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RESUMOS ACAFE 2012 - Escola Apoio

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<strong>RESUMOS</strong> <strong>ACAFE</strong> <strong>2012</strong><br />

Prof. Luiz Roberto Deschamps<br />

1. Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade<br />

Publicado em 1927, Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, chama a atenção por inúmeros aspectos. O<br />

primeiro é a sua linguagem, provavelmente considerada “errada” na época, pois se afasta do português castiço ao imitar<br />

(às vezes de forma eficiente, às vezes não) o padrão coloquial brasileiro. É como se o texto escrito imitasse a maneira<br />

de falar do nosso povo. É um livro para se fazer de conta que se está ouvindo e, não, lendo.<br />

Há numerosas características em Amar, Verbo Intransitivo que o enquadram como modernista. Um romance<br />

modernista da primeira frase (1922 – 1930), impregnado de um espírito de destruição até ao exagero. O espírito da<br />

“Semana de Arte Moderna”: destruir para construir tudo de novo. A mola real de toda a obra do autor é a pesquisa, a<br />

busca.<br />

O romance apresenta no próprio título uma contradição gritante, afinal, o verbo "amar" é transitivo direto e não<br />

intransitivo. Se isto já não bastasse, ainda recebe uma curiosa classificação: é apresentado na capa como Idílio. A<br />

perplexidade é inevitável, uma vez que idílio implica numa forma singela de amor em que não pairam dúvidas quanto à<br />

reciprocidade entre dois sujeitos.<br />

Outro aspecto interessante é o constante emprego das digressões, boa parte delas metalingüísticas, outra parte<br />

sociológicas, que fazem lembrar o estilo machadiano. Mais uma vez, a obra apresenta elementos formais que a colocam<br />

à frente de seu tempo, caracterizando-a, portanto, como moderna.<br />

Dentro do aspecto sociológico, há que se entender uma posição meio ambígua de Mário de Andrade, como se ele<br />

mostrasse uma “paixão crítica” por seu povo, principalmente o paulistano. Note-se que critica valores brasileiros, ao<br />

mesmo tempo que diz que é a nossa forma de comportamento, deixando subentendido um certo ar de “não tem jeito”,<br />

“somos assim mesmo”. Além disso, ao mesmo tempo em que elogia o estrangeiro, principalmente a força dos alemães,<br />

desmerece-os ao mostrá-los como extremamente metódicos, ineptos para o calor latino. Sem mencionar que reconhece<br />

que o imigrante está sendo como que simpaticamente absorvido por nossa cultura.<br />

Mas o que mais chama a atenção é a utilização da teoria freudiana (grande paixão do autor) como embasamento<br />

da trama.<br />

O inusitado da profissão de Fräulein pode parecer inverossímil numa visão separada da totalidade sócioeconômica<br />

e histórica (como também seu sonho de retornar à Alemanha, “depois de feito a América, e o casamento, o<br />

vago amado distante à espera de proteção, espécie de redenção wagneriana pelo amor.” Professora de amor, profissão<br />

que uma “fraqueza” lhe permitiu exercer, no entanto “é uma profissão”, insistiria Fräulein.<br />

Na Europa, o período denominado entre-guerras caracterizou-se por uma profunda crise econômica, social e<br />

moral que atingiu os países capitalistas na década de 20. Na Alemanha, particularmente, a situação era pior: havia um<br />

clima propício, como nos demais países que perderam a guerra, ao nascimento de um violento nacionalismo. No caso,<br />

sabemos, estava aberta a brecha para a ascensão do nazismo. No Brasil, apesar da guerra, o clima era bem outro:<br />

havia um relativo otimismo em relação ao futuro. Superávamos o atraso de um país agrário num estado mesmo de<br />

euforia pelo dinheiro proveniente da plantação e comércio do café e vislumbrava-se a possibilidade de unir esta riqueza<br />

à nova riqueza industrial. Fräulein, diante de realidades tão opostas, se adapta. Aliás, seu poder de adaptação é<br />

insistentemente enfatizado pelo narrador:<br />

tornaram a vida insuportável na Alemanha. Mesmo antes de 14 a existência arrastava difícil lá, Fräulein se<br />

adaptou. Veio pro Brasil, Rio de Janeiro. Depois Curitiba onde não teve o que fazer. Rio de Janeiro. São Paulo. Agora<br />

tinha que viver com os Souza Costas. Se adaptou.<br />

A descoberta de Dona Laura sobre o acordo estabelecido entre Fräulein e o Senhor Souza Costa, referente à<br />

iniciação amorosa/sexual de Carlos, provocou explicações desconcertantes, exibindo a hipocrisia social vigente na<br />

metrópole paulista:<br />

Laura, Fräulein tem o meu consentimento. Você sabe: hoje esses mocinhos... é tão perigoso! Podem cair nas<br />

mãos de alguma exploradora! A cidade... é uma invasão de aventureiras agora! Como nunca teve!. Como nunca teve,<br />

Laura... Depois isso de principiar... é tão perigoso! Você compreende: uma pessoa especial evita muitas coisas. E<br />

viciadas! Não é só bebida não! Hoje não tem mulher-da-vida que não seja eterônoma, usam morfina... E os moços<br />

1


imitam! Depois as doenças!… Você vive em sua casa, não sabe… é um horror! Em pouco tempo Carlos estava sifilítico e<br />

outras coisas horríveis, um perdido!<br />

Há de se convir que havia um vasto mercado para a professora de amor, que se fez assim, inclusive, por captar as<br />

necessidades e capacidade desse mercado. Ora, antes de vir para a emergente São Paulo, ela esteve no Rio de Janeiro<br />

e em Curitiba, “onde não teve o que fazer”.<br />

Foco narrativo<br />

A narrativa é feita na terceira pessoa, por um narrador que não faz parte do romance.<br />

É o narrador tradicional, um narrador onisciente e onipresente. Mas há ainda um outro ponto-de-vista: o autor se<br />

coloca dentro do livro para fazer suas numerosas observações marginais. Para comentar, criticar, expor ideias,<br />

concordar ou discordar... É uma velha mania do romance tradicional. E os comentários são feitos na primeira pessoa.<br />

Observe:<br />

Isto não sei se é bem se é mal, mas a culpa é toda de Elza. Isto sei e afirmo...<br />

Volto a afirmar que o meu livro tem 50 leitores. Comigo 51.<br />

Linguagem e Estrutura<br />

A narrativa corre sem divisões de capítulos. Mário de Andrade usa as formas conhecidas de discurso. É mais<br />

freqüente o discurso direto, nos diálogos, mas em algumas vezes, usa também o discurso indireto e o discurso indireto<br />

livre.<br />

A narrativa segue, de modo geral, uma linha linear: princípio, meio e fim. Começa com a chegada de Fräulein, se<br />

estende em episódios e incidentes, acaba com a saída de Fräulein. Quando termina o idílio, o autor escreve “Fim” e,<br />

depois, ainda narra um pequeno episódio: um encontro de longe entre Carlos e Fräulein, num corso de carnaval.<br />

Freqüentemente a narrativa fica retardada pelos comentários marginais do autor: algumas vezes exposição de tese.<br />

Apesar de certos alongamentos em seus comentários marginais, o autor escreve com rapidez, dinamicamente, em<br />

frases e palavras com jeito cinematográfico. Mário de Andrade usa uma linguagem sincopada, cheia de elipses que<br />

obrigam o leitor a ligar e completar os pensamentos. Em vez de dizer e de explicar tudo, apenas sugere em frases<br />

curtas, mínimas.<br />

A pontuação da frase é muito liberal. Conscientemente liberal. O ritmo de leitura depende muito da capacidade de<br />

cada leitor. Abandona a pontuação quando as frases se amontoam, acavalando-se umas sobre as outras, polifônicas,<br />

simultâneas, fugindo das regrinhas escolares de pontos e vírgulas. É preciso lembrar que Mário de Andrade é sempre<br />

um experimentador em busca de soluções novas para a linguagem. Para alcançar ou tentar suas inovações ele<br />

trabalhou suadamente: fazia e refazia suas redações em versões diferentes. Assim em Amar, Verbo Intransitivo e mais<br />

ainda em Macunaíma. Sobre Fräulein: Agora primeiro vou deixar o livro descansar uma semana ou mais sem pegar nele,<br />

depois principiarei a corrigir e a escrever o livro na forma definitiva. Definitiva? Não posso garantir nada, não. Fräulein<br />

teve quatro redações diferentes! (Carta a Manuel Bandeira, pág. 184).<br />

Personagens<br />

As personagens do livro são, em geral, fabricadas, artificiais, sem muita vida ou substância humana.<br />

Os personagens de Amar, Verbo Intransitivo são bem parecidos, e socialmente domesticados. Para ver,<br />

praticamente, todos os personagens em ação, com certa espontaneidade, o melhor momento é a volta de trem, depois<br />

daquela viagem ao Rio de Janeiro. Um dos momentos narrativos mais interessantes em todo o romance. Mas a ação<br />

principal está em Fräulein: seu domínio sexual, com imperturbável serenidade bem alemã, contrasta com a<br />

espontaneidade sexual, com a impetuosidade bem brasileira do excelente aluno (em sexo), Carlos.<br />

O narrador gosta de ver os seus personagens. É um espectador pirandeliano que acompanha suas criaturas. Que<br />

mentira, meu Deus!! Dizerem Fräulein, personagem inventado por mim e por mim construído! Não constrói coisa<br />

nenhuma. Um dia Elza me apareceu, era uma quarta-feira, sem que eu a procurasse.... E continua a sua pequena teoria<br />

o personagem. São os personagens que escolhem os seus autores e não estes que constroem as suas heroínas.<br />

Virgulam-nas apenas, pra que os homens possam ter delas conhecimento suficiente....<br />

Felisberto Sousa Costa - pai de Carlos. É, possivelmente um doutor em qualquer coisa, mania muito comum e<br />

que Eça de Queiróz criticou numa saborosa carta a Eduardo Prado: todo mundo é doutor, todo mundo tem a mania do<br />

diploma e do anel do dedo. É o centro, não afetivo, mas administrativo da casa em que mantém, mais ou menos, o<br />

regime patriarcalista.<br />

D. Laura - mãe de Carlos, esposa de Felisberto. Como devia, sempre obedece ao marido. É uma senhora bem<br />

2


composta, acomodada, burguesa. Uma senhora da sociedade e que mantém todas as aparências de seriedade religiosa<br />

e familiar. Concorda com os argumentos tão convincentes... do marido, na educação do único filho-homem.<br />

Carlos Alberto - filho de Felisberto e D. Laura, com idade entre 15 e 16 anos. Uma espécie de “enfant gaté” (um<br />

queridinho da família, porque único) e que, certamente, deverá ser o principal herdeiro do nome, da fortuna e das<br />

realizações paternas. Como era costume, possivelmente, deveria ser a projeção do pai, a sua continuação. Centraliza a<br />

narrativa, é personagem do pequeno drama amoroso do livro, ao lado da governanta alemã, Elza.<br />

Elza - Fräulein (= senhorita), governanta alemã. Tão importante que ela dava nome ao romance. Como é<br />

Fräulein? Ela é a mais humana e real, mais de carne e osso. Talvez arrancada da vida. Ela, sem muito interesse, cuida<br />

também da educação ou instrução das meninas: principalmente para ensinar alemão e piano. São três meninas que,<br />

apenas, completam a família burguesa. São três meninas que brincam de casinha.<br />

Maria Luísa - irmã de Carlos, tem 12 anos. Ela vai ser o centro de uma narrativa dentro do romance: a sua<br />

doença e a viagem ao Rio de Janeiro, para um clima mais saudável em oposição ao frio paulistano.<br />

Laurita - irmã de Carlos, tem 7 anos.<br />

Aldina - irmã caçula de Carlos. Tem 5 anos.<br />

Enredo<br />

Souza Costa, homem burguês, bem posto na vida, contrata uma governanta alemã, de 35 anos, para a educação<br />

do filho, principalmente para a sua educação sexual.<br />

Não me agradaria ser tomada por aventureira, sou séria, e tenho 35 anos, senhor. Certamente não irei se sua<br />

esposa não souber o que vou fazer lá.<br />

Elza é o nome da moça. Mas vai ficar conhecida e será chamada sempre pela palavra alemã Fräulein. Chegou à<br />

mansão de Souza Costa, numa terça-feira. (Ganharia algum dinheiro... Voltaria para a Alemanha... Se casaria com um<br />

moço “comprido, magro”, muito alvo, quase transparente”...).<br />

A família era formada pelo pai, por D. Laura, o rapazinho Carlos e as meninas: Maria Luísa, com 12 anos; Laurita<br />

com 7 e Aldinha com 5. Havia também na casa um criado japonês: Tanaka. A criançada toda começou logo aprendendo<br />

alemão e chamando a governanta de Fräulein. Carlos não está muito para o estudo. Fräulein logo se ajeitou na família,<br />

uma família “imóvel mas feliz”. Mas o papel principal da governanta é ensinar o “amor”.<br />

Notas<br />

1. O problema central do romance é a educação sexual de um rapaz de família burguesa, em São Paulo. As<br />

meninas ficam relegadas a um segundo plano. Carlos é mais importante. Não pode ficar sujeito à ganância e às doenças<br />

das mulheres da vida. Como resolver o problema? Contrata-se Fräulein, professora de sexo. É mais uma estrangeira<br />

que entra para a casa brasileira, onde o copeiro é italiano fascista, a arrumadeira é belga ou s uíça, o encerador é polaco<br />

ou russo. Na casa de Souza Costa o empregado é japonês e a governanta é alemã. Só as cozinheiras que ainda são<br />

mulatas ou cafusas.<br />

2. Há uma referência ao racismo alemão: quedê raça mais forte? Nenhuma... O nobre destino do homem é se<br />

conservar sadio e procurar esposa prodigiosamente sadia. De raça superior, como ela, Fräulein. Os negros são de raça<br />

inferior. Os índios também. Os portugueses também. São as idéias de Fräulein, principalmente depois que leu um<br />

trabalho de Reimer, onde se afirmava a inferioridade da raça latina.<br />

3. A família burguesa é patriarcalista: o centro de tudo é o homem, o pai e o filho, Carlos. Todos têm que obedecer<br />

ao pater-familias. A começar de D. Laura que se submete, se adapta, aceita as idéias do marido, se conforma com a<br />

presença da Fräulein como professora de sexo do filho. E a família vai continuar patriarcalista porque já estão<br />

centralizando todas as atenções no filho varão.<br />

4. Nessa família existe também uma religião, certamente velha tradição dos ancestrais. Uma religião de domingo e<br />

de tempos de doença. Para que a filha, Maria Luísa, sare, Sousa Costa aceita fazer todos os sacrifícios. Deixará até<br />

algumas aventuras fora de casa. Ora deixemos de imoralidades! Sousa Costa nunca teve aventuras, nunca mais terá<br />

aventuras, todos os sacrifícios, porém que minha filha sare!... Sousa Costa pensa em Deus.<br />

5. Carlos é bem o retrato ou exemplo da nossa sexualidade latina ou brasileira. Com todas as suas minúcias e<br />

permissões. Fräulein não compreende bem o amor latino. Para manter a sexualidade de Carlos e a pureza de sua saúde<br />

é que Fräulein foi contratada. Carlos precisava de mulher dentro de casa.<br />

6. Tudo passa e muda. A família burguesa, bem composta, bem construída, mantém sua estabilidade. Um família<br />

imóvel, mas feliz.<br />

Resumo<br />

3


A história, classificada como idílio pelo próprio autor, é sobre a iniciação sexual do protagonista, Carlos Alberto.<br />

Seu pai, Sousa Costa, preocupado em prepará-lo para a vida, contrata uma profissional para isso, Fräulein Elza (o<br />

grande medo de Sousa Costa é que, se seu filho tivesse sua iniciação num prostíbulo, poderia ser explorado pelas<br />

prostitutas ou até se tornar toxicômano por influência delas). Oficialmente, ela entra no lar burguês de Higienópolis para<br />

ser governanta e ensinar alemão aos quatro filhos do casal Sousa Costa, D. Laura.<br />

Muitos aspectos são dignos de nota aqui. Em primeiro lugar, o tema é completamente inédito em nossa literatura e<br />

deve ter sido motivo de certo escândalo em sua época. Além disso, a iniciação sexual tranqüila e segura é vista como<br />

garantia para uma vida madura e até para o estabelecimento de um lar sagrado. Em suma, sexo é a base de tudo.<br />

Freud, portanto, mostra-se marcante.<br />

Pode-se afirmar que a intenção do chefe da família é fadada ao fracasso, pois Carlos não era virgem. Bem antes<br />

de iniciada a história, ele havia tido sua experiência sexual no Ipiranga, em meio à farra de seus amigos, com uma<br />

prostituta. Mas fora um ato mecânico, seco, pressionado pelos amigos. Não tinha sido, pois, uma iniciação completa.<br />

Interessante é que Fräulein (em alemão essa palavra significa “senhorita”, mas também tem o valor e todo o peso<br />

do termo “professora”) realiza seu serviço com dignidade, não enxergando relação com prostituição. Assume estar<br />

realizando uma missão. É um elemento que destoa do olhar de Sousa Costa e até do próprio narrador.<br />

Além disso, esse disfarce, meio que hipócrita, de Fräulein ser na aparência governanta e na verdade iniciadora do<br />

amor, revela toda a complexidade em que a sexualidade humana está mergulhada (as teorias freudianas). Há aqui todo<br />

um jogo de querer e esconder, negar e afirmar, que vai perpassar a relação que Elza estabelecerá naquela casa.<br />

Deve-se notar o comportamento de Sousa Costa. Sua atitude de contratar uma profissional do amor para realizar<br />

os serviços debaixo do seu próprio teto revela determinados valores da burguesia da época. Comporta-se como o novo<br />

rico que acha que o dinheiro pode tomar posse de tudo, até da iniciação sexual. São ricos que ainda não têm, no<br />

entender de Mário de Andrade, estrutura para merecer seu presente status.<br />

Nesse aspecto o autor mostra-se bastante cruel. Ficaram notórias as suas críticas à burguesia paulistana e à sua<br />

mania de tentar ser o que não é ou esconder o que no fundo é. Observa-se a genialidade do narrador ao descrever<br />

Sousa Costa usando brilhantina até no bigode. Assemelha-se à esposa, que também usa produto para alisar o cabelo.<br />

Querem esconder que são tão mestiços quanto o resto do país.<br />

O fato é que Carlos realmente precisava ser educado. Constantemente ao brincar com suas três irmãs mais novas<br />

acabava, sem querer, machucando-as. Há aqui toda uma conotação freudiana, mas o que mais importa é entender que<br />

o protagonista fere porque não sabe controlar sua força. É um desajeitado. Nesse aspecto sua iniciação será importante,<br />

pois servirá para domar seus impulsos, sua energia, sua afetividade.<br />

Fräulein tem plena consciência desse objetivo. Quer ensinar o amor em sua forma tranqüila, sem descontroles,<br />

sem paixões. O problema é que o garoto é aluado. Por mais que Elza se apresente sedutora nos momentos em que os<br />

dois ficam sozinhos na biblioteca (outra crítica é dirigida à burguesia paulistana. Os livros da biblioteca são comprados<br />

por questão de status, muitos nem sequer sendo abertos, chegando alguns até a estarem com as páginas coladas),<br />

estudando alemão, o garoto não percebe as intenções dela, o que a deixa em alguns momentos irritada.<br />

No entanto, o que chega a reforçar a tese da professora, com a convivência brota o interesse do menino pela<br />

mestra. É algo que não se quer revelar claro de primeira. Começa com o interesse que o garoto tem repentinamente por<br />

tudo o que se refere à Alemanha, acelerando até o conhecimento da língua. Se antes tinha um desempenho sofrível,<br />

agora apreende vocabulário de forma acelerada.<br />

Revelando muito bem as características da sexualidade humana (Freud), a atração mostra-se mergulhada num<br />

jogo de avanços e recuos, de desejos e de medos. Os toques de Fräulein tornam-se cada vez mais constantes. A tensão<br />

torna-se máxima quando o menino masturba-se inspirado na professora (é um episódio descrito de forma extremamente<br />

indireta, tangencial, dificultando em muito sua percepção. É necessário um malabarismo mental para entendê-lo. Talvez<br />

a intenção do narrador é, além de evitar o escândalo de ser claro em aspecto tão delicado (várias vezes diz que não<br />

quer produzir obra naturalista), mostrar como a questão está problemática na cabeça de Carlos. Tanto é que pouco após<br />

esse episódio, há a menção a anjos lavando com esponja santa o pecado que acabara de ser cometido. Essa noção de<br />

prazer e pecado, de o instinto desejar algo, mas a educação e a formação religiosa marcarem isso como condenável, é<br />

outro elemento muito analisado por Freud). Toma consciência, portanto, de que a deseja.<br />

Até que, pressionada pelas trapalhadas da família Sousa Costa (Sousa Costa havia descumprido o combinado<br />

quando contratara Fräulein: deixar claro para D. Laura qual era a função da professora. A mãe, alheia ao que estava<br />

acontecendo, estranhara o apego do filho à mestra e vai conversar com a alemã, ingenuamente preocupada com a<br />

possibilidade de o menino fazer besteira. Inconformada com a quebra do prometido, Elza força uma reunião entre ela e<br />

os pais, na qual tem como intenção deixar todo o acerto claro. O resultado é que tudo se complica. Fräulein decepcionase<br />

com a maneira como os “latinos” tratam aquele assunto e os pais de Carlos não sabem exatamente o que fazer, se<br />

querem ou se não querem a governanta), torna-se mais apelativa. O contato corporal é mais intenso, o que assusta<br />

Carlos. Medo e desejo. Delicadamente Fräulein vence. Inicia, ainda que sensualmente, Carlos. Mas em pouco tempo a<br />

iniciação sexual torna-se efetiva. O garoto passa a freqüentar de noite a cama de Elza.<br />

4


Os dois acabam assumindo uma cumplicidade gostosa, o que indica o amadurecimento de Carlos. È uma situação<br />

preocupante, pois Fräulein acaba se envolvendo. Na verdade, o que acontece é que isso acirra o conflito entre os dois<br />

alemães que o narrador afirma que a governanta carrega dentro dela. O primeiro é dedicado ao sonho, à fantasia. É um<br />

coitado que anda sufocado em Elza. O segundo é o prático, que planeja, que é metódico. Esse é quem domina sua<br />

personalidade. Carlos, no entanto, vem fortalecer o primeiro, comprometendo o segundo.<br />

Para complicar sua situação, uma das irmãs de Carlos fica doente. A governanta passa a cuidar dela. Tudo em<br />

sua mão funciona perfeitamente. A família Sousa Costa cria uma enorme dependência em relação à alemã. E ela<br />

começa a se sentir a mãe de todos. Aliás, um papel que ela assumirá no final da narrativa.<br />

Preocupada em não perder controle da situação, decide acelerar o término de sua tarefa. Quer que tudo termine<br />

de forma dramática, pois acredita que a lição sentida no corpo é mais efetiva. O trauma amadurece. Acerta com Sousa<br />

Costa um flagrante.<br />

Os amantes são surpreendidos no quarto da governanta. Dentro da armação, o pai dá uma bronca no filho,<br />

ensinando-o a tomar cuidado, pois sempre havia o risco de gravidez, casamento forçado e outros problemas. Fräulein,<br />

recebidos seus oito contos, parte, mergulhando Carlos num luto monstruoso. Faz parte de seu crescimento.<br />

Após isso, a narrativa flagra Fräulein ensinando um outro garoto da burguesia de Higienópolis, Luís. Não sente<br />

prazer nesse serviço agora, talvez por ter em sua mente Carlos, mas o está seduzindo, abrindo-lhe o caminho para o<br />

amor. É sua profissão. Precisa ser prática para juntar dinheiro e voltar para a Alemanha.<br />

É Carnaval. Em meio à folia de rua, Elza localiza Carlos. Atira-lhe uma serpentina para chamar a sua atenção. O<br />

rapaz a vê e a cumprimenta formalmente. Parecia estar mais ocupado em curtir a garota que lhe faz companhia.<br />

Fräulein tem um misto de emoções. Ao mesmo tempo em que seu lado sonhador sente-se frustrado – o rapaz,<br />

depois do tanto que ocorreu, mostrou-se frio –, sente-se realizada ao lembrar de todos os que iniciou, os que ensinou o<br />

amar, intransitivamente, ou seja, a amar não importa qual seja o objeto, o alvo. É como se quisesse ensinar que o mais<br />

importante é aprender a amar intransitivamente para depois poder amar alguém, transitivamente.<br />

O livro tem uma estrutura incomum: não há capítulos em si, apenas espaços em branco que separam passagens;<br />

a palavra FIM aparece após o Idílio, apenas após isso dá-se a conclusão da história.<br />

2. Capitães da Areia, Jorge Amado<br />

O romance de Jorge Amado é um exemplar perfeito da literatura produzida no Brasil a partir da década de trinta.<br />

Dessa fase, classificada como a Segunda Fase do Modernismo brasileiro (1930/1945), fazem parte autores como José<br />

Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo e o maior de todos: Graciliano Ramos. As obras dessa época -<br />

principalmente as obras em prosa de ficção, classificadas como "Romance de 30" - são marcadas pela denúncia das<br />

condições miseráveis em que vivia a maior parte da população brasileira. Por conta disso, são obras engajadas na<br />

política, marcadas, sobretudo, pelo viés esquerdista, que preconizava mudanças na vida dos desvalidos. Segue uma<br />

apresentação do período literário ao qual pertence "Capitães da Areia", célebre obra do autor baiano.<br />

Jorge Amado é o grande representante do regionalismo no romance de 30 da Bahia. Apesar de imensa e<br />

heterogênea, sua obra é de difícil classificação, cabendo algumas considerações gerais: nota-se que na primeira fase do<br />

autor ocorrem produções mais “políticas e engajadas” à problemática social, enquanto que na segunda sobressai-se o<br />

lado mais lírico e popular do autor; a preocupação social aparece em ambas as fases, sendo mais contundente na<br />

primeira (os problemas sociais abordados têm como cenário tanto a zona urbana da Bahia, Salvador, por exemplo, como<br />

a zona rural); embora siga padrões estéticos já utilizados e não produza qualquer obra considerada inovadora, é Jorge<br />

Amado quem consolida uma literatura de linguajar próximo ao do povo e de personagens extremamente populares,<br />

como malandros, tipos femininos sensuais e heróis.<br />

"Capitães da Areia" também pode ser classificado como um exemplo de romance proletário. Os romances<br />

proletários do autor são ambientados em Salvador e buscam retratar os problemas sociais urbanos. Desde os<br />

trabalhadores mais humildes aos desempregados mais miseráveis, todos servem de personagens às suas obras: Jorge<br />

Amado cria tipos marginalizados para atacar toda uma sociedade. É um modelo de romance que tem no povo mais<br />

humilde o protagonista preferencial.<br />

Nesse contexto, a obra destaca-se também por ser o primeiro romance brasileiro a denunciar as condições de<br />

vida de meninos de rua, os quais, perambulando pelos grandes centros brasileiros, viviam do produto de pequenos<br />

roubos. As vivências dos personagens acabam traduzindo uma orientação ideológica do autor, pois que, ao longo dos<br />

textos, eles tornam-se mais politizados, e a impressão que fica é a de que eles só se realizam a partir do momento que<br />

largam a violência gratuita e individualizada para lutarem por direitos de um coletivo, no momento em que passam a<br />

servir às massas.<br />

5


Resumo e notas<br />

O livro tem um narrador em terceira pessoa. Marca típica dos romances realistas-naturalistas, o narrador é<br />

onisciente (sabe de tudo o que ocorre com todos os personagens) e onipresente (acompanha todos os eventos do<br />

enredo em todos os lugares em que tais eventos ocorram). No início da narrativa, uma série de informes jornalísticos e<br />

cartas escritas à redação do Jornal da Tarde contextualizam a ação apresentando o espaço - Salvador - além de<br />

apresentar o grupo dos "Capitães da Areia", meninos de rua que frequentam o cais da capital baiana, habituados aos<br />

crimes e já famosos em Salvador. As opiniões expressas nas cartas são divergentes: assim como existem aqueles que<br />

defendem os meninos - caso do Padre José Pedro, que escreve criticando o temível Reformatório Baiano - também<br />

há os que defendem uma atitude mais efetiva das autoridades contra as crianças. Por fim, uma polêmica acerca das<br />

condições subumanas do reformatório acaba com uma reportagem que enaltece o grande trabalho realizado pelas<br />

autoridades do reformatório.<br />

A crítica à inoperância do Estado é manifesta: as autoridades ausentam-se, fogem às suas obrigações.<br />

Uma autoridade empurra a responsabilidade para o outra. O juiz diz que a culpa está com os policiais, e estes,<br />

acusam a leniência dos juízes. Ninguém assume a responsabilidade sobre os destinos dessas crianças.<br />

PRIMEIRA PARTE - Sob a lua num velho trapiche abandonado<br />

O Trapiche<br />

Este capítulo conta como Pedro Bala, menino de cerca de 15 anos, se tornou o chefe dos capitães da areia,<br />

descrevendo o lugar onde o grupo, formado por cerca de cem garotos, se esconde da polícia e das pessoas que tentam<br />

capturá-los. É um velho casarão abandonado onde dormem moleques de todas as cores e de idades as mais variadas,<br />

desde os 9 aos 16 anos. Bala conquistou a liderança enfrentando Raimundo, caboclo mais alto e mais velho que Pedro.<br />

Como resultado dessa luta, o líder dos capitães trazia no rosto uma cicatriz de corte de navalha, obra do líder<br />

destronado.<br />

Descreve também as condições de vida dos garotos, por sinal muito ruins, uma vez que passam fome e não têm<br />

roupas, apenas farrapos, sujos e rasgados.<br />

Noite dos capitães da areia<br />

Neste capítulo ocorre a descrição de alguns personagens. Vamos a alguns dos protagonistas do romance:<br />

– Pedro Bala : branco, de cabelos claros, o líder dos capitães é filho de ‘Loiro’, um líder sindical baiano<br />

assassinado numa greve; ao longo do romance, vai se mostrando um líder justo, que não admite roubos entre os<br />

partícipes do grupo, assim como detesta a pederastia. Por outro lado, está habituado a satisfazer seus desejos<br />

"derrubando negrinhas" no areal e estuprando-as sem dó nem piedade. Ainda assim, é o personagem que melhor<br />

encarna o estereótipo do herói de todo o grupo. Veja a forma como, desde o princípio da obra, o narrador refere a<br />

personagem do Bala: "É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia: Pedro Bala. Desde cedo foi chamado<br />

assim, desde seus cinco anos. Hoje tem quinze anos. Há dez que vagabundeia nas ruas da Bahia. Nunca soube de sua<br />

mãe, seu pai morrera de um balaço. Ele ficou sozinho e empregou anos em conhecer a cidade. Hoje sabe de todas as<br />

suas ruas e de todos os seus becos. Não há venda, quitanda, botequim que ele não conheça." Perceba-se, também, o<br />

caráter diferenciado do menino, sua coragem, quando da conquista da liderança do bando:<br />

– João Grande: negro forte, vice-líder do grupo. Não é muito inteligente, mas instintivamente defende os mais<br />

fracos; é considerado o mais humano dentre os meninos, sempre pronto a defender os necessitados, sem que cobre<br />

qualquer favor por conta da boa ação.<br />

– Gato: é o típico malandro baiano, gigolô, sustentado, em parte, por uma prostituta muito mais velha que ele<br />

(Dalva); é do Sergipe, de origem indígena, e migrou para Salvador "na rabada de um trem", viajando clandestinamente.<br />

Na sua chegada ao grupo, um mulato forte, o Boa-Vida, tentou aproveitar-se dele, mas Gato o repudiou: o<br />

homossexualismo, entre os capitães, não era aceito.<br />

– Volta Seca: afilhado de Lampião, o temível cangaceiro nordestino, Volta deseja tornar-se cangaceiro como o<br />

padrinho; é oriundo do sertão, de onde migrou para a cidade de Salvador, mas jamais adaptou-se à vida urbana; odeia<br />

as autoridades;<br />

– Professor: é o intelectual do grupo, tenta fugir de sua condição pela leitura; tem uma grande aptidão para o<br />

desenho, mas a vida miserável que leva não lhe dá outra possibilidade que não a marginalidade. No decorrer do<br />

romance, acaba sendo ajudado por um escritor baiano - Doutor Dantas - que o encaminha para o Rio de Janeiro, onde,<br />

mais tarde, torna-se famoso pintor de telas que retratam a miséria de um grupo de meninos que vivem nas areias do cais<br />

de Salvador. João José é o seu nome.<br />

– Pirulito: é dotado de uma fé verdadeira, e deseja fervorosamente ser padre. Ajudado pelo Padre José Pedro,<br />

acaba conseguindo tornar-se frade. Seu nome é Antônio, nome de santo.<br />

6


– Sem-Pernas: é um menino coxo, é o espião do grupo. Graças ao seu defeito, consegue ganhar a confiança<br />

das pessoas. Frequentemente é acolhido em casas as quais estuda detidamente com o objetivo de facilitar a invasão<br />

das residências para os assaltos dos capitães da areia.<br />

Nessa parte, também é descrita uma espécie de plano do grupo para um novo roubo.<br />

Ponto das Pitangueiras<br />

Escondendo-se dos guardas, esgueirando-se noite adentro pelas ruas de Salvador, os meninos atravessam a<br />

noite varando pela madrugada. No botequim Ponto das Pitangueiras, depois de beberem pinga e jogarem cartas, alguns<br />

integrantes do grupo se encontram com um homem que lhes solicita um trabalho. Os garotos deveriam entrar numa casa<br />

e, sem que fossem percebidos, trocar dois embrulhos.<br />

Um deles já está na casa. É um embrulho com uma fita rosa. Pedro Bala suspeita tratar-se de caso de amantes: o<br />

empregado da casa interceptou uma carta endereçada a sua patroa. A carta, ou embrulho, tratava do caso da patroa<br />

com o remetente. A carta revelaria o caso. A patroa se veria em apuros. Trocar os dois pacotes foi a saída encontrada<br />

pelo remetente para que pudesse fugir do escândalo da revelação de seu caso.<br />

Aos capitães foi confiada a tarefa de resgatar a carta original, deixando, em seu lugar, uma outra, que não<br />

revelasse o caso extraconjugal.<br />

No final, o objetivo dos meninos é alcançado. Eles conseguem trocar os embrulhos e recebem pelo serviço. Ao fim<br />

do capítulo, ecoa, pela noite de Bahia, a sonora gargalhada dos capitães da areia, "que era como um hino do povo<br />

da Bahia".<br />

O autor associa a miséria dos capitães da areia àquela que sofre grande parte do povo baiano: uma vida<br />

miserável, cheia de necessidades.<br />

As luzes do carrossel<br />

Um homem velho e decadente, Nhozinho França, chega à cidade com um velho carrossel japonês. Ainda que<br />

estivesse bem maltratado e muito envelhecido, o carrossel chamava muito a atenção das crianças e de todos que<br />

passassem pela geringonça.<br />

Nhozinho o instala no bairro pobre de Itapagipe, onde conhece Volta-Seca e Sem-Pernas. Os dois são<br />

convidados pelo homem para trabalhar como ajudantes, colocando o carrossel para funcionar. Enquanto um colocasse a<br />

música o outro ligaria o motor. Além do mais, poderiam trocar de lugar quando o quisessem.<br />

Certa noite, os dois garotos conseguem reunir o bando, e todos eles andam um pouco sem que precisem pagar<br />

nada, apenas a gasolina do motor.<br />

É um dos momentos líricos da narrativa, uma passagem esclarecedora: a carência afetiva das crianças é a<br />

causa maior de sua marginalidade. Em sua maioria órfãos, os meninos desfrutavam de algo lúdico, um inocente<br />

passeio no carrossel. Muitos mesmo, experimentavam essa sensação pela primeira vez. Jorge Amado denuncia<br />

a falta de afeto, a falta da brincadeira inocente, destituída de interesse, como deve ser a brincadeira de crianças.<br />

Docas<br />

Boa-Vida e Pedro Bala vão até as docas, onde têm vários amigos. Estão à procura de Querido-de-Deus, o<br />

melhor capoeirista da Bahia. Pescador, Querido-de-Deus voltaria do mar com seu saveiro naquela tardinha.<br />

Os capitães encontram João de Adão, com quem ficam conversando por um bom tempo, e o estivador - antigo<br />

líder grevista dos trabalhadores do porto - começa a falar do pai de Pedro Bala, a quem conhecera bem. O homem fora<br />

baleado liderando uma greve de estivadores. Dizia-se que a mãe de Pedro Bala era de família rica; fora roubada pelo<br />

Loiro, com quem ficara casada até sua morte: seis meses depois de Pedro Bala nascer.<br />

Pedro Bala acaba descobrindo que seu pai trabalhara nas docas, que ele fora um homem respeitado, que lutara<br />

pelos direitos de todos que ali trabalhavam; organizando greves para reivindicar melhores condições de vida aos<br />

trabalhadores, aproximando os trabalhadores para que formassem um grupo forte. O pai de Pedro Bala fora um líder<br />

político popular de ideologia esquerdista.<br />

Após a conversa, Pedro Bala vê em seu pai alguém em quem irá se inspirar; de quem ele deseja seguir o<br />

exemplo: defender as pessoas e lutar pelos direitos dos trabalhadores mais humildes.<br />

Boa-Vida, Pedro Bala e Querido-de-Deus foram para o candomblé de Gantois. Horas depois, caminhando pela<br />

areia, retornando para o trapiche, Pedro Bala surpreende uma garota andando sozinha pela praia na noite. Depois de<br />

uma curta perseguição, o garoto a possui sobre a areia, sob o choro e o sofrimento da menina. Como ela fosse virgem e<br />

lhe pedira muito, Bala preservara a virgindade da garota, penetrando-a por trás.<br />

Dessa forma, fica caracterizada uma brutalidade de Pedro Bala; isso impede que ele seja considerado um<br />

exemplo de herói tradicional, do tipo maniqueísta, que separa, com clareza, o bem do mal.<br />

7


Aventura de Ogum<br />

Nesse capítulo, a mãe de santo, Don’Aninha, pede aos garotos que resgatem a imagem de seu santo, Ogum,<br />

levado pelos guardas para a delegacia. Pedro Bala planeja o golpe e combina com os outros garotos.<br />

O Professor recorda-se de um episódio passado: depois de achar interessante um tipo estrangeiro, bem vestido<br />

com um longo sobretudo, começa a desenhá-lo, esperando ganhar alguns cobres com seu trabalho. Entretanto, ao ver o<br />

desenho que o menino fazia, o homem ficou com raiva, e descarregou sua ira com dois pontapés no Professor. Logo<br />

depois, saiu esbravejando. O menino seguiu o homem do sobretudo e tomou-lhe a roupa. O homem, além de ter o<br />

sobretudo roubado, ainda teve um grande corte na mão, obra do ataque de Professor. Hoje, ainda, trazia sobre si o<br />

sobretudo roubado, que lhe lembrava de tanto ódio daquele homem.<br />

Disfarçado de menino que se perdera do pai, o líder dos capitães tenta passar a noite na delegacia, mas o guarda<br />

não permite, e ele tenta roubar uma carteira na frente do guarda para ser preso. O plano dá certo e ele consegue entrar<br />

na delegacia, onde passa a noite. Depois de conseguir resgatar o santo e escondê-lo, acaba sendo solto na manhã<br />

seguinte levando a imagem escondida consigo.<br />

Deus sorri como um negrinho<br />

Esse capítulo conta a história de mais um dos meninos do grupo, Pirulito, que sonha ser padre. Quando reza, nas<br />

noites depois que praticou seus pequenos crimes, o negrinho, "com o rosto aberto em êxtase (estava como que vestido<br />

de felicidade)." Ele crê naquilo que o padre José Pedro diz: eles não passam de vítimas de sua condição miserável, que<br />

roubam por necessidade, por não ter quem interfira em seu favor, quem lhes garanta comida e abrigo. Com isso, Pirulito<br />

torna-se seletivo: rouba apenas para o seu sustento, e faz orações todos os dias antes de dormir, acha, nessas atitudes,<br />

uma forma de purgar seus pecados. O menino também conversa muito com o padre José Pedro, que nele percebe uma<br />

vocação verdadeira.<br />

O romance descreve mais detidamente as personagens principais. Aprofundam-se as biografias, as referências<br />

ao passado triste daquelas crianças. Passagens referindo as origens dos meninos - Sergipe, sertão nordestino, Salvador<br />

- são comuns, dando a entender que o problema dos menores abandonados não fica restrito à capital baiana.<br />

Família<br />

Sem-Pernas finge ser um bom menino abandonado para entrar na casa de dona Ester, onde é acolhido e recebe amor e<br />

carinho. Inventa um nome qualquer que por acaso era o nome do filho de dona Ester que havia morrido, e ela via em<br />

Sem-Pernas o seu filho morto, por isso, lhe dava todo o amor e carinho, sem nem imaginar que o menino lá estava,<br />

pronto para localizar os objetos de valor para que os outros garotos do bando fossem roubá-los.<br />

Mas o carinho que dona Ester dava a Sem-Pernas fazia ele sentir remorso, mais mesmo assim fez o que estava<br />

combinado, localizou os objetos e o bando entrou na casa e levou tudo o que podiam.<br />

Manhã como um quadro<br />

Participam desse capitulo Pedro Bala e Professor. Professor é o único do grupo que sabe ler, além de desenhar<br />

muito bem, o que faz de vez em quando para ganhar uns trocados. Os dois andam pelas ruas Bahia, param num ponto e<br />

Professor começa fazer desenhos das pessoas que passam pela rua para ganhar dinheiro para o almoço, até que um<br />

homem aparentemente rico, fumando um cigarro com uma vistosa piteira de prata, vê seus desenhos e lhe dá um<br />

cartão, dizendo ao menino que ele tem o dom de desenhar, e que pode ganhar muito dinheiro com isso. O moleque<br />

ainda ganha a piteira de prata em pagamento pelo desenho. O homem que ficara surpreso com o talento do Professor<br />

era um poeta, Doutor Dantas. Bala tenta convencê-lo a procurar o homem, a buscar uma escola de desenho onde<br />

pudesse aprimorar sua arte, mas Professor mostra-se cético, maltratado pela vida de menino miserável sem quaisquer<br />

perspectivas.<br />

Após o homem ir embora Professor rasga o cartão e joga-o fora, dizendo a Pedro Bala que sabe que nenhum<br />

deles vai conseguir fazer algo para mudar seu futuro.<br />

Alastrim<br />

"Omolu mandou a bexiga negra para a cidade". A grave doença se alastrava pela Bahia, atingindo somente os<br />

pobres, pois os ricos haviam tomado a vacina contra essa enfermidade. As pessoas que eram encontradas com a<br />

doença eram levadas para o lazareto - o estabelecimento mantido pela Saúde Pública como um depósito de futuros<br />

cadáveres; quem fosse parar no lazareto tinha destino certo: o cemitério, pois o lugar era uma antessala para a morte.<br />

No grupo dos Capitães da Areia, o primeiro a pegar a doença foi Almiro. Quando os meninos viram as bolhas nos<br />

braços do moleque doente ficaram apavorados. Como Pedro Bala estivesse ausente, Sem-Pernas toma a dianteira do<br />

8


grupo e decide expulsar Almiro, a quem chama de "fresco". Almiro mantinha um relacionamento com o negrinho<br />

Barandão, razão pela qual Sem-Pernas o achincalha. A tensão aumenta. O grupo de meninos começa a cercar Almiro,<br />

Sem-Pernas o humilha, aproxima-se do garoto prestes a expulsá-lo a pontapés. O menino doente é salvo pela<br />

intervenção de Volta Seca; de revólver em punho, o afilhado de Lampião diz aos garotos que esperem a chegada de<br />

Bala.<br />

Quando o líder do grupo chega, decide que o menino doente não irá para o temível lazareto. Entretanto, logo<br />

depois chega Padre José Pedro, que aconselha o grupo de forma diferente: eles devem mandar Almiro para o lazareto,<br />

pois só lá o menino poderia ser tratado, e isso preservaria a saúde do grupo. Bala mostra-se contrariado; não quer abrir<br />

mão de um dos seus companheiros, aos quais trata como filhos, sobre os quais tem responsabilidades. Nesse momento,<br />

alguém do grupo revela que Almiro tem casa. Bala segue até a casa da mãe de Almiro, e a avisa sobre a doença do<br />

menino. A mãe de Almiro resgata o filho do trapiche e o leva para a sua casa.<br />

Ocorre que as pessoas também eram obrigadas a entregar os parentes afetados; caso não cumprissem tal<br />

recomendação seriam presas. A mãe de Almiro acaba sendo traída pelo médico que atende o menino, o qual ainda<br />

denuncia o Padre José Pedro como acobertador de doentes. Por conta disso, o único religioso apiedado dos Capitães<br />

tem de explicar-se ao Cônego. Acusado de comunismo, o padre é severamente repreendido, e vê dissipar-se seu sonho<br />

de ser indicado para administrar uma paróquia.<br />

Boa-Vida é outro menino que contrai a varíola. Ainda que a epidemia tivesse arrefecido, muitas pessoas, levadas<br />

para o lazareto, acabavam morrendo no lugar infestado de doentes de variadas enfermidades contagiosas. Sem hesitar,<br />

o mulato Boa-Vida parte para o lazareto para poupar seus amigos do grupo dos Capitães. Na despedida, o menino pede<br />

ao Professor que um dia lhe desenhe em um dos seus quadros... mas que o retrate sem as bolhas da bexiga.<br />

Dias depois, muito mais magro, mas restabelecido, Boa-Vida retorna: um dos raríssimos sobreviventes do<br />

lazareto.<br />

Destino<br />

Pedro Bala e uns poucos meninos do grupo vão para um bar. Ali, escutam uma discussão sobre a pobreza; para<br />

muitos, algo que jamais irá mudar, algo relacionado ao destino. Pedro discorda, e acaba sendo desrespeitado; Gato diz<br />

que dessa vez vão consumir, para conquistarem respeito, mas o que faz com que as pessoas os considerem de outra<br />

forma é o fato de João de Adão dizer que Pedro Bala é filho do Loiro. Só a menção do nome do famoso líder grevista<br />

assassinado inspira o respeito nos presentes, tamanha era a consideração para com aquele homem que lutou pelo<br />

povo das docas.<br />

Esse é o fim da primeira parte - Sob a lua num velho trapiche abandonado - a maior do livro. Importante<br />

ressaltar o início da obra, apresentada através de recortes de jornais, o que confere à narrativa um caráter<br />

inovador, diferenciado, no qual mesclam-se as linguagens jornalística e romanesca.<br />

SEGUNDA PARTE - Noite da Grande Paz, da Grande Paz dos Teus Olhos<br />

Filha de bexiguento<br />

Dora, "bonita menina, de olhos grandes, cabelo muito loiro, neta de italiano com uma mulata", no esplendor dos<br />

seus 13 anos; e Zé Fuinha, seu irmão, com seis; ficam sozinhos, pois sua mãe, Margarida, morreu há poucos dias de<br />

varíola. Órfãos, pois Estêvão, seu pai já falecera anteriormente da mesma doença, Dora, acompanhada do irmão,<br />

abandona o morro onde moravam para procurar emprego. Entretatno, ninguém quer dar guarida para alguém cujos pais<br />

morreram por causa do alastrim; uma mulher, ex-cliente da mãe de Dora, até lhe dá algum dinheiro por pena da menina,<br />

mas é tudo o que os órfãos conseguem.<br />

Encontrada por João Grande e Professor, o irmão e a menina são levados para o trapiche. Ao chegarem, arma-se<br />

uma enorme confusão, pois só há meninos no grupo, e a chegada de Dora causa muita confusão. Habituados a<br />

"derrubar negrinhas" na areia, os meninos olham a menina com volúpia, mas João Grande e Professor a defendem... a<br />

providencial chegada de Pedro Bala salva a menina do estupro. No primeiro momento, Bala chega a cogitar estuprar a<br />

menina, mas depois de uma longa conversa ela é aceita pelo grupo.<br />

Dora, mãe<br />

Com o passar do tempo Dora foi bem aceita pelo grupo. Cosia a roupa dos meninos, pregava botões, cozinhava,<br />

e, sobretudo, supria aquelas crianças do amor materno. Agora, todos viam na jovem menina uma mãe, pois ela cuidava<br />

dos outros meninos e dava amor e carinho de mãe a todos eles, que passaram a respeitá-la e a dar carinho também.<br />

Dora, irmã e noiva<br />

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Constrangida por sentir-se sustentada pelos Capitães da Areia, Dora decide que vai participar das ações do<br />

grupo. Troca o vestido por uma calça larga, amarrada por um barbante na cintura, e torna-se muito parecida com os<br />

meninos.<br />

Pedro Bala é agredido pelos meninos do grupo de Ezequiel, um grupo de meninos rivais. Dora, assustada com os<br />

ferimentos, cuida dele e acaba beijando-o nos lábios feridos. Os dois deitam-se na areia e Dora diz a Pedro Bala que ele<br />

é seu noivo; mesmo sem saber o que é amar, os dois sentem- se apaixonados.<br />

Pedro Bala reúne seu grupo e segue para dar uma lição ao grupo de Ezequiel, e foi o que fizeram: foram atrás<br />

dos garotos e deram-lhes uma surra para vingar o líder dos Capitães da Areia.<br />

Reformatório<br />

Em uma tentativa de assalto, alguns meninos do grupo são presos; entre eles, estão Pedro Bala, Dora, João<br />

Grande, Sem-pernas e Gato. Mas, no momento em que o fotógrafo tira uma foto para o jornal publicar a prisão dos<br />

temíveis meliantes, João Grande, Sem-pernas e Gato conseguem fugir dos policiais e da delegacia, ficando apenas<br />

Pedro Bala e Dora.<br />

Dora é levada para o orfanato e Pedro Bala para o reformatório, onde ficou dias em uma cafua, espécie de prisão<br />

solitária, com pouca água e quase nada de comida, até que pôde ir para um quarto, onde vários outros meninos<br />

dormiam também. Fica flagrante a miséria dos 'apenados' do reformatório. Os guardas maltratam sistematicamente as<br />

crianças, e a vida torturante daquela instituição, que deveria servir para reeducar as crianças, torna-se patente.<br />

Pedro Bala consegue contato com os meninos de seu grupo, que arrumam uma corda para que ele possa fugir, o<br />

que ele fez durante uma noite.<br />

A notícia sai nos jornais: o chefe dos Capitães da Areia fugiu do reformatório.<br />

Orfanato<br />

Recuperado da estadia no reformatório, de onde saíra muito debilitado, Pedro Bala parte em busca de Dora, presa<br />

no orfanato. Os meninos invadem o local com facilidade e levam a menina, que mesmo doente, ardendo em febre, diz<br />

que vai embora do local com o grupo.<br />

Noite de grande paz<br />

O quadro de Dora se agrava. Durante a noite, a mãe de santo Don’Aninha vai até o trapiche para tentar curar<br />

Dora da febre, enquanto ela tenta espantar a enfermidade da menina uma grande paz reina no trapiche.<br />

Dora, esposa<br />

Don’Aninha vai embora; a febre de Dora não passa; a menina chama Pedro Bala para perto dela, diz que já não é<br />

mais menina, agora já é moça, e pede a ele que a faça sua mulher, colocando a mão do menino sobre seu peito. Ele<br />

tenta evitar, mas seu instinto fala mais alto: após se entregarem aos seus desejos, os dois adormecem. No meio da<br />

noite, Pedro Bala desperta, percebe que Dora está gelada, sem pulso, então dá um grito que atravessa todo o trapiche.<br />

Aos poucos, os outros meninos vão acordando, e se apercebem que Dora havia morrido.<br />

Em seu saveiro, o pescador e capoeirista Querido-de-Deus leva o corpo de Dora para o mar, onde a bela menina<br />

órfã acaba sepultada.<br />

Como uma estrela de loira cabeleira<br />

Inconformado com a morte de seu amor, Pedro Bala nada atrás da pequena embarcação de Querido-de-Deus, o<br />

rapaz parece querer buscar o mesmo destino da namorada. No entanto, o capoeirista o resgata quando já está voltando.<br />

Pedro Bala divisa a passagem de um cometa, e pensa em Dora como uma estrela com uma longa cabeleira loira.<br />

A segunda parte é dedicada à chegada de Dora ao grupo dos meninos, sua importância na dinâmica de<br />

falta de afeto que os meninos vivenciavam, e sua morte prematura. Cabe salientar a denúncia sobre as<br />

condições do reformatório, a responsabilidade do Estado no trato com as crianças desvalidas.<br />

Já a terceira parte refere o destino da maioria dos meninos do grupo, como iremos perceber.<br />

TERCEIRA PARTE - Canção da Bahia, Canção da Liberdade<br />

Vocações<br />

Pouco tempo depois da morte de Dora, alguns dos meninos começam a mudar de vida. Um dos primeiros a partir<br />

é o Professor. Ajudado pelo poeta, Dr. Dantas, o menino parte para o Rio de Janeiro para estudar pintura. Pirulito,<br />

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egenerado, deixa de roubar e torna-se frade; a partir daí, começa a auxiliar o Padre José Pedro, que finalmente<br />

conquistara o direito a assumir uma paróquia. Boa-Vida torna-se um malandro profissional, sambista de primeira.<br />

Canção de amor da vitalina<br />

Uma solteirona endinheirada acaba acolhendo Sem-Pernas. Carente, ela abusa do menino por algumas noites,<br />

traumatizando ainda mais o garoto, que já é muito problemático. Noite após noite o menino tenta possuir a solteirona,<br />

mas ela preserva sua honra, e não lhe permite senão um gozo entrecortado, espúrio, que o humilha ainda mais. Depois<br />

de passar algum tempo dessa forma, o garoto foge com a chave, e na primeira oportunidade, os Capitães invadem a<br />

casa e roubam tudo o que conseguem carregar, deixando a velha vitalina enfurecida.<br />

Este é um dos últimos roubos que alguns integrantes do grupo realizam na história.<br />

Na rabada de um trem<br />

Gato e Volta-Seca são mais dois que deixam o grupo. Gato vai para Ilhéus, a capital endinheirada dos coronéis<br />

do cacau, acompanhado de Dalva, sua amante prostituta; os dois irão tentar ganhar a vida por lá, passando a perna nos<br />

grandes fazendeiros.<br />

Já Volta-Seca parte para o nordeste na rabada de um trem. Quer se juntar ao seu padrinho, o temível Lampião.<br />

Na viagem, o trem é assaltado por um bando de cangaceiros. Para surpresa do menino, os assaltantes são liderados<br />

pelo seu padrinho, que o reconhece e o acolhe como um dos seus cangaceiros. Dessa forma, Volta-Seca torna-se um<br />

cangaceiro, e, diga-se de passgem, um dos mais temíveis, com mais de sessenta mortes nas costas. Sua fama é<br />

tamanha que ele acaba virando notícia de jornal. Nessa notícia, inclusive, associam o mais jovem cangaceiro do bando<br />

de Lampião ao grupo dos Capitães da Areia.<br />

Como um trapezista de circo<br />

Sem-Pernas tenta entrar numa casa para roubar, mas ali havia muitos guardas que saem em sua perseguição.<br />

Por causa de seu defeito físico, a perna manca, o rapaz não consegue correr muito. No entanto, enquanto foge, lembrase<br />

com amargura de um episódio que o marcara por demais: durante uma das vezes em que fora preso, ele fora surrado<br />

dentro da delegacia por um bando de policiais que ria dele, que o humilhava, enquanto descia o cassetete em suas<br />

costas. Dessa vez vai ser diferente, pensa o menino, dessa vez não me pegarão. Acompanhado por cachorro por quem<br />

tinha alguma consideração, Sem-Pernas chega até o grande elevador, sobe na pequena mureta de proteção, vira-se<br />

para os guardas sorrindo com ódio, cospe em um deles e salta de costas como um trapezista, espatifando-se contra a<br />

montanha: esse foi seu fim.<br />

Notícias de jornal<br />

Uma série de noticias de jornal faz referência aos meninos que deixaram o bando, como Gato, preso, Volta-Seca,<br />

também capturado, e do Professor, que ficou famoso no Rio de Janeiro por uma exposição de seus quadros.<br />

Companheiros<br />

Os condutores de bonde estão em greve. Os estivadores, solidários ao movimento dos condutores, também<br />

aderem à paralisação, liderados por João de Adão. O medo é que os fura-greves enfraqueçam o movimento. Alguns<br />

estudantes universitários estão do lado dos grevistas, e discutem sobre o problema. João de Adão lhes fala dos<br />

meninos, e, acompanhado de Alberto, um dos estudantes, o líder dos estivadores segue até o trapiche. Ali, conversando<br />

com Pedro Bala, o estudante fica admirado com a liderança do menino, e chama os Capitães da Areia para ajudarem,<br />

impedindo de a ocorrência de furos na greve. É o começo da transformação por que passa Pedro Bala: de líder dos<br />

meninos de rua, passa à condição de liderança política.<br />

Os atabaques ressoam como clarins de guerra<br />

Depois da greve, o estudante que pediu a ajuda dos meninos continuou a ir visitá-los no trapiche. Com o tempo,<br />

Pedro Bala percebe que algo o chama, uma preocupação maior do que furtar objetos para sobreviver; então, deixa o<br />

grupo e vai em busca de sua missão, ser um líder político igual ao seu pai.<br />

...Uma pátria e uma família<br />

Pedro Bala torna-se um militante proletário. Com isso, sua vida não mudou muito, pois continuou a fugir da<br />

polícia, a diferença era que agora ele defendia uma causa política, defendia as pessoas que precisavam de alguém que<br />

falasse por elas, e Pedro Bala era essa pessoa. Tornara-se, enfim, um homem que seguia os passos do pai, o "Loiro",<br />

uma grande liderança proletária.<br />

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3. Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade<br />

"Porque este mundo é um passatempo que nós temos essa é a verdade" (130. Reserva)<br />

PARTE 1 - "À Guisa de Prefácio", o texto de apresentação do romance.<br />

"À Guisa de Prefácio" é uma das muitas ironias do romance "Memórias Sentimentais de João Miramar". Um<br />

prefácio é um texto preliminar escrito pelo autor ou por outrem e colocado no começo de um livro. No caso da obra de<br />

Oswald de Andrade, o autor do prefácio é um personagem, Machado Penumbra, cuja linguagem lembra muito aquela<br />

atacada pelos modernistas da Semana de Arte Moderna, realizada em 1922 com o objetivo de demarcar o início do<br />

movimento modernista brasileiro. Machado Penumbra é um personagem de importância no contexto do romance. Ainda<br />

que faça uso da linguagem empolada e preciosista, marcada pelas palavras raras e pelas expressões latinas<br />

características dos intelectuais brasileiros do início do século XX, ele reconhece a importância da atualização das artes<br />

nacionais sob a influência da modernidade, opinião expressa em passagens como esta: "Torna-se lógico que o estilo dos<br />

escritores acompanhe a evolução emocional dos surtos humanos." Assim sendo, esse fragmento inicial é<br />

importantíssimo para que possamos perceber o caráter revolucionário do primeiro romance modernista<br />

brasileiro.<br />

PARTE 2 - INFÂNCIA DE JOÃO MIRAMAR<br />

Já o enredo da obra de Oswald tem início com a infância do narrador-protagonista. Sua primeira recordação tem<br />

relação com a religiosidade católica da mãe. Além disso, a referência ao apito do trem ("Urbanos apitando nas noites<br />

cheias" - capítulo 1. O Pensieroso) é um dos símbolos desta modernidade do princípio do século XX. Sendo assim, um<br />

dos objetivos do romance é justamente retratar o processo de modernização por que passava uma parcela do Brasil.<br />

As memórias vão se sucedendo, destacando o espaço da narrativa (2. Éden; "A cidade de São Paulo não era um<br />

livro..."), associando-o ao universo infantil, que a tudo encara como novidade. Assim explica-se a referência ao Éden, o<br />

paraíso bíblico, associado à capital paulista.<br />

O terceiro capítulo, "Gare do Infinito", relata a morte do pai. Nessa passagem, uma das grandes frases do<br />

romance: "No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu<br />

pai." De forma poética, fazendo uso de uma linguagem infantil, o narrador associa a morte do pai a uma "estação" da<br />

existência: a palavra "gare", que nomeia o capítulo, significa estação de trem em francês.<br />

Depois de um capítulo em que refere o deslumbramento infantil diante do espetáculo do circo (4. Gatunos de<br />

Crianças), o narrador-menino anota as primeiras estripulias ocorridas quando da entrada na escola. A ida à escola era<br />

marcada pela companhia de Maria da Glória, a velha babá negra dos tempos dos escravos, "preta pequenina do peso<br />

das cadeias", que o levava e trazia para casa. Marmanjo, o menino já não podia mais estudar na escola mista (de<br />

meninos e meninas) de D. Matilde. Por conta disso, foi ter aulas com um professor Carvalho, mas esse professor não<br />

durou muito: como fosse um ateu convicto, a mãe acha melhor transferir o filho para os cuidados do Monsieur Violet. O<br />

professor francês tinha uma filha, Madô, por quem o menino se apaixona. A referência ao primeiro amor é outra grande<br />

passagem poética do romance de Oswald: "Amanhecia na saleta abandonada do mestre. Era Madô (...). Ela era um jorro<br />

das mangas rendadas das pernas louras abertas." A morte do professor acaba com qualquer possibilidade de romance,<br />

e o menino João, já mais crescido, entra no colégio dos padres, onde conhece novos amigos, dentre eles José<br />

Chelinini, personagem importante na sequência da trama.<br />

PARTE 3 - JUVENTUDE NO COLÉGIO e VIDA UNIVERSITÁRIA<br />

A chegada da família de Tia Gabriela - Célia, Nair, Cotita e Pantico (os primos) - é assinalada no capítulo 14,<br />

Mudança. Ainda que fosse mais novo que o narrador, o primo Pantico era um menino muito mais levado, além de ser<br />

mais chegado aos serviçais da casa, Pantico "amava vagamundear": faltava-lhe aquela educação tradicional. Crescera e<br />

se criara na fazenda da família - Fazenda Nova-Lombardia, o que explicava sua deseducação. Aos poucos, o narrador<br />

acusa a influência da "má companhia" do primo, razão pela qual é advertido pela mãe. As meninas foram para a escola<br />

de moças, de onde escreviam para os dois meninos, contando as novidades do colégio da cidade.<br />

O capítulo 18, Informações, apresenta o nome do narrador na passagem em que um amigo do colégio, Gustavo<br />

Dalbert, refere o desejo de ser artista e morar em Paris. "Ele (Gustavo Dalbert) era músico e ia morar em Paris comigo, o<br />

amigo e jovem poeta João Miramar."<br />

Depois de tantas descobertas, a formatura no colegial, referida no capítulo 20, Rumo Sensacional, separa os<br />

amigos de colégio. Tem início a vida universitária do narrador, as farras em espetáculos teatrais, óperas e bordéis, festas<br />

características de jovens estudantes de elite, filhos de comerciantes, pecuaristas, cafeicultores etc. Acompanhado de<br />

12


Dalbert, Miramar vai redescobrindo o antigo Éden da infância, agora revelado sob o novo olhar do estudante que deseja<br />

tornar-se escritor. Nessa fase, vai a Santos pela primeira vez, e pela primeira vez passa o Natal longe de casa.<br />

Na volta da viagem, a mãe, doente, recomenda-lhe uma viagem pela Europa. é o início de um périplo pelo Velho<br />

Continente. Assim como todos os que pertenciam a sua classe social, Miramar, no vapor Marta, embarca em Santos, de<br />

onde parte para o Rio de Janeiro, referido no capítulo 29: "O Pão de Açúcar era um teorema geométrico."<br />

PARTE 4 - VIAGEM À EUROPA: da boêmia Montmartre, Miramar redescobre o Brasil.<br />

A viagem segue pelo mar aberto, enquanto o narrador relata a fauna que povoa o navio Marta. Mulheres grávidas,<br />

jovens cantoras de cabaré, universitários de outras nacionalidades. A tudo o narrador registra: "As antenas ruivas do<br />

capitão do Marta sondavam naufrágios nos rochedos de Madame de Sevri." Entre esses passageiros, uma senhora<br />

muito espalhafatosa, Madama Rocambola, transitava pelo navio acompanhada da filha, Rolah. Seduzido pela beleza da<br />

moça europeia, Miramar a anuncia da seguinte forma: "E Rolah trazia ao meu céu de cinema um destino invencível de<br />

letra de câmbio." Perceba-se a imediata associação do amor com o dinheiro: Rolah, assim como sua mãe, eram duas<br />

aproveitadoras.<br />

O capítulo 34, Tenerife, assinala a chegada à terra depois de dez dias de travessia. Tem início o circuito europeu<br />

pelas grandes capitais e cidades representativas. Barcelona e o parque Montjuich marcam as primeiras impressões do<br />

narrador, que também refere o encontro com Dalbert, em Paris, onde os dois festejam pela Rue de Rivoli, tradicional<br />

ponto de encontro de prostitutas na capital francesa àquela época.<br />

Munique, Alemanha; Milão, Roma, Sorrento, Veneza, Itália; Mont-Cenis, alpes suíços; Aix, Riviera, França; o<br />

narrador viaja por todas as principais cidades da Europa. Em Londres, perplexo diante da modernidade dos "Elevadores<br />

klaxons cabs tubes" e mais uma série de referências à urbanidade da capital inglesa, Miramar recebe um telegrama com<br />

uma passagem de volta: deve retornar o quanto antes, pois o estado de saúde de sua mãe havia piorado. Viaja para a<br />

França, onde presencia toda a revolução modernista sendo gestada pelos grandes artistas do princípio do século XX:<br />

Picasso, Satie, Jean Cocteau, e nesse contexto apercebe-se da forma como a nostalgia da terra brasileira insiste em<br />

chamá-lo: "Meus olhos vão buscando lembranças/Como gravatas achadas/Nostalgias brasileiras/São moscas na sopa<br />

de meus itinerários(...)". Cabe ressaltar que com Oswald ocorreu um fato muito parecido: analisando o Brasil da<br />

longínqua Europa, quando de sua primeira viagem ao Velho Continente em 1912, o escritor descobriu a beleza<br />

rara, dificilmente perceptível para quem aqui estivesse. Foi por conta dessa descoberta que retornou para o país<br />

e deu início à movimentação que culminou com o surgimento do Modernismo em nosso país. Logo, é importante<br />

ressaltar que o romance é marcado por aspectos autobiográficos: a vida do narrador-personagem confunde-se<br />

com a vida movimentada do autor do romance, Oswald de Andrade.<br />

Depois de passar por alguns portos, Miramar desembarca no Brasil para saber-se órfão de mãe.<br />

PARTE 5 - CASAMENTO, PATERNIDADE e "RESPONSABILIDADES" da VIDA ADULTA.<br />

Agora, adulto, independente, Miramar viaja para a Fazenda Nova-Lombardia, onde começa a cortejar a prima,<br />

Célia. Bailes, filmes de cinema, encontros e namoros no sofá da sala da fazenda vão ilustrando a paixão dos dois<br />

primos, até que acontece o casamento: "O Forde levou-nos para igreja e notário entre matos derrubados e a vasta<br />

promessa das primeiras culturas." (61. Comprometimento). Logo, a fazenda não parece própria para o entusiasmo dos<br />

recém-casados, sempre incomodados pela presença de Nair e Cotita, irmãs de Célia; ou ainda, envergonhados pelo<br />

olhar da Tia Gabriela. Por conta disso, o jovem casal decide voltar para São Paulo, deixando a imensa fazenda repleta<br />

de cafezais, rica propriedade de família tradicional.<br />

Pantico, o filho de Gabriela, estava na Europa, estudando em colégio interno. A sogra de Miramar, acompanhada<br />

das filhas, Nair e Cotita, decide partir para lá com o objetivo de visitar o filho, além de permitir-se uma estadia mais<br />

demorada no Velho Continente. Miramar e Célia acompanham o grupo até o Rio de Janeiro, onde a família separa-se.<br />

Gabriela, acompanhada das filhas, parte para a Europa; Célia e o narrador aproveitam para viver uma segunda lua de<br />

mel na Cidade Maravilhosa: "Beiramarávamos em auto pelo espelho de aluguel arborizado das avenidas marinhas sem<br />

sol."(66. Botafogo Etc.). Uma carta de Pantico, escrita em uma linguagem que denota pouca intimidade com quaisquer<br />

regras gramaticais, noticia a chegada da mãe e das irmãs do rapaz à Europa: "Mamãe e manas chegou boas. (...) Aqui<br />

neste colegio nao tenho nenhum amigos, é só crilas."(68. Ressurreição do Pantico)<br />

A visita do Dr. Pôncio Pilatos interrompe o longo romance no Rio. Eminente estudioso do Instituto Histórico e<br />

Geográfico, Pilatos tenta convencer Miramar a participar daquele seleto clube paulista que reunia "a fina flor" da<br />

intelectualidade brasileira. Entretanto, o narrador, ainda que tivesse participado de algumas reuniões, sentia-se pouco<br />

propenso a formar ao lado dos sábios pesquisadores. Homem mais afeito aos bilhares e à vida boêmia, Miramar<br />

testemunha discursos em uma linguagem imponente, como aquela usada pelo escritor Machado Penumbra - um dos<br />

mais destacados membros do Instituto Histórico - no preâmbulo do livro, "À Guisa de Prefácio". Além de Machado<br />

13


Penumbra e do Dr. Pôncio Pilatos da Glória, participavam do Instituto "o fino poeta", Senhor Fíleas; o médico da família,<br />

Dr. Pepe Esborracha; além do intelectual Dr. Mandarim Pedroso.<br />

Uma carta de Tia Gabriela trouxe notícias da Europa. Pantico levara um tapa de um padre, e a mãe o retirara do<br />

colégio. Entre relatos de jantares em restaurantes finos e visitas ao Louvre, Tia Gabriela também informa o casal que<br />

conhecera o amigo de colégio do genro, Sr. Conde José Chelinini, de quem gostara muito.<br />

75. Natal "Minha sogra ficou avó." Desta maneira, de forma sintética e econômica, o narrador anuncia o<br />

nascimento de Celiazinha, a primeira filha do casal. Dentre as muitas felicitações, uma carta escrita pelo empregado da<br />

administradora da fazenda, Minão Silva, felicita os jovens pais da menina: "Cordeais saudações. Fiz contrato com os<br />

colonos espanhol que saiu da Fazenda Canadá assim mesmo perciso de algumas familhas a porca pintada deu cria<br />

sento por tudo 9 leitão e o Migué Turco pediu demissão arrecolhi na ceva mais três capadete...". Perceba-se o uso que<br />

o autor faz da linguagem característica do caipira: marcada pela influência da oralidade, além da total ausência<br />

de pontuação. Assim, o romance vai explorando diferentes tipos de linguagem, formando uma coletânea das<br />

diversas variantes linguísticas que povoam o Brasil. Além disso, cabe salientar a referência aos migrantes<br />

europeus quando da referência aos "colonos espanhol": o Brasil daquela época começava a habituar-se aos<br />

italianos, alemães, poloneses, enfim, um mosaico de nacionalidades buscava refúgio em nosso país.<br />

O capítulo 79. Terremoto, assinala o princípio da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Àquela época, Pantico<br />

estava na Bélgica e presenciara a invasão alemã. Do Brasil, Miramar achava que a guerra não duraria muito, pois que<br />

sabia-se da "força descomunal" do exército francês. Tal profecia, porém, não se realiza: a debandada de muitos<br />

soldados franceses permite aos alemães invadirem a França a ponto de ameaçarem Paris. O conflito espalha-se pela<br />

Europa. Acossados pela guerra, muitos europeus fogem para o Brasil. Em meio a essa leva, desembarca em<br />

Pernambuco a famosa estrela cinematográfica Mlle. Rolah.<br />

Não bastassem as péssimas informações sobre a guerra, começam rumores em São Paulo acerca de uma<br />

quebradeira econômica geral. Miramar conversa com o sócio do seu principal credor, Mendes Mindela, sobre a<br />

possibilidade de uma bancarrota generalizada. Mindela, sócio da Trancoso Carvalho & Comp. o convence do contrário:<br />

"...qual o quê - São Paulo é como um gato, caía de um quinto andar e saía miando." (84. A Balança).<br />

Na Europa, mais especificamente em Nice, Tia Gabriela acaba se casando com o jovem amigo de colégio de<br />

Miramar, o Conde José Chelinini. A diferença de idade entre os dois recém casados é gritante. No Brasil, o médico da<br />

família, Dr. Pepe Esborracha, acusa o conde de aproveitador. Apesar de tudo, Célia, assim como Miramar, não se<br />

pronunciam acerca do arranjo nupcial de Tia Gabriela.<br />

PARTE 6 - O RETORNO DA AMANTE EUROPEIA, ROLAH, & A INDÚSTRIA DO CINEMA.<br />

Rolah chega a São Paulo e instala-se no Hotel Suíço, onde passa a encontrar-se com Miramar. Como visse que a<br />

situação poderia ser descoberta, o marido de Célia leva Rolah e sua mãe, Madama Rocambola, para um bangalô no<br />

retirado bairro de Perdizes, onde o casal de amantes encontra-se diariamente: "E branca e nua dos pequenos seios em<br />

relevo às coxas cerradas sobre a floração fulva do sexo, permaneceu numa postura inocente de oferenda." (95.<br />

Promessa Pelada)<br />

Ao receber proposta de sociedade na Empresa Cinematográfica Cubatense, Miramar decide aceitar a<br />

empreitada, e transfere Rolah e sua mãe para a cidade de Santos, onde ficavam os estúdios da companhia. Seu sócio,<br />

Menudo, festejava o negócio: "Vamos a nos quedar unos milionários, hombre, con la Cubatense! (95. História de Film<br />

Histórico)" Como a empreitada parecesse promissora, Miramar saca uma grande soma com seu credor, Carvalho<br />

Trancoso, e muda o nome da companhia para "Piaçaguera Lightning and Famous Company Pictures of São Paulo<br />

and Around".<br />

Nesse ínterim, Célia começa a reclamar das constantes somas enviadas à Europa para socorrer as finanças da<br />

mãe recém casada. Além disso, o preço da café continua caindo vertiginosamente, prenunciando a crise que por aqui se<br />

abateu, àquela época. Simultaneamente, no capítulo 105, Corretorópolis, a especulação financeira torna milionários<br />

especuladores que, do dia para a noite, compram dezenas de ricas propriedades. Enquanto o dinheiro míngua para<br />

cafeicultores (as tradicionais famílias paulistas), sobra para os "financistas" que emprestam a juros altíssimos, como a<br />

agência Trancoso Carvalho & Comp . As discussões familiares tornam-se mais acaloradas, e o narrador discute com<br />

Célia, dizendo-lhe que há de ficar rico com os filmes que produzir. É nessa passagem que o narrador assinala a<br />

decadência de toda uma classe de famílias tradicionais ligadas à cafeicultura.<br />

O caso com a amante Rolah é soberbamente referido nesta passagem: "E diante do grande mar emergido dum<br />

rochedo e da ilha desgrenhada dos urubus, éramos a paisagem na paisagem."(110. Fita em Séries). Dividido entre<br />

Santos, onde, além da empresa cinematográfica, instalara a amante; e a fazenda, onde estavam Célia e Celiazinha,<br />

Miramar começa a distanciar-se da vida familiar. É justamente nesse momento, que desembarcam da Europa Tia<br />

Gabriela e o esposo, José Chelinini, junto das duas filhas da mãe de Célia, Nair e Cotita. Denotando um ar de desilusão,<br />

Tia Gabriela segue para São Paulo acompanhada de Miramar e do resto da família. Chegando à capital paulista, um<br />

14


jantar em comemoração ao casamento é realizado. A família do Conde José Chelinini também comparece, e pode-se<br />

perceber a grosseria através das inúmeras gafes dos italianos durante o jantar.<br />

Na Europa, a situação da guerra pode interferir ainda mais na cotação do preço do café. O narrador assinala o<br />

jogo de risco que se tornara qualquer investimento, no capítulo 108. Jogo do Bicho. Enquanto as festas e recepções no<br />

Municipal continuam a ocorrer normalmente, a elite brasileira vive o fim de um período de fausto e riqueza. Como um dos<br />

representantes desta classe, Miramar joga tudo na sua empresa cinematográfica, promessa de grandes lucros com a<br />

produção de muitos sucessos. Sempre é bom lembrar que, àquela época, princípio do século XX, o cinema surgia como<br />

um negócio lucrativo, pois as massas, seduzidas pelas histórias em celuloide, pagavam o preço que fosse para assistir<br />

aos seus ídolos.<br />

Em Santos, uma briga entre os outros sócios de Miramar na companhia cinematográfica leva a empresa à<br />

falência. Miramar acabava de perder vinte e cinco contos de réis. Um chamado da fazenda faz com que o narrador<br />

retorne apressado até o interior paulista: a mulher havia sido chifrada por um touro, ficara com a perna muito<br />

machucada. Ao chegar à fazenda, o casal discute. Célia diz a Miramar que este anda muito distante, sem nem se<br />

preocupar com a filha, que vive doente. A decadência do narrador é traduzida em uma fala de Célia: "Você está<br />

apaixonado por essa atriz, Joãozinho! Conte tudo. Acho você envelhecido, preocupado, com cara de viciado,<br />

Joãozinho!" (129. ATO III. CENA I)<br />

"O Carnaval acendeu o charuto roliço do Britinho" assinala a chegada da maior festa brasileira. Em meio às<br />

serpentinas e às marchinhas, "Rolah ria como um animal espancado". É o idílio dos amantes, seguindo o cordão dos<br />

foliões pelas ruas e avenidas de São Paulo. Uma carta, entretanto, vem despertar o narrador de seu romance adúltero:<br />

Célia lhe escreve, relatando o primeiro carnaval de Celiazinha. Perceba-se que a distância entre marido e mulher<br />

aumenta. Não demorou muito e outra carta, com teor bem diferente, exigia a presença do marido na fazenda da família:<br />

Célia descobrira todo o romance de Miramar e Rolah. No capítulo 141. O Grande Divorciador, o registro do divórcio do<br />

casal. Ainda que Célia continuasse rica, pois o casamento fora feito com separação de bens, João Miramar acaba<br />

completamente falido, sobretudo pela falência dos seus empreendimentos. Até mesmo um romance que Miramar estava<br />

escrevendo, acaba sendo distribuído gratuitamente para os serviçais e amigos, pois torna-se um fracasso publicitário.<br />

Nesse sentido, o capítulo 146.Verbo Crackar descreve de forma magistral o estado em que se encontra o narradorprotagonista:<br />

"Eu empobreço de repente/Tu enriqueces por minha causa/Ele azula para os sertão/Nós entramos em<br />

concordata/Vós protestais por preferência/Eles escafedem a massa/ Sê pirata/Sede trouxas (...) Oxalá que eu tivesse<br />

sabido que esse verbo era irregular."<br />

Além de todos esses dissabores, Madama Rocambola, a mãe de Rolah entrega um bilhete da filha para o<br />

narrador: "Era o amarrotado fora definitivo de Rolah, a cheia de gigolôs." (144. Grooggy = 'fracassado')<br />

A falência é geral. O Conde Chelinini desaparece, endividado até o pescoço. Outro amigo de farras e<br />

empreendimentos falidos, Britinho (Teodomiro Pelágio de Brito), acaba assassinado. Nair, irmã de Célia, casara-se com<br />

um rico empresário carioca. Voltava para intervir na partilha da herança de família, e acabara com as possibilidades de<br />

Miramar conseguir mais quaisquer benefícios da família de sua esposa. Pior que isso: a guarda de Celiazinha é confiada<br />

à mãe sem que Miramar possa visitar a própria filha. O grande industrial do cinema, a grande promessa das letras<br />

brasileiras, o grande amante das estrelas de cinema afundava-se cada vez mais.<br />

Machado Penumbra, diretor de um jornal, convida Miramar para trabalhar com ele. Sem outra opção, o boa-vida<br />

acaba aceitando. Certo dia, na redação, anunciam-lhe a morte da sogra, Tia Gabriela. Miramar fica sabendo que, graças<br />

a um conluio entre o marido de Nair e o médico de família, o testamento acaba parando às mãos de Nair e de Célia,<br />

lesando Pantico e Cotita. Dessa forma, muitas derrocadas de famílias tradicionais dispuseram irmão contra irmão por<br />

conta da herança que restara.<br />

Na celebração de um novo ano, na redação do jornal em que Miramar trabalhava, o narrador fica sabendo do<br />

Recreio Pingue-Pongue, uma sociedade de moças - a mais seleta elite feminina de São Paulo - administrada pelo Dr.<br />

Mandarim Pedroso. A essa altura da narrativa, Celiazinha tem seis anos de idade, e Miramar acaba cogitando a hipótese<br />

de inscrevê-la na distinta sociedade. A noitada de réveillon termina com um discurso de Machado Penumbra.<br />

As conversas com os amigos fazem com que Miramar se aperceba da importância que Celiazinha, sua filha, tem<br />

no seu processo de amadurecimento. É nessa altura que o narrador protagonista se dá conta da missão de resguardar<br />

"a filhinha de olhos claros/abertos para os dias a vir". Assim, consuma-se o amadurecimento de João Miramar: com a<br />

descoberta da paternidade. A partir de então, ele passa a levar a filha ao jardim de infância, à missa e delicia-se com a<br />

doce sensação que o crescimento, as perguntas, a curiosidade e o carinho da filha lhe proporcionam.<br />

O capítulo 160. Discurso análogo ao apagamento da luz durante o fox-trot pelo Dr. Mandarim Pedroso, está<br />

inserido no mesmo contexto do prefácio de Machado Penumbra. Trata-se de um discurso recheado de expressões<br />

antiquadas, citações em latim, referências clássicas, enfim, uma série de aspectos muito criticados pelo grupo<br />

modernista da Semana de Arte Moderna de 1922. Perceba a importância dessa passagem: assim como no prefácio<br />

do livro, o desfecho da narrativa abre espaço para um discurso empolado, preciosista, marcado por uma sintaxe<br />

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considerada antiquada por Modernistas como Oswald de Andrade. Dessa forma, evidencia-se a estratégia de<br />

ironizar, satirizar um tipo de discurso ultrapassado.<br />

Ao final do romance, no capítulo 163 (Entrevista Entrevista), o narrador, reportando-se a um interlocutor, diz que<br />

seu projeto de obra literária não prosseguirá. Dessa forma, o desfecho da narrativa assinala mais um fracasso de<br />

Miramar. No entanto, esse comentário final perde impacto quando o protagonista, ao comentar que lera seu romance<br />

para o crítico Dr. Pilatos, recebe um elogio deste: "O meu livro lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no<br />

estilo."<br />

CARACTERÍSTICAS DO ROMANCE:<br />

• Estrutura de um romance modernista;<br />

• Capítulos curtíssimos escritos em prosa e capítulos curtíssimos escritos em verso<br />

RECURSOS EXPRESSIVOS inspirados pela POESIA:<br />

• Ao longo da obra Oswald abusa de recursos de linguagem, muitas vezes misturando-os com um poder de<br />

síntese invejável.<br />

• METONÍMIA - "... de geografia aberta sobre a mesa..." (Cap. 79) = mapa<br />

• ONOMATOPEIA - "...No silêncio tique-taque..." (Cap. 8) (Antítese:- silêncio/barulho)<br />

• "Dez horas da noite, o relógio farto batia dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão!<br />

• HIPÉRBATO - "... mapas do secreto Mundo." (Cap. 9) ao invés de "...mapas do Mundo secreto."<br />

• ALITERAÇÃO - "...punha patetismos pretos..." (Cap. 22)<br />

• PARADOXO - "...Companhia Industrial e Segurista de Imóveis Móveis..." (Cap. 119)<br />

• PROSOPOPEIA - "... Depois casas baixas desanimaram a planície cansada." (Cap. 113)<br />

• SINESTESIA - "...de janelas cerradas e acesos silêncios." (Cap. 153)<br />

• O emprego de TROCADILHOS é comum na obra:- "... sátiras à sociedade de sátiros..." (Cap. 72)<br />

• “Descemos de cigarro vagaroso pelos círculos da cidade pelas cruzes dos bars em tête-à-tête com o<br />

futuro.”<br />

O ESTILO E A LINGUAGEM:<br />

• o estilo telegráfico e a metáfora lancinante = ESTILO REVOLUCIONÁRIO;<br />

“25. AMIGO DA FAMÍLIA”<br />

“Que nem alma danada vi descer o primeiro Natal longe de casa na consolação duma dedicatória com fotografia.<br />

E a despedida esfacelou-se num corredor escuro de cabinas.<br />

• Montagem fragmentária = impossibilita leitura tradicional, linear = ESTILO REVOLUCIONÁRIO 1;<br />

“28 Porto Saído”<br />

• Barracões de zinco das docas retas no sol pregaram-me como um rótulo no bulício de carregadores e<br />

curiosos pois o Marta largaria só na noite tropical.<br />

• (...)<br />

• 163 episódios-fragmentos (ou capítulos-instante) numerados = ESTILO REVOLUCIONÁRIO 2;<br />

• violação das regras comuns de pontuação = ESTILO REVOLUCIONÁRIO 3;<br />

“25. AMIGO DA FAMÍLIA”<br />

“Pantico norte-americava.”<br />

• neologismos (palavras inventadas = norte-americava = viajava pelos Estados Unidos) e estrutura frasal<br />

incomum e inovadora = ESTILO REVOLUCIONÁRIO 4<br />

• O romance modernista de Oswald de Andrade e suas inovações estilísticas<br />

“Memórias Sentimentais de João Miramar”, romance modernista de Oswald de Andrade, é inovador por uma série<br />

de experimentos linguísticos realizados pelo autor. O estilo revolucionário é perceptível pela elaboração de toda a obra<br />

em capítulos curtíssimos, ou episódios-fragmentos. Essa distribuição em capítulos tão curtos dificulta uma leitura<br />

tradicional, linear: trata-se de um romance que cobra postura inovadora também do leitor. Além disso, não há qualquer<br />

respeito para com as regras de pontuação. Com isso, Oswald pretende sugerir um ritmo semelhante ao da fala. Outro<br />

aspecto igualmente revolucionário é a invenção de palavras: neologismos perpassam toda a obra, como que a justificar<br />

que um novo mundo – o universo do Modernismo – exige palavras novas que o traduzam. O mundo do telégrafo, do<br />

automóvel, do cinema e da velocidade pedia passagem.<br />

ROMANCE = NARRATIVA = ELEMENTOS DA NARRATIVA<br />

1. NARRADOR;<br />

2. PERSONAGENS;<br />

3. TEMPO;<br />

4. ESPAÇO;<br />

5. ENREDO.<br />

• Narrador: João Miramar<br />

A história é contada em primeira pessoa, como podemos ver nos seguintes exemplos:<br />

“... levaram- me para uma casa velha...” (Cap. 3);<br />

"Entrei para a escola mista de D. Matilde." (Cap. 5);<br />

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"Não disse nada do que queria dizer a Madô." (Cap. 10).<br />

• PERSONAGENS da Alta burguesia paulista: a família de Tia Gabriela;<br />

• Tia Gabriela,<br />

• Nair,<br />

• Cotita,<br />

• Pantico,<br />

• CÉLIA, a esposa<br />

• ROLAH, a amante europeia;<br />

• Madama Rocambola, mãe de Rolah;<br />

• Conde José Chelinini – amigo de colégio;<br />

• Doutor Pepe Esborracha;<br />

• Machado Penumbra é um “tipo”, assim como Dr. Pôncio Pilatos da Glória; eles representam uma<br />

intelectualidade atrasada, em descompasso com o ritmo do século XX e de suas novidades.<br />

• Dr. Mandarim Pedroso;<br />

• o "fino poeta", Sr. Fíleas;<br />

• Tipo de mentalidade dos “intelectuais” do começo do século XX, no Brasil.<br />

Como os tanks, os aviões de bombardeio sobre as cidades encolhidas de pavor, os gases asfixiantes e as terríveis<br />

minas, o seu estilo e a sua personalidade nasceram das clarinadas caóticas da guerra.<br />

Torna-se lógico que o estilo dos escritores acompanhe a evolução emocional dos surtos humanos. Se no meu foro<br />

interior, um velho sentimentalismo racial vibra ainda nas doces cordas alexandrinas de Bilac e Vicente de Carvalho,<br />

não posso deixar de reconhecer o direito sagrado das inovações, mesmo quando elas ameaçam espedaçar nas<br />

suas mãos hercúleas o ouro argamassado pela idade parnasiana. VAE VICTIS! (AI DOS VENCIDOS!)<br />

“À Guisa de Prefácio”, prefácio de Machado Penumbra<br />

• Paródia: satiriza a linguagem beletrista, tradicionalista, de estilo empolado e recheado de clichês<br />

acadêmicos;<br />

4. Poesia marginal (2011)<br />

Em 1976, a publicação de um livro organizado por Heloísa Buarque de Hollanda,"26 Poetas Hoje", resgatava um<br />

grupo de jovens aficionados da poesia. Tais escritores, sem condições de publicar seus livros através das editoras<br />

profissionais, escreviam seus poemas - manuscritos ou datilografados - e os distribuíam nos lugares mais inauditos.<br />

Eram livros simples, reproduzidos de forma arcaica através de mimeógrafos, o que conferia um caráter artesanal a essa<br />

produção. Esta coletânea lançou diversos nomes à consideração da crítica e do restrito público leitor de poemas, e hoje<br />

é considerada fundamental na história da Literatura brasileira; "26 Poetas Hoje" teve por mérito demonstrar um<br />

movimento de resistência poética em um tempo em que falar de poesia ou mesmo poetar parecia algo absolutamente<br />

despropositado.<br />

Logo, o primeiro aspecto importante é este: ainda que "Poesia Marginal" tenha sido publicado em 2011, o<br />

livro resgata poemas e poetas típicos da década de setenta. Nesse contexto, os autores viveram sob o tacão<br />

autoritário da ditadura militar, época em que a censura era feita pelo Estado ditatorial. Perceba-se que os poemas<br />

desses autores viviam à margem dessa situação, pois, sendo produzidos dessa forma artesanal, não passavam pela<br />

análise ou censura dos censores do regime ditatorial.<br />

Se o quadro brasileiro, marcado pela agitação de alguns jovens que lutavam bravamente contra os militares<br />

torturadores, era claramente subversivo, no resto do mundo a atmosfera revolucionária também se fazia sentir. À época<br />

da publicação desses poemas, os jovens franceses se rebelavam contra o conservadorismo e contra muitas das regras<br />

sociais daquele período, em um movimento que ficou conhecido como o "Maio de 68". Esse caráter contestatório, de<br />

franca rebelião contra costumes e hábitos tradicionais, perpassa a coletânea dos cinco poetas que aparecem em<br />

"Poesia Marginal". Uma contestação que, por vezes, assume um ar irônico, de franco deboche para com as "regras"<br />

sociais, as instituições ou mesmo para com o sentimento amoroso - tema tão caro aos poetas de todos os tempos.<br />

Além disso, esses escritores também flertavam com outras técnicas que denotam esse espírito gozador, como o uso de<br />

trocadilhos, a ambiguidade ou o duplo sentido, o que faz com que parte desses poemas tenha no humor uma<br />

característica a se destacar.<br />

"Poesia Marginal" é uma coletânea desse momento - o início da década de setenta - e tem por objetivo lançar<br />

luzes sobre uma nova geração de poetas em busca do seu espaço. Perceba-se que são poetas de diversas origens:<br />

cariocas, mineiros, o paranaense Leminski, o que caracteriza esta obra como uma tentativa de produzir um panorama<br />

brasileiro da poesia daquela época. Participam dessa coletânea: Ana Cristina Cesar (RJ – 1952/1983), Cacaso<br />

(MG/1944/RJ/1987), Chacal (RJ – 1951), Francisco Alvim (MG – 1938) e Paulo Leminski (PR – 1944/1989). Sobre<br />

eles, cabe ressaltar que não se trata de pessoas necessitadas ou desprovidas de dinheiro, tampouco marginais no<br />

17


sentido literal (foras-da-lei, bandidos). Ficaram conhecidos dessa forma pela maneira marginal como publicavam seus<br />

poemas; na verdade, pertenciam à classe média e mesmo à elite brasileira.<br />

O contexto histórico da poesia marginal:<br />

Maio de 68, França;<br />

Ditadura militar, Brasil;<br />

1968 – AI 5;<br />

Tortura e morte de Wladimir Herzog, (1975);<br />

ARTE POP, Publicidade e Propaganda;<br />

AS INFLUÊNCIAS da poesia marginal à década de 70:<br />

Modernismo brasileiro de primeira fase – (1922/1930);<br />

Concretismo (movimento poético brasileiro da década de 50);<br />

Tropicalismo (movimento artístico brasileiro da década de 60);<br />

Contracultura (movimentação cultural da década de 60);<br />

UM POEMA COMENTADO COMO EXEMPLO: “FOGO-FÁTUO”, DE CHACAL<br />

Ela é uma mina versátil<br />

o seu mal é ser muito volúvel<br />

apesar do seu jeito volátil<br />

nosso caso anda meio insolúvel<br />

se ela veste seu manto diáfano<br />

sai de noite e só volta de dia<br />

eu escuto os cantores de ébano<br />

e espero ela chegar da orgia<br />

ela pensa que eu sou fogo-fátuo<br />

e me esquenta em banho-maria<br />

se estouro sou pior que o átomo<br />

ainda afogo essa nega na pia.<br />

E / la / é / u / ma / mi / na / ver / sá<br />

/ til<br />

o / seu / mal / é / ser / mui / to / vo<br />

/ lú / vel<br />

a / pe / sar / do / seu / jei / to / vo /<br />

lá / til<br />

no / sso / ca / so / an / da / mei / o<br />

in / so / lú / vel<br />

1. O poema é dividido em três estrofes; cada uma possui quatro versos. Logo,<br />

trata-se de um poema com uma divisão arbitrária: o poeta não escreve<br />

aleatoriamente, antes ele organiza sua mensagem de forma clara. Por conta<br />

disso, trata-se de um poema cuja marca principal é o APURO FORMAL.<br />

2. Além desse aspecto, que denota uma preocupação FORMAL, com a FORMA<br />

como o poema foi escrito, também pode-se referir outro aspecto, igualmente<br />

preocupado com o caráter FORMAL: a extensão do verso. Os versos desse<br />

poema possuem, todos, nove sílabas poéticas (versos eneassílabos). Logo,<br />

trata-se daquilo que, no gênero lírico, chamamos VERSOS REGULARES,<br />

pois possuem uma extensão regular, um tamanho que segue um determinado<br />

padrão. ( Veja a forma como se divide um poema segundo a extensão dos<br />

versos na estrofe transcrita abaixo do poema).<br />

3. Outro aspecto formal importante é o que diz respeito às rimas do poema. Este é<br />

um dos raros poemas rimados do livro. Perceba-se a preocupação do poeta<br />

com a MUSICALIDADE do poema. O primeiro verso de cada estrofe sempre<br />

rima com o terceiro; o segundo, com o quarto.<br />

4. A palavra mina, no primeiro verso, demonstra a coloquialidade desses poetas,<br />

pois é um exemplo de gíria, o que gramaticalmente é considerado "errado".<br />

Denota interferência da linguagem ORAL, uma interferência da 'fala' no<br />

poema de Chacal.<br />

A POESIA MARGINAL À DÉCADA DE 70: EM BUSCA DE BRECHAS PARA SE EXPRESSAR.<br />

Marginal quanto à forma: linguagem coloquial, humor, gírias;<br />

Marginal quanto aos temas: amor, sexo, drogas, política, vida familiar;<br />

Marginal quanto às publicações: edições grampeadas, “livros” marcados por caráter artesanal;<br />

Marginal quanto à distribuição: “livros” “vendidos” em botecos, teatros, cinemas, faculdades etc.<br />

A POESIA MARGINAL À DÉCADA DE 70: A “RECEPÇÃO” DA CRÍTICA.<br />

Segundo a VEJA: “lixeratura”, “diarreia poética”;<br />

DESCOMPROMETIMENTO ESTÉTICO;<br />

ESPONTANEIDADE DESINFORMADA E EXAGERADA;<br />

Marginais não são nem a POESIA nem os POETAS (classe média, média alta e elite)<br />

CARACTERÍSTICAS DA POESIA MARGINAL<br />

Registro do cotidiano: falar do “aqui” e “agora”;<br />

Poemas curtos e rápidos: a rapidez da modernidade;<br />

POEMAS MARCADOS PELA CONCISÃO: geralmente com quatro, cinco, sete versos;<br />

Deboche, anarquia, clima de festa/desbunde, mudança de costumes;<br />

Circuitos Alternativos de expressão: poesia & música: poetas e letristas;<br />

CONTESTAÇÃO: política;<br />

CONTESTAÇÃO: comportamental;<br />

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DESPREZO PELA INTELECTUALIDADE & TEORIA POÉTICA;<br />

SUBVERSÃO: , da produção, da edição, da distribuição e da POESIA.<br />

OBJETIVO: A REVITALIZAÇÃO DA POESIA<br />

pela voz de cinco poetas marginais<br />

Esta coletânea é marcada pela espontaneidade. Os autores aqui coligidos retratam o instante, o lugar-comum, o<br />

fragmento. O aparente desleixo das composições traduz uma atitude que procura distanciar-se da poesia erudita,<br />

marcada pelo diálogo com os clássicos movimentos retratados em períodos literários. Os poetas marginais procuravam<br />

fugir aos rótulos, elaborando uma poesia simples, marcada pela dicção coloquial, pela oralidade característica da fala.<br />

Muitos são os poemas que traduzem uma sinceridade confessional e original, por conta desse caráter momentâneo,<br />

passageiro. A poetisa Ana Cristina César, uma das autoras resgatada com essa coletânea, frequentemente dizia:<br />

"Escrevo in loco, sem literatura". Isso explicita que a falta de rigor e a tentativa de dar uma marcha à ré em direção ao<br />

piadismo e a certa inconsequência do modernismo de 1922 era uma atitude crítica em relação à poesia herdeira das<br />

"tradições" poéticas anteriores. Não falta também quem veja no movimento uma imagem invertida das vanguardas<br />

originárias dos anos 50, ou seja: uma resposta à erudição que caracterizou a geração dos concretistas brasileiros.<br />

Enquanto estes são acusadas de formalistas, o pessoal da poesia marginal recebe a pecha de ter relaxado os<br />

procedimentos formais da poesia.<br />

OS POETAS<br />

Ana Cristina Cesar (1952/1983) foi a musa dos poetas marginais. Formada em Letras, com curso de tradução<br />

literária na Inglaterra, foi extremamente ativa na vida cultural carioca dos anos 70, publicando, participando de debates,<br />

escrevendo artigos em jornais. Em 1982, a poetisa reuniu seus livros publicados de forma independente no volume "A<br />

teus pés". Em 1983, pulou da janela do oitavo andar, pondo fim a uma existência marcante de poetisa e ativista cultural.<br />

Cacaso (Antônio de Carlos de Brito - MG, 1944/RJ, 1987) participou do grupo dos poetas marginais e também<br />

tornou-se conhecido por criticar poemas de Chacal e Ana Cristina, entre outros. Estreou em 1968, com o livro "Palavra<br />

Cerzida", em que revelava certa influência simbolista, inspirado pela lírica de Cecília Meireles. Evoluiu para uma poesia<br />

mais marcada pelo coloquialismo e pelo humor. Além da produção poética, Cacaso também escreveu letras para<br />

canções de Tom Jobim e Sueli Costa.<br />

Chacal (Ricardo Carvalho Duarte - RJ/1951) com a publicação de "Muito prazer, Ricardo", em 1972, foi o<br />

primeiro a entrar na onda do livro impresso em mimeógrafo e distribuído de mão em mão. Seus versos incorporam gírias,<br />

linguagem jornalística e outras expressões caracterizadas pelo coloquialismo. Nascido no Rio de Janeiro em 1951, foi<br />

editor da revista de poesia O Carioca e também publicou os livros Comício de Tudo (1986), Letra Elétrica (1994) e A vida<br />

é curta para ser pequena (2002).<br />

Francisco Alvim (MG/1938) ou simplesmente Chico Alvim é poeta e diplomata brasileiro. Chico Alvim estreou<br />

em 1968 com o livro de poema O sol dos cegos, pelo qual compõe poemas como o rito, paisagem, o homem, entre<br />

outros... Entre 1969 e 1971 vive em Paris, onde escreve parte de seu livro Passatempo, lançado em 1974 pela coleção<br />

Frenesi, livros que compõem a chamada poesia marginal, que ganhou publicidade com a antologia 26 poetas hoje.<br />

Paulo Leminski (PR/1944-1989) foi tradutor, professor de história e de judô, publicitário, romancista e músico.<br />

Artista irrequieto, apresenta uma poesia altamente elaborada, marcada pela concisão, pela capacidade de síntese e pelo<br />

deboche. Caetano Veloso dizia que ele misturava poesia concreta com a literatura beatnik - influência principal de Bob<br />

Dylan. Além de várias publicações independentes em vida, reunidas em 1983 sob o título Caprichos e relaxos, teve<br />

obras póstumas publicadas em 1991, La vie en close, e 1994, Winterverno.<br />

SOBRE A OBRA<br />

O livro é dividido em seis partes. O prefácio, intitulado "O Vento no Rosto", contextualiza os poemas, refere<br />

alguns tópicos acerca dos poetas, apresentando alguns dos objetivos da coletânea. Já as partes "Sentir é muito lento",<br />

"Os olhinhos do poeta", "Se o mundo não vai bem" e "A vida que para" são as partes dedicadas aos poemas. Cada uma<br />

dessas partes comporta uma série de poemas divididos de acordo com as temáticas exploradas. "De mão em mão", a<br />

última parte do livro, é composta de um panorama da literatura brasileira daquela época, além de referir o contexto<br />

histórico em que surgiram essas manifestações poéticas. Como nosso objetivo é resumir e comentar alguns dos<br />

poemas, vamos às partes nas quais os poemas estão dispostos.<br />

PARTE 1 - Sentir é muito lento é a parte do livro cujo tema é o sentimento amoroso. Tema clássico, abordado<br />

por grande parte dos poetas de todos os tempos, também serviu de inspiração à geração marginal. "Todas as<br />

velocidades e vacilos do coração" servem de mote aos poemas dessa parte. "Fogo-fátuo", texto anteriormente<br />

comentado, é o poema que abre a primeira parte do livro. Vamos a outros exemplos comentados:<br />

19


"Sara"<br />

(Chacal)<br />

"Happy end"<br />

(Cacaso)<br />

O meu amor e eu<br />

nascemos um para o outro<br />

agora só falta quem nos apresente<br />

Perceba que nos dois poemas anteriormente comentados as regras de pontuação são desrespeitadas. Os poetas<br />

marginais, em sua maioria, subvertem a ordem gramatical fazendo uso de expressões estranhas à língua portuguesa e<br />

rompendo regras gramaticais. Assim, fica caracterizado um movimento no sentido de libertar a poesia das amarras<br />

gramaticais, das regras da linguagem formal.<br />

"Ana Cristina"<br />

(Cacaso)<br />

Ana Cristina cadê seus seios?<br />

Tomei-os e lancei-os<br />

Ana Cristina cadê seu senso?<br />

Meu senso ficou suspenso<br />

Ana Cristina cadê seu estro*?<br />

Meu estro eu não empresto<br />

Ana Cristina cadê sua alma?<br />

Nos brancos da minha palma<br />

Ana Cristina cadê você?<br />

Estou aqui, você não vê?<br />

"Álgebra elementar"<br />

(Cacaso)<br />

Perder um amor é muito duro. perder dois é<br />

bem menos.<br />

Perceba-se que o título - o nome próprio Sara - perde a maiúscula quando da<br />

transcrição do poema: um sinal de subversão gramatical, de inovação formal<br />

do poeta. Além disso, diferentemente de "Fogo-fátuo", os versos são livres,<br />

sem preocupação com uma métrica regular. A musicalidade do poema -<br />

expressa através das rimas finais de 'sereia', 'feia', 'anjo', banjo' - é reforçada<br />

através da repetição da consoante 's' (em "sara será sereia"), figura de<br />

linguagem a que chamamos aliteração. Há que se ressaltar, ainda, o aspecto<br />

brincalhão com que o autor descreve a figura retratada: Sara não é um modelo<br />

de beleza, ou seja: não é a eterna musa idealizada dos padrões românticos.<br />

Por último, perceba o uso de imagens lado a lado com os signos linguísticos. O<br />

uso dessas imagens (no caso, substituindo a letra 'o') é uma herança do<br />

movimento concretista, muito marcado pelo uso de imagens e desse tipo de<br />

linguagem. Assim, podemos relacionar esse poema ao Concretismo,<br />

movimento pelo qual a poesia marginal foi influenciada.<br />

O uso da expressão inglesa "Happy end" contraria aqueles que defendem o<br />

uso exclusivo de termos de língua portuguesa: outro traço de subversão da<br />

linguagem. Além disso, a consagrada expressão está em desacordo com o<br />

poema, pois este não trata de um final feliz, como seria de se esperar. Longe<br />

disso, pois o poeta ironiza os "finais felizes", esse traço tão marcante nas<br />

histórias de amor mais convencionais. Por último, perceba a concisão, a<br />

curteza, a economia do poema, elaborado sobre poucas palavras, o que<br />

caracteriza uma linguagem telegráfica, marcada pela objetividade e pela<br />

economia.<br />

O primeiro ponto a ressaltar neste poema é a forma como ele foi elaborado: em<br />

forma de diálogo entre o eu lírico e sua interlocutora, Ana Cristina - referência à<br />

poetisa Ana Cristina Cesar. As rimas emparelhadas, nas quais um verso rima com<br />

o verso subsequente, denotam uma preocupação formal por parte do autor,<br />

diferentemente do poema anteriormente referido, marcado pelos versos brancos<br />

(versos sem rimas). Além disso, também pode-se salientar a métrica regular dos<br />

versos, elaborados com 9 sílabas poéticas, e 7 sílabas. No plano do sentido, o<br />

poema é elaborado sobre uma série de perguntas efetuadas pelo eu lírico a Ana<br />

Cristina, responsável pelas respostas. Perceba-se a sensualidade referida na<br />

palavra 'seios', a perda de razão (perder o senso), assim como a associação entre<br />

o sentimento amoroso e a inspiração poética (estro = inspiração poética,<br />

criatividade).<br />

Deste poema pode se destacar a associação insólita entre o amor e<br />

a matemática, na referência à álgebra. Assim como a concisão, a<br />

economia de uma poesia elaborada em dois versos. Por último,<br />

cabe ressaltar a ironia sutil resultante do insólito cálculo amoroso.<br />

PARTE 2 - "Os olhinhos do poeta" é o título sob o qual estão organizados os poemas que tratam do trabalho do<br />

escritor, dos impasses dos autores diante das folhas em branco. Logo, trata-se de uma parte em que os autores tratam<br />

do próprio fazer poético, o que caracteriza muitos desses textos como textos metalinguísticos.<br />

20


"Desencontrários"<br />

(Paulo Leminski)<br />

Mandei a palavra rimar,<br />

ela não me obedeceu.<br />

Falou em mar, em céu, em rosa,<br />

em grego, em silêncio, em prosa.<br />

Parecia fora de si,<br />

a sílaba silenciosa.<br />

Mandei a frase sonhar,<br />

e ela se foi num labirinto.<br />

Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.<br />

Dar ordens a um exército,<br />

para conquistar um império extinto.<br />

(Ana Cristina Cesar - poema sem título)<br />

Olho muito tempo o corpo de um poema<br />

até perder de vista o que não seja corpo<br />

e sentir separado entre os meus dentes<br />

um filete de sangue<br />

nas gengivas<br />

PARTE 3 - "Se o mundo não vai bem" - parte do livro que tematiza o mundo que envolve os poetas; "opressão política,<br />

medo, desigualdade social, solidão, vontade de cair fora" são temas abordados nesta parte, fundindo, invariavelmente,<br />

ironia e crítica.<br />

"Discordância"<br />

(Francisco Alvim)<br />

Dizem que quem cala consente<br />

eu por mim<br />

quando calo dissinto<br />

quando falo<br />

minto<br />

"Grupo escolar" (Cacaso)<br />

Sonhei com um general de ombros largos<br />

que rangia<br />

e que no sonho me apontava a poesia<br />

enquanto um pássaro pensava suas penas<br />

e já sem resistência resistia<br />

O general acordou e eu que sonhava<br />

face a face deslizei à dura via:<br />

vi seus olhos que tremiam, ombros largos,<br />

vi seu queixo modelado a esquadria<br />

vi que o tempo galopando evaporava<br />

(deu pra ver qual a sua dinastia)<br />

mas em tempo fixei no firmamento<br />

esta imagem que rebenta em ponta fria:<br />

poesia, esta química perversa,<br />

este arco que revela e me repõe<br />

nestes tempos de alquimia.<br />

Perceba o título do poema: um neologismo (palavra inventada pelo poeta<br />

através da aglutinação) que funde 'desencontros' e 'contrários'. Dessa<br />

forma, o poeta vê-se obrigado a inventar um termo que traduza a<br />

independência das palavras durante o processo de criação dos poemas; é<br />

como se elas fossem autônomas, absolutamente independentes. Ainda que<br />

não seja uma estratégia exclusiva do movimento concretista, foi uma<br />

constante ao longo das experiências estéticas desse movimento poético.O<br />

primeiro verso deste poema já define o tema metalinguístico a ser<br />

desenvolvido: trata-se de um texto voltado à reflexão sobre a palavra. O eu<br />

lírico assinala a rebeldia da palavra, que não obedece ao poeta; antes,<br />

decide o seu próprio caminho, o tema ao qual vai se dedicar. Perceba-se a<br />

referência à poesia como um achado, não como uma obra refletida, mas<br />

como uma iluminação. Nesse sentido, os poetas marginais não se<br />

consideram os criadores, mas aqueles sensíveis o suficiente para que a<br />

poesia se realize, conforme '(...)eu sinto, apenas isso.'<br />

Além da metalinguagem explícita no primeiro verso pelo eu lírico, que<br />

divisa 'o corpo do poema', podemos referir a atitude de contemplação<br />

diante da obra de arte, diante daquilo que ela tem de sagrado e<br />

inspirador. É através desta 'parada' que nasce a abstração, a<br />

capacidade de reflexão. Ressalte-se também o tanto de dor que<br />

acompanha o autor do poema, dando a entender que a mesma<br />

sensibilidade que o torna capaz de 'poetar', também o torna<br />

hipersensível para as dores do mundo. Este poema foi incluído no<br />

livro "Os cem melhores poemas brasileiros do século".<br />

Em uma reflexão originada a partir de nova interpretação do ditado popular<br />

(quem cala consente) - logo, traço de oralidade popular -, o poeta propõe<br />

um novo significado para o silêncio; quem cala, diz o eu lírico, dissente,<br />

discorda, uma vez que a palavra sempre vem envolta em ambiguidades; a<br />

palavra dissimula muito mais do que revela.<br />

Clara referência à cruel repressão da ditadura militar, o poema<br />

denuncia a atitude autoritária de um general, figura que remete ao<br />

universo militar. O 'pássaro que pensava suas penas' refere o<br />

sofrimento (pena, sofrimento) daqueles sequestrados, presos e<br />

torturados pelos militares durante o regime ditatorial. Perceba-se<br />

que a palavra 'pena' é explorada em dois sentidos: as penas dos<br />

pássaros e as penas daqueles encarcerados pela ditadura. No<br />

final do poema, uma referência à poesia como forma de<br />

sobrevivência, como saída de emergência desse universo violento<br />

e injusto, permeado pela força bruta dos militares: no firmamento,<br />

a salvação dos poetas e daqueles que lutam contra a opressão<br />

fardada.<br />

21


"É proibido pisar na grama"<br />

(Chacal)<br />

O jeito é deitar e rolar<br />

"As aparências revelam"<br />

(Cacaso)<br />

Afirma uma Firma que o Brasil<br />

confirma: "Vamos substituir o<br />

Café pelo Aço".<br />

Vai ser duríssimo descondicionar o<br />

paladar<br />

Não há na violência<br />

que a linguagem imita<br />

algo da violência<br />

propriamente dita?<br />

PARTE 4 - "A vida que para" - poemas centrados em instantes, momentos fugazes nos quais se faz sentir a<br />

capacidade de o autor registrar, poeticamente, os resultados do acaso, uma descoberta ou ainda uma nova forma de<br />

enxergar o mundo.<br />

"Como abater uma nuvem a tiros"<br />

(Paulo Leminski)<br />

Sirenes, bares em chamas,<br />

carros se chocando,<br />

a noite me chama,<br />

a coisa escrita em sangue<br />

nas paredes das danceterias<br />

e dos hospitais,<br />

os poemas incompletos<br />

e o vermelho sempre verde dos sinais<br />

"Ulisses"<br />

(Francisco Alvim)<br />

O búzio junto ao ouvido<br />

ouço o mar<br />

O mar: apenas<br />

quarteirão e meio de onde moro<br />

Prefiro ouvi-lo no búzio<br />

(calmo, calmo)<br />

No quarto<br />

(a vida que para)<br />

ouço o mar<br />

(Paulo Leminski)<br />

Sombras<br />

derrubam<br />

sombras<br />

quando a treva<br />

está madura<br />

sombras<br />

Um poema curtíssimo, telegráfico, na melhor tradição da poesia modernista<br />

de Oswald de Andrade e do Modernismo brasileiro de primeira fase<br />

(1922/1930), defende a revolução, o sentimento de subversão, a<br />

desobediência civil de uma forma bem-humorada, ironizando as regras<br />

impostas e, sobretudo, rebelando-se contra uma ordem estabelecida.<br />

Neste poema, a revelação do processo de industrialização por que<br />

passava o Brasil agrário de final da década de sessenta para o Brasil<br />

urbano e industrial que surgia à época dessas publicações. Perceba-se<br />

que o poema trata da dificuldade de "descondicionar" um paladar<br />

habituado ao mato e à natureza, preconizando a violência que tal<br />

processo demanda. O poema, na sua linguagem, ressalta o caráter<br />

violento incorporado pela linguagem ela mesma, encarregada de<br />

traduzir esses processos, sempre tão dolorosos.<br />

Uma pincelada descritiva retrata a noite urbana, repleta de símbolos<br />

daquilo que é passageiro - sirenes, acidentes de trânsito etc. - e o<br />

eu lírico que cede ao chamado noturno. Ressalte-se a referência à<br />

poesia como forma de gravar aquilo que é efêmero, aquilo que<br />

passa, ideia que aparece no verso "os poemas incompletos".<br />

Nessa noite de caos e velocidade, ninguém respeita qualquer sinal,<br />

o semáforo está sempre verde para a urgência da vida noturna.<br />

Este é um dos raros poemas que referem a natureza. No entanto, percebase<br />

que o eu lírico, que escuta o mar pelo som de uma concha, opta por ouvilo<br />

dessa forma artificial, ainda que ele lhe seja próximo ('quarteirão e meio<br />

de onde moro'). Dessa forma, o eu lírico escolhe um 'mar seguro', contido<br />

pelas paredes do quarto, como que para recolher este instante e guardá-lo<br />

'(a vida que para)'. Além disso, cabe ressaltar que o navegante "Ulisses" é<br />

protagonista de um belo poema-épico grego. Dessa forma, a poesia<br />

marginal reverencia a tradição clássica.<br />

Centrado no anoitecer, quando a sombra da noite apaga as possíveis<br />

sombras produzidas sob a luz do sol, este poema resgata justamente o<br />

crepúsculo, o declínio do dia tragado pela noite que tudo absorve, como um<br />

vento que a tudo carrega, e que assinala a efemeridade, o caráter passageiro<br />

de todas as coisas.<br />

22


o vento leva<br />

sombra<br />

nenhuma<br />

dura<br />

"Que desliza"<br />

(Ana Cristina Cesar)<br />

Onde seus olhos estão<br />

as lupas desistem.<br />

O túnel corre, interminável<br />

pouso negro sem quebra<br />

de estações.<br />

Os passageiros nada adivinham.<br />

Deixam correr<br />

Não ficam negros<br />

Deslizam na borracha<br />

carinho discreto<br />

pelo cansaço<br />

que apenas se recosta<br />

contra a transparente<br />

escuridão.<br />

Os dois primeiros versos assinalam um 'lugar' para além da visão, estranho a<br />

este sentido; lugar em que "as lupas desistem", pois já não têm serventia,<br />

não ajudam a enxergar. O túnel sem-fim, o pouso negro sem estações de<br />

parada são imagens que criam uma atmosfera angustiante, reforçada pela<br />

ideia da ignorância daqueles que viajam ('Os passageiros nada adivinham.').<br />

No final do poema, essa angústia e o cansaço são atenuados por um<br />

"carinho discreto", recostado contra a escuridão.<br />

5. O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues<br />

Escrita em apenas 21 dias, a peça O Beijo no Asfalto foi inspirada na história de um repórter do jornal "O Globo",<br />

Pereira Rego, que foi atropelado por um arrasta-sandália, espécie de ônibus antigo. No chão o velho jornalista percebeu<br />

que estava perto da morte e pediu um beijo a uma jovem que tentava socorrê-lo.<br />

Nelson Rodrigues mudou "um pouquinho" da história. Na trama do dramaturgo, o atropelado da praça da<br />

Bandeira pede um beijo a Arandir, figura jovem e de coração puro e atormentado. Amado Ribeiro, repórter do jornal<br />

"Última Hora" retratado por Nelson no folhetim Asfalto Selvagem, presencia o beijo na boca entre os dois homens e,<br />

junto com o delegado corrupto Cunha, transforma a história do último desejo de um agonizante em manchete principal.<br />

O sensacionalismo da "Última Hora" muda completamente a história, retratando Arandir como um criminoso que<br />

empurrou o amante e depois o beijou. A vida do jovem se transforma num inferno e nem mesmo sua mulher acredita que<br />

ele é inocente.<br />

Por trás de uma história aparentemente simples, O Beijo no Asfalto discute questões fundamentais à condição<br />

humana. Nelson Rodrigues aproveitou o beijo espontâneo dado por Arandir, homem de coração puro, no atropelado,<br />

para fazer um libelo contra a falsidade, o juízo baseado na aparência e as convicções erradas de parte da sociedade.<br />

O Beijo no Asfalto é uma obra aberta a vários significados. Uma interpretação pertinente é que a peça fala,<br />

essencialmente, sobre a dúvida. O beijo de Arandir no atropelado é a substância dessa dúvida. É este ato espontâneo<br />

de caridade que vai desencadear o lado tenebroso da alma de cada uma das personagens. Todos se infeccionam,<br />

inclusive o próprio Arandir, que passa a duvidar de si mesmo. A carga da maldição do beijo no asfalto - beijar a boca de<br />

quem morre - representa o núcleo dramático.<br />

Seguindo esta interpretação, O Beijo no Asfalto acaba sendo uma meditação dramática sobre o problema da<br />

morte: um aprofundamento do tema da mortalidade radical do homem, afinal é só assim que o ser humano ganha a sua<br />

significação decisiva. Nelson Rodrigues mostra a sua platéia que o ser humano só consegue se salvar na medida em<br />

que aceita a sua sombra, o seu lado perecível e corruptível. Só pela descida aos infernos é que se consegue chegar ao<br />

céu.<br />

A fragilidade humana também é uma das certezas de Nelson Rodrigues nesta peça. Não foi necessário muito<br />

esforço para que se mudasse completamente a imagem pública de Arandir: de marido devotado ele passou, num passe<br />

de mágica, a homossexual enrustido. Para se conseguir a deterioração pública do jovem marido de Selminha, arma-se<br />

uma verdadeira conspiração onde todas as pessoas, desde as mais próximas até as mais distantes, mobilizam-se. Como<br />

ferrenho pessimista que é, Nelson Rodrigues pintou um quadro onde apenas algumas pessoas conseguem destruir a<br />

vida inteira de um homem inocente. E, ainda por cima, sem muito esforço.<br />

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A pior de todas as personagens é, sem dúvida, o repórter corrupto Amado Ribeiro, resumido por Nelson<br />

Rodrigues como um "cafajeste dionisíaco". Cruel, maligno, inescrupuloso e sensacionalista, ele compensa seu vazio<br />

interior com abuso de poder. Compra provas, inventa testemunhas, se aproveita de situações e ingenuidades, planta<br />

informações, enfim, é uma escola sobre como o jornalismo não deve ser exercido. Não deixa de ser mais uma<br />

personagem frustrada das tragédias rodrigueanas. Figura real, Amado Ribeiro esteve presente também no folhetim<br />

Asfalto Selvagem, e foi retratado desta mesma forma. Em vez de se incomodar, o colega do dramaturgo dizia sempre<br />

que era ainda muito pior.<br />

A peça tem um clima de pesadelo. Todas as pessoas que envolvem Arandir voltam-se contra ele depois da<br />

publicação da foto do beijo no jornal. Werneck, colega de escritório, lidera o coro dos detratores e começa a constranger<br />

Arandir no dia seguinte à manchete do Última Hora. Dona Judith, a datilógrafa, acha que um dia um homem parecido<br />

com o atropelado foi até o jornal e transforma sua dúvida em certeza absoluta. A posição da viúva é ainda pior: com<br />

medo de ver publicado no jornal o fato de ter um amante, testemunha contra Arandir, chegando até mesmo a forjar um<br />

banho dele junto com seu ex-marido. É justamente através de seu falso testemunho sobre a ligação dos dois homens<br />

que a polícia consegue a prova que necessitava para dar verossimilhança à farsa. O detetive Aruba representa o policial<br />

burro, que não consegue acertar uma única vez. E dona Matilde, vizinha, simboliza o coro dos fofoqueiros, típicas figuras<br />

que adoram bisbilhotar a tragédia alheia.<br />

No meio desta confusão, a única pessoa que poderia lutar contra os fatos e acreditar em Arandir é sua mulher,<br />

Selminha. Frágil e bastante feminina, ela ama Arandir desde garotinha e sempre confiou muito nele. Porém sua<br />

fragilidade acaba se mostrando fraqueza e já na primeira notícia ela acaba duvidando da heterossexualidade do marido.<br />

Recusa beijos e, quando inevitável, limpa a boca com as costas da mão. Não aceita visitar o marido no hotel e defende a<br />

hipótese de que ele é "gilete" (bissexual). Sua irmã, Dália, tem verdadeira adoração por Arandir. Morando na mesma<br />

casa que o casal, a menina aproveita que Selminha abandonou o marido no hotel e se sente livre para confessar seu<br />

amor. Oferece-se a Arandir e diz que aceitaria morrer com ele. Ao contrário de Selminha, Dália coloca-se do lado de<br />

Arandir e não acredita nas acusações de seu pai nem de ninguém. Em O Beijo no Asfalto, Nelson Rodrigues abordou<br />

mais uma vez a paixão de duas irmãs pelo mesmo homem.<br />

Aprígio é mais uma personagem frustrada da galeria interminável do autor. Homossexual enrustido, ele fez a<br />

filha acreditar nas notícias do jornal para poder ficar para sempre com o genro. Quando percebe que a paixão sentida<br />

por Dália é ainda maior que a de Selminha, mente para a caçula que o atropelado já estava morto quando foi beijado. Ou<br />

seja, Arandir não beijou para satisfazer o último desejo de um agonizante e sim para satisfazer seu próprio desejo<br />

homossexual. Aprígio garante ainda que os dois eram amantes. Para completar, atira em Arandir, objeto de seu amor,<br />

por causa da impossibilidade de assumir seu sentimento. Mediante um mundo tão preconceituoso, o covarde Aprígio vê<br />

no crime a única possibilidade de libertação e paz interior.<br />

No meio de tanta gente cruel e preconceituosa, é inevitável que uma figura pura e espontânea como Arandir<br />

acabasse soterrado. Típica vítima inocente, ele beijou o atropelado para realizar seu último desejo. Arandir só aceitou<br />

dar o beijo no asfalto por generosidade e piedade. Não tinha nenhuma maldade impulsionando suas atitudes. Sua<br />

bondade, entretanto, não poderia ter futuro num ambiente dominado pela degradação moral e ética. Por isso acaba<br />

sozinho, sendo o único homem da terra a acreditar na verdade dos fatos.<br />

A surpresa é um elemento bastante explorado por Nelson Rodrigues em O Beijo no Asfalto. Desde o início está<br />

sugerido que Aprígio nutre um amor incestuoso pela filha. Os motivos mostrados à platéia não são poucos: ele nunca<br />

chama Arandir pelo nome, ele evita visitar a filha depois que ela se casou, ele faz Selminha acreditar nas manchetes do<br />

jornal. Quando ele diz que sua verdadeira paixão é o genro, a platéia toda fica surpresa. A revelação é quase uma<br />

brincadeira de Nelson Rodrigues, um deboche à sua própria norma de vínculos familiares. Como se ele quisesse mostrar<br />

ao público que não é tão simples assim ser Nelson Rodrigues: para se ter o seu talento, é preciso ter sempre uma carta<br />

escondida na manga.<br />

Crítica<br />

O crítico Sábato Magaldi não gostou nenhum pouco do final. Ao fazer a revelação de amor de Aprígio por<br />

Arandir, a surpresa do espectador não remete aos cânones da melhor literatura. Dificilmente se deixa de pensar em<br />

golpe de melodrama. Apenas em termos de estética popular, diversa do método empregado em toda a construção da<br />

peça, se aceita o desfecho surpreendente. Ele conclui dizendo que os elementos positivos superam as deficiências. Não<br />

é, porém, uma das obras-primas do autor.<br />

Além da paixão de duas irmãs pelo mesmo homem, tema sempre recorrente em sua obra, Nelson Rodrigues<br />

retratou mais uma vez a imprensa. Criticando o jornalismo onde ele próprio se criou, o autor pinta o retrato de uma<br />

imprensa sem um mínimo de qualidade e ética. O que há em comum entre a imprensa de O Beijo no Asfalto, Viúva,<br />

porém honesta e Boca de Ouro é a presença de jornais que prestigiam o sensacionalismo criminoso dos seus<br />

repórteres, abrindo vastas manchetes a "acontecimentos" não raramente forjados. A imprensa criada por Nelson<br />

Rodrigues não tem limites no exercício ilegal de seu poder.<br />

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Em O Beijo no Asfalto, Nelson Rodrigues inaugura o diálogo sincopado, bruscamente interrompido por um ponto<br />

final. A precisão com que ele faz os cortes, apontada por alguns críticos como digna da mais alta cirurgia, acaba dando<br />

ainda mais espontaneidade ao texto. Num momento, o delegado Cunha diz: "Peço-lhe, creia que". Corta-se para a<br />

interrupção de Aruba: "Mas doutor". Werneck, colega de escritório de Arandir, interpela a datilógrafa: "Dona Judith, é<br />

verdade que". É interrompido por Arandir. Outras frases como "Diz que. Olhe que ele diz", "Ainda não acabei. Estou<br />

que", "Eu devia, escuta. Devia, bom", "Ou o senhor acha que" passeiam por todo o desenrolar do beijo no asfalto. Estes<br />

cortes sucessivos dão agilidade ao texto e aproximam ainda mais as personagens do universo de frases incompletas e<br />

pensamentos não concluídos da platéia.<br />

O diálogo é nervoso, completamente distante do trivial pergunta-resposta. As repetições criam uma dinâmica ágil<br />

para as réplicas, abrindo para as personagens e o público o campo de infindáveis sugestões.<br />

As falas, interligadas, dão naturalidade e, ao mesmo tempo, facilitam o clima de mistério tão comum nas obras<br />

do dramaturgo.<br />

Estrutura<br />

O Beijo no Asfalto é uma tragédia carioca de três atos e treze quadros. Enxutos e eletrizantes, os atos são bem<br />

pesados e equilibram perfeitamente as culminâncias e as surpresas sempre presentes na obra de Nelson Rodrigues.<br />

A primeira cena começa na delegacia, com o delegado Cunha conversando com seu colega sobre o<br />

atropelamento na praça da Bandeira. Termina com Arandir contando à Selminha e à cunhada Dália o interrogatório que<br />

sofreu na delegacia. A esta altura, Selminha ainda acredita piamente na inocência do marido. O pano baixa e deixa no<br />

espectador a primeira dúvida: ela vai continuar acreditando no marido ou vai se juntar ao mundo que o incrimina?<br />

O segundo ato começa com a vizinha Dona Matilde trazendo para Selminha o recorte do jornal, onde saiu a<br />

notícia do atropelamento e do beijo no asfalto. De malas prontas para morar na casa da avó, Dália desiste de viajar para<br />

continuar com a família - irá se saber depois que ela ficou para ajudar a paixão de sua vida, Arandir. Já neste primeiro<br />

contato com a versão do jornal sobre o acontecido, Selminha passa a duvidar do marido e a recusar seus beijos. Este<br />

segundo ato termina com Selminha evitando Arandir. O espectador já criou sua expectativa: será que ninguém se<br />

posicionará do lado de Arandir?<br />

O terceiro ato já deixa claro desde o início que o "beijo no asfalto" condenou Arandir à eterna solidão. Selminha é<br />

plenamente convencida pelo delegado que seu marido era amante do atropelado. Arandir sai de casa e vai se esconder<br />

num hotel ordinário. Sua mulher se recusa a visitá-lo e quem vai é Dália, a cunhada que se assume apaixonada. Arandir<br />

não tem tempo nem de pensar na declaração de amor de Dália, pois seu sogro Aprígio empunha um revólver, fala que<br />

sempre o amou, e assassina o genro. Resta à platéia tentar refazer a peça mentalmente, pois o homossexualismo de<br />

Aprígio, revelado na última cena, dá a O Beijo no Asfalto um sentido completamente novo à peça.<br />

O modo como a ação é desencadeada, também é bastante inovador. A platéia não vê, em nenhum momento, o<br />

acidente nem o beijo que Arandir deu na vítima. O ato principal, que culmina na tragédia do jovem marido de Selminha,<br />

não é mostrado à platéia e sim contado pelas outras personagens. O morto, vítima do atropelamento que recebeu o beijo<br />

de Arandir, é esquecido e negado. Ele aparece apenas no 2° ato, durante o velório, mas sua presença é esquecida pela<br />

atuação abjeta do repórter Amado Ribeiro e do delegado Aruba, que estão lá para envolver a viúva na farsa. O<br />

escândalo que fazem, ao afirmarem que sabem do amante da viúva, põe o morto em segundo plano. O morto, na peça<br />

de Nelson Rodrigues, é o grande personagem invisível, é aquela que encarna, em si, a morte de cada um e de todos<br />

nós.<br />

A peça é extremamente coesa, progredindo em marcha avassaladora. Os três atos estão divididos em treze<br />

quadros, dos quais sete se passam na casa de Selminha e Arandir, sendo um deles no quarto do casal. A ação exterior -<br />

na sala do delegado, na sala do comissário Barros, no escritório de Arandir etc - intercala-se com os diálogos travados<br />

na residência dos protagonistas. Ou seja, tudo é construído para que o cerco se feche sobre o herói Arandir. Como autor<br />

maduro, Nelson Rodrigues construiu O Beijo no Asfalto baseado numa ação dramática que se avoluma a cada fala. É<br />

uma peça de diálogos, onde o texto adquire papel fundamental, não tendo necessidade de um cenário elaborado.<br />

Enredo<br />

O Beijo no Asfalto tem uma história simples e bem diferente dos enredos intricados e cheios de significados das<br />

peças míticas do dramaturgo. É bom lembrar que o enredo é simples, mas nada convencional. Um atropelado, antes de<br />

morrer, pede ao desconhecido Arandir um beijo na boca. O jovem Arandir passava casualmente pela praça da Bandeira<br />

para empenhar jóias na Caixa Econômica Federal e conseguir pagar um aborto para a mulher, Selminha. Viviam em luade-mel,<br />

transando todas as noites, e achavam que um filho atrapalharia o idílio. De repente vê o homem ser atropelado e<br />

corre para ajudá-lo.<br />

O repórter Amado Ribeiro, do jornal Última Hora, presencia o atropelamento e o beijo e vislumbra naquele<br />

acontecimento a notícia do ano. Depois de anotar o nome e o endereço dos dois envolvidos, ele exige que um delegado<br />

corrupto ajude-o a transformar "o beijo no asfalto" num caso digno das primeiras páginas. A idéia é criar uma história de<br />

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parar a cidade. A partir daí, o delegado e o repórter forjam testemunhas, cometem infrações, chantageiam pessoas e se<br />

aproveitam do momento de dor da viúva do atropelado. Acabam transformando um beijo de piedade - afinal é regra na<br />

cultura ocidental que jamais deve se negar o último pedido de um morto - num caso amoroso e sinistro entre dois<br />

homens. O jornal Última Hora estampa o caso em manchetes e na cidade ninguém fala em outro assunto. Arandir vira<br />

motivo de chacota no emprego e acaba tendo que se demitir. Aprígio, pai de Selminha e sogro de Arandir, intriga-o com<br />

sua mulher e, mesmo apaixonada, Selminha começa a duvidar do marido. Logo toda a cidade está acreditando no<br />

homossexualismo de Arandir. Quando a história ameaça esfriar, Amado Ribeiro transforma o caso num crime e reúne<br />

indícios para provar que Arandir é criminoso. A versão defendida pelo jornalista corrupto é que Arandir era amante do<br />

atropelado e, num ato de loucura, jogou-o contra o ônibus.<br />

Nesta história, o único homem honesto é Arandir, justamente a vítima. O delegado aceitou mancomunar-se com<br />

o repórter Amado Ribeiro por causa de uma denúncia: Cunha deu um pontapé na barriga de uma grávida, provocado-lhe<br />

um aborto. Como num verdadeiro pesadelo, todos se colocam contra Arandir e ajudam a polícia na hora de forjar provas.<br />

A datilógrafa do jornal de Arandir declara que o morto parece um homem que esteve no jornal na semana passada,<br />

insinuando que havia realmente um envolvimento prévio entre os dois. Nem a viúva escapa das garras de Amado<br />

Ribeiro. No velório, o repórter sensacionalista retarda o enterro para chantagear a viúva. Ameaça a mulher dizendo que<br />

sabe tudo sobre o amante dela. Depois de vê-la, apavorada, jurar inocência, Amado induz o depoimento da mulher: "Seu<br />

marido tinha um amigo, chamado Arandir, amigo esse que a senhora está reconhecendo pela fotografia". Sem amigos,<br />

sem a confiança da mulher, desempregado e ridicularizado por todos, Arandir esconde-se da polícia primeiro no quarto<br />

da cunhada, Dália, e depois num quarto de "hotel ordinário".<br />

Num último apelo, Arandir pede que Selminha vá até o hotel conversar com ele. Precisa dizer a mulher que é<br />

tudo mentira e que seu esconderijo não é uma confissão de culpa. Porém Selminha não quer ouvir o marido e quem vai<br />

ao encontro dele é Dália, a irmã mais nova de Selminha. Surpreso com o descaso da mulher, Arandir diz que só a<br />

chamou ali porque queria se matar junto com ela. Dália aproveita o momento para se confessar apaixonada. Diz que se<br />

mataria com ele e garante que Selminha não o ama tanto quanto ela. Arandir, porém, não corresponde às investidas da<br />

cunhada.<br />

Como tiro de misericórdia, o repórter incita Aprígio, pai de Selminha, a dar um tiro no genro. Durante toda a história, a<br />

platéia tem a impressão que Aprígio ama a filha como um homem ama uma mulher. Ele nunca pronunciou o nome do<br />

genro e quase não visitou a filha após o casamento. Na última cena de O Beijo no Asfalto, porém, ele vai até o quarto do<br />

hotel onde Arandir está hospedado e lhe aponta o revólver. Arandir diz que sempre desconfiou do ódio dele e que<br />

sempre achou muito exagerado o amor que ele sentia pela filha. Aprígio começa a rir descontroladamente e diz que seu<br />

verdadeiro amor é ele, Arandir, e não a filha. O verdadeiro homossexual de O Beijo no Asfalto atira no genro e, com ele<br />

nos braços, grita bem alto, pela primeira vez: Arandir! Arandir!<br />

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