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Valéria Mac Knight - programa de pós-graduação em ciência da ...

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<strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong><br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestrado<br />

2007<br />

UFRJ<br />

Ciência <strong>da</strong> Literatura<br />

12


TEIA DE ENCANTOS: HORIZONTES NA POESIA<br />

<strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong><br />

Dissertação <strong>em</strong> Literatura Compara<strong>da</strong>, submeti<strong>da</strong> ao Programa <strong>de</strong> Pós Graduação <strong>em</strong><br />

Ciência <strong>da</strong> Literatura do Instituto <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau <strong>de</strong> Mestre <strong>em</strong><br />

Literatura Compara<strong>da</strong>, sob orientação do Professor Dr. Alberto Pucheu Neto.<br />

UFRJ<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

2007<br />

13


FOLHA DE APROVAÇÃO<br />

Dissertação <strong>de</strong> mestrado: Teia <strong>de</strong> encantos: horizontes na poesia<br />

Autor: <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong><br />

Orientador: Dr. Alberto Pucheu Neto<br />

Data <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa: 30 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 2007<br />

Aprova<strong>da</strong> por:<br />

Professor Alberto Pucheu Neto<br />

Instituto <strong>de</strong> Letras – Programa <strong>de</strong> <strong>pós</strong>-<strong>graduação</strong> <strong>em</strong> Ciência <strong>da</strong> Literatura <strong>da</strong> UFRJ<br />

Orientador/Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Banca Examinadora<br />

Professor Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho (UFRJ)<br />

Professora Doutora SONIA Regina Aguiar TORRES (UFF)<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

2007<br />

14


<strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong>, <strong>Valéria</strong>.<br />

Teia <strong>de</strong> encantos, horizontes na poesia. / <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong>. - Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

2007.<br />

Dissertação (Mestrado <strong>em</strong> Literatura Compara<strong>da</strong>) – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro – UFRJ, Instituto <strong>de</strong> Letras – Programa <strong>de</strong> Pós Gradua-<br />

cão <strong>em</strong> Ciência <strong>da</strong> Literatura, 2007.<br />

Orientador: Alberto Pucheu Neto<br />

1. Her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> Sócrates. 2. Contraponto a Hegel 3. Horizontes na poesia, uma<br />

leitura <strong>em</strong> Michel Collot. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Programa<br />

<strong>de</strong> Pós Graduação <strong>em</strong> Ciência <strong>da</strong> Literatura <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras.<br />

15


Esta Dissertação <strong>de</strong> Mestrado foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> na<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Janeiro, com apoio do<br />

Conselho Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento Científico e<br />

Tecnológico (CNPq).<br />

16


Dedico este trabalho a todos os<br />

que s<strong>em</strong>eiam encantamento.<br />

17


Quero registrar meu agra<strong>de</strong>cimento especial a<br />

Thereza Sita <strong>de</strong> Cars, minha tia queri<strong>da</strong>,<br />

que me proporcionou o essencial para<br />

prosseguir com esta pesquisa, à m<strong>em</strong>ória<br />

<strong>de</strong> meus pais e a meus filhos<br />

Marina e Flavinho.<br />

18


Po<strong>de</strong>ríamos perguntar porque os pensamentos mais profundos se<br />

encontram nos escritos dos poetas mais do que nos dos<br />

filósofos. A razão está no fato <strong>de</strong> os poetas ser<strong>em</strong><br />

movidos por entusiasmo e pela imaginação,<br />

enquanto os os filósofos são atraídos pelo raciocínio.<br />

Os poetas, pela força <strong>da</strong> imaginação,<br />

faz<strong>em</strong> os pensamentos jorrar e melhor brilhar.<br />

Descartes: Cogitaniones Privatae<br />

19


RESUMO<br />

Desenvolv<strong>em</strong>-se algumas reflexões acerca <strong>da</strong> poesia mo<strong>de</strong>rna e cont<strong>em</strong>porânea tendo como<br />

principal fun<strong>da</strong>mentação teórica idéias <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s por Michel Collot. Os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong><br />

arte lírica e as transformações do lirismo são <strong>de</strong>senvolvidos ao longo do trabalho, assim como<br />

o t<strong>em</strong>a central – a poesia lírica fora-<strong>de</strong>-si – que nos levou a buscar <strong>em</strong> Nietzsche um ponto <strong>de</strong><br />

parti<strong>da</strong>, por enten<strong>de</strong>r que o filósofo al<strong>em</strong>ão apresenta um olhar que encontra na arte uma<br />

solução para o <strong>de</strong>sencanto do hom<strong>em</strong> no mundo. Nos <strong>de</strong>bruçamos pelo caminho <strong>da</strong> poesia<br />

lírica através dos séculos: a partir <strong>de</strong> um olhar anacrônico lançado a esse percurso, pu<strong>de</strong>mos<br />

constatar que a poesia lírica n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre foi subjetiva, o que confirma a proposição <strong>de</strong> Collot<br />

<strong>em</strong> seu texto O sujeito lírico fora-<strong>de</strong>-si <strong>de</strong> que o lirismo não se encontra no subjetivo e que<br />

talvez tenha sido este período subjetivo um estado <strong>de</strong> exceção e não <strong>de</strong> regra. A mu<strong>da</strong>nça do<br />

conceito do eu lírico do poeta subjetivo para o eu lírico fora <strong>de</strong> si é trabalha<strong>da</strong> com alguma<br />

insistência, a fim <strong>de</strong> apresentar o enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> idéias que leve ao entendimento <strong>de</strong> que o<br />

poeta, estando fora <strong>de</strong> si, po<strong>de</strong> relacionar-se com o mundo como outro, na linguag<strong>em</strong>. Não foi<br />

escolhido um autor, mas vários, e o critério para escolha dos po<strong>em</strong>as foi entrelaçar teoria e<br />

prática poética <strong>de</strong> poetas que conseguiram subverter a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e introduzir encanto na<br />

triviali<strong>da</strong><strong>de</strong> do cotidiano, possibilitando novos horizontes <strong>em</strong> suas escritas. O t<strong>em</strong>a do<br />

horizonte é trabalhado a partir <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação teórica <strong>em</strong> Husserl e seu conceito <strong>de</strong><br />

estrutura <strong>de</strong> horizonte. Por analogia, o horizonte <strong>da</strong> escrita é o paradoxo <strong>da</strong> representação do<br />

real pela linguag<strong>em</strong>, <strong>da</strong> estampa <strong>da</strong> ficção compartilha<strong>da</strong> por vários sujeitos anacronicamente,<br />

a escrita atravessa os séculos e esfacela a lonjura e a distância, aproximando mundos,<br />

afastando e nos aproximando também <strong>de</strong> nós mesmos; o ser humano po<strong>de</strong> enfim <strong>de</strong>sdobrar<br />

sua reflexão acerca <strong>de</strong> sua existência e sua relação com o mundo, <strong>em</strong> uma confirmação <strong>de</strong> que<br />

literatura é vi<strong>da</strong>.<br />

20


ABSTRACT<br />

Some thinking on mo<strong>de</strong>rn and cont<strong>em</strong>poraneous poetry is unfol<strong>de</strong>d having as its main<br />

theoretical foun<strong>da</strong>tion some i<strong>de</strong>as <strong>de</strong>veloped by Michel Collot. The fun<strong>da</strong>ments of liric art<br />

and its transformations are <strong>de</strong>veloped as well as its main th<strong>em</strong>e – non subjective lyrical poetry<br />

– which led us to find in Nietzsche a starting point, due to the fact that this philosopher finds<br />

in art, a solution for the lack of enchantment associated with human existence. We focus on<br />

the lyric poetry transformations throughout the centuries: from an anachronic point of view of<br />

this process, we have searched, and were able to verify, that lyrical poetry was not always<br />

subjective, what confirms Collot’s proposition in his text Le sujet lyrique hors-<strong>de</strong>-soi, where<br />

he states that lyrism is not in the subjective, and that maybe this subjective period was the<br />

exception and not the rule. The change from the subjective concept of lyrism to an objective<br />

one is approached within some insistence, aiming at presenting the i<strong>de</strong>a enchainment which<br />

leads to the un<strong>de</strong>rstanding that the poet, out of himself, may report himself to the world as<br />

another, in language. Not one author was chosen but several, and the criteria for this choice<br />

was to intertwine poetical theory and practice from those who were able to subvert reality and<br />

introduce some enchantment in <strong>da</strong>ily life, making new horizons possible in their writings. The<br />

th<strong>em</strong>e Horizon is <strong>de</strong>veloped according to Husserl’s point of view and his concept of Horizon<br />

Structure. By analogy, the horizon of writing is the paradox of the representation of the real<br />

by language, a fiction pattern shared by several subjects anachronically, writing crosses<br />

centuries and breaks with distances, making worlds closer, pushing away, but also coming<br />

closer to ourselves; the human being may at last, unfold his/her reflection on existence and<br />

his/her report to the world, confirming that literature is life.<br />

21


Resumo<br />

Sumário<br />

Introdução p.12<br />

1 - Filósofos e lirismo<br />

1.1 - Her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> Sócrates p. 15<br />

1.2 - A leitura <strong>de</strong> Sócrates por Nietzsche: crítica à metafísica e à <strong>ciência</strong>. p. 16<br />

1.3 - A leitura <strong>de</strong> Nietzsche do cristianismo p. 26<br />

1.4 - A superação <strong>da</strong> metafísica pela arte p. 32<br />

2 - Contraponto a Hegel<br />

2.1 - Lírica: <strong>da</strong> música à poesia mo<strong>de</strong>rna p. 44<br />

2.2 - Hegel e os Primeiros Românticos Al<strong>em</strong>ães p. 48<br />

2.3 - A Poesia Lírica transmuta-se p. 51<br />

2.4 - A <strong>de</strong>sumanização do eu-lírico p. 61<br />

2.5 - O lirismo <strong>de</strong> Hegel dissolve-se na poética mo<strong>de</strong>rna: <strong>em</strong>erge sujeito lírico fora-<br />

<strong>de</strong>-si p. 64<br />

2.6. - O Anti-Lirismo Mo<strong>de</strong>rno p. 74<br />

3 - Horizonte e Poesia<br />

3.1 - Uma leitura <strong>de</strong> Michel Collot p. 77<br />

3.2 – Didi-Huberman e o conceito <strong>de</strong> aura <strong>em</strong> Walter Benjamin: aproximações com<br />

Michel Collot p. 95<br />

3.3 - O espanto na poesia p. 98<br />

4 – Conclusão p. 106<br />

5 – Bibliografia p. 113<br />

22


INTRODUÇÃO:<br />

O presente estudo busca <strong>de</strong>senvolver algumas reflexões acerca <strong>da</strong> poesia mo<strong>de</strong>rna e<br />

cont<strong>em</strong>porânea no Brasil, na França e nos Estados Unidos, entre outros, tendo como principal<br />

fun<strong>da</strong>mentação teórica algumas idéias <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s pelo intelectual Michel Collot, professor<br />

<strong>da</strong> Sorbonne, Paris III. Nascido <strong>em</strong> 1952, Collot começou sua vi<strong>da</strong> acadêmica <strong>em</strong> um<br />

momento <strong>em</strong> que a cena poética era domina<strong>da</strong> pela tendência ao fechamento do texto e pelo<br />

textualismo. A fim <strong>de</strong> elaborar uma alternativa teórica, ele se volta para a fenomenologia.<br />

Pouco <strong>de</strong> sua obra foi traduzi<strong>da</strong> para o português, até hoje, mas acreditamos na fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

suas pesquisas <strong>em</strong> livros como: L’Horizon fabuleux (Corti 1988), La poésie mo<strong>de</strong>rne et la<br />

structure d’horizon (PUF 1989), La Matière-émotion (PUF, 1997), Paysage et poésie (Corti,<br />

2005). Collot li<strong>de</strong>ra s<strong>em</strong>inários e colóquios sobre a poesia mo<strong>de</strong>rna e dirige o centro <strong>de</strong><br />

pesquisa écritures <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnité. Sua produção intelectual é vasta e compreen<strong>de</strong> muitos<br />

ensaios teóricos e poesias.<br />

O texto fun<strong>da</strong>mental para a presente pesquisa: O sujeito lírico fora <strong>de</strong> si <strong>de</strong> Michel<br />

Collot - nos levou a um percurso media-res. Primeiramente, fomos buscar <strong>em</strong> Nietzsche um<br />

ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> por enten<strong>de</strong>r que o filósofo al<strong>em</strong>ão apresenta um olhar que vê na arte, e na<br />

poesia uma solução para o que Sileno chamou <strong>de</strong> a maldição <strong>da</strong> existência humana; ou seja,<br />

que o melhor para os humanos seria não ter nascido, não ser, na<strong>da</strong> ser. 1 O prisma<br />

nitzscheano nos auxiliou a apresentar o fenômeno <strong>de</strong> total <strong>de</strong>sencanto que nossa civilização<br />

vive, mas on<strong>de</strong> há também a busca <strong>de</strong> um elo perdido com o sagrado, o que <strong>da</strong>ria uma<br />

significação para essa existência. O filósofo al<strong>em</strong>ão já percebera, então, a <strong>de</strong>lica<strong>da</strong> trama <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong> encontra<strong>da</strong> na poesia e como esta po<strong>de</strong> insuflar a vi<strong>da</strong>, com vi<strong>da</strong>.<br />

1 NIETZSCHE, Friedrich. . O Nascimento <strong>da</strong> Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São<br />

Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1992.<br />

23


A partir <strong>de</strong> um olhar retrospectivo lançado ao percurso <strong>da</strong> poesia lírica através do<br />

t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os antigos gregos, especialmente o peso <strong>da</strong> influência <strong>de</strong> Sócrates na<br />

conceituação <strong>da</strong> arte, e a posterior releitura <strong>de</strong> Nietzsche, constata-se que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre a<br />

poesia foi subjetiva, o que confirma a proposição <strong>de</strong> Collot <strong>de</strong> que o lirismo não se encontra<br />

no subjetivo, e que talvez tenha sido o período subjetivo um estado <strong>de</strong> exceção e não <strong>de</strong> regra.<br />

Procuramos conhecer o conceito <strong>de</strong> lirismo <strong>de</strong> Hegel e a contraposição dos primeiros<br />

românticos al<strong>em</strong>ães, e também acompanhamos algumas mu<strong>da</strong>nças na produção poética do<br />

século XX até a atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O t<strong>em</strong>a “horizonte”, essencial neste estudo, foi trabalhado a partir <strong>de</strong> um olhar<br />

fenomenológico que t<strong>em</strong> fun<strong>da</strong>mentação <strong>em</strong> Husserl e seu conceito <strong>de</strong> estrutura <strong>de</strong> horizonte.<br />

Em Didi-Huberman encontramos a contribuição <strong>de</strong> seu conceito <strong>de</strong> aura na obra <strong>de</strong> arte,<br />

que mostra uma curiosa aproximação com o pensamento <strong>de</strong> Michel Collot. George Didi-<br />

Huberman reelabora o conceito <strong>de</strong> aura <strong>de</strong> Walter Benjamin, <strong>de</strong>spindo-a <strong>da</strong> dimensão<br />

religiosa e conceituando a aura <strong>de</strong> um objeto <strong>de</strong> arte, ou imag<strong>em</strong>-aura, como aquilo que nos<br />

induz, ao levantar os olhos, a ver algo além.<br />

A obra <strong>de</strong> arte, na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>de</strong>ssacralizou, pelos processos <strong>de</strong> reprodução<br />

tecnológica e pela t<strong>em</strong>ática, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser um simulacro <strong>de</strong> mundo superior. Ela passou a<br />

associar-se a el<strong>em</strong>entos do cotidiano, per<strong>de</strong>ndo-se praticamente, ou assim parecendo ser, até<br />

que surge uma nova forma <strong>de</strong> colocar a manifestação estética – a obra <strong>de</strong> arte crítica, que é<br />

aquela que se impõe enquanto experiência, e o faz pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> uma<br />

linguag<strong>em</strong> crítica que reconfigura a banali<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo cotidiano, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

nos reconstitui como sujeitos.<br />

Por analogia, o horizonte <strong>da</strong> escrita é o paradoxo <strong>da</strong> representação do real pela linguag<strong>em</strong>,<br />

<strong>da</strong> estampa <strong>da</strong> ficção compartilha<strong>da</strong> por vários sujeitos anacronicamente, a escrita atravessa os<br />

séculos e esfacela a lonjura e a distância, aproximando mundos, afastando e nos aproximando<br />

24


também <strong>de</strong> nós mesmos. Encontrar, pois, os fios <strong>da</strong> trama <strong>da</strong>s relações entre e presença <strong>de</strong><br />

traços poéticos na filosofia e as formas poéticas do cotidiano, que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam nosso pensar<br />

e nos impregnam <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, é o que buscamos para aproximar as fronteiras entre poesia e<br />

filosofia. O presente trabalho realiza uma reflexão acerca <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> resgate <strong>da</strong><br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se ver a beleza, a poesia nos gastos horizontes do mundo atual. Poesia e<br />

encanto que acrescentam vi<strong>da</strong> à vi<strong>da</strong>, estimulando o ser humano a <strong>de</strong>sdobrar sua reflexão<br />

acerca <strong>de</strong> sua existência e relação com o mundo, <strong>em</strong> uma confirmação <strong>de</strong> que literatura é vi<strong>da</strong>.<br />

25


1. Filósofos e Lirismo<br />

1.1 Her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> Sócrates:<br />

A mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> implica a cons<strong>ciência</strong> <strong>de</strong> que não existe neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong> possível no olhar<br />

<strong>em</strong> relação ao passado. Todo olhar é interessado e informado pelo presente. O hom<strong>em</strong><br />

mo<strong>de</strong>rno experiencia, assim, o luto por saber jamais ser possível ver o por do sol como os<br />

gregos o viam.<br />

A m<strong>em</strong>ória não reconstitui a experiência, porém, ela possibilita uma experiência <strong>em</strong> si.<br />

A reconstituição do t<strong>em</strong>po se faz por exercício anacrônico que rompe com uma idéia linear<br />

historicista. É no exercício do sentido histórico, como afirmou T.S. Eliot, que o int<strong>em</strong>poral<br />

coexiste com o t<strong>em</strong>poral, e <strong>em</strong> que a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> tradição é modifica<strong>da</strong> pela introdução do novo.<br />

Nesse refazer, atribui-se ao passado uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> significações e um sabor que não havia no<br />

acontecimento original. Apesar <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>, tal exercício do pensamento torna-se<br />

valioso e válido à medi<strong>da</strong> que a construção <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos exercita novos enfoques<br />

que, por sua vez, modificam o olhar lançado.<br />

Ao <strong>de</strong>bruçar seu olhar sobre Sócrates, Nietzsche o faz a partir do peso <strong>de</strong> todos os<br />

séculos que os separam. Elabora uma imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Sócrates que subverte a idéia que<br />

comumente se faz <strong>de</strong>le, atribuindo a sua influência o gran<strong>de</strong> engano cometido ao inserir-se a<br />

arte na or<strong>de</strong>m do metafísico. Rompendo com a dinâmica apolínea e dionisíaca, o socratismo<br />

estético rompe os vínculos <strong>da</strong> arte com a vi<strong>da</strong>, e os laços <strong>de</strong> encantamento entre elas fenec<strong>em</strong>,<br />

pois a arte passa a trazer <strong>em</strong> si a própria reflexão, levando a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong><br />

comunhão com o uno original.<br />

A fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> teórico cuja meta é compreen<strong>de</strong>r o mundo, a vi<strong>da</strong> e a si<br />

mesmo e a instauração <strong>da</strong> <strong>ciência</strong> dota<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma crença petulante, <strong>de</strong> inabalável fé <strong>de</strong> que o<br />

pensar por meio <strong>da</strong> causali<strong>da</strong><strong>de</strong> é dotado do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> não apenas conhecer o ser mas, também,<br />

26


<strong>de</strong> corrigi-lo, supondo uma noção <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> universal, são conceitos que encontram a<br />

oposição <strong>de</strong> Nietzsche, quando ele privilegia a metafísica do artista e afirma ser a arte, e não a<br />

<strong>ciência</strong>, que t<strong>em</strong> mais valor, pelo fato <strong>de</strong> a primeira viabilizar a vi<strong>da</strong>.<br />

1.2 A leitura <strong>de</strong> Socrátes por Nietzsche: crítica à metafísica e à <strong>ciência</strong>.<br />

Somos her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> Sócrates, <strong>de</strong> uma lógica metafísica segundo a qual os valores<br />

racionais <strong>de</strong>v<strong>em</strong> prevalecer, tornando-nos homens teóricos. Tal contexto <strong>de</strong> pensamento, <strong>em</strong><br />

que o conhecimento teórico t<strong>em</strong> mais valor do que o instinto estético e do que a criação <strong>em</strong> si,<br />

faz com que Nietzsche rompa com o pensamento filosófico estabelecido e realize uma<br />

releitura dos gregos.<br />

Ao confessar a si mesmo que na<strong>da</strong> sabia, Sócrates buscou <strong>em</strong> Atenas várias pessoas<br />

<strong>em</strong>inentes e reconheceu, com espanto, que a falta <strong>de</strong> conhecimento imperava; <strong>de</strong>parou-se com<br />

a presunção do saber apenas por instinto. Por essa atitu<strong>de</strong>, o socratismo passou a con<strong>de</strong>nar a<br />

arte vigente. O <strong>da</strong>imon <strong>de</strong> Sócrates con<strong>de</strong>nou a arte trágica por esta não dizer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A ausência <strong>de</strong> certezas, a falta <strong>de</strong> robustez <strong>da</strong>s respostas o impulsionaram <strong>em</strong> direção a<br />

uma busca s<strong>em</strong> fim na qual só fazia comprovar que quando mais sábio que os <strong>de</strong>mais era<br />

apenas por reconhecer <strong>em</strong> si a ignorância. Sócrates esperava que os poetas explicass<strong>em</strong> a<br />

poesia que faziam, buscando conhecê-la. Ao julgar a poesia por um critério que havia sido<br />

<strong>de</strong>stinado pelo oráculo <strong>de</strong> Delfos, ou seja, busca o saber, Sócrates <strong>de</strong>u início a uma<br />

peregrinação que seria o legado <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a civilização oci<strong>de</strong>ntal.<br />

A ca<strong>da</strong> encontro com uma pessoa que julgava possuir algum saber, a profecia do<br />

oráculo se cumpria: Sócrates se percebia mais sábio exatamente porque não julgava que sabia<br />

<strong>de</strong> fato o que ignorava, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que reconhecia que seu saber não existia. Estaria<br />

Sócrates vivendo a serviço <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us?<br />

27


Por certo, arranjou inúmeros inimigos ao confrontá-los <strong>em</strong> seus interrogatórios. A<br />

atuação <strong>de</strong> Sócrates incomodou a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua época ao colocar homens <strong>em</strong>inentes e<br />

sábios frente a frente com seus não-saberes. Entretanto, sua procura se resumiu na busca do<br />

saber.<br />

Através dos séculos, <strong>em</strong> um movimento universalizante, procura-se saber, persegue-se<br />

o saber. O otimismo teórico que percebe no erro um mal <strong>em</strong> si mesmo, acrescido <strong>de</strong> um<br />

mecanismo <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> conhecimentos, formulações <strong>de</strong> conceitos, juízos e <strong>de</strong>duções, passou<br />

a ser valorado como ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> superior a outras aptidões. O el<strong>em</strong>ento otimista existente na<br />

essência <strong>da</strong> dialética vive seu júbilo pelo saber.<br />

A maldição <strong>de</strong> Sócrates fora proferi<strong>da</strong> pelo oráculo: buscar o saber. Somos her<strong>de</strong>iros<br />

<strong>de</strong> Sócrates quando o vínculo que estabelec<strong>em</strong>os com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é efetuado pelo cognoscível,<br />

quando engendramos uma época metafísica on<strong>de</strong> só se constró<strong>em</strong> percepções <strong>de</strong> mundo pelo<br />

conhecimento. A metafísica é a crença <strong>de</strong> existir alento, uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma explicação, porque<br />

nossa pequenez não comporta o na<strong>da</strong> saber. Quer<strong>em</strong>os saber, precisamos achar que sab<strong>em</strong>os.<br />

Nossa razão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> assunções lógicas, constructos, chão. Nietzsche percebe isso como<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e não como a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> propriamente dita. A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é uma<br />

crença – crença na superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> – e é nela que a <strong>ciência</strong> se fun<strong>da</strong>. 2<br />

Nietzsche realiza uma reflexão acerca <strong>da</strong> visão antropocêntrica <strong>de</strong> mundo teci<strong>da</strong> pelo<br />

hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a presunção nasci<strong>da</strong> com a invenção do conhecimento, que atua como um eixo<br />

a partir do qual todo o universo parece existir, até a criação <strong>da</strong>s convenções <strong>da</strong> língua. Ele<br />

percebe que a palavra é apenas a representação sonora <strong>de</strong> um estímulo nervoso 3 , <strong>de</strong> modo<br />

2 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. 2ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rocco, 1985. p.89.<br />

3 NIETZSCHE, Friedrich. Acerca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> Mentira no sentido extramoral. Tradução Helga Hoock<br />

Quadrado. Portugal, Printer Portuguesa, Relógio D’Água Editores, Junho <strong>de</strong> 1997. p. 216<br />

28


que não existe coincidência entre a coisa <strong>em</strong> si e suas <strong>de</strong>signações. Daí, a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> que há<br />

um uso in<strong>de</strong>vido do princípio <strong>da</strong> razão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a gênese <strong>da</strong> língua.<br />

Em um esforço para melhor <strong>de</strong>signar a sua relação com as coisas, o hom<strong>em</strong> recorre a<br />

palavras, estas, por sua vez, formam metáforas, pois exist<strong>em</strong> s<strong>em</strong> uma correspondência<br />

perfeita no plano real: uma estimulação nervosa traduzi<strong>da</strong> numa imag<strong>em</strong>! 4 ; imag<strong>em</strong> que é<br />

transforma<strong>da</strong> <strong>em</strong> som, e nessa operação dissonante, esboçamos nossas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

representar o mundo pela linguag<strong>em</strong>.<br />

Conseqüent<strong>em</strong>ente, o conceito, expresso por palavras, já nasce carregando essa cisão<br />

entre representação e coisa <strong>em</strong> si, acrescido do fato <strong>de</strong> <strong>em</strong>ergir por uma generalização, por<br />

<strong>de</strong>sejo e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> igualizar o que não é igual.<br />

Por ter um instinto gregário, o indivíduo busca a paz que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do impulso para a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, convencionando uma <strong>de</strong>signação comum para as coisas, com base na codificação <strong>da</strong><br />

língua. A diferença entre ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e mentira estaria na utilização <strong>da</strong>s convenções lingüísticas,<br />

ou seja, o mau uso <strong>da</strong> língua <strong>em</strong> proveito próprio e <strong>em</strong> prejuízo do grupo seria <strong>de</strong>signado<br />

como mentira. Ao contrário, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> geraria conseqüências agradáveis.<br />

Na busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, torna-se necessário aceitar a arbitrária convenção <strong>da</strong> língua,<br />

on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>signações não representam a coisa <strong>em</strong> si.<br />

A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é um exército móvel <strong>de</strong> metáforas, <strong>de</strong> metonímias, <strong>de</strong><br />

antropomorfismos, numa palavra, uma soma <strong>de</strong> relações humanas que foram<br />

poética e retoricamente intensifica<strong>da</strong>s, transpostas e adorna<strong>da</strong>s e que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

um longo uso parec<strong>em</strong> a um povo fixas, canônicas e vinculativas. 5<br />

A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> precisa <strong>da</strong>s palavras, assim como <strong>da</strong> língua, entretanto, nas palavras nunca<br />

é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que importa n<strong>em</strong> a expressão a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>: caso contrário não existiriam tantas<br />

línguas 6 . A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> seria então na<strong>da</strong> mais que ilusões que foram esqueci<strong>da</strong>s enquanto tais,<br />

4 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 219<br />

5 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 221<br />

6 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p.219<br />

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metáforas que foram gastas e que ficaram esvazia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sentido 7 . O impulso para a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong> uma razão social, é uma imposição. Nietzsche <strong>de</strong>screve ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como sendo um conceito<br />

multifacetado do qual a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> um dos seus lados é eleita para formar rubricas<br />

corretas e nunca subverter a or<strong>de</strong>m convenciona<strong>da</strong> 8 .<br />

Nesse contexto, ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro significa utilizar as mesmas metáforas que os outros,<br />

ou mentir segundo uma convenção estabeleci<strong>da</strong> <strong>de</strong> mentir <strong>de</strong> um modo gregário 9 . Esse<br />

sentimento <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é encontrado no esquecimento, quando não mais se possui a<br />

cons<strong>ciência</strong> <strong>de</strong> que a linguag<strong>em</strong> é uma mentira convenciona<strong>da</strong> e compartilha<strong>da</strong> por todos. No<br />

entanto, posto que ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro significa lançar mão <strong>da</strong>s metáforas usuais, que não<br />

representam ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente a coisa <strong>em</strong> si. É possível afirmar que tais metáforas po<strong>de</strong>m<br />

mesmo ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como ficções poéticas. Esse uso se faz por meio <strong>de</strong> uma ausência <strong>de</strong><br />

cons<strong>ciência</strong>, <strong>de</strong> um esquecimento coletivo <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa representação<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente existir e dá-se a sensação <strong>de</strong> produzir a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A <strong>ciência</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

existência e permanência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao passo que a arte é re<strong>de</strong>ntora - não há que se <strong>de</strong>cifrar<br />

enigmas, no universo <strong>da</strong> arte, é possível que o inexplicável permaneça assim enquanto tal,<br />

s<strong>em</strong> que se peçam respostas.<br />

As palavras não representam a coisa <strong>em</strong> si, afirma Nietzsche, e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é algo<br />

totalmente inapreensível. Em uma tentativa <strong>de</strong> tecer representações <strong>de</strong> mundo mais próximas<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o hom<strong>em</strong> forma conceitos. Conceitos nasc<strong>em</strong> pela igualização do não igual, o que<br />

viabiliza a construção <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. O hom<strong>em</strong> assume o controle <strong>de</strong> seu agir e não tolera<br />

as abstrações, as impressões, as intuições. Somos ensinados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo a <strong>de</strong>scolorir o mundo<br />

para nos igualizar, nos uniformizar, tornando-nos homens teóricos ao assumirmos a forma <strong>de</strong><br />

7 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 221<br />

8 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 223<br />

9 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. pp. 221-222<br />

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conceitos. O hom<strong>em</strong> se torna um conceito, segundo Nietzsche, a existência se resume ao que<br />

po<strong>de</strong> ser aprendido racionalmente pois a intuição, individual e única, é evita<strong>da</strong> por escapar do<br />

esqu<strong>em</strong>a classificatório do exato e frio edifício dos conceitos. Ao dissolver a imag<strong>em</strong> <strong>em</strong> um<br />

conceito, o hom<strong>em</strong> a<strong>de</strong>stra seu agir, enquanto racional, pois acredita po<strong>de</strong>r dominar as<br />

abstrações.<br />

Des<strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s nosso mundo se resume ao que é e ao que não é. Ser ou não ser.<br />

Muitas vezes, para comunicar seu pensamento por meio <strong>de</strong> palavras, Nietzsche cria uma<br />

imag<strong>em</strong> que nenhuma palavra <strong>em</strong> si mesma po<strong>de</strong> equivaler, mas que no entanto <strong>de</strong>calca o que<br />

ele <strong>de</strong>seja comunicar. Ao lançar mão <strong>de</strong> metáforas, Nietzsche se aproxima <strong>da</strong> poesia e<br />

mo<strong>de</strong>la seu pensamento, apresentando sua idéia <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> discorrer sobre um t<strong>em</strong>a dialética e<br />

metafisicamente, aproximando-se do universo poético on<strong>de</strong> é possível a <strong>de</strong>smobilização do<br />

ser ou não ser.<br />

A fixação <strong>de</strong> conceitos <strong>de</strong>limita a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> para que esta se resuma ao que foi<br />

estipulado. A dimensão humana se apequena <strong>em</strong> relação análoga a <strong>da</strong> mensuração <strong>de</strong> mundo<br />

pelo hom<strong>em</strong>, pois, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ele cria visões <strong>de</strong> mundo e constrói ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s a<br />

partir <strong>de</strong> si, relaciona-se com o que percebe do mundo. A percepção está controla<strong>da</strong> pelo que<br />

é consi<strong>de</strong>rado ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro. Logo, se o hom<strong>em</strong> se fun<strong>da</strong> enquanto construtor, ele também se<br />

aprisiona pelas convenções que fabrica, e pelos conceitos antropocêntricos<br />

<strong>de</strong>ste modo, uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é trazi<strong>da</strong> à luz, mas é <strong>de</strong> valor limitado, quero dizer<br />

que ela é do princípio ao fim antropomórfica e que não contém um único ponto<br />

que seja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>em</strong> si, real e universalmente válido, a não ser para o<br />

hom<strong>em</strong> 10 .<br />

A presunção do conhecimento turva o valor <strong>da</strong> existência. A invenção do<br />

conhecimento pelo ser humano reflete a metamorfose do mundo por meio <strong>de</strong> uma<br />

compreensão <strong>de</strong> mundo como coisa antropomórfica, pois toma o hom<strong>em</strong> como parâmetro <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong>s as coisas. Essa existência antropocêntrica é o berço <strong>da</strong> <strong>ciência</strong> que constrói uma<br />

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<strong>de</strong>lica<strong>da</strong> teia por meio <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> conceitos, no esforço <strong>de</strong> controle e posse <strong>da</strong><br />

totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um mundo <strong>em</strong>pírico mol<strong>da</strong>do a partir do prisma humano, <strong>de</strong> modo que o<br />

exercício <strong>da</strong> razão se torna condição para que o hom<strong>em</strong> não se perca <strong>de</strong> si próprio. Esse<br />

hom<strong>em</strong> racional realiza enorme esforço para arrumar e manter a rigi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>sses conceitos,<br />

como se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse a própria razão t<strong>em</strong>endo per<strong>de</strong>r a si mesmo. O intelecto é a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> por<br />

meio <strong>da</strong> qual o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a sua existência, e por meio <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> cena, o hom<strong>em</strong><br />

representa, para si e para os outros, exercícios <strong>de</strong> dissimulação.<br />

Con<strong>de</strong>nado à limitação <strong>de</strong> sua visão humana <strong>de</strong> mundo, ao tentar fugir <strong>da</strong>s<br />

contradições do irracional, o hom<strong>em</strong> cai <strong>em</strong> um absurdo do qual quer se apropriar como<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao ver o mundo apenas por essa faceta, esquecendo que as metáforas não são a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> própria coisa, o hom<strong>em</strong> também esquece <strong>de</strong> si enquanto sujeito. Nesse caso, a<br />

percepção correta significaria: a expressão a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> <strong>de</strong> um objeto no sujeito. 11<br />

O que Nietzsche parece estar <strong>de</strong>nunciando é esse afunilamento <strong>em</strong> que a percepção do<br />

real toma como prisma único o privilégio do conhecimento antropocêntrico, científico, <strong>de</strong><br />

uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> eterna. Pela racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, por meio <strong>da</strong> lógica, o lógos apo<strong>de</strong>iktos caracteriza-se<br />

(...) por ser a criação, pelo pensamento, <strong>de</strong> um discurso <strong>de</strong>monstrativo que se calca no<br />

oferecimento <strong>de</strong> provas para legitimar aquilo que se esforça <strong>em</strong> expor. Na lógica, está<br />

vinculado aos silogismos que, mat<strong>em</strong>aticamente, não po<strong>de</strong>m ser refutados. Assim, o<br />

logos apo<strong>de</strong>iktos, é a fala exigi<strong>da</strong> pelo ramo <strong>da</strong> filosofia tornado prepon<strong>de</strong>rante e que,<br />

<strong>em</strong> sua história, na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, veio a se transformar <strong>em</strong> <strong>ciência</strong>. É ela que naufraga<br />

<strong>em</strong> seus limites: tornando-se impossível, passa a ser apresenta<strong>da</strong> como inferior a outra<br />

que é poética por ser imagética e por na<strong>da</strong> precisar comprovar, já que mostra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> si<br />

mesma o que dispõe. 12<br />

A crítica nietzschiana à <strong>ciência</strong> se dá pelo fato <strong>de</strong>sta se preocupar com a busca <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A metafísica nasceu pela vonta<strong>de</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. E a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é vista como uma<br />

10 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 224<br />

11 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 225<br />

12 PUCHEU, Alberto. Intervenções na relação entre poesia e filosofia: uma fronteira <strong>de</strong>sguarneci<strong>da</strong>. Tese <strong>de</strong><br />

Doutorado, UFRJ 1999. p. 108<br />

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construção moral a serviço <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r, porque “a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”, ain<strong>da</strong> segundo Nietzsche, está<br />

obriga<strong>da</strong> a não subverter a or<strong>de</strong>m social n<strong>em</strong> as hierarquias, assim como está con<strong>de</strong>na<strong>da</strong> a<br />

formar rubricas corretas. A <strong>de</strong>núncia dos fun<strong>da</strong>mentos morais <strong>da</strong> <strong>ciência</strong>, por sua vez, não<br />

po<strong>de</strong> recair <strong>em</strong> um arcaísmo científico, metafísico, lançando mão dos mesmos mecanismos <strong>de</strong><br />

crítica que estão sendo reavaliados, <strong>de</strong> modo que um estudo <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m incorreria apenas <strong>em</strong><br />

uma substituição do objeto. O que Nietzsche propõe é um afastamento do enfoque<br />

proporcionado pelo mo<strong>de</strong>lo científico vigente para refletir sobre a <strong>ciência</strong>. Ele oferece uma<br />

contra-estrutura <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> mundo, esvaziando a filosofia <strong>da</strong> análise e <strong>da</strong> lógica e<br />

propondo uma forma estética <strong>de</strong> apresentação do pensamento. Ao esvaziar a arena <strong>em</strong> que os<br />

filósofos habitaram por tanto t<strong>em</strong>po, Nietzsche resgata a arte trágica como ambiência <strong>de</strong> vi<strong>da</strong><br />

e propõe a discussão <strong>da</strong> <strong>ciência</strong> por meio <strong>de</strong> uma força alheia a ela: a arte. Tal proposição<br />

rompe com as formas vigentes <strong>de</strong> representações i<strong>de</strong>árias, e a dinâmica conti<strong>da</strong> na arte, cujo<br />

espírito estético carrega a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> resgate do ser humano à vi<strong>da</strong>, oferece-se como a<br />

or<strong>de</strong>m mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> para tal reflexão, por não estar a serviço <strong>de</strong> uma moral, não buscar uma<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, n<strong>em</strong> se submeter a interesses e po<strong>de</strong>res morais.<br />

Ao realizar esse mergulho nos helenos, ele não cai na repetição do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

julgamento <strong>de</strong> sua época, o qual critica, sendo inovador ao propor a releitura dos gregos<br />

<strong>de</strong>spi<strong>da</strong> do enfoque ju<strong>da</strong>ico-cristão que mol<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> raciocinar e limita as<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s do pensar. Exercita um resgate que transformaria todo o mundo. Oferece,<br />

assim, sua leitura dos gregos e, mesmo não sendo um grego, exercita vigores com<br />

flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> inovadora. Nietzsche dialoga com Platão e não com qu<strong>em</strong> interpretou Platão <strong>em</strong><br />

diversas épocas.<br />

Ao <strong>de</strong>itar os olhos <strong>em</strong> Platão, Nietzsche dá a enten<strong>de</strong>r que vê nele um poeta. Poeta<br />

paradoxal que, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que traz a antiga arte no corpo <strong>de</strong> seus diálogos, tece a<br />

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linguag<strong>em</strong> por meio <strong>de</strong> uma nova estética na qual rompe com a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> lingüística; e é<br />

criador <strong>de</strong><br />

(...) uma forma <strong>de</strong> arte que t<strong>em</strong> parentesco interno justamente com as formas <strong>de</strong> arte<br />

vigentes e por ele repeli<strong>da</strong>s. (...) Mas com isso o pensador Platão chegou por um<br />

<strong>de</strong>svio até lá on<strong>de</strong>, como poeta, s<strong>em</strong>pre se sentira <strong>em</strong> casa (...) Se a tragédia havia<br />

absorvido <strong>em</strong> si todos os gêneros <strong>de</strong> arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por sua vez,<br />

do diálogo platônico, o qual, nascido, por uma mistura <strong>de</strong> todos os estilos e formas<br />

prece<strong>de</strong>ntes, paira no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e com<br />

isso infringe igualmente a severa lei antiga <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> forma lingüística. O diálogo<br />

platônico foi, por assim dizer, o bote <strong>em</strong> que a velha poesia naufragante se salvou com<br />

todos os seus filhos. 13<br />

Nietzsche percebe <strong>em</strong> Platão a criação <strong>de</strong> uma nova estética <strong>em</strong> que a poesia vive com<br />

a filosofia dialética. Entretanto, vê a pressão <strong>de</strong> Sócrates na esfera <strong>da</strong> arte como <strong>de</strong>moníaca,<br />

afirma que esse pensamento filosófico apequena a arte, na or<strong>de</strong>m do dialético, e que as ações<br />

racionais aniquilam os rompantes dionisíacos. Essa sublime ilusão metafísica é adita<strong>da</strong> como<br />

instinto à <strong>ciência</strong>, conduzindo-a continuamente a seus limites, on<strong>de</strong> ela t<strong>em</strong> <strong>de</strong> transmutar-se<br />

<strong>em</strong> arte 14 .<br />

Ao probl<strong>em</strong>atizar a <strong>ciência</strong> <strong>em</strong> uma época <strong>em</strong> que esta ascendia a um status quase<br />

divino, Nietzsche transgri<strong>de</strong> os limites <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po; ele não apenas enten<strong>de</strong> a <strong>ciência</strong> como<br />

questionável, mas propõe o terreno <strong>da</strong> arte para tal análise, pois o probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong> <strong>ciência</strong> não<br />

po<strong>de</strong> ser reconhecido no terreno <strong>da</strong> <strong>ciência</strong>. 15 Pela primeira vez, um olhar mo<strong>de</strong>rno ousou<br />

aproximar essas duas or<strong>de</strong>ns: ver a <strong>ciência</strong> com a óptica do artista, mas a arte, com a <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> 16 .<br />

A filosofia trágica proposta pelo filósofo-poeta al<strong>em</strong>ão preten<strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r a relativizar o<br />

conhecimento, além <strong>de</strong> recriar um espaço para a ilusão, para a ficção, para a arte. Nietzsche<br />

13 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento <strong>da</strong> Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Traduzido por J.<br />

Guinsburg. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1992. p. 88<br />

14 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 93<br />

15 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 15<br />

16 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 15<br />

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não propõe o aniquilamento <strong>da</strong> <strong>ciência</strong> mas afirma ser a filosofia e a arte que <strong>de</strong>v<strong>em</strong><br />

estabelecer o seu valor, por estar<strong>em</strong> além <strong>da</strong> moral que a constitui. A força está <strong>em</strong> dominar<br />

essa compulsão pelo conhecimento <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> uma afirmação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Nietzsche pensa a <strong>ciência</strong> a partir <strong>da</strong> arte à medi<strong>da</strong> que impõe o valor <strong>da</strong> ilusão como<br />

um valor tão importante quanto a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Reconhece que a vi<strong>da</strong> t<strong>em</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ilusão e<br />

que os conhecimentos, sejam ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros ou falsos, se estabeleceram pela força <strong>de</strong> prova. Em<br />

suas inversões, o filósofo opõe o trágico ao lógico e enfoca o conhecimento com critérios<br />

estéticos, para ele<br />

não existe filosofia à parte, distinta <strong>da</strong> <strong>ciência</strong>: lá como aqui se pensa<br />

do mesmo modo. O fato é <strong>de</strong> que uma filosofia in<strong>de</strong>monstrável ain<strong>da</strong> tenha um<br />

valor e, na maior parte <strong>da</strong>s vezes, mais do que uma proposição científica,<br />

provém do valor estético <strong>de</strong>ste filosofar, isto é, <strong>de</strong> sua beleza e <strong>de</strong> sua<br />

sublimi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O filosofar ain<strong>da</strong> está presente como obra <strong>de</strong> arte, mesmo que não<br />

possa <strong>de</strong>monstrar como construção filosófica 17 .<br />

O próprio pensamento <strong>de</strong> Nietzsche externa-se por meio <strong>de</strong>sse valor estético. O<br />

enfeitiçamento <strong>de</strong> seus aforismos nos espanta e incita o pensamento pela força estética: <strong>em</strong><br />

um amálgama <strong>de</strong> luz e forma, seu filosofar cintila <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> explicar, causando impacto e<br />

encanto.<br />

Segundo ele, a pretensão científica <strong>de</strong> valorização <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> institui a perseguição ao<br />

erro. Os horizontes do pensamento <strong>de</strong> Nietzsche estão além do b<strong>em</strong> e do mal, libertos <strong>de</strong><br />

conceitos <strong>de</strong> moral e <strong>da</strong> noção persecutória <strong>de</strong> erro, sendo por isso alcançado por poucos. Para<br />

ser um espírito livre, há que se <strong>de</strong>spir <strong>da</strong> visão <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> civilização metafísica socrática,<br />

que se tornou constituinte <strong>de</strong> um padrão <strong>de</strong> certo e errado coletivo; há que se buscar outros<br />

modos <strong>de</strong> apreensão <strong>de</strong> mundo que não se dê<strong>em</strong> apenas via conhecimento e análise, lógica e<br />

razão; há que se relativizar ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Quando ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s e po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser eternos e<br />

universais, e são relativizados, <strong>de</strong> modo que todo o sist<strong>em</strong>a social baseado na <strong>ciência</strong>, <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>terminado sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> organização política e na religião passa a ser questionado. Se uma<br />

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nova visão <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> for exercita<strong>da</strong>, fora do esqu<strong>em</strong>a proposto, s<strong>em</strong> buscar conhecimento ou<br />

uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, to<strong>da</strong> uma or<strong>de</strong>m <strong>em</strong> que as pessoas se encaixam é <strong>de</strong>sarruma<strong>da</strong>, e outras po<strong>de</strong>m<br />

ser imagina<strong>da</strong>s.<br />

A dialética socrática do saber tornou a todos Sísifo pois, <strong>em</strong> um perseguir s<strong>em</strong> fim,<br />

<strong>de</strong>scobre-se, ca<strong>da</strong> vez que e quanto mais avançamos, que na<strong>da</strong> sab<strong>em</strong>os.<br />

A vi<strong>da</strong> esvazia<strong>da</strong> <strong>de</strong> mitos, ou supri<strong>da</strong> apenas com o mito cristão <strong>em</strong> que a ela se<br />

apresenta como algo que não é digno <strong>de</strong> ser vivido, torna-se vi<strong>da</strong> esvazia<strong>da</strong> <strong>de</strong> encanto. Tal é<br />

a herança <strong>de</strong> Sócrates: a formação <strong>de</strong> um olhar <strong>de</strong> mundo calcado na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do saber.<br />

Quão incompreensível haveria <strong>de</strong> parecer a um grego autêntico o <strong>em</strong> si compreensível<br />

hom<strong>em</strong> culto mo<strong>de</strong>rno que é FAUSTO 18 . O substrato <strong>de</strong> nossa contraditória cultura é o<br />

otimismo <strong>da</strong> lógica que, por sua vez ampara-se <strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s eternas e no po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> <strong>de</strong>cifração<br />

dos enigmas. Porém, as conseqüências <strong>de</strong>ssa serenojoviali<strong>da</strong><strong>de</strong> teórica começam a aparecer e<br />

hoje já é possível <strong>de</strong>linear um mal que nos acomete: o <strong>de</strong>sencantamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Porém, a<br />

avi<strong>de</strong>z do insaciável conhecimento otimista <strong>de</strong> Sócrates po<strong>de</strong> transmutar-se <strong>em</strong> fome <strong>de</strong> arte e<br />

possibilitar o resgate do prazer <strong>de</strong> existir.<br />

Nietzsche propõe um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> filósofo ligado aos pré-socráticos, entre os quais<br />

existe uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> entre pensamento e vi<strong>da</strong>. A ruptura feita por Nietzsche foi contra a<br />

filosofia metafísica que pregava um pensamento puramente racional. Segundo ele, querer<br />

reduzir a filosofia a uma teoria do conhecimento chega a ser cômico. O filósofo al<strong>em</strong>ão nos<br />

apresenta uma outra or<strong>de</strong>m do pensar, na qual a apreciação do valor do conhecimento <strong>de</strong>ve<br />

estar situa<strong>da</strong> entre uma plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> valores, s<strong>em</strong> gozar <strong>de</strong> privilégio especial, <strong>de</strong>scortina,<br />

ain<strong>da</strong>, o exercício <strong>da</strong> afirmação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> seu julgamento.<br />

17 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. 2ª edição, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco. 1985, pp. 52-53<br />

18 NIETZSCHE, Friedrich. . O Nascimento <strong>da</strong> Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São<br />

Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1992, p.109<br />

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Ele fez do aforismo uma obra <strong>de</strong> arte. A breve formulação lhe permite espressar seu<br />

pensamento intuitivo por imagens mais do que por longas exposições abstratas, <strong>em</strong> que<br />

conceitos são extenuamente enca<strong>de</strong>ados, obtendo o efeito <strong>de</strong> inigualável sedução.<br />

1.3 A leitura <strong>de</strong> Nietzsche do cristianismo<br />

Em sua <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novos vínculos com a vi<strong>da</strong>, Nietzsche afirma haver na doutrina<br />

cristã uma preocupação puramente moral que con<strong>de</strong>na a arte à or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> mentira. Conclui ser<br />

esse enfoque não apenas adverso à arte, como também hostil à vi<strong>da</strong>. Em prol <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>em</strong> um<br />

movimento <strong>de</strong> resgate, cria um saber que une a arte à vi<strong>da</strong>, na or<strong>de</strong>m do dionisíaco.<br />

O cristianismo, para Nietzsche, representa a figuração mais extravagante do t<strong>em</strong>a moral<br />

que a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> já conhecera então, sendo a maior contraposição à justificativa puramente<br />

estética do mundo. E o fato <strong>de</strong> ser somente moral <strong>de</strong>sterra to<strong>da</strong> arte ao reino <strong>da</strong> mentira –<br />

negando-a, reprovando-a e con<strong>de</strong>nando-a.<br />

Tal modo <strong>de</strong> pensar e valorar, adverso à arte, é permeado <strong>de</strong> hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> à vi<strong>da</strong>, pois<br />

to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

perspectivístico e do erro 19 . O cristianismo é essencialmente uma doutrina <strong>de</strong> asco e fastio <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong>, sob a crença <strong>de</strong> uma outra vi<strong>da</strong> melhor. Uma vonta<strong>de</strong> incondicional <strong>de</strong> ver a<br />

vi<strong>da</strong> apenas sob valores morais; t<strong>em</strong>endo a beleza e os afetos, a sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong> revela-se como<br />

uma severa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio, <strong>em</strong> que a vi<strong>da</strong> se <strong>em</strong>pobrece. Tal esvaziamento doentio<br />

ratifica a moral cristã <strong>de</strong> que a vi<strong>da</strong> é essencialmente amoral, e por isso, <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha<strong>da</strong>,<br />

nega<strong>da</strong>, senti<strong>da</strong> como indigna.<br />

O cristianismo, <strong>em</strong> sua reflexão, travou uma guerra <strong>de</strong> morte com o hom<strong>em</strong> forte. Por<br />

meio <strong>de</strong> censuras, culpas e construções i<strong>de</strong>árias e morais, corrompeu a vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> no hom<strong>em</strong>.<br />

19 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 19<br />

37


A humani<strong>da</strong><strong>de</strong> passou a <strong>de</strong>sprezar características inerentes ao ser humano, negando-se a si<br />

mesma, hostilizando paixões revigorantes.<br />

Os teólogos e filósofos, ao moralizar<strong>em</strong> a existência, trouxeram uma condição vital<br />

prejudicial à vi<strong>da</strong>. Haverá por acaso algo que <strong>de</strong>strua alguém mais rapi<strong>da</strong>mente do que<br />

trabalhar, pensar, sentir, s<strong>em</strong> uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> interior, s<strong>em</strong> uma escolha profun<strong>da</strong>mente<br />

pessoal, s<strong>em</strong> prazer, como autômato do <strong>de</strong>ver? Eis precisamente a receita <strong>da</strong> déca<strong>de</strong>nce, <strong>da</strong><br />

própria imbecili<strong>da</strong><strong>de</strong>... 20<br />

Apesar <strong>de</strong> também ser o mais interessante, o hom<strong>em</strong> é o animal mais <strong>de</strong>sviado <strong>de</strong> seus<br />

instintos, e a causa <strong>de</strong>ssa negação <strong>de</strong> nós mesmos está no cristianismo, pois n<strong>em</strong> a moral, n<strong>em</strong><br />

a religião estão <strong>em</strong> contato com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nietzsche <strong>de</strong>monstra ser possível ver a teologia<br />

como um universo <strong>de</strong> pura ficção que, ao contrário <strong>de</strong> nos enlevar, falseia a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong>spreza a vi<strong>da</strong> terrena: pois que todo esse mundo <strong>de</strong> ficções t<strong>em</strong> a sua orig<strong>em</strong> no ódio contra<br />

o natural, contra a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>! É a expressão <strong>de</strong> um profundo mal-estar perante o real 21 .<br />

O sentimento <strong>de</strong> pena prevalece sobre o sentimento <strong>de</strong> prazer e essa dinâmica é a<br />

característica <strong>de</strong>ssa moral e religião fictícias que contradiz<strong>em</strong> a vi<strong>da</strong> <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> afirmá-la.<br />

Nietzsche percebe que o cristianismo só po<strong>de</strong> ser compreendido no terreno <strong>em</strong> que se<br />

<strong>de</strong>senvolveu e, contrariamente ao senso comum, não é um movimento <strong>de</strong> reação ao ju<strong>da</strong>ísmo,<br />

mas sua própria conseqüência. Dos ju<strong>de</strong>us, herdou a falsificação <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a natureza e<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, fizeram a si próprios um antítese <strong>da</strong>s condições naturais 22 . Foi nesse terreno falso<br />

que o cristianismo se <strong>de</strong>senvolveu. Há uma diferença <strong>de</strong> como Nietzsche vê Cristo e como vê<br />

o cristianismo. Percebe <strong>em</strong> Jesus um hom<strong>em</strong> que se rebelou contra a or<strong>de</strong>m estabeleci<strong>da</strong>.<br />

Aquele que havia suprimido a idéia <strong>de</strong> pecado e aproximado o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus. Eis que a<br />

doutrina o transforma no bo<strong>de</strong> expiatório do mundo.<br />

20 NIETZSCHE, O Anticristo. São Paulo, Martin Claret, 2004. p. 45<br />

21 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 49<br />

22 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 58<br />

38


O discípulo Paulo apresenta a idéia <strong>de</strong> morte associa<strong>da</strong> à vi<strong>da</strong> eterna como se fosse<br />

uma recompensa exterminando para s<strong>em</strong>pre o esforço por um movimento <strong>em</strong> prol <strong>da</strong><br />

felici<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a terra. Este, afirma Nietzsche, <strong>de</strong>slocou o centro <strong>de</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> existência<br />

para colocá-lo além, na construção ilusória <strong>de</strong> ressurreição.<br />

Quando se coloca o centro <strong>de</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não na vi<strong>da</strong>, mas no “além” – no na<strong>da</strong><br />

– tira-se à vi<strong>da</strong> o seu centro <strong>de</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong>. A gran<strong>de</strong> mentira <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong><strong>de</strong> pessoal<br />

<strong>de</strong>strói to<strong>da</strong> a razão, to<strong>da</strong> a natureza do instinto – tudo o que há nos instintos, <strong>de</strong><br />

benéfico, <strong>de</strong> vivificante, tudo o que promete o futuro, suscita agora a <strong>de</strong>sconfiança.<br />

Viver <strong>de</strong> tal maneira que já não se tenha razão <strong>de</strong> viver, isto converte-se agora na razão<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>... 23 .<br />

A religião cristã não toca a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> nenhum ponto e com isso nega a <strong>de</strong>us<br />

enquanto Deus. A fé é vista como uma mentira – necessária – que reduz Deus a na<strong>da</strong>, e a<br />

religião t<strong>em</strong>e a <strong>ciência</strong> pelo fato <strong>de</strong>sta tornar o hom<strong>em</strong> igual a Deus. Com isto a <strong>ciência</strong> torna-<br />

se coisa proibi<strong>da</strong>. Para Nietzsche a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, a ociosi<strong>da</strong><strong>de</strong> evocam os pensamentos, todos os<br />

pensamentos são maus pensamentos... o hom<strong>em</strong> não <strong>de</strong>ve pensar 24 .<br />

A fim <strong>de</strong> evitar que o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>scobrisse a <strong>ciência</strong> e progredisse no conhecimento foi<br />

cria<strong>da</strong> a idéia <strong>de</strong> pecado. A culpabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e o castigo foram inventados contra a <strong>ciência</strong><br />

colocando o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma situação <strong>em</strong> que sua vi<strong>da</strong> carece <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção. Evitar o prazer –<br />

como pecado – e buscar o sofrimento – expiação do pecado – e possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção são<br />

alguns dos maiores males criados pelo cristianismo. Infelizmente, tal visão <strong>de</strong> mundo está <strong>de</strong><br />

tal forma arraiga<strong>da</strong> no comportamento <strong>da</strong>s pessoas há tantos séculos que uma intervenção<br />

nesse modus operandi é algo muito <strong>de</strong>licado. É um sist<strong>em</strong>a que se mantém por si <strong>em</strong> uma<br />

dinâmica composta pelo evitar do prazer e o buscar e aceitar do sofrimento como expiação<br />

dos pecados tornando o hom<strong>em</strong> facilmente manipulável e <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Ain<strong>da</strong> mais pelo<br />

fato <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>ver leal<strong>da</strong><strong>de</strong> a um lí<strong>de</strong>r a qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>votar leal<strong>da</strong><strong>de</strong> incontestavelmente. O<br />

pecado (...) essa forma <strong>de</strong> poluição <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> por excelência, foi inventado para tornar<br />

23 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 78<br />

39


impossível a <strong>ciência</strong>, a cultura, to<strong>da</strong> a elevação e to<strong>da</strong> a nobreza do hom<strong>em</strong>; o sacerdote<br />

reina pela invenção do pecado 25 .<br />

O cristianismo se fortalece com sofrimento, e este é inventado <strong>de</strong> modo a criar a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> absolvição e do perdão. Nietzsche vê a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> no ceticismo e encara as<br />

convicções como prisões; o cristianismo como uma gran<strong>de</strong> compilação <strong>de</strong> mentiras; negação<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong>sprezo do corpo, do sexo e do prazer, enfim, o cristianismo é vazio <strong>de</strong> fins<br />

“sagrados”, mais parece um livro <strong>de</strong> regras <strong>de</strong> comportamento. Guia a conduta humana<br />

insuflando a crença <strong>de</strong> que esta vi<strong>da</strong> não é digna e há outra melhor, <strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> é<br />

pecador <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a orig<strong>em</strong>. Um livro <strong>de</strong> códigos morais que supõe a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

do que seja correto, <strong>da</strong>í a construção <strong>da</strong> divin<strong>da</strong><strong>de</strong> e imperativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas leis incontestáveis.<br />

A mentira serve para conservar ou <strong>de</strong>struir algo. A legislação religiosa t<strong>em</strong> o intuito <strong>de</strong><br />

organizar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. O cristianismo t<strong>em</strong> como missão a manutenção do hom<strong>em</strong> sob seu<br />

domínio pelo medo e pela culpa. Criou a dicotomia do céu e do inferno. O sacrifício passou a<br />

ser visto como nobre e necessário, tecendo <strong>em</strong> um texto subliminar a aversão à vi<strong>da</strong> e<br />

transmitindo a idéia <strong>de</strong> corrupção <strong>da</strong> alma.<br />

Para Nietzsche, Paulo foi um déspota s<strong>em</strong> respeito pela ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e pôs na boca do<br />

“Salvador” idéias que fascinavam o povo e assim se impregnou a idéia <strong>de</strong> que havia a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> fé na imortali<strong>da</strong><strong>de</strong> para <strong>de</strong>sprezar a vi<strong>da</strong> na terra, aniquilando-a.<br />

To<strong>da</strong> uma evolução e conhecimento que a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> já havia alcançado caíram por<br />

terra e a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> mergulhou <strong>em</strong> um período <strong>de</strong> trevas que durou por séculos.<br />

Lançar os olhos sobre o mundo antigo possibilita um resgate <strong>de</strong> muitas conquistas que<br />

foram cala<strong>da</strong>s, abandona<strong>da</strong>s e esqueci<strong>da</strong>s. Já havia antes um olhar livre ante a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

assim como a arte e o bom gosto.<br />

24 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 86<br />

25 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 88<br />

40


Nietzsche con<strong>de</strong>na a igreja cristã por consi<strong>de</strong>rá-la corrupta, por viver <strong>de</strong> angústia<br />

assim como por inventa-las para se eternizar, e propõe a transmutação <strong>de</strong> todos os valores.<br />

Para ele, o cristianismo representa uma forma do que ele combate: o platonismo. Por inventar<br />

um outro mundo i<strong>de</strong>al e <strong>de</strong>preciar o mundo real, o cristianismo envenenou a vi<strong>da</strong> pela idéia <strong>de</strong><br />

pecado. O que mais instigou Nietzsche contra a i<strong>de</strong>ologia cristã foi o fato <strong>de</strong>sta representar<br />

uma avaliação <strong>da</strong> metafísica, ou seja, conceber o mundo à luz <strong>da</strong>s idéias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o sensível ao<br />

terrestre. É pura <strong>de</strong>signação platônica <strong>em</strong> uma vulgarização popular <strong>da</strong> metafísica.<br />

Ao propor transmutar todos os valores, ele visa mais do que um anti-cristianismo ou<br />

anti-platonismo; o filósofo al<strong>em</strong>ão percebe a religião, a moral e a metafísica como instâncias<br />

intimamente liga<strong>da</strong>s e não dimensões separa<strong>da</strong>s. Além <strong>de</strong> propor uma transmutação <strong>de</strong> todos<br />

os valores, propõe uma revolução nas concepções do que seja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro ou falso.<br />

A<strong>de</strong>mais, a doutrina cristã traz a idéia <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção como essencial que é contraditória<br />

com a experiência <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> posto que<br />

“num mundo trágico não há re<strong>de</strong>nção, entendi<strong>da</strong> como salvação <strong>de</strong> um<br />

existente finito na sua finitu<strong>de</strong>; ali há apenas a lei inexorável do <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> tudo<br />

aquilo que surgiu do fundo do ser na existência individualiza<strong>da</strong>, <strong>da</strong>quilo que se<br />

separou <strong>da</strong> corrente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> universal. Na visão trágica do mundo encontram-se<br />

confundi<strong>da</strong>s a vi<strong>da</strong> e a morte, a ascensão e a <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong> tudo quanto é finito.” 26<br />

Ao contrário do que possa parecer, o sentimento trágico <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é antes a aceitação <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, a jubilosa a<strong>de</strong>são também ao horrível e ao medonho, à morte e ao <strong>de</strong>clínio (...) porque o<br />

patético do trágico alimenta-se do saber que “tudo é uno” 27 .<br />

Nietzsche rompe com a submissão <strong>em</strong> que to<strong>da</strong> uma época se encontra mergulha<strong>da</strong>,<br />

repleta <strong>de</strong> conhecimentos que faz<strong>em</strong> com que o ser humano negue a si mesmo, traindo e<br />

negando a própria vi<strong>da</strong>. Escolhe ser um espírito livre. Protesta contra a servidão <strong>da</strong> moral do<br />

sist<strong>em</strong>a social, <strong>da</strong> lógica e do cristianismo. Nietzsche refuta as ilusões <strong>da</strong> metafísica e<br />

26 FINK, Eugen. A filosofia <strong>de</strong> Nietzsche. Lisboa, Editorial Presença. p. 16<br />

41


<strong>de</strong>nuncia a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> e hipocrisia dos valores morais <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po. As construções<br />

teóricas e analíticas são <strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong>s como mecanismos pelos quais a vi<strong>da</strong> se esvai e se<br />

esvazia <strong>de</strong> vigor. Nietzsche percebe que a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar livr<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong> pensar o<br />

impossível, ain<strong>da</strong> está calca<strong>da</strong> à lógica <strong>de</strong> um pensamento possível. Afirma que a condição<br />

do pensamento é a <strong>de</strong>struição <strong>da</strong> estrutura metafísica e <strong>de</strong>nuncia a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> filosofia<br />

<strong>em</strong> prosseguir inseri<strong>da</strong> nessa lógica, que funciona como estruturação <strong>de</strong> mundo e que foi por<br />

séculos o pilar <strong>de</strong> nossa concepção <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nietzsche quebra os mo<strong>de</strong>los vigentes ao<br />

propor uma nova cons<strong>ciência</strong>. Ao refazer seus laços com a vi<strong>da</strong>, com a sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e o<br />

prazer, <strong>de</strong>nuncia a i<strong>de</strong>ologia cristã, <strong>de</strong> cunho metafísico. Em sua afirmação enquanto tal, o<br />

cristianismo se propõe essencialmente enquanto moral e negação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Por meio <strong>de</strong> uma pergunta feita na negativa, que não cala: a moral não seria uma<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> negação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, um instinto secreto <strong>de</strong> aniquilamento, um princípio <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, <strong>em</strong> conseqüência, o perigo<br />

dos perigos? 28<br />

Nietzsche <strong>de</strong>sassossega e <strong>de</strong>nuncia: A moral é um princípio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência! 29 Uma<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> negar a vi<strong>da</strong>. Por isso, se volta contra a moral, para se afirmar a favor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Ao<br />

fazer essa reafirmação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, Nietzsche propõe uma nova or<strong>de</strong>m, além do b<strong>em</strong> e do mal,<br />

contra a moral e <strong>em</strong> favor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. A essa or<strong>de</strong>m ele chama <strong>de</strong> uma contra-doutrina,<br />

puramente artística e anti-cristã, a qual nomeou como dionisíaca 30 .<br />

27 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 18<br />

28 NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. São Paulo, Martin Claret, 2004. p. 20<br />

29 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p.19<br />

42


1.4 A superação <strong>da</strong> metafísica pela arte: arte e vi<strong>da</strong>.<br />

Na luta contra a metafísica, o cristianismo e a <strong>ciência</strong> Nietzsche propõe uma contra-<br />

noção: a metafísica do artista. Esta concepção t<strong>em</strong> a arte como a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> propriamente<br />

metafísica do hom<strong>em</strong>, pois trata <strong>da</strong> essência do ser. Do ser, e não do saber. Ao analisar as<br />

relações entre arte e <strong>ciência</strong>, Nietzsche aponta Sócrates e Eurípe<strong>de</strong>s como responsáveis pelo<br />

assassinato <strong>da</strong> arte trágica, arte esta que representa o encontro com as questões fun<strong>da</strong>mentais<br />

<strong>da</strong> existência e uma alternativa contra a metafísica criadora <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao opor o<br />

instinto estético ao saber metafísico, o filósofo-poeta gera uma idéia central <strong>em</strong> seu fazer<br />

filosófico: a valorização <strong>da</strong> arte e não <strong>da</strong> <strong>ciência</strong> pelo fato <strong>de</strong> a primeira ser a força capaz <strong>de</strong><br />

proporcionar a experiência apolínea e dionisíaca: a arte t<strong>em</strong> mais valor do que a <strong>ciência</strong>. 31<br />

Sabendo-se <strong>pós</strong>tumo <strong>em</strong> relação ao seu t<strong>em</strong>po, Nietzsche vê a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como uma<br />

convenção imposta para tornar a vi<strong>da</strong> possível, que substitui a arte como uma ficção<br />

necessária por um cunho moralizante e que nos <strong>de</strong>svia do encantamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pelo<br />

aniquilamento <strong>da</strong>s ilusões. Nietzsche acredita ser o instinto <strong>de</strong> crença, e não o <strong>de</strong><br />

conhecimento, um valor fun<strong>da</strong>mental para o hom<strong>em</strong>. A revalorização <strong>da</strong> arte é o meio <strong>de</strong><br />

retorno à vi<strong>da</strong> ou <strong>de</strong> encontro com ela, uma forma <strong>de</strong> proporcionar, uma vez mais, nosso<br />

resgate pela vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> modo que esta volte a nos atravessar. Para este amigo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, é a arte – e<br />

não a moral – a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> propriamente metafísica do hom<strong>em</strong>.<br />

Desenvolvendo seu próprio filosofar, ele afirma que pelo instinto <strong>da</strong> <strong>ciência</strong> Sócrates<br />

não apenas viveu mas, também, morreu. Ao morrer, no entanto, o mistagogo <strong>da</strong> <strong>ciência</strong><br />

<strong>de</strong>ixou um legado à civilização oci<strong>de</strong>ntal: uma herança i<strong>de</strong>aria que é a busca pelo saber e a<br />

30 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 20<br />

31 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento <strong>da</strong> Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Traduzido por J.<br />

Guinsburg. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1992. p. 44<br />

43


extinção <strong>da</strong> arte trágica dionisíaca. Em sua exortação <strong>da</strong> força universal do saber, Sócrates<br />

aniquila o mito, tornando a poesia apátri<strong>da</strong> ao expulsá-la <strong>de</strong> seu solo mítico i<strong>de</strong>al.<br />

A serenojoviali<strong>da</strong><strong>de</strong> helênica e a serenojoviali<strong>da</strong><strong>de</strong> do hom<strong>em</strong> teórico contrapõ<strong>em</strong>-se.<br />

Esta última exibe to<strong>da</strong>s as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s do espírito não dionisíaco e acredita <strong>em</strong> uma correção<br />

do mundo pelo saber, <strong>em</strong> uma vi<strong>da</strong> guia<strong>da</strong> pela <strong>ciência</strong>, que é efetivamente capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterrar<br />

o ser humano individual <strong>em</strong> um círculo estreitíssimo <strong>de</strong> tarefas solucionáveis, <strong>de</strong>ntro do qual<br />

ele diz serenojovialmente para a vi<strong>da</strong>: eu te quero: tu és digna <strong>de</strong> ser conheci<strong>da</strong> 32 .<br />

Ao criar o hom<strong>em</strong> teórico que se pensa, a arte também per<strong>de</strong> sua inocência e passa a<br />

trazer um questionamento, <strong>em</strong> si, acerca <strong>de</strong> sua própria existência. Anteriormente, quando um<br />

estar no mundo poético se bastava e se produzia enquanto real, havia Homero. Porém, uma<br />

vez perdido esse encanto, o espanto se esvai para <strong>da</strong>r lugar à explicação teórica, cristã ou<br />

científica.<br />

No mundo teórico, o conhecimento científico vale mais do que a manifestação<br />

artística. A existência, a partir <strong>da</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> razão, per<strong>de</strong> o saber mítico e torna-se esclareci<strong>da</strong>,<br />

<strong>de</strong>sencanta<strong>da</strong>.<br />

Eurípe<strong>de</strong>s altera a tragédia e subordina, pela primeira vez, o poeta ao pensador<br />

racional, introduzindo o pensamento na arte; a lógica e a crítica se <strong>de</strong>slocam para ser critério<br />

<strong>de</strong> criação artística; ele próprio se gaba <strong>de</strong> que agora, por seu intermédio, o povo apren<strong>de</strong>u a<br />

observar, a discutir e a tirar conseqüências, segundo as regras <strong>da</strong> arte e com as mais<br />

matreiras sofisticações. 33 Sua produção artística se faz à luz <strong>de</strong>sse socratismo estético, que<br />

<strong>de</strong>svaloriza o irracional, exilando o dionisíaco <strong>da</strong> arte. Essa ruptura, realiza<strong>da</strong> pela perspectiva<br />

socrática adota<strong>da</strong> por Eurípe<strong>de</strong>s, instaura um juízo <strong>de</strong> valor que subordina o belo à razão, ao<br />

entendimento, <strong>de</strong>stituindo a experiência estética <strong>de</strong> prazer, privilegiando o entendimento à<br />

apreciação, tornando-se assim, poeta do racionalismo socrático contra o instinto, negando a<br />

32 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 108<br />

44


possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outras formas <strong>de</strong> expressão que não sejam conscientes. Essa ilusão metafísica<br />

que acredita ser o conhecimento a única maneira <strong>de</strong> penetrar na essência, na natureza, nas<br />

coisas, revela o espírito científico socrático.<br />

Eurípe<strong>de</strong>s travou uma luta mortal com a tragédia. O coro <strong>da</strong> tragédia grega simboliza a<br />

excitação dionisíaca, serve ao <strong>de</strong>us Dionísio, a própria expressão <strong>da</strong> natureza. O coro<br />

dionisíaco entrelaça um mundo apolíneo <strong>de</strong> imagens e representa a unificação do indivíduo<br />

com o Ser primordial, por meio <strong>de</strong> um enfeitiçamento coletivo, endêmico, que transporta,<br />

transforma e transmite a vi<strong>da</strong>. É através <strong>de</strong>le – trans - que o público t<strong>em</strong> o ânimo insuflado<br />

até que se rasgue o limite <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ultrapassando o encanto <strong>da</strong> individuação,<br />

transportando-se para a essência única do mundo. O processo do coro trágico implica a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ver-se a si próprio fora <strong>de</strong> si. Há a renúncia do individual que se rompe e<br />

ocorre o ingresso <strong>em</strong> uma natureza estranha, única e primordial. Nesse êxtase, o público<br />

entusiasmado vê não apenas o herói <strong>em</strong> cena, mas uma imag<strong>em</strong> nasci<strong>da</strong> <strong>da</strong> excitação cria<strong>da</strong><br />

no <strong>em</strong> si próprio. O coro ditirâmbico provoca entusiasmo e encanto e, permeando a todos,<br />

incute-lhes sentenças do oráculo e enuncia ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s intuí<strong>da</strong>s.<br />

Até Eurípe<strong>de</strong>s, o herói trágico, jamais <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> ser Dionísio, n<strong>em</strong> outros notáveis<br />

personagens <strong>da</strong>s tragédias clássicas, máscaras <strong>de</strong>sse mesmo <strong>de</strong>us, porque por trás <strong>da</strong>s<br />

máscaras pulsava uma divin<strong>da</strong><strong>de</strong>. Daí, a potência que os atravessava, posto que não<br />

representavam apenas o individual. O herói trágico é Dionísio com sua aparência múltipla, o<br />

<strong>de</strong>us <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çado que carrega as dores <strong>da</strong> individuação, que é vista como a causa primeira do<br />

mal enquanto que o êxtase alcançado é a esperança <strong>de</strong> se romper com tal feitiço.<br />

As religiões morr<strong>em</strong> quando seus pressupostos míticos são sist<strong>em</strong>atizados,<br />

racionalizados, entendidos; quando <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser vivi<strong>da</strong>s para ser<strong>em</strong> racionaliza<strong>da</strong>s. Tal foi o<br />

processo realizado por Eurípe<strong>de</strong>s ao aniquilar o mito e a música. Seu pro<strong>pós</strong>ito foi o <strong>de</strong> trazer<br />

33 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 74<br />

45


o hom<strong>em</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana aos palcos, o hom<strong>em</strong> no qual o espectador via seu duplo; a<br />

linguag<strong>em</strong> per<strong>de</strong>u aí seu segredo e seu encanto. A tragédia <strong>de</strong>svinculou-se do sagrado, dos<br />

Mistérios. Eurípe<strong>de</strong>s levou o espectador ao palco e pela primeira vez foi fomenta<strong>da</strong> a<br />

elaboração <strong>de</strong> um juízo sobre o drama 34 .<br />

Porque não compreen<strong>de</strong>u seus gran<strong>de</strong>s pre<strong>de</strong>cessores, Eurípe<strong>de</strong>s cont<strong>em</strong>plou todos os<br />

el<strong>em</strong>entos trágicos pela ótica do entendimento e não do encantamento. On<strong>de</strong> havia mistério,<br />

ele trouxe o esclarecimento, on<strong>de</strong> havia falta <strong>de</strong> precisão, ou, ao contrário, on<strong>de</strong> havia algo<br />

profundo e enigmático, ele se <strong>em</strong>penhou <strong>em</strong> priorizar o entendimento, que passou a ser a<br />

fonte <strong>de</strong> prazer <strong>da</strong> arte trágica. E foi assim que Eurípe<strong>de</strong>s matou a velha tragédia. Construiu<br />

sua obra a partir <strong>de</strong> uma visão <strong>de</strong> mundo não-dionisíaca <strong>em</strong> que o efeito do trágico é<br />

inalcançável, pois não há possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> unir, <strong>de</strong> entrelaçar o poeta com suas imagens.<br />

Antes, o coro, o rapsodo e o público viam-se unificados, existiam e pulsavam como um Ser.<br />

Eurípe<strong>de</strong>s aprisiona o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, não há mais a projeção, o fora <strong>de</strong> si e o<br />

êxtase não mais se dão.<br />

Nietzsche percebe que também Eurípe<strong>de</strong>s fora apenas uma máscara. A divin<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

falava por sua boca se chamava Sócrates. Eis a nova contradição: o dionisíaco e o socrático, e<br />

por causa <strong>de</strong>la a obra <strong>de</strong> arte <strong>da</strong> tragédia grega foi <strong>de</strong>spoja<strong>da</strong> <strong>de</strong> seu caráter fun<strong>da</strong>mental.<br />

Ao socratismo estético, associa-se o princípio que esvaziou a velha estética trágica: o<br />

rompimento com o apolíneo e o dionisíaco, com a tensão geradora <strong>da</strong> arte trágica; pensamento<br />

que teve início <strong>em</strong> Sócrates e que representou um corte no mundo originário ao se instaurar. A<br />

máscara sob a qual Eurípe<strong>de</strong>s criava falava <strong>de</strong> um modo diferente, s<strong>em</strong> o el<strong>em</strong>ento dionisíaco<br />

original: tinha a voz <strong>de</strong> Sócrates ecoando um novo modo <strong>de</strong> ver o mundo. A tragédia <strong>de</strong><br />

Eurípe<strong>de</strong>s foi calca<strong>da</strong> sobre uma visão <strong>de</strong> mundo não dionisíaca, na qual a nova contradição,<br />

que con<strong>de</strong>nou a existência do efeito trágico, foi o dionisíaco dissolvido pelo socrático.<br />

34 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 75<br />

46


Na visão <strong>de</strong> Nietzsche, cismador <strong>de</strong> idéias e amigo <strong>de</strong> enigmas, o pessimismo dos<br />

gregos não era um signo <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio ou ruína. Para essa gente, que mais seduziu para o<br />

viver 35 , a tragédia morreu pelo socratismo <strong>da</strong> moral: a dialética. Dialética como instrumento<br />

<strong>de</strong> busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> por meio do lógos, do conhecimento, <strong>da</strong> análise, do racional. É esse<br />

socratismo, que é visto como um signo <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio, <strong>de</strong> crepúsculo.<br />

N<strong>em</strong> apolíneo, n<strong>em</strong> dionisíaco, o socratismo estético procura o belo no inteligível.<br />

Requer que o espectador calcule os significados constituintes do drama, <strong>em</strong>pregando recursos<br />

que o tornavam inquieto e <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> solucionar uma estória <strong>em</strong> um processo que o impe<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sentir. Daí, a introdução do prólogo, uma <strong>da</strong>s evidências mais marcantes <strong>da</strong> quebra do<br />

sagrado e do dionisíaco, <strong>em</strong> que uma personag<strong>em</strong> merecedora <strong>de</strong> total confiança esclarecia,<br />

explicava a estória, o mito: tudo <strong>de</strong>ve ser consciente para ser belo 36 , preceito muito próximo<br />

ao princípio socrático: tudo <strong>de</strong>ve ser consciente para ser bom 37 . Muito mais sério do que<br />

aparenta, este artifício metafísico instaura e reforça no povo uma creduli<strong>da</strong><strong>de</strong> na autori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

política e religiosa. A moral penetra na arte e, com ela, todo um jogo <strong>de</strong> forças <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>. A proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>de</strong> Eurípe<strong>de</strong>s e Sócrates é o motivo que possibilita<br />

afirmar-se que Eurípe<strong>de</strong>s foi o poeta do socratismo estético.<br />

O prólogo euripídiano é o marco metafísico que quebra o elo <strong>da</strong> arte com a vi<strong>da</strong> e o<br />

indivíduo. Uma vez que se pensa e racionaliza, uma vez que se analisa e não mais se entrega,<br />

a fusão com o uno primordial não mais ocorre e a arte passa fora do hom<strong>em</strong>. Não mais o<br />

resgata para a vi<strong>da</strong>, tampouco o atravessa com ela. Há a formação <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> vazio, um<br />

retorno a um gran<strong>de</strong> vácuo que é nossa existência. S<strong>em</strong> vi<strong>da</strong> na arte, cessam as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do hom<strong>em</strong> se encantar e alcançar o sublime. O ator, o poeta, o coro e o público se tornam<br />

objetos e não mais sujeitos. Pela explicação, morre o sagrado e o encanto do mistério que<br />

35 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 14.<br />

36 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 83<br />

37 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 83<br />

47


apenas a forma apolínea <strong>em</strong> um amálgama com o dionisíaco permite nos surpreen<strong>de</strong>r, <strong>em</strong> um<br />

excesso ameaçador mas <strong>em</strong>ocionante e vivificador.<br />

Ao estu<strong>da</strong>r o nascimento <strong>da</strong> tragédia, Nietzsche afirma que esta surgiu do coro trágico,<br />

posto que a mesma era apenas coro. Daí a relevância que o coro adquire. Ele discor<strong>da</strong> do<br />

pensamento <strong>de</strong> que o coro seja o espectador i<strong>de</strong>al, como afirmara Schlegel, ou mesmo que<br />

<strong>de</strong>va representar o povo <strong>em</strong> face <strong>da</strong> região principesca <strong>da</strong> cena, como sugeriram Ésquilo e<br />

Sófocles. O filósofo, entretanto, consi<strong>de</strong>ra valiosa a contribuição <strong>de</strong> Schiller que vê o coro<br />

como uma muralha viva que a tragédia esten<strong>de</strong> a sua volta a fim <strong>de</strong> isolar-se do mundo real e<br />

<strong>de</strong> salvaguar<strong>da</strong>r para si o seu chão i<strong>de</strong>al e a sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong> poética 38 . Em uma leitura s<strong>em</strong><br />

prece<strong>de</strong>ntes, Nietzsche percebe no coro a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> arte frente à reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao contrário <strong>de</strong><br />

Euripe<strong>de</strong>s, diz que é do coro que a tragédia se forma, é <strong>da</strong> boca <strong>de</strong> um sátiro, coreuta<br />

dionisíaco, que sai a fala <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcertante sabedoria.<br />

A tragédia oferece um antídoto ao metafísico, quando reconduz o indivíduo ao coração<br />

<strong>da</strong> natureza e <strong>de</strong>sguarnece as fronteiras entre um indivíduo e outro. A tragédia rel<strong>em</strong>bra que a<br />

vi<strong>da</strong>, apesar <strong>de</strong> tudo, é po<strong>de</strong>rosa e que há encanto, ain<strong>da</strong>. Apesar <strong>de</strong> tantos sofrimentos e<br />

<strong>de</strong>sencontros entre os seres humanos, o coro trágico envolve a todos, possibilitando-lhes ser<br />

um. Tal é o reconforto que a arte propicia, a arte que salva a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um e, <strong>de</strong> todos nós.<br />

O êxtase propiciado pelo dionisíaco aniquila o individual, as separações. Mas é preciso o<br />

apolíneo para que esse êxtase se torne sublime. O coro satírico na arte grega é o ato salvador,<br />

consi<strong>de</strong>ra Nietzsche. O coro satírico exprime <strong>em</strong> um símile a relação primordial entre coisa<br />

<strong>em</strong> si e fenômeno (...) o grego dionisíaco, ele, quer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e a natureza <strong>em</strong> sua máxima<br />

força – ele vê a si mesmo encantado <strong>em</strong> sátiro 39 .<br />

Po<strong>de</strong>-se perceber o contraste entre tentar compreen<strong>de</strong>r uma tragédia e ser transportado<br />

para outro nível <strong>de</strong> existência, <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> por meio <strong>de</strong> uma experiência trágica. O coro<br />

38 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 54<br />

48


dionisíaco transforma os seus coreutas <strong>em</strong> sátiros – s<strong>em</strong> qualquer explicação, conhecimento<br />

ou lógica. Não há o sujeito subjetivo, mas a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> com o coração do mundo.<br />

Por um mecanismo b<strong>em</strong> diverso <strong>da</strong> cons<strong>ciência</strong>, por meio <strong>de</strong> encantamentos<br />

inexplicáveis, o público <strong>da</strong> tragédia ática reencontrava a si mesmo no coro <strong>da</strong> orquestra, e<br />

que não havia distinção entre eles. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> tudo era um gran<strong>de</strong> e sublime coro <strong>de</strong> sátiros<br />

bailando e cantando ou <strong>da</strong>queles que se faziam representar através <strong>de</strong>sses sátiros 40 .<br />

Por tudo isso, Nietzsche conclui que na fase primitiva <strong>da</strong> prototragédia o coro po<strong>de</strong> ser<br />

consi<strong>de</strong>rado como o auto-espelhamento do próprio hom<strong>em</strong> dionisíaco, que propicia um<br />

fenômeno dramático: ver-se a si próprio transformado diante <strong>de</strong> si mesmo e então atuar como<br />

se na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> a pessoa tivesse entrado <strong>em</strong> outro corpo, <strong>em</strong> outra personag<strong>em</strong> 41 . O drama só<br />

se completa com o encantamento <strong>da</strong> metamorfose que se dá na alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, na outri<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ser<br />

possível ao entusiasta dionisíaco ver-se fora <strong>de</strong> si, ver-se a si mesmo, é aproximar-se do<br />

sagrado, é beirar o limite do apolíneo, é atingir o máximo <strong>de</strong> aproximação com a quebra <strong>da</strong><br />

individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> ; para ele é vivenciar o uno, com a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> resgate: o drama é a<br />

encarnação apolínea <strong>de</strong> cognições e efeitos dionisíacos 42 .<br />

O apolíneo não existe s<strong>em</strong> o dionisíaco, logo, uma vez cortados os laços entre o<br />

apolíneo, o dionisíaco e a arte, ocorreu a extinção <strong>da</strong>s duas forças que se interrelacionam <strong>em</strong><br />

um fenômeno <strong>de</strong> simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, e a arte se esvaziou <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Assim como os helenos haviam<br />

sido resgatados para a vi<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> arte, também o hom<strong>em</strong> <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, ain<strong>da</strong><br />

con<strong>de</strong>nado por Sileno, e pela ilusão do saber metafísico, científico e religioso, espera por essa<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reencantamento.<br />

A existência do mundo só se justifica enquanto fenômeno estético. O artista, amoral,<br />

que constrói e <strong>de</strong>strói, cria mundos sob óticas inovadoras: novas visões <strong>de</strong> mundo, dimensões<br />

39 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 58<br />

40 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m p. 58<br />

41 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 58<br />

49


diversas dos mundos já vistos. O olhar do artista sobre o mundo, recria e transforma a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, reinventando-a, <strong>de</strong>slocando significados, realocando sentidos. O essencial no<br />

trabalho do artista criador <strong>de</strong> mundos é o fato <strong>de</strong> sua metafísica <strong>da</strong> arte po<strong>de</strong>r ser<br />

transgressora, fantástica, o que revela um espírito que po<strong>de</strong> se colocar contra a interpretação e<br />

a significação morais <strong>da</strong> existência.<br />

A doença <strong>da</strong> alienação, <strong>da</strong> culpa, <strong>da</strong> <strong>de</strong>svalorização <strong>de</strong>sta vi<strong>da</strong> é <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> para trás e a<br />

criação é viabiliza<strong>da</strong>. Entretanto, novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, novos horizontes ameaçam os po<strong>de</strong>res.<br />

A civilização prefere ignorar a ameaça <strong>de</strong> transformação, vira as costas para a arte e finge<br />

não escutar os poetas. Mas estes não se calam. E cantam, cantam como cantaram durante os<br />

séculos <strong>em</strong> que não foram ouvidos, e continuarão a cantar. A poesia é a voz do poeta que não<br />

quer calar. A voz <strong>da</strong> poesia não se calou, mesmo com tanta metafísica, com tanta ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. E a<br />

<strong>de</strong>núncia que v<strong>em</strong> s<strong>em</strong> explicar, simplesmente por ser arte, pungente e vigorosa, pulsação<br />

incessante <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, convi<strong>da</strong> ao resgate do prazer <strong>de</strong> existir. É a voz do poeta que<br />

oferece a ponte para o reencantamento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Oferece fluxo e processo estampados no<br />

sublime, <strong>em</strong> vez <strong>da</strong> cegueira <strong>de</strong> respostas.<br />

A chama<strong>da</strong> maldição <strong>da</strong> dolorosa existência humana, a maldição <strong>de</strong> Sileno, é a que a<br />

humani<strong>da</strong><strong>de</strong> evita encarar. É ela que leva civilizações a criar<strong>em</strong> complexas ficções que se<br />

preten<strong>de</strong>m reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A maldição dos gregos é também a nossa: é saber que o b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o é<br />

querer não ter nascido, é na<strong>da</strong> ser, não ser. Se a arte grega teve orig<strong>em</strong> nesse drama e criou a<br />

cosmogonia, Sócrates criou a metafísica e a explicação infinita e vazia pauta<strong>da</strong> <strong>em</strong> uma<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que só existe a partir <strong>da</strong> moral. As correntes <strong>da</strong> lógica asfixiaram e mutilaram a arte<br />

trágica, con<strong>de</strong>nando o hom<strong>em</strong> ao erro e à culpa. O instinto <strong>de</strong> <strong>ciência</strong> percorreu um caminho<br />

inverso ao <strong>da</strong> cosmogonia poética pois, esta, ao divinizar a vi<strong>da</strong>, a tornou bela e digna <strong>de</strong> ser<br />

vivi<strong>da</strong>.<br />

42 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 61<br />

50


É a oposição do instinto <strong>de</strong> <strong>ciência</strong> ao instinto estético que Nietzsche con<strong>de</strong>na. A arte<br />

apolínea é a arte <strong>da</strong> aparência e esta é uma questão central no pensamento <strong>de</strong> Nietzsche<br />

porque se a beleza é uma aparência, o é por haver uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que é a essência: a beleza é<br />

uma aparência, um fenômeno, uma representação que t<strong>em</strong> por objetivo mascarar, encobrir,<br />

velar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> essencial do mundo 43 .<br />

O belo oferece uma sensação <strong>de</strong> satisfação que intensifica as forças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e aumenta<br />

o prazer <strong>de</strong> existir. Se na hipótese metafísica o que importa é ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, na metafísica <strong>da</strong><br />

arte o uno originário carece <strong>da</strong> aparência pura para libertar-se <strong>da</strong> dor <strong>de</strong> existir: a<br />

individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a cons<strong>ciência</strong>, é uma aparência, uma representação do uno originário;<br />

através do principium individuationis se produz a arte: é isso que constitui o processo<br />

artístico originário 44 .<br />

Foi assim que os gregos conseguiram o resgate <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a<strong>pós</strong> a revelação <strong>de</strong> Sileno, o<br />

<strong>de</strong>us silvestre. A concepção apolínea <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> possibilitou a intensificação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Por outro<br />

lado, há a experiência dionisíaca que propõe uma ruptura <strong>da</strong> individuação e uma total<br />

miscigenação com a natureza e com os outros, uma <strong>de</strong>spersonalização, um enfeitiçamento que<br />

proporciona a experiência <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> original, rasgar o véu <strong>de</strong> Maia, encontro com o Uno-<br />

primordial.<br />

A idéia <strong>de</strong> Tales tudo é água, fun<strong>da</strong>dora <strong>da</strong> filosofia grega, <strong>de</strong> que a orig<strong>em</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

coisas é a água, contém, <strong>em</strong> estado <strong>de</strong> crisáli<strong>da</strong>, a idéia <strong>de</strong> que tudo é um, e o faz s<strong>em</strong> o uso <strong>de</strong><br />

explicações, s<strong>em</strong> imagens ou fábulas. Ao expor a representação <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> pela hipótese <strong>da</strong><br />

água, Tales é impelido pela força <strong>da</strong> imaginação: o pensamento <strong>de</strong> Tales, mesmo quando<br />

reconhecido como in<strong>de</strong>monstrável, t<strong>em</strong> antes o seu valor precisamente <strong>em</strong> não ter querido ser<br />

43 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. 2ª edição, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rocco. 1985, p. 22<br />

44 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 23<br />

51


mito n<strong>em</strong> uma alegoria 45 . Com a mesma cont<strong>em</strong>plação <strong>de</strong> um artista, o filósofo fixa seu<br />

encantamento pelo sabor <strong>da</strong> experiência traduzi<strong>da</strong> <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong>.<br />

A tese do Uno-primordial resgata<strong>da</strong> por Nietzsche insuflou novamente vi<strong>da</strong> numa<br />

potência adormeci<strong>da</strong>. É pelo dionisíaco que se po<strong>de</strong> rasgar o véu <strong>de</strong> Maia, que oculta a<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os seres, é a ilusão comum e corrente <strong>de</strong> que ca<strong>da</strong> ente <strong>de</strong>terminado é<br />

portador <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> própria que, atravessando incólume e inaltera<strong>da</strong> o fluxo do<br />

<strong>de</strong>vir, o distingue, segundo sua essência, <strong>de</strong> todos os outros 46 .<br />

O perigoso e <strong>de</strong>smesurado êxtase dionisíaco faz o hom<strong>em</strong> compreen<strong>de</strong>r a ilusão que<br />

vivia ao criar um mundo <strong>de</strong> beleza justamente por mascarar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> 47 , e esta experiência<br />

labiríntica é <strong>de</strong>vastadora.<br />

Pela segun<strong>da</strong> vez, a vi<strong>da</strong> salva o grego utilizando a arte como seu instrumento: ele é<br />

salvo pela arte, e através <strong>da</strong> arte salva-se nele - a vi<strong>da</strong> 48 . Esse novo tipo <strong>de</strong> arte re<strong>de</strong>ntora<br />

integra o dionisíaco no apolíneo, o que transmuta o pessimismo pelo absurdo <strong>da</strong> existência <strong>em</strong><br />

viabilização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. A experiência do dionisíaco <strong>em</strong> estado puro é impossível, porque não<br />

haveria saí<strong>da</strong> do labirinto, e a experiência se per<strong>de</strong>ria nela mesma. A arte possibilita uma<br />

vivência <strong>de</strong> êxtase e <strong>em</strong>briaguez s<strong>em</strong> a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> luci<strong>de</strong>z, pois ao integrar o apolíneo ao<br />

dionisíaco, proporciona prazer assim como a noção e a cons<strong>ciência</strong> <strong>de</strong>le. Este estado estético<br />

se produz na simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>. O contínuo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> arte está ligado à duplici<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

apolíneo e do dionisíaco - arte como um miraculoso ato metafísico <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong>.<br />

O <strong>de</strong>spertar gradual do espírito e <strong>da</strong> sabedoria dionisíaca oferece a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

retorno <strong>da</strong> tensão trágica; o apolíneo, como um véu, envolve o dionisíaco que, por sua vez,<br />

impele ao drama. Uma metafísica <strong>da</strong> arte justifica a existência e o mundo como fenômenos<br />

45<br />

NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na I<strong>da</strong><strong>de</strong> dos Gregos. Elfos Lisboa Edições 70, 1995. p. 29<br />

46<br />

BENCHIMOL,Márcio. Apolo e Dionisio: arte, filosofia e crítica <strong>da</strong> cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo,<br />

Annablume; FAPESP, 2003. p. 42<br />

47<br />

MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. 2ª edição, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rocco, 1985. p.26<br />

52


estéticos e a arte como superação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao quebrar conceitos cristalizados, torna viável<br />

a vi<strong>da</strong>. Há espaço para o <strong>de</strong>sconhecido; a surpresa, o espanto, o encantamento oferec<strong>em</strong> seu<br />

frisson, <strong>da</strong>ndo-se o exercício <strong>de</strong> novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que nos resgatam à vi<strong>da</strong>.<br />

Agora, sim, po<strong>de</strong>-se perceber a gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> e prenunciar as conseqüências <strong>da</strong> morte <strong>da</strong><br />

tragédia pelo socratismo estético. Trazer a lógica e a análise para o campo <strong>da</strong> arte anulou as<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que esta antes oferecera. Porém, Nietzsche propõe uma reviravolta: uma vez<br />

que a <strong>ciência</strong> a<strong>de</strong>ntrou-se a arte, ele propõe analisar a <strong>ciência</strong> com a ótica do artista, porque,<br />

uma vez que arte é vi<strong>da</strong>, apenas a experiência estética justifica a vi<strong>da</strong>.<br />

Nietzsche propõe uma relação estética para aproximar, por meio do poético e <strong>da</strong><br />

imaginação, essas distintas esferas que são sujeito e objeto. A imaginação, ao contrário <strong>da</strong><br />

<strong>ciência</strong>, não se paralisa com a não-reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e é a contraparti<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssa rigi<strong>de</strong>z e fixi<strong>de</strong>z: a arte e<br />

o mito, por estar<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma busca constante <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> configuração do mundo com<br />

novas cores. O <strong>de</strong>slocamento dos velhos sentidos <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s cristaliza<strong>da</strong>s refresca, dá novo<br />

ânimo e possibilita o exercício <strong>de</strong> novas representações.<br />

É nesta seara que há espaço para a criação, para a proposição <strong>de</strong> novas metáforas. É<br />

na arte que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> reconfiguração constante do mundo permite um fluir caleidoscópico,<br />

então a ca<strong>da</strong> instante tudo é possível como no sonho 49 .<br />

Em seu fazer filosófico-poético, Nietzsche engendra um exercício int<strong>em</strong>pestivo,<br />

instaurando um paradoxo entre o pensar e a dinâmica <strong>da</strong> criação pré-teórica. Ao estabelecer<br />

tais relações, ele rompe com a história filosófica <strong>de</strong> sua época e põe <strong>em</strong> cena novos conceitos:<br />

repele a análise, a explicação, e fala do Uno-primordial. Associa o filosófico ao poético,<br />

privilegiando mesmo o impacto do poético ao comprova<strong>da</strong>mente lógico, tecendo novos<br />

48 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento <strong>da</strong> Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Traduzido por J.<br />

Guinsburg. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1992. p.55<br />

49 Nietzsche, Friedrich. Acerca <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> Mentira no sentido extramoral. Tradução Helga Hoock<br />

Quadrado. Portugal, Printer Portuguesa, Relógio D’Água Editores, Junho <strong>de</strong> 1997. p. 220<br />

53


vínculos entre a arte, a filosofia, a <strong>ciência</strong> e a vi<strong>da</strong>: Ela <strong>de</strong>via cantar, essa nova alma – e não<br />

falar 50 . É através do fenômeno <strong>da</strong> arte que se <strong>de</strong>cifra o mundo e se vivencia o ser.<br />

A leitura socrática <strong>de</strong> Nietzsche é a crítica <strong>da</strong> presunção <strong>da</strong> <strong>ciência</strong>. É a afirmação <strong>da</strong><br />

arte como superior à metafísica, ao cristianismo e à <strong>ciência</strong> pelo fato <strong>de</strong> a primeira reafirmar a<br />

vi<strong>da</strong> enquanto as outras persegu<strong>em</strong> uma ilusão <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> com arrogância cega. A leitura<br />

socrática <strong>de</strong> Nietzsche é também a crítica ao espírito metafísico, ao hom<strong>em</strong> teórico nascido<br />

com a metafísica. É ain<strong>da</strong> a negação <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> integral e a <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong><br />

ruptura do hom<strong>em</strong> com sua possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>: uma vez mais é a arte trágica proposta<br />

como alternativa <strong>de</strong> solução para resgatar o hom<strong>em</strong> para a vi<strong>da</strong>.<br />

Enquanto Schopenhauer <strong>de</strong>screve o terror que se apo<strong>de</strong>ra do ser humano quando o<br />

princípio <strong>da</strong> razão parece sofrer uma exceção, Nietzsche acrescenta a esse terror o êxtase,<br />

<strong>de</strong>licioso, <strong>de</strong> se romper o princípio <strong>de</strong> individuação, apolíneo, pela mistura e <strong>em</strong>briaguez do<br />

dionisíaco.<br />

Sair <strong>de</strong> si permite ver o outro sob um novo prisma, ver tudo novo, ver várias<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s – menos egocêntricas – ; sair <strong>de</strong> si permite ser outro, ser outros, ser o outro; e,<br />

rompendo com a individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> apolínea, o êxtase dionisíaco <strong>da</strong> comunhão original po<strong>de</strong> ser<br />

vivenciado. A questão que propomos estu<strong>da</strong>r a seguir, abor<strong>da</strong>rá a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> arte voltar a atravessar o hom<strong>em</strong> com vi<strong>da</strong>. Será a poesia que exercita a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> numa<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do retorno do dionisíaco por romper com a individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> apolínea?<br />

A obra teórica <strong>de</strong> Michel Collot abor<strong>da</strong> o tópico <strong>da</strong> poesia <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, na qual o<br />

sujeito lírico é lançado para fora <strong>de</strong> si. Neste traço estilístico há mais do que a criação <strong>de</strong> uma<br />

nova estética, há a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> quebra do princípio <strong>da</strong> razão. Por meio do estranhamento<br />

que o <strong>de</strong>slocamento do sujeito lançado para fora <strong>de</strong> si causa, e a conseqüente religação com o<br />

todo, po<strong>de</strong>mos voltar a nos sentir parte do todo. Religados pela arte saboreamos ser outros.<br />

50 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento <strong>da</strong> Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Traduzido por J.<br />

54


Somos o todo. Somos um. Atravessados <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, pela vi<strong>da</strong> – nos tornamos também centelha<br />

<strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, reencantados.<br />

Essa poesia objetiva parece oferecer estados <strong>de</strong> exceção à lógica reinante, permitindo<br />

ao sujeito uma experiência dionisíaca por meio <strong>de</strong> novas criações. A partir <strong>de</strong> formas e<br />

aparências apolíneas, o novo se oferece, sendo sublime, religando por meio do prazer o<br />

hom<strong>em</strong> a sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a sua vi<strong>da</strong>. Revive-o, vivifica-o, entusiasma-o, insufla-lhe novo sopro<br />

divino, atravessa-o pela dianóia.<br />

Sob a magia do dionisíaco romp<strong>em</strong>-se as limitações entre os homens e o Uno-<br />

primordial: <strong>de</strong> seus gestos fala o encantamento o hom<strong>em</strong> não é mais o artista, tornou-se obra<br />

<strong>de</strong> arte. 51<br />

2. Contraponto a Hegel<br />

2.1. Lírica: <strong>da</strong> música à poesia mo<strong>de</strong>rna<br />

A palavra lírico, no grego lyricós, e no latim lyricu, é um termo que <strong>de</strong>signa o que é<br />

relativo à lira; instrumento musical usado para acompanhar as canções dos poetas <strong>da</strong> Grécia<br />

antiga, e retomado na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média pelos trovadores. A <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> lírico atravessou a<br />

fronteira <strong>da</strong> música para a literatura. A poesia nascera <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> ritmos e sons, sendo no<br />

princípio também uma forma <strong>de</strong> música, pois a poesia lírica era recita<strong>da</strong> ao som <strong>da</strong> lira. Entre<br />

aedos e rapsodos, a poesia grega clássica difere profun<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> poesia mo<strong>de</strong>rna <strong>em</strong> seu<br />

conteúdo, forma e métodos <strong>de</strong> apresentação. A poesia grega consistia numa arte<br />

essencialmente prática, intimamente liga<strong>da</strong> às reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social, política e religiosa, ou<br />

Guinsburg. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1992. p.17<br />

51 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 31<br />

55


seja, com o comportamento dos indivíduos <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Espelhava a própria<br />

experiência do poeta, e a <strong>de</strong> terceiros sobre a existência humana, mas não po<strong>de</strong> ser<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma poesia <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m do privado, no sentido mo<strong>de</strong>rno, pois a coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

compartilhava a uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, especialmente seus t<strong>em</strong>as que eram regularmente extraídos <strong>de</strong><br />

mitos, matéria principal <strong>da</strong> poesia narrativa e dramática, além <strong>de</strong> ser ela um ponto constante<br />

<strong>de</strong> referência paradigmática do gênero lírico.<br />

Além <strong>de</strong> entreter, a poesia existia para informar e instruir, mais explicitamente quando<br />

composta com vista a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> grupos e ocasiões específicas, como os ritos iniciáticos<br />

pré-maritais celebrados <strong>em</strong> Alcman e Sapho; e continuou a ser assim quando tomou os palcos<br />

e adotou modos e formas <strong>de</strong> representação dramáticos. O que mais radicalmente a distancia <strong>da</strong><br />

poesia mo<strong>de</strong>rna é o seu meio <strong>de</strong> comunicação: não um texto escrito, mas uma apresentação<br />

oral solo ou acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> um coro, ou ao som <strong>de</strong> um instrumento musical, diante <strong>de</strong> uma<br />

audiência. A palavra grega mousiké englobava poesia, e <strong>de</strong>signava arte <strong>em</strong> sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a<br />

união <strong>de</strong> palavras e sons tecendo música; e a palavra usa<strong>da</strong> para nomear o poeta era, no<br />

período arcaico, aoidós, cantor ou, mais tar<strong>de</strong>, no começo do século V a.C. melopoiós,<br />

compositor <strong>de</strong> canções ou poietés. 52<br />

A apresentação oral era ou <strong>de</strong> composição já existente, m<strong>em</strong>oriza<strong>da</strong>, recita<strong>da</strong> ou<br />

canta<strong>da</strong>, ou uma composição improvisa<strong>da</strong>, que podia ser preserva<strong>da</strong> por meio <strong>de</strong><br />

m<strong>em</strong>orização. A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do rapsodo, como <strong>de</strong>scrita por Platão <strong>em</strong> seu diálogo Íon, consistia<br />

na apresentação, incluindo linguag<strong>em</strong> gestual, <strong>de</strong> passagens m<strong>em</strong>oriza<strong>da</strong>s dos po<strong>em</strong>as <strong>de</strong><br />

Homero. O rapsodo não apenas <strong>de</strong>corava seus versos mas aquilo que os vivificava. A<br />

profissão do poeta oral requeria uma habili<strong>da</strong><strong>de</strong> natural – ou, como os gregos diriam, <strong>da</strong><br />

phýsis. Igualmente ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, era o fato <strong>de</strong> que a junção <strong>de</strong>sses talentos individuais seria<br />

52 GENTILI, Bruno. Oral Poetry and its Public in Ancient Greece. From Homer to the Fifth Century. Translated<br />

by Thomas Cole. London, The John Hopkins University Press, 1990.<br />

56


impossível s<strong>em</strong> a posse <strong>de</strong> refina<strong>da</strong> técnica mn<strong>em</strong>ônica e <strong>de</strong> composição, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A evolução no significado do termo rapsoidós parte <strong>da</strong> <strong>de</strong>signação: aoidós, palavra que<br />

era aplica<strong>da</strong> originalmente aos poetas-apresentadores. A apresentação do rapsodo po<strong>de</strong>ria ou<br />

não envolver o uso <strong>de</strong> canções. Ele po<strong>de</strong>ria cantar seu texto com o acompanhamento <strong>de</strong> uma<br />

lira, como D<strong>em</strong>odocus e Ph<strong>em</strong>ius, ou <strong>de</strong>clamar segurando o cajado do rapsodo, rhábdos,<br />

como Hesíodo, que <strong>em</strong> um trecho <strong>da</strong> Teogonia é retratado com um cajado 53 na mão, um<br />

presente simbólico <strong>da</strong>s Musas na ocasião <strong>de</strong> sua investidura como poeta. Entretanto, <strong>em</strong><br />

ambos os casos a poesia era transmiti<strong>da</strong> oralmente.<br />

Euterpe, musa <strong>da</strong> poesia lírica, atravessou os séculos trazendo pelas mãos a poesia, que<br />

passou por transformações que foram do advento <strong>da</strong> escrita à invenção <strong>da</strong> imprensa - uma<br />

gran<strong>de</strong> revolução no modo <strong>de</strong> transmissão e <strong>de</strong> elaboração e apresentação <strong>da</strong> produção<br />

poética. Antes <strong>da</strong> constituição do livro como suporte <strong>de</strong> escrita, a arte poética contava<br />

somente com um meio que lhe garantia divulgação e fruição coletivas que era a voz humana.<br />

Dos po<strong>em</strong>as épicos e heróicos <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> greco-romana à tradição trovadoresca, a<br />

apresentação <strong>de</strong> um po<strong>em</strong>a constituía um exercício criativo e interpretativo intimamente<br />

ligado à vocalização e à música. A própria ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do “poeta”, aeidos ou rapsodo, não<br />

comportava uma distinção níti<strong>da</strong> entre a criação e a interpretação, ou entre interpretação<br />

canta<strong>da</strong> ou fala<strong>da</strong>. A história <strong>da</strong> relação entre a poesia e a música na Grécia confun<strong>de</strong>-se com<br />

a própria gênese <strong>da</strong>s duas artes.<br />

O lirismo ganhou espaço nas pastorais, madrigais, bala<strong>da</strong>s e outros tantos cantos dos<br />

trovadores, na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, sendo o amor cortês o t<strong>em</strong>a dominante <strong>da</strong>s obras mais<br />

conheci<strong>da</strong>s. O lirismo chegou à Renascença com novas formas <strong>de</strong> inspiração e expressão, sob<br />

53 NT Wand – que <strong>em</strong> inglês significa a vara mágica dos feiticeiros.<br />

57


a influência <strong>da</strong> releitura dos poetas clássicos e <strong>da</strong> literatura italiana, acrescido do entusiasmo<br />

pela possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inventar uma nova imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> e <strong>de</strong> mundo. A produção poética<br />

<strong>da</strong> época é farta, período <strong>em</strong> que a o<strong>de</strong> e o soneto são os espaços formais mais a<strong>de</strong>quados à<br />

criação lírica. Porém, tal efusão criadora é ceifa<strong>da</strong> pelo classicismo, que valoriza a figura do<br />

hom<strong>em</strong> honesto e simples, privilegiando a hierarquia e a or<strong>de</strong>m, atando a expressão lírica a<br />

exigências formais.<br />

No classicismo a arte se apresentava mecânica, por não estar provi<strong>da</strong> <strong>de</strong> cons<strong>ciência</strong><br />

crítica, e mediava o hom<strong>em</strong> e seu mundo via <strong>da</strong> representação do real, <strong>de</strong> seu conhecimento e<br />

controle, a produção artística <strong>da</strong> época se caracterizado-se por essa tentativa <strong>de</strong> apropriação <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que se modifica ca<strong>da</strong> vez mais rápido <strong>em</strong> uma reconfiguração caleidoscópica. A arte<br />

se transforma com a vi<strong>da</strong>, e a poesia é o ponto <strong>de</strong> encontro entre elas.<br />

Com o iluminismo, no século XVIII, o sujeito autônomo mo<strong>de</strong>rno começou a se firmar. O<br />

advento <strong>da</strong> explosão <strong>de</strong> heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que houve na época, atuou na <strong>de</strong>scentralização do<br />

pensamento pelo abalo ao regime absolutista, aos po<strong>de</strong>res público e religioso, que <strong>de</strong>ixaram<br />

<strong>de</strong> controlar a cons<strong>ciência</strong> <strong>de</strong> uma parte consi<strong>de</strong>rável dos indivíduos. Em meio a essa crise <strong>de</strong><br />

fun<strong>da</strong>mentos filosóficos, espirituais e existenciais, o hom<strong>em</strong> buscou sist<strong>em</strong>atizar o<br />

conhecimento <strong>em</strong> uma tentativa <strong>de</strong> restabelecimento <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, <strong>em</strong> um esforço para assimilar<br />

a infinita heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um mundo que parecia s<strong>em</strong> fim.<br />

Contudo, entre as profun<strong>da</strong>s transformações ocorri<strong>da</strong>s no século XVIII, principalmente na<br />

França, Inglaterra e Al<strong>em</strong>anha, o lirismo renasce, com o primeiro romantismo al<strong>em</strong>ão. A<strong>pós</strong><br />

quase um século <strong>da</strong> rígi<strong>da</strong> estética clássica e <strong>da</strong> vigência <strong>de</strong> convenções <strong>de</strong> expressão<br />

limitadoras, o poeta experimenta a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> expressão individual subjetiva: O poeta é<br />

58


literalmente insensato – <strong>em</strong> contraparti<strong>da</strong>, tudo se passa nele 54 . Ele é, literalmente, sujeito e<br />

objeto ao mesmo t<strong>em</strong>po, alma e universo. Novalis, representante <strong>da</strong> estética romântica do<br />

sonho, expressa a i<strong>de</strong>ntificação do sujeito com o objeto assim como i<strong>de</strong>ntifica a poesia com a<br />

magia, por meio <strong>da</strong>s quais o poeta reinventa a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Pela tessitura <strong>da</strong> poesia, o mundo<br />

transforma-se <strong>em</strong> sonho, e o sonho transforma-se <strong>em</strong> mundo.<br />

2.2. Hegel e os Primeiros Românticos Al<strong>em</strong>ães<br />

O gênero lírico, na concepção <strong>de</strong> Hegel, diz respeito à expressão do sentimento<br />

pessoal do poeta: É a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e<br />

admirações, dores e sensações, toma cons<strong>ciência</strong> <strong>de</strong> si mesma no âmago <strong>de</strong>ste conteúdo. 55 A<br />

referência <strong>de</strong> lírico <strong>de</strong> Hegel era o poeta que cantava a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> ama<strong>da</strong> à imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Orfeu :<br />

uma criatura solitária e chorosa que se mantém pelo seu canto. Em seu trabalho, Estética,<br />

Hegel opõe a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> criação lírica à objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> poesia épica : e a dicotomia<br />

entre o mundo interior, dos sentimentos, e o mundo objetivo, <strong>da</strong>s ações, se instala : as artes<br />

plásticas representam objetos concretos do mundo exterior, e na fantasia poética predominaria<br />

a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a <strong>em</strong>oção e a intuição. A poesia épica representaria o mundo objetivo e o<br />

poeta <strong>de</strong>sapareceria diante <strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s criações, enquanto que na representação lírica<br />

<strong>de</strong> mundo, para que a expressão poética se dê, é necessário haver um <strong>de</strong>spertar através do qual<br />

o poeta envolve suas idéias e impressões, transpondo, por meio <strong>de</strong> palavras, o modo como<br />

percebe a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong>spertando esse estado <strong>em</strong> outras pessoas : a poesia lírica não é a que<br />

fala do sentimento mas no sentimento. 56<br />

54<br />

NOVALIS. Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogo, introdução, tradução e comentários R.R.Torres Filho,<br />

São Paulo, Iluminuras. 1988.<br />

55<br />

HEGEL, G. W. F. Esthétique, Paris, Flammarion, 1958.<br />

56<br />

HEGEL, G. W. F. Sist<strong>em</strong>a <strong>da</strong>s Artes. São Paulo, Martins Fontes, 1977.<br />

59


O filósofo também acreditava que o poeta lírico fosse um indivíduo isolado,<br />

interessado somente pelos estados <strong>da</strong> alma, aquele que se ocupava <strong>da</strong>s próprias sensações,<br />

voltado para si mesmo. O universo exterior só era consi<strong>de</strong>rado significativo quando existia<br />

uma i<strong>de</strong>ntificação, ou fosse passível <strong>de</strong> ser interiorizado, pelo poeta. Em seu conceito <strong>de</strong><br />

lírica, a objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo exterior não era váli<strong>da</strong> por si, pois só se tornava um el<strong>em</strong>ento<br />

<strong>de</strong> criação lírica quando absorvi<strong>da</strong> e externa<strong>da</strong> com as marcas <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do poeta,<br />

como numa revelação íntima. Na reflexão <strong>de</strong> Hegel, a poesia liberta a alma do domínio que a<br />

paixão exerce sobre ela. Mais que isso, a poesia liberta o indivíduo <strong>de</strong> sua fusão com o<br />

conteúdo, realizando o que se <strong>de</strong>nomina: objetivação poética. O conteúdo <strong>da</strong> poesia lírica<br />

não po<strong>de</strong> ser a reprodução verbal <strong>de</strong> uma ação objetiva on<strong>de</strong> todo mundo possa se refletir ou<br />

simbolizar (...); o conteúdo <strong>da</strong> poesia lírica é a maneira como a alma (...) toma cons<strong>ciência</strong><br />

<strong>de</strong> si mesma no âmago <strong>de</strong>sse conteúdo. 57<br />

Hegel compara constant<strong>em</strong>ente a poesia lírica à épica, mas, para distinguí-las atribui à<br />

primeira um caráter <strong>de</strong> pura subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Até mesmo <strong>em</strong> poesias construí<strong>da</strong>s <strong>em</strong> forma<br />

<strong>de</strong>scritiva, a <strong>de</strong>scrição não era vista como neutra, uma vez que o el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong>scritivo po<strong>de</strong> não<br />

ser objetivo, mas funcionar como um símbolo que revela as <strong>em</strong>oções do eu-lírico do poeta.<br />

Esse entendimento <strong>de</strong> lírica como uma expressão <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s não representaria o mundo<br />

exterior e objetivo, tampouco a interação do hom<strong>em</strong> e <strong>da</strong>s coisas do mundo mas,<br />

<strong>de</strong>cisivamente, era o traço <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> que i<strong>de</strong>ntificava e distinguia a lírica dos outros<br />

gêneros como a narrativa e o drama.<br />

Já no início do século XIX, um movimento contra a idéia <strong>de</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> tal qual era<br />

<strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> por Hegel estava se formando, e o ponto <strong>de</strong> discussão central era a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

apreensão racional do absoluto ou <strong>da</strong> realização <strong>de</strong> um saber absoluto. Os primeiros<br />

57 HEGEL, G. W. F. Sist<strong>em</strong>a <strong>da</strong>s Artes. São Paulo, Martins Fontes, 1977.<br />

60


omânticos buscavam o infinito, o que era impossível <strong>de</strong> se realizar, <strong>da</strong>í os sentimentos <strong>de</strong><br />

nostalgia.<br />

Portanto, a questão opositora entre o pensamento <strong>de</strong> Hegel e dos primeiros românticos<br />

al<strong>em</strong>ães vai além <strong>da</strong> oposição entre racionalismo e irracionalismo. O que está <strong>em</strong> discussão é<br />

a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> apreensão total <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo racional ou <strong>da</strong> apreensão não racional e<br />

intuitiva <strong>de</strong>ssa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Hegel rejeita representações artísticas fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s <strong>em</strong> mo<strong>de</strong>lo abstrato<br />

e fragmentário do sujeito.<br />

A tendência mo<strong>de</strong>rna para representar a cisão e a dissonância, num t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que não<br />

se ousa mais falar <strong>de</strong> absoluto n<strong>em</strong> tentar apreen<strong>de</strong>r a totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> é o fragmento. E o<br />

sujeito lírico, que também se apresenta fragmentado, pluralizado, impessoal ou cantando<br />

outras vozes, também po<strong>de</strong>rá evoluir para a <strong>de</strong>sapego total <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou até mesmo a<br />

reconquista <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, não pela racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta, mas pela integração do hom<strong>em</strong> com<br />

a natureza.<br />

A subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> como abstração e fuga <strong>de</strong> um mundo prosaico <strong>em</strong> direção à própria<br />

interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> origina uma forma <strong>de</strong> incomunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tal idéia é representa<strong>da</strong> na teoria<br />

estética <strong>de</strong> Schlegel quando conclui que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira beleza estética é algo “indizível” e<br />

portanto, só po<strong>de</strong> ser representa<strong>da</strong> por nuances, aproximações indiretas, que transformam a<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apreensão do todo <strong>em</strong> uma apresentação simbólica que permite o<br />

conhecimento parcial do objeto: Aquilo que po<strong>de</strong> ser resumido <strong>em</strong> um conceito, <strong>de</strong>ixa-se<br />

talvez apresentar através <strong>de</strong> uma imag<strong>em</strong>: e assim então, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do conhecimento<br />

conduz à apresentação; a filosofia conduz à poesia. 58<br />

Os românticos al<strong>em</strong>ães se voltaram para a importância atribuí<strong>da</strong> à linguag<strong>em</strong>,<br />

consoli<strong>da</strong>ndo a vinculação <strong>da</strong> poesia com o pensamento: O poeta conclui, assim que começa o<br />

58 SCHLEGEL, F. Kritische Freidrich Schlegel – Ausgabe, Editado por Ernst Behler und Hans Eichner –<br />

Pa<strong>de</strong>rborn. Munchen; Wien, 1979 ss, vol XI, p. 9<br />

61


traço. Se o filósofo apenas or<strong>de</strong>na tudo, coloca tudo, então o poeta dissolveria todos os elos.<br />

Suas palavras não são signos universais – são sons – palavras mágicas, que mov<strong>em</strong> belos<br />

grupos <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> si. 59 Novalis, como um notável representante do primeiro romantismo<br />

al<strong>em</strong>ão, que tantas influências originou, que até hoje repercut<strong>em</strong> na poesia e filosofia,<br />

apresenta, <strong>em</strong> seus fragmentos, uma série <strong>de</strong> reflexões sobre o fazer poético e a relação entre<br />

palavras e seus significados. Tais pensamentos <strong>de</strong>ram início a revisões e invenções no uso <strong>da</strong>s<br />

palavras, que possibilitaram o exercício <strong>de</strong> retirá-las <strong>de</strong> seus sentidos <strong>de</strong>sgastados para melhor<br />

expressar<strong>em</strong> as acepções <strong>de</strong>seja<strong>da</strong>s pelo poeta. A repercussão <strong>de</strong>ssas idéias po<strong>de</strong>m ser vistas<br />

na lírica mo<strong>de</strong>rna.<br />

2.3. A Poesia Lírica transmuta-se<br />

Ao longo <strong>da</strong> história, a poesia lírica adotou formas tão diversas que não é possível<br />

estabelecer uma versificação única. Ela se caracterizou pela varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas formas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

seus primórdios. Naturalmente voltado para a amplitu<strong>de</strong>, o lirismo ultrapassou o limite dos<br />

versos e se <strong>de</strong>rramou na prosa. Bau<strong>de</strong>laire <strong>de</strong>monstrou ser possível a escritura <strong>de</strong> uma prosa<br />

poética, musical.<br />

A prosa poética quebra algumas <strong>da</strong>s regras normais <strong>da</strong> prosa, para atingir uma imagética<br />

mais sofistica<strong>da</strong> ou um maior efeito <strong>em</strong>ocional. Como forma poética específica, a prosa<br />

poética originou-se no século XIX, na França. Charles Bau<strong>de</strong>laire, Arthur Rimbaud e<br />

Stephane Mallarmé estiveram entre os fun<strong>da</strong>dores <strong>de</strong>sta forma. 60 Para Bau<strong>de</strong>laire a poesia<br />

po<strong>de</strong> exprimir-se através <strong>da</strong> prosa s<strong>em</strong> qualquer artifício ou marca exterior. Segundo ele, tanto<br />

59 NOVALIS. Pólen. 2ª edição, São Paulo, Iluminuras, 2001.<br />

60 http://pt.wikipedia.org/wiki/Prosa_po%C3%A9tica - visitado <strong>em</strong> 21 <strong>de</strong> fevereiro, 2006<br />

62


o po<strong>em</strong>a como a obra <strong>de</strong> arte <strong>em</strong> geral não se <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> por uma forma específica, mas o efeito<br />

produzido é que constitui o essencial. 61 E o efeito é a surpresa obti<strong>da</strong> por uma nova atitu<strong>de</strong> do<br />

escritor<br />

O ESTRANGEIRO<br />

– Diz, hom<strong>em</strong> enigmático, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> gostas mais ? Do teu pai, <strong>da</strong> tua<br />

mãe, <strong>da</strong> tua irmã ou do teu irmão?<br />

– Não tenho pai, n<strong>em</strong> mãe, n<strong>em</strong> irmã, n<strong>em</strong> irmão.<br />

– Utiliza uma palavra cujo sentido <strong>de</strong>sconheço até agora.<br />

Da pátria?<br />

– Ignoro <strong>em</strong> que latitu<strong>de</strong> se situa.<br />

– Da beleza?<br />

– Amá-la-ia <strong>de</strong> bom grado, <strong>de</strong>usa e imortal.<br />

– Do ouro?<br />

– O<strong>de</strong>io-o como o<strong>de</strong>ia Deus.<br />

– Ah! De que gostas tu então, estrangeiro extraordinário?<br />

– Gosto <strong>da</strong>s nuvens … <strong>da</strong>s nuvens que passam …lá longe …<strong>da</strong>s<br />

maravilhosas nuvens! 62<br />

A literatura estabelece uma relação entre leitor e autor, apesar <strong>da</strong> ausência do corpo<br />

físico <strong>de</strong>ste último, o que acarreta o fato <strong>de</strong> não haver alguém para explicitar o que o autor<br />

quis dizer. Entretanto, tal “explicação” teve lugar por muito t<strong>em</strong>po na literatura, mas as novas<br />

abor<strong>da</strong>gens teóricas, que surgiram <strong>em</strong> função <strong>da</strong> nova produção literária que se fazia então,<br />

compartilhavam a hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> contra o enfoque <strong>de</strong> Lanson e Saint-Beuve que privilegiavam a<br />

biografia do autor ao analisar sua obra. A partir do meio do século XIX, o poeta se torna, mais<br />

do que nunca antes, crítico <strong>de</strong> seu mundo, <strong>de</strong> si mesmo e sua própria produção. Des<strong>de</strong> Poe e<br />

Bau<strong>de</strong>laire os líricos <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> uma reflexão poético-teórica que avança paralelamente á<br />

sua obra. E não o faz<strong>em</strong> por razões didáticas. Deriva, muito mais, <strong>da</strong> convicção mo<strong>de</strong>rna que<br />

o ato poético é uma aventura do espírito operante e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, observador <strong>de</strong> si<br />

61 http://babilonia.ulusofona.pt/traducoes_introducao.pdf - visitado <strong>em</strong> 6 <strong>de</strong> março, 2006.<br />

62 Tradução <strong>de</strong> Ana Cristina Tavares, professora e Investigadora na<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Lusófona <strong>de</strong> Humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s e Tecnologias, 2005, Portugal. Essa tradução está disponível <strong>em</strong><br />

http://babilonia.ulusofona.pt/traducoes_introducao.pdf<br />

63


mesmo, e que este, com a reflexão sobre seu ato, até reforça a alta tensão poética. 63 Os<br />

valores <strong>da</strong> criação ten<strong>de</strong>m a substituir os valores <strong>da</strong> expressão. Nesse contexto muitos são os<br />

artistas que questionam a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se representar, pelo vocabulário já cristalizado <strong>da</strong><br />

cultura, a experiência subjetiva que é <strong>de</strong>flagra<strong>da</strong> pela experiência estética.<br />

Deu-se início a uma farta produção <strong>de</strong> textos críticos elaborados por poetas como Poe,<br />

Mallarmé, Bau<strong>de</strong>laire, Rimbaud, Paul Valéry que, assim como esse poeta, são também<br />

críticos, quanto à elaboração <strong>de</strong> sua arte. Apesar <strong>da</strong> arte produzi<strong>da</strong> por tal poeta crítico<br />

fomentar a reflexão, isso não o torna um hom<strong>em</strong> teórico, no sentido socrático. O poeta-crítico<br />

elabora sua crítica também como um ato criador, sendo ela um espaço on<strong>de</strong> a dúvi<strong>da</strong> po<strong>de</strong><br />

existir, não ambicionando explicar a obra <strong>de</strong> arte com seu pensamento, n<strong>em</strong> oferecer respostas<br />

mas questioná-la, fazê-la ecoar, <strong>de</strong>senvolver outros olhares sobre um po<strong>em</strong>a, num exercício<br />

que amplia o po<strong>em</strong>a, <strong>de</strong>sdobrando cama<strong>da</strong>s <strong>de</strong> leituras, tecendo talvez uma ponte entre a obra<br />

<strong>de</strong> arte e o mundo, transformando o mundo com sua obra crítica, assim como o faz com seus<br />

po<strong>em</strong>as. Tais poetas <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, que se fizeram críticos, dissociaram poesia <strong>de</strong> <strong>em</strong>oção,<br />

no sentido <strong>de</strong> que a produção poética não se dá por uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> pessoal <strong>de</strong> extravasar<br />

<strong>em</strong>oções subjetivas <strong>em</strong> um momento mágico <strong>de</strong> criação. Críticos-poetas e poetas-críticos<br />

produz<strong>em</strong> poesia com técnica e recriam a <strong>em</strong>oção. Emoção esta que se encontra, na busca <strong>da</strong><br />

forma, na escolha <strong>de</strong> palavras e <strong>de</strong> seus silêncios, que comporão uma imag<strong>em</strong> nova, a língua<br />

pura, a flor que falta <strong>em</strong> todos os buquês, como dizia Mallarmé.<br />

O poeta-crítico <strong>de</strong>man<strong>da</strong> um leitor também crítico. A produção <strong>de</strong>sse novo poeta se<br />

liberta <strong>de</strong> um certo número <strong>de</strong> convenções, e ele se arrisca numa escrita <strong>de</strong>sobriga<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

composição <strong>de</strong> alexandrinos ou <strong>da</strong> rígi<strong>da</strong> divisão <strong>de</strong> gêneros. Seu vocabulário ousa palavras<br />

que antes po<strong>de</strong>riam ser tacha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ferir o bom gosto, cunha palavras e esculpe frases que<br />

resgatam vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> para <strong>de</strong>calcar imagens inéditas. São as formas livres, que conduz<strong>em</strong> seu<br />

63 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura <strong>da</strong> Lírica Mo<strong>de</strong>rna. São Paulo, Livraria Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 1978. p. 147<br />

64


pensamento <strong>de</strong> poeta, encharcado <strong>de</strong> idéias inovadoras, assim como são originais as maneiras<br />

<strong>de</strong> apresentá-las, todos procuram uma espécie <strong>de</strong> transcendência <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>: 64<br />

Não me importo com as rimas. Raras vezes<br />

Há duas árvores iguais, uma ao lado <strong>da</strong> outra.<br />

Penso e escrevo como as flores têm cor<br />

Mas com menos perfeição no meu modo <strong>de</strong> exprimir-me<br />

Porque me falta a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> divina<br />

De ser todo só o meu exterior.<br />

Olho e comovo-me,<br />

Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,<br />

E a minha poesia é natural como o levantar-se o vento...<br />

Alberto Caeiro 65<br />

Depurar a linguag<strong>em</strong> e reinventá-la é algo que faz parte <strong>de</strong>ste novo poetar. Mallarmé, um<br />

ícone <strong>de</strong>ssa transformação poética, cuja poesia busca uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>svincular a linguag<strong>em</strong><br />

<strong>da</strong> função informativa e aproximá-la <strong>da</strong> música trabalhando com a própria forma do po<strong>em</strong>a,<br />

reflete sobre o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> separar os estados <strong>da</strong>s palavras <strong>em</strong> seu texto Divagações, <strong>em</strong> 1897: o<br />

estado bruto ou imediato e o essencial. Observa que, para muitas pessoas, o valor <strong>de</strong> troca <strong>da</strong><br />

palavra basta, o <strong>em</strong>prego do discurso com funções informativas está presente na maioria <strong>de</strong><br />

interações entre os seres humanos. É na literatura que a linguag<strong>em</strong> se liberta <strong>de</strong> suas funções<br />

informativas; apesar <strong>da</strong>s palavras não traduzir<strong>em</strong> o real, a composição por meio <strong>de</strong> palavras<br />

caracteriza também um jogo que se revela <strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente humano e re-apresenta o mundo.<br />

A história po<strong>de</strong> ser vista como um tecido <strong>de</strong> imagens que são forma<strong>da</strong>s por discursos, por<br />

linguag<strong>em</strong>. E todo discurso serve a um po<strong>de</strong>r, o po<strong>de</strong>r é ligado à história inteira do hom<strong>em</strong>, e<br />

64 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 151<br />

65 http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v074.txt - visitado <strong>em</strong> 3 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2006.<br />

65


o objeto <strong>em</strong> que se inscreve o po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> to<strong>da</strong> eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, é: a linguag<strong>em</strong> – ou,<br />

para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua. 66<br />

A cons<strong>ciência</strong> histórica <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> v<strong>em</strong> acompanha<strong>da</strong> pela cons<strong>ciência</strong> do hom<strong>em</strong><br />

mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> saber ser ele mesmo responsável pelas mu<strong>da</strong>nças que transformam a<br />

t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> história, dotado que é <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong> marca<strong>da</strong> social e historicamente.<br />

É apenas na literatura que se abre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> libertação <strong>da</strong> ditadura que é a linguag<strong>em</strong>:<br />

só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva,<br />

esse sopro magnífico que permite ouvir a língua fora do po<strong>de</strong>r, no esplendor <strong>de</strong> uma<br />

revolução permanente <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, eu a chamo, quanto a mim: literatura. 67<br />

É no espaço poético que o po<strong>em</strong>a rompe os limites <strong>da</strong> própria linguag<strong>em</strong> ultrapassando-<br />

a,(...) o po<strong>em</strong>a é histórico e ultrapassa a história. Ao ser ultrapassado, o t<strong>em</strong>po histórico<br />

transfigura-se <strong>em</strong> arquétipo, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> orig<strong>em</strong>, t<strong>em</strong>po anterior a qualquer história, a<br />

literatura expressa a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>; ao expressá-la, ela a mu<strong>da</strong>, contradiz ou nega. Ao retratá-la,<br />

inventa-a, ao inventá-la, revela-a. 68<br />

Há na poesia finissecular norte-americana, um brevíssimo po<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Emily Dickinson, no<br />

qual escreve que a poesia não habita os livros, mas é fugaz e livre, e po<strong>de</strong> ser reconheci<strong>da</strong> ao<br />

se olhar para o céu <strong>de</strong> verão - - os ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros po<strong>em</strong>as voam - -<br />

To see the Summer Sky<br />

Is Poetry, though never in a Book it lie --<br />

True Po<strong>em</strong>s flee - - 69<br />

66 BARTHES, Roland. A Aula. São Paulo, Editora Cultrix. 1978. p. 14<br />

67 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. pág. 16<br />

68 PAZ, Octavio. El Arco Y La Lira. 1 a . ed. México, D. F. : Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1946. p. 165. in<br />

CRIPA, Ival <strong>de</strong> Assis. A historia <strong>da</strong> poesia e a poesia <strong>da</strong> história: crítica literária e história intelectual nos<br />

ensaios <strong>de</strong> Octavio Paz. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISPANISTAS, 2., 2002, São Paulo. Anais<br />

eletrônicos... Associação Brasileira <strong>de</strong> Hispanistas, Disponível <strong>em</strong>: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php<br />

69 http://www.americanpo<strong>em</strong>s.com/poets/<strong>em</strong>ilydickinson/ - visitado <strong>em</strong> junho <strong>de</strong> 2006<br />

66


Ver o Céu <strong>de</strong> Verão<br />

é Poesia, apesar <strong>de</strong> <strong>em</strong> um livro ele nunca estar- -<br />

Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros Po<strong>em</strong>as voam - - 70<br />

Uma idéia próxima à apresenta<strong>da</strong> no po<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Dickinson po<strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

Fernando Pessoa, pela voz <strong>de</strong> Alberto Caeiro: Porque me falta a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> divina / De ser<br />

todo só o meu exterior. A linguag<strong>em</strong> não apenas representa a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do poeta, fatos <strong>da</strong><br />

natureza, mas por sua vez, ela também é um fora, um exterior, um local on<strong>de</strong> o poeta cria e<br />

apresenta reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Através <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, a força <strong>da</strong> natureza po<strong>de</strong> ser con<strong>de</strong>nsa<strong>da</strong>;<br />

apresenta<strong>da</strong> com novas cores, com imaginação, <strong>em</strong> um exercício que resgata o espanto do<br />

hom<strong>em</strong> frente à vi<strong>da</strong>. O que antes jazia inerte é colhido pelo poeta e insuflado <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> pelo<br />

modo como ele <strong>de</strong>s<strong>em</strong>baraça as filigranas <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> sobre o branco do papel, tecendo uma<br />

construção que produz efeitos inesgotáveis, uma vez que a poesia vela sentidos, enquanto<br />

revela outros, num <strong>de</strong>sdobramento s<strong>em</strong> fim.<br />

Mallarmé cria a figura <strong>da</strong> flor ausente <strong>de</strong> todos os buquês para representar sua relação <strong>de</strong><br />

busca e escolha <strong>de</strong> palavras. Porque o poeta é aquele que quer esquecer o sentido já exaurido,<br />

para que sua voz possa trazer um novo contorno às construções ficcionais, on<strong>de</strong> a língua<br />

possa reencontrar seu po<strong>de</strong>r encantatório sobre as palavras. Mallarmé, <strong>em</strong> Lance <strong>de</strong> Dados,<br />

Coup-<strong>de</strong>-Dés 71 , busca aproximar a poesia <strong>da</strong> música, <strong>de</strong>slocando para tanto, a poesia do<br />

domínio <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição, libertando-a dos sentimentos, <strong>de</strong> uma paisag<strong>em</strong> mancha<strong>da</strong> pelas<br />

<strong>em</strong>oções do eu-lírico, e dispondo <strong>da</strong>s palavras tridimensionalmente, como se foss<strong>em</strong> notas <strong>em</strong><br />

frases musicais, r<strong>em</strong>etendo à pauta e à combinação <strong>de</strong> várias vozes. As palavras, que antes<br />

po<strong>de</strong>riam aparentar imobili<strong>da</strong><strong>de</strong>, como que se acen<strong>de</strong>m <strong>em</strong> reflexos recíprocos, <strong>da</strong>ndo vi<strong>da</strong> a<br />

70 Tradução Livre por <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong><br />

67


uma escrita que permite a <strong>de</strong>saparição elocutória do poeta, que ce<strong>de</strong> a elas sua iniciativa. O<br />

efeito resultante é um texto que não se <strong>de</strong>sgasta ao ser lido, pois oferece várias cama<strong>da</strong>s,<br />

leituras diversas nas várias vozes que as palavras assum<strong>em</strong>, distribuí<strong>da</strong>s <strong>de</strong> tal modo que até o<br />

branco <strong>da</strong> página compõe plasticamente o quadro poético. O próprio Mallarmé compara seu<br />

po<strong>em</strong>a a um céu estrelado ou a fogos <strong>de</strong> artifício. Tal po<strong>em</strong>a é tão único <strong>em</strong> sua forma <strong>de</strong><br />

composição que julgamos não ser possível sua reprodução no presente estudo, pelo fato <strong>de</strong><br />

sua diagramação ser essencial para sua apresentação.<br />

A poesia mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>nuncia a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do discurso humano, distanciando a linguag<strong>em</strong><br />

poética <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> usual, a poesia rompe com a idéia <strong>de</strong> comunicação assertiva on<strong>de</strong> há um<br />

apelo para uma ação prática. O poeta francês busca o verso no qual vários vocábulos refaz<strong>em</strong><br />

uma palavra total, nova, estranha à língua, e que se torna como que encanta<strong>da</strong> ao adquirir um<br />

isolamento <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> cotidiana. O acaso na combinação entre sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> e sentidos que<br />

nos causa surpresa por jamais ter ouvido um <strong>da</strong>do fragmento composto <strong>de</strong> palavras tão<br />

comuns, mas que se tornam tão frescas, revigora<strong>da</strong>s que chegam a voltar a afetar o objeto<br />

poetado com uma nova atmosfera. 72 As alterações nas funções <strong>da</strong>s preposições, adjetivos e<br />

dos advérbios, <strong>da</strong>s formas verbais, do <strong>em</strong>prego <strong>de</strong> substantivos, tudo isso resulta <strong>em</strong> um<br />

procedimento estilístico que rompe com a função informacional, apresentando não apenas<br />

sons, mas seus signos e silêncios que possibilitam a intensificação do efeito poético; 73 a não-<br />

palavra / que repousa / entre palavra e palavra. 74<br />

71 http://poetes.com/mallarme/coup_<strong>de</strong>.htm - visitado <strong>em</strong> junho <strong>de</strong> 2006<br />

72 le vers qui <strong>de</strong> plusieurs vocables refait um mot total, neuf, étrager à la langue et comme incantatoire, achève<br />

ce isol<strong>em</strong>ent <strong>de</strong> la parole : niant d’un trait souverain, le hasard <strong>de</strong>meuré aux termes malgré l’artifice <strong>de</strong> leur<br />

retr<strong>em</strong>pe alternée en le sens et la sonorité, et vous cause cetter surprise <strong>de</strong> n’avoir ouï jamais tel fragment<br />

ordinaire d’élocution, en même t<strong>em</strong>ps que la r<strong>em</strong>iniscence <strong>de</strong> l’object nommé baigne <strong>da</strong>ns une neuve<br />

atmosphère. 72 Mallarmé – Divagations.<br />

73 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura <strong>da</strong> Lírica Mo<strong>de</strong>rna. São Paulo, Livraria Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 1978. p. 159.<br />

74 DOMIN,Hil<strong>de</strong>. In FRIEDRICH, Hugo. p. 159.<br />

68


A poesia é intraduzível além <strong>de</strong> ser indizível <strong>em</strong> prosa comum, assim como as palavras<br />

não traduz<strong>em</strong> o real. A criação poética do final do século XVIII e início do XIX se <strong>de</strong>para<br />

com a cons<strong>ciência</strong> <strong>de</strong>ssa impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Bau<strong>de</strong>laire, cujo foco foi a beleza <strong>da</strong> forma e seus<br />

efeitos, é um marco na história literária, precursor <strong>de</strong>sta nova poesia que não po<strong>de</strong> mais ser<br />

separa<strong>da</strong> <strong>da</strong> filosofia, o movimento do lirismo romântico conduz o poeta a transbor<strong>da</strong>r sua<br />

própria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> para colocar outros el<strong>em</strong>entos <strong>em</strong> seu canto, como a natureza ou o outro.<br />

O ESPELHO<br />

Um hom<strong>em</strong> medonho entra e olha-se ao espelho.<br />

"– Por que razão se olha ao espelho, uma vez que só se po<strong>de</strong>rá aí ver<br />

com <strong>de</strong>sagrado?"<br />

O hom<strong>em</strong> medonho respon<strong>de</strong>-me: "– Caro senhor, segundo os imortais<br />

princípios <strong>de</strong> 89, todos os homens são iguais perante a lei; portanto<br />

tenho o direito <strong>de</strong> me mirar; com agrado ou <strong>de</strong>sagrado, isso só á minha<br />

cons<strong>ciência</strong> po<strong>de</strong>rá apreciar."<br />

Em nome do bom senso, eu tinha s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> razão; mas, <strong>de</strong> acordo<br />

com a lei, ele não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> estar certo. 75<br />

Bau<strong>de</strong>laire tomou parte importante no início <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalização na<br />

poesia mo<strong>de</strong>rna no qual a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> entre a poesia e a <strong>em</strong>oção individual do poeta se <strong>de</strong>sfaz. 76<br />

Edgar Allan Poe também é um dos ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> poeta que estabeleceu uma rigorosa<br />

distinção entre poesia e sentimento. Ele foi uma influência para Bau<strong>de</strong>laire e Mallarmé, visto<br />

que ambos o traduziram para o francês. O po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> imaginação como facul<strong>da</strong><strong>de</strong> governa<strong>da</strong><br />

75 http://babilonia.ulusofona.pt/traducoes_introducao.pdf<br />

XL. Le Miroir – visitado <strong>em</strong> fevereiro 2006 – traduzido por Ana Cristina Tavares.<br />

Un homme épouvantable entre et se regar<strong>de</strong> <strong>da</strong>ns la glace.<br />

"- Pourquoi vous regar<strong>de</strong>z-vous au miroir, puisque vous ne pouvez vous y voir qu'avec déplaisir?"<br />

L'homme épouvantable me répond: "- Monsieur, d'après les immortels principes <strong>de</strong> 89, tous les hommes<br />

sont égaux en droits; donc je possè<strong>de</strong> le droit <strong>de</strong> me mirer; avec plaisir ou déplaisir, cela ne regar<strong>de</strong> que<br />

ma conscience."<br />

Au nom du bon sens, j'avais sans doute raison; mais, au point <strong>de</strong> vue <strong>de</strong> la loi, il n'avait pas tort. 75<br />

76 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura <strong>da</strong> Lírica Mo<strong>de</strong>rna. São Paulo, Livraria Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 1978.<br />

69


pela inteligência era b<strong>em</strong>-vindo, mas não a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do coração ou o sentimentalismo<br />

pessoal. Também <strong>em</strong> Eliot e Fernando Pessoa po<strong>de</strong>-se observar tais traços:<br />

Isto<br />

Diz<strong>em</strong> que finjo ou minto<br />

Tudo que escrevo. Não.<br />

Eu simplesmente sinto<br />

Com a imaginação.<br />

Não uso o coração.<br />

Tudo o que sonho ou passo,<br />

O que me falha ou fin<strong>da</strong>,<br />

É como que um terraço<br />

Sobre outra coisa ain<strong>da</strong>.<br />

Essa coisa é que é lin<strong>da</strong>.<br />

Por isso escrevo <strong>em</strong> meio<br />

Do que não está <strong>de</strong> pé,<br />

Livre do meu enleio,<br />

Sério do que não é.<br />

Sentir? Sinta qu<strong>em</strong> lê! 77<br />

S<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> o poeta português é imbatível ao sintetizar <strong>em</strong> seus versos idéias tão<br />

complexas. Estampa, com linguag<strong>em</strong> poética uma reflexão metalingüística sobre o fazer<br />

poético.<br />

Octávio Paz, escritor mexicano nascido <strong>em</strong> 1914, faz uma reflexão sobre a literatura<br />

através do t<strong>em</strong>po, e percebe, na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, um movimento <strong>de</strong> contínuo <strong>de</strong>sencanto do<br />

poeta, dividido entre a mo<strong>de</strong>rna concepção do mundo e a presença, às vezes irrefreável, <strong>da</strong><br />

inspiração. Paz observa que os primeiros a pa<strong>de</strong>cer<strong>em</strong> <strong>de</strong>sse conflito foram os românticos<br />

al<strong>em</strong>ães. Mesmo assim, foram os únicos que enfrentaram com plenitu<strong>de</strong> e luci<strong>de</strong>z o probl<strong>em</strong>a<br />

e os únicos – até o movimento surrealista – que não se limitaram a sofrê-lo mas tentaram<br />

77 Fernando Pessoa. Disponível <strong>em</strong> http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v066.txt visitado <strong>em</strong> 16 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2006<br />

70


transcendê-lo. 78 Paz cunhou o termo outri<strong>da</strong><strong>de</strong>, que <strong>de</strong>signa a heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser <strong>em</strong> sua<br />

dimensão essencial.<br />

A idéia <strong>de</strong> outri<strong>da</strong><strong>de</strong>, parece comportar os heterônimos <strong>de</strong> Fernando Pessoa, e os<br />

pseudônimos que usava para assinar sua escrita que variavam <strong>em</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e estilo, e eram<br />

dramatis personae assumindo o papel <strong>de</strong> personagens diversos do “eu” do poeta. No ato <strong>da</strong><br />

criação o autor se ausenta do conhecido a fim <strong>de</strong> se aventurar no <strong>de</strong>sconhecido, <strong>de</strong>ixando que<br />

a imaginação atue no fazer <strong>da</strong>s coisas.<br />

Também Emily Dickinson, <strong>em</strong> seus po<strong>em</strong>as, adota uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “personas”,<br />

po<strong>de</strong>ndo ser uma menininha, uma rainha, uma noiva, uma esposa, uma mulher a beira <strong>da</strong><br />

morte, um menino ou mesmo uma abelha. Porém, cerca <strong>de</strong> 150 <strong>de</strong> seus po<strong>em</strong>as iniciam-se<br />

com eu , e a poeta afirma que seu trabalho não <strong>de</strong>ve ser visto dissociado <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> pessoal:<br />

Quando eu me afirmo, a mim mesma, como Representante do Verso, não significa que esse –<br />

eu – seja uma suposta pessoa. 79<br />

I'm Nobody! Who are you?<br />

Are you -- Nobody -- Too? 80<br />

Eu sou Ninguém! Qu<strong>em</strong> é você?<br />

Você é - - Ninguém - - também?<br />

Novalis e T.S. Eliot também falavam <strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalização do “eu-escritor”; a poesia<br />

mo<strong>de</strong>rna exclui não apenas a pessoa priva<strong>da</strong> mas até mesmo os aspectos humanos mais<br />

78 PAZ, Octavio. El Arco Y La Lira. 1 a . ed. México, D. F. : Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, 1946. p. 165. in<br />

CRIPA, Ival <strong>de</strong> Assis. A historia <strong>da</strong> poesia e a poesia <strong>da</strong> história: crítica literária e história intelectual nos ensaios<br />

<strong>de</strong> Octavio Paz. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISPANISTAS, 2., 2002, São Paulo. Anais eletrônicos...<br />

Associação Brasileira <strong>de</strong> Hispanistas, Disponível <strong>em</strong>: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php<br />

79<br />

Tradução livre por <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong>: When I state myself, as the Representative of the Verse, it does not<br />

mean--me--but a supposed person<br />

80<br />

http://www.americanpo<strong>em</strong>s.com/poets/<strong>em</strong>ilydickinson/10240 - visitado <strong>em</strong> 16 <strong>de</strong> abril, 2006<br />

71


ásicos. Rimbaud, mais radical, rejeita a poesia subjetiva e a chama <strong>de</strong> insípi<strong>da</strong>: Votre<br />

subjective sera toujours horribl<strong>em</strong>ent fa<strong>da</strong>sse. 81<br />

Em 1871 Rimbaud escreveu duas cartas, intitula<strong>da</strong>s Cartas do Vi<strong>de</strong>nte 82 , nas quais<br />

esboçou um projeto para uma poesia futura, inaugurando a segun<strong>da</strong> fase <strong>de</strong> sua própria<br />

poesia, o que confirma a idéia <strong>de</strong> que para Rimbaud a produção é inseparável <strong>da</strong> reflexão<br />

sobre o fazer poético. Nascia o poeta crítico, vi<strong>de</strong>nte. A busca do <strong>de</strong>sconhecido, a<strong>de</strong>ntrando o<br />

invisível e ouvindo o inaudível <strong>em</strong> um processo transcen<strong>de</strong>nte, faz parte do caminho <strong>de</strong><br />

criação <strong>de</strong>sse poeta francês. O <strong>de</strong>sconhecido é atingido quando o poeta se transforma <strong>em</strong><br />

outro e assiste à eclosão <strong>de</strong> seu próprio pensamento.<br />

Rimbaud nos apresenta o drama gnosiológico do poeta mo<strong>de</strong>rno transcen<strong>de</strong>ntal on<strong>de</strong> o<br />

“eu” passa a ser um outro. O “eu” não mais se i<strong>de</strong>ntifica n<strong>em</strong> com o sujeito n<strong>em</strong> com o objeto<br />

e, <strong>de</strong>ssa forma, rompe com tudo, <strong>de</strong>sguarnece a estranha estruturação que <strong>de</strong>signa a<br />

singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> do eu-oci<strong>de</strong>ntal. Por mais que crie heterônimos, o poeta continua anônimo <strong>de</strong> si-<br />

mesmo. Rimbaud é a <strong>de</strong>núncia do pensamento que se esvazia <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> própria: pensa-se<br />

<strong>em</strong> mim.<br />

2.4. A Desumanização do eu-lírico<br />

Em 1925 foi publicado um ensaio <strong>de</strong> Ortega y Gasset sobre a <strong>de</strong>sumanização na arte,<br />

La Deshumanización <strong>de</strong>l Arte, cuja idéia central t<strong>em</strong> raízes nas teorias estéticas <strong>de</strong> Kant e<br />

Schiller, <strong>em</strong> particular sobre a beleza gratuita, e resi<strong>de</strong> na idéia <strong>de</strong> que o sentimento <strong>de</strong><br />

humani<strong>da</strong><strong>de</strong> suscitado por uma obra <strong>de</strong> arte <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s estéticas. A<br />

<strong>de</strong>formação do real, ou sua estilização implicam <strong>em</strong> <strong>de</strong>sumanização. Tais idéias se refletiram<br />

na arte mo<strong>de</strong>rna – Ungaretti 1935 – sentimento do t<strong>em</strong>po.<br />

81 ROBERT, Paul. Dictionnaire alphabétique et analogique <strong>de</strong> la langue Française. SNL, Paris, 1976.<br />

72


Ao refletir sobre a popularização <strong>da</strong> arte no século XIX e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma arte<br />

realmente “pura”, Ortega y Gasset conclui que, ain<strong>da</strong> que a arte “pura” seja impossível, há<br />

uma tendência <strong>de</strong> purificação <strong>da</strong> arte, e que esta busca a eliminação progressiva <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos<br />

<strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente humanos, que dominavam a produção romântica e naturalista. Mas, neste<br />

processo, se chegará a um ponto <strong>em</strong> que o conteúdo humano <strong>da</strong> obra seja tão escasso que<br />

quase não seja visível. 83<br />

O po<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>rico Garcia Lorca: El Grito po<strong>de</strong> ser tomado como ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong>ssa<br />

poesia <strong>de</strong>sumaniza<strong>da</strong>; s<strong>em</strong> “eu”. A elipse é o sujeito poético que lhe dá orig<strong>em</strong> e os el<strong>em</strong>entos<br />

do po<strong>em</strong>a se constitu<strong>em</strong> a partir <strong>de</strong>ssa ausência. O po<strong>em</strong>a representa o anonimato <strong>em</strong> forma<br />

<strong>de</strong> língua:<br />

A elipse <strong>de</strong> um grito<br />

vai <strong>de</strong> monte<br />

<strong>em</strong> monte.<br />

Visto do olival<br />

será um arco-íris negro<br />

sobre a noite azul.<br />

Ai!<br />

Como um arco <strong>de</strong> viola,<br />

o grito faz vibrar<br />

longas cor<strong>da</strong>s do vento.<br />

Ai!<br />

(A gente <strong>da</strong>s grutas<br />

assoma seus can<strong>de</strong>eiros)<br />

Ai! 84<br />

82<br />

Les Lettres du Voyant, Rimbaud, Arthur.<br />

83<br />

ORTEGA Y GASSET, José. La Deshumanizacion Del Arte y otros ensayos <strong>de</strong> estética. Espanha, Alianza<br />

Editorial 1991, p. 19.<br />

84<br />

In FRIEDRICH, Hugo. Estrutura <strong>da</strong> Lírica Mo<strong>de</strong>rna. Tradução <strong>de</strong> Dora F. <strong>da</strong> Silva<br />

São Paulo, Livraria Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 1978. p. 237<br />

73


O próprio García Lorca ao comentar o estilo poético do poeta barroco Luís <strong>de</strong><br />

Góngora, do século XVII, observa que a poesia <strong>de</strong>ste último reflete a crença <strong>de</strong> que seu valor<br />

po<strong>de</strong> ser aumentado na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que sua escrita se afaste <strong>da</strong> normali<strong>da</strong><strong>de</strong>, seja do mundo<br />

exterior como do interior. Isto é apresenta a evidência <strong>de</strong> que tal traço estilístico <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>spersonalização não começou no mo<strong>de</strong>rnismo. Góngora preferia os reinos que só exist<strong>em</strong><br />

poeticamente, construindo, com uma linguag<strong>em</strong> on<strong>de</strong> as palavras gozavam <strong>de</strong> autonomia, um<br />

edifício que resiste ao t<strong>em</strong>po. 85<br />

To<strong>da</strong> poesia que escolhe como sujeito o mundo <strong>da</strong>s coisas é uma variante <strong>da</strong> literatura<br />

<strong>da</strong> <strong>de</strong>sumanização. Ponge é um dos melhores ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> poeta que escolhe como t<strong>em</strong>ática<br />

<strong>de</strong> sua poesia objetos como a concha, a vela, o cigarro. O “eu” que veicula é fictício e um<br />

mero condutor <strong>da</strong> língua, e ele não <strong>de</strong>forma as coisas sobre as quais escreve, mas as imobiliza<br />

e exclui o el<strong>em</strong>ento humano <strong>de</strong> suas construções poéticas:<br />

Mais abaixo que eu, s<strong>em</strong>pre mais abaixo que eu se encontra a água. É<br />

s<strong>em</strong>pre com os olhos baixos que a vejo. Como o solo, como uma parte do solo,<br />

como uma modificação do solo.<br />

É branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstina<strong>da</strong> <strong>em</strong> seu<br />

único vício: a gravi<strong>da</strong><strong>de</strong>, dispondo <strong>de</strong> meios excepcionais para satisfazer esse<br />

vício: contornando, transpassando, erodindo, filtrando(...) 86<br />

Tal poesia aparent<strong>em</strong>ente objetiva chama a atenção para o fato <strong>de</strong> que na poesia mo<strong>de</strong>rna<br />

o hom<strong>em</strong> ain<strong>da</strong> se encontra presente, mas <strong>de</strong> uma outra forma, produtor <strong>de</strong> uma língua<br />

criativa/criadora, como imaginário. A <strong>de</strong>svalorização <strong>da</strong>s formas orgânicas realça a força<br />

intrínseca <strong>da</strong> própria estilística utiliza<strong>da</strong>. O traço essencial <strong>de</strong>ssa força estilística <strong>de</strong>formadora<br />

se traduz na inversão <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m hierárquica, uma representação do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> que este parece<br />

esfacelar sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, transferindo o foco <strong>da</strong> escrita para o objeto. A <strong>de</strong>sumanização dos<br />

conteúdos e a imparciali<strong>da</strong><strong>de</strong> garant<strong>em</strong> um novo exercício do jogo com a linguag<strong>em</strong>, <strong>em</strong> uma<br />

85 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 149.<br />

74


usca <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> no estranho paradoxo <strong>da</strong> <strong>de</strong>sumanização, como <strong>em</strong> Ungaretti: Hoje estou<br />

bêbado / <strong>de</strong> universo 87 . O poeta italiano busca <strong>de</strong>spojar seus versos <strong>de</strong> previsibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. A<br />

concisão potencializa o efeito poético e fomenta o espanto. Sua produção ilustra o princípio<br />

poético, <strong>de</strong>scrito por Edgar Allan Poe, <strong>em</strong> que o efeito <strong>da</strong> criação poética <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> extensão<br />

do texto, e que este <strong>de</strong>ve ser breve para alcançar o resultado <strong>de</strong>sejado. 88<br />

Entretanto, apesar <strong>da</strong> exacerbação <strong>de</strong>ssa crise do lirismo que preconiza a <strong>de</strong>saparição<br />

elocutória do eu lírico do poeta, o lirismo foi, paradoxalmente, reforçado. A poesia afirma sua<br />

autonomia ao se libertar <strong>da</strong> expressão subjetiva individual e do di<strong>da</strong>tismo, e se transforma <strong>em</strong><br />

uma aventura <strong>em</strong> si mesma, na busca do que ain<strong>da</strong> não foi dito.<br />

2.5. O lirismo <strong>de</strong> Hegel dissolve-se na poética mo<strong>de</strong>rna: <strong>em</strong>erge o sujeito lírico fora <strong>de</strong> si<br />

A crise do lirismo se instaurou com a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar-se a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

poeta no mundo mo<strong>de</strong>rno. A efusão do eu lírico se dissolveu ao tropeçar naquela pedra que<br />

havia no meio do caminho. 89<br />

Objeto <strong>de</strong> críticas várias, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do século XIX, o lirismo, enquanto expressão<br />

<strong>da</strong> <strong>em</strong>oção pessoal do poeta, per<strong>de</strong>u lugar para uma poesia <strong>de</strong>spersonaliza<strong>da</strong>. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ele<br />

não per<strong>de</strong>u lugar, não foi substituído mas transfigurado. O lirismo, assim como o sujeito<br />

poético, renovou-se; o lirismo, tal qual concebido por Hegel se opõe à “poética <strong>da</strong> matéria”<br />

que redireciona e reconfigura o conceito primeiro <strong>de</strong> lírico. Ele ain<strong>da</strong> existe e apresenta traços<br />

86 PONGE, Francis. O partido <strong>da</strong>s Coisas. São Paulo, Iluminuras, 2000, pág. 103.<br />

87 Giuseppe Ungaretti. In A Alegria. Tradução e notas <strong>de</strong> Geraldo Holan<strong>da</strong> Cavalcanti. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, Editora Record, 2003. disponível <strong>em</strong><br />

http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet143.htm - visitado <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2006<br />

88 http://www.bartleby.com/28/14.html - visitado <strong>em</strong> 16 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2006<br />

89 SEIXAS, Cid. www.jornal<strong>de</strong>poesia.com - visitado <strong>em</strong> 1 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2006.<br />

75


interessantes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sua releitura seja feita <strong>de</strong> modo a não recair <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa, n<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

negação total, mas que ofereça mu<strong>da</strong>nças no conceito original <strong>de</strong> sujeito-lírico. As acirra<strong>da</strong>s<br />

críticas, que foram levanta<strong>da</strong>s pelos movimentos chamados <strong>de</strong> vanguar<strong>da</strong>, contra o lirismo<br />

po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>flagrar uma dinâmica reducionista <strong>em</strong> que oposições se digladiam estérilmente.<br />

Não se <strong>de</strong>ve reduzir uma crítica a uma negação simplória, a uma mera inversão que se<br />

resumiria na oposição <strong>de</strong> pares conceituais como: objeto contra sujeito, a letra contra a<br />

significação, corpo contra espírito. O po<strong>em</strong>a lírico é um artefato verbal, e sua escrita encarna<br />

palavras e o mundo. Existe a proposta <strong>de</strong> uma outra dimensão que seria a interação existente<br />

na criação poética <strong>em</strong> que o processo po<strong>de</strong> ser visto como relacional entre sujeito e objeto,<br />

atravessando a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> do corpo, <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> e do mundo. Michel Collot 90 apresenta à<br />

poesia e à crítica mo<strong>de</strong>rnas uma alternativa pela qual a redução dicotômica po<strong>de</strong> ser<br />

ultrapassa<strong>da</strong>.<br />

A essência <strong>da</strong> lírica, para Hegel, está na revelação e aprofun<strong>da</strong>mento do próprio eu, no<br />

ritmo <strong>de</strong>sse eu. To<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é afunila<strong>da</strong> pelas dimensões e tons do eu do poeta lírico. Ao<br />

lírico é impossível exilar-se <strong>de</strong> si mesmo, alhear-se <strong>da</strong> sua interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> a fim <strong>de</strong> se outrar,<br />

como diria Fernando Pessoa, a fim <strong>de</strong> criar seres e coisas que alcanc<strong>em</strong> um subido grau <strong>de</strong><br />

distanciamento <strong>em</strong> relação ao sujeito individual. 91 Collot afirma que é sim possível a poesia<br />

lírica se outrar e é exatamente este fora <strong>de</strong> si o lócus on<strong>de</strong> o sujeito lírico po<strong>de</strong> realizar a<br />

poesia enquanto poiésis 92 , ou seja, ao fazer surgir algo que antes não existia, reencantar-se ao<br />

90 Michel Collot é Professor <strong>da</strong> Sorbonne Paris III e dirige um s<strong>em</strong>inário <strong>de</strong> poesia contenporânea<br />

Poeta e teórico, ele tenta <strong>de</strong>finir um novo enfoque <strong>da</strong> poesia mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>volvendo a obra a seu próprio<br />

horizonte. http://www.hpaysage.levillage.org/collot.htm - M<strong>em</strong>bro <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> revista Génésis, é co-fun<strong>da</strong>dor<br />

<strong>da</strong> Associação Horizon paysage que visa questionar por meio <strong>de</strong> diferentes encontros e publicações os<br />

enquandramentos <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong> no mundo cont<strong>em</strong>porâneo.<br />

91 AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria <strong>da</strong> Literatura. Coimbra, Livraria Almedina, 1969.<br />

92 Poiesis: palavra <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> grega que significou inicialmente criação, ação, confecção, fabricação e <strong>de</strong>pois<br />

terminou por significar arte <strong>da</strong> poesia e facul<strong>da</strong><strong>de</strong> poética.<br />

76


mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que reinventa a linguag<strong>em</strong> <strong>da</strong> poesia, reconfigurando-se atravessado pelo<br />

vigor do novo, por vi<strong>da</strong>. Também Paul Valéry <strong>em</strong>pregava a palavra “poesia” <strong>em</strong> seu sentido<br />

etimológico grego, que é o <strong>de</strong> “fazer” aproximando a criação poética do ato <strong>de</strong> produzir.<br />

Enquanto para Hegel a poesia lírica não nasce do anseio <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o real, n<strong>em</strong> do<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> criar sujeitos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do eu-lírico do poeta, a leitura <strong>de</strong> Collot oferece uma<br />

hipótese <strong>de</strong> que na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> o poeta compõe fora <strong>de</strong>ssa subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> lírica hegeliana,<br />

<strong>de</strong>salojado <strong>de</strong>ssa interiori<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A experiência <strong>de</strong> pertencimento ao outro é acresci<strong>da</strong> do pertencimento ao t<strong>em</strong>po, ao<br />

mundo e à linguag<strong>em</strong> e faz<strong>em</strong> com que o sujeito criador se torne sujeito ao que o inspira e à<br />

linguag<strong>em</strong>. O poeta é sujeito ao mundo, pertencido do t<strong>em</strong>po, <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> e <strong>da</strong>s coisas. Mas<br />

esse mundo e essa linguag<strong>em</strong> se encontram <strong>de</strong>sencantados, não há mais um Deus, um Sagrado<br />

e suas criações para ser<strong>em</strong> canta<strong>da</strong>s, apenas um mundo <strong>de</strong>scolorido e cindido, percebido <strong>em</strong><br />

partes por um sujeito fragmentado. A reinterpretação feita por Collot do lirismo aponta a<br />

transcendência como uma ilusão lírica, e <strong>de</strong>nuncia a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> para a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira constituição do sujeito. Assim transformado, o lirismo ressurge como uma<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> legítima <strong>de</strong> expressão do sujeito cont<strong>em</strong>porâneo. Collot conclui que o sujeito só<br />

po<strong>de</strong>rá encontrar sua “ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mais íntima” não <strong>em</strong> sua interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> mas, paradoxalmente,<br />

fora <strong>de</strong> si. Existir é algo que r<strong>em</strong>ete para fora, como sugere o prefixo grego “ex” que significa<br />

para fora: é apenas saindo <strong>de</strong> si que ele coinci<strong>de</strong> consigo mesmo, não como uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

mas como uma ipsei<strong>da</strong><strong>de</strong> que, ao invés <strong>de</strong> excluir, inclui a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> 93 .<br />

Tal enfoque, entretanto, não recai na simples negação <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas antes,<br />

transforma a atribuição <strong>de</strong> peso e importância entre sujeito e objeto. Através dos objetos que<br />

convoca e constrói, o sujeito não expressa mais um foro íntimo e anterior: ele se inventa<br />

93 RICOEUR, Paul. in COLLOT, Michel. Le sujet lyrique hors <strong>de</strong> soi. In Figures du sujet lyrique. Dominique<br />

Rabaté (dir). Paris: PUF, 1996. p. 113-125.<br />

77


<strong>de</strong>s<strong>de</strong> fora e do futuro no movimento <strong>de</strong> uma <strong>em</strong>oção que o faz sair <strong>de</strong> si para se reencontrar<br />

e se reunir com os outros no horizonte do po<strong>em</strong>a. 94<br />

Sou um guar<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> rebanhos.<br />

O rebanho é os meus pensamentos<br />

E os meus pensamentos são todos sensações.<br />

Penso com os olhos e com os ouvidos<br />

E com as mãos e os pés<br />

E com o nariz e a boca.<br />

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la<br />

E comer um fruto é saber-lhe o sentido. (...) 95<br />

A partir <strong>da</strong> primeira meta<strong>de</strong> do século XX, o lirismo <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> representar a expressão<br />

<strong>de</strong> uma individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> privilegia<strong>da</strong> para explorar o território do outro, conforme a produção<br />

mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> a<strong>pós</strong> a revolução estética do século XIX. Na leitura <strong>de</strong> Hegel, na velha Grécia a<br />

lírica era sinônimo <strong>da</strong> manifestação <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém, o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalização<br />

<strong>de</strong>struiu a limpi<strong>de</strong>z <strong>da</strong>s fronteiras entre o lírico, o épico e o dramático. Nietzsche observa a<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> música com a lírica e vê o poeta lírico como artista dionisíaco: totalmente<br />

unificado com o Uno-Primordial e afirma ser sua música, a réplica <strong>de</strong>ssa uni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Quer<strong>em</strong>os<br />

nos aproximar <strong>de</strong> Nietzsche e observar que o poeta que renunciou a sua subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> no<br />

processo dionisíaco se <strong>de</strong>rrama sobre as coisas do mundo, tornando-se outro por meio <strong>da</strong>s<br />

palavras, estranhando-se. A lírica mo<strong>de</strong>rna não é mais a expressão do sujeito, mas um lugar<br />

<strong>de</strong> encontro com o outro, um espaço <strong>de</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No <strong>de</strong>scomeço era o verbo.<br />

Só <strong>de</strong>pois é que veio o <strong>de</strong>lírio do verbo.<br />

O <strong>de</strong>lírio do verbo estava no começo, lá on<strong>de</strong> a<br />

Criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos.<br />

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona<br />

Para cor, mas para som.<br />

Então se a criança mu<strong>da</strong> a função <strong>de</strong> um verbo, ele <strong>de</strong>lira.<br />

E pois.<br />

Em poesia que é voz <strong>de</strong> poeta, que é voz <strong>de</strong> fazer nascimentos –<br />

O verbo t<strong>em</strong> que pegar <strong>de</strong>lírio. 96<br />

94 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 118<br />

95 http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v034.txt -Alberto Caeiro - visitado <strong>em</strong> 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2006.<br />

96 BARROS, Manoel <strong>de</strong>. Livro sobre na<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ed. Record 11°edição. 1993. p. 15<br />

78


Rimbaud <strong>de</strong>stituiu, <strong>em</strong> sua poesia, a soberania do lirismo romântico como uma exaltação<br />

do eu, rejeitando a poesia subjetiva <strong>em</strong> um exercício poético que colocou o sujeito lírico na<br />

fronteira entre o interior e o exterior, entre o mundo e a linguag<strong>em</strong>, pondo <strong>em</strong> crise a questão<br />

<strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do sujeito romântico. Rimbaud chega mesmo a verbalizar, limpi<strong>da</strong>mente como<br />

um cristal, <strong>em</strong> Cartas <strong>de</strong> Vi<strong>de</strong>nte: je est um autre. Rimbaud verbaliza que é pelo<br />

<strong>de</strong>sregramento <strong>de</strong> todos os sentidos que se chega ao <strong>de</strong>sconhecido.<br />

Foi também Rimbaud que lançou o projeto <strong>de</strong> uma poesia objetiva, on<strong>de</strong> o eu se tornou<br />

um el<strong>em</strong>ento que viabilizou o contraste com o lirismo subjetivo, exatamente por não mais<br />

carregar os significados <strong>de</strong> antes, por funcionar como um el<strong>em</strong>ento poético que viabiliza o<br />

estranhamento, causador <strong>de</strong> aporia e facilitador <strong>de</strong> uma reorganização dos sujeitos: tanto <strong>de</strong><br />

qu<strong>em</strong> lê quanto <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> produz o texto poético. Deslocando o eu como qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>sloca um<br />

termo <strong>de</strong>sgastado pelo uso comum, o poeta <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> exercita a linguag<strong>em</strong> e os corpos<br />

inusita<strong>da</strong>mente, gerando o espanto. Por meio do <strong>de</strong>sregramento <strong>de</strong> todos os sentidos, chega-se<br />

ao <strong>de</strong>sconhecido. O poeta cria o inusitado, o novo, o estranhamento. É per<strong>de</strong>ndo o controle <strong>da</strong><br />

língua e do corpo que ele se encontra. Num horizonte <strong>de</strong> confluência entre o Apolíneo e o<br />

Dionisíaco, on<strong>de</strong> o êxtase ganha forma, o poeta cria o inimaginável e dá forma ao incógnito,<br />

reinventando-se. É fora <strong>de</strong> si, nas palavras e imagens do po<strong>em</strong>a, que o poeta transbor<strong>da</strong> e<br />

alcança um pensamento que, introspectivamente, seria irrealizável.<br />

I am the escaped one,<br />

After I was born<br />

They locked me up insi<strong>de</strong> me<br />

But I left.<br />

My soul seeks me,<br />

Through hills and valleys,<br />

I hope my soul<br />

Never finds me.<br />

Eu sou aquele que fugiu<br />

Depois que nasci<br />

79


Eles me trancaram <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim<br />

Mas eu saí<br />

Minha alma me busca<br />

Através <strong>de</strong> colinas e vales,<br />

Espero que minha alma<br />

Nunca me encontre. 97<br />

Fernando Pessoa 98<br />

O sujeito que se escreve através <strong>de</strong> objetos, buscando-se fora <strong>de</strong> si, encontra-se na<br />

linguag<strong>em</strong>, que é também um outro corpo, que é um Outro. Tal experiência possibilita escapar<br />

<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los que reificam o comportamento por um discurso social estereotipado e midiático.<br />

Graças a esse exercício libertador <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, o sujeito po<strong>de</strong> se transformar a si e ao Outro.<br />

As experiências possíveis se tornaram limita<strong>da</strong>s, e o antídoto é criar, inventar outras formas<br />

<strong>de</strong> dizer o mundo, <strong>de</strong> expor como se sente neste mundo: é poiésis, é a poesia.<br />

Há milhões <strong>de</strong> sentimentos ain<strong>da</strong> não experienciados, esperando para ser<strong>em</strong> traduzidos<br />

por uma linguag<strong>em</strong> cuja combinação também ain<strong>da</strong> não foi escrita, segundo Ponge, poeta que<br />

tomou parte no movimento do anti-lirismo mo<strong>de</strong>rno, e sentiu na carne a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

expressar seus sentimentos mais íntimos por meio <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> tradicional, precisou fazer as<br />

coisas falar<strong>em</strong>: falar as coisas 99 , para representar o que sentia: Por muito t<strong>em</strong>po eu me fiz as<br />

perguntas mais difíceis. Aplico-me atualmente às coisas mais simples. Trata-se para mim <strong>de</strong><br />

fazer falar as coisas, pois eu mesmo não consegui falar. 100 O uso comum <strong>da</strong>s palavras se<br />

apresentou como um obstáculo aos seus intentos, propôs então falar contra as palavras já<br />

fala<strong>da</strong>s a fim <strong>de</strong> libertá-las <strong>de</strong> seus estereótipos. Explora seus significantes e nos revela que se<br />

torna mais prazeroso jogar com as palavras como se foss<strong>em</strong> matéria. Essa é a saí<strong>da</strong> aponta<strong>da</strong><br />

por ele: tornar as palavras objetos que serv<strong>em</strong> para nomear el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> poesia;<br />

97 Tradução livre por <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong><br />

98 http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v341.txt - visitado <strong>em</strong> 2 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2006<br />

99 PONGE, Francis. O partido <strong>da</strong>s Coisas. Iluminuras, São Paulo, 2000, pág. 39.<br />

80


as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que se <strong>de</strong>scobr<strong>em</strong> nas coisas tornam-se rapi<strong>da</strong>mente argumentos a favor dos<br />

sentimentos do hom<strong>em</strong>. Ora, numerosos são os sentimentos que não exist<strong>em</strong> (socialmente)<br />

por falta <strong>de</strong> argumentos. Por isso raciocino que po<strong>de</strong>ríamos fazer uma revolução nos<br />

sentimentos do hom<strong>em</strong> simplesmente aplicando-o às coisas, que logo diriam muito mais do<br />

que aquilo que os homens costumam fazê-las significar. Isso seria a fonte <strong>de</strong> muitos<br />

sentimentos <strong>de</strong>sconhecidos ain<strong>da</strong>. 101 O lirismo <strong>de</strong> Ponge nasce <strong>da</strong> <strong>em</strong>oção que o contato com<br />

as coisas exteriores propiciam: a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong>sconhecidos. Seu fazer poético<br />

re<strong>de</strong>fine o sujeito segundo o pensamento mo<strong>de</strong>rno, <strong>em</strong> que a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana não é<br />

apenas interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> mas algo material e relacional e o sub-jetivo é visto como estando por<br />

fora e não por <strong>de</strong>ntro. Em vez <strong>de</strong> buscar <strong>de</strong>stacar os sentimentos do interior do hom<strong>em</strong>, Ponge<br />

privilegia a harmonia entre o hom<strong>em</strong> novo, a natureza e o fora, o fora <strong>de</strong> si, <strong>em</strong> uma produção<br />

que ilustra as idéias <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s por Collot <strong>em</strong> seu ensaio O sujeito Lírico fora <strong>de</strong> si.<br />

A proposta <strong>de</strong> Ponge é a <strong>de</strong> transferir-se às coisas 102 num processo <strong>em</strong> que há a<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> infinitas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s inéditas que estão prontas a ser formula<strong>da</strong>s. Pelas palavras<br />

e coisas do senso comum, o lirismo na terceira pessoa do singular transgri<strong>de</strong> para a primeira<br />

pessoa do plural “nós”, porque o sujeito se coloca fora <strong>de</strong> si, atua <strong>em</strong> um lirismo que é<br />

contrário a to<strong>da</strong> uma tradição que teve por origens a teoria hegeliana <strong>de</strong> lirismo.<br />

Como já foi observado, o sujeito que se escreve por meio <strong>de</strong> objetos, buscando-se fora,<br />

encontra-se na linguag<strong>em</strong> que é outro corpo. Tal experiência possibilita a criação, no sentido<br />

primeiro <strong>de</strong> poesia, <strong>da</strong>quilo que não havia sido concebido, nunca pensado, representado. A<br />

sensoriali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras permite que o eu ce<strong>da</strong> seu lugar a el<strong>em</strong>entos<br />

vários do mundo<br />

100 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 39.<br />

101 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 43.<br />

102 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m.<br />

81


FOOD<br />

ROASTBEEF; MUTTON; BREAKFAST; SUGAR; CRANBERRIES;<br />

MILK; EGGS; APPLE; TAILS; LUNCH; CUPS; RHUBARB;<br />

SINGLE; FISH; CAKE; CUSTARD; POTATOES; ASPARAGUS;<br />

BUTTER; END OF SUMMER; SAUSAGES; CELERY; VEAL;<br />

VEGETABLE; COOKING; CHICKEN; PASTRY; CREAM;<br />

CUCUMBER; DINNER; DINING; EATING; SALAD; SAUCE;<br />

SALMON; ORANGE; COCOA; AND CLEAR SOUP AND<br />

ORANGES AND OAT-MEAL; SALAD DRESSING AND AN<br />

ARTICHOKE; A CENTRE IN A TABLE. 103<br />

Nesse po<strong>em</strong>a, Gertru<strong>de</strong> Stein mescla substantivos comuns com abstratos, provocando<br />

a surpresa ao se encontrar, <strong>em</strong> uma lista <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos do cotidiano, uma enumeração que<br />

sugere uma seqüência homogênea. Mas a expectativa é quebra<strong>da</strong> pela inserção <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos<br />

abstratos, <strong>de</strong>spretensiosamente, s<strong>em</strong> qualquer indicação prévia. Hugo Friedrich observa que a<br />

lírica mo<strong>de</strong>rna cultua uma hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> à frase, e a tendência a eliminar o verbo, imobilizando<br />

os conteúdos nominais <strong>em</strong> si mesmos; a exclusão dos verbos intensifica o fragmentarismo <strong>da</strong><br />

poesia não só no plano formal e sintático, mas reforça a<strong>de</strong>mais o isolamento <strong>da</strong>quilo que é<br />

mostrado com o substantivo, aumentando assim a tensão. 104 Não há sequer um pronome, não<br />

há sujeito <strong>de</strong> qualquer ação mas sim a ausência do el<strong>em</strong>ento humano. Os traços que<br />

<strong>de</strong>marcam o lirismo se dão pela criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a qual a poeta brinca com os el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong><br />

língua, com a criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> e o efeito que sua criação produz. Há o fim do verão entre as<br />

palavras manteiga e salsichas, criação que <strong>de</strong>calca uma imag<strong>em</strong> nova <strong>em</strong> uma estética que<br />

parte dos el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, tão comuns, mas que pela tessitura <strong>da</strong> poeta, são <strong>de</strong>spidos<br />

<strong>da</strong> função <strong>de</strong> informar e passam a ser objetos <strong>de</strong> arte.<br />

103<br />

STEIN, Gertru<strong>de</strong>. Disponível <strong>em</strong> http://www.bartleby.com/140/2.html - acessado <strong>em</strong> 23 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2006. –<br />

grifo nosso<br />

104<br />

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura <strong>da</strong> Lírica Mo<strong>de</strong>rna. São Paulo, Livraria Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 1978. p. 155<br />

82


Lamentando que os nomes sejam infelizmente, tão infelizmente, apenas o nome <strong>da</strong>s<br />

coisas 105 , Gertru<strong>de</strong> Stein busca, <strong>em</strong> sua poesia, suspen<strong>de</strong>r o movimento estabelecido pela<br />

referência e agarra-se à gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo sentido. Ela resiste ao fato <strong>de</strong> que as palavras, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que coagulam <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> si significados cristalizados, conduz<strong>em</strong> o<br />

espírito inevitavelmente às coisas e ao mundo. Entretanto, sua escrita transforma a linguag<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong> um tipo <strong>de</strong> jogo, e obtém o fabuloso efeito <strong>de</strong> quebrar a t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ndo-se inferir<br />

que rompe com o t<strong>em</strong>po do mundo e o <strong>da</strong> cons<strong>ciência</strong> <strong>de</strong> existir uma vez que abdica, no<br />

po<strong>em</strong>a <strong>em</strong> questão, do uso <strong>de</strong> verbos e qualquer outro marcador t<strong>em</strong>poral.<br />

Por meio <strong>da</strong> repetição, uma toa<strong>da</strong> se inicia, tal como <strong>em</strong> seu célebre verso: a rose is a<br />

rose is a rose, com um efeito circular hipnotizante que nos induz a <strong>de</strong>ixarmos <strong>de</strong> ser nós<br />

mesmos e, assim como a poeta se torna linguag<strong>em</strong>, po<strong>de</strong>mos esquecer <strong>de</strong> tudo e sermos<br />

apenas poesia.<br />

A poesia t<strong>em</strong> a potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir idéias e sentimentos nos outros, produz<br />

efeito fora <strong>de</strong> si, não é algo que só surte efeito <strong>de</strong>ntro do sentimento do poeta. O processo <strong>de</strong><br />

produção <strong>de</strong> sentidos que a poesia <strong>de</strong>slin<strong>da</strong> percorre a contrapelos a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> mundo cria<strong>da</strong><br />

pelas instituições <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r: os sist<strong>em</strong>as político e religioso, criadores <strong>da</strong> mídia e <strong>de</strong> dogmas<br />

constitutivos do que se <strong>de</strong>nomina real <strong>em</strong> nossa cultura. A poesia lança o sujeito também para<br />

fora <strong>de</strong> si e atua como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro antídoto contra as formas <strong>de</strong> reificação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana que<br />

tiram do indivíduo as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> realizar sua própria leitura <strong>de</strong> mundo. A poesia<br />

possibilita uma vivência <strong>de</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> e resistência <strong>em</strong> relação ao que é imposto, ao que<br />

quer<strong>em</strong> que seja pensado: para <strong>de</strong>senvolver um olhar crítico, é preciso antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong><br />

abrir-se à alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, à plurali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ser vário. 106 No exercício <strong>da</strong> percepção vária, a <strong>em</strong>oção e<br />

105<br />

PINSON, Jean-Clau<strong>de</strong>. De la pluralité <strong>de</strong>s poésies ‘pensantes’. In Poésie et Philosophie. CipM fárrago, 2000.<br />

p. 17<br />

106<br />

JACQUES, Marcelo. in Terceira marg<strong>em</strong>: Literatura e outras artes, ano VII, n/8, UFRJ<br />

83


o sentimento mesclados ao pensamento intu<strong>em</strong> novas formas <strong>de</strong> ser, abrindo e percorrendo<br />

novos horizontes, exercitam novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> existir.<br />

O novo precisa também <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong> nova, reconfigura<strong>da</strong>, carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> novos<br />

significados. São as coisas e suas infinitas diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que ofertam ao hom<strong>em</strong> essa chave. A<br />

simples projeção dos estados <strong>de</strong> alma humanos nas coisas, impondo ao mundo valores e<br />

significados já conhecidos e gastos, nos impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> avançar pela diferença. É preciso se<br />

per<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>spreen<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong>sse estreito viés que é nossa i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> para <strong>de</strong>scobrir algo que não é<br />

“eu”. O novo é <strong>de</strong>sconhecido, logo não po<strong>de</strong> caber no que já somos: se falo <strong>de</strong> mim, não é por<br />

engano: já me perdi. 107 O novo está no que po<strong>de</strong>mos vir a ser, se soubermos nos per<strong>de</strong>r para<br />

nos reencontrar e, caleidoscópicamente, mu<strong>da</strong>r. A viag<strong>em</strong> ao interior <strong>da</strong>s coisas proposta por<br />

Ponge permite a ultrapassag<strong>em</strong> dos limites <strong>da</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> do sujeito para que este se<br />

reestruture <strong>de</strong> maneira diferente. A poesia objetiva t<strong>em</strong> por finali<strong>da</strong><strong>de</strong> principal a regeneração<br />

do sujeito e a renovação do lirismo. Abdicando todo significado e representação pré-<br />

estabeleci<strong>da</strong>, aceitando estar fora <strong>de</strong> si na abstração lírica do gesto <strong>de</strong> escrever, projetando-<br />

se na matéria <strong>da</strong>s palavras e <strong>da</strong>s coisas, o poeta se revela a si mesmo e aos outros. 108<br />

Collot relativiza o “lirismo pessoal” ao questionar se este não é antes exceção à regra<br />

posto que seu surgimento, ao fim <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, se <strong>de</strong>u ao preço <strong>da</strong> per<strong>da</strong> do canto que<br />

acompanhava a lírica anterior, transpessoal. Sugere que talvez o “lirismo pessoal” é que<br />

tenha sido uma fase <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong> exceção, a do sujeito que canta apenas a sua própria<br />

pessoa. Collot apresenta a sugestão <strong>de</strong> outro caminho pelo qual, ao sair <strong>de</strong> si, o sujeito<br />

mo<strong>de</strong>rno se abre à alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo, <strong>da</strong>s palavras e dos seres e se reconfigura nesse<br />

<strong>de</strong>sapossamento. Encontro que renova as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> expressão lírica, ao permitir que o<br />

107 PUCHEU, Alberto. Escritos <strong>da</strong> Admiração. In Poesia (e) Filosofia. Org. Alberto Pucheu, Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Sette Letras, 1998.<br />

108 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 172<br />

84


novo reestruture o sujeito reconfigurando-o e o mundo, por meio <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong> <strong>de</strong>spi<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as palavras tal qual já foram fala<strong>da</strong>s.<br />

2.6 Anti-lirismo Mo<strong>de</strong>rno<br />

Em oposição à tradição crítica e a<strong>de</strong>rindo à avant-gar<strong>de</strong> literária <strong>de</strong> então, <strong>de</strong>u-se<br />

início ao movimento que preconizava a morte do autor, movimento esse que se caracterizava<br />

por ser transgressor. A noção <strong>de</strong> autor continuou a se diluir pela <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. No<br />

enfoque <strong>de</strong>ssa nova crítica, o autor não passa <strong>de</strong> uma encarnação <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia capitalista. 109 A<br />

busca <strong>de</strong> um sentido, <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma explicação <strong>da</strong> obra pressupunha um fim ao<br />

questionamento, que era encarado como negativo, como o foi a crítica contra a metafísica,<br />

que tinha por essência a apreensão do mundo pelo conhecimento racional e a crença na<br />

existência <strong>de</strong> respostas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> se tornou ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, multifacetou-se <strong>em</strong><br />

interesses e reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s diversas, <strong>em</strong> pontos anacrônicos <strong>de</strong> visões particulariza<strong>da</strong>s <strong>de</strong> mundo<br />

que não po<strong>de</strong>m querer ser únicos e totalizadores.<br />

Nos primórdios do mo<strong>de</strong>rnismo brasileiro, os padrões já <strong>de</strong>senvolvidos pela lírica<br />

mo<strong>de</strong>rna, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final do século anterior, começavam a diluir o sujeito. Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

ilustra tal tendência quando escreve<br />

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />

As sensações renasc<strong>em</strong> <strong>de</strong> si mesmas s<strong>em</strong> repouso,<br />

Oh espelhos, oh Pirineus! Oh caiçaras!<br />

Si um <strong>de</strong>us morrer, irei ao Piauí buscar outro!(...)<br />

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,<br />

Mas um dia afinal eu toparei comigo...<br />

Tenhamos pa<strong>ciência</strong>, andorinhas curtas,<br />

Só o esquecimento é que con<strong>de</strong>nsa,<br />

E então minha alma servirá <strong>de</strong> abrigo. 110<br />

109 COMPAGNON, André. www.fabula.org - acessado <strong>em</strong> 14 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 2006.<br />

110 ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. Poesias Completas. Edição crítica <strong>de</strong> Diléa Zanotto Manfio. Editora Itatiaia Lt<strong>da</strong>. <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1987. pág. 211.<br />

85


O poeta é vários, é pessoas, o numeral representa sua plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> e fragmentação. O<br />

poeta não é dono do que produz n<strong>em</strong> produtor <strong>de</strong> suas próprias sensações, ele olha a si mesmo<br />

b<strong>em</strong> <strong>de</strong> acordo com a reflexão rimbaultiana <strong>de</strong> ver o próprio pensamento fora <strong>de</strong> si, como algo<br />

que lhe é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Esses versos traz<strong>em</strong> a <strong>de</strong>spersonalização, e a parte humana se<br />

manifesta pelo criativo jogo com a linguag<strong>em</strong>.<br />

A partir dos anos 70, uma nova força <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> literatura se instaurou com o famoso<br />

artigo <strong>de</strong> Michel Foucault O que é um autor?, juntamente com o não menos importante artigo<br />

<strong>de</strong> Barthes A morte do autor. A essa nova visão <strong>da</strong> literatura <strong>de</strong>u-se o nome <strong>de</strong> <strong>pós</strong>-<br />

estruturalismo ou mesmo <strong>de</strong>sconstrução. O artigo <strong>de</strong> Barthes intitulado A morte do Autor t<strong>em</strong><br />

como objetivo apresentar o estruturalismo como o instrumento <strong>de</strong> ligação entre a literatura e a<br />

<strong>ciência</strong>, afirmando ser o estruturalismo qu<strong>em</strong> po<strong>de</strong> reabrir a questão do estatuto lingüístico <strong>da</strong><br />

<strong>ciência</strong>; tendo por objeto a linguag<strong>em</strong>, ele se tornou rapi<strong>da</strong>mente - como veio a se <strong>de</strong>finir, - a<br />

metalinguag<strong>em</strong> <strong>da</strong> cultura atual.<br />

A questão <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> um autor é revista e é trazido à luz o fato <strong>de</strong> que a idéia <strong>de</strong><br />

autor é fruto <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais recente, e que não foi s<strong>em</strong>pre assim. A existência <strong>de</strong> um<br />

autor é diretamente liga<strong>da</strong> à valorização do indivíduo ou <strong>da</strong> pessoa do ser humano, constructo<br />

<strong>de</strong> uma lógica <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, capitalista. A proposta do pensamento poético mo<strong>de</strong>rno é<br />

oferecer fragmentos <strong>de</strong> experiência <strong>de</strong> pensamento.<br />

Em A Morte do Autor Barthes inaugura uma ótica que observa que quando um fato é<br />

contado, com finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s intransitivas, e não mais para atuar no real, fora <strong>de</strong> qualquer função<br />

que não seja o exercício do símbolo, a voz se per<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua orig<strong>em</strong>, e o autor encontra sua<br />

própria morte. E é aí que a literatura começa: a escrita começa quando o autor começa a<br />

morrer. É a linguag<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> fala e não o autor. E a linguag<strong>em</strong> é um sist<strong>em</strong>a e seus códigos<br />

não po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>struídos, mas po<strong>de</strong>m ser subvertidos se for<strong>em</strong> “jogados”, se brincarmos com<br />

a linguag<strong>em</strong> para fazer poiésis.<br />

86


Escrever não é mais uma operação <strong>de</strong> registro <strong>de</strong> uma constatação ou representação do<br />

mundo; a<strong>pós</strong> a filosofia <strong>de</strong> Oxford a escrita se torna uma performance, uma forma verbal rara,<br />

na qual a enunciação não possui outro conteúdo que o ato pelo qual se realiza. A questão <strong>da</strong><br />

morte do autor traz <strong>em</strong> si um <strong>de</strong>sdobramento muito mais profundo; ao se <strong>da</strong>r um texto a um<br />

autor, há uma atmosfera <strong>de</strong> clausura <strong>de</strong>ste texto, como se o texto se explicasse por sua autoria,<br />

o que foi feito por muito t<strong>em</strong>po na história <strong>da</strong> literatura. A escrita literária, ao recusar ao texto<br />

– pensando também o mundo como um texto – um segredo, <strong>em</strong> outras palavras, um sentido<br />

último e único, liberta uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> transgressora, anti-teológica, revolucionária, uma vez<br />

que a recusa <strong>em</strong> se apropriar <strong>de</strong> um sentido é a recusa <strong>de</strong> <strong>de</strong>us, <strong>da</strong> razão, <strong>da</strong> <strong>ciência</strong> e <strong>da</strong> lei.<br />

É a leitura que interfere e atribui significados ao texto. Barthes ex<strong>em</strong>plifica com a<br />

natureza ambígua <strong>da</strong> tragédia grega: o texto é um tecido <strong>de</strong> palavras <strong>de</strong> duplo sentido, on<strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> personag<strong>em</strong> compreen<strong>de</strong> unilateralmente sua porção <strong>da</strong> estória. Esse eterno mal-<br />

entendido é o que se chama “trágico”. O leitor, entretanto, lê a plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> palavra e<br />

percebe os personagens diante <strong>de</strong> si como que <strong>em</strong> uma audiência. A uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do texto não se<br />

encontra <strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong> mas <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>stino: O nascimento do leitor se dá pela morte do<br />

autor.<br />

A crise <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s seria a expressão <strong>de</strong> um processo mais generalizado<br />

<strong>da</strong> crise <strong>da</strong> Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> ou <strong>da</strong> tão propala<strong>da</strong> <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>: crise <strong>de</strong> nossa concepção<br />

linear do t<strong>em</strong>po e <strong>da</strong> história; crise <strong>da</strong> noção do progresso; cons<strong>ciência</strong> do <strong>de</strong>sastre ecológico;<br />

crise do conceito clássico <strong>de</strong> Revolução; ressurgimento <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>ologias nacionalistas 111 .<br />

A ca<strong>da</strong> nova escola que produzia literatura a<strong>pós</strong> ca<strong>da</strong> revolução estética, mais a<br />

criação lírica <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> representar a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do poeta para ampliar-se e lançar-se <strong>em</strong><br />

novos caminhos. Caminhos que foram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as injunções do inconsciente, no surrealismo <strong>de</strong><br />

111 STANTON, A. et. allii. OCTAVIO PAZ en sus 'Cbras Completas'. México, D. F. : Fondo <strong>de</strong> Cultura<br />

Económica, 1994. p. 79<br />

87


André Breton, à oposição ao pessoal e subjetivo, com o exílio do « eu » <strong>em</strong> Rimbaud, até a<br />

poesia <strong>da</strong>s coisas <strong>em</strong> Ponge.<br />

3. Horizonte e Poesia<br />

3.1. Uma leitura <strong>de</strong> Michel Collot<br />

Dentre as obras críticas publica<strong>da</strong>s nas duas últimas déca<strong>da</strong>s do século XX,<br />

caracteriza-se uma separação entre a pesquisa teórica e a crítica literária. Nesse contexto, o<br />

trabalho <strong>de</strong> Michel Collot se <strong>de</strong>stacou por enunciar um apelo ao resgate do <strong>de</strong>bate teórico,<br />

s<strong>em</strong> retroce<strong>de</strong>r ao formalismo dos anos 70, que pregava uma leitura estrita do texto.<br />

Apropriando-se do conceito <strong>de</strong> horizonte <strong>de</strong> expectativa, <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> recepção, e o <strong>de</strong><br />

estrutura <strong>de</strong> horizonte, <strong>da</strong> fenomenologia <strong>de</strong> Husserl e Merleau-Ponty, Collot os submete a<br />

uma reflexão <strong>da</strong> experiência poética <strong>em</strong> que o sujeito, o mundo e a linguag<strong>em</strong> se entrelaçam.<br />

Esses três el<strong>em</strong>entos interag<strong>em</strong> <strong>de</strong> tal modo que estão s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> relação solidária. A partir<br />

<strong>de</strong>ssa dinâmica, o esboço <strong>de</strong> um novo espaço teórico se dá pelo resgate e pela nova<br />

combinação <strong>de</strong> três linhas <strong>de</strong> pensamento já existentes: a fenomenologia, a psicanálise e a<br />

poética. Michel Collot oferece uma maneira diferente <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r e pensar a poesia mo<strong>de</strong>rna e<br />

cont<strong>em</strong>porânea.<br />

O conceito <strong>de</strong> horizonte <strong>de</strong> expectativa foi traduzido para o português, do al<strong>em</strong>ão<br />

Erwartungshorizont, uma expressão cunha<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> teoria fenomenológica <strong>de</strong> Husserl e <strong>da</strong><br />

hermenêutica <strong>de</strong> Ga<strong>da</strong>mer. Nessa perspectiva, o horizonte é, basicamente, o modo como nos<br />

situamos e apreen<strong>de</strong>mos o mundo a partir <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista subjetivo. O horizonte <strong>de</strong><br />

expectativas é, assim, uma característica fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as situações<br />

88


interpretativas 112 , pois ocorre uma reorganização <strong>de</strong> nossas leituras anteriores face a ca<strong>da</strong><br />

nova leitura - esse horizonte é <strong>de</strong>terminado pela recepção <strong>da</strong> obra pelo leitor.<br />

Nas últimas duas déca<strong>da</strong>s do século XX, o teórico francês Michel Collot publica uma<br />

série <strong>de</strong> trabalhos nos quais elabora uma releitura <strong>da</strong> poesia e conclui ser necessário lançar um<br />

novo olhar sobre ela. No livro intitulado La poésie mo<strong>de</strong>rne et la strucuture d’horizon, ain<strong>da</strong><br />

não traduzido para o português, Collot apresenta idéias que estabelec<strong>em</strong> um diálogo com a<br />

crítica e a tradição. Para ele, o formalismo e o estruturalismo encaram a poesia como uma<br />

linguag<strong>em</strong> <strong>de</strong>bruça<strong>da</strong> sobre si mesma, indicando fechamento do texto que, se por um lado,<br />

po<strong>de</strong> ser positivo para a questão metodológica ; por outro, po<strong>de</strong> também levar a interpretação<br />

errônea <strong>em</strong> que se exclui do po<strong>em</strong>a to<strong>da</strong> e qualquer referência a um sujeito ou objeto. Ao<br />

longo <strong>da</strong> história literária, o estruturalismo e o formalismo pregaram que o foco <strong>da</strong> análise<br />

literária <strong>de</strong>veria estar no texto, e apenas no texto.<br />

Nessa hipótese <strong>de</strong> trabalho o texto só se reportaria a si mesmo. A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />

Jakobson, <strong>de</strong> função poética como auto-referência <strong>da</strong> mensag<strong>em</strong> lingüística, tira do po<strong>em</strong>a<br />

qualquer referência ao sujeito ou ao objeto. Trata-se <strong>de</strong> uma teoria redutora à qual a prática e<br />

a reflexão dos poetas se opõ<strong>em</strong>, por ligar<strong>em</strong> suas escritas a experiências pessoais e a uma<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> mundo. A essa hipótese redutora e imanente <strong>de</strong> fechamento do texto, opõe-se a<br />

produção dos poetas mo<strong>de</strong>rnos. A frequência com que o t<strong>em</strong>a do horizonte apareceu <strong>em</strong><br />

inúmeros po<strong>em</strong>as chamou a atenção do teórico francês que pô<strong>de</strong> estabelecer um elo entre o<br />

sujeito, o mundo e a linguag<strong>em</strong>, posto que esse horizonte se refere não apenas ao espaço<br />

externo, mas também ao espaço interior <strong>da</strong> cons<strong>ciência</strong> poética on<strong>de</strong> o horizonte, muito mais<br />

do que um assunto, mostra-se como estrutura que norteia a relação com o mundo, a própria<br />

constituição do sujeito e o funcionamento <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>. A escrita poética apresenta uma<br />

relação <strong>de</strong> abertura com o mundo, <strong>em</strong> oposição à visão <strong>da</strong> escrita poética <strong>de</strong>bruça<strong>da</strong> sobre si<br />

112 www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/H/horizonte_expectativas.htm visitado <strong>em</strong> 21/11/2006<br />

89


mesma. O jogo metafórico, pelo espaço interior <strong>da</strong> cons<strong>ciência</strong> poética e do espaço do próprio<br />

texto, r<strong>em</strong>ete-nos, com freqüência, a um horizonte. Essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> metaforizar os três<br />

faces <strong>da</strong> experiência poética nos faz crer que o horizonte não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como um<br />

mero t<strong>em</strong>a, mas como uma estrutura que <strong>de</strong>limita a constituição do sujeito e sua relação com<br />

o mundo, por meio do exercício <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>.<br />

A partir <strong>de</strong>ssa conclusão, nasci<strong>da</strong> <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong>s poesias mo<strong>de</strong>rnas e cont<strong>em</strong>porâneas,<br />

Michel Collot buscou respaldo teórico na noção <strong>de</strong> estrutura <strong>de</strong> horizonte <strong>de</strong> Husserl e<br />

Merleau-Ponty, noção que permite compreen<strong>de</strong>r melhor a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> que, na poesia, une o<br />

sujeito e o objeto, o visível e o invisível, o imaginário e o real, para a elaboração <strong>de</strong> uma<br />

estrutura <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> com abertura <strong>de</strong> uma marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminação infinita. A partir dos<br />

ensinamentos <strong>da</strong> fenomenologia, <strong>da</strong> psicanálise e <strong>da</strong> poética, no cruzamento <strong>de</strong>ssas<br />

abor<strong>da</strong>gens diversas, po<strong>de</strong>-se vislumbrar o novo espaço teórico que Collot propõe para pensar<br />

a poesia hoje. Nesse contexto e nesta perspectiva, se insere a tentativa <strong>de</strong> Michel Collot <strong>de</strong><br />

repensar a experiência e a linguag<strong>em</strong> poéticas mo<strong>de</strong>rnas com o auxílio <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> horizonte.<br />

Husserl e Merleau-Ponty trabalharam com a noção <strong>de</strong> estrutura <strong>de</strong> horizonte. Recorrer<br />

a uma noção filosófica justificar-se por um parentesco inegável que une a fenomenologia ao<br />

projeto poético mo<strong>de</strong>rno: a palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Husserl é o retorno às coisas percebi<strong>da</strong>s e foi<br />

segui<strong>da</strong> por gran<strong>de</strong>s poetas cont<strong>em</strong>porâneos. Collot propõe o retorno do uso <strong>de</strong>ssa noção <strong>de</strong><br />

horizonte na poética, ampliando seu campo <strong>de</strong> aplicação, por sua provável capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

esclarecer não apenas a recepção <strong>da</strong> obra mas também facultar sua produção e suas relações<br />

com as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s exterior e interior.<br />

A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> só po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r-se como horizonte pois ela acontece a partir do ponto <strong>de</strong> vista<br />

<strong>de</strong> um sujeito e uma articulação entre o que é ou não percebido. Paradoxos sobre os quais<br />

90


epousa a percepção do mundo são o centro <strong>da</strong> produção poética cont<strong>em</strong>porânea; afirmo ter<br />

estado nas paisagens do armário que sonhei ou são. 113<br />

A noção <strong>de</strong> horizonte é <strong>em</strong> si mesma um paradoxo. Ao mesmo t<strong>em</strong>po que mo<strong>de</strong>la uma<br />

paisag<strong>em</strong> <strong>em</strong> um todo coerente, torna possível uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outras configurações,<br />

constituindo não só um princípio <strong>de</strong> organização, mas também <strong>de</strong> abertura. O que é<br />

aparent<strong>em</strong>ente contraditório po<strong>de</strong> ser visto como compl<strong>em</strong>entar.<br />

A noção husserliana <strong>de</strong> horizonte reúne essas duas funções paradoxais. O hom<strong>em</strong>, que<br />

se constitui pela linguag<strong>em</strong>, busca s<strong>em</strong>pre organizar-se por meio <strong>de</strong> coerência, porém, a<br />

linguag<strong>em</strong> está longe <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar aprisionar pelos sist<strong>em</strong>as <strong>da</strong> língua. A linguag<strong>em</strong> poética<br />

transbor<strong>da</strong> o sentido convencional <strong>em</strong> direção a um horizonte repleto <strong>de</strong> significados a ser<strong>em</strong><br />

inventados, um horizonte <strong>de</strong> múltiplas significações.<br />

Foi Husserl o primeiro filósofo a <strong>de</strong>senvolver a noção <strong>de</strong> estrutura <strong>de</strong> horizonte. A<br />

fenomenologia não reduz o horizonte a um conceito, mas li<strong>da</strong> com ele como uma imag<strong>em</strong>,<br />

graças ao amplo uso <strong>da</strong>s metáforas – mais uma evidência <strong>de</strong> que o pensamento mo<strong>de</strong>rno se<br />

apóia no fenômeno; não apenas <strong>em</strong> seu objeto mas <strong>em</strong> seu processo e linguag<strong>em</strong>, o que<br />

aproxima a filosofia <strong>da</strong> poesia.<br />

O horizonte faz parte <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> experiência 114 e não é apenas um objeto entre<br />

outros que compõ<strong>em</strong> nossa experiência, afirma Husserl. O horizonte que forma a estrutura<br />

passa a ser chamado estrutura <strong>de</strong> horizonte, organizando a percepção do espaço além <strong>da</strong><br />

cons<strong>ciência</strong> do t<strong>em</strong>po e <strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Husserl estabelece dois tipos <strong>de</strong> horizontes na percepção <strong>da</strong> coisa: o horizonte interno<br />

é o lado visível <strong>de</strong> um objeto que s<strong>em</strong>pre traz consigo um outro lado, escondido, mas que nos<br />

possibilita <strong>de</strong>linear sua estrutura. Pelo horizonte interno <strong>da</strong> coisa, po<strong>de</strong>-se transcen<strong>de</strong>r o que<br />

113 FRÓES, Leonardo. Siblitz. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editorial Alhambra, 1981. p. 21<br />

114 COLLOT, Michel. La poésie mo<strong>de</strong>rne et la structure d’horizon, Presses universitaires <strong>de</strong> France, 1989.<br />

91


nos é simplesmente <strong>da</strong>do pela percepção; por mais que haja explicações sobre o percebido,<br />

formam-se constant<strong>em</strong>ente novas implicações <strong>em</strong> um <strong>de</strong>sdobrar infinito <strong>de</strong> novos horizontes,<br />

que, por isso são vistos como processo. Ao se aproximar do horizonte, percebe-se que há<br />

além, um novo horizonte, e esse aparente mover-se traduz a poética <strong>da</strong> infinitu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s coisas,<br />

num eterno <strong>de</strong>sdobrar. O outro horizonte <strong>da</strong> coisa é o horizonte externo, que diz respeito às<br />

relações entre a coisa e os objetos que a cercam : os objetos contêm o infinito. 115<br />

Quando se fala <strong>de</strong> um horizonte físico, quando se trabalha com o conceito <strong>de</strong><br />

percepção, ao refletir sobre esse <strong>de</strong>bruçar-se no mundo <strong>de</strong> fora, vão-se abrindo, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, mil portas no exercício <strong>de</strong> pensar. Analogamente ao horizonte externo, os<br />

pensamentos se metamorfoseiam como um veloz caleidoscópio, e as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

pensamento também se <strong>de</strong>sdobram <strong>de</strong> modo veloz e fugaz. Ver a coisa poeticamente afeta<br />

todo o modus operandi do sujeito, que se constitui pela linguag<strong>em</strong>. Em uma proposta pouco<br />

convencional, a poesia objetiva nos convi<strong>da</strong> a sair <strong>de</strong> nós mesmos, o que se torna uma<br />

vivência que viabiliza experiências no campo perceptivo, trazendo conseqüências não só no<br />

pensar mas também no modo <strong>de</strong> ser e viver. É preciso pensar <strong>de</strong> modo diferente, renovar,<br />

insuflar <strong>de</strong> beleza e criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> o viver, o fazer poético, a criação gerando a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

se colocar outro sujeito <strong>em</strong> aporia. O poeta cria a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> experiência do não-lugar.<br />

O mundo não é visível a não ser por seus horizontes 116 . O mundo só se torna mundo<br />

através <strong>de</strong> nosso olhar. O horizonte <strong>de</strong> todos os horizontes é o que nos leva s<strong>em</strong>pre ao que<br />

ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong> ser percebido, num infin<strong>da</strong>r eterno, on<strong>de</strong> não há resposta mas caminhar, processo,<br />

transmutação. O horizonte é paradoxal, fixo e mutável. Nunca é o que é, mas existe. É a<br />

existência incontestável <strong>de</strong> uma enorme fen<strong>da</strong>, um antídoto para o pensamento lógico, o<br />

<strong>de</strong>sassossego <strong>da</strong> ausência <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O horizonte existe, mas nunca o alcançamos. Ao irmos<br />

<strong>em</strong> sua direção, ele transmuta-se feiticeiramente, <strong>em</strong>briagando-nos pelo constant<strong>em</strong>ente novo.<br />

115 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p.18<br />

92


Os poetas mo<strong>de</strong>rnos são os poucos que sab<strong>em</strong> criar a partir <strong>da</strong> incerteza. Enquanto a<br />

<strong>ciência</strong> se sustenta <strong>em</strong> noções como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, lógica e estrutura, os poetas se amalgamam ao<br />

horizonte. Só as aves enten<strong>de</strong>m / o que estou olhando ao longe / s<strong>em</strong> pensar mas sentindo /<br />

minha insignificância perfeita. 117<br />

A esta proposição paradoxal, inscrita na estrutura do horizonte, Merleau-Ponty<br />

respon<strong>de</strong>, estabelecendo uma relação entre o ser e a encarnação. Merleau-Ponty reformulou<br />

suas propostas <strong>da</strong> fenomenologia <strong>da</strong> percepção <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> uma ontologia, acentuando a<br />

idéia do invisível que o visível comporta, ou seja, <strong>de</strong> que to<strong>da</strong> percepção é incompleta. Os<br />

objetos são percebidos a partir <strong>de</strong> perspectivas. Eles formam um sist<strong>em</strong>a no qual algo só<br />

mostra mesmo que outras coisas ou algumas <strong>da</strong>s facetas do mesmo objeto estejam escondi<strong>da</strong>s.<br />

Em um jogo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r e encobrir, o fenômeno <strong>da</strong> perspectiva traduz a seqüência<br />

s<strong>em</strong> fim entre o aparecer e o ocultar que rege o fenômeno. O que não é percebido não <strong>de</strong>ixa,<br />

<strong>de</strong> fato, <strong>de</strong> existir, <strong>em</strong> um fluxo constante. A estrutura <strong>de</strong> horizonte é, ao mesmo t<strong>em</strong>po, um<br />

fator <strong>de</strong> síntese e um princípio <strong>de</strong> abertura. Ca<strong>da</strong> horizonte r<strong>em</strong>ete a outras perspectivas,<br />

in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong> e infin<strong>da</strong>velmente.<br />

Tais possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, s<strong>em</strong>pre mutantes, <strong>de</strong> perceber o mundo, o tornam infinito. É<br />

essencial à coisa e ao mundo que se apresent<strong>em</strong> abertos, que nos r<strong>em</strong>etam além <strong>de</strong> suas<br />

manifestações <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s, que nos prometam s<strong>em</strong>pre outras coisas para ser<strong>em</strong> vistas. 118<br />

Assim se diz que o mundo e as coisas são misteriosos. As coisas comportam a<br />

dimensão <strong>de</strong> estar<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre além do horizonte, o campo perceptivo se reestrutura<br />

constant<strong>em</strong>ente e <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> um horizonte somente novos horizontes. Esse espetáculo <strong>de</strong><br />

enfeitiçamento é, também, lírico e faz nascer no poeta o sentimento <strong>da</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

do qual o horizonte se torna símbolo. Entretanto, se os horizontes ampliam a percepção do<br />

116 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 21<br />

117 FRÓES, Leonardo. P. 21<br />

93


todo, eles também a limitam. Limite irreal que uma vez <strong>de</strong>safiado, só faz multiplicar-se,<br />

<strong>de</strong>sdobrando-se <strong>em</strong> outros horizontes, ca<strong>da</strong> vez mais paradoxais: estruturadores e<br />

intocáveis. 119<br />

Nosso habitar no mundo pressupõe uma noção <strong>de</strong> espaço. Um lugar que nos insere e<br />

no qual nos inserimos também, que nos abre uma perspectiva, - um a partir <strong>de</strong>, - um<br />

horizonte. Símbolo <strong>da</strong> união do visível e do não-visível, o horizonte nos compõe e torna<br />

possível uma estruturação do sujeito face ao real. Não importa qual seja, estamos <strong>em</strong> algum<br />

lugar, a partir do qual o sentido <strong>em</strong>erge, transformando um lugar qualquer <strong>em</strong> paisag<strong>em</strong>,<br />

posição que nos possibilita ter um ponto <strong>de</strong> vista próprio acerca <strong>de</strong>sse todo no qual estamos<br />

inseridos. Do mesmo modo, a ausência <strong>de</strong> horizonte retira a estrutura essencial <strong>de</strong> estar-no-<br />

mundo 120 .<br />

Uma paisag<strong>em</strong>, um mesmo <strong>da</strong>do <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> se faceta <strong>em</strong> muitas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

divergentes quando é vista <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista distintos, e on<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um é autêntico, ou seja,<br />

está relaciona<strong>da</strong> com a estrutura <strong>de</strong> horizonte do sujeito que, tal qual o poeta que une a<br />

paisag<strong>em</strong> do real a sua representação do mundo, também percebe o mundo <strong>em</strong> movimento,<br />

através <strong>da</strong> experiência on<strong>de</strong> sujeito e objeto são inseparáveis.<br />

Os geógrafos <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> paisag<strong>em</strong> como o que a visão abarca com o olhar ou uma<br />

porção do espaço analisa<strong>da</strong> visualmente 121 . Mas uma paisag<strong>em</strong> não é vista/observa<strong>da</strong> apenas,<br />

ela é habita<strong>da</strong> 122 e é vivi<strong>da</strong>. O horizonte perfaz o papel <strong>de</strong> fronteira que permite nos apropriar<br />

<strong>de</strong>ssa paisag<strong>em</strong>, proporcionando uma experiência que põe <strong>em</strong> cena a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

transbor<strong>da</strong>mento:<br />

118 Il est essentiel à la chose et au mon<strong>de</strong> <strong>de</strong> se présenter comme “ouverts”, <strong>de</strong> nous renvoyer au-<strong>de</strong>lá <strong>de</strong> leur<br />

manifestations <strong>de</strong>terminées, <strong>de</strong> nous promettre toujours “autre chose a voir”.<br />

In COLLOT, Michel. La poésie Mo<strong>de</strong>rne et la structure d’horizon . PUF, 1989, p. 24<br />

120 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 168<br />

121 COHEN, Sylvie. Points <strong>de</strong> vue sur les paysages. Hérodote 1987. v. 44, p 38-44.<br />

122 COLLOT, Michel. La poésie Mo<strong>de</strong>rne et la structure d’horizon . PUF, 1989, p. 25<br />

94


Futaie<br />

Palabre <strong>de</strong> mésanges<br />

Erotisant l’angélus.<br />

Le ciel ébauche um rouge peuplier.<br />

Je suis au beau millieu du couchant<br />

J´assiste mes couleurs.<br />

Décidément<br />

Ma vie ne suffit plus à mes débor<strong>de</strong>ments. 123<br />

Floresta<br />

Conversa <strong>de</strong> passarinho<br />

Erotizando as preces do dia<br />

O céu esboça um álamo carmim<br />

Estou <strong>de</strong>ntro do pôr-do-sol<br />

Assisto minhas cores.<br />

Decidi<strong>da</strong>mente<br />

Minha vi<strong>da</strong> não mais comporta meus transbor<strong>da</strong>mentos. 124<br />

Mescla<strong>da</strong>s ao poente, as cores <strong>da</strong> poeta po<strong>de</strong>m ser visualiza<strong>da</strong>s e, por meio <strong>da</strong><br />

linguag<strong>em</strong>, ela cria uma imag<strong>em</strong> que mistura palavras e cores além <strong>da</strong> estrutura do indivíduo.<br />

Da mesma forma, o po<strong>em</strong>a se torna um lugar, um cenário on<strong>de</strong> a poeta habita e transbor<strong>da</strong><br />

seus limites. O horizonte exterior e as fronteiras internas se tornam um só na poesia,<br />

r<strong>em</strong>etendo à idéia <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por Collot <strong>de</strong> sujeito lírico fora <strong>de</strong> si. 125 Ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que é o sujeito que faz com que o horizonte adquira consistência, este mesmo sujeito<br />

precisa <strong>de</strong>rramar-se fora <strong>de</strong> si para afirmar sua própria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>. A cons<strong>ciência</strong> só po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>finir-se <strong>em</strong> relação a seu horizonte, ao outro, a um outro, mostrando-se inseparável do que a<br />

cerca. Há o espelhamento <strong>de</strong> nosso olhar, e <strong>de</strong> todo nosso corpo, na paisag<strong>em</strong>, refletindo uma<br />

relação <strong>de</strong> equivalência entre o que está fora e o que está <strong>de</strong>ntro, que r<strong>em</strong>ete à existência <strong>de</strong><br />

123 BRETON, Jean. Une anthologie <strong>de</strong> la Nouvelle poésie Cont<strong>em</strong>poraine. Le cherche Midi Éditeur, Collection<br />

Espaces. 1985 p. 94. poésie par Marie-Jose Hamy<br />

124 Tradução livre por <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong><br />

125 COLLOT, Michel. Le sujet lyrique hors <strong>de</strong> soi. In Figures du sujet lyrique. Dominique Rabaté (dir). Paris:<br />

PUF, 1996. p. 113-125.<br />

95


uma interrelação entre a busca <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma paisag<strong>em</strong>, <strong>de</strong> algo que<br />

<strong>de</strong>limite o infinito. É o espaço entre o sujeito e o horizonte que permite àquele que espalhe a<br />

si mesmo, <strong>de</strong>rramando-se, <strong>de</strong>scobrindo-se e encontrando-se fora <strong>de</strong> si.<br />

Assim, o po<strong>em</strong>a po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado uma paisag<strong>em</strong> externa que possibilita o<br />

transbor<strong>da</strong>mento não apenas do poeta, mas também do leitor. A poesia se torna um lugar para<br />

ser habitado, um cenário para a estruturação dos sujeitos por meio <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, do<br />

<strong>de</strong>sconcerto provocativo <strong>de</strong> discurso, instaurador <strong>de</strong> sentidos vários através <strong>de</strong> uma<br />

linguag<strong>em</strong> revitaliza<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sgastados usos e atributos cotidianos. É fora <strong>de</strong> si, sendo<br />

outro, que se resgata o exercício <strong>de</strong> encantamento. A poesia permite uma nova experiência do<br />

mundo e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

PEG-AÇÃO DO OUTRO<br />

PEGUEI O OUTRO PELA GOLA e não <strong>de</strong>u nenhum resultado.<br />

Peguei o Outro por meus olhos e não <strong>de</strong>u pra ver.<br />

Peguei o Outro pela mão e o <strong>de</strong>struí s<strong>em</strong> querer, coitado, ele<br />

ain<strong>da</strong> não se agüenta sozinho, que pena, como ele sofre inutilmente<br />

mancando e não consegue como nós escapulir do seu útero.<br />

Minhas convicções sobre o Outro foram porém se gastando.<br />

Um dia eu caminhei para ele s<strong>em</strong> pensar muito <strong>em</strong> mim.<br />

Notei que era possível agir s<strong>em</strong> pr<strong>em</strong>editar.<br />

O nariz do Outro, a boca do Outro, a raiva do Outro per<strong>de</strong>ram<br />

nesse ponto a consistência <strong>de</strong> apenas me irritar por analogia.<br />

Entrei no Outro por acaso, como alguém que se <strong>de</strong>sossou e não<br />

chora. Nesse dia eu estava muito bonito. O Outro era a janela s<strong>em</strong><br />

gra<strong>de</strong>s e também a opinião s<strong>em</strong> cortinas sobre a qual eu <strong>de</strong>brucei como<br />

uma lesma amorosa. Eu estava bonito, por contato, e apenas<br />

<strong>em</strong>prestando meus olhos para servir <strong>de</strong> reflexo.<br />

Quando o Outro quis me abocanhar <strong>de</strong> repente eu já tinha<br />

voltado à cons<strong>ciência</strong> <strong>de</strong> mim.<br />

Eu era, ou era eu que não gostava quando o Outro pareceu me<br />

ofen<strong>de</strong>r. 126<br />

Nesta narrativa poética, Leonardo Fróes experiencia com a linguag<strong>em</strong>, criando um<br />

efeito psicodélico que confun<strong>de</strong> e intriga, mas que, essencialmente, cria uma imag<strong>em</strong> nova,<br />

diferente, que incita ao pensamento sensível, que não explica mas que fomenta o pensar. Há,<br />

126 FRÓES, Leonardo. Siblitz. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editorial Alhambra, , 1981<br />

96


literalmente, um Outro no texto, que está ligado ao eu do poeta, que é e não é ele. Essa nova<br />

poesia resgata uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> enuncia<strong>da</strong> por Parmêni<strong>de</strong>s : a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> não<br />

ser. É o fim <strong>da</strong> divisão cartesiana <strong>de</strong> ser ou não ser, a ditadura cai por terra e o poeta<br />

revoluciona as formas <strong>de</strong> fazer poesia. A partir <strong>da</strong>í, é possível perceber a razão <strong>de</strong> tantos<br />

filósofos, como Nietzsche, Wittgenstein e Hei<strong>de</strong>gger, afirmar<strong>em</strong> ser a linguag<strong>em</strong> poética a<br />

melhor forma <strong>de</strong> fazer filosofia. Uma filosofia antídoto <strong>de</strong> tanta metafísica e <strong>de</strong> tanta<br />

explicação, como se retomáss<strong>em</strong>os um caminho, que per<strong>de</strong>mos há muito t<strong>em</strong>po atrás.<br />

Na página ao lado do texto a seguir, apresentado no livro Siblitz, há um po<strong>em</strong>a com<br />

título análogo. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, há o espelhamento do título:<br />

ORTUO OD OÃÇA-GEP<br />

A malícia do Outro <strong>de</strong>via ser minha ambição <strong>de</strong> esmagá-lo.<br />

Houve um momento perigoso <strong>em</strong> que eu <strong>de</strong>sejei possuir.<br />

Houve uma pausa refrescante <strong>em</strong> que eu pretendi me matar.<br />

Não houve propriamente o Outro, mas apenas a fricção dos<br />

meus <strong>de</strong>dos na ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estar que me roía <strong>de</strong> novo. Nessa hora eu<br />

fiquei feio como um bandido medroso. Diminuí provavelmente <strong>de</strong><br />

tamanho e aspecto, voltando à carga <strong>da</strong>s analogias que me sufoca e<br />

impe<strong>de</strong>.<br />

Minha pureza favorável não enraíza no Outro n<strong>em</strong> é a glória <strong>da</strong><br />

espécia, mas eu posso muito b<strong>em</strong> abafar o som dos tambores. Posso<br />

amar as cicatrizes <strong>da</strong> guerra ou esse porte <strong>de</strong> boneco gaiato, condutor e<br />

conduzido, que às vezes sente como eu sinto uma vonta<strong>de</strong> insondável<br />

<strong>de</strong> vomitar pelas calça<strong>da</strong>s um planeta s<strong>em</strong> fios – perfeito e único.<br />

Um planeta s<strong>em</strong> fios me permitiria <strong>da</strong>nçar – <strong>de</strong>scer – <strong>de</strong>itar no<br />

Outro calmamente s<strong>em</strong> o <strong>de</strong>spojar e humilhar. Mas são os fios <strong>da</strong><br />

cabeça que enrolam com frequência meus gestos, ligando-os a um<br />

passado atrapalhado e inexistente que me faz colocar o pé atrás.<br />

Meu ingresso puro e luminoso no Outro ocorre quando as luzes<br />

apagam e eu sou apenas um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> barro que se <strong>de</strong>sarticula e sorri.<br />

Na hora do milagre existo e não existo 127 com uma segurança total. 128<br />

Totalmente paradoxal, tanto <strong>em</strong> sua idéia central quanto a tudo que o cerca, o<br />

horizonte carrega traços antagônicos que, tal qual duas retas paralelas, jamais irão convergir.<br />

127 grifo nosso<br />

128 FRÓES, Leonardo. Siblitz. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editorial Alhambra, 1981<br />

97


Ele nos segue como uma sombra. Por possuirmos um corpo e existirmos t<strong>em</strong>poral e<br />

espacialmente, tanto o corpo como o horizonte viabilizam o nosso existir, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que nos limitam e <strong>de</strong>fin<strong>em</strong>, <strong>de</strong>lineiam nossa dimensão existencial e fornec<strong>em</strong> amplitu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. O fato <strong>de</strong> o sujeito fazer parte <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong> está diretamente associado à questão <strong>de</strong><br />

não lhe ser possível ver mais do que uma parte <strong>de</strong>ssa paisag<strong>em</strong>.<br />

A possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> existir está relaciona<strong>da</strong> à existência <strong>de</strong> um corpo físico, à existência<br />

<strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>, à carne <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, e <strong>de</strong> um horizonte que abre o território perceptivo para o<br />

fora <strong>de</strong> si e <strong>de</strong>limita, ao mesmo t<strong>em</strong>po, enquanto ente distinto <strong>de</strong>ssa paisag<strong>em</strong> que compõe o<br />

sujeito, mas que não é ele. É a partir <strong>de</strong>sse corpo que uma perspectiva panorâmica é adquiri<strong>da</strong>,<br />

permitindo ver, e o faz por carregar pontos que escapam à capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> percepção na<br />

dialética do visível e do não-visível. Há s<strong>em</strong>pre o não-visto <strong>em</strong> tudo que se vê. A<br />

incompletu<strong>de</strong> <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong> funciona como um chamado, um apelo à interação, assim como a<br />

arte que não oferece respostas n<strong>em</strong> um sentido<br />

Le poète cherche le vers magique – celui dont le sens lui soit à luimême<br />

mysterieux et donc tel que le vers se conserve et se répète.<br />

Si un vers produit un sens exact – cést-à-dire qui puisse être traduit soit<br />

par une représentation unique – ce vers est aboli par ce sens. 129<br />

O poeta busca o verso mágico – aquele cujo sentido seja misterioso para<br />

ele próprio e no qual o verso se conserva e se repete. Se um verso<br />

produz um sentido – que possa ser traduzido por uma representação<br />

única – este verso é abolido por esse sentido. 130<br />

No po<strong>em</strong>a anteriormente citado, ca<strong>da</strong> palavra escolhi<strong>da</strong> pela poeta Marie-Jose Hamy<br />

representa uma imag<strong>em</strong> vária<strong>da</strong> e rica, parecendo conter todo um mundo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la : Futaie<br />

– significa a parte <strong>da</strong> floresta com as árvores mais altas, ou floresta <strong>de</strong> árvores altas, não há<br />

outra palavra que comporte <strong>em</strong> si mesma todo o sentido do vocábulo escolhido, <strong>de</strong> modo que<br />

ela não se esgota, oferecendo um prisma <strong>de</strong> significações.<br />

129 1936, Sans titre, XVIII, 782 in VALÉRY, Paul. Ego scriptor et... p. 135<br />

130 Tradução livre por <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong>. In COLLOT, M. La poésie Mo<strong>de</strong>rne et la structure d’horizon . PUF,<br />

1989<br />

98


Também o vocábulo Palabre parece não caber <strong>em</strong> apenas uma palavra, parece ser o<br />

con<strong>de</strong>nsamento dos sons <strong>de</strong> uma discussão, a palavra ressoa além <strong>de</strong>la, extravaza, vaza além<br />

<strong>da</strong>s letras que contém, <strong>de</strong>calcando a imag<strong>em</strong> única e diversa colhi<strong>da</strong> pela poeta. Quando<br />

chegamos ao verso Érotisant l’angélus, o som do po<strong>em</strong>a se transmuta dos ruidosos<br />

passarinhos para o ba<strong>da</strong>lar <strong>de</strong> sinos, <strong>em</strong> um contraste com o sagrado e o erótico. Angélus traz<br />

<strong>em</strong> seu seio mais do que uma prece: são três preces repeti<strong>da</strong>s ao longo do dia, acompanha<strong>da</strong>s<br />

do ba<strong>da</strong>lar <strong>de</strong> sinos. A prece católica que com<strong>em</strong>ora a anunciação, é constituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> três textos<br />

que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> ao mistério <strong>da</strong> concepção por Maria, finalizando com uma sau<strong>da</strong>ção à virg<strong>em</strong>.<br />

Tais consi<strong>de</strong>rações não passam <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leituras que não se exaur<strong>em</strong> <strong>em</strong> si. O<br />

po<strong>em</strong>a incita ao exercício <strong>da</strong> significação vária que confirma a reflexão <strong>de</strong> Paul Valéry: a<br />

poesia não se extingue, quando a linguag<strong>em</strong> não é informacional, os versos são recarregados<br />

<strong>de</strong> significado a ca<strong>da</strong> leitura, provocando ressignificações; são invioláveis <strong>em</strong> seus mistérios.<br />

Quando há entendimento, há algo s<strong>em</strong>elhante com o que Collot <strong>de</strong>fine como<br />

panorama : ao contrário <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong> – que, como a poesia e como nós, ao revelar algo<br />

escon<strong>de</strong>, s<strong>em</strong>pre uma outra nuance, possuindo partes sombrias que po<strong>de</strong>rão ser infinitamente<br />

<strong>de</strong>snu<strong>da</strong><strong>da</strong>s e serão s<strong>em</strong>pre outras - a perspectiva aérea, panorama, oferece uma visão do<br />

espaço <strong>em</strong> sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong> que não é, n<strong>em</strong> po<strong>de</strong> ser, habitado. São essas ausências <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong><br />

que não v<strong>em</strong>os, mas que nos faz<strong>em</strong> produzir um discurso, uma fala que preencha um vazio,<br />

que justificam a afirmação <strong>de</strong> Collot, quando diz ; o horizonte é poético porque ele é um<br />

convite eterno à criação <strong>de</strong> paisagens, porque ele abre <strong>em</strong> si uma dimensão para a<br />

alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. 131<br />

Uma paisag<strong>em</strong> guar<strong>da</strong> <strong>em</strong> si mesma uma sucessão <strong>de</strong> outras paisagens a ser<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>scobertas <strong>em</strong> um contínuo reconfigurar, que nos proporciona estranhamento mas que<br />

também nos reorganiza internamente. A profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> do infinito só cabe <strong>em</strong> mim se<br />

131 COLLOT, M. L´Horizon fabuleux vol I. p. 16<br />

99


fraciona<strong>da</strong> por minha própria capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber. A percepção, tal qual está sendo<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> no presente trabalho, apresenta-se entr<strong>em</strong>ea<strong>da</strong> pela alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> que aproxima o<br />

que está no mundo <strong>de</strong> fora ao que traz<strong>em</strong>os <strong>em</strong> nós. A paisag<strong>em</strong> é simultaneamente forma<strong>da</strong><br />

por uma equivalência <strong>de</strong> olhares, e por comportar to<strong>da</strong> uma gama <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista<br />

singulares acerca <strong>de</strong>la. É pelo limite que nos apropriamos <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong> e sab<strong>em</strong>os que somos<br />

nós e não ela, mas precisamos existir nela; as linhas e cores que <strong>de</strong>lineam o horizonte nos<br />

inser<strong>em</strong> e transmutam <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> poética, - a paisag<strong>em</strong> é poesia, e po<strong>de</strong>mos habitá-la.<br />

Escrevo diante <strong>da</strong> janela aberta.<br />

Minha caneta é cor <strong>da</strong>s venezianas:<br />

Ver<strong>de</strong>!... E que leves, lin<strong>da</strong>s filigranas<br />

Desenha o sol na página <strong>de</strong>serta!<br />

Não sei que paisagista doidivanas<br />

Mistura os tons... acerta... <strong>de</strong>sacerta...<br />

S<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> nova <strong>de</strong>scoberta,<br />

Vai colorindo as horas quotidianas...<br />

Jogos <strong>da</strong> luz <strong>da</strong>nçando na folhag<strong>em</strong>!<br />

Do que eu ia escrever até me esqueço...<br />

Pra que pensar? Também sou <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong>...<br />

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...<br />

E me transmuto... iriso-me... estr<strong>em</strong>eço...<br />

Nos leves <strong>de</strong>dos que me vão pintando!<br />

Mário Quintana 132<br />

Quintana inicia o po<strong>em</strong>a como sujeito, escrevendo diante <strong>de</strong> uma paisag<strong>em</strong>. Eis que,<br />

pouco a pouco, <strong>de</strong>ixa-se ser colorido pelo sol sobre a folha <strong>de</strong> papel, transmutando-se <strong>em</strong><br />

objeto do próprio po<strong>em</strong>a, tornando-se ele mesmo paisag<strong>em</strong>.<br />

Habitar a linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> seus limites é fazer a experiência do que, nela,<br />

além <strong>de</strong> um indizível e aquém <strong>de</strong> um suposto dizível para além dos nomes, é<br />

sua matéria, <strong>de</strong>sassenta<strong>da</strong> num vazio que os poetas e os filósofos teimam <strong>em</strong><br />

fazer aparecer. Dizer, portanto, os nomes, na caravana <strong>da</strong> sintaxe que cruza a<br />

solidão <strong>de</strong>sértica do mundo com a vã esperança <strong>de</strong> lhe <strong>da</strong>r um sentido. Ou,<br />

sobretudo, dizer s<strong>em</strong> a esperança <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um sentido último ao mundo, dizer,<br />

<strong>de</strong>sespera<strong>da</strong> e inespera<strong>da</strong>mente, o vazio robusto <strong>da</strong> matéria <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>.<br />

Aqui, a poesia, a filosofia e suas fronteiras <strong>de</strong>sguarneci<strong>da</strong>s se realizam quando<br />

132 QUINTANA, Mário. A Rua dos Cataventos. Porto Alegre, Globo, 1986.<br />

100


elas não têm mais na<strong>da</strong> a contar, senão a força do narrar – a pura potência <strong>da</strong><br />

linguag<strong>em</strong> a ca<strong>da</strong> vez presentifica<strong>da</strong>. 133<br />

Se o horizonte <strong>de</strong>fine a paisag<strong>em</strong> como território perceptivo, ou seja, se existe do<br />

modo como o percebo, <strong>em</strong> relação a um ponto <strong>de</strong> vista que me <strong>de</strong>fine enquanto indivíduo, ele<br />

também articula esse espaço com uma alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> incontestável: paradoxalmente, encontramos<br />

na paisag<strong>em</strong> uma área <strong>de</strong> interseção com os outros e suas visões <strong>de</strong> mundo, sendo unicamente,<br />

nós mesmos. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> horizonte 134 po<strong>de</strong> nascer por ser o lugar do outro, tornando-se, pois,<br />

objeto do <strong>de</strong>sejo que só se satisfaz na transcendência. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o horizonte não é um lugar.<br />

A fenomenologia po<strong>de</strong> nos aju<strong>da</strong>r a compreen<strong>de</strong>r a que se liga essa profun<strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> relação do sujeito com o horizonte e <strong>da</strong> relação com o outro. Segundo ela, uma<br />

mesma estrutura, batiza<strong>da</strong> por Husserl <strong>de</strong> Horizontstruktur organiza nossa percepção do<br />

objeto e nossa relação com o outro. Em certo momento, o objeto que consi<strong>de</strong>ramos <strong>da</strong>do, nos<br />

revela um <strong>de</strong> seus aspectos, <strong>de</strong>snu<strong>da</strong>ndo outros simultaneamente, que constitu<strong>em</strong> seu lado<br />

oculto. Nessa concepção, reconstruímos <strong>em</strong> nossa mente a estrutura oculta a partir <strong>de</strong> traços<br />

isolados que somos capazes <strong>de</strong> perceber. Adivinhamos a estrutura do que não nos é revelado,<br />

graças ao que nos é mostrado. Entretanto, tal composição não passa <strong>de</strong> uma conjectura que<br />

constitui o horizonte <strong>de</strong> nossa percepção. Ato divinatório que se comprova ou não por nosso<br />

<strong>de</strong>slocamento no t<strong>em</strong>po e no espaço.<br />

O outro comporta o <strong>de</strong>sconhecido absoluto, um horizonte inviolável, uma<br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> cujos segredos são inacessíveis até para o próprio sujeito e só é revela<strong>da</strong> por<br />

traços <strong>de</strong> sua paisag<strong>em</strong>, tornando possível o vislumbrar <strong>de</strong> facetas <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> escondi<strong>da</strong>s<br />

além <strong>de</strong>sse horizonte, media<strong>da</strong>s por manifestações <strong>de</strong> seu corpo sensível. O signo e a<br />

linguag<strong>em</strong> são o corpo sensível do poeta que nos permit<strong>em</strong> lançar uma vista <strong>de</strong> olhos nessa<br />

133 PUCHEU, Alberto. O BRILHO DOS DESTROÇOS DE UM NAUFRÁGIO ESQUECIDOS DO MAR (Giorgio<br />

Agamben e <strong>Mac</strong>hado <strong>de</strong> Assis: <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> <strong>da</strong> experiência à experiência <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>)<br />

101


subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> oculta. O signo e sua escolha suger<strong>em</strong> e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, ocultam<br />

pensamentos que po<strong>de</strong>riam se guar<strong>da</strong>r <strong>em</strong> segredo na cons<strong>ciência</strong> do poeta ou exteriorizar-se<br />

revelando o horizonte <strong>da</strong> percepção <strong>de</strong>le, tecendo um corpo, um corpo <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>.<br />

Escrevo. E pronto.<br />

Escrevo porque preciso,<br />

Preciso porque estou tonto.<br />

Ninguém t<strong>em</strong> na<strong>da</strong> com isso.<br />

Escrevo porque amanhece,<br />

E as estrelas lá no céu<br />

L<strong>em</strong>bram letras no papel,<br />

Quando o po<strong>em</strong>a me anoitece.<br />

A aranha tece teias.<br />

O peixe beija e mor<strong>de</strong> o que vê.<br />

Eu escrevo apenas.<br />

T<strong>em</strong> que ter por quê? 135<br />

É diante <strong>da</strong> amplitu<strong>de</strong> do horizonte que po<strong>de</strong>mos perceber nossa pequenez. Nesse<br />

sentido, o horizonte po<strong>de</strong> ser visto como um símbolo <strong>da</strong> estreiteza <strong>de</strong> nossa situação humana.<br />

Uma representação <strong>de</strong> nossa incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar o todo, <strong>de</strong> perceber o mundo, a nós<br />

mesmos e ao outro com totali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Somos con<strong>de</strong>nados a perceber e relacionar-nos com<br />

facetas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Fragmentos. Não po<strong>de</strong>mos perceber o outro como ele mesmo se percebe.<br />

Somos con<strong>de</strong>nados a perceber o mundo a partir <strong>de</strong> nós mesmos. A imag<strong>em</strong> do horizonte <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> um po<strong>de</strong> <strong>de</strong>finir o mal-entendido essencial que separa os homens 136 e, paradoxalmente,<br />

também os une. Imagens, conceitos, que tanto serv<strong>em</strong> para discernir como para unir o<br />

individual e o que pertence ao outro. O horizonte é estrangeiro, sendo constant<strong>em</strong>ente outro.<br />

A idéia <strong>de</strong> natureza enquanto paisag<strong>em</strong> natural é indissociável do próprio conceito <strong>de</strong><br />

paisag<strong>em</strong>. Entretanto, a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> trouxe novas paisagens, a paisag<strong>em</strong> urbana, a paisag<strong>em</strong><br />

humana. A paisag<strong>em</strong> <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>:<br />

Não é o poeta que cria a poesia.<br />

E sim, a poesia que condiciona o poeta.<br />

Poeta é a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> acima do vulgar.<br />

134 COLLOT, M. L’Horizon Fabuleaux vol I. p. 17<br />

135 LEMINSKI, Paulo. Razão <strong>de</strong> ser. in http://cristalpoesia.net/pl<strong>em</strong>inski.htm - visitado <strong>em</strong> 3 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 2006.<br />

136 COLLOT, M. Horizon <strong>de</strong> Reverdy, 1981, p. 103<br />

102


Poeta é o operário, o artífice <strong>da</strong> palavra.<br />

E com ela compõe a ourivesaria <strong>de</strong> um verso.<br />

Poeta é ambicioso, insatisfeito,<br />

Procurando no jogo <strong>da</strong>s palavras,<br />

No imprevisto texto, atingir a perfeição<br />

Inalcançável. 137<br />

O espaço do sentido no horizonte <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> está s<strong>em</strong>pre vinculado às relações que<br />

po<strong>de</strong>m ser estabeleci<strong>da</strong>s. A proposta <strong>de</strong> Collot ultrapassa a visão estrutural e lingüística e se<br />

aproxima <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações intralingüísticas, mas uma re<strong>de</strong> aberta <strong>de</strong><br />

atribuições <strong>de</strong> sentidos. Totalmente avesso à idéia <strong>de</strong> fechamento, Collot se aproxima <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> palavra <strong>de</strong> Gustave Guillaume: a palavra é uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, não <strong>de</strong><br />

efeito. 138 De acordo com esse ponto <strong>de</strong> vista, a significação não se <strong>de</strong>ixa aprisionar <strong>em</strong> uma<br />

<strong>de</strong>finição, mas admite uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> enorme <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e constitui um horizonte <strong>de</strong><br />

sentido que po<strong>de</strong> se revelar <strong>de</strong> maneira diferente <strong>em</strong> ca<strong>da</strong> contexto. Sendo que a palavra estará<br />

s<strong>em</strong>pre passível <strong>de</strong> estabelecer uma nova relação <strong>de</strong> significado com outras palavras, <strong>da</strong><br />

mesma forma como o objeto que não se cansa <strong>de</strong> ser outro <strong>em</strong> função dos diversos horizontes<br />

nos quais se inscreve, a infinitu<strong>de</strong> relacional dos vocábulos se reporta à infinitu<strong>de</strong> relacional<br />

dos objetos.<br />

Se eu falei repeti<strong>da</strong>mente sobre o horizonte, eu o fiz porque ele carrega to<strong>da</strong> a<br />

ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> paisag<strong>em</strong>, marcando o alcance <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> visível e organiza<strong>da</strong><br />

assim como um portal <strong>de</strong> um espaço que é invisível e inapreensível. Ao ligar o po<strong>em</strong>a<br />

com o horizonte, busca-se estabelecer com o mundo uma relação que não será<br />

imitativa, porque o relacionamento integra a distância que separa os dois, assim<br />

mantém-se proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o inacessível. 139<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, as relações associativas entre as palavras e as coisas traz<strong>em</strong> um efeito<br />

intrigante, obtido por poetas, <strong>em</strong> que o sentido não repousa <strong>em</strong> uma significação i<strong>de</strong>al mas<br />

137 CORALINA, Cora. O poeta e a poesia www.lunaeamigos.com.br/fragrancia/coracoralina.htm - acessado <strong>em</strong><br />

4 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2006<br />

138 COLLOT, Michel. Horizon <strong>de</strong> Reverdy, 1981, p. 219<br />

139 http://www.geocities.com/LyricRecovery/collotenglish.htm - acessado <strong>em</strong> 9 <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2006<br />

103


comporta uma carga <strong>de</strong> não significação, <strong>da</strong>ndo opaci<strong>da</strong><strong>de</strong> às palavras: antes <strong>de</strong> tudo estou<br />

atriste com a m<strong>em</strong>ória incha<strong>da</strong>, calendário <strong>de</strong> pernas, presença <strong>de</strong> muitos braços, o rio e um<br />

bote que vai fundo na gente, carregando os sonhos. 140<br />

A carne <strong>da</strong> poesia é lugar <strong>de</strong> encontro. Linguag<strong>em</strong>, chão <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Solo <strong>de</strong><br />

questionamentos, on<strong>de</strong> a admiração po<strong>de</strong> ser grava<strong>da</strong> e revivi<strong>da</strong>. Poesia como o local do<br />

espanto e instância geradora <strong>de</strong> pensamento. Os poetas pensam o mundo e intervêm no real,<br />

atravessando-os. O corpo do poeta e sua linguag<strong>em</strong> acolh<strong>em</strong> o mundo e o transformam.<br />

Impregnado pelo universo, o poeta trava árdua luta com uma linguag<strong>em</strong> <strong>de</strong>sfaleci<strong>da</strong>, marca<strong>da</strong><br />

pela representação informacional, e a <strong>de</strong>pura num <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> insuflá-la com vi<strong>da</strong> e gerar o<br />

espanto, <strong>de</strong> modo a criar uma nova reali<strong>da</strong><strong>de</strong> pela imaginação. A imaginação é um modo <strong>de</strong><br />

pensamento, o próprio <strong>da</strong> poesia (...) 141<br />

Octavio Paz fala <strong>da</strong> poesia como uma outra voz, como antídoto <strong>da</strong> técnica e do<br />

mercado, que nasce <strong>da</strong> imaginação e percebe o outro lado <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> 142 . A poesia é a<br />

contravoz que <strong>de</strong>lineia uma nova paisag<strong>em</strong>, até então não pensa<strong>da</strong> e que esten<strong>de</strong> a linha do<br />

horizonte à escrita. O horizonte traz <strong>em</strong> si a questão paradoxal <strong>da</strong> visibili<strong>da</strong><strong>de</strong>: o <strong>de</strong>sejo pelo<br />

inacessível, pelo <strong>de</strong>sconhecido, on<strong>de</strong> o invisível se apresenta como uma certa ausência. 143 O<br />

horizonte oferece el<strong>em</strong>entos a ser<strong>em</strong> vistos e ocultando, ao mesmo t<strong>em</strong>po, uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e traduzindo o invisível. A poesia também traz esse <strong>de</strong>sejo: abrir horizontes,<br />

reconfigurar representações calcifica<strong>da</strong>s, num <strong>em</strong>bate com a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> novas<br />

representações: a experiência poética se torna saí<strong>da</strong> <strong>de</strong> si, reencontro <strong>da</strong> mais última<br />

alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. 144<br />

140<br />

FRÓES, Leonardo. Passag<strong>em</strong> para uma paisag<strong>em</strong> <strong>de</strong> caras. In Siblitz. Rio <strong>de</strong> Janeiro, editorial Alhambra,<br />

1981.<br />

141<br />

LINS, Vera. Poesia e crítica: uns e outros. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ed. 7 letras, 2005.<br />

142<br />

LINS, Vera. Poesia e crítica: uns e outros. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ed. 7 letras, 2005. p. 12<br />

143 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 12<br />

144 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 13<br />

104


A outra voz é a voz <strong>da</strong> poesia que enuncia uma crítica, que apresenta pelo avesso<br />

representações habituais, mo<strong>de</strong>lando o impensado, tal qual o <strong>de</strong>linear <strong>de</strong> um novo horizonte;<br />

horizonte visto como inscrição <strong>de</strong> uma alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> no espaço. Lugar que é também não-lugar; o<br />

espaço on<strong>de</strong> o poeta <strong>de</strong>rrama sua própria poesia, marg<strong>em</strong> secreta on<strong>de</strong> se inser<strong>em</strong> signos <strong>da</strong><br />

presença <strong>de</strong> um outro - o horizonte <strong>da</strong> poesia - como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interseções <strong>de</strong> várias<br />

vi<strong>da</strong>s, transbor<strong>da</strong>mentos <strong>de</strong> horizontes que se encontram na poesia.<br />

A organização do espaço <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> um horizonte: to<strong>da</strong> conduta crítica<br />

impõe um limite ao sentido: é a leitura a responsável por renovar as significações <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s<br />

como tais no movimento <strong>de</strong> uma infinita produção <strong>de</strong> sentido. No horizonte <strong>de</strong> to<strong>da</strong> leitura,<br />

há uma reserva inesgotável <strong>de</strong> novas significações a ser<strong>em</strong> <strong>de</strong>scobertas. 145<br />

O poeta tenta estabelecer uma relação com o horizonte por meio <strong>de</strong> ferramentas que se<br />

encontram ao seu alcance: os signos. Seu horizonte imaginário torna-se lugar <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

inerente a ele mesmo. Como palco <strong>de</strong> projeção <strong>de</strong> fantasias pessoais, a angústia <strong>da</strong> existência<br />

humana sobre o que há a<strong>pós</strong> a morte é liga<strong>da</strong> à curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre o que existe por <strong>de</strong>trás do<br />

horizonte. Ambos r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> à idéia <strong>de</strong> um outro mundo. O horizonte é o lugar do outro, <strong>da</strong><br />

alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. Uma difusa fronteira entre lugar e não-lugar, ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>; é<br />

on<strong>de</strong> ocorre o <strong>de</strong>sguarnecimento <strong>da</strong>s linhas que <strong>de</strong>marcam o fim e o início do céu e <strong>da</strong> terra.<br />

A representação <strong>de</strong> um horizonte na poesia revela a busca <strong>de</strong> algo <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente<br />

inacessível, que se <strong>de</strong>sfaz com nossa proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Pura representação <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, é um<br />

lugar que é um não-lugar, é a extr<strong>em</strong>i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma paisag<strong>em</strong>, fronteira entre o conhecido e o<br />

<strong>de</strong>sconhecido, lugar <strong>de</strong> transição, marco, limite on<strong>de</strong> o mundo é interrompido, lugar do qual<br />

não há atrás. O horizonte reproduz a curvatura <strong>da</strong> Terra, seu movimento é relacional ao nosso.<br />

Existe a partir <strong>de</strong> nós, único e vário; nos separa, mas também nos une. Ponto <strong>de</strong> interseção<br />

entre céu e terra. Ele, que se <strong>de</strong>sfaz na escuridão, que só existe na diferença, é uma marca <strong>da</strong><br />

145 COLLOT, M. Horizon <strong>de</strong> Reverdy, 1981. p.143<br />

105


alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. O dia é apolíneo, salienta as formas e contrasta com o escuro dionisíaco, amálgama<br />

amorfo <strong>da</strong>s individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e nos lança na dimensão do informe, <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> limites; é<br />

difuso, rompe com as <strong>de</strong>limitações, transbor<strong>da</strong>. O espaço noturno per<strong>de</strong> a medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> forma,<br />

inun<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecido, transbor<strong>da</strong> sombra; nele, o horizonte não existe. Este é diurno,<br />

apolíneo.<br />

3.2. Didi-Huberman e o conceito <strong>de</strong> Aura <strong>em</strong> Walter Benjamin: aproximações com<br />

Michel Collot<br />

Em um mundo dominado pela mídia, torna-se necessário perguntar-se o que é obra <strong>de</strong><br />

arte atualmente. Como nosso estudo se volta para a poesia, <strong>em</strong> meio a tantos escritos, tantos<br />

livros, o que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado poesia hoje? Para <strong>de</strong>sdobrar esta questão, mais do que<br />

respondê-la, encontramos <strong>em</strong> Didi-Huberman uma reflexão sobre a obra crítica, que parece<br />

apresentar filigranas <strong>de</strong> concordância com a idéia <strong>de</strong> horizonte <strong>de</strong> Michel Collot.<br />

George Didi-Huberman opera um resgate no conceito <strong>de</strong> aura <strong>de</strong> Benjamim,<br />

<strong>de</strong>sinvestido <strong>da</strong> dimensão religiosa. A aura <strong>de</strong> um objeto <strong>de</strong> arte, ou imag<strong>em</strong>-aura, é aquilo<br />

que nos confere o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> levantar os olhos e olhar para outro lugar. Se a obra <strong>de</strong> arte na<br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>de</strong>ssacralizou pelos processos <strong>de</strong> reprodutibili<strong>da</strong><strong>de</strong> técnica, ela <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser<br />

um simulacro <strong>de</strong> um mundo superior e passou a associar-se a el<strong>em</strong>entos do cotidiano,<br />

praticamente se per<strong>de</strong>ndo, ou assim parecendo ser, até o surgimento <strong>de</strong> uma nova forma <strong>de</strong><br />

colocar a experiência estética: a obra <strong>de</strong> arte crítica, é aquela que se impõe enquanto<br />

experiência, e o faz produzindo uma linguag<strong>em</strong> crítica que reconstitui a banali<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo<br />

cotidiano ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que nos reconstitui enquanto sujeitos, ou seja, tal processo <strong>de</strong><br />

interação com a obra <strong>de</strong> arte se dá por meio <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>.<br />

106


A diferença <strong>da</strong> percepção no que se chama mundo do “familiar” é que neste o sujeito não<br />

vê na<strong>da</strong>; este mundo nos é <strong>da</strong>do, simplesmente. Porém, quando o familiar se torna estranho,<br />

algo aparece. A questão <strong>da</strong> distância se coloca e uma nova relação é instaura<strong>da</strong>. Quando isso<br />

acontece – o familiar ficar estranho –, a angústia <strong>da</strong> inquietante estranheza é maior. É possível<br />

experimentar um sentimento ambivalente <strong>de</strong> atração e angústia, e a linguag<strong>em</strong> entra como<br />

forma <strong>de</strong> suprir o <strong>de</strong>samparo.<br />

Tal linguag<strong>em</strong> se põe a serviço <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> uma lógica que acaba por revelar um<br />

sintoma <strong>de</strong>sse sujeito. Em sua ambição <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um sentido, que lhe permita<br />

relacionar-se com esse sintoma, o sujeito faz <strong>de</strong>le um operador e não apenas uma repetição<br />

enigmática, <strong>de</strong> modo a não ser paralisado por eles. A linguag<strong>em</strong> é algo que põe <strong>em</strong> cena a<br />

ausência, mediando o mundo e o sujeito: uma imag<strong>em</strong> (...) que ao nos olhar, ela nos obriga a<br />

olhá-la ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente. E nos obriga a escrever esse olhar, não para “transcrevê-lo”, mas<br />

para constituí-lo”. 146 E é por meio <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> que isso po<strong>de</strong> ser feito.<br />

A arte põe <strong>em</strong> cena mecanismos <strong>de</strong> estruturação do sujeito; a construção do discurso que<br />

preenche o lugar entre o discurso e o seu sentido, constrói também, simultaneamente, a<br />

distância crítica e é nessa relação dialética, nesse entre-lugar, instaura-se a aura, na concepção<br />

<strong>de</strong> Didi-Huberman. Não mais a aura do sagrado, mas a aura que na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> é oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

aporia frente ao real, assim como <strong>da</strong> cons<strong>ciência</strong> <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> tradição e <strong>da</strong> aceleração do<br />

t<strong>em</strong>po, <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> como cons<strong>ciência</strong> do t<strong>em</strong>po presente. Algo que confere ao sujeito o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> levantar o olhar. Este é o ponto <strong>em</strong> que encontramos proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a idéia <strong>de</strong><br />

horizonte <strong>em</strong> Collot. Uma relação paradoxal e dialética, <strong>em</strong> que a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> estruturação<br />

se dá <strong>em</strong> um entre-lugar, com uma construção <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, on<strong>de</strong> o sujeito se volta para fora<br />

<strong>de</strong> si, <strong>em</strong> um constante <strong>de</strong>sdobrar <strong>de</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>s. É especificamente o paradoxo <strong>da</strong><br />

146 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que v<strong>em</strong>os, o que nos olha. São Paulo, Editora 34 , 1998. p. 172<br />

107


proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> distante que aproxima as duas construções: tanto a <strong>de</strong> Collot quanto a <strong>de</strong> Didi-<br />

Huberman.<br />

Em Collot, o t<strong>em</strong>a horizonte se torna central e ele percebe que o corpo é o ponto <strong>de</strong><br />

parti<strong>da</strong> e <strong>de</strong> passag<strong>em</strong> entre o próximo e o longínquo. Da mesma forma, o entrelaçamento<br />

entre o si mesmo e o outro, num jogo <strong>de</strong> movimento <strong>em</strong> que jamais ocorre a total<br />

coincidência, encontra na fenomenologia, - fonte teórica que também valeu-se Didi-<br />

Huberman, - a duplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, a dialetici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Collot trabalha com a idéia <strong>de</strong> horizonte interno e<br />

externo. Huberman trabalha com a idéia <strong>de</strong> que o objeto nos olha assim como nós o olhamos,<br />

e que a imag<strong>em</strong> se fun<strong>da</strong> nesse entre-lugar. Curiosamente é fora <strong>de</strong> si, <strong>em</strong> ambas as<br />

construções teóricas, que o sujeito t<strong>em</strong> sua experiência poética, ou seja, é no exercício <strong>da</strong><br />

linguag<strong>em</strong>.<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, tanto a obra poética quanto o sujeito precisam <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> para existir.<br />

A obra <strong>de</strong> arte como que nos r<strong>em</strong>ete a outra coisa que não é ela mesma, visto que, excluindo a<br />

mo<strong>de</strong>rna dimensão tautológica, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira obra <strong>de</strong> arte obriga à elaboração <strong>de</strong> novos<br />

discursos que implicam no reconhecimento <strong>de</strong>la enquanto obra crítica. Nesta experiência <strong>de</strong><br />

percepção do visível, cria-se nova forma <strong>de</strong> organizar o espaço, <strong>em</strong> um processo dialético que<br />

modifica o sujeito que percebe assim como reconfigura a orig<strong>em</strong>. Tais imagens dialéticas<br />

seriam as únicas que po<strong>de</strong>riam ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s autênticas, por lançar<strong>em</strong> uma ponte entre a<br />

dupla distância dos 5 sentidos <strong>da</strong> percepção e a dos mecanismos <strong>da</strong> compreensão. Huberman<br />

nos fala, ain<strong>da</strong>, que é a relação entre essas duas distâncias assim como a relação entre suas<br />

obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que constitu<strong>em</strong>, na imag<strong>em</strong>, o que se po<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> aura. Portanto, a dupla<br />

distância é aqui originária, e a imag<strong>em</strong> é originariamente dialética, crítica. 147<br />

A <strong>pós</strong>-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> manipula complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, opera com t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong><strong>de</strong>s complexas<br />

que induz<strong>em</strong> a conscientização anacrônica. O olhar para um objeto <strong>de</strong> arte investe-o <strong>de</strong> uma<br />

147 DIDI-HUBERMAN, p. 173, 1998<br />

108


t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong><strong>de</strong>, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, investe-o <strong>de</strong> múltiplas t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong><strong>de</strong>s necessárias para nortear<br />

aquele que vê o objeto.<br />

3.3. O espanto na poesia<br />

Os filósofos, assim como os poetas, realizam seu pensamento a partir <strong>da</strong> perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

<strong>da</strong> admiração, do espanto, provocados pela pregnância <strong>da</strong>quilo que é originário. Os<br />

formalistas, <strong>em</strong> estudos <strong>de</strong> obras literárias, também apontaram artifícios <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong> como<br />

sons, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima etc.., que tinham como traço similar o efeito <strong>de</strong><br />

estranhamento ou <strong>de</strong>sfamiliarização, uma <strong>de</strong>formação <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> comum <strong>de</strong> alguma<br />

maneira,<br />

sob a pressão dos artifícios literários, a linguag<strong>em</strong> comum era intensifica<strong>da</strong>,<br />

con<strong>de</strong>nsa<strong>da</strong>, torci<strong>da</strong>, reduzi<strong>da</strong>, amplia<strong>da</strong>, inverti<strong>da</strong>. Era uma linguag<strong>em</strong> que se<br />

“tornara estranha”, e graças a este estranhamento, todo o mundo cotidiano<br />

transformava-se, subitamente, <strong>em</strong> algo não familiar. Na rotina <strong>da</strong> fala cotidiana,<br />

nossas percepções e reações à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> se tornaram <strong>em</strong>bota<strong>da</strong>s, apaga<strong>da</strong>s, ou (...)<br />

automatiza<strong>da</strong>s. A literatura, impondo-nos uma cons<strong>ciência</strong> dramática <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>,<br />

renova essas reações habituais. 148<br />

Terry Eagleton afirma que pensar a literatura como os formalistas o faz<strong>em</strong> seria<br />

consi<strong>de</strong>rá-la poesia. Por isso, tec<strong>em</strong>os algumas relações entre a admiração, a estranheza<br />

inquietante e a imag<strong>em</strong> crítica face à poesia.<br />

Ao fazer uma analogia entre imag<strong>em</strong> crítica e poesia, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>senvolver a idéia <strong>de</strong><br />

que, se a imag<strong>em</strong> crítica é aquela que nos olha e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, furta-se ao sentido que se<br />

ten<strong>de</strong> a ter ver nela, afirmamos ser a poesia um el<strong>em</strong>ento fomentador <strong>de</strong> discurso crítico. A<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira literatura correspon<strong>de</strong>ria à imag<strong>em</strong> crítica, ao passo que os produtos <strong>da</strong> indústria<br />

148 EAGLETON, Terry. Teoria <strong>da</strong> Literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo, Martins<br />

Fontes, 1997. p. 5<br />

109


cultural seriam imagens que se entregam s<strong>em</strong> provocar qualquer necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong><br />

discurso crítico.<br />

O original é algo que nos olha e convoca uma escrita, incita à reflexão, ao alargamento<br />

<strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória. A linguag<strong>em</strong> poética é o modo <strong>de</strong> conhecimento crítico do real a partir <strong>da</strong><br />

m<strong>em</strong>ória, e não passa pela dimensão <strong>de</strong> uma racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva. A provocação <strong>de</strong><br />

estranhamento é cultural, <strong>em</strong>bora aquilo que gera a estranheza não seja, necessariamente,<br />

produzido por um sujeito que habita o mesmo espaço e a mesma t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong><strong>de</strong> que nós. O<br />

estranhamento po<strong>de</strong>, assim, ser consi<strong>de</strong>rado um objeto anacrônico: é uma perspectiva<br />

relativista que obriga a rever as gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura e que coloca <strong>em</strong> cena as tensões t<strong>em</strong>porais<br />

<strong>de</strong> um objeto. Tal idéia é representa<strong>da</strong> pela expressão <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire: a infinitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

instante, <strong>em</strong> que a espessura <strong>de</strong> sua criação torna possível sua infinita interpretação tardia. As<br />

imagens – incluam-se também as poéticas -, são atravessa<strong>da</strong>s por t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong><strong>de</strong>s complexas.<br />

Didi Huberman insiste na idéia <strong>de</strong> que aura é algo que impõe distância mas também<br />

proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> pois permite a construção <strong>de</strong> alguma familiari<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aí está o segredo <strong>de</strong> uma<br />

aura seculariza<strong>da</strong> que não é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m do sagrado, mas <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória que não se t<strong>em</strong> <strong>de</strong> si<br />

mesmo. O registro do estético seria a construção <strong>de</strong> uma alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> que constitui o sujeito e<br />

não é o sujeito e, contudo é o sujeito porque o constitui. Como disse Rimbaud; Je est un autre.<br />

Nesse processo <strong>de</strong> alteração, <strong>de</strong> outramento, po<strong>de</strong>-se encontrar uma saú<strong>de</strong> crítica, há<br />

movimento, processo dialógico pois a poesia: procura dos outros, <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong><br />

outri<strong>da</strong><strong>de</strong>. 149<br />

Reconhecer a distância é reconhecer ao mesmo t<strong>em</strong>po uma per<strong>da</strong>. On<strong>de</strong> há uma<br />

distância, há uma per<strong>da</strong>, a mediação implica per<strong>da</strong>. Na experiência autêntica há o<br />

reconhecimento <strong>da</strong>quilo que não se sabia, o retorno do recalcado. Aquilo que não foi<br />

percebido vai retornar <strong>de</strong> fora, do real, sob uma nova forma. Para Didi-Huberman, a<br />

149 PAZ, Octavio. O Arco e a lira. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira. 1982.<br />

110


experiência nos fun<strong>da</strong> enquanto sujeitos mas nos retorna pela distância. A experiência crítica<br />

põe <strong>em</strong> cena a dimensão do test<strong>em</strong>unho subjetivo do próprio sujeito. A experiência estética<br />

se dá com a distância. O trabalho do crítico é um trabalho intelectual sobre essa distância<br />

com sua dimensão subjetiva anacrônica. Tanto a criação como a crítica são reconstituíveis;<br />

não é qualquer artista que faz aura para todo mundo. O objeto estético, às vezes, não nos<br />

olha. 150<br />

Eliot é um autor mo<strong>de</strong>rno que trabalha com um olhar anacrônico, levando <strong>em</strong><br />

consi<strong>de</strong>ração a cons<strong>ciência</strong> do olhar presente sobre o passado. Na or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória, essa<br />

cons<strong>ciência</strong> torna o passado presente, mas o faz ampliando-o com o processo <strong>da</strong> escrita,<br />

atribuindo-lhe uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> significações que não havia originalmente. Em consonância com<br />

Bergson - the end is the beginning, e Benjamim, Eliot constrói, a partir <strong>de</strong> um ponto focal do<br />

presente uma montag<strong>em</strong> que revela relações <strong>de</strong> causa e efeito amplifica<strong>da</strong>s pela m<strong>em</strong>ória. A<br />

m<strong>em</strong>ória está s<strong>em</strong>pre liga<strong>da</strong> a um pertencimento. A m<strong>em</strong>ória não é, jamais, a coisa, não<br />

reconstitui a experiência, por si mesma ela é uma outra experiência.<br />

Eliot apresenta <strong>em</strong> seus po<strong>em</strong>as, uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>scontínua <strong>de</strong> matrizes<br />

composicionais, ou seja, ele interage com obras <strong>de</strong> arte do passado. Os ex<strong>em</strong>plos são muitos,<br />

mas, cito apenas dois <strong>de</strong>les <strong>de</strong> seu livro publicado <strong>em</strong> 1917 The Love Song of Alfred J.<br />

Prufrock: o primeiro verso No! I am not Prince Hamlet, nor was meant to be; (...) que traz<br />

uma referência à famosa abertura do solilóquio <strong>de</strong> Hamlet: “to be or not to be”. Esta oposição<br />

apresenta<strong>da</strong> na fala do personag<strong>em</strong> shakespeariano prenuncia o agônico do hom<strong>em</strong> frente ao<br />

novo, simbolizado pela mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. É uma cisão epocal revelando <strong>em</strong> nova visão <strong>de</strong> mundo;<br />

150 JACQUES, Marcelo. O outro que se lê: “O espelho” <strong>de</strong> G. Rosa. In Revista do CESP-v.22, n. 30 – jan-jul.<br />

2002.<br />

111


o que antes fora dito por Parmêni<strong>de</strong>s 151 : “to be and not to be” 152 . A referência realiza<strong>da</strong> por<br />

Eliot ganha assim maior significação. Pois, neste caso, não seria apenas uma renovação <strong>da</strong><br />

linguag<strong>em</strong> estabeleci<strong>da</strong> por meio <strong>de</strong> uma tessitura intertextual, mas haveria também a<br />

confluência s<strong>em</strong>ântica <strong>de</strong> dois momentos ansiogênicos frente à mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferentes,<br />

traduzindo-se <strong>em</strong> sintomas <strong>de</strong> época.<br />

O segundo ex<strong>em</strong>plo seria uma resposta ao poeta John Donne <strong>em</strong> seu po<strong>em</strong>a “Song”:<br />

Teach me to heare mermaids singing. Eliot, ao finalizar o seu belo po<strong>em</strong>a respon<strong>de</strong>, como que<br />

ecoando ao longo dos anos : I have heard the mermaids singing, each to each.<br />

É interessante salientar que a tensão cria<strong>da</strong> por uma frase que é, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

original e origina<strong>da</strong>, a <strong>de</strong>staca do corpo po<strong>em</strong>ático maior, ganhando riqueza por sua carga <strong>de</strong><br />

m<strong>em</strong>ória, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que houver um leitor/sujeito com capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para apreen<strong>de</strong>r os<br />

vários níveis <strong>de</strong> leitura que a obra oferece. Pois não há forma pura, a construção <strong>de</strong> formas é<br />

como a construção do olhar, que se dá via plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos que constitui um leitor.<br />

Para Bau<strong>de</strong>laire, o instante t<strong>em</strong> uma espessura que lhe permite ser tardiamente<br />

interpretado. Cito outro verso <strong>de</strong> Eliot para cotejá-lo com a idéia <strong>da</strong> infinitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um instante<br />

<strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire: In a minute there is time for <strong>de</strong>cisions and revisions which a minute will<br />

reverse. Como há s<strong>em</strong>pre recalque <strong>em</strong> nível individual e coletivo, haverá s<strong>em</strong>pre alguém a<br />

propor posteriormente uma discussão eucrônica. Na poesia crítica a que quer<strong>em</strong>os chamar <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira obra <strong>de</strong> arte, há a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar muitas cama<strong>da</strong>s, numa infinitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

horizontes, numa infinitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> leituras; como se sua leitura fosse inesgotável. A poesia não se<br />

dá - não se expõe - a obra <strong>de</strong> arte crítica r<strong>em</strong>ete o sujeito para fora <strong>de</strong> si.<br />

151 Para Parmêni<strong>de</strong>s, ao contrário <strong>de</strong> Heráclito, “ O Ser é, o não-ser não é” criou uma série <strong>de</strong> argumentos<br />

chamados “Paradoxos <strong>de</strong> Zenão” para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a tese <strong>de</strong> que o “não-ser” é a mu<strong>da</strong>nça, pois mu<strong>da</strong>r é justamente<br />

não mais ser aquilo que era e tornar-se aquilo que não é ain<strong>da</strong>.<br />

152 PUCHEU, Alberto. Intervenções na relação entre poesia e filosofia: uma fronteira <strong>de</strong>sguarneci<strong>da</strong>. Tese <strong>de</strong><br />

Doutorado, UFRJ, 1999. p. 33<br />

112


Para Benjamin, somente as imagens dialéticas são imagens autênticas, porque estas se<br />

apresentam como imagens críticas, ou seja, imagens <strong>em</strong> crise, capazes <strong>de</strong> gerar um efeito <strong>em</strong><br />

qu<strong>em</strong> as olha, pois o obriga a escrever esse olhar, não para transcrevê-lo, mas para constituí-<br />

lo. 153<br />

Poesia e filosofia não principiam pela in<strong>da</strong>gação n<strong>em</strong> pela dúvi<strong>da</strong>, mas pelo espanto. A<br />

sua orig<strong>em</strong> é o espanto, assim como é o espanto, o estranhamento produzido <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> as olha,<br />

que propicia um novo momento <strong>de</strong> criação, à medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que o sujeito precisa elaborar um<br />

discurso para se constituir frente à obra, como se ele se <strong>de</strong>sorganizasse e carecesse <strong>da</strong><br />

linguag<strong>em</strong> para se reconstituir. Po<strong>de</strong>-se esten<strong>de</strong>r tal observação à criação artística, <strong>em</strong> geral.<br />

Mas que seja<br />

pela exclamação <strong>da</strong>s palavras que insist<strong>em</strong> <strong>em</strong> transbor<strong>da</strong>r com o admirável, a<br />

ponto <strong>de</strong> não se distinguir<strong>em</strong> <strong>de</strong>le. Os escritos não são instrumentos <strong>de</strong> comunicação<br />

do que lhes é exterior. Eles mesmos, já espantosos, realizam seu limite, chegando ao<br />

que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre, são: palavras, criações <strong>de</strong> novos <strong>de</strong>stinos. 154<br />

No po<strong>em</strong>a <strong>de</strong> e. e. cummings que v<strong>em</strong> a seguir, é possível observar como ele utiliza<br />

recursos como a fonte <strong>da</strong>s letras, sua disposição no papel, como se fosse uma tela, e a idéia,<br />

que se torna vela<strong>da</strong>, solicitando a interação do leitor para <strong>de</strong>svelar-se. Não é a informação que<br />

importa, mas a maneira como ela é apresenta<strong>da</strong>; intraduzível, os traços <strong>da</strong>s letras compõ<strong>em</strong> a<br />

idéia <strong>de</strong> que uma folha apenas é solidão; idéia reforça<strong>da</strong> pela diagramação dos últimos versos,<br />

<strong>em</strong> que a impressão <strong>da</strong> letra L po<strong>de</strong> ser interpreta<strong>da</strong> como o algarismo (1- um). O poeta cunha<br />

ain<strong>da</strong> palavras, por sugestão, pelo efeito visual que afasta e aproxima o olhar do leitor que<br />

busca compor algo inteligível, interagindo nessa busca. Além do algarismo um, t<strong>em</strong>os a<br />

palavra one, apenas uma, ela é to<strong>da</strong> um verso, <strong>em</strong> uma apresentação <strong>em</strong> que o significante<br />

está <strong>em</strong> total coerência com o significado. O sentimento <strong>de</strong> isolamento é reforçado pela última<br />

153 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p. 172<br />

154 PUCHEU, Alberto. Escritos <strong>da</strong> Admiração. In Poesia (e) Filosofia. Org. Alberto Pucheu, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Sette Letras, 1998<br />

113


linha, que tal como a base <strong>de</strong> uma árvore é a mais larga e contém a raiz que sugere o início <strong>de</strong><br />

tudo: iness. Sufixo que compõe substantivos <strong>em</strong> inglês, aqui possibilita o efeito <strong>de</strong> que a<br />

palavra se constrói <strong>em</strong> um entre-lugar, entre o texto e os olhos do leitor. O poeta não dá a<br />

palavra, ele sugere, <strong>de</strong>ixa <strong>em</strong> aberto e, no <strong>de</strong>senho s<strong>em</strong>ântico que foi pintado, a primeira<br />

r<strong>em</strong>issão seria no sentido <strong>de</strong> loneliness, que está <strong>de</strong> certo modo escrita, mas não está<br />

explícita. Esse é o jogo <strong>da</strong> poesia, aí está o lirismo transmutado, fora <strong>de</strong> nós, que fomenta<br />

nosso exercício <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>, que se abre <strong>em</strong> novo horizonte, que nos chama e nos r<strong>em</strong>ete a<br />

esse entre-lugar que é a linguag<strong>em</strong>. A idéia não é informa<strong>da</strong>, mas apresenta<strong>da</strong> esteticamente; a<br />

disposição dos tipos no papel sugere o movimento <strong>de</strong> rodopio <strong>de</strong> uma folha solitária caindo no<br />

chão e suger<strong>em</strong> apenas, não explicam na<strong>da</strong>:<br />

l (a<br />

le<br />

af<br />

ll<br />

s)<br />

one<br />

l<br />

iness<br />

A construção poética <strong>de</strong> e. e. cummings ilustra como o poeta recorta a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e torna<br />

eterna a paisag<strong>em</strong> que construiu com sua linguag<strong>em</strong>. A admiração, possibilita<strong>da</strong> pela vivência<br />

<strong>de</strong> qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> o verbo como aquilo que o transpassa, o fun<strong>da</strong>menta e o envolve, <strong>em</strong> todo o seu<br />

vigor, fazendo com que a pessoa, quando alheia a ela, fique anestesia<strong>da</strong> para o real que<br />

passa a se projetar menos do que po<strong>de</strong>ria. 155<br />

155 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m.<br />

114


Os poetas aqui comentados resgatam, por meio <strong>de</strong> fragmentos, o espanto, a admiração,<br />

criam uma imag<strong>em</strong> crítica por meio <strong>de</strong> seus corpos poéticos e possibilitam ao hom<strong>em</strong><br />

mo<strong>de</strong>rno espantar-se com seu cotidiano, realizando assim um recorte <strong>de</strong>ssa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que se<br />

põe lança<strong>da</strong> à certa distância que possibilita, até mesmo obriga, a criação <strong>de</strong> um discurso<br />

crítico estruturador. Deste modo, via poesia, via estética, realiza-se um <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong><br />

significados que instauram no sujeito um novo olhar, ou mesmo, um novo sujeito e,<br />

certamente, novos horizontes.<br />

No corpus escolhido para o presente trabalho, os poetas são atravessados pela<br />

característica comum <strong>de</strong> recorrer<strong>em</strong> à linguag<strong>em</strong> do cotidiano <strong>de</strong> um mundo <strong>de</strong>sencantado, a<br />

fim <strong>de</strong> potencializar este <strong>de</strong>sencanto. Acontece que, ao recortar o real e construir esta<br />

distância, instaura-se a aura. Não é qualquer artista que faz aura. Há que haver na obra <strong>de</strong> arte<br />

algo que nos olhe e que nos faça olhar com espanto pela tensão <strong>de</strong> m<strong>em</strong>órias suscita<strong>da</strong>s no<br />

interagir <strong>de</strong> olhares entre objeto e sujeito. A partir <strong>de</strong>sse olhar recíproco será possível, na aura,<br />

reconhecer o que não sabia - retorno do recalcado.<br />

Um pensamento surgiu <strong>em</strong> minha mente hoje<br />

Um que eu já havia tido antes,<br />

Mas não concluira, -- algum modo no passado<br />

Eu não pu<strong>de</strong> saber o ano,<br />

A thought went up my mind to-<strong>da</strong>y<br />

That I have had before,<br />

But did not finish, -- some way back,<br />

I could not fix the year,<br />

N<strong>em</strong> on<strong>de</strong> ele foi, n<strong>em</strong> porque veio<br />

Pela segun<strong>da</strong> vez para mim,<br />

N<strong>em</strong> exatamente o que era,<br />

Tenho eu a habili<strong>da</strong><strong>de</strong> para dizer<br />

Nor where it went, nor why it came<br />

The second time to me,<br />

Nor <strong>de</strong>finitely what it was,<br />

Have I the art to say.<br />

115


Mas <strong>em</strong> algum lugar <strong>da</strong> minha alma, eu sei<br />

Que eu já encontrei com aquilo antes<br />

Ele apenas me l<strong>em</strong>brou – era tudo –<br />

E não voltou mais para mim. 156<br />

But somewhere in my soul, I know<br />

I 've met the thing before;<br />

It just r<strong>em</strong>in<strong>de</strong>d me -- 't was all --<br />

And came my way no more. 157<br />

O po<strong>em</strong>a, que se constitui enquanto imag<strong>em</strong> crítica, permite ver-se o mundo não mais<br />

como antes, pois ao construir distâncias, mesmo quando trabalha com a banali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a poesia<br />

está, <strong>de</strong> alguma forma, restituindo uma distância <strong>de</strong> algo que está muito próximo mas que não<br />

se vê, por ter se tornado familiar. Analogamente, a imag<strong>em</strong> crítica é o meio <strong>de</strong> restituir ao<br />

mundo a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua trama, a estranheza, que po<strong>de</strong> até ter a aparência <strong>de</strong> uma<br />

imag<strong>em</strong> banal, porém não o é a diferença estaria no fato <strong>de</strong> que a imag<strong>em</strong> crítica nos olha, ou<br />

seja, nos força a produzir um discurso crítico <strong>em</strong> relação a ela.<br />

A obra <strong>de</strong> arte exige, então, <strong>da</strong>quele que a olha uma participação ativa, construindo<br />

sentidos que a experiência com a imag<strong>em</strong> crítica obriga a fazer, o que o r<strong>em</strong>ete a sua própria<br />

singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> enquanto sujeito. A literatura, assim como a psicanálise, não po<strong>de</strong> propor outra<br />

coisa ao sujeito que com ela se <strong>de</strong>para senão uma interminável travessia para a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, 158<br />

porque, por <strong>de</strong>trás do sintoma, há uma experiência vivi<strong>da</strong> que não alcançou a expressão pela<br />

linguag<strong>em</strong> e, por isso, controla a existência do sujeito a sua revelia. Haveria uma espera<br />

latente <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelamento. Talvez seja isto que o texto <strong>de</strong> gozo proporciona, ao <strong>de</strong>spertar uma<br />

sensação <strong>de</strong> estranhamento que implica <strong>em</strong> uma postura crítica <strong>em</strong> relação ao estado <strong>da</strong>s<br />

coisas, o que é feito via o retorno do recalcado.<br />

As palavras que <strong>em</strong>prego,<br />

São as palavras <strong>de</strong> todos os dias, e mesmo assim não são as mesmas !<br />

156 Tradução livre por <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong><br />

157 DICKINSON, Emily. The Complete Po<strong>em</strong>s of Emily Dickinson. Edited by JOHNSON, Thomas J. Little,<br />

Brown and Company, Boston-Toronto, 1982. p. 701<br />

158 JACQUES, Marcelo. in Terceira marg<strong>em</strong>: Literatura e outras artes, ano VII, n/8, UFRJ. 2002 , p. 155<br />

116


Não se encontrarão rimas <strong>em</strong> meus versos n<strong>em</strong> qualquer<br />

enfeitiçamento.<br />

nenhuma frase sua há que eu não possa <strong>em</strong>pregar !<br />

Estas flores são suas flores e vocês diz<strong>em</strong> que não as reconhec<strong>em</strong>.<br />

Les mots que j’<strong>em</strong>ploie,<br />

Ce sont les mots <strong>de</strong> tous les jours, et ce ne sont point les mêmes !<br />

Vous ne trouverez point <strong>de</strong> rimes <strong>da</strong>ns mes vers ni aucun sortilège.<br />

Pas aucune <strong>de</strong> vos phrases que je ne sache reprendre !<br />

Ces fleurs sont vos fleurs et vous dites que vous ne les reconnaissez<br />

pas. 159<br />

E, uma vez que é fora <strong>de</strong> si que a experiência poética é vivi<strong>da</strong>, e a linguag<strong>em</strong> se<br />

apresenta como o apoio necessário para que ela se dê, confirma então a idéia inicial <strong>de</strong>ste<br />

capítulo, quando falamos <strong>de</strong> uma crítica que também traz <strong>em</strong> seu corpo uma certa poetici<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Afinal, a elaboração <strong>de</strong>sta linguag<strong>em</strong>, <strong>de</strong>ste discurso crítico, teve uma experiência com<br />

a arte como fonte, orig<strong>em</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tessitura <strong>de</strong> todo um discurso para realocar<br />

sujeito e mundo.<br />

4. Conclusão:<br />

Wittgenstein afirma que a filosofia <strong>de</strong>veria ser escrita como uma forma <strong>de</strong> poesia 160 .<br />

Alguns filósofos assim o fizeram. Entretanto, o que este trabalho teve por objetivo foi realizar<br />

uma leitura <strong>da</strong> poética <strong>de</strong> Fernando Pessoa, Bau<strong>de</strong>laire, Manuel <strong>de</strong> Barros, Leonardo Fróes,<br />

Paulo L<strong>em</strong>isky, Cora Coralina, Mário Quintana, Emily Dickinson, Francis Ponge, Rimbaud e<br />

Gertru<strong>de</strong> Stein, entre outros não menos importantes. Todos eles apresentam como recurso<br />

poético a projeção do sujeito lírico para fora <strong>de</strong> si, criando um efeito <strong>de</strong> aporia que, por sua<br />

vez, causa o espanto, ponto <strong>em</strong> que filósofos e poetas se encontram. O espanto fomenta o<br />

159<br />

CLAUDEL, Paul. Quatrième O<strong>de</strong>, in Cinq gran<strong>de</strong>s O<strong>de</strong>s, in COLLOT, Michel. L’Autre <strong>da</strong>ns le Même –<br />

tradução livre por <strong>Valéria</strong> <strong>Mac</strong> <strong>Knight</strong><br />

160<br />

WITTGENSTEIN, Ludwig, 1987, Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção<br />

Calouste Gulbenkian.<br />

117


pensamento crítico e criativo na tentativa <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> sentido para a existência humana pela<br />

trama <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>.<br />

É, pois, este trabalho apenas o resultado <strong>da</strong> busca <strong>de</strong> algumas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong><br />

poesias que resgatam o cotidiano por um viés poético, <strong>em</strong> que as coisas frugais são<br />

entr<strong>em</strong>ea<strong>da</strong>s com centelhas poéticas, mesclando mundo e poesia no olhar <strong>de</strong>rramado. Não<br />

mais um Orfeu que chora sua Eurídice; é o mundo do dia a dia que fica <strong>de</strong>calcado no papel<br />

<strong>de</strong> uma maneira tal que oferta um lugar entre a poesia e a filosofia, um entre-lugar entre a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e o pensar. Para tanto, buscamos <strong>de</strong>finições do que era a lírica e ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> poesia<br />

objetiva – <strong>em</strong> oposição à subjetiva - a fim <strong>de</strong> obter um corpus para trabalhar os conceitos<br />

teóricos <strong>em</strong> questão.<br />

Na leitura realiza<strong>da</strong>, levanta-se a idéia <strong>de</strong> que, enquanto possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento,<br />

a fenomenologia não está ultrapassa<strong>da</strong>; ela permanece, s<strong>em</strong>pre renova<strong>da</strong> e transforma<strong>da</strong>, não<br />

como um movimento ou corrente filosófica que estu<strong>da</strong> a essência <strong>da</strong>s coisas, <strong>em</strong> busca <strong>de</strong><br />

algo puro, mas, ao contrário, ela enten<strong>de</strong> que a compreensão do hom<strong>em</strong> e do mundo apenas<br />

po<strong>de</strong> se <strong>da</strong>r <strong>em</strong> termos fatuais, porque o mundo já existia antes <strong>de</strong> qualquer reflexão acerca<br />

<strong>de</strong>le e, para estabelecer uma relação filosófica com esse mundo, há que se buscar reencontrar,<br />

recriar e reinventar o contato naïf com esse mundo.<br />

Em contraposição à instituição <strong>da</strong> fenomenologia como <strong>ciência</strong> exata tal qual foi<br />

primeiramente i<strong>de</strong>aliza<strong>da</strong> por Husserl, Hei<strong>de</strong>gger propõe a fenomenologia como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> pensamento. Martin Hei<strong>de</strong>gger percebe que o ser humano é constituído pela história, por<br />

sua relação com o t<strong>em</strong>po. Foi por reconhecer que o significado é histórico que Hei<strong>de</strong>gger<br />

rompeu com o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> pensamento proposto por Husserl. O t<strong>em</strong>po é visto por Hei<strong>de</strong>gger<br />

como constituinte essencial na existência do ser humano, t<strong>em</strong>po como estrutura <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

humana: O entendimento é radicalmente histórico; ele está s<strong>em</strong>pre relacionado com a<br />

118


situação concreta <strong>em</strong> que me encontro, e que tento transcen<strong>de</strong>r. 161 E é a partir <strong>de</strong>sse<br />

entendimento que Collot trabalha seus conceitos teóricos. A uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sentido <strong>da</strong><br />

fenomenologia são encontrados <strong>em</strong> nós mesmos. Trata-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver, apresentar e não<br />

<strong>de</strong>slin<strong>da</strong>r, já que a s<strong>em</strong>ântica <strong>da</strong> própria palavra <strong>de</strong>slin<strong>da</strong>r nos r<strong>em</strong>ete à quebra pela análise,<br />

que <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>ça o que possui a beleza <strong>em</strong> sua uni<strong>da</strong><strong>de</strong>. A compreensão e o entendimento não<br />

são as únicas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s por meio <strong>da</strong>s quais o ser humano se relaciona com a vi<strong>da</strong>; na busca<br />

<strong>de</strong> alcançar a coisa <strong>em</strong> si, a poesia apresenta e não explica, revela s<strong>em</strong> exaurir, mostra<br />

ocultando, sedutora e paradoxalmente.<br />

Em Sócrates, Descartes e Kant, a existência foi associa<strong>da</strong> ao saber, ao conhecimento<br />

apresentando a cons<strong>ciência</strong> como uma certeza absoluta do ser, e o ato <strong>de</strong> conhecer ligado ao<br />

<strong>de</strong> existir. Certamente, não po<strong>de</strong>mos pensar o mundo s<strong>em</strong> ser a partir <strong>de</strong> nós mesmos, mas<br />

po<strong>de</strong>mos admitir a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> infinitas outras coisas existir<strong>em</strong> s<strong>em</strong> que tivess<strong>em</strong> sido<br />

conheci<strong>da</strong>s ou mesmo pensa<strong>da</strong>s por nós. A metafísica apresenta uma estrutura que t<strong>em</strong> como<br />

base o pensamento hipotético-<strong>de</strong>dutivo que se opõe à imaginação. Mas é a imaginação a fonte<br />

transcen<strong>de</strong>ntal <strong>da</strong> estruturação. Na estrutura reflexiva <strong>da</strong> lírica mo<strong>de</strong>rna, é possível perceber a<br />

reconciliação <strong>da</strong> filosofia com a poesia; a barreira imposta pelo divórcio metafísico se esgarça<br />

quando se verifica que a racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> coexistir com a imaginação e que esta última é<br />

também fonte <strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong> força poética; a poesia cria e apresenta pensamento, por<br />

suas próprias formas, apresenta beleza.<br />

A <strong>ciência</strong>, por mais saber que acumule, não é o mundo. O universo científico é<br />

construído sobre um mundo <strong>de</strong> hipóteses que por si só não diz<strong>em</strong> muito. Sua <strong>de</strong>limitação e<br />

explicação nos afastam <strong>da</strong> experiência mais pura <strong>da</strong> percepção. O ser humano não se reduz ao<br />

seu psiquismo, a suas raízes históricas, ou a qualquer outro saber que se tenha <strong>de</strong>senvolvido<br />

161 EAGLETON, Terry. Teoria <strong>da</strong> Literatura: uma introdução. São Paulo, Martins Fontes, , 1997. pág. 87<br />

119


acerca <strong>da</strong> espécie humana. O hom<strong>em</strong> traz <strong>em</strong> si o próprio horizonte, e é a partir <strong>de</strong><br />

aproximações e afastamentos que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> relacionar-se com sua existência.<br />

Assim como o t<strong>em</strong>po, também a linguag<strong>em</strong> é constituinte <strong>da</strong> existência humana. A<br />

linguag<strong>em</strong> é trama que proporciona a experiência <strong>da</strong> sensação. Seu tecido é constituinte <strong>da</strong><br />

experiência do real e do seu constante processo <strong>de</strong> reconfiguração. A informação precisa <strong>de</strong><br />

um corpo <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong> para se diss<strong>em</strong>inar e, ao fazê-lo, forma opiniões e compõe a doxa. A<br />

linguag<strong>em</strong> na arte diss<strong>em</strong>ina linhas <strong>de</strong> fuga <strong>da</strong> doxa, 162 atuando como contra-informação,<br />

contra-linguag<strong>em</strong>, ou seria uma linguag<strong>em</strong> do contra? Talvez atue <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s essas maneiras,<br />

mas, acima <strong>de</strong> tudo a linguag<strong>em</strong> na literatura é: antídoto. É a linguag<strong>em</strong> que oferece a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cura, pois apenas na literatura a linguag<strong>em</strong> se livra <strong>da</strong> ditadura do sist<strong>em</strong>a<br />

lingüístico como afirmou Barthes. Especialmente na poesia, encontra-se a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> para<br />

<strong>de</strong>slocar sentidos, quebrar regras, reviver palavras anêmicas. A linguag<strong>em</strong> na poesia se<br />

entrega para ser fonte <strong>de</strong> novas experiências, <strong>de</strong>ixando entrever a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> criação <strong>de</strong><br />

novos sentidos e imagens para fixar o impensado, o invisível, o inapreensível. Um corpo<br />

translúcido <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que se permite registrar por combinações poéticas <strong>da</strong> língua.<br />

Elaboração <strong>de</strong> trama com os fios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o poeta tece o corpo <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong> que é entranha<strong>da</strong><br />

no hom<strong>em</strong> pelos olhos e ouvidos, realimentando-o com o espanto que lhe permite l<strong>em</strong>brar que<br />

está vivo, e que tudo po<strong>de</strong> ser diferente.<br />

Nas últimas déca<strong>da</strong>s, a poesia v<strong>em</strong> como que tentando se afastar <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> consciente<br />

do poeta. Ela parece não pertencer mais ao autor, mas à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> a qual está liga<strong>da</strong> e que a<br />

atravessa. O instinto <strong>de</strong> apropriação não combina com a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> poética, por isso o tom <strong>de</strong><br />

individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o “eu” pessoal v<strong>em</strong> sendo substituído por formas menos <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s e também<br />

menos pessoais. A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> maior <strong>da</strong> poesia cont<strong>em</strong>porânea se faz no reviver <strong>da</strong>s palavras.<br />

Esse resgate requer atitu<strong>de</strong>s novas, que cri<strong>em</strong> opções ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s para as palavras <strong>de</strong><br />

162 JACQUES, Marcelo. in Terceira marg<strong>em</strong>: Literatura e outras artes, ano VII, n/8, UFRJ<br />

120


modo que estas percam seu sentido usual e informativo e ganh<strong>em</strong> novamente a força poética;<br />

a sintaxe passa também a ser linguag<strong>em</strong>, assim como o vazio do papel, os sons e as formas<br />

dos significantes. Muitos são os instrumentos <strong>da</strong> experimentação poética mo<strong>de</strong>rna e<br />

cont<strong>em</strong>porânea.<br />

O mundo rotulado, on<strong>de</strong> noções e objetos se encontram <strong>de</strong>limitados, jaz escasso <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>. As individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s encerra<strong>da</strong>s <strong>em</strong> si mesmas se <strong>de</strong>bruçam sobre o <strong>de</strong>sconhecido, sobre<br />

a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> opaca que se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>smanchar quando velhos usos são abandonados para <strong>da</strong>r<br />

lugar a sentimentos ain<strong>da</strong> não saboreados. O chão on<strong>de</strong> moram as certezas se <strong>de</strong>sfaz e abre-se<br />

o espaço para o <strong>de</strong>sconhecido, as palavras <strong>de</strong>sp<strong>em</strong> aí seus velhos significados, cria-se um<br />

momento <strong>em</strong> que uma comunicação mais próxima e mais profun<strong>da</strong> po<strong>de</strong> acontecer, fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

<strong>em</strong> buscas e não <strong>em</strong> respostas fecha<strong>da</strong>s <strong>em</strong> si mesmas. Essa tessitura, no poeta <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, se dá a partir do transbor<strong>da</strong>mento do sujeito criador para o fora <strong>de</strong> si, para o<br />

outro. O processo <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rir às coisas do mundo possibilita um encontro consigo mesmo, pois,<br />

na arte, a linguag<strong>em</strong> po<strong>de</strong> se libertar <strong>da</strong> mera função <strong>de</strong> comunicar e informar para produzir<br />

novos sentidos, agindo como antídoto contra a fixi<strong>de</strong>z.<br />

Em seu ensaio, O poeta lírico fora <strong>de</strong> si, Michel Collot, propõe uma releitura do lírico.<br />

Ele traz uma colaboração surpreen<strong>de</strong>nte ao propor um resgate do lirismo na poesia objetiva,<br />

opondo-se às idéias apresenta<strong>da</strong>s por Hegel <strong>em</strong> sua Estética. Collot <strong>de</strong>clara que a poesia lírica<br />

é naturalmente liga<strong>da</strong> ao mundo e que é possível, sim, a poesia lírica se outrar e é fora <strong>de</strong> si o<br />

lócus poético on<strong>de</strong> o sujeito lírico po<strong>de</strong> realizar a poiésis, ou seja, criar vi<strong>da</strong>, encantamento ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que reinventa a linguag<strong>em</strong> <strong>da</strong> poesia, reconfigurando-se, atravessado pelo<br />

novo.<br />

O teórico francês aponta ain<strong>da</strong> o lirismo como uma importante possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

expressão legítima do sujeito cont<strong>em</strong>porâneo. É importante ressaltar que a leitura do conceito<br />

<strong>de</strong> sujeito lírico, já bastante cristaliza<strong>da</strong>, merece e <strong>de</strong>ve ser refeita. Percebe-se, <strong>de</strong> fato, que<br />

121


<strong>em</strong>bora <strong>em</strong> nuances inovadoras, o lirismo ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong> ser encontrado na produção poética<br />

cont<strong>em</strong>porânea; seja na distribuição <strong>da</strong>s palavras no branco do papel com a<br />

tridimensionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma partitura musical, como faz Mallarmé <strong>em</strong> Lance <strong>de</strong> Dados, ou<br />

pelo exercício lúdico-poético com a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s mesmas <strong>em</strong> um exercício <strong>de</strong> ligar<br />

significantes a significados, como <strong>em</strong> Francis Ponge ou Gertru<strong>de</strong> Stein, on<strong>de</strong> os poetas tentam<br />

esvaziá-las <strong>da</strong> função informativa dispondo-as como ecos <strong>de</strong> cristal, compondo, assim, um<br />

corpo poético sonoramente estético, ou ain<strong>da</strong> outras composições que ating<strong>em</strong> o efeito lírico<br />

apenas pelo encanto criado ao <strong>de</strong>slocar vocábulos do senso comum. Buscamos provar ser<br />

poesia ain<strong>da</strong> vigorosa e atuante no resgate do ser humano à vi<strong>da</strong>.<br />

Infere-se, pois, que ao recortar <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> a fala do cotidiano e inseri-la <strong>em</strong> um vazio<br />

<strong>de</strong> página, que marca essa fala como poesia, o poeta cont<strong>em</strong>porâneo traz a lírica <strong>em</strong>oldura<strong>da</strong><br />

pelo olhar que lança às coisas. Estas coisas, por sua vez, mu<strong>da</strong>m <strong>de</strong> status uma vez poeta<strong>da</strong>s.<br />

A fragmentação do hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno exposta poeticamente faz com que ele, <strong>de</strong>pois <strong>da</strong><br />

experiência <strong>de</strong> ver seu mundo assim <strong>em</strong>oldurado, veja, também, sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> com olhos <strong>de</strong><br />

criador, com olhos <strong>de</strong> poeta. A poesia po<strong>de</strong>, assim, mu<strong>da</strong>r a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> à medi<strong>da</strong> que<br />

transforma o indivíduo e estimula novas leituras <strong>de</strong> mundo. A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> continua reali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

mas não é mais a mesma. E novas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser cria<strong>da</strong>s por poetas, que serão s<strong>em</strong>pre<br />

novos, se estiver<strong>em</strong> engendrando uma relação poética com o mundo.<br />

O vínculo entre literatura e vi<strong>da</strong> é o meio para revivificar o hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong> modo<br />

a que ele atinja o que já não é mais vivenciado no cotidiano, ou seja, a vi<strong>da</strong> possibilitadora <strong>de</strong><br />

exercício lírico e criador <strong>de</strong> pensamento. Criando no nosso outros corpos, a literatura torna<br />

possível vivenciar a vi<strong>da</strong> e, tornando vi<strong>da</strong> vivível, a literatura torna vi<strong>da</strong> real. 163<br />

Talvez esta não seja a conclusão, mas apenas uma possível, já que ao longo <strong>de</strong>sta<br />

interação pu<strong>de</strong>mos sentir que a caminha<strong>da</strong> é perene e que s<strong>em</strong>pre haverá novos horizontes. A<br />

122


tarefa árdua do poeta é talhar a palavra nova, a palavra mágica que, segundo Carlos<br />

Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, não é encontro mas procura e, como todos nós, busca,<br />

incansavelmente, o encantamento:<br />

Certa palavra dorme na sombra<br />

De um livro raro.<br />

Como <strong>de</strong>sencanta-la<br />

É a senha <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

A senha do mundo.<br />

Vou procurá-la<br />

Vou procurá-la a vi<strong>da</strong> inteira,<br />

No mundo todo.<br />

Se tar<strong>da</strong> um encontro,<br />

Se não a encontro,<br />

Não <strong>de</strong>sanimo,<br />

Procuro s<strong>em</strong>pre.<br />

Procuro s<strong>em</strong>pre<br />

E minha procura<br />

Ficará sendo<br />

A minha palavra. 164<br />

Fazendo nossas, as palavras do poeta, concluímos a presente pesquisa entrelaçando,<br />

uma vez mais, verso e prosa, pois foi possível concluir que; literatura, filosofia, poesia e vi<strong>da</strong><br />

estão intimamente relaciona<strong>da</strong>s. Mutantes, mutáveis; são e somos processo.<br />

163 PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve? In A Construção Poética do Real, organizado por Manuel<br />

Antônio <strong>de</strong> Castro. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 7 Letras, 2004. p. 225<br />

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