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Ética - La Salle

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<strong>Ética</strong><br />

Apresentação<br />

Dr. João Inácio Kolling<br />

É possível que a <strong>Ética</strong> não se encontre num patamar dos mais bem conceituados e num<br />

status de urgência das grandes inquietações humanas. No entanto, parece evidente que sem<br />

novas luzes efetivas no campo das relações humanas, corremos risco muito grande de ficarmos<br />

apenas como a memória dos dinossauros, isto é, não nos entendemos a nós mesmos, não nos<br />

damos com os outros e destruímos as condições de vida no planeta.<br />

Um ditado popular diz que Deus perdoa sempre, que as pessoas perdoam de vez em<br />

quando, mas, que a Natureza não perdoa nunca. É possível que a valoração de certos<br />

procedimentos humanos, tidos como fontes de prazer, de felicidade, de valor, de veracidade e<br />

de utilidade, não estejam sendo suficientes para ultrapassar a dificuldade que encontramos a<br />

fim de nos entender, para nos amar e para lidar, da mesma forma, com a Natureza.<br />

Sensibilizar-nos em torno de algo que possa alargar os sonhos de uma vida, cuidada de<br />

múltiplas formas, será certamente uma tarefa que vai fazer bem a nós mesmos e a outras<br />

pessoas. Por isso, é de real importância conhecer o passado da normatividade ética, as<br />

tendências do nosso tempo e o que é fundamental na legislação ética: uma atenção maior à<br />

vida.<br />

Enquanto as religiões que poderiam ser os porta-vozes mais destacados para apresentar<br />

regras de boa relação entre os seres humanos, emerge do fanatismo de muitos de seus<br />

representantes o maior medo de degradação, tanto das relações com as pessoas quanto as que<br />

se fazem necessárias com a natureza, pois, instigam iminências de guerras. Entretanto, na<br />

medida em que procuram religar os seres humanos com as instâncias superiores do âmbito de<br />

Deus, é de se esperar que delas ainda possam aparecer esperançosas pistas para o bom<br />

entendimento humano, ao lado das outras múltiplas inquietações por melhor entendimento<br />

humano.<br />

1. Conceitos de <strong>Ética</strong><br />

É comum que pessoas indignadas com uma situação constrangedora, causada por outra<br />

pessoa, exclamem que ela foi imoral, indecente e anti-ética. Facilmente usa-se <strong>Ética</strong> e Moral<br />

para expressar a mesma realidade. No entanto, o que é mesmo a <strong>Ética</strong>?<br />

Primeiramente, existe diferença no significado dos termos “<strong>Ética</strong>” e “Moral”. Enquanto<br />

Moral se relaciona a ações reais ou a modos de proceder no agir com outras pessoas e coisas, e,<br />

às lidas concretas; já a ética, é constituída de princípios para levar a determinadas e desejadas<br />

condutas, ou seja, é uma concepção filosófica a respeito da vida e dos valores para regê-los da<br />

melhor forma. Aproxima-se, pois, do pensar sobre o agir moral e, por isso, também leva o<br />

nome de Filosofia Moral. Mesmo assim, pode um ato moral não estar necessariamente ligado a<br />

uma orientação ética, de origem racional ou filosófica.


Outra maneira fácil de distinguir a relação da <strong>Ética</strong> com a Moral é a oferecida por Maturana<br />

e Rezepka: “<strong>Ética</strong> tem o seu fundamento no amor, a Moral tem o seu fundamento na exigência do<br />

cumprimento de valores”. 1<br />

O fato gerador da ética é o das relações humanas em sociedade: vai de fatos simples<br />

como o modo de morar, de pessoas se ajudarem, de serem responsáveis, de cuidar das coisas,<br />

até as complexas regras normativas da vida social e das leis jurídicas.<br />

Vejamos mais algumas definições de ética:<br />

a) <strong>Ética</strong> ainda pode ser definida como a teoria ou a ciência do comportamento moral<br />

de seres humanos em sociedade. Trata-se de uma das muitas esferas do<br />

comportamento humano; mas, o que o que é realmente comportamento moral?<br />

Mais do que observância de certas regras religiosas, a moralidade implica no agir<br />

concreto em favor da vida nos seus amplos significados.<br />

b) Talvez outro conceito nos ajude a clarear melhor o entendimento: ética é a arte da<br />

convivência humana. Bem sabemos que a convivência pacífica e ordeira não é<br />

alcançada pela guerra e por meios violentos. Os segredos da boa vontade, da<br />

misericórdia e de tantas outras virtudes humanas permitem propiciar níveis<br />

satisfatórios de convivência com as pessoas e com a natureza.<br />

c) A antiga cultura grega nos oferece outra definição ampla e valiosa de ética: reflexão<br />

ou “saber” sobre o “Êthos”, palavra grega, que por certo tempo, significava moradia,<br />

refúgio, ou abrigo. Implica, portanto, no lugar onde as pessoas se sentem seguras. É<br />

claro que as quatro paredes de uma casa não são suficientes para isso. Morada tem<br />

um significado existencial, ou seja, envolve um espaço humano, os valores e os<br />

princípios deste ambiente humano.<br />

d) Mais tarde, introduziu-se outra significação para o termo, já escrito com o Épsilon<br />

“ETHOS” (sem o acento) para conotar hábitos, crenças, costumes e instituições da<br />

sociedade. Este novo significado de “Ethos” implica num traço bem distinto, pois,<br />

implica em fazer-se e refazer-se constantemente em vista do bem comum.<br />

Não se trata apenas de algo que é buscado para satisfação pessoal, mas, um<br />

modo de agir que visa o conjunto da sociedade. Resulta dali a conotação de que a<br />

ética constitui o conjunto de princípios, valores e razões que levas as pessoas de<br />

uma determinada comunidade a agir de uma forma peculiar.<br />

O comportamento desta forma de vida reproduz tradições, estilos de vida,<br />

modos de acolher, de conversar e hábitos no modo de ser. Assim, pode-se falar em<br />

ética capitalista: acumular muito, pagar pouco, explorar os outros e a natureza ao<br />

máximo e encher-se de riqueza, o que faz entender a crise ética de nossos dias. 2<br />

e) Em sentido bem amplo ética pode significar organização de um povo. Bem sabemos<br />

que qualquer organização humana pode evoluir, pode decair, pode ser reformada<br />

ou inovada, pode ser parcial ou ampla e ainda pode ser escrita ou não escrita. Os<br />

modos de fazer-se e refazer-se são modificados de um lugar para outro devido a<br />

1<br />

MATURANA, Humberto e REZEPKA, Sima Nisis de. Formação Humana e Capacitação. Petrópolis, RJ: Vozes,<br />

p.43.<br />

2<br />

Assim também podemos pensar numa ética possível, com traços marcantes de amar, de cuidar, de responsabilizarnos,<br />

de sermos solidários, compassivos e íntegros em nosso modo de ser. Será um “ethos” no qual nossa moradia é<br />

constituída pelo planeta.


diversos fatores: primeiramente, pela diversidade dos traços culturais. Também as<br />

influências geográficas agem sobre a convivência humana, uma vez que a<br />

convivência é afetada pelo frio, num lugar; pelo calor, em outro lugar; pelas flores ou<br />

pela aridez e, até mesmo pelas estações que afetam momentos distintos da<br />

convivência humana. Basta comparar um lugar de frio intenso, com neve, com outro,<br />

de elevadas temperaturas tropicais.<br />

<strong>Ética</strong> envolve, portanto, o campo das decisões relativas ao que deve ser feito para que a<br />

dimensão social e coletiva das pessoas seja boa, certa, correta e justa. Para tais fins, são<br />

estabelecidas regras, funções, diretrizes ou atributos, mas, o bem coletivo também implica em<br />

novas decisões para que os comportamentos sejam responsáveis e conduzam ao melhor nível<br />

de vida. Tal atividade é chamada de Deontologia.<br />

Bem sabemos que qualquer sociedade requer regras para o funcionamento coletivo.<br />

Estas regras implicam em três características: a) o modo como as decisões são tomadas; b) o<br />

sistema que produz e mantém estas normas; c) o quadro cultural desta sociedade.<br />

Cabe-nos logo uma pergunta importante: Como se manifestam os valores éticos em<br />

nossas casas, cidades e na grande casa que é o planeta Terra?<br />

Evidenciam-se muitos valores fanatizados. Podem ser religiosos, políticos e econômicos,<br />

etc., e, tanto uns como outros, tendem a gerar morte de pessoas. Em alguns casos é morte<br />

física, em outros, morte do nome ou da auto-imagem.<br />

A simples consideração dos informativos de noticiários revela manifestações de muitos<br />

valores literalmente imorais, ou antiéticos, devido à enormidade de injustiças, de casos de<br />

corrupção e das muitas formas opressoras contra certos grupos humanos. Nem sempre<br />

aparece em evidência o lado positivo da ética, no sentido de personalizar, socializar e de<br />

libertar as pessoas dos jugos e dos condicionamentos que estão sendo submetidas por outras<br />

pessoas. Significa, pois, que se fazem necessários muitos novos valores, tanto na justiça, quanto<br />

na economia, na política, na pedagogia, na religião, nos esportes e até nos campos técnicos e<br />

científicos para que a vida de convivência humana seja efetivamente boa. 3<br />

Enfim, que elementos são mesmo constituintes do conceito de ética? Preocupação com<br />

a qualidade da convivência humana no planeta e, com ele, para boas perspectivas de futuro.<br />

1.1 – <strong>Ética</strong> Descritiva<br />

É a que procura fazer descrições do que é observado a respeito das noções éticas de<br />

populações ou sociedades. Não as reforça e nem as condena, mas procura observar o que<br />

nestes grupos está estabelecido como valioso. Trata-se, pois, do resultado de pesquisa feita a<br />

respeito do que é considerado importante na vida deste grupo humano, seja na conduta sexual,<br />

no modo de pagar impostos, de lidar com roubos e falcatruas, etc.<br />

Como atualmente é fácil fazer sondagens de opinião, podem resultar muito ambíguos os<br />

dados que mais aparecem. Por exemplo, certos programas interativos de televisão que em<br />

poucos minutos oferecem dados estatísticos a respeito de um procedimento ou de uma<br />

3 Segundo Leonardo Boff é indiscutível que estamos numa crise ética e moral em todas as partes e temos que lidar<br />

com o penoso e difícil caminho que nos aponte condições boas para morar e viver. Por isso é urgente que aconteçam<br />

práticas salvadoras a fim de que não venha a acontecer o pior que é o fim da espécie humana. Para não tomarmos o<br />

destino dos dinossauros, além de outra lida com as pessoas, não podemos deixar de lado a biosfera e os bilhões de<br />

seres que estão à espera de pão, de água, de saúde, de moradia e de inclusão na família humana. (In: BOFF,<br />

Leonardo. <strong>Ética</strong> e Moral – a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 9 – 10).


conduta. Não pode significar que o número mais elevado de respostas a uma postura seja a<br />

mais ética. Nem sempre as opiniões mais amplas são necessariamente corretas e, nem tudo o<br />

que é feito por muitos é necessariamente ético ou certo. Não será pelo roubo de mitos que o<br />

roubo será considerado um procedimento bom e ético. Uma descrição de valores éticos ainda<br />

não significa normatividade ética. Se numa pesquisa, por exemplo, vier a ser constatado que<br />

muitas pessoas são racistas, não equivale a que todos possam ser racistas.<br />

1.2 – <strong>Ética</strong> Normativa<br />

É a que salienta as ações éticas tidas como certas, corretas, justas e boas. A ética<br />

normativa envolve normas, valores e códigos com a perspectiva de que sua prática Le vê a atos<br />

bons. Os dez mandamentos da bíblia, por exemplo, constituem normas para corresponder à<br />

aliança que as doze tribos de Israel fizeram para se entenderem entre si e com Deus e assegurar<br />

este bom relacionamento.<br />

Mais importante do que descrever ou prescrever o que deve ser feito, o que realmente<br />

importa, é o agir para que nós seres humanos não acabemos criando uma ameaça maior do<br />

que a de alguma ameaça cósmica através da destruição os eco-sistemas capazes de permitir a<br />

nossa vida coletiva. Sob este aspecto, estamos numa real e profunda crise ética. As variadas<br />

revoluções técnicas e científicas aumentaram comodidades e a qualidade da vida, mas, ao<br />

mesmo tempo, nos colocaram num consumismo tal que o planeta já não produz o necessário<br />

para atender as ambições humanas.<br />

Ao lado da prosperidade material talvez devamos pensar em saídas éticas que ajudem a<br />

cada pessoa lidar melhor consigo mesma, com outras pessoas e, sobretudo, com a natureza. A<br />

história humana dos últimos tempos perseguiu demais a auto-afirmação humana e nos levou a<br />

perder o horizonte da integração com a natureza. Por isso, no lugar das regras para conquistar<br />

cada dia mais, temos que aprender a cuidar mais da vida e da natureza, pois, tudo quanto<br />

cuidamos, tende a durar mais.<br />

2. Objeto da <strong>Ética</strong><br />

A <strong>Ética</strong> ocupa-se da realidade moral dos seres humanos, sobretudo no que envolve atos<br />

conscientes e voluntários sobre grupos humanos ou sobre toda a sociedade.<br />

Segundo Riesmann, há quatro tipos de posturas morais na sociedade:<br />

a) O indivíduo e a sociedade sendo dirigidos pela tradição;<br />

b) O indivíduo e a sociedade sendo dirigidos pela intimidade;<br />

c) O indivíduo e a sociedade sendo dirigidos por fatores externos;<br />

d) O indivíduo e a sociedade autonomamente dirigidos. 4<br />

Apesar destas posturas, transparece uma dificuldade maior no objeto da ética, pois,<br />

revela um problema de dois riscos graves: o do individualismo, pois consciências solitárias não<br />

conseguem resolver problemas sociais e grupais e, a adoração exagerada de alguns valores nem<br />

sempre essenciais na vida social. É o que se chama de fetichização 5 de alguns valores. Este<br />

4 Apud FRANQUENA, William. <strong>Ética</strong>. Rio de Janeiro: Zahr, 1981, p. 21.<br />

5 No campo psicológico “Fetiche” tem a significação de um desvio da atenção para aspectos secundários. Por<br />

exemplo: alguém pode sentir forte excitação sexual diante da visualização de uma calçinha ou de qualquer outro


exagero pode forçar pessoas a cumprir determinados comportamentos sociais, mas que não<br />

representam nenhum valor para a coletividade.<br />

3. Natureza da <strong>Ética</strong><br />

Como a <strong>Ética</strong> é um ramo da filosofia, é também chamada de Filosofia Moral.<br />

Historicamente, a palavra “ética” era usada na Grécia, em Roma, usava-se o termo “moral”.<br />

Como atividade filosófica, a ética estuda e avalia a conduta e o caráter humano, seja nos<br />

conhecimentos, nas tradições ou nos costumes.<br />

Tanto a <strong>Ética</strong> quanto a Moral costumam ser definidos como campos de estudo que se<br />

ocupam da atividade humana relacional, dirigida ao seu fim último, ou seja, sua melhor ou<br />

plena realização. Este finalismo envolve dois aspectos:<br />

a) De fundamentar e de valorizar princípios, normas e códigos éticos para levar a<br />

convicções morais;<br />

b) Estudar critérios capazes de separar o que é moral do que é imoral. Geralmente os dois<br />

aspectos são complementares e andam juntos.<br />

A ética envolve uma das áreas filosóficas que diz respeito à moralidade, que envolve tanto<br />

problemas morais quanto juízos morais. Por isso, o pensamento ético pode manifestar-se em<br />

três direções:<br />

a) Para descrever e explicar os fenômenos morais, ou seja, faz uma teorização sobre os<br />

problemas morais;<br />

b) Indaga sobre o que é bom, certo, justo e obrigatório e procura os argumentos para<br />

justificar estes juízos éticos;<br />

c) Busca explicações lógicas, epistemológicas ou semânticas a respeito do que é realmente<br />

bom, certo, correto e justo.<br />

É comum que <strong>Ética</strong> e Moral sejam usados como sinônimos em torno do que é<br />

considerado bom e certo no comportamento. Mesmo assim, não significam o lado oposto da<br />

imoralidade e da a-eticidade. A ética preocupa-se com a moralidade e não com a imoralidade.<br />

Envolve um campo amplo de juízos, códigos morais, argumentos morais e consciência moral.<br />

A moralidade não constitui apenas uma descoberta pessoal e intimista, mas está<br />

estreitamente vinculada com a dimensão social das pessoas. Embora seja produto da<br />

coletividade ou de muitos indivíduos, vai além destes indivíduos porque é social, seja pela<br />

origem, ou pelas funções ou ainda pelo tipo de sanções.<br />

A ética, portanto, é um instrumento da sociedade para orientar seus membros, sejam<br />

grupos ou indivíduos. Ela os leva a incorporar valores que lhes estabelece.<br />

4. Origem da <strong>Ética</strong><br />

objeto e não a sentir diante de uma mulher despida, ainda que em estado de provocação sexual. Em nosso contexto<br />

de ética, significa valorizar excessiva e demasiadamente alguns valores.


A origem da <strong>Ética</strong> é a natureza social dos seres humanos. Não se trata de uma questão<br />

meramente natural e instintiva, mas se deve às relações das pessoas e a consciência que elas<br />

têm desta relação. Pode esta relação apresentar traços marcados pelo tipo de trabalho, pela<br />

natureza do ambiente cultural e das necessidades de ajustamento dos indivíduos à<br />

coletividade. A relação ainda pode depender dos conceitos de justiça que predominam em<br />

determinado ambiente. Poe, por exemplo, ser mais distributiva em relação a alimentos, salários<br />

e bens e pode também ser mais retribuidora na lida de reparação pelos males cometidos.<br />

Na origem da ética está uma constatação: insegurança. Geralmente ela nasce da<br />

constatação de que as relações das pessoas perdem qualidade porque muitas delas começam a<br />

organizar a vida em torno de seus interesses particulares e relativizam a justiça em função<br />

destes interesses. Isto, num modo de produzir e consumir como esta do nosso tempo impõe<br />

regras de competição, de disputa, de oposição e de ameaças de exclusão, ao invés de valorizar<br />

a cooperação, a harmonia e a solidariedade para a boa convivência.<br />

Ao longo do tempo duas fontes tem se mostrado mais efetivas para a implantação de regras<br />

éticas:<br />

a) A razão – desde seis séculos antes de Cristo até nossos dias pensadores gastaram tempo<br />

para fundamentar racionalmente normas que pudessem ser válidas para o maior<br />

número de pessoas possível. Como Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho de Hipona,<br />

Tomás de Aquino, até pensadores recentes como Bergson, Habermas, Dussel e outros,<br />

preocuparam-se para descobrir códigos éticos que pudessem ser universalmente<br />

válidos.<br />

b) As religiões – elas movem a maior parte dos seres humanos em torno dos valores de<br />

pertença, e, mesmo que apresente muitas diferenças, umas em relação a outras,<br />

convergem para um consenso de regras éticas para orientar as políticas, as economias e<br />

as relações internacionais para que sejam respeitosas e edificantes. Em muitas destas<br />

religiões manifesta-se, sobretudo em tempos mais recentes uma clara preocupação pela<br />

preservação da ecologia. É claro que, também nas guerras, evidenciam-se fortes apelos<br />

de fanatismos religiosos que contradizem a razão de ser destas religiões, mas, de forma<br />

geral, orientam-se pelo “ethos” de amar e de cuidar.<br />

Segundo Leonardo Boff, a instância formadora dos valores éticos, mais do que na razão,<br />

está no afeto, pois, é este que leva a um sentir profundo, ou, à paixão por valores que possam<br />

melhorar as relações dos seres humanos entre si. 6 Segundo Boff, a paixão também é habitada<br />

por um demônio que é o do desfrute destruidor. Isto ocorre quando valores não são levados a<br />

sério para todas as circunstâncias. Assim, a paixão, esta extraordinária fonte de energia,<br />

desprovida de razão, pode tornar-se avassaladora. Significa, portanto, que a paixão só se torna<br />

eficaz quando é equilibrada pela razão. O risco que também se apresenta, é o da razão exercer<br />

excessiva influência sobre a paixão. Neste caso, implanta-se a rigidez, a tirania da ordem e a<br />

ética transformada em regras para interesses utilitaristas. Requer-se, por conseguinte, que a<br />

ética seja regida por ternura e por vigor. Ternura que leva a cuidar dos outros e das cosas;<br />

vigor, para superar os obstáculos e para transformar utopias em realidade. 7<br />

6 BOFF, Leonardo. <strong>Ética</strong> e Moral – a busca dos fundamentos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 29-30.<br />

7 Boff relaciona este aspecto, valendo-se de dois termos: “Ethos” e “Daimon”: morada e anjo protetor desta morada<br />

humana. Como morada ultrapassa as dimensões das paredes da casa, da aldeia, ou da cidade, deve este espaço


5. Fundamentos da <strong>Ética</strong><br />

O fato de códigos éticos ou morais estabelecerem leis, de ditarem normas e de<br />

prescreverem deveres para uma determinada comunidade, desperta, de imediato, uma<br />

indagação polêmica: quem aprova estes códigos?<br />

Hoje tendemos a não aceitar que eles estão sendo estabelecidos de forma incontestável<br />

por autoridade divina. Por isto, aumenta a dúvida a respeito da necessidade de ter que cumprir<br />

tais prescrições. A reação pode ser maior ou de mais fácil acolhida de acordo com quem<br />

estabeleceu as exigências. Dependem também do valor que representam para as pessoas e da<br />

possibilidade de poderem ser mudadas. Dali ainda emerge outra consideração: quem substitui<br />

as normas por outras melhores? Os governantes, a coletividade ou cada indivíduo segundo seu<br />

gosto?<br />

Esta discussão certamente é tão antiga como a organização social humana. Os antigos<br />

gregos, ao entrarem em contato com outros povos através das guerras ou outras formas<br />

imperialistas, já percebiam a existência de enorme variedade de regras na organização da<br />

conduta humana.<br />

Ainda hoje persiste a tendência de que governantes de Estado se proclamem no direito<br />

de estabelecer convenções, segundo as julgam mais oportunas, porém, para os seus interesses<br />

e não os do bem estar de todos os cidadãos.<br />

Os sofistas gregos por acharem que os gregos possuíam regras éticas bem superiores<br />

aos demais povos, proclamaram-se no direito de implantá-las sobre os demais, qualificados<br />

como bárbaros.<br />

O filósofo Sócrates, que veio a ser chamado o pai da filosofia moral, ao apontar outra<br />

forma de conduta para os seres humanos e, contra as teses dos sofistas, por entender que as<br />

regras morais não poderiam ser apenas o resultado de convenções sociais, sustentava que o<br />

fundamento das regras deveria ser o da Natureza dos seres humanos.<br />

Assim, ao contrário dos sofistas, Sócrates entendia que as normas éticas e morais<br />

deveriam ser ensinadas na escola e deveriam estar presentes nas pessoas que ensinam, e não<br />

meras regras de imposição. Para aquele filósofo, a fundamentação das regras éticas e morais<br />

deveriam partir de um nível mais profundo do ser humano: ser ímpio ou santo, perverso ou<br />

bom, não é a mesma coisa. Nem todos os códigos legitimados eram merecedores de crédito e<br />

aceitação e de legitimidade. Cada indivíduo deveria ter um critério de moralidade que o<br />

capacitasse a distinguir entre bem e mal, para poder buscar o bem e evitar o mal.<br />

A palavra “ética” como conjunto de idéias sobre o tema, começou de maneira formal<br />

apenas com Aristóteles, embora, antes dele, já estivesse constituída como assunto filosófico.<br />

Faziam-se reflexões de caráter ético, mas, ainda não como conjunto de normas sociais vigentes.<br />

Aristóteles, além de criar a disciplina, se debruçou sobre os problemas que outros pensadores<br />

iriam retomar mais tarde sobre o mesmo assunto. Classificou as virtudes e a relação entre ética<br />

individual e social, bem como, a vida teórica e a prática. Este foi o assunto que mais entrou na<br />

discussão dos sucessores de Aristóteles. A questão era: faz-se teorização da prática ou faz-se<br />

teoria que acaba em prática?<br />

Todo o pensamento grego antigo tinha uma particular inquietação para situar ética,<br />

como já salientamos acima, na Natureza. Já naquele tempo pensadores preocupavam-se em<br />

expressar um conjunto das relações dos seres humanos. O anjo bom, certamente, é o tato e a sensibilidade pelo que é<br />

justo e bom. (op.cit. p. 34-35)


torno da hierarquização dos bens a fim de que as pessoas pudessem avaliar o grau de alcance<br />

dos bens maiores e estabelecer um equilíbrio entre as paixões e as satisfações.<br />

No período cristão introduziram-se mudanças e adaptações nas idéias éticas anteriores.<br />

Primeiramente os pensadores cristãos deslocaram o fundamento da ética, tirando-o da<br />

Natureza e passando-o para o campo religioso, o que facilitou a criação da ética heterônoma,<br />

ou até “Teônoma”, pois o próprio Deus estaria exigindo dos cristãos o cumprimento de normas<br />

éticas para estes serem felizes. Assim, os pensadores cristãos adotaram a noção grega de que o<br />

bom é o verdadeiro. E ao pensar a pessoa cristã como peregrina que, de passagem deste<br />

mundo para o verdadeiro que viria depois da morte, não se daria, naturalmente, ênfase à busca<br />

de felicidade neste mundo. Os bens deste mundo, mesmo outorgados por Deus, não deveriam<br />

impedir a ascética da antecipação do mundo que viria depois. Mais tarde, com a Escolástica, os<br />

bens deste mundo começaram a receber maior consideração e deixaram de ser vistos como<br />

incompatíveis com as virtudes cristãs.<br />

Com o Renascimento reintroduziram-se noções éticas estóicas e outras que haviam sido<br />

abandonadas há muitos séculos, e encantaram pensadores como Descartes e Spinosa. A partir<br />

de século XVII alargaram-se reformulações nas teorias éticas, gerando diversas correntes como<br />

a de Hobbes que fundamentava a ética no egoísmo, os maquiavélicos, no realismo político e,<br />

outros, como Hutcheson, no sentimento moral. O que mais preocupava os pensadores era a<br />

origem dos preceitos éticos: para uns, era inata, para outros, a intelectualidade, para outros<br />

ainda a emotividade, o senso comum, a utilidade, a simpatia e, na igreja Católica permaneceu a<br />

defesa da origem religiosa.<br />

Uma mudança no pressuposto das origens veio com Kant. Para ele, a origem estaria na<br />

autonomia da cada pessoa. Com isso, se abriu uma nova polarização: o fundamento da ética é<br />

heterônomo ou autônomo?<br />

Pelo olhar de Kant se a origem da ética procede de coação ou de origem exterior aos<br />

seres humanos, então não há liberdade; já para outros, seria necessária esta intervenção de<br />

Deus para que a sociedade pudesse organizar-se adequadamente. A questão mais polêmica<br />

ficou por conta de um pressuposto: quem tem acesso ao que deus realmente quer para o agir<br />

ético dos seres humanos? Seriam os teólogos? E poderiam eles, por vias racionais chegar a este<br />

plenitude?<br />

6. O fim do agir ético<br />

Qual poderia ser o critério supremo do agir ético entre o bem e o mal? Entre os filósofos<br />

existem muitas discordâncias a respeito do limiar entre o que é bom e o que é ruim. Entre eles<br />

há, todavia, um consenso para considerar a liberdade como condição básica. Além de condição<br />

básica a liberdade constituiria um componente do agir moral. Uma segunda condição que os<br />

filósofos consideram básica um ato ético, ou agir moral, é o do conhecimento ou o da<br />

consciência. Uma pessoa para considerar que um ato é livre deve ter consciência ou<br />

conhecimento deste ato. Uma terceira condição necessária para que um ato seja considerado<br />

ético é o do princípio orientador, isto é, a pessoa deve estar disposta para orientar-se em torno<br />

de alguma causa ou motivação.<br />

Na primeira questão, a da liberdade como condição para um ato ético, surge outra<br />

questão polêmica: a que tipo de normas precisa a liberdade sujeitar-se? Há quem defenda que


o fim último do agir ético está o valor. Já outros, consideram as leis e os deveres como critério<br />

supremo do agir ético. Os efeitos de uma ou outra posição são diversos.<br />

A primeira ponderação, que defende o valor, é conhecida como ética teleológica. A<br />

outra que sustenta as leis e os deveres de cumpri-las é conhecida como ética deontológica.<br />

Entretanto, tanto o fim último quanto o dever, implicam em grande variedade de focos: pode<br />

ser o prazer, o interesse, o utilitarismo, a felicidade, etc. Estes focos não podem ser<br />

sustentados, nem em regras divinas, nem em regras civis e tampouco em regras naturais.<br />

Pelo lado das defesas teleológicas, ou das finalidades, as considerações últimas da ética<br />

poderão ser estabelecidas como hedonismo, utilitarismo, eudaimonismo ou ética dos valores.<br />

Na outra perspectiva, a das leis e do seu cumprimento, ou ética deontológica, os fins<br />

predominantes são o estoicismo e o formalismo Kantiano. Voltaremos adiante a estes aspectos.<br />

7. Concepções <strong>Ética</strong>s mais comuns<br />

Ao longo da história três tipos de concepção ética se impuseram com maior abrangência:<br />

a) <strong>Ética</strong> da natureza – que vincula à natureza a origem das regras éticas. Portanto na raiz<br />

da ética estariam os fatores biológicos. Sob esta concepção, a solidariedade, o<br />

altruísmo e a disciplina não passariam de questões instintivas. Charles Darwin até<br />

justificou que lealdade, amor e fidelidade, nós os experimentaríamos do mesmo jeito<br />

que os outros animais. O efeito desta concepção reforça o determinismo biológico. A<br />

partir da Antropologia entende-se que o ser humano depende mais da cultura do que<br />

do determinismo biológico.<br />

b) <strong>Ética</strong> Heterônoma – oriunda especialmente da concepção religiosa cristã, sustenta que<br />

a origem última das normas éticas está em Deus. Daí o porquê de se chamar de<br />

heterônoma, pois, seria algo de fora da condição humana que lhe pede o cumprimento<br />

de normas. Em outras palavras, algo é bom porque vem de Deus e é ele que pede o<br />

cumprimento das leis. Como se constata, pode muito bem uma pessoa falar em nome<br />

de Deus e impor suas exigências como sendo de Deus. Seria, pois, uma apelação a Deus<br />

para controlar o comportamento ético de outras pessoas...<br />

c) <strong>Ética</strong> Autônoma – sustenta a fonte e a origem dos atos éticos na própria condição<br />

humana. Sobretudo a partir do filósofo Emanuel Kant, entende-se que o psiquismo de<br />

cada pessoa já apresenta uma inata capacidade de discernimento do que é bom ou<br />

ruim. A essência ética seria algo natural presente em cada ser humano e que lhes daria<br />

a capacidade de julgar um procedimento como ético ou não ético. Da noção Kantiana<br />

rapidamente se chegou à ética do emotivismo e do instante: assim, algo é bom, certo,<br />

correto e justo dependendo do humor daquele momento. Pode algo ser muito bom<br />

hoje, e não ser bom no dia de amanhã.<br />

Se prestarmos atenção às três concepções, poderemos que, uma como as outras, reduzem<br />

o caráter histórico e social do agir ético. Portanto, todo o campo das obrigações éticas não<br />

pode estar desvinculado das relações sociais. As decisões para um indivíduo devem ser as dos<br />

indivíduos e dos indivíduos em sociedade. Todo comportamento individual procede de relações


sociais e implica em modos de relações com os outros. Até o ato de agir subjetivo segundo a<br />

consciência ou o “foro interior”, é repercussão de situações sociais e de um agir de certo<br />

momento histórico e cultural. Nem é possível que uma pessoa viva exclusivamente das suas<br />

opções pessoais, uma vez que estas estão sempre relacionadas a um ambiente social e seus<br />

valores cultivados.<br />

8. Surgimento de grandes patamares éticos<br />

A história humana, sobretudo nos tempos mais recentes de cerca de dois mil e seiscentos<br />

anos, revelou diversos novos aportes de noções éticas para a convivência humana:<br />

a) O da antigüidade grega – que apresentou como traço principal a preocupação em torno<br />

de uma subjetivação que pudesse situar os seres humanos no universo da natureza, e o<br />

lugar dos seres humanos nesta universalidade das formas de vida. Havia um desejo e<br />

uma vontade de adequar vida social com leis justas para corresponder às vontades<br />

divinas;<br />

b) O do período cristão – no qual prevaleceu o desejo de situar os seres humanos no<br />

caminho d fé como sinal de grandeza da sua condição de serem criaturas procedentes<br />

da criação divina. Neste modo de concepção predominaram os argumentos em favor<br />

da normatividade heterônoma, ou seja, as normas estariam vinculadas ao desejo da<br />

ação de Deus;<br />

c) O do mundo moderno – neste foram deixadas de lado tanto as buscas metafísicas para<br />

entender o que estava além da aparência das coisas, próprias do pensamento grego,<br />

quanto explicações decorrentes da fé que procuravam estabelece regras de vida<br />

adequadas a pressupostos divinos. O pensamento ético moderno, que culminou em<br />

Immanuel Kant, é o de que a normatividade ética não pode depender nem de Deus e<br />

nem da Natureza, mas, da boa vontade e da razão prática, que estariam naturalmente<br />

presentes nas pessoas;<br />

d) O período de nossos dias – que através de diversas tendências, quer encontrar o<br />

máximo de objetividade para as regras éticas. Esta nova tendência se ramifica em<br />

algumas correntes, tais como: 1) <strong>Ética</strong> discursiva: que se preocupa mais com a validade<br />

das normas do que com a modalidade de vida que poderia ser virtuosa e boa; 2) <strong>Ética</strong><br />

da reciprocidade: mais preocupada com a relação entre pessoas no sentido eu-tu, a fim<br />

de que possam situar-se num mesmo nível de respeito, de dignidade e de<br />

complementaridade; 3) <strong>Ética</strong> da Justiça: que se empenha para que nas estruturas<br />

sociais passem a vigorar mais regras favorecedoras de justiça, deixando de lado a<br />

preocupação com o modo de ser de cada pessoa; 4) <strong>Ética</strong> dos direitos Humanos: que<br />

defende o direito de cada ser humano à vida, à escolha de rumos políticos e religiosos e<br />

que todos possam obter o alcance aos necessários bens materiais e simbólicos a fim de<br />

se sentirem cidadãos na sociedade; 5) <strong>Ética</strong> da Utilidade: que evita os valores abstratos<br />

da filosofia ou da religião, e visa favorecer o maior bem-estar para o maior número de<br />

pessoas.


9. <strong>Ética</strong> e Valores<br />

Um ato ético ou moral sempre pressupõe capacidade de escolha entre vários atos<br />

possíveis. Implica na capacidade de poder dar preferência a atos considerados mais valiosos do<br />

que outros. Os valores, geralmente estão relacionados com utilidade, com bondade, com<br />

beleza, com retidão, com justiça, etc. Não existem valores puros em si, mas nós atribuímos<br />

valor a objetos ou bens sejam materiais ou simbólicos ou religiosos. O valor não é uma<br />

propriedade de um objeto, mas é um acréscimo ao objeto devido sua relação com a pessoa. Por<br />

exemplo, preferir uma jóia de ouro, de latão, ou de plaquê, está relacionado ao valor simbólico<br />

que atribuímos a estes materiais.<br />

9.1 – O que é valor?<br />

O que desejamos alcançar com o que consideramos importante? Os fins podem ser<br />

variados, como liberdade, status, reconhecimento, amizade, bens materiais, etc. na busca de<br />

algo importante, percebemos que existem valores que são meios para o alcance de outros<br />

valores. O dinheiro pode constituir-se, por exemplo, em meio para o alcance de mais saúde, de<br />

mais elevado nível de vida ou para adquirir algo considerado significativo.<br />

Existem graduações de valores. Para uma ilustração, lembramos uma antiga historinha<br />

atribuída ao Rei Midas, da antiga Grécia. Como um dos discípulos do deus Dionísio havia se<br />

perdido dos rumos de seu deus, Midas teria colaborado com Dionísio e fez com que aquele<br />

discípulo se voltasse novamente para Dionísio.<br />

Como recompensa, Midas, muito ambicioso e preocupado com acúmulo de bens, teria<br />

solicitado ao deus Dionísio que transformasse em ouro tudo quanto tocasse com as mãos.<br />

Dionísio teria sido imediato na concessão.<br />

No entanto, uma vez atendido na solicitação, Midas logo se deu conta do absurdo de seus<br />

desejos. Foi fazer xixi e já veio o primeiro fracasso, foi então dar um abraço na filha e esta se<br />

transformou num monte de ouro, passou no lado da mesa para comer uns petiscos e se deu<br />

conta que o ouro sequer matava sua fome. Arrependeu-se rapidamente e fez outro pedido ao<br />

deus do vinho a fim de que este ajudasse a anular o atendimento da solicitação anterior: o ouro<br />

não matava a fome e qualquer toque afetivo transformava as pessoas em ouro e Midas<br />

descobriu que existiam outras coisas muito mais importantes do o ouro.<br />

Mesmo assim, meteu-se logo em outra complicação. Convidado para ser avaliador entre as<br />

músicas cantadas por Pã e por Apolo, o consenso indicava a superioridade dos cantos de Apolo,<br />

mas, Midas votou a favor da Pã, e, diante da nova manifestação de estupidez, os deuses da<br />

medicina e da música transformaram suas orelhas em orelhas de burro. Pagou o “mico” e<br />

somente depois de passar por muita vergonha voltou a ter as orelhas normais... 8 Em nossa lida<br />

diária somos obrigados a fazer escolhas diante das ondas e avareza que ignora o valor da vida e<br />

aposta na riqueza sem limites. Ademais, quem seria o deus do vinho para nos ajudar hoje? A<br />

ação impulsiva e de forma irrefletida pode nos colocar na contramão do bom-senso da boa<br />

convivência e escolhemos mal os cantos bonitos da vida.<br />

No jogo de nossos conflitos de interesses temos que fazer opções ou escolhas e,<br />

geralmente, priorizamos aquelas às quais damos mais valor.<br />

8 http://mitologia.blogs.sapo.pt/49974.html


Um exemplo pode ser bem ilustrativo: quando vamos a um supermercado para fazer<br />

compras de produtos, geralmente averiguamos e também comparamos os produtos que<br />

apresentem os melhores preços, relacionados ao valor que damos ao produto. Constatamos<br />

que nem sempre o preço corresponde ao valor real do produto. Mas, porque, então,<br />

compramos? De modo geral, para suprir necessidades. Sapatos e livros não são iguais para<br />

certas necessidades. Alguns objetos adquirem valor devido a uma situação momentânea, como<br />

sede ou fome. Assim percebemos que o valor transcende o aspecto meramente econômico. Do<br />

que dependem, então os valores? Dos quadros subjetivos ou dos modos sociais? Verdade,<br />

justiça, paz, seriam valores estáveis, locais ou temporários? Existem pelo menos três formas<br />

distintas de explicar o significado e a procedência dos valores. Vejamos:<br />

a) Explicações subjetivistas - Vêem os valores como algo específico da consciência.<br />

Portanto, a fonte do valor estaria na consciência e de lá também sairiam os juízos de<br />

valor: como desejos, agrados e interesses. Isto, porém, complica o resultado: estas<br />

manifestações estariam restritas a uma apreciação meramente psicologizante. Neste<br />

caso, ago seria bom, simplesmente porque me agrada; ou seria ruim porque não gostei.<br />

Em decorrência, um desagrado, uma desaprovação ou um gesto de indiferença seriam<br />

anti-valores.<br />

As explicações subjetivistas de valor implicam em problemas de objetividade. Por<br />

exemplo, nada adiantaria doar óculos para um cego que não enxerga! Nem tudo o que<br />

alguém acha bonito, feio, justo ou injusto se constitui em valor só porque este alguém<br />

acha que é valor.<br />

b) Explicações Idealistas – Consistem em atribuir valor a algo porque é considerado<br />

valioso. Da herança platônica, valores são idealizações fixas e atemporais. Exemplos<br />

destes valores perenes são a justiça, a verdade e a beleza. Seriam realidades que estão<br />

além da mente humana e tampouco dependeriam da mente, mas, pelo contrário, é a<br />

mente que depende delas. Estabelece, portanto, um dualismo entre coisas reais e<br />

ideais. Existiria um bem como totalidade maior que daria valor relativo a certas coisas<br />

ou procedimentos. Constata-se que a explicações idealistas transformam valores em<br />

fins supremos e exigem que os seres humanos se adaptem a eles. Os valores, por<br />

conseguinte, constituiriam uma realidade que incide sobre os seres humanos e sua vida<br />

real.<br />

c) Explicações Realistas - Trata-se de postura contrária à anterior: os valores não seriam<br />

projeção e nem mesmo idealizações sobre o que é meritório, mas estariam<br />

simplesmente ligadas às pessoas e às coisas. Portanto, valor e bem estariam sendo a<br />

mesma coisa. Algo vale mais ou menos pelo que é. Apenas as imperfeições tirariam das<br />

pessoas e coisas a qualidade. Todavia, nem todas as pessoas e coisas mais perfeitas que<br />

outras têm mais valor. Pode muito bem uma mulher simples e feia valer muito mais do<br />

que uma rica e bonita, especialmente, quando se trata da mãe. Nem as pessoas e nem<br />

as coisa despertam evidentemente o valor real que possuem. Portanto, bem não é<br />

necessariamente sinônimo de valor. O valor, na verdade, depende da valoração e a<br />

capacidade de valorar é muito complexa porque envolve uma relação de inteligência,<br />

de sentimentos, de vontade e de afeto.


Independente de explicações serem subjetivas, realistas ou ideais, nossa tendência é a de<br />

adotar as que nos parecem mais certas. Esta capacidade de escolher entre o que consideramos<br />

certo ou errado é a consciência. Ela é como o alarme dos nossos critérios normativos, a maioria<br />

deles advindos da nossa educação. Assim, podemos sentir-nos fracassados diante de algo que<br />

fizemos, mesmo que para outras pessoas isto não represente algo grave. Também podemos<br />

pedir desculpas e voltar atrás no que prometemos. Para muitas pessoas a consciência se<br />

constitui na balança que mede atos, propostas ou desejos. O que é, então, este critério último<br />

que chamamos de consciência? Seria mero reflexo da educação mais ou menos rigorosa que<br />

recebemos?<br />

Há pelo menos dois aspectos a considerar:<br />

a) Consciência como controle inato – Sócrates e a teologia cristã sustentam que a<br />

consciência reflete o que deus espera de nós. Em ambientes não religiosos também<br />

há pessoas que entendem que a consciência é uma realidade natural da pessoa.<br />

Nós já nasceríamos com esta capacidade de julgar e escolher o mais adequado dos<br />

procedimentos.<br />

b) Consciência como força imposta pelo nosso ambiente de vida – seria, pois, o<br />

resultado das cobranças dos pais, do ambiente escolar e do grupo social ao qual<br />

pertencemos. Por isso a consciência teria o molde do ambiente cultural e poderia<br />

mudar e adequar-se a outras normas culturais.<br />

Na verdade, parece que os dois aspectos exercem peso decisivo na consciência e não<br />

conseguimos distinguir claramente o que é inato e o que é adquirido do ambiente cultural em<br />

nossa consciência. Assim como aprendemos a falar a língua, aprendemos a adotar critérios<br />

valorativos da conduta humana que envolve esta língua. Assim, também valores de consciência<br />

são aprendidos de múltiplas formas. O valor da responsabilidade, por exemplo, geralmente só o<br />

adquirimos depois de muita cobrança. 9i Mais do que nos dizer o que é certo ou errado, o papel<br />

da consciência é parecido com a do cachorro que late, quando desrespeitamos certas normas<br />

da boa convivência. É uma voz interior, mas, esta voz pode ser esquecida, assim como se<br />

esquece a própria língua quando não é falada. A consciência, portanto, a consciência exerce um<br />

papel parecido com a de um tribunal em nosso psiquismo: julga e decide a partir do que<br />

aprendeu a considerar certo ou errado.<br />

9.2 – Propriedades e Possibilidades<br />

Propriedade das coisas significa o que pertence a estas coisas. A água, por exemplo,<br />

pode apresentar cor, gosto e uma série de minerais, mas, a sua propriedade específica é H2O. A<br />

água pode até apresentar algumas propriedades acrescentadas, como estar fervida ou em<br />

estado de gelo. No entanto, é no H2O que se encontra a propriedade da água e o que a<br />

distingue das demais coisas.<br />

9 Na capacidade de julgar o certo e o errado está presente a ética social com seus códigos, suas normas e<br />

prescrições, pois ela deseja que seus membros vivam de forma honesta e recíproca. Podem as regras sociais<br />

manifestar-se obsoletas e o discernimento de uma pessoa pode abrir caminhos para um senso mais justo na<br />

convivência. Muitas pessoas vivem este conflito entre o que consideram justo e o que o grupo social convencionou<br />

como sendo justo. É o que vem ocorrendo em relação a casamento homo e hetero-sexual, aborto, ecologia, relações<br />

internacionais, etc.


Se, agora, imaginamos outro exemplo, a propriedade de uma pessoa humana, neste<br />

caso, já não é a composição química que fornece a propriedade humana, mas, as possibilidades<br />

desta pessoa. Quando definimos uma pessoa, certamente, a capacidade de decisão e a de<br />

esforço pessoal é mais destacada do que a sua propriedade química. E as possibilidades dão ao<br />

ser humano a capacidade de fazer algo com as pessoas e com as coisas.<br />

Voltando ao exemplo da água, se ela for potável e de um rio navegável, veremos que<br />

nem a navegabilidade e nem o fato desta água ser potável dependem da propriedade da água,<br />

mas dependem das pessoas que se utilizam da água. Vemos, no entanto que no exemplo as<br />

possibilidades estão ligadas à propriedade da água porque o ser humano oferece as<br />

possibilidades.<br />

Segundo Germán Marquínez Argote 10<br />

“No mundo há coisas e as coisas têm propriedades. As propriedades das coisas<br />

oferecem possibilidades de vida. Propriedades e possibilidades dividem as coisas em coisas reais<br />

e em coisas-sentido. O sentido diz relação positiva ou negativa da vida. Em sentido positivo se<br />

constituem os valores, sendo a vida a norma suprema que determina o caráter positivo ou<br />

negativo de um valor”.<br />

Decorre disso que o ser humano cria possibilidades de vida sobre as propriedades (faz a<br />

água ser potável e navegável, etc.). As possibilidades estão, pois, relacionadas à vida humana,<br />

porque as pessoas têm esta capacidade de extrapolar as propriedades das coisas para produzir<br />

obras e realizar-se a si mesmo. Antes mesmo de fazer qualquer coisa, o ser humano se sente<br />

dotado da capacidade de poder exercer uma ação sobre esta coisa: é a possibilidade de poder<br />

fazer algo sobre esta coisa.<br />

Se as possibilidades humanas têm a capacidade de agir sobre as coisas, emerge logo<br />

uma questão: podem todas as pessoas fazer isto em nível de igualdade? Se eu, por exemplo,<br />

quisesse ser astronauta, poderia sê-lo, se sou pobre, analfabeto e desempregado?<br />

10. Realidade e Sentido<br />

Assim como a água de um rio pode ser navegável e potável, a inteligência humana é<br />

uma propriedade que se abre a muitas possibilidades. Estas possibilidades podem acrescentarlhe,<br />

por exemplo, o saber, capacidade de raciocínio, etc. assim também todo o real humano é<br />

constituído de um conjunto de propriedades psicossomáticas. Assim como a água está aberta a<br />

possibilidades, o ser humano está aberto a coisas e a si mesmo.<br />

O ser humano, diferentemente dos outros animais, não está apenas aberto aos<br />

estímulos, mas tem a capacidade de transcender esta realidade pela sua capacidade de<br />

perguntar em torno do “quê”, do “porque” e do “para quê”. Ele se interroga a respeito de si<br />

mesmo e de tudo quanto o rodeia e lhes dá significados. Esta capacidade abre-lhe<br />

possibilidades de sentido. Está ali sua propriedade específica: a de conferir sentido às coisas.<br />

Quando se inventa a fazer um prato, uma faca ou qualquer outro objeto, ele o faz para algo.<br />

Significa que o ser humano, através do sentido ou da intencionalidade, ultrapassa a realidade.<br />

Assim como o átomo de hidrogênio é uma realidade, a intencionalidade humana pode<br />

transformá-la em uma bomba.<br />

10 ARGOTE, Germán Marquínez et alii. El Hombre <strong>La</strong>tinoamericano y sus valores. Bogotá: Nueva América, 1991,<br />

p.18.


O ser humano não é apenas um interpretador da propriedade das coisas que o rodeiam,<br />

mas é também um interpretador do seu próprio sentido. Em outras palavras, ele confere<br />

sentido às coisas e estas oferecem incontáveis possibilidades para o sentido da sua vida.<br />

10.1- Sentido e Valores<br />

Quando o ser humano atribui sentido às coisas, consegue conferir-lhes uma utilidade,<br />

que pode ser valiosa, ou o que chamamos de “bem”. Da possibilidade resultante de uma coisa,<br />

podem resultar coisas boas. Deste ato decorre uma valoração: as coisas trabalhadas dão um<br />

sentido relacionado à vida. Tal processo nos indica que os valores não constituem algo pronto e<br />

acabado, como a propriedade de qualquer objeto, e tampouco se impõem sobre a vida, mas<br />

são escolhidos de acordo com o sentido que oferecem.<br />

Existe diferença entre sentido e valor? Percebemos que o valor está estreitamente<br />

ligado ao sentido, mas nem todo sentido é um valor. O sentido somente se torna valioso<br />

quando se relaciona positivamente com a vida, ou seja, quando a possibilita, a expressa e a<br />

dignifica. Decorre dali que os valores sempre se relacionam com a vida.<br />

10.2- Valores e vida<br />

A vida humana não é apenas um valor, mas constitui a razão de ser dos valores. Talvez<br />

por isso Jesus Cristo tenha dito: que tenham vida em abundância... Da ancestralidade bíblica<br />

herdamos uma antiga noção de não matar e não roubar.<br />

Matar e roubar a vida, sejam em nós mesmos ou nas outras pessoas, significam atos<br />

homicidas. São múltiplas as formas possíveis de se matar e de conduzir à morte: pode ser por<br />

fome, por abuso, por excesso, por exclusão de acesso e de muitas outras formas.<br />

Roubar significa tirar meios de vida e são múltiplos os modos de matar indiretamente. A<br />

recomendação de não roubar decorre da outra, de não matar, para assegurar que se possa<br />

viver e viver de formas reais e plenas as muitas possibilidades da vida. Por isso, criam-se<br />

estruturas políticas, jurídicas, culturais e sociais para gerar valores positivos na sociedade. E,<br />

mesmo quando da vigência destes valores, corre-se o risco de fetichização e de relativização<br />

dos valores. De um lado se atribui valor irreal e excessivo a coisas trabalhadas pelo ser humano;<br />

de outro lado, ignora-se que certos significados positivos possam ser para todos os membros de<br />

uma coletividade. Por isto vale lembrar a conhecida frase: os valores são para a vida e não pode<br />

a vida ser manipulada para alguns valores.<br />

Como seres humanos, constituímos um resultado que, certamente, não é mera<br />

decorrência de um plano pré-estabelecido, mas, temos a marca genuína de nos preocupar com<br />

os outros e até nos preocupamos com as conseqüências do que pode acontecer a partir dos<br />

outros e com os outros modos de vida no planeta. Segundo Maturana isto demonstra que<br />

somos animais amorosos:<br />

“As preocupações éticas, a responsabilidade e a liberdade existem apenas no domínio do<br />

amor. As preocupações éticas, a responsabilidade e a liberdade têm lugar apenas enquanto<br />

alguém pode ver o outro, a si mesmo e as conseqüências das ações de alguém nos outros ou em<br />

si mesmo e age de acordo com a decisão entre querer ou não essas conseqüências. Mas, para<br />

fazer isto, par ter preocupações éticas, para ser responsável , para ser livre, é preciso ver o outro


ou a si mesmo em sua legitimidade, sem que seja preciso justificar a sua existência, isto é, é<br />

preciso operar no amor”. 11<br />

11. A avaliação ética ou moral<br />

Avaliação moral significa atribuir valores a atos ou produtos humanos. No processo<br />

avaliativo geralmente entram três componentes:<br />

a) O valor atribuível;<br />

b) Os objetos ou normas avaliadas;<br />

c) O sujeito que avalia.<br />

O ato de atribuir valor parte da pessoa, mas, esta pessoa sempre esta condicionada a certo<br />

lugar, certo momento cultural e certa influência social. Se, por exemplo, Pedro explora Maria<br />

através de sub-emprego e de salário injusto, como avaliamos tal ato? Talvez, pela influência do<br />

sistema capitalista, que autoriza a exploração de outras pessoas (pela mais valia), Pedro é<br />

induzido a não ver o trabalho de exploração numa perspectiva moral negativa, mas, altamente<br />

positiva, pois assim obterá mais lucro.<br />

O que poderia significar a não submissão a tal trabalho? Como a avaliação é feita dentro de<br />

um quadro sócio-cultural, pode ser interpretado como mera vagabundagem. Vemos, pois que a<br />

avaliação implica em atribuição de valor, a partir do sujeito que aprova ou reprova o agir de<br />

outro sujeito, mas, sempre numa determinada situação. Daí porque se distingue com critérios<br />

muito distintos, por exemplo, alguém nu num quarto ou nu numa avenida!<br />

11.1- O bom como Valor<br />

Ato moral é aquele que visa algo que seja considerado bom. Todavia, o que é realmente<br />

bom? Pensadores, como Platão, quiseram colocar o âmbito do bom numa realidade absoluta,<br />

fora do mundo concreto e nem tampouco atingível em nossa vida terrena. O bom seria a<br />

mesma coisa em qualquer circunstância e em qualquer lugar.<br />

O conceito de bom também pode decorrer do que se considera “mau”. Percebemos que<br />

nenhuma das duas realidades é a mesma em qualquer ambiente social. Pode num lugar o bom<br />

ser considerada a pessoa forte e valente. Neste caso, má seria a covarde e fraca.<br />

Tende-se a considera bom um ato quando se enquadra em concepções um tanto<br />

abstratas e universais da natureza humana porque também depende de ambientes sociais. Por<br />

exemplo, um grupo de privilégios sociais aceitaria renunciar a estes privilégios? Tenderá a<br />

considerar má a atitude que propõe esta perda. Assim, o conceito de bom pode facilmente<br />

esconder aspirações de privilégios dos grupos dominantes.<br />

11.2- O bom como felicidade (eudaimonia)<br />

11 MATURANA, Humberto e REZEPKA, Sima Nisis de. Formação Humana e Capacitação. Petrópolis: Vozes,<br />

2000, p. 75. Os autores ainda complementam os dados acima: “O amor é nossa base, a proximidade é nosso<br />

fundamento, e se os perdermos, procuramos sempre de novo recuperar o amor e a proximidade, porque sem eles<br />

desaparecemos como seres humanos, mesmo se a nossa corporalidade permanece como entidade zoológica Homo<br />

sapiens sapiens”.(Idem, ibidem).


Aristóteles dizia que a felicidade era o único bom absoluto, pois considerava a felicidade<br />

como o “sumo bem” e eu estaria no mais elevado grau dos bens. Como Aristóteles desprezava<br />

o trabalho manual, como reflexo da mentalidade do seu tempo, ele só poderia privilegiar a<br />

razão como o sumo bem. Disto veio uma seqüela para a história posterior que associou<br />

felicidade à contemplação e a atividade intelectual. Em conseqüência, mulheres, pobres e<br />

analfabetos não teriam sequer possibilidades de chegar ao nível mais elevado da felicidade.<br />

A ética cristã passou a sustentar que aqui na terra não se consegue felicidade plena, mas<br />

apenas felicidade relativa. Somente depois da morte se poderia chegar a uma felicidade plena.<br />

Em nossos tempos atuais, sobretudo o pensamento iluminista e materialista, passou a inverter<br />

a posição cristã: pode-se ser plenamente feliz aqui na Terra. Todavia, conceberam a felicidade<br />

numa perspectiva abstrata e idealizada de modos que, também fugiu do alcance concreto.<br />

Estes pensadores mais recentes, mesmo pensando a felicidade concreta, ao pensarem o ser<br />

humano de uma forma muito abstrata, pois não modificaram as mediações econômicas e nem<br />

a da liberdade pessoal. Bem podemos imaginar que alguém pobre, discriminado ou excluído ao<br />

acesso dos bens culturais mais prestigiados, não poderá sentir-se feliz, a não ser em escala<br />

muito pequena e restrita.<br />

A praxe do senso comum nos aponta que a busca de felicidade encontra muitos<br />

obstáculos: podem ser os fracassos no amor e na profissão, pode ser o surgimento de doenças<br />

e incompreensões, pode ser o imprevisível de fatos que nos afetam como repentinas alterações<br />

de humor, etc. A noção de felicidade é condicionada por características sociais que a<br />

restringem. Assim pode alguém sonhar em ser feliz com a aquisição de uma propriedade e<br />

associar a felicidade ao que possui e não ao que está vivendo. A mera posse de muitos bens<br />

não esgota a felicidade. Por isso, poucas pessoas sustentam, em nossos dias, que a felicidade é<br />

o sumo do que é bom. Tanto a contemplação quanto a posse de bens representam horizontes<br />

ainda muito abstratos, egocêntricos e possessivos para uma relativa felicidade.<br />

11.3 - O bom como prazer (hedonismo)<br />

Há dois significados para o termo prazer: um corresponde a um estado afetivo<br />

agradável, como a presença amiga, o encantamento, a solução de algum problema difícil; o<br />

outro equivale a sentir sensações agradáveis, como as provenientes de afagos, cócegas,<br />

comidas, bebidas, etc.<br />

Para os hedonistas o critério supremo da moralidade é o do prazer sensível, de modos<br />

que o bem moral é identificado com prazer.<br />

Os sofistas gregos foram defensores desta ótica, mas, o grande expoente do hedonismo,<br />

o pensador grego Epicuro sugeria às pessoas que procurassem o máximo de prazer, mas não<br />

em nenhum destes dois sentidos salientados acima. Ele indicava o prazer de uma sensação<br />

intelectual e estética. A bondade, um ato ou uma experiência seriam mais valiosos de acordo<br />

com o a capacidade de propiciar níveis mais elevados de prazer. A esta concepção pode-se<br />

levantar o mesmo questionamento relacionada ao bom como felicidade porque reduz o bom a<br />

experiências psíquicas ou a vivências subjetivas. O prazer, na verdade, não é o único fim do ser<br />

humano.<br />

Entre pensadores modernos, foram defensores do hedonismo Montaigne, Hobes,<br />

Helvetius, Bentham, Stuart Mill e outros.


11.4 - O bom como boa vontade (formalismo kantiano)<br />

Segundo Kant, o bom não poderia ter nenhuma restrição, isto é, não poderia, pois,<br />

depender do nosso controle e dos nossos atos. A afirmação do referido pensador deixa uma<br />

dúvida: poderia algo ser bom de uma maneira absoluta e independente da nossa ação?<br />

Para Kant, fora da boa vontade, todo bom apresenta restrições. Vontade, sim, é boa<br />

pelo querer. Boa pela vontade também seria algo mais do que mero desejo, porquanto implica<br />

na determinação de fazer algo. Mesmo que surjam ações capazes de impedir a consecução dos<br />

bons propósitos advindos da boa vontade, fica, todavia, circunscrita a um mundo intemporal e<br />

a-histórico. Trata-se de um novo “mais-além” e por isto, trata-se de uma noção pouco<br />

proveitosa para o mundo concreto das pessoas, porque o bom não tem nenhuma capacodade<br />

de agir ou regulamentar as relações das pessoas.<br />

11.5 - O bom como útil<br />

Os representantes mais significativos desta concepção são Jeremy Bentham e John<br />

Stuart Mill. Defendem o bom como útil, mediante duas condições: a) útil para quem? ; b) em<br />

que consiste o útil?<br />

Talvez não tenham pensado o útil no sentido egoísta do que poderia ser proveitoso<br />

“para mim”, mas pensaram no que poderia ser vantajoso para o maior número de pessoas.<br />

Também esta noção é complicada, por exemplo, seria um suicídio justificável como bom para<br />

deixar felizes muitas pessoas?<br />

O bom como útil depende de conseqüências e, independente do que levou à execução<br />

de algo, acaba se impondo o valor do resultado, apreciado como bom ou, como ruim. Como<br />

esta conseqüência é posterior ao ato moral, como se poderia avaliá-la adequadamente antes<br />

de executá-la?<br />

Quanto à segunda condição, que envolve o conteúdo do que é útil, surgiram duas<br />

tendências explicativas:<br />

a) A de Bentham que combina o útil com o prazer (eudaimonia);<br />

b) A de Mill, que combina o útil com felicidade. Ele considera útil o conhecimento, o poder<br />

a riqueza. Por isso, sustenta dois tipos diferentes de utilitarismo de acordo com o<br />

alcance para um maior número de pessoas. Persiste, todavia um problema: o que gera<br />

mais felicidade só depende do caso de atingir um grupo maior? Em outras palavras,<br />

importa a maior felicidade para poucos, ou intensidade menor para muitos? Torna-se<br />

muito difícil aplicar tal noção a uma sociedade dividida em classes, onde facilmente uma<br />

pessoa explora a outra. Vale à pena que para a felicidade de alguns poucos, como na<br />

“polis” grega, no colonialismo dos europeus, ou no estado industrial de mais-valia, a<br />

felicidade de poucos tenha que implicar em tanta infelicidade e ruindade de vida para<br />

incontáveis outros?


O que poderiam apontar estas diferentes perspectivas do melhor para a ética? Valor,<br />

felicidade, prazer, boa vontade e utilidade, parecem pressupor algo ainda mais significativo<br />

para um agir ético: a capacidade de amar.<br />

A dimensão do amor na raiz da ética parece apontar um horizonte bem mais amplo e<br />

valioso do que os valores de felicidade, prazer, utilidade, etc., porque o desejo de intimidade e<br />

de boa relação com outras pessoas faz parte da essência da nossa condição humana. A<br />

interferência neste campo nos desajusta e nos causa doenças, é também o amor a melhor<br />

terapêutica.<br />

Enquanto que a fundamentação da ética foi atribuída à racionalidade, ao âmbito divino, à<br />

virtude, aos benefícios e vantagens, passou despercebido que o fundamento da ética se situa<br />

num âmbito bem mais simples: a convivência com outros. Esta, sempre implicar numa questão<br />

ética de fundo: desejamos que tipo de mundo para a nossa convivência? A agressividade<br />

certamente não será o melhor indicativo do devir. Tampouco a dominação e sujeição dos<br />

outros às nossas ambições.<br />

Epílogo<br />

Na política, na religião e em tantos outros grandes campos da vida humana social, ouvese<br />

falar da importância de uma filosofia de vida, ou de princípios, ou ainda de uma coerência<br />

religiosa, que seja capaz de gerar práticas correspondentes com o que se fala e, na certeza de<br />

que estes procedimentos sejam melhores e mais importantes do que uma orientação subjetiva<br />

pela apatia e pela ausência de convicções. Qual seria, por exemplo, o resultado de uma opção<br />

pela neutralidade? Não podemos ficar passivos e indiferentes diante dos grandes fatores<br />

humanos e ambientais que ameaçam diminuir a qualidade da vida humana.<br />

Uma filosofia de vida ou um conjunto de princípios religiosos ou ético-morais permitiu a<br />

muitas pessoas, em distintos momentos históricos, abrir caminhos novos para a convivência<br />

mais satisfatória das pessoas. Basta lembrar como muitas pessoas agiram diante da<br />

discriminação social, das guerras, das prepotências, dos despotismos, das crises religiosas. Por<br />

isso, tornaram-se referências e ícones de um novo tempo. Assim, podemos pensar que nossa<br />

colaboração é capaz de abrir novos e importantes rumos no caminho que assegura melhor<br />

futuro humano, através da capacidade de amar e do cuidado para salvar o planeta. Certamente<br />

não podemos continuar a destruí-lo e assegurar um futuro melhor e mais feliz para a nossa<br />

condição humana. Nem podemos, tampouco, avançar na ciência e, continuar omissos e<br />

acomodados diante das limitações humanas, dos sofrimentos e das múltiplas inquietações que<br />

a vida nos apresenta.<br />

Se nos encantamos com quem é coerente numa filosofia de vida, com princípios, ou<br />

religiosos ou éticos, ou de qualquer natureza humanitária, vemos, também, que não bastam<br />

idéias a respeito do que é considerado como bom, como certo e como justo, seja na família, na<br />

comunidade e na sociedade, ou no cuidado dos eco-sistemas do planeta. Um eventual ato de<br />

sentir aversão diante de injustiças encontra-se ainda distante do ato de fazer algo para que a<br />

justiça realmente se estabeleça. A ética precisa nos envolver neste agir dinâmico.<br />

Como seres relacionais, mesmo vivendo numa fase de crise valores éticos, nossa<br />

condição de seres humanos, de um lado auto-proclamados “Homo sapiens sapiens” pela sua<br />

extraordinária inteligência, não pode deixar de ser visto, também, como “Homo demens<br />

demens”, literalmente demente, pelo que faz com a natureza e pelo modo como estabelece<br />

relações. Todavia, ainda corremos o risco de outra polarização, a do “Homo sapiens amans”


que, cada vez mais perde espaço para o “Homo sapiens aggresans” (a capacidade de amar dá<br />

espaço para a capacidade agressiva e dominadora).<br />

Para a nobre e peculiar condição de seres amantes, dependemos certamente muito<br />

mais da capacidade de nos emocionar nas relações do que a de agir como seres<br />

extraordinariamente inteligentes e altamente agressivos e destruidores. Afinal, o que mesmo<br />

queremos para o nosso futuro?<br />

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MATURANA, Humberto e REZEPKA, Sima Nisis de. Formação Humana e Capacitação. Petrópolis,<br />

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MORA Ferrater J. Dicionário de Filosofia. Tomo II. São Paulo: Loyola, 2001.<br />

PEGORARO, Olinto. <strong>Ética</strong> dos maiores mestres através da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

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