando, eu vou<br />
sentindo que emoÅÇo se faz necessária ali. Mas antes, no papel frio (vamos fazer isso ou<br />
aquilo), soaria como uma receita pra mim. Para outras pessoas, nÇo. Tem gente que faz<br />
novelas maravilhosas trabalhando do outro jeito. Mas eu sÑ sei fazer assim. Acho que <strong>de</strong>ste<br />
modo eu tenho mais liberda<strong>de</strong> criativa. Quanto a escrever <strong>de</strong> pà, à uma imposiÅÇo da urgÖncia<br />
da escrita porque a criaÅÇo exige uma tensÇo.<br />
Janete Clair também escrevia sozinha e explorava a imaginação. Como foi a experiência<br />
<strong>de</strong> trabalhar ao lado <strong>de</strong>la?<br />
Janete Clair foi uma das pessoas que mais sofreu com as crÉticas ä telenovela. A ënica<br />
pessoa que reconheceu a Janete enquanto ela estava viva foi o Nelson Rodrigues. Ela virou<br />
cult <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morta. Hoje à idolatrada, mas quando era viva nÇo era assim. Eu sofro isso<br />
tambàm, talvez por ter sido discÉpula <strong>de</strong>la. Toda vez que vai comeÅar uma novela minha, já<br />
vem a etiqueta: à uma maluquice, um <strong>de</strong>lÉrio... Isso à muito interessante <strong>de</strong> se olhar <strong>de</strong>pois.<br />
Por exemplo, quando eu fiz a novela dos ciganos, era sobre a internet, e era a primeira vez que<br />
se falava <strong>de</strong> internet no Brasil. Fui chamada <strong>de</strong> louca, <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirante, porque uma pessoa nÇo<br />
falava com outra no computador. E aÉ eu ficava pensando o seguinte: como à que po<strong>de</strong> o<br />
jornalismo nÇo saber que isso existe e que a internet vai mudar o mundo? A página <strong>de</strong><br />
apresentaÅÇo <strong>de</strong> “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo” que foi para a imprensa à a <strong>de</strong>scriÅÇo exata do que à a<br />
internet hoje e <strong>de</strong> como ela transformou o mundo. Como à que o preconceito contra a novela<br />
po<strong>de</strong> ser tÇo gran<strong>de</strong> a ponto <strong>de</strong> cegar a pessoa, impedindo-a <strong>de</strong> ver que a outra está dizendo<br />
uma coisa muito coerente.<br />
A tecnologia e o novo fazem parte do seu interesse pessoal e te colocam à frente do seu<br />
tempo, não?<br />
Sou do tempo da BBS. Mas se eu fosse jornalista, eu ia investigar se o que aquela<br />
novela está dizendo à verda<strong>de</strong> antes <strong>de</strong> me pronunciar, <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar como <strong>de</strong>lÉrio. Depois vocÖ<br />
ri, vÖ que aqueles comentários sÇo <strong>de</strong> uma ignorência muito gran<strong>de</strong>. Na verda<strong>de</strong> à um<br />
preconceito e, quando à a mulher que diz, o preconceito à ainda maior. A Janete falava para<br />
mim que mulher nÇo po<strong>de</strong>. (A Janete e a Ivani Ribeiro eram as duas escritoras da àpoca em<br />
que eu comecei e elas nunca davam problema, nunca atrasaram novela, sempre acabaram suas<br />
novelas.) Se a mulher tiver uma crise <strong>de</strong> imaginaÅÇo, disser “ai tò <strong>de</strong>primida” dizem logo que<br />
à falta <strong>de</strong> homem e escalam um para assumir seu posto. ï verda<strong>de</strong>.<br />
Nas suas novelas as mulheres são muito po<strong>de</strong>rosas. Mesmo a Melissa que era uma fútil...<br />
Você acha que isso é resultado <strong>de</strong> um texto escrito por mulher?<br />
A Melissa tinha uma esperteza <strong>de</strong> mulher. NÇo sei se à porque à texto <strong>de</strong> mulher. Já<br />
pensei muito sobre isso, mas reconheÅo que a pintura mais bonita <strong>de</strong> mulher à Madame<br />
Bovary, que foi escrita por um homem. AÉ eu nÇo sei. O AlmodÑvar, por exemplo: pouca<br />
gente fala <strong>de</strong> mulher como ele, e ele à homem. Mas à preciso nÇo ser machista.<br />
Minissérie ou novela?<br />
Todo mundo gosta mais <strong>de</strong> fazer minissàrie. ï mais curto, tem-se controle da<br />
narrativa, po<strong>de</strong>-se burilar mais o texto. A novela sÇo 32 páginas por dia, à um trabalho braÅal.<br />
ï Ñbvio que nÇo à um trabalho cuidado, que tem o apuro que tem uma minissàrie. SÇo artes<br />
tÇo diferentes, nÇo dá pra comparar. Aquilo que à atraente numa novela – a coisa do<br />
240
ocambole – nÇo entra necessariamente numa minissàrie. O AlmodÑvar, por exemplo, tem um<br />
estilo muito interessante porque ele pega todo esse <strong>de</strong>scaramento do folhetim e ele consegue<br />
misturar <strong>de</strong> um jeito que passa um retrato tÇo humano das pessoas <strong>de</strong> quem ele fala. Mas se<br />
vocÖ olhar seus filmes, verá que ele usa todas as liberda<strong>de</strong>s possÉveis, as maiores<br />
inverossimilhanÅas estÇo ali. Ele fez disso um estilo. VocÖ vÖ o “Volver”, que à lindo: a filha<br />
mata o marido da mÇe e as duas saem arrastando o cadáver do marido pela rua, botam o<br />
homem numa gela<strong>de</strong>ira que vocÖ nÇo viu ela <strong>de</strong>smontar... Se fosse aqui, iam dizer que elas<br />
nÇo tÖm forÅa pra levantar o homem, iam questionar que nÇo tiraram nem as gra<strong>de</strong>s da<br />
gela<strong>de</strong>ira, nÇo dobraram o homem, como à que ele ficou lá <strong>de</strong>ntro. Todos sÇo<br />
questionamentos idiotas porque o filme à lindo. A cena à bárbara, o que interessa como à que<br />
elas levaram o cara para lá, como tiveram essa idàia e <strong>de</strong>ixaram ele lá? Ele usa essa liberda<strong>de</strong>.<br />
Acho que aqui se tem muito patrulhamento contra a imaginaÅÇo.<br />
Mais na telenovela do que no cinema?<br />
O cinema nÇo ocupou no Brasil o lugar que a telenovela ocupou. VocÖ vÖ: Hollywood<br />
fez um retrato da socieda<strong>de</strong> americana e ven<strong>de</strong>u o sonho americano para o mundo; ao passo<br />
que aqui o cinema ficou buscando o filme genial – isso está mudando agora. Cada filme tinha<br />
ser mais genial do que o outro, e aÉ nÇo se fez uma indëstria, eram filmes incompreensÉveis,<br />
nÇo se criou plateia. Se um historiador daqui a cem anos quisesse ter uma idàia do que era a<br />
vida brasileira, quais eram os costumes da dàcada <strong>de</strong> 70, 80, ele teria que recorrer ä<br />
telenovela. O retrato da vida brasileira está na telenovela. Em “Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, por<br />
exemplo, eu recebi carta <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento do INCOR porque a novela tinha impulsionado o<br />
nëmero <strong>de</strong> doadores, aumentando o nëmero <strong>de</strong> transplantes <strong>de</strong> coraÅÇo. CrianÅas<br />
<strong>de</strong>saparecidas, sÑ a novela achou mais <strong>de</strong> cem. As novelas sÇo capazes <strong>de</strong> criar esse serviÅo<br />
social, que na verda<strong>de</strong> nÇo à da competÖncia <strong>de</strong>la, nÇo à a funÅÇo <strong>de</strong>la.<br />
A crítica sempre insistiu na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a novela era o ópio do povo quando <strong>de</strong>veria ser<br />
usada para educar o povo. Como você vê o papel da novela como obra popular?<br />
A idàia <strong>de</strong> que telenovela à mero entretenimento, rasa <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, à uma<br />
caracterÉstica brasileira. O que à popular sempre foi visto como menor. E isso nos atravancou<br />
muito. NÇo possibilitou que o cinema virasse logo uma indëstria: tivemos um cinema logo no<br />
comeÅo que era Ñtimo e ai <strong>de</strong> repente, entra aquela fase <strong>de</strong> filmes geniais (que <strong>de</strong>veria haver,<br />
sim, mas tambàm dar lugar ao filme popular). Mas aqui o popular sempre sofreu muita<br />
restriÅÇo. E eu acho isso muito antipático: uma pessoa culta, um acadÖmico, ele po<strong>de</strong> ficar<br />
cansado do seu livro, do seu meio acadÖmico, se meter no cinema e rir muito. Isso à<br />
consi<strong>de</strong>rado normal. Mas aqui o povo nÇo po<strong>de</strong> apenas se distrair, ele tem que ser educado o<br />
tempo todo. Isso à tÇo pernÑstico. Tem-se que educar o povo (educar como?), ensiná-lo a ver<br />
que ele à oprimido. Foi assim que a novela foi chamada <strong>de</strong> o Ñpio do povo, o circo. Mas a<br />
gente nÇo vive sem isso, sem esse escape para a fantasia. O fato <strong>de</strong> a telenovela ter tanto<br />
sucesso irrita a aca<strong>de</strong>mia. Eles querem que ela cubra todas as outras artes, o que à impossÉvel.<br />
Uma telenovela à apenas um folhetim. Se ela está fazendo o papel do Estado à porque algum<br />
problema há neste paÉs. Se ela está fazendo o papel que as instituiÅâes <strong>de</strong>viam fazer, se ela<br />
está dando respostas que cabiam ao Estado e prestando os serviÅos que as instituiÅâes <strong>de</strong>viam<br />
fazer, algo está mal no paÉs. Vamos questionar o paÉs e nÇo a telenovela. Ela já está fazendo<br />
alàm da conta.<br />
241
Vocá disse certa vez que se a novela consegue a atenéÜo <strong>de</strong> tanta gente ─ o que jç å muito<br />
─, po<strong>de</strong>-se aproveitar essa popularida<strong>de</strong>, nÜo para educar o povo, mas para promover<br />
certas idåias...<br />
Nunca tive na cabeÅa essa idàia <strong>de</strong> educar quando coloco minhas campanhas na<br />
novela. Essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> colocar campanha na novela foi minha, numa mistura <strong>de</strong> jornalismo com<br />
a realida<strong>de</strong>. Fui eu que criei essa confluÖncia <strong>de</strong>ntro da telenovela. Nunca com o sentido <strong>de</strong><br />
educar, mas sim com o sentido <strong>de</strong> abrir espaÅo para as pessoas que nÇo tivessem voz, nÇo<br />
tivessem essa janela para expor seus dramas. Queria ouvir o esquizofrÖnico, os <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
quÉmicos, nÇo o que a polÉcia achava <strong>de</strong>les, o que os psiquiatras achavam <strong>de</strong>les e sim como<br />
eles viam a sua condiÅÇo. Isso à que eu acho importante. A mÉdia sempre ouve o que a polÉcia<br />
e os psiquiatras pensam <strong>de</strong>les e jamais se ocupa <strong>de</strong> saber como eles prÑprios pensam a sua<br />
condiÅÇo. Acho terrÉvel essa idàia <strong>de</strong> tentar educar. Minhas campanhas sÇo diferentes porque<br />
estÇo <strong>de</strong>ntro da histÑria. A maneira <strong>de</strong> fazer essa campanha muda tudo. Ela nÇo está solta. Em<br />
“Explo<strong>de</strong> CoraÅÇo”, era uma mistura <strong>de</strong> ficÅÇo com realida<strong>de</strong>, nÇo era merchandising porque<br />
essa palavra sugere que se está fazendo algo a parte <strong>de</strong> seu sentimento. Eu misturei jornalismo<br />
com realida<strong>de</strong>, agora, <strong>de</strong>ram a isso o nome <strong>de</strong> merchandising social e eu tambàm nÇo acho<br />
esse o melhor nome. Em “Explo<strong>de</strong>”, era a campanha das crianÅas <strong>de</strong>saparecidas, mas a<br />
personagem perdia o filho e aÉ ela se envolvia com o grupo que existe na realida<strong>de</strong>.<br />
A novela brasileira à a crònica do Brasil, mas a minha contribuiÅÇo à para alàm disso:<br />
a primeira que eu botei no ar minhas campanhas foi em “Carmen”, exibida na TV Manchete,<br />
em que tratava da AIDS como uma forma <strong>de</strong> lutar contra o preconceito e o porta-voz <strong>de</strong>ssa<br />
campanha era o Betinho. Era uma dona <strong>de</strong> casa que pegava AIDS, os vizinhos ficavam com<br />
medo <strong>de</strong>la, como na àpoca acontecia, e aÉ ela, <strong>de</strong>sesperada e tendo ouvido falar do Betinho,<br />
vai procurar por ele e ele vai atà os vizinhos explicando que nÇo era assim tÇo perigoso. O<br />
Betinho era um personagem real e muito popular naquela àpoca, e suas intervenÅâes na trama<br />
nÇo eram <strong>de</strong> modo algum didáticas. Como todo mundo conhecia o Betinho, que era o irmÇo<br />
do Henfil, era do samba, já tinha tido isso no papo dos vizinhos. E a dona Rosimar ficava lá<br />
chorando esperando que as pessoas se convencessem <strong>de</strong> que ela nÇo era um perigo ambulante.<br />
ï essa a coisa do real: pegar pessoas reais, como em “Barriga <strong>de</strong> Aluguel”. Quando explo<strong>de</strong> o<br />
escêndalo que a mÇe <strong>de</strong> aluguel quer ficar com a crianÅa, a histÑria acaba saindo no jornal da<br />
novela e tinha uma personagem que era jornalista e que comeÅa a fazer reportagens<br />
entrevistando um màdico real, a dona Zica da Mangueira, o Eduardo Mascarenhas, gente no<br />
trem da Central... Anònimos misturados com personalida<strong>de</strong>s foram ouvidos. Nada a ver com<br />
os testemunhos em final <strong>de</strong> capÉtulo, que fica totalmente <strong>de</strong>scolado da histÑria. Estes<br />
testemunhos eu usei no “Clone”, mas era no meio do capÉtulo e sempre ligado a uma situaÅÇo<br />
que nÇo <strong>de</strong>ixava vocÖ escapar do folhetim: a Mel foi pro morro e a mÇe fica sabendo, fica<br />
<strong>de</strong>sesperada, vai atrás e diante do morro, consi<strong>de</strong>ra todos os perigos que vai enfrentar, mas ela<br />
vai subir para buscar a filha. No que ela comeÅa a subir o morro, corta para uma mÇe real<br />
contando como ela se sentiu quando foi buscar a filha no alto do morro. SaÉa o <strong>de</strong>poimento e a<br />
mÇe da Mel chegava ao alto do morro e negociava com o traficante a soltura da filha. O<br />
testemunho era muito embalado <strong>de</strong>ntro da histÑria, nada solto. Se as pessoas nÇo comprarem o<br />
personagem, elas nÇo se interessam pelo que acontece com ele. Isso está na minha cartilha.<br />
Por isso eu jamais comeÅaria uma novela com uma campanha; primeiro o autor tem que<br />
ven<strong>de</strong>r o folhetim. VocÖ se importa com o que acontece com quem vocÖ se importa. VocÖ tem<br />
que se envolver com aquela personagem para se importar com o que acontece com ela.<br />
Janete Clair pregava que os capâtulos <strong>de</strong>viam comeéar e acabar com a trama principal.<br />
Vocá segue essa regra?<br />
242
Eu sigo bem essa regra. A Janete tem uma contribuiÅÇo muito gran<strong>de</strong> que quase<br />
nenhum autor foge <strong>de</strong>la. Ela <strong>de</strong>u unida<strong>de</strong> ao capÉtulo porque na àpoca <strong>de</strong> GlÑria Magadan,<br />
tinha-se o capÉtulo a metro, que vai, vai, vai e à cortado quando o tempo acaba. A Janete<br />
instituiu a idàia do capÉtulo como unida<strong>de</strong>. ï a concepÅÇo do capÉtulo como espetáculo diário<br />
que tinha a sua dosagem <strong>de</strong> emoÅâes: cena <strong>de</strong> emoÅÇo, cena <strong>de</strong> humor, tudo para dar ao<br />
pëblico uma variaÅÇo <strong>de</strong> sentimento, a tensÇo, o refresco, a hora da imaginaÅÇo, a hora da<br />
fantasia. Dá pra fazer isso <strong>de</strong>ntro da escola da Janete porque faz parte da cartilha <strong>de</strong>la ter uma<br />
histÑria central forte, um tronco central e os galhos, que sÇo as histÑrias paralelas. Alguns<br />
autores nÇo trabalham com isso, eles criam várias histÑrias com o mesmo peso. No meu caso<br />
eu sou da escola da Janete mesmo. Tem sempre um tronco forte cujo eixo se <strong>de</strong>senvolve<br />
lentamente: tem um casal separado no comeÅo que sÑ se junta no final – <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista<br />
se tem um tempo longo porque essa histÑria central tem que unir todas as outras. A histÑria<br />
tem que comeÅar importante: o autor tem que mostrar <strong>de</strong> cara qual à a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong>la e ele<br />
vai solucionar isso no final <strong>de</strong> alguma maneira. No meu caso, eu gosto <strong>de</strong> fazer mais <strong>de</strong> uma<br />
paralela forte. Eu faÅo a central muito forte, mas gosto <strong>de</strong> uma paralela tambàm forte. Em<br />
“Caminho”, vocÖ tem a histÑria central <strong>de</strong> Maya, Raj e Bahuam que implica com a histÑria da<br />
Duda (tudo isso à a histÑria central) e vocÖ tem a histÑria dos irmÇos Ramiro e Raul (cujas<br />
paralelas envolvem o Dr. Castanho, o Murilo, a Tònia), que <strong>de</strong> certa forma se une ä central<br />
tambàm. Nas paralelas vocÖ tem milhares <strong>de</strong> outras: a da escola, a dos indianos no Brasil etc.<br />
VocÖ tem <strong>de</strong> criar tramas enfeitando a novela em volta, mas tem o gancho forte para segurar o<br />
pëblico durante 200 capÉtulos. Essa à a forÅa da trama central. Na verda<strong>de</strong> à ela que segura a<br />
novela. ès vezes nÇo ocorre assim: tem novelas em que a trama central po<strong>de</strong> falhar e uma<br />
paralela ganha forÅa. Tem novela que ao longo do tempo vive <strong>de</strong> um personagem, mas à um<br />
perigo, a histÑria fica na corda bamba. Na verda<strong>de</strong> cada autor coloca na novela seu universo,<br />
sua visÇo <strong>de</strong> mundo, aquilo com que vocÖ se importa... ï um espelho do autor, das suas<br />
curiosida<strong>de</strong>s.<br />
Sexta e sábado sÇo dias <strong>de</strong> audiÖncia menores tradicionalmente porque as pessoas<br />
saem mais <strong>de</strong> casa... Nestes dias se procura apresentar capÉtulos atraentes, mas on<strong>de</strong> os<br />
acontecimentos <strong>de</strong>finitivos nÇo se resolvem. No final do capÉtulo <strong>de</strong> sábado vocÖ po<strong>de</strong> criar<br />
um gran<strong>de</strong> gancho, que sugere que vai haver um gran<strong>de</strong> acontecimento, mas para ser<br />
resolvido na segunda. NÇo se po<strong>de</strong> fazer o casamento da protagonista no sábado. NÇo que se<br />
fique enchendo linguiÅa, mas como sÇo dias difÉceis, vocÖ tem uma faca <strong>de</strong> dois gumes<br />
porque se fizer um capÉtulo muito lerdo, vai ter menos gente do que se o capÉtulo for vibrante.<br />
Tem-se que fazer capÉtulos bem vibrantes e interessantes, mas on<strong>de</strong> a histÑria central nÇo se<br />
conclua.<br />
Sendo o amor impossível uma das bases do folhetim, você teria escolhido falar <strong>de</strong><br />
ciganos, árabes e indianos porque nessas culturas os impedimentos são mais rígidos,<br />
ligados a uma tradição arcaica?<br />
Eu escolhi estes temas pela minha curiosida<strong>de</strong>. Quando escrevo uma novela, que à um<br />
trabalho que toma tanto do meu tempo e por tanto tempo, à fundamental para mim que o tema<br />
abordado me mobilize, me interesse. Escrever sobre aquilo te obriga a pensar sobre o assunto,<br />
faz vocÖ apren<strong>de</strong>r sobre um assunto que te interessa. SÑ escrevo com entusiasmo sobre aquilo<br />
que me interessa. Escrever usando sÑ a tàcnica eu nÇo faria mesmo. No caso <strong>de</strong>stas trÖs<br />
novelas, o ponto <strong>de</strong> atraÅÇo para mim nem <strong>de</strong> longe passou pela questÇo do amor impossÉvel.<br />
Interessei-me pela índia há dois anos quando fui ao MIPCOM. Achei fascinante: estava lá<br />
vendo a tevÖ <strong>de</strong> terceira dimensÇo apresentada pelos asiáticos e a festa temática organizada no<br />
hotel era sobre a índia. Os indianos estavam todos vestidos a caráter. O que me interessa<br />
muito – e isso talvez seja o ponto em comum entre as trÖs novelas e nÇo o amor impossÉvel –<br />
243
à essa mistura dos tempos. O ponto <strong>de</strong> partida para a novela dos ciganos nÇo foi a cultura<br />
cigana, isso veio <strong>de</strong>pois. Foi a internet que me interessou primeiro. O que me interessa muito<br />
à pensar assim: como à que essas tecnologias novas mudam a vida cotidiana das pessoas,<br />
como introduzem dramas novos, on<strong>de</strong> se vai viver sem referÖncias passadas. Quando se vai<br />
ser mÇe, se tem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primÑrdios da humanida<strong>de</strong> alguma referÖncia do que à ser mÇe. Mas<br />
para ser mÇe <strong>de</strong> aluguel nÇo se tem nenhuma referÖncia. Isso me interessou muito porque era<br />
uma subdivisÇo <strong>de</strong> trabalho numa área em que eu nunca pensei que estaria viva para ver. A<br />
maternida<strong>de</strong> nunca foi <strong>de</strong>finida em cÑdigo nenhum porque sempre foi uma evidÖncia, e agora,<br />
mesmo tanto anos <strong>de</strong>pois, quando a barriga <strong>de</strong> aluguel já se tornou uma coisa comum, como à<br />
que à nÇo ser mÇe carregando uma barriga e tendo um parto e como à que à ser mÇe, se sentir<br />
mÇe <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, sem a barriga e o parto. Essa era a experiÖncia que elas tinham que viver. A<br />
internet, por exemplo, que me levou aos ciganos, eu fiquei vendo logo aquele universo<br />
fantástico que a internet ia trazer porque se eu estava conversando na BBS com pessoas que<br />
eu jamais encontraria na vida real. EntÇo eu procurei achar pessoas que jamais se cruzariam<br />
na vida real: um polÉtico importante e quem? AÉ veio a i<strong>de</strong>ia da cigana. Atà porque nessa<br />
àpoca eu conheci uma cigana que tinha me ajudado na pesquisa para “Carmen” e ela me dizia<br />
“VocÖs tÖm essa mania <strong>de</strong> que cigano tem que andar rodando, ser pobre e ler mÇo, mas tem<br />
muito cigano rico”. E eu nÇo sabia disso. AÉ ela me levou numa cobertura aqui em<br />
Copacabana, linda, uma casa <strong>de</strong> ciganos em que havia uma garota que estudava na PUC e ela<br />
me mostrava o retratinho 3x4 <strong>de</strong> um homem que ela nunca tinha visto e que estava vindo da<br />
Polònia para casar com ela. E ela dizia que nÇo ia casar e os pais estavam indignados com<br />
aquilo. Foi isso que me suscitou unir o polÉtico com a cigana. SÇo coisas que vocÖ vive e que<br />
vÖm ä tona na hora <strong>de</strong> escrever uma novela. E eu sou muito curiosa, muito curiosa por gente,<br />
por saber como vivem, como pensam. Hoje as pessoas se interessam muito por personagens<br />
bem sucedidas (mesmo que nÇo sejam exemplos <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>), à o lado menos bonito do<br />
interesse por gente.<br />
Essa histÑria do amor impossÉvel com acabamento <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fadas, que foi o que<br />
ocorreu com “O Clone” e com “Caminho”, nÇo à difÉcil <strong>de</strong> se obter em socieda<strong>de</strong>s menos<br />
arcaicas porque o impedimento po<strong>de</strong> ganhar todo tipo <strong>de</strong> contorno, tornando a histÑria<br />
completamente diferente. Por exemplo, o amor à impossÉvel porque as famÉlias nÇo se dÇo,<br />
como em Romeu e Julieta, porque um à filho <strong>de</strong> coronel e a outra à filha <strong>de</strong> um colono; o<br />
amor entre uma escrava e um coronel já à outra histÑria, entre o cigano e o polÉtico tambàm. ï<br />
o tempo que cria as impossibilida<strong>de</strong>s. Uma moÅa afegÇ com um soldado americano seria um<br />
universo totalmente novo, e, no entanto, à a velha histÑria, basta mudar a posiÅÇo das pessoas.<br />
O amor impossÉvel nÇo à nada complicado <strong>de</strong> fazer. O contorno <strong>de</strong> conto <strong>de</strong> fadas à algo que<br />
certos autores se permitem, apesar das dificulda<strong>de</strong>s que esta escolha implica. Como as pessoas<br />
costumam olhar o mundo atravàs do prÑprio umbigo, aquele impedimento nÇo parece<br />
impedimento e sim fruto do atraso <strong>de</strong> uma cultura diferente. O dilema da Maya <strong>de</strong> contar ou<br />
nÇo a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>corre exatamente do fato <strong>de</strong> ela estar no tempo mo<strong>de</strong>rno. Se aquilo fosse<br />
colocado numa trama <strong>de</strong> àpoca, as pessoas enten<strong>de</strong>riam melhor. Mas, no mundo mo<strong>de</strong>rno,<br />
como para nÑs nÇo à gran<strong>de</strong> coisa engravidar antes ou fora do casamento, as pessoas<br />
comeÅam a achar que a visÇo <strong>de</strong>las à o critàrio <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Quem nÇo pensa assim à<br />
atrasado. Como à que a Maya à mo<strong>de</strong>rna e vive o tabu <strong>de</strong> uma relaÅÇo fora do casamento? A<br />
reaÅÇo do pëblico <strong>de</strong> con<strong>de</strong>ná-la por suas mentiras e por sua dificulda<strong>de</strong> em revelar a verda<strong>de</strong><br />
à a nÇo aceitaÅÇo do povo em ver o outro atravàs <strong>de</strong> um olhar diferente. Esse convite para as<br />
pessoas se <strong>de</strong>spirem dos seus preconceitos e da sua maneira <strong>de</strong> pensar e entrar na pele do<br />
outro à muito complicado <strong>de</strong> aceitar. Costuma-se pensar que as i<strong>de</strong>ias que vigoram hoje sÇo<br />
mais avanÅadas do que as que vigoraram antes. A histÑria da estudante da Uniban está aÉ para<br />
mostrar como os tempos mo<strong>de</strong>rnos po<strong>de</strong>m ser arcaicos, como o tempo se dobra sobre si<br />
mesmo.<br />
244
Durante a ditadura militar, a censura <strong>de</strong>u muito trabalho aos autores, que tiveram que<br />
cortar cenas e até mesmo abortar a estreia <strong>de</strong> novela. Por outro lado, a novela, por conta<br />
<strong>de</strong> sua gran<strong>de</strong> penetração popular foi criticada por favorecer os interesses do governo,<br />
distraindo a população dos gran<strong>de</strong>s problemas nacionais e favorecendo a integração do<br />
país. Janete Clair foi uma das gran<strong>de</strong>s vítimas: teve novelas censuradas e também foi<br />
chamada <strong>de</strong> colaboracionista. Como vê essa contradição?<br />
Janete colaboradora da ditadura? Imagina! Tal imagem, se <strong>de</strong> fato houve, sÑ po<strong>de</strong> ser<br />
resultante do fato <strong>de</strong> ela ven<strong>de</strong>r o sonho, dar o Ñpio do povo. Mas essa à uma paranÑia<br />
persecutÑria <strong>de</strong> parte da esquerda brasileira: como se tudo tivesse um gran<strong>de</strong> plano por <strong>de</strong>trás.<br />
A Janete era uma contadora <strong>de</strong> histÑrias, a ënica coisa que ela queria era contar histÑrias, nÇo<br />
era uma pessoa que tivesse gran<strong>de</strong>s preocupaÅâes com polÉtica. ï sacanagem dizer uma coisa<br />
<strong>de</strong>ssas! Quanto ä temática das novelas <strong>de</strong>la, o que ela fez foi trazer a novela para o Brasil. Em<br />
vez <strong>de</strong> os personagens morarem lá no fim do mundo, num reino nÇo existente, moravam no<br />
Brasil. Isso nÇo faz parte <strong>de</strong> nenhum plano, isso era o Ñbvio. Mas a gente tem que prestar a<br />
atenÅÇo na àpoca. NÑs estamos olhando por cima dos ombros da Janete. Eu estou enxergando<br />
o folhetim que eu escrevo por cima dos ombros <strong>de</strong>la e ela escrevia sobre os ombros da GlÑria<br />
Magadam. Pensa no avanÅo que significou uma pessoa que fez o que ela fez. Janete nÇo sÑ<br />
transplantou para a realida<strong>de</strong> brasileira os dramas que ela contava como <strong>de</strong>u a unida<strong>de</strong> ao<br />
capÉtulo (que prevalece atà hoje), preocupaÅÇo que à <strong>de</strong> escritora nÇo <strong>de</strong> polÉtica. Isso <strong>de</strong> dizer<br />
sobre a ditadura, coisa que eu nem sabia e acho um absurdo, à uma perseguiÅÇo <strong>de</strong>sta parte da<br />
esquerda brasileira contra o folhetim. Tudo o que distraÉsse o povo da doutrinaÅÇo estava a<br />
serviÅo da ditadura. A Janete sÑ era talentosa: fazer um paÉs sonhar naquela àpoca (qualquer<br />
diretor <strong>de</strong> cinema hoje que faÅa o sucesso que as novelas <strong>de</strong>la fizeram fica feliz, à festejado),<br />
era coisa que nem o cinema brasileiro fazia porque os gran<strong>de</strong>s filmes eram feitos para as rodas<br />
dos intelectuais, nÇo eram feitos para o povÇo. O que era feito para o povÇo era consi<strong>de</strong>rado<br />
Ñpio. O povÇo sÑ podia ser doutrinado. Ela sÑ foi a melhor da àpoca. E foi censurada tambàm.<br />
Quando nÇo dizem o mesmo sobre o Dias (que ele colaborou com a ditadura porque escrevia<br />
novela), tendo a achar que o comentário era fruto <strong>de</strong> um preconceito horrÉvel contra a mulher<br />
Janete. Tentaram <strong>de</strong>struir a Janete <strong>de</strong> todas as maneiras, inclusive emocionalmente. Ela sofria<br />
muito com o que falavam <strong>de</strong>la. E chorava, se importava, nÇo era como eu que rio e ainda<br />
recorto essas maluquices para <strong>de</strong>ixar para os meus netos rirem daqui a um tempo, porque eu<br />
sei que vÇo rir. Ela era muito sensÉvel, chorava quando lia essas coisas que diziam sobre ela.<br />
O talento <strong>de</strong> fazer sonhar, que à o talento prÑprio da profissÇo <strong>de</strong>la ─ nÑs temos que contar<br />
histÑria para o povo inteiro ver, sonhar, se envolver ─, era visto por cabeÅas estreitas como a<br />
estratàgia <strong>de</strong> alguàm a serviÅo da ditadura. Se nÇo se está doutrinando, se está a serviÅo da<br />
ditadura! Mas por que entÇo que o Dias Gomes nÇo estava tambàm a serviÅo da ditadura se<br />
ele tambàm escrevia novelas? O preconceito contra a mulher estava, por exemplo, nos boatos<br />
que corriam o paÉs quando as novelas <strong>de</strong>las explodiam <strong>de</strong> sucesso, dizendo que quem escrevia<br />
era ele e ela sÑ assinava. As novelas <strong>de</strong>las nÇo tinham nada <strong>de</strong> polÉtica, eram sonhos <strong>de</strong> amor.<br />
Quando hoje se referem äs novelas <strong>de</strong>las, muitos contam coisas que nÇo estavam lá na versÇo<br />
original. Eu nÇo conheÅo novela nenhuma da Janete que tenha essa preocupaÅÇo polÉtica. Ela<br />
gostava <strong>de</strong> contar histÑrias <strong>de</strong> amor, que te faziam chorar, se emocionar. E ela via as histÑrias<br />
<strong>de</strong>la como espectadora. Um amigo meu, diretor da Globo e tambàm muito amigo da Janete,<br />
dizia uma coisa que à verda<strong>de</strong>: a gran<strong>de</strong> vantagem <strong>de</strong>la sobre todos nÑs, inclusive os <strong>de</strong> hoje,<br />
à que ela era uma dona <strong>de</strong> casa que escrevia. Sendo assim ela tinha um alcance e ia muito<br />
mais diretamente e muito mais rapidamente äs emoÅâes do que a gente consegue ir. Ela sÑ foi<br />
a melhor <strong>de</strong> todos nÑs e isso tem um preÅo. Eu vejo as pessoas dizerem que a novela à o Ñpio<br />
do povo. Mas por que as do Dias nÇo? Ele sÑ escreveu essas novelas mais <strong>de</strong> crÉtica social<br />
245
<strong>de</strong>pois, antes ele escrevia Ponte dos suspiros, com o pseudònimo <strong>de</strong> Stela Cal<strong>de</strong>ron, que todo<br />
mundo sabia que era ele, mas ninguàm falava que ele estava a serviÅo da ditadura. ï<br />
preconceito. ï a mesma coisa com a mësica: Chico Buarque escreveu obras primas que<br />
faziam a gente viver uma catarse com o duplo sentido <strong>de</strong> suas letras que nos faziam gritar<br />
contra a ditadura, mas nesta mesma àpoca houve outros compositores maravilhosos como<br />
Cartola, cuja obra nÇo tem conotaÅÇo polÉtica, e isso nÇo <strong>de</strong>veria ser consi<strong>de</strong>rado bom por que<br />
nÇo tinha uma mensagem ali? Se a novela estava a serviÅo da ditadura porque sua linguagem<br />
e as histÑrias que contava permitiam que o Brasil inteiro se unificasse, nÑs hoje tambàm<br />
<strong>de</strong>verÉamos ser criticados pela mesma coisa. E nÑs, estamos a serviÅo <strong>de</strong> que? Do consumo?<br />
Mas à a mesma coisa. ï o mesmo preconceito do qual escapam alguns eleitos ontem e hoje.<br />
As mulheres sÇo logo taxadas, à fato. Porque acham que à mais fácil bater em mulher... Eu<br />
nÇo acho que seja, pelo contrário, à atà mais perigoso. O preconceito contra a telenovela lá<br />
atrás, na àpoca da ditadura, fez com que os intelectuais rejeitassem o prÑprio veÉculo, a<br />
televisÇo. Como se ela fosse acabar com o livro e com o cinema.<br />
Hoje se sabe que a internet favoreceu a exposiÅÇo dos pequenos relatos e dos discursos<br />
dos anònimos. Agora vocÖ imagina na àpoca da Janete que nÇo tinha internet. Essa cabeÅa que<br />
inventou esse vÉnculo <strong>de</strong>la com a ditadura <strong>de</strong>ve ser um ressentido que nÇo consegue chegar ao<br />
pëblico e precisa do povo para mudar o Estado. Esse cara vÖ aquela mulher escrevendo coisas<br />
que ele consi<strong>de</strong>ra uma besteira botando o pëblico louco. VocÖ imagina uma coisa: hoje a<br />
gente tem a internet, as classes sociais mais baixas tÖm acesso a uma sàrie <strong>de</strong> coisas que nÇo<br />
havia na àpoca; era uma àpoca <strong>de</strong> “televizinho” porque nem todas as pessoas tinham televisÇo<br />
e precisavam recorrer ao vizinho; o po<strong>de</strong>r aquisitivo era outro, o televisor era mais caro, o<br />
Brasil tinha muito mais analfabetos, nÇo se tinha internet, as pessoas nÇo tinham nenhum<br />
escape. Imagina o impacto que as telenovelas <strong>de</strong> Janete Clair representavam para estas<br />
pessoas que nÇo tinham nada alàm daquilo.<br />
Suas novelas também costumam causar gran<strong>de</strong> impacto no público.<br />
Todas as minhas novelas <strong>de</strong> certa forma assustam muito quando elas chegam. “Barriga<br />
<strong>de</strong> Aluguel” ficou cinco anos na gela<strong>de</strong>ira. “O Clone” tambàm ficou na gela<strong>de</strong>ira porque<br />
achavam que o pëblico nÇo aceitaria falar <strong>de</strong> um mundo tÇo estranho ao nosso. Embora a<br />
novela tenha estreado junto com o 11 <strong>de</strong> setembro, a proposta <strong>de</strong> “O Clone” já estava na<br />
emissora muito tempo antes dos atentados. As pessoas dizem que tenho bola <strong>de</strong> cristal, mas<br />
nÇo à bem assim. As coisas estÇo aparentes, mas à preciso que vocÖ olhe para elas, senÇo vocÖ<br />
nÇo enxerga. Havia uma tensÇo com o mundo árabe que eu nÇo entendo como as pessoas<br />
podiam nÇo enxergar. O mundo árabe estava todo dia no noticiário brigando, protestando. A<br />
tensÇo estava ali. ï claro que ninguàm po<strong>de</strong>ria imaginar que chegaria aon<strong>de</strong> chegou. Dizem<br />
que minhas antenas sÇo po<strong>de</strong>rosas, mas elas nÇo sÇo mágicas. NÇo há mágica nenhuma nisso:<br />
o islÇ e os muÅulmanos, seus conflitos e a tragàdia <strong>de</strong> sua gente está todo dia nos jornais há<br />
muitos anos. Muitos os veem apenas como notÉcia. Como me interesso por gente, vejo o lado<br />
humano daquelas cenas e intuo sobre o confronto <strong>de</strong> tanta diferenÅa num mundo cada vez<br />
mais globalizado. Basta olhar e saber ver.<br />
Eu estava passando fàrias em Miami <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “O Clone”, e vi aquela fila monstruosa<br />
da imigraÅÇo. Interessei-me e fiquei sabendo uma coisa que ninguàm havia divulgado: que o<br />
maior contingente a tentar atravessar pelo <strong>de</strong>serto à o mexicano e o segundo em nëmero à o<br />
brasileiro. Eu fiquei pasmem. Fui conversar com as pessoas, ver como era isso. Gente, tanto<br />
brasileiro vivendo esse drama e a gente nem sabe! Diziam que eu estava inventando coisa,<br />
quando à uma coisa real. Por que o jornalismo nÇo divulgava, por que nÇo ia verificar se o que<br />
eu estava contando era verda<strong>de</strong> ou nÇo? Quando morreu o Jean Charles, soube-se que na<br />
cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele nasceu quase nÇo havia homens porque todos estavam indo para fora do paÉs.<br />
246
Quando os filhos nasciam, os pais já comeÅavam a juntar dinheiro para mandar o menino para<br />
o exterior. As dificulda<strong>de</strong>s que as pessoas enfrentam para atravessar o <strong>de</strong>serto foi o que me<br />
chamou a atenÅÇo. Como tem tanta gente passando por isso e nÇo se fala do assunto? O que a<br />
novela faz à isso: colocar um assunto em discussÇo. Une realmente o paÉs em torno <strong>de</strong> um<br />
assunto.<br />
Entrevista realizada em 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009<br />
Janete Clair atingia igualmente as mais diferentes camadas da população? Como isso se<br />
dava?<br />
Ela nÇo tinha a prepotÖncia <strong>de</strong> quem está falando para alguàm que está abaixo <strong>de</strong>la.<br />
Era uma dona <strong>de</strong> casa que escrevia. Ela amava o gÖnero e quis passar o que sabia para<br />
alguàm. Ela queria que a telenovela continuasse, que nÇo acabasse com a sua morte. Era uma<br />
pessoa simples. O segredo <strong>de</strong>la estava muito nessa simplicida<strong>de</strong>. Era isso que fazia ela tÇo<br />
gran<strong>de</strong>.<br />
O que dá uma novela?<br />
Eu nÇo fico analisando se isso dá ou nÇo uma novela. Quem escreve à muito atento.<br />
Tem algum lugar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> vocÖ on<strong>de</strong> as coisas que vocÖ vive ficam guardadas. E na hora em<br />
que vocÖ vai escrever uma novela elas vÖm ä tona, aqueles tipos surgem; à como se vocÖ<br />
<strong>de</strong>spertasse uma memÑria ä parte. Os tipos que vocÖ conviveu, as emoÅâes que vocÖ viveu,<br />
tudo à vida, tudo po<strong>de</strong> ser traduzido numa histÑria. Agora, para dar uma novela (tem histÑrias<br />
que dÇo uma minissàrie, que dÇo uma novela...), ela precisa ter <strong>de</strong>sdobramentos, porque uma<br />
novela à uma obra muito gran<strong>de</strong>. Precisa ter capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento para cobrir o<br />
tempo <strong>de</strong> duraÅÇo <strong>de</strong> uma novela e tambàm precisa ter capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilitar o<br />
sensacional. O sensacional faz parte do folhetim. Quando se está terminando um capÉtulo,<br />
qualquer autor vai buscar o que a cena oferece <strong>de</strong> mais sensacional <strong>de</strong> modo a que chame o<br />
pëblico para o dia seguinte. Tem que apelar para o sensacional: pessoas que quase se<br />
encontram, mas no capÉtulo seguinte nÇo se vÖem. Tem-se que imaginar coisas assim porque<br />
no final <strong>de</strong> cada capÉtulo vocÖ nÇo está <strong>de</strong>sfechando a histÑria, senÇo nÇo tem histÑria que<br />
renda uma novela. VocÖ tem outros falsos ganchos ou ganchos que fazem a histÑria andar,<br />
mas nÇo solucionam a histÑria, e tem os ganchos que sÇo mais <strong>de</strong>finitivos: o beijo da mocinha<br />
e do mocinho, on<strong>de</strong> o autor sacramenta que existe um romance ali; a hora em que um caso<br />
termina, a hora em que o casal se separam, que se reencontra. SÇo ganchos <strong>de</strong>finitivos <strong>de</strong> uma<br />
histÑria. No meio disso vai ter muito gancho falso, que à quando parece que vai haver um<br />
encontro e nÇo há, parece que a personagem foi atingida e no capÉtulo seguinte, vÖ-se que nÇo<br />
foi. Estes ganchos ou sÑ fazem a histÑria andar ou nÇo te levam a lugar nenhum, sÇo<br />
puramente sensacionais. Tem uma hora em que vocÖ quer terminar o capÉtulo e precisa criar<br />
uma coisa que permita que ele acabe <strong>de</strong> uma forma interessante Por exemplo: em “Barriga <strong>de</strong><br />
Aluguel”, quando o pai da Clara abria a porta do elevador e via a filha com uma barriga<br />
enorme, quando ele via que ela estava grávida. Para ele, que era testemunha <strong>de</strong> Jeová, aquilo<br />
era uma coisa absolutamente inaceitável. Eu pensei: era pouco ele sÑ ver que ela estava<br />
grávida. Tinha que botar um charme na cena. AÉ ele a vÖ, ela fica apavorada e diz: “Papai, eu<br />
juro que nÇo à meu!” AÉ já fica mais interessante, nÇo fica? Cria a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver como<br />
vai continuar. Tem um gancho que eu fiz uma vez que o Carlos Lombardi sempre inclui em<br />
suas novelas em minha homenagem: era em “Carmem”, nÇo tinha como acabar o capÉtulo,<br />
tinha que ser um final sensacional e o que eu fiz? A mulher tinha <strong>de</strong>scoberto que o marido<br />
247
estava traindo ela com a cunhada, ela já sabia disso, eles se encontraram no quarto e tinha um<br />
revÑlver do lado, ela pega o revÑlver que estava a uma distência pequena, a cêmera foca a<br />
mulher dando seis tiros; no capÉtulo seguinte o pëblico vÖ que nenhum tiro pegou nele. Isso à<br />
o sensacional, que puxa o pëblico para ver o que aconteceu. Hoje em dia isso está dificultado<br />
porque antes nÇo havia publicaÅâes que contavam o que vai acontecer. Alàm <strong>de</strong> inventarem<br />
muita coisa, äs vezes eles contam o que <strong>de</strong> fato vai acontecer. No tempo da Janete, as pessoas<br />
ligavam para a emissora porque o beijo esperado podia acontecer em qualquer capÉtulo, a<br />
qualquer momento. NÇo havia publicaÅÇo que antecipasse esse acontecimento. Hoje as<br />
pessoas lÖem as revistas e escolhem o que querem ver. “Essa cena me interessa; essa, nÇo.”<br />
Isso exige que o autor faÅa mais ainda o sensacional. Para driblar a expectativa do pëblico,<br />
tem que ter um apelo para a curiosida<strong>de</strong>. Tem-se que criar mais gancho, mais coisa<br />
sensacional a cada capÉtulo para driblar o que a imprensa noticia.<br />
As histärias que dÜo novela sÜo as histärias <strong>de</strong> amor?<br />
O centro à sempre uma histÑria <strong>de</strong> amor, uma histÑria romêntica. Sempre foi assim.<br />
Houve novelas experimentais, äs 22 horas, em que o centro nÇo era amor. “O Rebu”, que era<br />
o quem matou, tinha o crime como um eixo mais importante do que a histÑria <strong>de</strong> amor. Mas<br />
as novelas das 20 horas, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> pëblico, sempre foram histÑrias <strong>de</strong> amor.<br />
Tanto “O Clone” como “Caminho das Éndias” foram conduzidas com a eståtica <strong>de</strong> conto<br />
<strong>de</strong> fadas...<br />
Porque o ambiente propiciava isso. A Ja<strong>de</strong> era uma personagem <strong>de</strong> Scheraza<strong>de</strong>, por<br />
exemplo. A Maya tambàm. Mas nÇo sÇo toas as culturas nem todas as situaÅâes que<br />
propiciam este enfeite.<br />
Ricardo Linhares disse que antes o pëblico estava na onda do realismo fantçstico, mas<br />
que ele percebia que agora o pëblico quer o på no chÜo. Vocá tem essa percepéÜo, e<br />
nesse sentido o conto <strong>de</strong> fadas seria um risco?<br />
Acho que quando vocÖ consegue envolver o pëblico (o problema está nesse comeÅo!),<br />
ele compra qualquer tipo <strong>de</strong> histÑria. Qualquer tipo <strong>de</strong> histÑria po<strong>de</strong> arrebatar. NÇo acho que<br />
tenha uma receita; nÇo penso assim. A cultura indiana e a muÅulmana tÖm um lado que para<br />
nÑs, os oci<strong>de</strong>ntais, remete ä magia, ä fantasia. ï a danÅa do ventre, os vàus. Se vocÖ vai falar<br />
<strong>de</strong>ssa cultura, por que nÇo explorar esse lado <strong>de</strong> encantamento e fantasia? Em “Caminho das<br />
índias”, on<strong>de</strong> está a paixÇo do pëblico? A paixÇo à pela índia, a índia à o carro-chefe. Quando<br />
se pergunta o que ficou do “Clone”, as pessoas dizem “Ja<strong>de</strong>”! ï o encantamento. As pessoas<br />
tÖm essa carÖncia, essa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fantasia. A fantasia faz parte do real, nÇo se vive sem<br />
isso. Atà para se realizar uma coisa à preciso sonhar antes. VocÖ nÇo lida sÑ com o que existe,<br />
vocÖ lida com o <strong>de</strong>sejo, com aquilo que vocÖ quer que exista. Por isso acho que na novela a<br />
fantasia à fundamental. Quantas vezes as pessoas se apaixonam pelo galÇ da novela ou pela<br />
novela porque elas querem aquilo na vida e a vida nÇo está dando o que elas querem.<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do caminho escolhido, vocÖ tem <strong>de</strong> conquistar o pëblico <strong>de</strong> cara...<br />
Há filmes romênticos que arrebatam multidâes e outros que passam <strong>de</strong>spercebidos. A receita,<br />
o anzol que pesca o pëblico à puramente intuitivo. A gente nÇo sabe.<br />
Qual foi o seu trunfo para conquistar o pëblico em “O Clone” e em “Caminho das<br />
Éndias”?<br />
248
A minha intuição. É como uma dança: tem-se que sentir para on<strong>de</strong> o cavalheiro vai<br />
para que você possa seguir. Da mesma forma você tem que ser intuitiva não para obe<strong>de</strong>cer ao<br />
gosto do público. A imaginação é coisa própria do indivíduo, o gran<strong>de</strong> público só vai pensar<br />
no que ele já viu (quando se entrevista o povo pedindo sugestões para o final <strong>de</strong> novela, ele dá<br />
sugestões já vistas em outro lugar). O público lida com um repertório que é preexistente. E ele<br />
quer ser surpreendido. Mas ao mesmo tempo o autor tem que estar atento para saber se está<br />
conseguindo passar a emoção que ele quer passar. On<strong>de</strong> é que está errando? Por que o público<br />
ainda não comprou a história? Por que ele ainda não se envolveu? Então você tem que sentir<br />
para on<strong>de</strong> ele está indo para po<strong>de</strong>r ir atrás, não para seguir o gosto <strong>de</strong>le, mas para envolvê-lo<br />
no seu laço. Essa atenção ao público tem sido uma gran<strong>de</strong> arma.<br />
Sua intuição afiada seria cultivada no hábito <strong>de</strong> não se isolar do mundo enquanto<br />
escreve?<br />
Eu gosto <strong>de</strong> gente. Não sou uma pessoa centrada no meu umbigo. Isso me facilita. Estando no<br />
convívio com a cida<strong>de</strong>, posso sentir melhor o retorno do público. Tanto antes como durante a<br />
novela. Existem duas posturas ao escrever: se o autor está centrado no seu próprio umbigo, ele<br />
escreve uma história e pronto: se o público não enten<strong>de</strong>r, ele é estúpido, não está preparado<br />
para o que o autor escreveu; se o autor não está centrado no seu umbigo, ele se coloca na<br />
posição <strong>de</strong> quem escreve para agradar as pessoas. É como entreter alguém numa conversa,<br />
tem que ser agradável. Se a pessoa não estiver prestando atenção, o erro é seu. Tenho que<br />
estar atenta a isso. Também no teatro e no cinema tem-se o compromisso <strong>de</strong> agradar a platéia.<br />
Se o autor ou a montagem não consegue segurar o olho da platéia, a peça ou o filme vira um<br />
fiasco. Então não é só a novela que tem que encantar o público. Só que há um gran<strong>de</strong><br />
preconceito com esse compromisso nas novelas.<br />
O que me facilita também é não ser uma pessoa centrada no meu próprio umbigo. Isso<br />
me facilita enten<strong>de</strong>r muito rapidamente as culturas diferentes, porque você vai sem<br />
preconceito, você tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se colocar mesmo na pele do outro. Para escrever sobre<br />
culturas diferentes, isso é essencial. Se não conseguir fazer isso, não rola.<br />
Muitos crêem ser a arte uma linguagem que vigora a <strong>de</strong>speito do entendimento do<br />
público. Já a telenovela que é feita para agradar. Você consi<strong>de</strong>ra a telenovela uma arte?<br />
A telenovela é uma arte que tem <strong>de</strong> ser compreendida. Não dá para ser aquela arte que<br />
só se vai enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois, porque a novela é momentânea, o capítulo passa naquele<br />
dia e não volta mais. Em novela o autor tem que trocar em miúdo muitas coisas. Quando<br />
escrevo sobre temas mais complexos, sobre genética, barriga <strong>de</strong> aluguel, internet, clonagem<br />
etc, eu peço a pessoas sem muito estudo que leiam o capítulo. E aí eu mudo o jeito <strong>de</strong> dizer<br />
aquilo que elas não enten<strong>de</strong>m. A novela tem que dizer <strong>de</strong> uma maneira que todo mundo<br />
compreenda. Porque quando o público sente que está sendo chamado <strong>de</strong> ignorante, ele rejeita<br />
o que é dito. Se ele não enten<strong>de</strong> o que está sendo dito, como é que ele vai <strong>de</strong>senvolver<br />
interesse por aquilo? Telenovela é feita para gran<strong>de</strong>s massas mesmo. Nosso <strong>de</strong>safio, enquanto<br />
autores <strong>de</strong> telenovela, é fazer o melhor, apresentar um trabalho bonito, que seja artístico e<br />
compreensível <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse limite. Não é uma característica da boa arte ser incompreensível.<br />
É preciso saber mostrar/dizer aquilo <strong>de</strong> uma forma que todo mundo entenda. Tenho<br />
trabalhado com temas muito difíceis e até hoje, naquelas reuniões <strong>de</strong> avaliação, nunca<br />
ninguém reclamou que não entendia. Todos enten<strong>de</strong>m perfeitamente porque eu tenho esse<br />
cuidado.<br />
Nessa busca pelo público, você acha que a sua escrita autoral po<strong>de</strong> ficar perdida?<br />
249
Eu conheÅo o gÖnero que estou escrevendo. Se vou fazer uma minissàrie, a<br />
preocupaÅÇo à outra. Se vocÖ, como jornalista, for dar uma palestra sobre a profissÇo no<br />
MaracanÇ, vocÖ vai falar <strong>de</strong> um jeito, se for num jornal, vai falar <strong>de</strong> outro. NÇo à uma questÇo<br />
<strong>de</strong> baixar o nÉvel, à uma questÇo <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar a linguagem ao pëblico para quem vocÖ está<br />
falando e isso faz parte da arte. Se vou escrever uma minissàrie ─ “Desejo”, por exemplo, ─,<br />
aquilo nÇo à uma novela, nunca po<strong>de</strong>ria ser uma novela porque nÇo há <strong>de</strong> forma alguma essa<br />
preocupaÅÇo.<br />
Mas aquele tema po<strong>de</strong>ria ser convertido em novela?<br />
NÇo seria àtico. A novela sÑ tem que ter compromisso com o sensacional. E nÇo à<br />
correto pegar personagens reais e fazer <strong>de</strong>les qualquer coisa. Isso nÇo po<strong>de</strong>. Mas vamos supor<br />
que aquela histÑria nÇo tivesse acontecido na realida<strong>de</strong>. Na minissàrie vocÖ po<strong>de</strong> aprofundar<br />
as coisas, na novela vocÖ trabalha com a extensÇo e nÇo com o aprofundamento, que à muito<br />
pouco. VocÖ inclui nuances psicolÑgicas, mas nÇo aprofunda. A novela permite uma sàrie <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong>s que a minissàrie e o filme nÇo permitem. A novela nÇo se ren<strong>de</strong> äs emoÅâes que o<br />
pëblico quer sentir. Uma das coisas bacanas <strong>de</strong> novela (o que me encantou foi isso) à a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar o que o pëblico está sentindo, <strong>de</strong> conseguir captar e expressar. NÇo<br />
sÑ atravàs da campanha (que se dá <strong>de</strong> uma forma mais explÉcita), mas quando vocÖ apaixona o<br />
pëblico, vocÖ está dando a ele a histÑria que ele precisa ouvir, que ele estava querendo ouvir<br />
naquele momento.<br />
Você <strong>de</strong>ve ter uma amarração da trama como um todo, embora haja o inesperado do<br />
capítulo, mas o final já está pré-<strong>de</strong>terminado?<br />
NÇo à preciso <strong>de</strong>terminar o final. O autor <strong>de</strong>termina o ponto <strong>de</strong> partida e o ponto <strong>de</strong><br />
virada. O ëltimo terÅo da novela vai conforme...<br />
Você diz que se <strong>de</strong>ixa levar pela própria trama, que tem nas mãos uma arte que<br />
expressa o que você intui do sentimento do público, e que a telenovela é uma obra que<br />
vai sendo conduzida <strong>de</strong> forma aberta. Em que medida a opinião do público interfere na<br />
condução da trama?<br />
Eu nÇo me rendo ao pëblico; essa relaÅÇo à um gran<strong>de</strong> diálogo. Se vocÖ está contando<br />
uma histÑria e quer ven<strong>de</strong>r uma <strong>de</strong>terminada i<strong>de</strong>ia e o pëblico nÇo está aceitando aquilo à<br />
porque vocÖ está contando <strong>de</strong> forma errada. Porque quando vocÖ está escrevendo uma cena,<br />
vocÖ está ao mesmo tempo construindo uma emoÅÇo em quem assiste. Se vocÖ nÇo conseguir<br />
construir aquela emoÅÇo e se vocÖ se ren<strong>de</strong>r ao <strong>de</strong>sejo do pëblico, ele te acha menor. “Ah, já<br />
sabia, já imaginava, à previsÉvel.” O que se tem que fazer à contar diferente, tentar seduzir por<br />
outro lado. VocÖ procura recontar aquela histÑria, aquela situaÅÇo, <strong>de</strong> outra maneira. Isso à<br />
que à bacana numa novela: à quando o pëblico vem e vocÖ percebe que conseguiu! ï<br />
resultado da forma com que vocÖ conta. Quando dava aula <strong>de</strong> roteiro (na Casa Laura Alvim e<br />
no Tempo Glauber), eu dizia aos alunos: nÇo se preocupem com o tema (eu atà sou uma<br />
pessoa que gosta <strong>de</strong> tema), mas nÇo à o tema que faz uma histÑria. Pensem on<strong>de</strong> à que esta<br />
histÑria cabe. Uma mulher que quer se apaixonar e casa com um homem que nÇo à o homem<br />
dos seus sonhos e ela vai ter uma porÅÇo <strong>de</strong> amantes, fica <strong>de</strong>sesperada, se <strong>de</strong>cepciona com<br />
todos eles e acaba se matando: à uma histÑria <strong>de</strong> Capricho, Gran<strong>de</strong> Hotel, do folhetim mais<br />
barato e, no entanto, a forma como for contada po<strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r Madame Bovary, que à um livro<br />
apaixonante sobre uma histÑria simples assim. ï a forma <strong>de</strong> contar: Éramos seis <strong>de</strong>u uma<br />
250
gran<strong>de</strong> novela e um livro apaixonante e se baseava numa histÑria simples <strong>de</strong> um viëvo que os<br />
filhos iam saindo <strong>de</strong> casa...<br />
Essa forma <strong>de</strong> contar é capaz <strong>de</strong> romper alguns tabus do público ou assuntos difíceis <strong>de</strong><br />
o público engolir?<br />
Eu escrevi o beijo homossexual em “Amàrica” e ele foi cortado. Acho que o pëblico<br />
estava pronto para receber, mas haveria tambàm muito protesto. Em “Carmen”, o que eu fiz?<br />
Havia o Dr. Junot, dono <strong>de</strong> uma empresa, pai <strong>de</strong> dois filhos e marido <strong>de</strong> uma mulher<br />
apaixonada por ele. Se ele fosse apresentado como homossexual, todo mundo ia ficar contra<br />
ele (estamos falando <strong>de</strong> 1985). Apresentei-o entÇo como um homem que tinha um segredo.<br />
Mas era um pai maravilhoso, um patrÇo maravilhoso. Dei todas as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>le. Quando o<br />
segredo da homossexualida<strong>de</strong> foi revelado, todo mundo já gostava <strong>de</strong>le. Isso à um truque. Se<br />
vocÖ apresentar a homossexualida<strong>de</strong> primeiramente, vocÖ po<strong>de</strong> ter uma rejeiÅÇo porque<br />
quando se apresenta um personagem em novela, ele à sempre reduzido em sua complexida<strong>de</strong>,<br />
mas à atravàs <strong>de</strong>ssa reduÅÇo que a gran<strong>de</strong>za do humano po<strong>de</strong> aparecer. Aqui à preciso fazer<br />
uma diferenciaÅÇo: as pessoas humanas, reais, sÇo muito mais complexas; aos personagens<br />
sÇo sempre reduzidos, qualquer personagem <strong>de</strong> filme, <strong>de</strong> literatura, vai ter sempre alguns<br />
traÅos que se sobrepâem aos <strong>de</strong>mais, entÇo ele à muito mais compreensÉvel ao olhar alheio do<br />
que qualquer pessoa real. VocÖ passa a vida inteira ao lado <strong>de</strong> uma pessoa e nÇo consegue<br />
<strong>de</strong>screver exatamente como ela à, mas um personagem vocÖ conhece profundamente em<br />
poucas cenas. Da mesma forma que no teatro se colocam duas colunas e todo mundo acredita<br />
que está em Roma, existem convenÅâes: as primeiras cenas <strong>de</strong> um personagem (em cinema,<br />
em TV, em minissàrie) apresentam-no para o pëblico como bom, mau; à possÉvel reduzir as<br />
personagens a um <strong>de</strong>senho, coisa que nÇo à possÉvel <strong>de</strong> ser feita com pessoas reais, que nÇo<br />
sÇo tÇo simples. Por isso usei o truque com o Dr. Junot: se o tivesse apresentado como<br />
homossexual, na cabeÅa do pëblico ele seria apenas aquilo. A mesma coisa fiz com a aidàtica<br />
que foi apresentada como uma dona <strong>de</strong> casa exemplar, uma vizinha Ñtima e aÉ ela pega AIDS.<br />
AÉ o pëblico fica conflituado. Mas, se ela for <strong>de</strong> cara uma aidàtica, a rejeiÅÇo teria sido<br />
imediata. Dá para contornar tabu. VocÖ pega o pëblico pelo pà. ï a arte do contar. Seja no<br />
cinema, na tevÖ, no romance. Depen<strong>de</strong> da riqueza e da profundida<strong>de</strong> do olhar com que vocÖ<br />
enxergar as coisas. A arte do contar à tÇo po<strong>de</strong>rosa que, no teatro, por exemplo, vocÖ pega<br />
uma obra prima como Romeu e Julieta e, <strong>de</strong> cinquenta montagens, há umas horrorosas que<br />
vocÖ nem consegue assistir. ï a forma <strong>de</strong> contar.<br />
Como é o seu curso <strong>de</strong> roteiro?<br />
ï baseado na minha experiÖncia, nÇo tenho apostila. Mas digo para os alunos que o<br />
meu estilo nÇo à o ënico. Tenho muito cuidado em nÇo limitar o talento dos alunos.<br />
Que heranças Janete Clair <strong>de</strong>ixou sobre o contar?<br />
A tàcnica do capÉtulo. Em “Eu Prometo”, era a histÑria <strong>de</strong> uma fotÑgrafa que foi<br />
entrevistar um senador casado, pai <strong>de</strong> muitos filhos, e aÉ ela toma um porre, tem um beijo, eles<br />
tÖm um caso e ela fica grávida (ela à casada tambàm). Como ele à casado e ela nÇo sabe o que<br />
fazer, ela volta para o marido e diz que o filho à do marido. Quando vi isso, achei horrÉvel:<br />
“Janete, mas o pëblico nÇo vai gostar”. Ela me disse: “NÇo seja tonta; a ënica coisa que uma<br />
mulher nÇo po<strong>de</strong> fazer à maltratar o filho. Tudo o que fizer por amor ao filho será perdoado”.<br />
AÉ fiquei achando que isso nÇo era verda<strong>de</strong>, fiquei esperando a reaÅÇo do pëblico. Ninguàm<br />
reclamou da atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>la. Adoraram. Isso à resultado da forma como a Janete contou a<br />
251
histÑria: “meu filhinho vai nascer sem pai”... A sacanagem que ela faz com o marido acaba<br />
sendo uma proteÅÇo ao filho. Ninguàm reclamou <strong>de</strong> a mocinha ter tomado uma atitu<strong>de</strong> que na<br />
vida seria muito con<strong>de</strong>nável. SÑ nÇo po<strong>de</strong>, em sendo mÇe, maltratar o filho. Janete ensinava a<br />
nÇo ter pudor. Se vocÖ tiver pudor, vocÖ nÇo escreve uma boa novela. Porque à claro que vocÖ<br />
sabe que está apelando para o sensacional quando se escreve para telenovela. ï preciso nÇo<br />
ter vergonha <strong>de</strong> fazer. Faz parte do gÖnero. A novela sÑ à boa quando tem estas coisas. O<br />
pëblico po<strong>de</strong> dizer “Ah, isso nÇo existe”, mas ele está lá assistindo.<br />
Não ter pudor é mais difícil para a mulher escritora do que para o homem escritor?<br />
No comeÅo da telenovela, esta era uma arte <strong>de</strong> mulheres. Os homens tomaram conta<br />
<strong>de</strong>pois; mas quando eu cheguei, os gran<strong>de</strong>s nomes <strong>de</strong> telenovela eram Janete, Ivani Ribeiro...<br />
E muitos homens inclusive usavam pseudònimo feminino para escrever novela (Dias era<br />
Estela Cal<strong>de</strong>rÑn).<br />
Você i<strong>de</strong>ntifica nas suas novelas uma escrita feminina?<br />
Minha experiÖncia à feminina... Tenho muito medo <strong>de</strong> colocar uma etiqueta <strong>de</strong> gÖnero.<br />
Mas acho que a experiÖncia <strong>de</strong> ser mulher me permite um olhar diferente sobre o mundo. A<br />
maternida<strong>de</strong>... A mulher tem uma experiÖncia muito rica porque tem que lutar contra<br />
preconceitos hoje muito velados (quando eu era muito jovem, as barreiras contra a mulher<br />
eram muito claras ao nosso caminhar). Lima Duarte me mandou um presente com um bilhete<br />
que diz que esse trabalho em “Caminho” tinha permitido a ele, atravàs da índia, chegar ao<br />
outro, que à a base <strong>de</strong> toda a arte.<br />
Pelas experiÖncias que a mulher passa, o olhar <strong>de</strong>la à diferente do olhar do homem. O<br />
ponto <strong>de</strong> vista à outro. A Ivani tambàm tinha essa sensibilida<strong>de</strong> que a Janete tinha na<br />
composiÅÇo dos personagens. Todos os meus personagens sÇo carregados <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>,<br />
mesmo os vilâes. Alguàm me pediu que resumisse minha obra em uma palavra. Para mim à o<br />
humano. SÇo histÑrias humanas, possÉveis ou imaginárias, sÇo humanas.<br />
Você atribui à sua formação acadêmica essa cautela na forma com que vê o outro e com<br />
que dá o outro a conhecer ao seu público?<br />
Comecei com Direito e Filosofia, larguei tudo no meio. Vim fazer HistÑria, me formei,<br />
fiz o mestrado todinho e na hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a dissertaÅÇo, fui ser colaboradora da Janete.<br />
NÇo <strong>de</strong>fendi. A formaÅÇo em HistÑria me dá principalmente a noÅÇo <strong>de</strong> tempo, uma<br />
percepÅÇo dos vários tempos que habitam o mesmo tempo. Ver que hoje há pessoas que<br />
pertencem a daqui a 30 anos e pessoas do sàculo passado. Essa mistura me interessa muito.<br />
Eu implico muito com novela <strong>de</strong> àpoca porque todo mundo se veste <strong>de</strong> um mesmo modo, se<br />
comporta igual. E nÇo à verda<strong>de</strong>. Em todas as àpocas vocÖ tem o para trás e o para frente. A<br />
mistura que eu faÅo nas minhas novelas <strong>de</strong> vários universos e vários costumes (que muitos<br />
acham inverossÉmeis), eu digo que isso à o mundo. No mundo vocÖ vai encontrar ciganos,<br />
monarquistas, gente que acha que o mundo vai acabar em 2000 e tanto, todos os tipos. A<br />
HistÑria à fundamental no que escrevo porque me dá uma visÇo exata das muitas maneiras<br />
que as personagens po<strong>de</strong>m ver o mundo. Essa confluÖncia <strong>de</strong> tempos à o principal e a<br />
diversida<strong>de</strong> do mundo tambàm. Basta ligar a televisÇo para ver como o mundo à variado.<br />
VocÖ vÖ uma burca passando aqui, um topless ali, uma freira: a mistura me interessa muito.<br />
Acredito que minha maneira <strong>de</strong> mostrar essa mistura acaba criando no pëblico o interesse<br />
pelas outras culturas.<br />
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Se nÜo fosse a formaéÜo em Histäria, vocá teria se cercado <strong>de</strong> tantas fontes na hora <strong>de</strong><br />
construir uma histäria?<br />
Meu temperamento nÇo permitiria que eu tivesse a arrogência <strong>de</strong> achar que conhecia<br />
<strong>de</strong> antemÇo. Se eu nÇo tivesse a HistÑria, eu faria com mais dificulda<strong>de</strong>. Sempre falo com<br />
muitas pessoas para conhecer os muitos lados da questÇo. ï claro que numa novela o que se<br />
faz à uma representaÅÇo do outro, nÇo dá para se aprofundar. Da mesma forma, quando<br />
aparece o Nor<strong>de</strong>ste nas novelas, à Ñbvio que há uma reduÅÇo na maneira como a regiÇo e seus<br />
habitantes sÇo apresentados. VocÖ vai pegar algumas caracterÉsticas mais fortes. Foi o que fiz<br />
com “O Clone”: algumas caracterÉsticas mais fortes foram misturadas ali para criar uma<br />
histÑria interessante. Em “Caminho das índias”, a mesma coisa. As caracterÉsticas estÇo lá,<br />
nÇo sÇo inventadas nÇo. Todas elas existem. VocÖ vÖ agora o TalebÇ impondo 60 chibatadas a<br />
uma jornalista que entrevistou um cara que falou <strong>de</strong> sexo. As pessoas acham que isso nÇo<br />
existe.<br />
Escutar as versèes dos outros sobre os assuntos e nÜo se colocar em posiéÜo soberana<br />
sobre estes saberes parece uma postura acadámica...<br />
O meu preparo à todo acadÖmico, à muito cuidadoso. Mas <strong>de</strong>pois eu pego aquilo tudo<br />
e transformo em histÑria. Por isso eu fico passada quando vem alguàm e diz que o que escrevi<br />
à inverossÉmil: ninguàm imagina como foi cuidadosa aquela construÅÇo. E eu nÇo <strong>de</strong>sconstruo<br />
nÇo. VocÖ po<strong>de</strong> ver que tanto os muÅulmanos quanto os indianos ficaram muito felizes com o<br />
retrato que fiz <strong>de</strong>les. Claro que eles sabem que nem todos os indianos sÇo assim, mas que o<br />
que está lá à normal.<br />
Quando vocá escreveu a sinopse <strong>de</strong> “O Clone”, a trama foi situada no Marrocos ou a<br />
<strong>de</strong>finiéÜo do paâs veio <strong>de</strong>pois?<br />
Primeiramente eu pensei no Egito. Mas nÇo me importava o paÉs. Pensei no Egito, fui<br />
ao Cairo. O muÅulmano tem muitas faces: tem o fundamentalista, e diferentes interpretaÅâes<br />
do CorÇo. Para nÇo dizerem que a gente privilegiou um em <strong>de</strong>trimento do outro, vamos<br />
homenagear a todos. Vamos pegar as caracterÉsticas do universo muÅulmano, sem uma<br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a essa ou aquela facÅÇo. Estava tudo certo no Cairo, nosso produtor foi lá para<br />
arrumar tudo pouco antes <strong>de</strong> a gravaÅÇo comeÅar e acabou sendo chamado por um Ministro <strong>de</strong><br />
Estado. Ele compareceu diante do Ministro sem saber o que tinha acontecido. O Ministro<br />
perguntou quem à Nazira e botou diante <strong>de</strong>le um jornal que um muÅulmano daqui tinha<br />
mandado para lá com uma reportagem com a Eliane Giardini, a atriz que faria a personagem<br />
Nazira. No texto ela dizia que estava muito contente com o papel porque atravàs <strong>de</strong>le ela<br />
po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>nunciar as limitaÅâes impostas äs mulheres muÅulmanas. Por causa <strong>de</strong>sta entrevista<br />
nÑs fomos proibidos <strong>de</strong> gravar no Egito. E aÉ fomos para o Marrocos que tem mais tradiÅÇo<br />
como locaÅÇo <strong>de</strong> filmagem. E aÉ foi mais fácil para nÑs.<br />
Mas o Marrocos nÜo seria um paâs muéulmano mais oci<strong>de</strong>ntal, ou seja, menos parecido<br />
com o oriente que a histäria queria mostrar?<br />
Depen<strong>de</strong> <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vocÖ vai. Por isso a gente localizou a histÑria em Fez. ï claro que a<br />
gente nÇo podia gravar na Arábia Saudita. A gente tinha que ter um paÉs muÅulmano concreto<br />
como locaÅÇo. E aÉ optamos por fazer o mundo muÅulmano em sÉntese. No Marrocos eu vi a<br />
feira <strong>de</strong> venda <strong>de</strong> noivas e o casamento temporário. SÇo <strong>de</strong>terminadas tribos que fazem isso:<br />
vocÖ vai a essa feira e compra a noiva por um ano; se for bom, se <strong>de</strong>r certo, vocÖ renova o<br />
253
contrato, se nÇo, vocÖ <strong>de</strong>volve a noiva e troca por outra. ï o casamento temporário. NÇo à sÑ<br />
coisa <strong>de</strong> uma tribo. Um dos segmentos do islamismo usa o casamento temporário como algo<br />
mandado pelo profeta. Outros segmentos nÇo aceitam isso como algo inspirado no profeta.<br />
NÑs fomos almoÅar na casa do nosso guia e havia lá uma garotinha que lavava toda a louÅa<br />
em pà num banquinho: ela tinha sido comprada numa feira! O Egito me parece muito mais<br />
parecido com o oci<strong>de</strong>nte e, no entanto, no Cairo, um engenheiro que era o pai do meu guia<br />
tinha mandado fazer a castraÅÇo <strong>de</strong> todas as filhas. Eu conversei com mulheres <strong>de</strong> vàu,<br />
cobertas <strong>de</strong> burca, no Marrocos e no Cairo, e elas disseram que a castraÅÇo estava certo, que<br />
fariam nas filhas porque era mais higiÖnico. E que usar a burca era a melhor coisa do mundo<br />
porque toda mulher era sedutora e linda. Claro porque o homem constrÑi a imagem que quiser<br />
para a mulher sob a burka. Da mesma maneira que a gente nÇo toma o Brasil pelo Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, no Marrocos e no Cairo, querÉamos retratar a cultura muÅulmana sem localizá-la<br />
politicamente (embora a elite seja igual em qualquer lugar do mundo). O engenheiro que<br />
mandou castrar as filhas morava no Cairo e nÇo numa cida<strong>de</strong> do interior. ï claro que esta nÇo<br />
à a mentalida<strong>de</strong> que predomina ali, mas ela tambàm está presente ali. Quando fizemos “O<br />
Clone”, eu tive um encontro com umas jornalistas na embaixada brasileira no Cairo e elas<br />
usavam lenÅo (à o hábito no Egito) e isso era uma postura polÉtica. Naquele momento, o<br />
retorno ao que era tradicional era uma atitu<strong>de</strong> polÉtica contra a colonizaÅÇo, contra o que<br />
tentavam impor <strong>de</strong> fora. Elas estavam dizendo nÇo a uma dominaÅÇo estrangeira e querendo<br />
retomar os avanÅos da socieda<strong>de</strong> egÉpcia a partir dos valores tradicionais daquela socieda<strong>de</strong>.<br />
O Marrocos nÇo à feito sÑ <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s. Quando vocÖ vai para Fez, por exemplo, sÇo<br />
ruelas pequenininhas naquele mercado on<strong>de</strong> se passava a nossa histÑria (a gente misturava as<br />
imagens <strong>de</strong> lá com as imagens feitas no Projac). O tio Ali representava a pessoa mais liberal.<br />
Mas mesmo a pessoa mais liberal tem um vÉnculo com a sua cultura, como ele tinha. O<br />
Mustafá já era mais fundamentalista. Mas o mais importante à que a novela nÇo foi concebida<br />
para retratar o Cairo ou o Marrocos. Seria impossÉvel.<br />
Alguåm observou que faltavam mÜes em “O Clone”. A ausáncia era intencional?<br />
Claro que tinha que faltar mÇe. O que as pessoas nÇo enten<strong>de</strong>m à que, quando eu<br />
comeÅo uma histÑria, eu penso num tema e a partir <strong>de</strong>le eu vou <strong>de</strong>senrolando. “O Clone” à o<br />
homem que nasce sem mÇe. EntÇo nÇo podia ser uma histÑria cheia <strong>de</strong> mÇe. O exagero da<br />
falta <strong>de</strong> mÇe era para que o pëblico percebesse essa falta <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong>. A clonagem parte a<br />
famÉlia. A Deusa era mÇe, ela teve o filho, nÇo foi por acaso que ela teve esse nome. Embora<br />
que na novela o Deus fosse o Albieri. Mas a falta da mÇe à puramente intencional. Quando se<br />
diz mÇe, remete-se a uma forma da natureza. A clonagem nÇo à isso. Na clonagem, ela nÇo à<br />
mÇe porque ela nÇo participa, ela à mÇe <strong>de</strong> aluguel, embora se ache mÇe. A mÇe foi retirada da<br />
histÑria.<br />
Havia <strong>de</strong>poimentos em “Amårica”?<br />
Lá a gente usou o programa do Dudu, filho do Roberto Carlos. NÇo fui eu que<br />
inventei, o programa já existia. Quando ele me escreveu dizendo que tinha o programa eu<br />
achei Ñtimo porque era exatamente o que eu ia fazer: trazer o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> pessoas que<br />
conseguiram se superar suas <strong>de</strong>ficiÖncias fÉsicas. Mas a gran<strong>de</strong> campanha do Jatobá, que era<br />
um personagem cego, foi trazer as reivindicaÅâes dos <strong>de</strong>ficientes. Como quando o Jatobá<br />
reclamava <strong>de</strong> que, num restaurante, o garÅom nÇo se dirige a ele perguntando o que quer e sim<br />
ä pessoa do lado, ou quando ele nÇo tinha como atravessar a rua. Essa à a verda<strong>de</strong>ira<br />
campanha porque nÇo fica no blábláblá, à um drama vivido. O <strong>de</strong>poimento materializa na tela<br />
para o espectador essa escuta do outro...<br />
254
Como é feita a coleta dos <strong>de</strong>poimentos?<br />
O meu método é muito antropológico. Faço contado direto com os informantes, <strong>de</strong>pois eu<br />
<strong>de</strong>ixo com as pesquisadoras, mas primeiro vou eu. É uma escuta em primeira mão. Levo a<br />
pesquisadora junto, ela já vê o que eu quero e <strong>de</strong>pois ela vai sozinha porque eu tenho que<br />
escrever. Ela fica me alimentando <strong>de</strong> dados, mas o vínculo já está feito. A relação com os<br />
informantes geralmente é muito fácil, porque são pessoas que ninguém quer escutar. Quando<br />
eu fui fazer os drogados, eles não queriam que a gente mostrasse o rosto <strong>de</strong>les, então eu<br />
inventei aqueles recortes nos olhos. Mas eles queriam muito falar. Todo mundo escuta o<br />
psiquiatra, escuta a polícia, mas não os escuta. Então eu pergunto o que querem que eu diga<br />
sobre eles. Não é a minha percepção <strong>de</strong>les, é a voz <strong>de</strong>les, como percebem a condição <strong>de</strong>les. É<br />
por isso que eu digo que o bacana é que a novela expressa o sentimento das pessoas. Fica<br />
mais nítido quando é uma campanha, mas ela expressa essa carência quando conta histórias <strong>de</strong><br />
amor, histórias humanas, histórias que fazem rir... Você coloca uma Norminha e um Seu<br />
Abel: quem não conheceu alguém como eles? A gente fala <strong>de</strong> algo que é familiar, que está ali,<br />
em algum lugar na lembrança das pessoas.<br />
Você diz que a sua experiência é o que catalisa essas histórias que acabam virando<br />
novela, mas existe alguma fonte literária inspiradora?<br />
Gosto muito <strong>de</strong> ler. Eu li muito. Des<strong>de</strong> criança, até por morar no Acre on<strong>de</strong> eu não saía<br />
muito, tinha um contato limitado com a cida<strong>de</strong>. Histórias fantásticas era só o que tinha ali. É<br />
claro que tudo o que eu li excitou muito a minha imaginação. Balzac, Dostoievski... Histórias<br />
que me influenciaram muito foram as histórias <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l que a gente ficava escutando<br />
domingo no mercado, aquelas histórias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s vidas que iam lá em cima e <strong>de</strong>pois caíam.<br />
Eu gosto muito <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l até hoje. Tem muito <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l nas minhas novelas, sem dúvida.<br />
Você vai treinando com os gran<strong>de</strong>s escritores da literatura um olhar mais abrangente para o<br />
mundo porque um livro te traz a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver muitas vidas, <strong>de</strong> ter muitas<br />
experiências. Cada livro que se lê traz o olhar <strong>de</strong> alguém, o mundo como ele viu, a maneira<br />
como ele sentiu as coisas. Vai abrindo janelas muito ricas que você não estava vendo, não<br />
estava percebendo aquele ângulo. Você não tinha do seu ponto <strong>de</strong> vista aquela visão da vida e<br />
o olhar que um escritor te traz, seja num livro <strong>de</strong> memória, seja num romance. Entrar na<br />
imaginação do autor...<br />
Como você consegue administrar imaginação, fantasia, realismo e verossimilhança?<br />
Para mim, é tão natural fazer isso que eu me surpreendo quando me perguntam como é<br />
que eu faço isso. Esse é o meu estilo. É o que o Zuenir Ventura traduziu muito bem: é a<br />
mistura do excessivamente realista com o fantasioso. Talvez eu ache que a vida é assim. Eu<br />
não sei dizer como é que eu equilibro isso, porque para mim é tão natural ser assim... Eu é que<br />
fico curiosa em saber como é não ser assim. Meu texto já sai misturado. O que são as<br />
pessoas? Ela trabalha todo dia, ela vai ao banco, ela tem contas a pagar, ela tem o pé no chão.<br />
Mas essa mesma pessoa sonha, tem fantasias absurdas às vezes, ela se apaixona pelo<br />
imaginário, ela tem um sonho <strong>de</strong> montar um negócio <strong>de</strong> sucesso, <strong>de</strong> ganhar na loteria. E essa<br />
mesma pessoa também vive uma vida prática. Eu acho impossível viver sem sonhar e sem ter<br />
a fantasia. Até porque tudo que você vai fazer, você tem que sonhar antes. Todas as gran<strong>de</strong>s<br />
realizações foram um sonho primeiro. E na vida também. As pessoas sonham em ser felizes e<br />
por isso fazem coisas que acreditam que irão conduzi-las à felicida<strong>de</strong>, mesmo que <strong>de</strong>pois<br />
vejam que foram no sentido contrário, não importa. Acho muito interessante essa dinâmica no<br />
ser humano; vejo a humanida<strong>de</strong> assim e talvez por isso essa combinação entre realismo e<br />
255
fantasia apareÅa <strong>de</strong> forma tÇo nÉtida em meus trabalhos. Para quem acha que as pessoas tÖm<br />
que ser apenas realistas ou fantasiosas, a verossimilhanÅa nas minhas novelas talvez fique<br />
ameaÅada aqui ou ali. Mas eu vejo as coisas <strong>de</strong> uma forma bem dialàtica. NÇo à isso ou<br />
aquilo. ï tudo isso: isso e aquilo. Muitas vezes à difÉcil para as pessoas ver estes opostos<br />
juntos. NÑs vivemos a tradiÅÇo grega da lÑgica formal que diz que à isso ou aquilo. Para o<br />
indiano à muito simples porque ele à dialàtico <strong>de</strong> base. Tanto que eles nÇo tÖm nem o sim nem<br />
o nÇo, tÖm aquele movimento <strong>de</strong> cabeÅa que expressa que o sim contàm o nÇo e o nÇo contàm<br />
o sim. Para eles à simples compreen<strong>de</strong>r a valorizaÅÇo da imaginaÅÇo como uma nÇo negaÅÇo<br />
da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser realista. Para nÑs, uma coisa sempre exclui a outra. Embora teoricamente<br />
se fale <strong>de</strong>ssa conjunÅÇo dos opostos, na prática a coisa nÇo funciona assim. As pessoas<br />
percebem as coisas <strong>de</strong> uma forma partida, exclu<strong>de</strong>nte.<br />
Essa sua maneira <strong>de</strong> ver a história tem que ser compartilhada com o diretor da novela<br />
para que essa sintonia permita a materialização daquilo que você concebeu. Você acha<br />
que o diretor chega a ser um co-autor?<br />
NÇo. O diretor cria a partir do texto do autor, do que está dado. O resultado, sim, à um<br />
resultado <strong>de</strong> equipe. A base à a histÑria, que à escrita pelo autor. A criaÅÇo <strong>de</strong> um diretor à<br />
autoral tambàm, mas à a partir do texto, e nÇo po<strong>de</strong> ser contra o texto. A cêmera nÇo escreve o<br />
texto e todas as vezes que um diretor tenta mudar o texto com a cêmera dá errado. Mas<br />
quando ele cria a partir do texto, à fantástico. Ele tem que estar apaixonado pela histÑria. O<br />
autor escreve em palavras e ele transforma em visual, ele à o responsável pela forma como<br />
aquela narrativa vai chegar atà o pëblico. Ele à um maestro que vai orquestrar, por exemplo, a<br />
roupa que um personagem está usando. Eu, como autora, posso dizer que ela estará usando<br />
um vestido rico ou um vestido pobre, mas quem vai estar no estëdio pra ver o que foi<br />
concebido como um vestido rico ou pobre à ele, o diretor. Um diretor po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir uma<br />
histÑria se nÇo estiver sintonizado com o autor. Isso quase me aconteceu em “Amàrica”. E era<br />
um diretor que já tinha trabalhado comigo em “O Clone”. Acontece que o diretor tem que<br />
fazer o personagem que está escrito; ele nÇo po<strong>de</strong> inventar um personagem ao contrário do<br />
que está escrito. O personagem tem que ter uma coerÖncia: se eu faÅo uma mocinha do<br />
subërbio que quer atravessar um <strong>de</strong>serto para chegar aos Estados Unidos, essa pessoa tem que<br />
ter muito gás, muita vibraÅÇo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, ela nÇo po<strong>de</strong> ser uma chorona. Uma pessoa que<br />
chorasse daquele jeito nÇo ia ä esquina. Ele quis fazer um personagem diferente da que estava<br />
escrito, e isso comprometeria a coerÖncia do personagem. AÉ se <strong>de</strong>u o conflito. Ninguàm po<strong>de</strong><br />
atravessar um <strong>de</strong>serto (eu pesquisei muito, entrevistei muita gente e vi que elas sÇo movidas<br />
por uma esperanÅa absurda, incompreensÉvel) sendo tÇo chorona. A Sol olhava para o homem<br />
que ela amava e chorava, ninguàm entendia por quÖ. Quem à que quer um amor que faz<br />
chorar?<br />
O autor nÇo tem evi<strong>de</strong>ntemente o controle sobre tudo (tem coisas que vocÖ vÖ e nÇo<br />
reconhece), mas dizer que o diretor à um co-autor à uma expressÇo forte. Tem uma<br />
<strong>de</strong>svantagem na telenovela que à o fato <strong>de</strong> o pëblico nÇo ter acesso ao script. VocÖ compra<br />
livros com o script <strong>de</strong> peÅa <strong>de</strong> teatro e <strong>de</strong> filmes, o que permite dizer, por exemplo, que a peÅa<br />
à boa, mas foi mal montada, ou ao contrário, a peÅa à ruim mas foi tÇo bem montada que o<br />
resultado satisfaz, distrai. Na televisÇo vocÖ nÇo tem isso, o que à terrÉvel. Atà porque as<br />
pessoas que querem escrever para televisÇo nÇo tÖm referÖncia do que já foi feito. Mas sÇo<br />
200 capÉtulos e se fossem publicados dariam bÉblias! Po<strong>de</strong>riam publicar pelo menos um<br />
capÉtulo ou outro, compondo uma semana ou um mÖs, sei lá. Eu acho que faz muita falta para<br />
quem quer seguir essa carreira nÇo ter acesso ao script. Porque vocÖ apren<strong>de</strong> lendo script.<br />
Com a falta <strong>de</strong> acesso ao texto, quando a novela nÇo vai bem, a culpa sempre recai sobre o<br />
autor e muitas vezes ele po<strong>de</strong> nÇo ser o culpado daquele problema. A coisa po<strong>de</strong> ter sido mal<br />
256
conduzida. No cinema vocÖ visualiza muito claramente que a histÑria à boa, mas foi mal<br />
dirigida, ou mal interpretada, ou o elenco foi mal escolhido. Aqui nÇo se tem crÉticos<br />
capacitados para avaliar a novela, a televisÇo, como se tem no cinema. Tanto que os crÉticos<br />
<strong>de</strong> televisÇo sÇo incapazes <strong>de</strong> fazer uma análise <strong>de</strong> uma novela fazendo a separaÅÇo das partes<br />
(das especializaÅâes profissionais) que compâem uma novela. Falar da trilha sonora, da<br />
interpretaÅÇo... Tudo fica por conta do autor. O crÉtico <strong>de</strong>veria ser alguàm capaz <strong>de</strong> diferenciar<br />
os muitos <strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> novela. Tudo tem que existir em funÅÇo da base que à a historia,<br />
mas o autor nÇo tem controle sobre todas as partes que vÇo ao ar. Em “Amàrica”, por<br />
exemplo, eu fui contra aquela mësica <strong>de</strong> abertura, que era tristÉssima! VocÖ está falando <strong>de</strong><br />
sonho, po<strong>de</strong> o sonho nÇo dar certo no final, mas quem sonha acredita que vai dar certo, senÇo<br />
ele nÇo sonha. Eu queria <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o comeÅo a mësica da Ivete Sangalo que acabou ficando<br />
<strong>de</strong>pois. O diretor quis a outra, que acabou vencendo, mas à claramente perceptÉvel como a<br />
novela <strong>de</strong>colou <strong>de</strong>pois que a mocinha parou <strong>de</strong> chorar e <strong>de</strong>pois que a mësica <strong>de</strong> abertura foi<br />
trocada. Tudo tem que ser harmònico. A mësica tambàm constrÑi a cena. A mësica da<br />
Norminha, que eu <strong>de</strong>scobri na internet ajudou muito a construir o personagem e as cenas em<br />
que ele aparecia (a mësica tem o espÉrito da Norminha). Mas o autor nÇo tem o domÉnio sobre<br />
toda a trilha. A mësica tem que vestir a histÑria, muitas vezes a mësica tem funÅÇo<br />
dramatërgica (ela po<strong>de</strong> substituir uma cena)... As mësicas indianas, por exemplo, ajudaram a<br />
construir o encantamento da novela. Uma mësica errada ali, como aconteceu em “Amàrica”,<br />
arrebenta a cena. Porque <strong>de</strong>smente o que o pëblico está vendo. No caso do tema da Maya com<br />
o Bahuam, a mësica que escolhi para o casal, cantada pela Nana Caymmi, sÑ entrou <strong>de</strong>pois<br />
que eles se separam porque a letra fala em separaÅÇo. NÇo se po<strong>de</strong> tocar uma mësica que parte<br />
do “NÇo se esqueÅa <strong>de</strong> mim” se o casal está junto. No comeÅo tinha uma mësica indiana e<br />
<strong>de</strong>pois foi substituÉda pela da Nana. O sucesso à resultado <strong>de</strong> um encaixe on<strong>de</strong> todos os<br />
ingredientes da novela vestem a histÑria. A mësica, a escalaÅÇo (uma escalaÅÇo errada po<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>rrubar uma histÑria boa), a interpretaÅÇo (se na cena do balcÇo em Romeu e Julieta, a atriz<br />
<strong>de</strong>r um sorriso que seja, acabou, o Romeu vira um babaca, porque esse gesto muda toda a<br />
intenÅÇo do texto sem ela dizer uma palavra; a ironia instaurada pelo sorriso faz com que ela<br />
<strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser a Julieta e ele <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser o Romeu do texto).<br />
Houve uma preocupaéÜo eståtica em “Caminho das Éndias” para que a novela tivesse<br />
semelhanéa com os filmes <strong>de</strong> Bollywood?<br />
Teve. Nesse caso, foi uma coisa pensada por mim e pelo diretor. Os indianos sÇo<br />
muito musicais. Em Bollywood, tudo à musical. Em qualquer tipo <strong>de</strong> filme a aÅÇo para e todo<br />
mundo sai danÅando. ï muito engraÅado, mas se vocÖ vai mostrar a cultura indiana, esse à um<br />
traÅo que nÇo po<strong>de</strong> faltar. A fantasia <strong>de</strong>les à Bollywood.<br />
Vocá escreve o personagem pensando num ator?<br />
NÇo, porque eu acho que isso limita muito, as caracterÉsticas daquele ator acabam<br />
interferindo no personagem. Logo no comeÅo eu nÇo penso no ator, mas <strong>de</strong>pois, quando<br />
escrevo os primeiros capÉtulos, eu comeÅo a pensar que ator faria melhor aquele personagem.<br />
Tem gente que usa o màtodo oposto, já comeÅa escrevendo para o ator. Eu nÇo: gosto <strong>de</strong> criar<br />
uma pessoa, aÉ à que eu vou ver quem vai conduzir melhor aquela pessoa. Depois que o ator<br />
assume, as caracterÉsticas <strong>de</strong>le se somam äs do personagem, e eu vou conduzindo o<br />
personagem utilizando tambàm os recursos <strong>de</strong>le. Uma novela à mais do que um texto, à um<br />
trabalho que exige aÅÇo, as personagens agem. Num livro o autor po<strong>de</strong> ser reflexivo o tempo<br />
todo, mas numa novela, nÇo. As histÑrias que dÇo novela sÇo aquelas que po<strong>de</strong>m se <strong>de</strong>sdobrar<br />
257
em situações, não se po<strong>de</strong> fazer uma novela contemplativa, reflexiva. Proust não dá uma<br />
novela.<br />
Se a novela não fosse tão longa (são 200 capítulos com 34 páginas cada um), ela se<br />
sustentaria como texto?<br />
Sim, assim como uma minissérie se sustenta como texto. Agora, na novela é mais<br />
complicado: se você publicar a novela num jornal, em 200 edições, (claro que ela vai ser<br />
escrita <strong>de</strong> uma forma diferente <strong>de</strong> um script criado pra ser gravado), ela se sustenta. Mas uma<br />
história em que se tem que apostar na extensão não po<strong>de</strong> ser comparada a um romance, ou<br />
querer que esse tipo <strong>de</strong> narrativa tenha as mesmas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um romance, da narrativa <strong>de</strong><br />
um filme. A novela é um rocambole mesmo. Na convenção do folhetim, as coisas mudam,<br />
acontecem coisas sensacionais, os personagens mudam <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> e o público aceita<br />
porque folhetim é isso. É outra estética. Eu sei que tenho fama <strong>de</strong> inverossímil junto aos<br />
críticos, mas o gran<strong>de</strong> público não acha isso, ele <strong>de</strong>tecta o lado humano, é isso que o público<br />
diz nas pesquisas. Os críticos parecem querer <strong>de</strong>scobrir uma coisa para dizer e ficam<br />
reclamando do tempo que o personagem leva para chegar à Índia. O que cabe à crítica é dizer<br />
se a história está bem construída ou não, se tem fôlego ou não, é um outro tipo <strong>de</strong> análise.<br />
Acho um absurdo criticar que todo mundo fala português na Índia. Mas os críticos não<br />
cobram isso do cinema, das séries americanas que vêem na tevê.<br />
Uma vez uma crítica estranhava como a Suelen, uma balconista mo<strong>de</strong>sta, tinha tantos<br />
vestidos e estava sempre com roupa na moda...<br />
Porque é novela! Tem gente que vê novela pra <strong>de</strong>scobrir erro <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>. O<br />
charme para elas é viver o jogo dos sete erros. Se eu gostar do que eu estou vendo, o erro <strong>de</strong><br />
continuida<strong>de</strong> passa a ser irrelevante. A cobrança sobre o passaporte da Camila era uma<br />
loucura: passaporte não é um documento insubstituível, ela queimou um e tirou outro. Se ela<br />
conseguiu voltar é porque possivelmente ela tirou outro, não?<br />
258
ANEXO B - CAPÉTULO 1 DE “CAMINHO DAS ÉNDIAS”<br />
CENA 1. TAKES DE VARANASI.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 2. VARANASI. EXTERIOR. AMANHECER– C/ PASSAGEM DE TEMPO<br />
SHANKHAR OFERECENDO UMA POOJA ÀS AGUAS DO RIO<br />
259<br />
SHANKHAR Mãe Ganga! leva nas tuas águas toda a impureza do meu coração e da<br />
minha mente, as dúvidas que me atormentam, as ilusões que me<br />
cegam (CANTA) Jaya Jaya Gange jaya Hara Gange/ Jaya Jaya Gange<br />
jaya Hara Gange bolo (FALA) gange matar Ki (BATENDO<br />
PALMAS SOBRE A CABEÇA) Jay!<br />
OPASH COM RAJ E AMITHAB MENINOS. PÁRAM. VISÃO DO GANGES, COM SEU<br />
MOVIMENTO COTIDIANO: GENTE SE BANHANDO, OFERECENDO POOJAS. BAHUAN<br />
MENINO TAMBÉM, VESTIDO COM ANDRAJOS<br />
OPASH (EMOCIONADO) vejam, o Ganga. O rio sagrado! Antigamente ele<br />
corria no céu, e a vida ia acabar, porque o sol estava torrando a terra<br />
inteira.<br />
BAHUAN VAI SE APROXIMANDO, CURIOSO. PARA OUVIR TAMBÉM<br />
OPASH As pessoas pediram socorro e Deus mandou o Ganga <strong>de</strong>scer para a<br />
terra. Mas ele vinha com tanta força que quando batesse na terra ela ia<br />
se partir em mil pedaços. Então, Shiva fez as águas caírem bem<br />
<strong>de</strong>vagar pelos seus cabelos...<br />
RAJ Maa Ganga!<br />
OPASH Hã! mãe Ganga! beber a água sagrada é como se alimentar no peito<br />
da própria mãe! tchalô! venham...<br />
OPASH VAI INDO COM AMITHAB. RAJ PÁRA, OLHANDO BAHUAN, CURIOSO COM SUA<br />
APARÊCIA MISERÁVEL. OPASH SE VOLTA<br />
OPASH Raj! tchalô!<br />
REAÇÃO DELE VENDO RAJ TOCANDO BAHUAN<br />
OPASH He Rama! não, não, Raj!<br />
OPASH VEM FURIOSO, AFASTA RAJ DE BAHUAN COMO SE O AFASTASSE DE UM<br />
GRANDE PERIGO.<br />
OPASH você tocou nele, você está poluído!<br />
SHANKAR (SE APROXIMA, INDIGNADO) Tchup karô! cale essa boca, Opash!
OPASH é um intocável, Shankar! você não está vendo? um dalit!<br />
SHANKAR (ABRAÇANDO O MENINO) baguan keliê, por Deus! todo mundo é<br />
igual! ninguém é intocável!<br />
260<br />
OPASH (PARA OS EM VOLTA) arê baba! ele não sabe o que diz! um<br />
intocável igual a mim! eu sou um vaishya, Shankar! um comerciante!<br />
eu tenho casta! (RUDE, PARA BAHUAN) se afasta, menino!<br />
SHANKAR SEGURA BAHUAN FIRMEMENTE PELOS OMBROS, MANTENDO-O DIANTE DE<br />
OPASH<br />
SHANKAR o <strong>de</strong>us que está em você, também está nele, Opash!<br />
Você está mandando Deus sair do seu caminho? Está?<br />
OPASH VAI PUXANDO RAJ, NUM IMPULSO, DESVIANDO DO MENINO<br />
OPASH ulucapatá! Gran<strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r dos burros! Tchalô, Raj! venha se purificar!<br />
SE AFASTAM EM DIREÇÃO ÀS ÁGUAS<br />
OPASH Quando Brahma fez o mundo, ele dividiu os homens em 4 castas, em<br />
quatro qualida<strong>de</strong>s gente: da sua boca ele tirou os brâmanes<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 3. TAKES RÁPIDOS ILUSTRANDO AS CASTAS<br />
DE MODO A MOSTRAR, NA AMBIENTAÇÃO DE CADA UMA DELAS, UM POUCO DO<br />
UNIVERSO MÁGICO DA ÍNDIA: SACERDOTES, PROFISSÕES MODERNAS<br />
OPASH (OFF) que são sacerdotes, os professores,... os que trabalham com a<br />
cabeça!<br />
TAKES MOSTRANDO SHATRIAS<br />
OPASH (OFF) dos braços <strong>de</strong> Brahma nasceram os Shatryas. Eles são os<br />
políticos, os governantes, os militares,<br />
TAKES MOSTRANDO COMERCIANTES<br />
OPASH (OFF) Depois Brahma tirou das suas coxas os Vaishyas... são os<br />
comerciantes, os que fazem a riqueza, a prosperida<strong>de</strong><br />
TAKES MOSTRANDO OS SUDRAS<br />
OPASH (OFF) dos pés ele tirou os sudras, os que trabalham com os braços,<br />
com a força física, lavrando a terra, tirando as águas dos poços<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 4. GANGES. EXTERIOR. DIA<br />
OPASH, RAJ SE PURIFICANDO. AMITHAB<br />
RAJ e os dalits, baldi?<br />
OPASH os dalits... como aquele menino... eles não nasceram
FUSÃO PARA<br />
<strong>de</strong> Brahma!<br />
CENA 5. TAKES MOSTRANDO INTOCÁVEIS<br />
SOBRA AS IMAGENS DE INTOCÁVEIS EM VÁRIAS SITUAÇÕES<br />
OPASH (OFF) eles são a poeira embaixo dos pés <strong>de</strong> Brahma. Eles são<br />
impuros porque trabalham com tudo o que é impuro nesse mundo:<br />
lavam os banheiros, lidam com os mortos... Por isso não se po<strong>de</strong> tocar<br />
neles! não se po<strong>de</strong> tocar nem na sombra <strong>de</strong>les! Não se po<strong>de</strong> pisar nas<br />
pegadas <strong>de</strong>les<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 6. GANGES. EXTERIOR. DIA<br />
OPASH, RAJ E AMITHAB MENINOS<br />
OPASH ...senão a pessoa fica impura também!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 7. VARANASI. EXTERIOR. DIA<br />
SHANKAR E BAHUAN VÃO CAMINHANDO, SE AFASTANDO DALI<br />
261<br />
SHANKAR mentira! não acredite nele, isso não é verda<strong>de</strong>! tudo o que existe no<br />
mundo, as plantas as montanhas, os bichos, as pessoas, tudo está vivo,<br />
porque tudo é Deus! como é seu nome?<br />
BAHUAN HESITA<br />
SHANKAR diga...!<br />
BAHUAN (TIMIDO) Bahuan...<br />
SHANKAR on<strong>de</strong> é que você mora? on<strong>de</strong> é que estão seus pais? hem?<br />
BAHUAN eles beberam água no poço dos homens que tem casta... aí eles vieram<br />
e botaram fogo neles...<br />
SHANKAR você não tem pais, não tem casa! (HESITA E DIZ) tik hai! acabou o<br />
problema! você não está mais sozinho... Eu sou Shankar, sou físico e<br />
moro no Rajastão. Estou viúvo e não tive filhos... Você vem comigo!<br />
<strong>de</strong> hoje em diante vou ser seu pai, seu baldi... Diga: baldi! diga!<br />
BAHUAN Baldi...<br />
SHANKAR VENDO A IMAGEM E SE APROXIMANDO DELA<br />
SHANKAR veja! lord Ganesha está perto <strong>de</strong> nós! (TIRA AS PÉTALAS DE UM<br />
SAQUINHO QUE TEM NA CINTURA) tik! ainda tenho pétalas<br />
aqui...<br />
BAHUAN ENCHE AS MAOZINHAS COM AS PÉTALAS<br />
SHANKAR ele é o removedor dos obstáculos! não esqueça nunca: tudo o que<br />
acontece perto <strong>de</strong> Lord Ganesha está <strong>de</strong>stinado a prosperar e a ser<br />
feliz!
PASSAGEM DE TEMPO: SHANKAR VAI SE AFASTANDO COM BAHUAN PELA MîO.<br />
FECHA NOS PïS DE SHANKAR E BAHUAN MENINO CAMINHANDO. è MEDIDA QUE<br />
CAMINHAM, OS PïS DE BAHUAN VAO FICANDO MAIORES, PASSANDO A IDïIA DE QUE<br />
CRESCEU AOS CUIDADOS DE SHANKAR. LEGENDA: ANOS DEPOIS<br />
CORTE PARA<br />
CENA 8. FESTIVAL. EXTERIOR. DIA- ADENDO<br />
ABRE NOS PïS DE BAHUAN ADULTO. MAYA DANóANDO, ALEGREMENTE. CORTE<br />
PARA BAHUAN, CARREGANDO UMA MALETA, (NîO SE VEM NESSA CENA) ABRE<br />
ACAMINHO <strong>ENTRE</strong> A MULTIDîO, ATï LOCALIZAR SHANKAR, QUE SE DIVERTE<br />
TAMBïM. REAóîO DE SHANKAR AO V-LO. . BAHUAN TOCA OS PïS DE SHANKAR. OS<br />
<strong>DOIS</strong> SE ABRAóAM.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 9. CANTO DO FESTIVAL DIA<br />
SHANKAR PUXANDO BAHUAN PARA UM CANTO<br />
SHANKAR tchatchatchatcha! aqui está vocÖ, Bahuan! (FITA BAHUAN,<br />
ORGULHOSO) Narayana! bravo! eu tenho orgulho do que vocÖ se<br />
tornou, filho! doutor em informática,hem?<br />
BAHUAN PHD, baldi! PHD!<br />
SHANKAR e ainda tem muito o que apren<strong>de</strong>r! se tem uma coisa que nunca se<br />
consegue encher, quanto mais se pâe coisa <strong>de</strong>ntro mais cabe, à isso<br />
aqui (APONTA) o càrebro da gente! (CORTA A EMOóîO) arÖ<br />
baba! porque <strong>de</strong>morou tanto, Bahuan? virou americano sÑ porque foi<br />
estudar lá nos Estados Unidos?<br />
BAHUAN (TENTANDO CORTAR) escute...<br />
SHANKAR (CORTANDO) há quanto tempo estou pedindo que venha e vocÖ<br />
adiando, adiando…<br />
BAHUAN tive uma oferta pra ficar lá, baldi! vai ser melhor…lá eu nÇo sou um<br />
dalit!<br />
SHANKAR baguan keliÖ! pelo amor <strong>de</strong> <strong>de</strong>us, filho! vocÖ à igual a todo mundo!<br />
lá, aqui, em qualquer lugar! nÇo foi o que lhe ensinei? hÇ? on<strong>de</strong> à que<br />
está escrito na sua testa que vocÖ à um dalit? que ninguàm po<strong>de</strong> tocar<br />
em vocÖ? hem?<br />
BAHUAN nÇo está escrito... mas eu sei!<br />
SHANKAR Pois trate <strong>de</strong> esquecer isso! preciso <strong>de</strong> vocÖ aqui, Bahuan! Muitas<br />
coisas tÖm que ser <strong>de</strong>cididas...! (TOM) tchalò, vamos, vamos atà o<br />
hotel...<br />
MüSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 10. FESTIVAL. EXTERIOR. DIA<br />
BAHUAN E SHANKAR ATRAVESSAM O FESTIVAL. CORTE PARA MAYA DANóANDO<br />
<strong>ENTRE</strong> AS AMIGAS. CORTE PARA UMA MULHER QUE OLHA MAYA. COCHICHA COM<br />
OUTRA, CHAMANDO A ATENóîO PARA ELA. (OBS. NO INTUITO DE MOSTRô-LA è MîE<br />
262
DE ALGUM RAPAZ QUE ESTÁ PROCURANDO NOIVA). CORTE PARA SHANKAR E<br />
BAHUAN VINDO. REAÇÃO DE BAHUAN, VENDO A IMAGEM GRANDE DE GANESHA.<br />
FAZ SINAL A SHANKAR PARA QUE ESPERE E VAI ATÉ LÁ, ABRINDO CAMINHO <strong>ENTRE</strong><br />
AS PESSOAS. BAHUAN SE APROXIMA DA IMAGEM. NO QUE VAI DEPOSITAR AS<br />
PÉTALAS, AS MÃOS DELE E AS MÃOS DE MAYA SE TOCAM, FAZENDO O MESMO<br />
MOVIMENTO. OS <strong>DOIS</strong> SE OLHAM, INIBIDOS E TOMADOS PELO SENTIMENTO DO<br />
MOMENTO MÁGICO. DESVIAM OS OLHOS, ATIRAM AO MESMO TEMPO AS PÉTALAS<br />
PARA O DEUS. NUM GESTO RÁPIDO, TOMANDO-OS POR UM CASAL, O SACERDOTE<br />
ESTENDE AS MÃOS SOBRE A CABEÇA DE AMBOS, ABENÇOANDO-OS. ELES SE OLHAM,<br />
SURPRESOS. LOGO, A MULTIDÃO QUE TAMBÉM QUER HOMENAGER GANESHA OS<br />
SEPARA. ELES SE PERDEM UM DO OUTRO, E SE PROCURAM INUTILMENTE COM OS<br />
OLHOS.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 11. LOCAL CASA OPASH. NOITE<br />
ABRE NO ROSTO SONHADOR DE MAYA, QUE PENSA EM BAHUAN À LUZ DA<br />
LAMPARINA, MAYA DEITADA DE COSTAS, RECEBENDO A MASSAGEM DE ÓLEOS<br />
DADA POR SUA MÃE. EXPLORAR A SENSUALIDADE DA CENA, QUE DEVE SER<br />
DELICADA COMO AQUELA DO FILME KAMA SUTRA (MIRA NAIR)<br />
KOCHI (MASSAGEANDO) uma mulher tem que trazer a pele<br />
assim,sempre macia como uma pétala. E usar muitos enfeites, para<br />
chamar a <strong>de</strong>usa que tem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 12. PÁTEO DE SHANKAR. NOITE<br />
SHANKAR BAHUAN AGORA COM ROUPAS INDIANAS<br />
BAHUAN baldi...quando entreguei as pétalas pra Ganesha aconteceu uma coisa<br />
estranha... parecia um sinal<br />
SHANKAR se aconteceu perto <strong>de</strong> Ganesha não se preocupe.! só po<strong>de</strong> ser coisa<br />
boa! Atchá! Lord Ganesha sempre anuncia as coisas boas!<br />
MÚSICA SOBE. BAHUAN JÁ NÃO ESCUTA, SONHADOR<br />
CORTE PARA<br />
CENA 13. CASA DOS MEEHTA. NOITE<br />
MÚSICA ATRAVESSA A CENA. MAYA SONHADORA.<br />
KOCHI (ENTRA) ainda está assim? você per<strong>de</strong> a hora <strong>de</strong> chegar no trabalho!<br />
MAYA tik he, tik he! estou pronta, sim...(COMEÇA A RETOCAR A<br />
MAQUIAGEM)<br />
263<br />
KOCHI (CONFIDENTE) Maya...! Atchá! veio um sacerdote aqui sondar o<br />
seu pai, perguntar se você já está pronta para o casamento! alguma<br />
familia que viu você no festival!<br />
MAYA mãezinha! tchoti-ma! o que foi que papa respon<strong>de</strong>u?<br />
KOCHI arê! não falou que sim nem que não! escutou! agora ele vai buscar<br />
informação... conversar com os vizinhos, saber como é essa familia,<br />
quem são os antepassados... Do mesmo jeito que fez com as moças<br />
oferecida pra seu irmão Komal!
MAYA e Komal? vai ter o casamento?<br />
264<br />
KOCHI aquela do Punjab, seu pai gostou da famÉlia e seu irmÇo nÇo gostou da<br />
moÅa! arÖ baba! os costumes hoje estÇo muito mudados! quando me<br />
casei nÇo tinha essa conversa <strong>de</strong> escutar o que os filhos diziam! a<br />
famÉlia <strong>de</strong>cidia o casamento e pronto! eu vi seu pai a primeira vez já<br />
vestida <strong>de</strong> noiva!<br />
MAYA ma!<br />
KOCHI estamos aqui, atà hoje, vivendo em harmonia, nÇo estamos? (TOM)<br />
tchalò! vocÖ se atrasa!<br />
MAYA eu vou e volto, mami! (OBS. O INDIANO NUNCA DIZ “EU VOU”.<br />
INCLUI SEMPRE O “VOLTO”) MAYA TOCA OS PïS DA MAE E SAI. MîE ARRUMANDO O<br />
QUARTO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 14. SALA DOS MEETHA. INTERIOR. NOITE<br />
MAYA ENTRA NA SALA<br />
MAYA meu celular!<br />
MANU E KOMAL NA SALA<br />
KOMAL baldi, o americano disse que levou o computador <strong>de</strong> ëltimo mo<strong>de</strong>lo<br />
para o senhor ver e o senhor nÇo comprou!<br />
MANU arÖ baba, filho! esses firangi estrangeiros nÇo enten<strong>de</strong>m nada! como<br />
eu nÇo comprei se eu disse pra ele que gostei, que ficava com o<br />
computador? sÑ nÇo podia fazer pagamento hoje! hoje no!<br />
KOMAL (LEMBRA) tik he! hoje à sexta feira! dia <strong>de</strong> Laksmi!<br />
MANU ninguàm vai fazer pagamento no dia da <strong>de</strong>usa da fartura! no, no...<br />
nesse dia nÇo se abre a carteira! dinheiro entra, mas nÇo sai!<br />
MAYA papa... (VINDO. TOCA OS PïS DELE)<br />
MANU (TOCANDO A CABEóA DELA) tchalò, Komal! acompanhe a sua<br />
irmÇ!<br />
KOCHI ENTRANDO NA SALA. ELA E MANU OBSERVAM OS FILHOS SAíREM<br />
KOCHI suniedi... escuta! quem à essa famÉlia que perguntou pela Maya?<br />
MANU Baguan keliÖ! que seja gente boa! Casamento <strong>de</strong> filha e dinheiro<br />
emprestado à melhor resolver <strong>de</strong>pressa!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 15. CALL CENTER. INTERIOR. NOITE<br />
MAYA ENTRANDO ALI COM DEVA. MOVIMENTAóîO DO CALL CENTER TROCANDO DE<br />
TURNO. CUMPRIMENTA DEVA (NUNCA COM BEIJINHOS, ACENANDO APENAS) E VAI<br />
PARA SEU LUGAR.
MAYA (ATENDE, EM INGLES, DANDO O NOME DE UMA<br />
COMPANHIA) Just a moment (ATENDE OUTRA<br />
LIGAÇÃO, REPETINDO O NOME DA COMPANHIA)<br />
RAUL (OFF) My name is Raul Cadore!<br />
MAYA (EM INGLES: PEDE QUE ELE REPITA)<br />
CORTE PARA<br />
CENA 16 RIO DE JANEIRO. EXTERIOR. DIA<br />
SOBRE A IMAGEM, A VOZ DE RAUL<br />
RAUL (OFF) Raul Cadore... Yes!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 17 . RIO DE JANEIRO. ANTE-SALA COQUETEL. DIA<br />
RAUL TELEFONANDO. ESTÁ NUM CANTO, ATENTO À ENTRADA, DE MODO A NÃO SER<br />
PERCEBIDO<br />
RAUL (NO CELULAR) Raul Cadore! eu fiz um <strong>de</strong>pósito<br />
na minha conta e...<br />
JULIA (VINDO) pai!<br />
REAÇÃO DELE VENDO JULIA: DESLIGA, RAPIDAMENTE<br />
JULIA tá todo mundo esperando você!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 18. CALL CENTER. INTERIOR. NOITE<br />
REAÇÃO DE MAYA SENTINDO QUE ELE DESLIGOU<br />
MAYA mister Cadore! hello!<br />
MAYA APERTA A TECLA MUTE E VIRA O CORPO DE MODO A VER DEVA<br />
MAYA (RINDO) Deva...<br />
DEVA (NO MICROFONE) just a moment... (MOVIMENTA-SE PARA<br />
TRÁS, DE MODO A VER MAYA)<br />
MAYA aquele brasileiro <strong>de</strong> novo!<br />
ouvi uma voz <strong>de</strong> mulher e ele <strong>de</strong>sligou!<br />
DEVA tik! esse homem tem dinheiro escondido da esposa!<br />
REAÇÃO DELA<br />
CENA 19. ANTE-SALA DO COQUETEL. INTERIOR. DIA<br />
RAUL VINDO COM JULIA<br />
JULIA com quem você tava falando, pai?<br />
RAUL ninguém... Coisas da empresa...<br />
REAÇÃO DESCONFIADA DE JULIA.<br />
CORTE PARA<br />
265
CENA 20. SALÃO DO COQUETEL. INTERIOR. DIA<br />
RAMIRO, RAJ, AO LADO DE RAMIRO, VESTINDO ROUPAS OCIDENTAIS, TERNO MUITO<br />
ELEGANTE. SILVIA, TARSO, CADORE. WAL, DARIO, CAMILLA, OUTRAS PESSOAS ALI.<br />
266<br />
MELISSA eu fui ao <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong>le em Nova York! não me ganhou... faltou<br />
sofisticação, estilo... estilo é fundamental! (VENDO TARSO) ah, ele<br />
ali! (CHAMA) Tarso!<br />
TARSO ah não, vô! minha mãe não tem noção! é toda hora querendo me<br />
apresentar pra essas amigas<br />
CADORE quem manda nascer com os olhos que ela queria ter?<br />
MELISSA (VAI PARA TARSO) Tarso, vem cá.<br />
TARSO (CANSADO) <strong>de</strong> novo, mãe?<br />
MELISSA (PUXA-O PELO BRAÇO, SEM SE IMPORTAR COM O<br />
CONSTRANGIMENTO DELE,) olha a cor <strong>de</strong>sses olhos!<br />
TARSO SORRI, RESIGNADO. CORTE PARA RAMIRO<br />
RAMIRO (ENTUSIASMADO) como é do conhecimento <strong>de</strong> todos, estamos<br />
caminhando para concretizar a parceria com uma gran<strong>de</strong> empresa<br />
indiana, a Indiamed, que vai passar a fornecer genéricos para nossa<br />
empresa! com isso, a Cadore se globaliza,<br />
MELISSA OLHA COM ORGULHO, TARSO AO LADO DE CADORE. WAL DE PÉ, EM OUTRO<br />
CANTO, EMBEVECIDA<br />
RAMIRO conquista um lugar entre as gran<strong>de</strong>s empresas farmacêuticas do Brasil<br />
WAL (EMBEVECIDA) Jesus, me abana!<br />
RAMIRO estaremos saltando para o futuro!<br />
CORTE PARA CADORE, NÃO GOSTANDO DO QUE OUVE<br />
CADORE gran<strong>de</strong> coisa! queria ver pegarem a Cadore como eu<br />
peguei, uma portinha <strong>de</strong> nada, uma farmaciazinha <strong>de</strong> uma porta só... e<br />
transformar numa empresa como eu transformei!<br />
TARSO eles sabem, vô!<br />
CARDORE sabem, mas gostam <strong>de</strong> esquecer! vão ficar aí a noite toda falando dos<br />
feitos <strong>de</strong>les, como se os dois tivessem construído a Cadore sozinhos!<br />
CORTE PARA SILVIA E MELISSA
MELISSA Silvia, eu <strong>de</strong>scobri um <strong>de</strong>rmatologista que faz milagres!<br />
SILVIA como se você precisasse <strong>de</strong> algum! (FAZ SINAL PARA QUE ELA<br />
ESCUTE RAMIRO) escuta seu marido!<br />
CORTE PARA WAL OLHANDO MELISSA COM DESDÉM<br />
WAL não acho essa mulher <strong>de</strong>le tudo isso não! muito<br />
folclore em cima <strong>de</strong>ssa perua...!<br />
CORTE PARA RAMIRO E RAJ.<br />
267<br />
RAMIRO por tudo isso, estamos em negociação com a empresa <strong>de</strong> informática<br />
do Sr Raj Ananda, que vai nos fornecer, através <strong>de</strong> uma nova<br />
tecnologia, ainda pouco conhecida aqui no Brasil, os serviços <strong>de</strong> M-<br />
Commerce, que é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r nossos produtos através<br />
<strong>de</strong> dispositivos móveis e multiplicar, assim, a nossa distribuição!<br />
PALMAS. CORTE PARA JULIA E CAMILLA<br />
JULIA Camila, você acha que meu pai po<strong>de</strong> ter um caso?<br />
CAMILLA só se for com a escrivaninha <strong>de</strong>le, Julia! seu pai só<br />
pensa em trabalho! que idéia!<br />
JULIA Sei lá! ele anda misterioso! agora mesmo tava falando no telefone e<br />
<strong>de</strong>sligou rapidinho quando eu cheguei... Foi esquisito!<br />
CAMILLA quem é? (INDICANDO DARIO)<br />
JULIA é o Dario, assessor do tio Ramiro. Gostou?<br />
CAMILLA uau!<br />
JULIA (CÚMPLICE) solteiríssimo!<br />
JULIA FAZ SINAL PARA DARIO, QUE SE APROXIMA<br />
CAMILLA (BAIXINHO) sua louca!<br />
DARIO que foi, Julinha?<br />
JULIA essa é minha amiga, a Camilla!<br />
DARIO SORRI PARA CAMILLA, QUE RETRIBUI. DE MODO A QUE O PÚBLICO PERCEBA<br />
QUE VAI ROLAR. CORTE PARA RAMIRO E RAJ<br />
RAJ a verda<strong>de</strong> é que a internet <strong>de</strong>rrubou as fronteiras, eliminou as<br />
distâncias... e possibilitou a produção compartilhada entre vários<br />
países, que nos permite estar hoje aqui, comemorando essa parceria!<br />
PALMAS. RAMIRO APRESENTA RAUL, QUE ESTÁ A SEU LADO<br />
RAMIRO meu irmão, e sócio Raul...!
RAJ (CUMPRIMENTA) Raj Ananda<br />
268<br />
RAMIRO Raul é quem está preparando toda a documentação que vocês<br />
necessitam pra fecharmos o contrato! (PARA RAUL) temos tudo<br />
pronto, não?<br />
RAUL amanhã tudo estará em mãos!<br />
CORTE PARA JULIA E SILVIA<br />
JULIA se papai pu<strong>de</strong>sse saía voando daqui!<br />
SILVIA seu pai está exausto! passou a noite arrumando documentos da<br />
empresa pra reunião com esse indiano, enquanto o Ramiro ia buscar<br />
no aeroporto, levar pra almoçar...<br />
REAÇÃO DE MELISSA VENDO INÊS ENTRAR. DO SEU JEITO<br />
MELISSA Inês! outra tatuagem?<br />
INÊS essa vai causar, mãe!<br />
MELISSA o que é que você quer? me agredir? agredir seu pai?<br />
INES (BEM HUMORADA) ai! não precisa dizer que eu sou<br />
sua filha, mãe!<br />
MELISSA (TIRANDO O XALE DOS OMBROS E JOGANDO NOS<br />
OMBROS DELA, DE MODO A COBRIR A TATUAGEM) cobre<br />
essa aberração!<br />
INÊS (TENTANDO TIRAR) Mami!<br />
MELISSA (FORÇANDO FICAR) por que é que veio? pra aparecer nesses trajes,<br />
era melhor nem ter vindo!<br />
INÊS (ANIMADA) posso ir?<br />
MELISSA pois vá! vá!<br />
INÊS (DEVOLVE O XALE, ADORANDO) bye! (SAINDO)<br />
MELISSA (IRRITADA, INDO ATRÁS) Inês!<br />
INÊS <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> mãe! eu fico ou eu vou?<br />
MELISSA JOGA O XALE NOS OMBROS DELA E VEM TRAZENDO DE VOLTA,<br />
DISFARÇANDO A IRRITAÇÃO. JULIA E CAMILA RIEM DA CENA.<br />
CAMILA (RINDO) o look não agradou!<br />
JULIA (RI)a Inês é um castigo pra tia Melissa! ela fica louca! morre <strong>de</strong><br />
vergonha! se ela pu<strong>de</strong>sse trancava a Inês num porão e <strong>de</strong>ixava lá,<br />
escondida, pra ninguém ver!
CAMILA em compensação, o Tarso parece medalha <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> olimpíada! olha<br />
ali, olha...<br />
INDICA MELISSA EXIBINDO TARSO PARA OUTRA PESSOA.<br />
SILVIA (VINDO) do que é que vocês riem tanto?<br />
CAMILA a vaida<strong>de</strong> da Melissa!<br />
SILVIA ah! essa minha cunhada! o pobre do Tarso é o espelho preferido <strong>de</strong>la!<br />
CAMILA tá linda, Silvia!<br />
CORTE PARA RAMIRO, RAUL, RAJ E DARIO. ENQUANTO ELES FALAM, RAUL SE<br />
AFASTA OUTRA VEZ, DISFARÇADAMENTE, LIGANDO O CELULAR<br />
DARIO que tal levarmos o Raj para conhecer a noite do Rio?<br />
RAJ eu peço <strong>de</strong>sculpas, mas não posso aceitar: já tinha assumido um<br />
compromisso antes<br />
RAMIRO Raj já conhece bem a noite do Rio! tem até uma namorada brasileira!<br />
DARIO então não se discute:... um po<strong>de</strong>r mais alto se levanta!<br />
RAJ já vim algumas vezes ao Rio para encontrar com ela!<br />
nos conhecemos em Londres, há dois anos<br />
RAMIRO dois anos? dois anos já é praticamente um casamento!<br />
MÚSICA SOBE ENQUANTO ELES FALAM.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 21. RIO DE JANEIRO. EXTERIOR. NOITE<br />
SOM DE MÚSICA ALEGRE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 22. BUATE. INTERIOR. NOITE<br />
ANIMAÇÃO. RAJ DANÇANDO ANIMADAMENTE COM DUDA. OBS. SANDRA: UM OU<br />
OUTRO ELEMENTO DA DANÇA INDIANA, INTRODUZIDOS COMO BRINCADEIRA. MUITO<br />
POUCOS, DE MODO A QUE RAJ CHAME A ATENÇÃO POR DANÇAR BEM, SEM<br />
DENUNCIAR QUE SUA DANÇA SEJA CARACTERÍSTICA DE OUTRO PAÍS. QUANDO<br />
ESTIVER NA ÍNDIA, SIM, ELE VAI DANÇAR DIFERENTE. O IMPORTANTE AQUI É<br />
MOSTRAR UM COMPORTAMENTO BEM OCIDENTAL. OS <strong>DOIS</strong> SE BEIJAM.<br />
RAJ Duda, Duda! sou louco por você, sabia?<br />
DUDA (CHARME) então porque vai embora?<br />
RAJ (BEIJANDO DUDA) logo, logo você vai comigo<br />
DUDA quando?<br />
RAJ logo! não quero mais viver longe <strong>de</strong> você! não consigo! estou louco<br />
pra amarrar o mangala sutra em você!<br />
269
DUDA mangala sutra?<br />
RAJ à o colar <strong>de</strong> casamento! na índia, em vez da alianÅa<br />
que vocÖs usam, nÑs damos pra esposa um colar <strong>de</strong><br />
casamento! chama mangala sutra!<br />
DUDA eu quero!<br />
MAIS UM BEIJO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 23. CASA DE RAUL. INTERIOR. NOITE<br />
SILVIA LENDO. RAUL VEM, CANSADO, DEITAR PERTO DELA<br />
SILVIA acordou, Raul?<br />
RAUL sÑ estava tirando um cochilo!<br />
SILVIA (FAZ CARINHO NOS CABELOS DELE) Vai dormir, amor.<br />
Descansa! vocÖ parecia tÇo cansado hoje lá no coquetel!<br />
RAUL parecia?<br />
SILVIA porque vocÖ nÇo tira uns dias <strong>de</strong> fàrias, Raul? a gente podia fazer uma<br />
viagem, sei lá, pegar um <strong>de</strong>sses cruzeiros<br />
RAUL nÇo sonha, Silvia!<br />
270<br />
SILVIA nÇo po<strong>de</strong> ser tÇo complicado assim tirar uns dias pra vocÖ! seu irmÇo<br />
vive viajando! e nÇo me diga que à sÑ a trabalho, porque nÇo à! sÑ<br />
esse ano ele e a Melissa já foram nÇo sei quantas vezes passar fim <strong>de</strong><br />
semana na Europa, nos Estados Unidos...<br />
RAUL alguàm tem que fazer aquela empresa andar, nÇo à?<br />
SILVIA atà parece que vocÖ nÇo gosta <strong>de</strong> viver assim, sobrecarregado!<br />
CADORE PASSA COM UM COPO D’AGUA, Jô VESTIDO PARA DORMIR. ESTô<br />
VISIVELMENTE CHATEADO. NîO OLHA PARA OS <strong>DOIS</strong><br />
RAUL já vai <strong>de</strong>itar, pai?<br />
CADORE (SECO) vou!<br />
RAUL o que à que ele tem?<br />
SILVIA nÇo sei... seu Cadore veio no carro mudo, sem dar uma palavra! se<br />
aborreceu com alguma coisa! pra mim nÇo falou nada!<br />
RAUL papai à cheio <strong>de</strong> suscetibilida<strong>de</strong>s! (CHAMA) papai! papai!<br />
CADORE (SE VOLTA. SECO) o que foi?<br />
RAUL se chateou com o que?
271<br />
CADORE nada! não tive motivos pra me chatear, tive? <strong>de</strong>ve ser<br />
algum problema <strong>de</strong> estômago: eu engulo tanto sapo que meu<br />
estomago já é um brejo! (SAI)<br />
RAUL (RI) ó... não falei? velhice é fogo!<br />
BATEM NA PORTA. EMPREGADA VAI ABRIR: MURILO<br />
MURILO boa noite!<br />
SILVIA (SURPRÊSA) Murilo! ah não! não me diga que vocês ainda vão<br />
trabalhar hoje!<br />
MURILO é dura a vida da bailarina, Silvia! ainda temos que fechar dois<br />
relatórios pra entregar ao indiano amanhã cedo! nem pu<strong>de</strong> ir ao<br />
coquetel preparando isso!<br />
RAUL (LEVANTA, CANSADO) vambora, Murilo!<br />
OS <strong>DOIS</strong> ENTRAM. REAÇÃO DE SILVIA.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 24. CASA DE RAUL. ESCRITÓRIO. INTERIOR. NOITE<br />
RAUL E MURILO ENTRANDO ALI<br />
RAUL sabe quando tudo o que você tem vonta<strong>de</strong> é <strong>de</strong> chutar o bal<strong>de</strong>?<br />
MURILO (RI) quem é que não sabe? e é bom mesmo chutar um bal<strong>de</strong> aqui<br />
outro ali, <strong>de</strong> vez em quando!<br />
RAUL me cansa esse entusiasmo do Ramiro, essa voracida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le <strong>de</strong> querer<br />
mais, mais! pra que tudo isso? pra que essa obsessão <strong>de</strong> transformar a<br />
Cadore numa mega empresa...?<br />
MURILO Nada contra a idéia, muito pelo contrário: o problema é ele <strong>de</strong>ixar a<br />
parte pesada sempre nas suas costas, Raul! nas nossas, melhor<br />
dizendo! se a coisa fosse mais dividida...<br />
RAUL Mesmo que fosse, Murilo! ... que sentido tem isso?<br />
MURILO ê... você ta precisando é lacrar a porta daquele escritório e sair pra<br />
respirar um pouco <strong>de</strong> vida, amigo! o que tá te faltando é oxigênio!<br />
falando sério, Raul<br />
RAUL (ABRINDO A PASTA E CORTANDO) falando sério, vambora, que<br />
o tempo tá correndo e a noite é curta!<br />
MURILO pra mim ia ser muito longa se não fosse isso aqui! (SUSPIRA)<br />
vambora!<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 25. AEROPORTO. DIA<br />
RAJ E DUDA<br />
RAJ cê não <strong>de</strong>via ter vindo, Duda. Não gosto que você volte sozinha
DUDA não vou voltar sozinha, amor! Chiara veio comigo, não veio? daqui<br />
nós pegamos um táxi e tudo bem!<br />
272<br />
RAJ (SEGURA O ROSTO DELA) escuta...ontem <strong>de</strong> noite fiquei pensando<br />
em nos dois... quando eu voltar pra assinar o contrato quero levar<br />
você embora comigo<br />
DUDA Raj...!<br />
RAJ <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mês... você acha que fica pronta, pra<br />
mudar <strong>de</strong> país <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mês?<br />
DUDA (EMOCIONADA) até numa semana! Raj... até num dia!<br />
O BEIJO. CHAMADA DO AVIÃO<br />
RAJ é o meu vôo...! cadê a Chiara?<br />
DUDA tá vindo, foi comprar uma revista...<br />
CORTE PARA MURILO CHEGANDO, APRESSADO,CORRENDO ATÉ ELES<br />
MURILO Raj! Raj! <strong>de</strong>sculpe, faltou uma assinatura...tivemos que refazer essa<br />
página aqui<br />
RAJ ah. eu nem tinha percebido, <strong>de</strong>ixei pra ler tudo no avião<br />
ENQUANTO ELE GUARDA NA PASTA CHIARA VAI SE APROXIMANDO<br />
MURILO ainda bem que cheguei a tempo!<br />
MURILO DEIXA ESCAPAR UM OLHAR CAFAGESTE PARA CHIARA, QUE NÃO É<br />
PERCEBIDO PELOS OUTROS. QUANDO O OLHAR DELES SE ENCONTRA ELE DISFARÇA.<br />
CHIARA SE INTERESSA POR ELE<br />
RAJ Duda, minha noiva... e a Chiara, nossa amiga...<br />
MURILO (MANTENDO A POSTURA) encantado!<br />
RAJ Murilo, <strong>de</strong>sculpe pedir, mas... você faria a gentileza <strong>de</strong> acompanhar as<br />
duas até em casa?<br />
DUDA Raj! não precisa, a gente pega um táxi!<br />
MURILO <strong>de</strong> jeito nenhum! faço questão! é um prazer pra mim, eu levo vocês,<br />
claro! estou <strong>de</strong> carro aí!<br />
RAJ (CUMPRIMENTA MURILO) fico mais tranqüilo, assim. Até a volta,<br />
então, Murilo!<br />
MURILO até a volta, Raj!<br />
RAJ E DUDA SE AFASTAM, ABRAÇADOS, E PODEMOS VÊ-LOS EM SEGUNDO PLANO,<br />
AOS BEIJOS, SE DESPEDINDO, ENQUANTO MURILO OLHA FASCINADO PARA CHIARA
CHIARA (SORRI) que foi?<br />
MURILO eu... nem sei o que dizer... estou zonzo! se me perguntassem agora o<br />
meu nome eu não seria capaz <strong>de</strong> lembrar!<br />
CHIARA ah! faz um esforço!<br />
MURILO (TIRA O CARTÃO DO BOLSO. BRINCA, LENDO, COMO QUEM<br />
ESTÁ LEMBRANDO) Murilo (SOBRENOME)<br />
CHIARA RI, DIVERTIDA<br />
MURILO (PASSANDO O CARTÃO) vou <strong>de</strong>ixar com você! você vai esquecer,<br />
que eu sei!<br />
DUDA VOLTA E SORRI, PERCEBENDO O CLIMA<br />
MURILO (TOM. SÉRIO) vamos, então? o carro está logo ali...<br />
CORTE PARA<br />
CENA 26. RIO DE JANEIRO. EXTERIOR. DIA<br />
TRÂNSITO NO RIO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 27. CARRO DE MURILO EM MOVIMENTO. DIA<br />
MURILO, CHIARA (NA FRENTE) E DUDA, FELIZ.<br />
DUDA (PARA CHIARA) passa lá em casa <strong>de</strong> noite! tenho<br />
uma coisa maravilhosa pra te contar!<br />
CHIARA sobre?<br />
DUDA <strong>de</strong> noite! (INDICANDO) ali, Murilo, ali! logo <strong>de</strong>pois (DÁ UMA<br />
INDICAÇÃO)<br />
CORTE PARA<br />
CENA 28. EXTERIOR DE SHOPPING OU LOJA. DIA<br />
DUDA SALTANDO<br />
DUDA obrigada, Murilo, você foi show!<br />
MURILO imagina! foi um prazer! tchau, Duda!<br />
DUDA (DE FORA DO CARRO) tô te esperando, hem?<br />
DUDA SAI, ACENANDO<br />
CHIARA que euforia!<br />
MURILO então? vamos tomar um café?<br />
CHIARA po<strong>de</strong> ser!<br />
273
MURILO (CHEIO DE INTENÇÕES) na sua casa ou na minha?<br />
CHIARA (BEM HUMORADA) Você na sua casa e eu na minha! (SALTA,<br />
SORRINDO) melhor ficar por aqui,<br />
ouvindo as novida<strong>de</strong>s! (SAI)<br />
MURILO ei! eu levo você! ei!<br />
BUZINA. DEPOIS SORRI<br />
CORTE PARA<br />
CENA 29. ÍNDIA. EXTERIOR. NOITE/DIA<br />
CORTE PARA<br />
CENA 30 . PÁTEO DE SHANKAR. DIA<br />
CAMERA VAI ENTRANDO, PARANDO NO PÁTEO. SHANKAR E BAHUAN TOMANDO CHÁ<br />
SHANKAR lembra quando nós nos encontramos em Varanasi? você era um<br />
bacha, um menino!<br />
BAHUAN como é que eu vou esquecer, baldi!<br />
SHANKAR eu fui lá porque estava viúvo, sem filhos... já tinha acumulado<br />
riquezas, respeito, conquistado a minha posição como físico... e achei<br />
que tinha chegado a hora <strong>de</strong> abandonar as coisas do mundo...!<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 30 . FLASH-BACK. VARANASI. DIA<br />
SHANKAR ABRAÇA BAHUAN, PROTEGENDO-O E OPASH<br />
SHANKAR (VOZ SOBRE IMAGEM) Atchá! Naquele dia, os <strong>de</strong>uses puseram<br />
você no meu caminho, e isso foi um jeito <strong>de</strong>les me dizerem que a<br />
minha missão ainda não estava acabada!<br />
FUSÃO PARA<br />
CENA 31. PÁTEO DE SHANKAR. EXTERIOR. DIA<br />
SHANKAR E BAHUAN<br />
SHANKAR mas agora você está aí, pronto para o mundo. Então eu fiz o que<br />
faltava fazer para po<strong>de</strong>r dizer que já vivi todas as cores da vida: criei<br />
um filho para acen<strong>de</strong>r o fogo quando eu morrer!<br />
BAHUAN o que é que o senhor está querendo me dizer, baldi?<br />
SHANKAR eu sempre quis me tornar um sanyase, um renunciante, Bahuan!<br />
BAHUAN (REAGE) o senhor quer sair do mundo? apagar tudo o que viveu até<br />
agora? me apagar também?<br />
SHANKAR (TENTANDO CORTAR) Bahuan, Bahuan<br />
274<br />
BAHUAN por que? não posso imaginar ver o senhor isolado com os monges nas<br />
montanhas, ou então vagando pelas ruas, pedindo comida nas casas...<br />
sofrendo frio, chuva...
275<br />
SHANKAR esse corpo não é nada, filho! é como uma roupa velha que um dia não<br />
serve mais <strong>de</strong> tanto que se gastou! pra que se preocupar com ele? é<br />
melhor se ocupar da alma, que não morre nunca, pra evitar<br />
ficar voltando a esse mundo!<br />
BAHUAN baguan keliê, baldi! por <strong>de</strong>us, não faça isso!<br />
SHANKAR você vai ser um homem rico, Bahuan. E eu quero que<br />
esteja muito preparado pra lidar com isso quando eu<br />
me retirar!<br />
BAHUAN não, eu não vou aceitar!<br />
SHANKAR escute... esta noite estou indo para o Punjab... tenho negócios a<br />
resolver lá... quando voltar nós falamos disso <strong>de</strong> novo. Eu preciso <strong>de</strong><br />
sua concordância. Você é meu filho, não posso escolher o caminho <strong>de</strong><br />
sair do mundo sem você concordar!<br />
BAHUAN baldi<br />
SHANKAR vá até a estação <strong>de</strong> trem comprar o meu bilhete!<br />
quando eu voltar do Punjab vamos ter muito tempo<br />
para conversar!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 32. RUA. EXTERIOR. DIA<br />
BAHUAN INDO PELA RUA MOVIMENTADA. DE REPENTE SENTE QUE SEU RELÓGIO<br />
ENGANCHOU EM ALGUMA COISA. RAPIDAMENTE PARALIZA, OLHANDO PARA TRÁS.<br />
REAÇÃO DE MAYA, SEGURANDO O SARI QUE ENGANCHOU NO RELÓGIO. OS <strong>DOIS</strong> SE<br />
OLHAM. SOM: SINOS DO TEMPLO TOCANDO. OS <strong>DOIS</strong> OLHAM AO MESMO TEMPO<br />
PARA O SINO. BAHUAN VAI SOLTANDO O RELÓGIO<br />
BAHUAN alguma coisa os <strong>de</strong>uses querem dizer pra nós dois!<br />
MAYA BAIXA OS OLHOS, NUM MISTO DE TIMIDEZ E SENSUALIDADE (BEM<br />
AISHWARYA)<br />
BAHUAN eu sou Bahuan... e vocë?<br />
MAYA (LEVANTANDO OS OLHOS) Maya!<br />
OLHOS NOS OLHOS<br />
COMERCIAL<br />
CENA 33.LOCAL. EXTERIOR. DIA<br />
CONTINUAÇÃO DA CENA ANTERIOR: BAHUAN E MAYA<br />
BAHUAN (REPETE, EMOCIONADO) Maya...<br />
MAYA (TENSA) estão olhando... não posso ficar... (VAI SE AFASTANDO)<br />
ENQUANTO ELA SE AFASTA<br />
BAHUAN amanhã... quando cair o sol, no Taj...
MAYA SORRI, SEM SE VOLTAR, INDO MAIS DEPRESSA ENTRA NUM RIQUIXÁ. NUM<br />
IMPULSO, BAHUAN CORRE ATRAS DO RIQUIXÁ<br />
BAHUAN ei!<br />
MAYA SORRI, COBRINDO O ROSTO COM O VÉU. RIQUIXÁ SE AFASTA<br />
CORTE PARA<br />
CENA 34. PORTA DA CASA DOS ANANDA. DIA<br />
PORTA SENDO ABERTA POR OPASH. REAÇÃO ASSUSTADA DELE, TORNANDO A<br />
FECHÁ-LA RAPIDAMENTE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 35. CASA DOS ANANDA. DIA/ COM PONTO DE VISTA<br />
OPASH AMEDRONTADO, ENCOSTADO NA PORTA. ENTRA, AFLITO, ESBARRANDO EM<br />
CHANTI QUE VEM DO INTERIOR COM SEUS LIVROS<br />
CHANTI papa! (OLHA INDIRA) o que foi ma?<br />
INDIRA ABRE A PORTA: DE SEU PONTO DE VISTA, UMA VIÚVA, EM SUAS ROUPAS<br />
BRANCAS . ELA FECHA A PORTA<br />
INDIRA uma viúva! não é auspicioso ver uma viúva quando se sai <strong>de</strong> casa!<br />
Agora ele tem que acordar outra vez, lavar os pés <strong>de</strong> novo! (ENTRA)<br />
ENTRA<br />
CENA 36. BANHEIRO DA CASA. INTERIOR. DIA<br />
ABRE NOS PÉS DESCALÇOS DE OPASH. INDIRA POE A BACIA DE ÁGUA AOS SEUS PÉS,<br />
DELICADA, AMOROSA<br />
OPASH (REVERENCIA) Jay Ganga ma! (PÕE OS PÉS NA ÁGUA)...<br />
INDIRA não se preocupe, marido. Vou mandar Durga comprar manteiga.<br />
Quando ela estiver chegando você sai, pronto!<br />
OPASH leite, manda Durga trazer leite! eu sempre tenho um dia bom quando<br />
vejo leite na hora <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa!<br />
INDIRA atchá! (SAI)<br />
CORTE PARA<br />
CENA 37. SALA DE OPASH. INTERIOR. DIA<br />
INDIRA ATRAVESSANDO A SALA EM DIREÇÃO À COZINHA. CHANTI COM SEUS<br />
LIVROS, PRONTA PARA A ESCOLA<br />
INDIRA (ATRAVESSANDO A SALA) Durgaaa!<br />
LAKSMI on<strong>de</strong> per<strong>de</strong>ram meus óculos! estão sempre fazendo o que é meu<br />
<strong>de</strong>saparecer!<br />
CHANTI quando voltar da aula eu procuro pra senhora, dadí!<br />
LAKSMI sempre quando voltar da aula! quando voltar vai me encontrar com a<br />
cabeça toda branca <strong>de</strong> tanto esperar!<br />
276
CHANTI SAI, INDIRA VEM VOLTANDO<br />
277<br />
LAKSMI veja a sua filha...! em vez <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r o que uma mulher precisa<br />
saber, está aí, como se fosse um homem, carregada <strong>de</strong> livros e<br />
ca<strong>de</strong>rnos!<br />
INDIRA arê! hoje em dia pra conseguir um bom casamento a moça tem <strong>de</strong> ser<br />
instruída!<br />
LAKSMI conversa! só vai servir pro marido ficar ofendido quando ela começar<br />
a exibir muito conhecimento! na ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la eu carregava meu Opash<br />
no colo, em vez <strong>de</strong> livros! (SAI RESMUNGANDO)<br />
INDIRA (IRRITADA) um marido tão bom tinha que ter<br />
nascido <strong>de</strong>ssa cobra naja!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 38 . PATEO. EXTERIOR. DIA<br />
LAKSMI CHEGANDO ALI. KARAM. ANUSHA PEGANDO UM BISCOITINHO DO POTE QUE<br />
ESTÁ SOBRE A CAMA. COM A MÃO ESQUERDA<br />
LAKSMI Anusha!<br />
ANUSHA PÁRA COM O BISCOITINHO NA MÃO. LAKSMI VAI ATÉ ELA<br />
LAKSMI a mão esquerda não! não se pega a comida com a mão esquerda! arê<br />
babá! quantas vezes eu preciso ensinar? sua mãe está lhe preparando<br />
pra que? pra fazer vergonha quando chegar na casa da sua sogra? faz<br />
dandala! tchalô! faz dandala!<br />
ANUSHA FAZ DANDALA, APERTANDO AS ORELHAS, COM OS BRAÇOS CRUZADOS,<br />
ENQUANTO SOBE E DESCE.<br />
LAKSMI até o chão! até o chão!<br />
CORTE PARA RAVI ENTRANDO, DESLIGANDO O CELULAR.<br />
RAVI (DESLIGANDO O CELULAR) Dadí, Tchatcha! Raj está voltando!<br />
falou comigo agora do aeroporto <strong>de</strong> Londres!<br />
KARAN atchá! que noticia boa!<br />
RAVI (ENTRA) mami! mami!<br />
LAKSMI Hum! eles <strong>de</strong>ixam o filho misturado com esses firangis estrangeiros!<br />
é bem capaz <strong>de</strong> Raj ter comido carne nessas viagens!<br />
KARAN (PROVOCANDO) também se comeu não era uma vaca indiana!<br />
REAÇÃO FURIOSA DE LAKSMI. KARAN SAI DE FININHO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 39. SALA DE OPASH. INTERIOR. DIA<br />
OPASH. INDIRA, RAVI<br />
INDIRA Sura! Amithab!
SURA VEM DA COZINHA COM UMA PANELA VAZIA NA MÃO. AMITHAB COM ELA.<br />
ANUSHA CORRE PRA ELE, SE PROTEGENDO.<br />
ANUSHA papa!<br />
INDIRA meu Raj está voltando pra casa!<br />
SURYA (VINDO) ati kabar! que noticia boa, sogra!<br />
AMITHAB não vai diminuir nosso trabalho, se ele não quer<br />
saber da loja... Só pensa na informática!<br />
INDIRA (ALEGRE, NEM REGISTRANDO) preciso fazer os doces que ele<br />
gosta!<br />
OPASH (VINDO) Raj voltou?<br />
RAVI vem amanhã, baldi!<br />
AMITHAB e nós temos que abrir a loja, está ficando tar<strong>de</strong>!<br />
OPASH tchalô! vamos!<br />
OS <strong>DOIS</strong> SAEM<br />
SURYA é verda<strong>de</strong> que meu sogro está procurando um casamento para Raj?<br />
INDIRA quem sabe a esposa <strong>de</strong>le vá dar para nós o neto homem que você não<br />
<strong>de</strong>u a Amithab?<br />
SURYA o médico falou que eu não tenho nenhum problema para ter mais<br />
filhos!<br />
278<br />
INDIRA pois é... não tem problemas, mas...ele não nasce! Pobre do meu<br />
Amithab! é muito triste um pai não ter um filho homem para acen<strong>de</strong>r<br />
o fogo quando ele morrer! só a mão <strong>de</strong> um filho po<strong>de</strong> abrir as portas<br />
do outro mundo para um pai!<br />
ENTRA. REAÇÃO DE SURYA. JOGANDO ALGUMA COISA NO CHAO COM FORÇA. CORTE<br />
PARA INDIRA APARECENDO NO VAO DA PORTA<br />
INDIRA are babá! o que foi isso?<br />
SURA caiu da minha mão... caiu!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 40 . EXTERIOR DA CASA DE OPASH. DIA<br />
OPASH ABRE A PORTA. DURGA PARADA COM O LEITE NA MÃO. OPASH SORRI,<br />
ALIVIADO<br />
DURGA tenha um bom dia, sahib!<br />
OPASH chucryia, Durga! obrigado!<br />
E SAI, ORGULHOSO, FELIZ. DO SEU JEITO.
CORTE PARA<br />
CENA 41 . RUA DA ÍNDIA. EXTERIOR. DIA<br />
MOVIMENTAÇÃO NORMAL DE SHANKAR DE UM LADO DA RUA, OPASH E AMITAHAB<br />
DE OUTRO<br />
SHANKAR veja quem está ali... aquele ulú, aquele estúpido: Opash!<br />
CORTE PARA OPASH E AMITHAB<br />
OPASH Shankar, aquele doido. aquele gandú, protetor <strong>de</strong> intocáveis!<br />
AMITHAB suno baldi, escute: contaram no bazar que ele está apoiando os<br />
intocáveis na política!<br />
OPASH votou neles! eu sei!<br />
CORTE PARA PANDIT VINDO. OPASH E AMITHAB TOCAM SEUS PÉS. PANDIT ABENÇOA<br />
AMITHAB você queria falar com o sacerdote! lá está Pandit!<br />
279<br />
OPASH (INDO PARA ELE) Pandit! (TOCA OS PÉS DE PANDIT,<br />
REVERENTE) eu ia procurar por você para falar do meu filho Raj...<br />
está na hora <strong>de</strong> se arranjar um casamento pra ele!<br />
PANDIT arê! a filha <strong>de</strong> Manu, o comerciante <strong>de</strong> tecidos é uma beleza...<br />
mo<strong>de</strong>sta, dança bem, tem instrução... Estava no festival <strong>de</strong> (NOME<br />
FESTIVAL) e eu soube que outras familias já estão cobiçando...<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 42 . RIO DE JANEIRO. EXTERIOR. DIA<br />
CORTE PARA<br />
CENA 43. SALA DE RAMIRO. INTERIOR. DIA<br />
RAMIRO PEGANDO A PASTA. TARSO VINDO COM O VIOLÃO<br />
RAMIRO que é isso? tá indo pra on<strong>de</strong>?<br />
TARSO (ANIMADO) entrei numa aula <strong>de</strong> violão manera!<br />
RAMIRO que violão! per<strong>de</strong>r tempo com violão, filho! o que é que você vai<br />
fazer com violão na vida! tem <strong>de</strong> se preparar é pra administrar sua<br />
empresa!<br />
TARSO eu?<br />
RAMIRO você! quem mais vai ter <strong>de</strong> tocar aquilo adiante?<br />
TARSO pai, mas eu quero fazer arquitetura<br />
RAMIRO arquitetura coisa nenhuma!<br />
TARSO <strong>de</strong>u no meu teste vocacional que
280<br />
RAMIRO (CORTA) frescura essa história <strong>de</strong> teste vocacional!<br />
teste pra que? sua vocação já está pronta, é a Cadore! você tem é que<br />
já ir se ambientando ali na<br />
empresa<br />
TARSO Cadore, pai! não tenho nada a ver com aquilo!<br />
RAMIRO (IGNORA) taí, você vai começar a ir comigo pro escritório. Pra ir<br />
pegando o jeito!<br />
TARSO nem vem, eu tô <strong>de</strong> férias!<br />
RAMIRO (SAINDO) melhor ainda! dá pra passar mais tempo lá! começa na<br />
segunda! po<strong>de</strong> dispensar aí essas aulas <strong>de</strong> violão!<br />
TARSO (INDO ATRÁS) pai!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 44. EXTERIOR DA CASA DE RAMIRO. DIA<br />
RAMIRO INDO EM DIREÇÃO AO CARRO, TARSO ATRÁS<br />
TARSO pai, eu não vou não, pai!<br />
RAMIRO ARRANCA. REAÇÃO DE TARSO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 45. QUARTO DE MELISSA. INTERIOR. DIA<br />
MELISSA COM UMA MÁSCARA NO ROSTO. SOM SUAVE. TARSO ENTRA<br />
TARSO mãe, eu não vou me enfiar <strong>de</strong>ntro daquele escritório nas minhas<br />
férias! nem nas minhas férias nem em tempo nenhum! eu não tenho<br />
nada a ver com aquele escritório... tá me escutando, mãe?<br />
MELISSA CONTINUA ABSOLUTAMENTE IMÓVEL<br />
TARSO mãe, presta atenção, eu já tô nervoso com essa<br />
pressão do meu pai em cima <strong>de</strong> mim! toda vez que eu começo a fazer<br />
alguma coisa que eu gosto...<br />
EMPREGADA APARECE NA PORTA FAZENDO SINAL DE PSIU<br />
EMPREG (BAIXINHO) Tarso, ela não po<strong>de</strong> falar! não tá vendo? tá mascarada!<br />
não po<strong>de</strong> nem pensar, que enruga a testa!<br />
TARSO SAI, DESANIMADO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 46. QUARTO DE INÊS. INTERIOR. DIA<br />
INÊS COM FONES DE OUVIDO. MEXENDO AO SOM DA MÚSICA<br />
TARSO Inês! Inês! ei!<br />
INES (TIRANDO O FONE) que foi, menino!<br />
TARSO cara, meu pai tem <strong>de</strong> parar com essa mania <strong>de</strong><br />
querer dirigir minha vida
INES (CHEIA, PONDO O FONE DE NOVO) ah Tarso!<br />
REAÇÃO DE TARSO. ELA CONTINUA A ESCUTAR MÚSICA E A DANÇAR<br />
CORTE PARA<br />
CENA 47 . ANTE-SALA DA EMPRESA. INTERIOR. DIA<br />
WAL NO SEU COMPUTADOR. MOSTRANDO PARA O BOY SUA IMAGEM NO PROGRAMA<br />
DE RELACIONAMENTO GÊNERO SECOND LIFE.<br />
WAL como é que eu fico melhor? loura ou morena?<br />
BOY essa é você?<br />
281<br />
WAL sou eu, meu filho. Eu, montada por mim! tô<br />
arrasando nesse mundo virtual! não <strong>de</strong>mora me mudo <strong>de</strong> vez!<br />
dispenso mais <strong>de</strong> dois gatos por dia, porque não dá vazão!<br />
RAMIRO (OFF. VOZ ALTERADA) não fez por que, Raul? não<br />
fez por que?<br />
WAL ih! o tempo vai fechar!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 48 . ESCRITORIO. INTERIOR. DIA<br />
RAMIRO E RAUL<br />
RAMIRO hem? porque?<br />
RAUL ei,não grita não! grita não que eu não sou teu criado!<br />
RAMIRO (SACUDINDO O PAPEL) cadê o dinheiro da associação lá com a<br />
Indiamed que tinha que estar nessa conta? tá <strong>de</strong>sfalcado isso aqui!<br />
RAUL eu apliquei uma parte, pronto! tá satisfeito?<br />
RAMIRO aplicou on<strong>de</strong>? que o contador não sabe <strong>de</strong>ssa aplicação?<br />
RAUL quem ficou responsável por esse dinheiro? não fui eu?<br />
RAMIRO que aplicação é essa Raul?<br />
RAUL eu não tenho que te dar satisfação <strong>de</strong> tudo o que eu faço, Ramiro!<br />
muito menos ao contador! sou tão dono <strong>de</strong>ssa empresa quanto você!<br />
RAMIRO o que é que você quer? remar pra trás? prejudicar o acordo que eu<br />
suei pra conseguir?<br />
RAUL (CORTA) só o que você não faz aqui é suar!<br />
E VAI SAINDO. RAMIRO ATRAS<br />
CORTE PARA<br />
CENA 49 . ANTE-SALA DO ESCRITORIO. INTERIOR. DIA<br />
RAUL SAINDO. RAMIRO ATRÁS<br />
RAMIRO se você quer pequeno, seja pequeno sozinho! sai<br />
da Cadore, porque isso aqui vai crescer como eu quero
RAUL tai... gostei da idéia!<br />
RAMIRO quer sair? sai!<br />
RAUL espera pra ver se eu não vou sair mesmo!<br />
RAMIRO patife!<br />
OS <strong>DOIS</strong> SE PEGAM, AOS SOCOS. REAÇÃO DE WAL<br />
COMERCIAL 2<br />
CENA 50. ANTE-SALA DO ESCRITÓRIO. INTERIOR. DIA<br />
CONTINUAÇAO DA CENA ANTERIOR: RAUL E RAMIRO BRIGANDO.<br />
WAL sangue <strong>de</strong> cristo!<br />
DARIO E MURILO CHEGAM CORRENDO<br />
MURILO que é isso?<br />
DARIO Ramiro!<br />
OS <strong>DOIS</strong> TENTANDO APARTAR A BRIGA.<br />
RAMIRO esse cretino...!<br />
RAUL vai apren<strong>de</strong>r a me respeitar!<br />
MURILO PUXA RAUL PARA UMA SALA, DARIO PUXA RAMIRO PARA OUTRA<br />
WAL (GESTO RAIVOSO CONTRA RAUL) palhaço! em<br />
tempo <strong>de</strong> danificar um homem <strong>de</strong>sse!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 51 . ESCRITORIO DE RAMIRO. INTERIOR. DIA<br />
DARIO E RAMIRO<br />
CORTE PARA<br />
DARIO Raul anda estressado, Ramiro. Fez uma provocação<br />
besta e você caiu!<br />
RAMIRO tô vendo o cavalo selado na minha frente e o idiota<br />
querendo me impedir <strong>de</strong> montar!<br />
CENA 52 . SALA DE RAUL. INTERIOR. DIA<br />
RAUL E MURILO<br />
RAUL aplico o dinheiro on<strong>de</strong> eu achar que <strong>de</strong>vo! acabou!<br />
tudo isso aqui é tão meu quanto <strong>de</strong>le!<br />
282
MURILO uma hora <strong>de</strong>ssa vocês precisam sentar e acertar<br />
esses ponteiros!<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 53. CASA DE RAUL. INTERIOR. NOITE<br />
RAUL. E SILVIA<br />
SILVIA que estupi<strong>de</strong>z, Raul! dois irmãos...!<br />
RAUL estou cheio, Silvia! sabe o que tá cheio?<br />
SILVIA mas cheio <strong>de</strong> que? fala! você tem tudo o que alguém po<strong>de</strong> querer!<br />
sempre teve!<br />
RAUL pois é. Sempre tive!<br />
SILVIA será que isso não é <strong>de</strong>pressão? essa falta <strong>de</strong> entusiasmo, esse<br />
<strong>de</strong>sânimo... não era bom consultar um médico?<br />
RAUL que médico, Silvia. Eu sei o que eu tenho!<br />
SILVIA então fala! como é que eu posso te ajudar se você não me diz? tá<br />
cheio, tá cheio... cheio <strong>de</strong> que?<br />
RAUL <strong>de</strong> tudo!<br />
SILVIA cê tá falando <strong>de</strong> nós? do nosso casamento?<br />
RAUL não, Silvia. Estou falando <strong>de</strong> mim! da minha vida! do que eu fiz com<br />
a minha vida! você nunca teve vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> nascer <strong>de</strong> novo?<br />
SILVIA reencarnar?<br />
RAUL esquece!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 54. ÍNDIA. EXTERIOR. DIA<br />
CORTE PARA<br />
CENA 55 . CASA DE OPASH. DIA<br />
RAVI, AMITHAB, SURYA, ANUSHA, LAKSMI, KARAN. PRIMOS E PARENTES, A CASA EM<br />
FESTA. TODOS ALEGRES, EM VOLTA DO TAPETE, ONDE ANUSHA DANÇA. CORTE PARA<br />
RAJ ENTRANDO.<br />
CHANTI Raj!<br />
REAÇÕES. ALEGRIA.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 56 . QUARTO DE MAYA. DIA-<br />
MAYA PONDO XALES E PULSEIRAS PARA O ENCONTRO<br />
MAYA (PEGANDO UMA COISA VERMELHA) uma coisa<br />
vermelha dá sorte...<br />
283
DEVA atchá! <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos sinais, um encontro no Taj! se ele ainda não<br />
está amando você ele vai amar, Maya! um amor que começa no Taj<br />
não se acaba nunca! nem nessa vida nem nas outras!<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 57 . SALA DE OPASH. INTERIOR. DIA<br />
TODOS ALEGRES, DANÇANDO. RAJ PÁRA, VAI BEBER ALGUMA COISA. OPASH VAI ATÉ<br />
ELE<br />
OPASH filho, sua mãe e eu conversamos... está na hora <strong>de</strong> você se casar, fazer<br />
sua família...<br />
RAJ eu?<br />
284<br />
OPASH você está gostando <strong>de</strong> andar pelo mundo, mas arê baba! não po<strong>de</strong><br />
pensar só em você, não é?<br />
temos que fazer sempre o que é melhor pra todos! seus irmãos estão<br />
presos! nem Ravi nem Chanti po<strong>de</strong>m se casar se você não se casa!<br />
RAJ eu sei...<br />
OPASH não se preocupe... se você não tem nenhuma moça em vista já falei<br />
com Pandit, o sacerdote. Ele anda pelas casas e conhece muitas<br />
famílias que estão com as filhas prontas!<br />
INDIRA VEM PUXANDO OPASH PARA DANÇAR<br />
RAVI você não gostou nada da idéia do papai<br />
RAJ não estava pensando nisso agora<br />
RAVI parece que estava<br />
RAJ eu tenho uma namorada no Brasil, Ravi!<br />
RAVI Tike he! uma firangii! você gosta <strong>de</strong>la?<br />
RAJ muito! até <strong>de</strong>mais!<br />
RAVI e o que você vai fazer?<br />
RAJ arê baba... não sei!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 58 .CASA DE CHIARA. INTERIOR. TARDE<br />
CHIARA E DUDA<br />
CHIARA como é que é? você largou o emprego <strong>de</strong> gerente na loja?<br />
DUDA um mês Chiara! eu tenho um mês pra entregar o<br />
apartamento, ver passaporte, vacina, arrumar tudo o que eu preciso<br />
pra po<strong>de</strong>r ir com ele! passa voando!<br />
CHIARA mas assim...? a toque <strong>de</strong> caixa?
DUDA dois anos, amiga! dois anos nessa ponte pro outro<br />
lado do mundo<br />
CHIARA a toque <strong>de</strong> caixa eu digo... pra fazer uma mudança<br />
<strong>de</strong> vida <strong>de</strong>sse tamanho!<br />
DUDA eu tô tão feliz, Chiara! mas tão feliz!<br />
CHIARA <strong>de</strong>pois do susto, isso merece um vinho! vamos brindar!<br />
CHIARA VAI PEGANDO O VINHO, DUDA AS TAÇAS<br />
DUDA agora falta você, amiga!<br />
CHIARA não estão sobrando príncipes por aí!<br />
DUDA e o tal Murilo? você ligou pra ele?<br />
285<br />
CHIARA eu não! aquele cafajeste? amiga, eu só estou voltada pra uma coisa<br />
nesse momento: a inauguração do meu centro <strong>de</strong> estética! o que me<br />
falta é Money! <strong>de</strong> cafas, minha vida anda rica!<br />
DUDA quem sabe quando você for pro meu casamento<br />
não conhece um indiano também?<br />
CHIARA e por falar na Índia, em meia hora tenho que estar na Lapa. Marquei<br />
com a Ilana num barzinho indiano! ta a fim?<br />
CORTE PARA<br />
CENA 59. EXTERIOR LOJA ASHIMA. DIA<br />
ASHIMA SERVINDO AS MESAS. INDRA VAI SAINDO PARA O COLÉGIO, CRUZA COM<br />
ILANA<br />
INDRA eu volto, mãe... (TOCA OS PÉS DELA)<br />
ILANA que foi que caiu?<br />
ASHIMA arê! não caiu nada, o menino ta <strong>de</strong>spedindo <strong>de</strong> mim.... pedindo a<br />
benção (SAI)<br />
ILANA (PASMA) você pe<strong>de</strong> a benção tocando os pés <strong>de</strong>la?<br />
INDRA porque ela é mais velha... eu toco os pés <strong>de</strong>la, é um sinal <strong>de</strong> respeito<br />
pelos caminhos que ela andou!<br />
REAÇÃO DE ILANA. VAI PARA A MESA ONDE ESTÁ CHIARA.<br />
ILANA Acabei <strong>de</strong> falar com o arquiteto: acrescentei mais uma sala <strong>de</strong><br />
massagem. Ele adorou a idéia<br />
CHIARA não!<br />
ILANA ficou ótimo, você vai ver
MENINA SAI<br />
286<br />
CHIARA eu tô em pânico! Sério! O Centro <strong>de</strong> estética era pra ser uma coisa<br />
<strong>de</strong>sse tamaninho, já tá ficando enorme....! Amiga: Eu não tenho mais<br />
uma moedinha pra investir!<br />
ILANA por isso que nós somos sócias! você entra com os<br />
conhecimentos e eu banco os extras... adianto<br />
os extras, quer dizer! quando o lucro começar a entrar você me<br />
<strong>de</strong>volve, claro!<br />
ASHIMA (VINDO) experimentem a samosa!<br />
CHIARA dona Ashima, a senhora ainda tem daqueles incensos maravilhosos?<br />
ASHIMA qual é o que você quer?<br />
CHIARA aquele <strong>de</strong> almíscar<br />
ASHIMA sabe o que nós dizemos na Índia? almíscar chama o amor!<br />
CHIARA então é esse mesmo!<br />
ILANA tem algum que chama dinheiro? se tiver, traz!<br />
ASHIMA tem pro que você quiser! (CHAMA) Malika!<br />
MENINA (VINDO) si mami!)<br />
ASHIMA (EM HINDI: VAI BUSCAR INCENSO)<br />
ASHIMA é a minha caçulinha! essa já nasceu aqui no Brasil...<br />
MÚSICA SOBE<br />
CORTE PARA<br />
CENA 60. LAPA. EXTERIOR. DIA<br />
ABEL DIRIGINDO O TRÂNSITO, NUM VERDADEIRO BALLET. CRIANÇA VAI<br />
ATRAVESSAR FORA DA FAIXA, ELE APITA. PEGA A CRIANÇA PELA GOLA E LEVA PRA<br />
DENTRO DA FAIXA. CORTE PARA O CARRO DE ZECA PARANDO. ABEL VAI PARA ELE.<br />
ABEL ei! não tá enxergando a placa?<br />
ZECA (SAINDO DO CARRO) é rapidinho, cara!<br />
ABEL (PUXA O TALÃO) a placa mandou, é pra cumprir! com placa não se<br />
discute!<br />
ZECA (SE AFASTANDO) qual é pangaré?<br />
ABEL PREGA A MULTA NO VIDRO. ZECA SE VOLTA. FURIOSO.<br />
CORTE PARA<br />
CENA 61 . CASA DE CESAR. INTERIOR. DIA<br />
ZECA, MÃE E PAI<br />
CESAR que que esse guardinha tá pensando que é?
ZECA também não, né pai?<br />
CESAR <strong>de</strong>via ter pego!<br />
287<br />
como é o nome <strong>de</strong>sse idiota? anotou o nome <strong>de</strong>le? pediu pra ver a<br />
carteira? pegou o número <strong>de</strong> registro?<br />
ZECA eu tinha era que ter botado ele pra dormir!<br />
CAMPAINHA TOCA, ZECA VAI ABRIR<br />
CESAR vou ver quem é que eu conheço pra dar um jeito nesse cretino! ele vai<br />
saber com quem tá lidando!<br />
ZECA (ABRINDO A PORTA) fala Leinha!<br />
LEINHA (BEIJA) oi Zeca! pai, eu preciso falar com você! vai<br />
começar aquele curso <strong>de</strong> documentarista que eu te<br />
falei... tô precisando da lente pra minha câmera<br />
CORTE PARA ILANA VINDO DO INTERIOR, PRONTA PARA SAIR<br />
CESAR já viu quanto é?<br />
LEINHA uns 1000 dólares dá...<br />
ILANA que?<br />
CESAR (SENTINDO A TEMPESTADE)<br />
ZECA (SAINDO) fui!<br />
ILANA quanto foi que ela disse?<br />
LEINHA não tô falando com você, Ilana! dá licença <strong>de</strong> conversar com meu pai?<br />
ILANA até parece que eu não tenho nada com o dinheiro <strong>de</strong>ssa casa!<br />
CESAR Ilana...! Leinha, tranqüilas, tranqüilas! não vão começar!<br />
ILANA você sabe as dívidas que eu assumi pra inaugurar o centro <strong>de</strong> Estética.<br />
Em dólares, Cesar! em dólares! se você acha que tem dólares pra<br />
jogar pela janela comprando lente pra essa menina brincar <strong>de</strong><br />
cineasta!<br />
LEINHA (IGNORANDO) cê po<strong>de</strong> me dar, pai?<br />
CESAR (CONTRA A PAREDE. FUGINDO DA DECISÃO) <strong>de</strong>ixa eu pensar,<br />
tá?<br />
ILANA ah! você vai pensar! (VAI SAINDO) e eu estou indo assinar mais<br />
dois cheques, enquanto você pensa! (SAI, BATENDO A PORTA)<br />
ANTES QUE LEINHA DIGA ALGUMA COISA
CESAR eu vou pensar! já disse que vou pensar!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 62 . CASA DE AÍDA.INTERIOR . DIA<br />
AÍDA, CAMILA E LEINHA<br />
AÍDA o que é que você tava esperando? até parece que já não conhece!<br />
Nossa, eu perco a hora <strong>de</strong> novo!<br />
CAMILA VEM DO INTERIOR. PRONTA PARA SAIR<br />
CAMILA como é que eu tô, mãe? vou almoçar com aquele assessor do tio da<br />
Julia: o Dario! o que é que Leinha tem?<br />
AÍDA Ilana ataca outra vez!<br />
LEINHA cê acredita que aquela mulher tá proibindo papai <strong>de</strong> me dar a lente?<br />
CAMILA papai fica muito pressionado!<br />
AÍDA coitadinho, não é Camila? luta com uma dificulda<strong>de</strong>!<br />
enquanto a gente aqui nada em dinheiro!<br />
LEINHA ela <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>!<br />
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CAMILA não tô <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo, Leinha!... tô enten<strong>de</strong>ndo! a gente pressiona <strong>de</strong> um<br />
lado, a Ilana pressiona <strong>de</strong> outro...! pensa como é que fica a cabeça<br />
<strong>de</strong>le também!<br />
LEINHA pro filhinho <strong>de</strong>le com ela, tudo!<br />
CAMILA (TENTA CORTAR) Leinha, eu só tô dizendo que<br />
MÚSICA SOBE ENQUANTO AÍDA SAI DEIXANDO AS DUAS DISCUTINDO<br />
CORTE PARA<br />
CENA 63. PÁTEO DA CLÍNICA. EXTERIOR. DIA<br />
AÍDA ENTRANDO. CONFUSÃO. CIÇA, ESTAGIÁRIOS ALI. CEMA NERVOSA. MAICOM,<br />
TODOS CERCANDO UMA ÁRVORE. RITMO BEM MOVIMENTADO.<br />
AÍDA (VENDO A CONFUSÃO) que foi, gente?<br />
CRUZA COM CIDINHA QUE VEM AFLITA EM DIREÇÃO À CLÍNICA<br />
CIDINHA (PASSANDO DIRETO) só mesmo o dr Castanho!<br />
AÍDA VÊ ADEMIR TRANQÜILO, EM CIMA DA ÁRVORE<br />
CIÇA sua mãe e seu irmão estão aqui pra visitar você,<br />
A<strong>de</strong>mir!<br />
CEMA <strong>de</strong>sce, meu filho! faça isso com sua mãe não, Ô minha nossa<br />
senhora!
MAICO cê não queria ver meu MP-3 novo? eu <strong>de</strong>ixo cê escutar ele, <strong>de</strong>sce!<br />
AÍDA o enfermeiro sobe aí e te pega à força, A<strong>de</strong>mir!<br />
CIÇA vou contar até três! um...<br />
CEMA em tempo <strong>de</strong> cair <strong>de</strong>ssas alturas!<br />
CIÇA ...dois, três!<br />
AÍDA sua mãe trouxe a mariola que você gosta, A<strong>de</strong>mir! mostra pra ele,<br />
dona Cema, mostra!<br />
CEMA olhe aqui! olhe!<br />
CIÇA eu vou comer, não vai sobrar nenhuma pra você!<br />
CORTE PARA CASTANHO VINDO COM CIDINHA ATRÁS<br />
CASTANHO raio! o que é que ta acontecendo aí?<br />
CASTANHO CHEGA. OLHA PARA CIMA.<br />
CASTANHO A<strong>de</strong>mir! <strong>de</strong>sce! (PEGA UMA GILETE DO BOLSO E EXIBE PARA<br />
ADEMIR) <strong>de</strong>sce! <strong>de</strong>sce senão eu corto essa árvore já já!<br />
REAÇÃO DE ADEMIR, DESCENDO NA HORA. ENQUANTO CEMA O ABRAÇA E OS<br />
ALUNOS APLAUDEM<br />
AÍDA nossa! que idéia que o senhor teve!<br />
CASTANHO (CONVICTO, BRANDINDO A GILETE) e ele que não <strong>de</strong>scesse, pra<br />
ver se eu não cortava mesmo!<br />
CORTE PARA<br />
CENA 64 . TAJ. EXTERIOR. DIA<br />
MAYA VEM CORRENDO EM DIREÇÃO AO TAJ. PROCURA COM OS OLHOS.<br />
VÊ BAHUAN QUE VEM EM DIREÇÃO A ELA. OS <strong>DOIS</strong> SE APROXIMAM. EXPLORAR A<br />
SENSUALIDADE DOS OLHARES. AQUELE QUASE BEIJO TÍPICO DOS ENCONTROS DE<br />
AMOR DO CINEMA INDIANO.<br />
FINAL DO CAPITULO 1<br />
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