Ditadura, MPB e Sociedade
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Recebido até Agosto/2011, aprovado até Setembro/2001.<br />
Vinculada ao Curso de Letras: Licenciatura e Bacharelado e ao Programa de Mestrado em Letras<br />
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul<br />
Unidade Universitária de Campo Grande – MS<br />
DITADURA, <strong>MPB</strong> E SOCIDADE: A MÚSICA DE RESISTÊNCIA EM CHICO<br />
BUARQUE DE HOLANDA<br />
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Alessandro A. Fagundes Matos<br />
RESUMO: A obra de Chico Buarque está inteiramente associada ao momento histórico do Brasil entre os<br />
anos de 1964 a 1985, período de ditadura militar. O presente artigo tem por objetivo apresentar esse<br />
momento de repressão que influenciou as manifestações artísticas e culturais, principalmente a música. A<br />
partir desse contexto, será analisada a canção Apesar de Você do referido músico, artista, poeta, enfim,<br />
grande personalidade da <strong>MPB</strong>. Tal análise buscará ressaltar o trabalho empenhado no emprego das<br />
palavras, que associadas ao período possibilitam uma construção de sentido e interpretações consideradas<br />
anti-governo.<br />
Palavras-Chave: Chico Buarque, <strong>MPB</strong>, <strong>Ditadura</strong>, Música de Resistência, Construção de Sentido.<br />
INTRODUÇÃO<br />
A ditadura entre o período de 1964 a 1985 foi um dos períodos mais obscuros<br />
da história do Brasil. Com o país absorto em um clima de suspeita e política do medo, a<br />
produção artística era vista pelos militares como um canal de mensagens subversivas<br />
que faziam alusão ao comunismo. O comunismo, ideologia política e socioeconômica<br />
que tem por objetivo promover a sociedade igualitária, era o paradoxo do modelo<br />
político imposto ao Brasil em determinada época.<br />
A arte no Brasil durante o regime militar sofreria de forma brutal com as<br />
conseqüências da ditadura. Artistas seriam obrigados a se exilarem e suas obras seriam<br />
censuradas, homens e mulheres eram “convidados” a se retirarem do território<br />
brasileiro, pois eram vistos como ameaças para a ordem política repressora. Entre esses<br />
exilados: dramaturgos, professores e, principalmente, os músicos que recebiam o título<br />
de porta-voz de uma nação dominada pelo medo. Alguns até os dias atuais não se sabe o<br />
paradeiro, provavelmente foram mortos por defenderem um ideal que não condizia com<br />
os moldes do momento.
Recebido até Agosto/2011, aprovado até Setembro/2001.<br />
Vinculada ao Curso de Letras: Licenciatura e Bacharelado e ao Programa de Mestrado em Letras<br />
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Diante disso, na análise proposta para este artigo, será de extrema importância<br />
fazer um entrelace entre o texto, gênero musical, e a história para trazer sentidos não<br />
explícitos, já que as articulações das idéias possibilitam dupla interpretação. Salienta-se<br />
que esse artifício de ambigüidade era uma poderosa arma da arte para manifestar<br />
opiniões. Nesse quesito demonstra-se a genialidade de Chico Buarque, que traz uma<br />
obra sob a perspectiva do proletariado, da massa reprimida e sem condições dignas para<br />
viver.<br />
DITADURA MILITAR E ARTE NO BRASIL<br />
No ano de 1960 é inaugurado Brasília, no governo do até então presidente<br />
Juscelino Kubitschek. A criação do Distrito Federal não seria apenas um marco para o<br />
desenvolvimento no governo JK, mas proporcionaria inspiração para os artistas da<br />
época. Nesse período surge a bossa-nova com João Gilberto, que para Tinhorão (1974,<br />
p.221), “não constituiu um gênero de música, mas uma maneira de tocar”. Não diferente<br />
da música, o cinema brasileiro iniciaria uma nova proposta com Glauber Rocha e Ruy<br />
Guerra; os grupos teatrais Teatro Oficina e Arena também fariam parte de um<br />
movimento artístico que manifestaria indagações e críticas por meio da arte.<br />
Após o governo de Juscelino Kubitschek, assume em 31 de janeiro de 1961,<br />
como relembra Chiavenato (1994), Jânio da Silva Quadros e seu vice João Belchior<br />
Marques Goulart, ainda que a dupla governamental Jan-Jan não permaneceria por muito<br />
tempo. No mesmo ano, em 25 de agosto, Jânio Quadros renuncia à presidência, atitude<br />
que, para alguns, foi uma tentativa de golpe fracassado, como afirma Chiavenato (1994,<br />
p. 11): Jânio “ao apresentar seu pedido de demissão, esperava que não o aceitassem e<br />
lhe oferecessem plenos poderes, e ele, então, assumiria como ditador”. Quando Jânio<br />
renuncia, seu vice João Goulart estava em missão diplomática na República Popular da<br />
China. Goulart ao retornar para o Brasil se depara com a situação política instável do<br />
país, pois os militares haviam vetado o seu direito de assumir a presidência. Após<br />
resistência contra os atos militares encabeçada por Leonel Brizola, governador do<br />
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Estado do Rio Grande do Sul, Goulart, enfim, toma posse do governo, mas fica visível a<br />
tentativa fracassada de golpe por parte dos militares. O golpe se concretizaria em 1964.<br />
Ainda sob a óptica de Chiavenato (1994), João Goulart, em seu mandato,<br />
prosseguiu com uma visão política diferente dos grupos de direita que eram subsidiados<br />
pelo capital estrangeiro. Durante seu governo apresentou propostas de reformas, dobrou<br />
o salário mínimo, apoiou sindicatos, mantinha um relacionamento com partidos<br />
declarados comunistas e recebia apoio dos mesmos. Por Goulart ter tal adesão, os<br />
militares iniciados em um anticomunismo primário, encontraram na sociedade, grupos<br />
que apoiassem a proposta de que deveriam ocorrer mudanças na direção do país. Com o<br />
amparo da classe desfavorecida, com a proposta de reforma agrária e da igreja, deu<br />
continuidade ao golpe fracassado em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, de<br />
assumirem o posto político máximo, a presidência da república.<br />
Chiavenato (1994) lembra que no dia 31 de março de 1964, mas legitimado no<br />
dia 1 de abril, ocorreu o grande golpe de Estado almejado pelos militares influenciados<br />
pelo governo norte-americano e por uma fração da população brasileira. Para evitar uma<br />
guerra civil, João Goulart decidiu refugiar-se no Uruguai e mais tarde na Argentina.<br />
Como conseqüência do golpe, Goulart teve seus direitos políticos cassados.<br />
Com os militares no governo se inicia um dos períodos mais obscuros da nossa<br />
história. Período que alcançaria manifestações artísticas e a economia do país que<br />
influenciava diretamente o cotidiano da classe desfavorecida da nação brasileira, que<br />
será muitas vezes retratada na arte. Com todas as mudanças ocorridas desde 1961 a<br />
1964, e as conseqüências refletidas na sociedade, a arte toma o seu papel de condutora e<br />
formadora de opiniões.<br />
Reimão (2006) apresenta o fato de que nos primeiros quatro anos da ditadura,<br />
os militares mantinham a postura de direita, mas conviviam com manifestações<br />
culturais que aludiam mensagens de grupos de esquerda. Durante o governo de Castelo<br />
Branco, a repressão a vários grupos artísticos já existia, mas o governo não tomava uma<br />
postura em relação à violência que era aplicada. Grupos, que muitas vezes, apenas<br />
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remeteriam em suas obras uma característica de crítica, seriam interpretados como<br />
afronta ao sistema político estabelecido.<br />
Costa e Sergl (2007) ressaltam que após o ano de 1964, as manifestações<br />
artísticas se intensificam. O cinema e o teatro são os primeiros e principais condutores<br />
de arte a sofrerem com a censura no início do regime militar. Em um futuro não muito<br />
distante, a música tomaria o papel principal de arte censurada. Mello e Ramirez (2008)<br />
destacam que para a censura toda e qualquer obra era politizada. O resultado dessas<br />
avaliações seria a livre circulação e amostragem da arte, ou a dura proibição.<br />
O teatro foi um dos primeiros a sofrer com o regime militar. Maciel (2009)<br />
aponta a idéia de que os palcos das principais cidades se tornaram em verdadeiros<br />
campos de batalhas, cujo objetivo principal era abordar questões democráticas. O<br />
resultado dos atos cênicos seria um grande manifesto de opinião crítica, gerando, em<br />
seus espectadores, uma forma de avaliação à época. Com essa postura, o teatro<br />
despertava a atenção dos censores. Grupos com caráter nacionalista como Teatro<br />
Oficina, sob a direção de Zé Celso e Arena que contava com a participação do<br />
dramaturgo Augusto Boal, eram os mais visados no momento, mesmo não sendo o<br />
período mais crítico em relação à repressão de opiniões. Peça como “O Rei da Vela” de<br />
Oswald de Andrade, encenada pelo Teatro Oficina, foi censurada após sua estréia como<br />
ressalta Zagni (2007). Seria oportuno, relembrar que, com a censura, os teatros recorrem<br />
à encenação de peças antigas, se expressando de forma metafórica para não sofrerem<br />
com a proibição de apresentação de seus atos cênicos, conforme Costa e Sergl (2007).<br />
No início de 68, ano de grande censura, o diretor do grupo Opinião faz uma<br />
declaração no programa da peça Roda Viva, sobre o esforço para criar, e a eficiência da<br />
censura em destruir esse esforço. Pinto (2001, p. 162-163) transcreve a declaração do<br />
diretor do Grupo Opinião:<br />
[...] Sinto que nossa geração está no limite: todos os esforços da gente de<br />
teatro, de cinema, etc., tudo vai por água abaixo em virtude de uma situação<br />
de crise econômica permanente e do progressivo terrorismo cultural. O<br />
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esforço criador é imenso e a eficiência incrível, superdesenvolvida,<br />
maravilhosa, racional que a censura faz para destruir tudo é ainda maior. No<br />
setor público ela é uma das raras coisas que funcionam neste país e portanto<br />
ou tomamos sérias medidas ou vamos ter uma imensa vergonha de nos<br />
encontrar uns com os outros.<br />
Em outros ramos da arte, Zagni (2007) declara que o cinema novo, inspirou-se<br />
como obra engajada no filme Rio 40 graus de Nelson Pereira Santos. O filme pretendia<br />
mostrar a realidade da favela, mas foi censurado, classificado como conteúdo que<br />
faltava com a verdade. Ainda segundo Zagni (2007), o cinema novo apresentava uma<br />
proposta de contragolpe ao regime, propondo a idéia de relatar a fome, algo que não<br />
confirmava a propaganda utópica dos militares. Como as emissoras de televisão, em sua<br />
maioria, eram manipuladas pelo regime, suas propagandas mostravam um Brasil<br />
totalmente diferente da realidade. Suas propagandas muitas vezes eram destinadas<br />
apenas a classe que detinham certo poder aquisitivo, excluindo, assim, a massa que não<br />
possuia um poder econômico favorável. Alguns dos principais precursores do cinema<br />
novo no Brasil foram Nelson Pereira Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de<br />
Andrade, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Roberto Santos, Ruy Guerra, e muitos outros<br />
que contribuíram para um cinema engajado.<br />
Conforme Pinto (2005), com a reorganização da censura, a política de cortes<br />
que pretendia defender a “moral católica-cristã”, concentrava-se apenas em cenas de<br />
sexo, palavrões e a faixa etária. Com o decorrer do tempo, os filmes que aludiam algo<br />
contra o governo e a situação da época sofreriam com a censura. Muitos investidores<br />
eram intimidados a não mais investirem, resultando em um processo de criação<br />
laborioso para os cineastas, atores e toda equipe envolvida na produção desses filmes,<br />
forçados a inovarem suas técnicas e materiais.<br />
Linhares (1990) sustenta que a música, não muito diferente das outras<br />
expressões artísticas, sofreu com a ditadura ainda em sua fase Bossa Nova, a nova<br />
proposta musical iniciada com João Gilberto. A identificação com questões sociais era<br />
entrelaçada com o lirismo. Segundo Napolitano (2005), nos meados dos anos 60 a <strong>MPB</strong><br />
tornou-se Música Crítica de Esquerda, título alcançado pelo motivo de em seu meio e<br />
forma de expressão participar vários artistas engajados que eram acusados muitas vezes<br />
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de serem comunistas. Alguns desses foram: Geraldo Vandré, Nara Leão, Edu Lobo,<br />
Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros, que sofreram por causa de<br />
suas obras que alcançavam tanto os intelectuais, quanto as classes econômicas<br />
classificadas como inferiores. A música começaria com seu papel de destaque aos olhos<br />
da censura.<br />
Em tal contexto musical, Costa e Sergl (2007) mencionam que entre os anos de<br />
65 e 68 o movimento musical torna-se mais intenso com os festivais musicais<br />
promovidos pelas redes de emissoras televisivas. Como o público desses festivais<br />
musicais era formado por estudantes acadêmicos formadores de opiniões, mas que<br />
também alcançava a massa dos trabalhadores, se inicia o momento de caça as bruxas<br />
aos artistas engajados. Os festivais teriam um importante papel de exteriorizar os<br />
sentimentos e indagações contidos pelo público, na maioria por jovens. Meneses (2002,<br />
p. 29) sustenta a idéia de que os festivais “canalizavam parte da necessidade de<br />
agremiação, de debate público, da insatisfação e vontade insofrida de participação da<br />
juventude.” O resultado seria uma censura obrigada a tomar uma atitude mais agressiva<br />
em relação aos protestos. Reimão (2006) destaca que a censura exerceria não somente o<br />
papel inicial de legitimar a ditadura e liquidar o contato com a massa operária e<br />
camponesa com a produção cultural, mas de ser uma arma contra a subversão e<br />
clandestinidade dos grupos de esquerda.<br />
Com base em Severiano (2008), em abril de 1965 o I Festival Nacional da<br />
Música Popular Brasileira, promovido pela emissora Excelsior do Rio de Janeiro e São<br />
Paulo, dá inicio a então chamada Era dos Festivais. Nessa primeira edição, o primeiro<br />
lugar ficou com a canção Arrastão, composta por Edu Lobo e Vinicius de Moraes e<br />
interpretada por Elis Regina. O II Festival da Música Popular Brasileira foi promovido<br />
pela TV Record. O festival teve em primeiro lugar as músicas A Banda de Chico<br />
Buarque e Disparada de Vandré, após um acordo sugerido por Chico. E para consolidar<br />
os festivais, foi realizado o I Festival Internacional da Canção, organizado pela TV Rio<br />
em 1966. Esses eventos proporcionariam uma grande oportunidade de artistas<br />
manifestarem opiniões e alcançarem o público das mais diferentes classes econômicas.<br />
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O resultado foi a preocupação do regime vigente e os censores com as conseqüências<br />
que poderiam ocorrer com uma nação formadora de opiniões e cheia de<br />
questionamentos ao governo que antes pregava mudanças, mas que já mostrava<br />
resquícios de sua linha dura e repressiva.<br />
Acompanhando a idéia de Severiano (2008), no ano de 1968 é realizado o III<br />
Festival Internacional da Canção, o mais político dos festivais. A platéia manifestava<br />
repúdio ao regime com o simples ato de torcerem por determinados concorrentes e<br />
influenciarem nos resultados com vaias e assovios. Prova disso foram as vaias<br />
oferecidas quando o resultado do festival foi anunciado. A música Sabiá, de autoria de<br />
Chico Buarque e Tom Jobim, interpretada pelas irmãs Cynara e Cybele foi escolhida<br />
pelo júri como primeira colocada na fase nacional. O público havia se identificado com<br />
a canção de Geraldo Vandré, que era uma afronta mais explícita ao regime, intitulada<br />
Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores. A música de Geraldo se tornaria a principal e<br />
mais radical canção de protesto, carregada de afronta e apelo revolucionário que<br />
desafiava os militares. Para Meneses (2002, p. 25), a canção de protesto exerce a função<br />
de “válvula de escape para o sentimento de insatisfação da juventude.” Tal afirmação<br />
conduz a idéia de que a música era uma forma encontrada para que a sociedade pudesse<br />
exprimir seus sentimentos em relação ao período de tensão e medo.<br />
Vilarino (2005) manifesta a idéia de que, com a apresentação da música<br />
Caminhando no III Festival Internacional da Canção, nota-se um governo que ainda<br />
tolerava certas manifestações artísticas. Nesse período a censura já monitorava cinemas,<br />
teatros e shows como uma rotina policial. Após o festival de 68, essa prática torna-se<br />
mais ostensiva com o decreto do AI-5 1 . Com o ato institucional decretado, a vigilância<br />
aos meios condutores de arte e a perseguição aos seus respectivos artistas tornar-se-ia<br />
mais acirrada, tendo sempre a área musical em evidência. O fluxo da música era<br />
facilitado por meio das rádios e das próprias emissoras de televisão, já que muitos<br />
programas eram estruturados nos parâmetros radialísticos. Essa estrutura facilitava um<br />
contato maior com todas as classes socioeconômicas. O período de maior censura, que<br />
1 Ato Institucional n.º 5<br />
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seria de 1969 a 1974, mais conhecido como Anos de Chumbo, seria no governo do<br />
presidente General Emílio Garrastazu Médici.<br />
Com o decreto do AI-5, uma cultura crítica era praticamente exterminada.<br />
Costa e Sergl (2007, p.36) emprestam a idéia de Gabeira e mencionam que “o AI-5 foi<br />
um golpe dentro do golpe, um golpe de misericórdia na caricatura de democracia.<br />
Caímos, aí sim, na clandestinidade”. Qualquer cidadão tornava-se suspeito de<br />
movimentos e envolvimentos com partidos comunistas ou atos que indicavam alguma<br />
postura contrária à ditadura. Começa a política de suspeita. A arte como condutora de<br />
opinião começa a sofrer vários contragolpes. Artistas seriam perseguidos e torturados, e<br />
a elaboração de suas obras seria muitas vezes um ataque direto à censura, e em outras,<br />
de forma subliminar. Com esteio nas idéias de Costa e Sergl (2007), essas vertentes de<br />
produção podem ser verificadas nas obras de Geraldo Vandré e Chico Buarque. O<br />
primeiro sempre com seus ataques diretos, já o segundo, com a sua destreza em<br />
manipular a palavra, conseguiria se expressar de forma mais sutil, mas ao mesmo<br />
tempo, fugaz. Não diferente, o teatro começou a encenar peças com metáforas, forma<br />
encontrada para esquivar-se da censura.<br />
Napolitano (2004) menciona que Geraldo Vandré com as canções apresentadas<br />
nos festivais torna-se o suspeito número um do regime como artista engajado. Pinto<br />
(2005) lembra que, por conseqüência desse status de artista engajado, Geraldo foi<br />
perseguido e censurado. A censura em sua caminhada de desarticulação do contato da<br />
produção cultural com a massa operária, resolveu então, literalmente, caçar os artistas<br />
engajados, elaborando perfis, potencializando uma conduta profissional em uma<br />
situação de suspeita. Com Vandré não foi diferente. Com essa perseguição, os serviços<br />
de informação constantemente vigiavam as suas atitudes em meio ao cenário musical.<br />
Napolitano (2004) transcreve o seguinte trecho do relatório:<br />
Geraldo Vandré é tido como comunista atuante. Consta que seu pai, médico<br />
em João Pessoa, é um dos chefes comunistas do Estado da Paraíba. Segundo<br />
anotações datadas de 13 de agosto de 1968, GV é identificado como<br />
pertencente ao movimento determinado “AP” (...) encontra-se na Bulgária,<br />
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onde participou do Festival Mundial da Juventude realizado em Sófia,<br />
concorrendo com a apresentação de uma canção denominada “CHE”,<br />
obtendo o 1º lugar, sendo-lhe agraciado o grande prêmio medalha de ouro. O<br />
cantor em apreço deixou o Brasil no dia 22 de julho último, acompanhado do<br />
Trio Maraiá, compondo uma comitiva de 150 pessoas, incluindo intelectuais,<br />
estudantes e parlamentares. Consta que atualmente se encontra em Moscou,<br />
onde fará uma série de apresentações na TV Russa. Seu regresso está previsto<br />
para o dia 30, em São Paulo, vindo de Lisboa”. (Informação 093, DOPS/DI,<br />
14/10/1968)<br />
Vilarino (2007) menciona que no difícil período que se iniciava, Vandré não<br />
suporta a repressão que sofre e resolve exilar-se na França em 68, após gravar a música<br />
Pra não dizer que não falei de flores. Com seu exílio, Chico Buarque assumiria o papel<br />
de cantor de protesto, mesmo que sempre renegue tal status atribuído pela censura e, até<br />
mesmo, pelo povo. Quando Vandré retorna ao país, renega sua obra e torna-se apenas<br />
um advogado. Vilarino (2007) lembra que outros compositores experimentariam o<br />
exílio. Entre eles estariam Chico Buarque (Itália), Edu Lobo (EUA), Caetano e Gil, que<br />
após ficarem seis meses presos, resolveram se exilarem em Londres.<br />
No decorrer dos festivais, a presença de Chico, Edu Lobo e Caetano, precursor<br />
da Tropicália, movimento que resultaria em seu exílio e de Gilberto Gil, eram a<br />
esperança do público para manifestarem suas indignações. Severiano (2008) menciona<br />
que o alento dessa coletividade, começaria a sofrer a experiência do declínio dos<br />
festivais, já que o IV Festival da Música Popular Brasileira seria o último a contar com<br />
artistas engajados. O VI Festival Internacional da Canção, seria marcado por 12<br />
compositores que cancelariam suas participações na hora H. Alguns desses artistas era<br />
Jobim e Chico. A atitude tomada seria uma forma de conspiração e protesto que os<br />
artistas encontraram para demonstrarem repúdio à censura. Severiano (2008) menciona<br />
que tal conspiração foi organizada pela Aliança Libertadora Nacional, grupo que agia<br />
em sua maioria na clandestinidade, já que a censura imposta pelo AI-5 tornara-se<br />
perigosa, colocando a vida de seus opositores em perigo.<br />
Vale destacar o movimento poético musical, denominado Tropicália, que foi<br />
colocado em prática no III Festival da Record em 67. Caetano e Gil trouxeram uma<br />
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proposta musical diferente. Estilo que misturava influências musicais e recursos<br />
estrangeiros com elementos culturais brasileiros, que para SILVA (2004, p.49), a única<br />
maneira para justificar tal aglutinação “foi a descoberta e a assimilação da<br />
antropofagia”. Severiano (2008) explicita que o recurso utilizado de unir influências do<br />
POP internacional dos Beatles, instrumental eletro-eletrônico e vertentes do brega<br />
popularesco tornaria a música brasileira mais universal. O movimento que ficara em<br />
evidência apenas entre setembro de 67 a dezembro de 68, contrapôs algo novo, pois<br />
continha tendências radicais se comparado com a pós-bossa nova. O Tropicalismo<br />
apresentava uma postura de deboche anarquista, que era muitas vezes reprovada pelo<br />
público.<br />
Como os festivais não contavam mais com os artistas que apresentavam<br />
composições com um teor político engajado, as conhecidas canções de protesto que<br />
realizava o papel contestador da sociedade como enfatizam Costa e Sergl (2007),<br />
acarretaria o declínio desses eventos. Severiano (2008) enfatiza que as apresentações<br />
tornaram-se disputas musicais intercaladas com debates no V Festival da Música<br />
Popular Brasileira. Outro fato ocorrido foi o ato de brutalidade da ditadura destituindo o<br />
júri nacional. O VII Festival Internacional da Canção marcaria definitivamente o fim da<br />
era dos festivais.<br />
Em paralelo com esses eventos musicais, o cinema novo brasileiro continuava<br />
contribuindo com sua vertente de arte engajada. Embasado nos dados de Pinto (2001),<br />
no ano de 68 foram lançados filmes como O dragão da maldade contra o santo<br />
guerreiro, de Glauber Rocha; O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla;<br />
Opinião Pública, de Arnaldo Jabor; Jardim de Guerra, de Neville d’Almeida; Fome de<br />
Amor, de Nelson Pereira Santos (precursor do cinema engajado); Os herdeiros, de<br />
Carlos Diegues. Entre esses, o maior representante do cinema novo engajado foi<br />
Glauber Rocha, que filmou Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 64 e Terra em Transe,<br />
em 67, filme que seria censurado. Segue um trecho do relato do censor em abril de<br />
1967, transcrito por Pinto (2005):<br />
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Concluindo:<br />
Captamos em seu contexto frases, cenas e situações com propaganda<br />
subliminar. Mensagens negativas e contrárias aos interesses da segurança<br />
nacional. Aspectos de miséria e de luta entre classes, além de uma bacanal e<br />
de cenas carnavalescas e de amor são outros pontos inseridos no roteiro –<br />
com a finalidade de enriquecê-lo e torná-lo suscetível ao grande público<br />
ávido de novidades na tela. Alguns diálogos chegam a serem agressivos, com<br />
insinuações contra a verdadeira e autêntica democracia. Outros fazem<br />
apologia à luta entre ricos e pobres. Várias mensagens têm origem nos<br />
conhecidos ‘chavões’ de propaganda subversiva. A figura de um padre é<br />
colocada em situação comprometedora e até certo ponto ridícula.<br />
Consideramos o filme portador de mensagens contrárias aos interesses do<br />
País, motivo pelo qual deixamos de liberá-lo, aconselhando seja o mesmo<br />
examinado por elementos do Conselho de Segurança Nacional e pela Douta<br />
Chefia do SCDP [Serviço de Censura de Diversões públicas] e Direção-Geral<br />
do DFSP [Departamento Federal de Segurança pública.<br />
Pinto (2001) menciona que, embasado no parecer do censor, Terra em Transe<br />
teria suas cópias recolhidas e sua exibição proibida em todo território nacional. Mais<br />
tarde, o filme seria liberado, pois sua mensagem era considerada sutil e somente o<br />
público instruído perceberia, entretanto, não seria dominado por tal. Quando os filmes<br />
não eram proibidos, sofriam cortes de cenas que muitas vezes tornava-os<br />
incompreensíveis. Fato curioso, mencionado por Pinto (2006), foi que filmes<br />
censurados ou que continham corte de cenas, eram liberados para serem importados sem<br />
cortes, e até mesmo, antes de serem avaliados pela censura e receberem o selo de boa<br />
qualidade. Pinto (2005) destaca que a partir de 68 e a década de 70, o cinema foi<br />
sufocado pela censura, da mesma forma que as outras manifestações artísticas e<br />
recorreram ao uso de metáforas. O recurso foi utilizado para tentar diminuir a proibição<br />
de exibição de filmes.<br />
Zagni (2007) sustenta que as obras de Glauber Rocha tinha como característica<br />
marcante as questões sociais nacionais, contrapondo as propagandas exibidas em redes<br />
televisivas que eram manipuladas pelo governo. Tal característica de Glauber resultou o<br />
exílio em 1971.<br />
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Uma atitude de controvérsia no período da ditadura, destacada por Pinto<br />
(2005), foi a criação da empresa estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes<br />
intitulada Empresa Brasileira de Filmes <strong>Sociedade</strong> Anônima (Embrafilme). Ao mesmo<br />
tempo em que o regime vigente proibia, também financiava o cinema brasileiro,<br />
produzindo e distribuindo produções cinematográficas.<br />
Neto (2007) ressalta que para o regime militar o papel do cinema era entreter o<br />
público. Um artifício encontrado foi investir em filmes que continham cenas de apelo<br />
sexual, porém não explicito. Na época essas produções eram enquadradas no gênero da<br />
pornochanchada. Obras cinematográficas dessa classificação enchiam os cinemas e<br />
alcançava o principal objetivo do governo, distrair o povo em relação à situação a que<br />
eram submetidos. As produções da pornochanchada eram produzidas em um logradouro<br />
situado próximo ao centro de São Paulo, intitulado de A Boca do Lixo. Conforme Zagni<br />
(2007), em média, foram produzidas 700 pornochanchadas. Tais produções também<br />
continham uma visão crítica, mas não ao extremo, tornando-se obras que não ofereciam<br />
perigo algum aos militares e a forma utilizada para conduzirem o país.<br />
Assim como a música e o cinema, o teatro também foi atingido pela falta de<br />
liberdade para expressar opiniões. As produções seriam censuradas e seus artistas<br />
perseguidos, torturados e forçados a buscarem o exílio nos Anos de Chumbo. A<br />
liberdade de expressão seria fadada ao silêncio, nenhuma produção poderia conter<br />
sequer uma alusão ou referência crítica. Mello e Ramirez (2008) citam a idéia de Faria,<br />
e reforça que:<br />
No início dos anos setenta, a violenta repressão à produção cultural atingiu<br />
em cheio o teatro. Qualquer referência crítica a um ou outro aspecto da<br />
realidade brasileira, a mínima alusão ao clima de sufoco e insegurança em<br />
que estávamos mergulhados bastava para que uma peça teatral fosse proibida.<br />
Dramaturgos como Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Oduvaldo<br />
Vianna Filho, Dias Gomes, Plínio Marcos, José Vicente, Leilah Assunção,<br />
Consuelo de Castro, Antônio Bivar, Carlos Queiroz Telles, Chico Buarque,<br />
Ruy Guerra, Paulo Pontes, para citar alguns nomes mais conhecidos, não<br />
puderam trabalhar em paz. Suas obras ou foram sumariamente banidas dos<br />
palcos, por determinação da censura.<br />
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Zagni (2007) sublinha que em 71, Augusto Boal iniciou a experiência de<br />
transformar as notícias dos jornais em peças teatrais carregadas de extrema crítica e que<br />
mais tarde se tornaria o Teatro Oprimido. Por Boal conter essas características em suas<br />
produções, foi forçado a buscar exílio na Argentina após ter sido preso e torturado no<br />
mesmo ano. Zé Celso também sofreria com a perseguição a artistas engajados. Como o<br />
Teatro Oficina encenava atos com teor de manifesto, a censura já havia fechado o cerco,<br />
levando Zé Celso a tomar a decisão de exilar-se no ano de 74 após ter sido preso e<br />
torturado pelos agentes do DOPS. Zé Celso era acusado de se envolver com a Ação<br />
Libertadora Nacional (ALN). Tanto o Arena quanto o Oficina teriam suas trajetórias<br />
interrompidas.<br />
Com uma população ciente dos fatos que estavam ocorrendo, já haviam<br />
formado uma opinião política suficiente para reivindicarem a democratização do país, a<br />
queda da censura e a luta contra a violência usada pela repressão. Após a morte do<br />
estudante Edson Luís de Lima Souto, que foi assassinado por um efetuado da arma de<br />
um policial quando efetuava uma invasão ao restaurante Calabouço, desencadearia um<br />
dos protestos mais significativos: A passeata dos cem mil. O protesto foi realizado no<br />
dia 26 de junho de 1968. A passeata contava também com alguns artistas, entre eles,<br />
Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que buscavam principalmente o direito<br />
de liberdade de expressão.<br />
Durante o regime militar entre o período de 1964 a 1985, as perdas que o Brasil<br />
sofreu são incalculáveis, principalmente na produção cultural. Reimão (2006) cita os<br />
dados de Ventura, que propõe a estimativa de que foram censurados 200 livros, 500<br />
filmes, 450 peças teatrais, 100 revistas, 500 letras de músicas, programas de rádio e 12<br />
capítulos de sinopses de telenovelas. Se por um lado a história é marcada por atos<br />
obscuros de mortes, torturas, desaparecimento de pessoas e pela censura aos<br />
movimentos artísticos, esses acontecimentos são contrastados com o papel que a arte<br />
exerceu de ser uma condutora de críticas e opiniões. É plausível destacar que a arte era a<br />
porta-voz daqueles que sofriam com as conseqüências da ditadura. Um dos principais<br />
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artistas que comprovaria esse papel, utilizando a música como condutora de indagações,<br />
seria Chico Buarque de Holanda.<br />
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO EM APESAR DE VOCÊ<br />
O texto em questão, a música de Chico Buarque, intitulada Apesar de Você,<br />
tomará sentido como música de artista engajado somente se assimilarmos o texto com a<br />
história. Será necessário colocar a palavra em movimento para formação de significado,<br />
suas ambigüidades, ironias, metáforas, enfim, os recursos disponíveis para a criação que<br />
busca não cair no óbvio para ludibriar a censura. Esse laborioso trabalho de garimpar as<br />
palavras para não cai no lógico foi de grande relevância em determinado período de<br />
extrema repressão à exposição de idéias e questionamentos que fossem contrários ao<br />
regime militar. A arte assume o papel de válvula de escape de uma sociedade reprimida<br />
nos anos de chumbo. Para tanto, é preciso fazer a relação das condições de produção, da<br />
história em si, para reconhecer os excluídos, a massa e os artistas condenados à<br />
clandestinidade.<br />
Apesar de Você seria a primeira canção de Chico Buarque que sofreria com a<br />
censura e a realidade da nação brasileira nos anos 70. Logo após retornar de seu exílio<br />
na Itália, Chico se depara com a situação alarmante da nação. A música é carregada de<br />
duplo sentido. Pode ser interpretada como uma mulher muito mandona, como o próprio<br />
Chico diria em interrogatório, ou uma afronta direta ao presidente Médici. Para Silva<br />
(2004, p.68) Apesar de Você seria um “manifesto contra o Brasil do milagre”, com sua<br />
política de desaparecimento de cidadãos que eram contrários ao regime.<br />
No início da música, nota-se a ambigüidade nas palavras que Chico utilizou.<br />
Tal recurso seria freqüente na obra do artista, dificultando a captura lógica dos censores.<br />
Hoje você é quem manda<br />
Falou, tá falado<br />
Não tem discussão, não.<br />
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O pronome pessoal “você”, infere essa dualidade de sentidos, possibilitando a<br />
interpretação de ser uma mulher mandona, como Chico citara em interrogatório, ou o<br />
presidente Médici. Nota-se a importância da relação do texto com o período histórico<br />
compreendido nas décadas de 60 a 80.<br />
da música:<br />
Essa característica de duplo sentido também pode ser notada no verso seguinte<br />
A minha gente hoje anda<br />
Falando de lado e olhando pro chão, viu?<br />
O substantivo “gente” pode indicar os artistas censurados, entre eles, Caetano e<br />
Gil, ou uma sociedade que estava condenada a seguir uma política opressora. Como a<br />
ditadura não proporcionava a democracia, essa “gente” estaria fadada ao silêncio, tendo<br />
que se expressar de forma subjetiva e acatar as ordens que lhes eram impostas. Com<br />
essa política, tanto os artistas, quanto a sociedade não poderiam expressar suas<br />
indagações ou manifestos que remeteria alguma crítica ao governo e a sua propaganda<br />
do falso milagre econômico.<br />
Outra passagem que pode ser lida com ambigüidade:<br />
Você que inventou esse estado<br />
Inventou de inventar<br />
Toda escuridão<br />
Você que inventou o pecado<br />
Esqueceu-se de inventar o perdão.<br />
Apesar de você<br />
No trecho acima, “apesar de você” pode ser interpretado como “ah pesar”, um<br />
recurso homofônico que alude um sentimento de desgosto que o sujeito sentia em<br />
relação ao “você”, o presidente Médici.<br />
Outro artifício notório na obra é a ironia, como pode ser analisado.<br />
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Apesar de você<br />
amanhã há de ser outro dia.<br />
A obra engajada de Chico pode ser divida em dois tempos, o amanhã libertado<br />
e o hoje opressor, como ressalta Napolitano (2003, p. 116) embasado na teoria de<br />
Meneses. O advérbio de tempo “amanhã” infere esse tempo futuro libertado e sugere<br />
uma ameaça ao regime vigente. Ainda por esse viés, nota-se que o “você” é ironizado,<br />
pois independente da postura que ele adotaria, “amanhã seria outro dia”, um novo<br />
amanhecer, outra realidade não condizente com a vivenciada naquele momento.<br />
Ainda nos atendo à ironia.<br />
Eu pergunto a você onde vai se esconder<br />
Da enorme euforia?<br />
Como vai proibir<br />
Quando o galo insistir em cantar?<br />
De forma irônica, o sujeito lança a pergunta de como o “você” iria se esconder<br />
quando o jogo de proibir não causasse mais efeito. A pergunta soa como um ataque<br />
direto ao ditador opressor e é salientada por outra pergunta de como “vai proibir quando<br />
o galo insistir em cantar?”. Subtende-se que “o galo” é uma forma metafórica do povo,<br />
e “cantar”, a maneira encontrada de demonstrar opinião crítica. O verbo “cantar” pode<br />
ser interpretado como uma postura de expressar indignações de forma audível, não mais<br />
se escondendo, ou por meio da arte, já que a música era uma das manifestações mais<br />
vigiada pelo departamento de censura a diversões públicas.<br />
Por conseqüência dessas ambigüidades, as músicas de Chico Buarque seriam<br />
constantemente censuradas. Em Apesar de Você nota-se essa dificuldade em compor no<br />
seguinte verso:<br />
Esse samba no escuro<br />
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A palavra “escuro” remete essa dificuldade, sugerindo não apenas o sentido de<br />
falta de luz, mas a incerteza que os artistas tinham se as músicas compostas seriam<br />
liberada para gravação e apresentadas ao público. Devido a essa incerteza muitos<br />
artistas insistiam em cantar suas canções mesmo que censuradas. Um episódio que<br />
demonstra essa “teimosia” em cantar música censurada pode ser lido no relato transcrito<br />
por Meneses (2000, p. 91), situação essa que se refere à música Cálice composta por<br />
Chico e Gilberto Gil, em que o “Cálice” (cale-se) foi traduzido de forma literal.<br />
Para impedir que a palavra “Cálice” (cale-se) fosse pronunciada, cortaram o<br />
som de todos os microfones do Anhembí, um após o outro. Chico, com raiva,<br />
começava a cantar num deles, o som era desligado; ele pegava outro, também<br />
faziam o mesmo, e outro, e outro. E assim iconizou-se. Para que ninguém<br />
ouvisse o “cale-se”, a censura levou aquelas três mil pessoas presentes ao<br />
show a verem o “cale-se” dramaticamente concretizado nos microfones<br />
calados.<br />
Ainda em Apesar de Você é possível ressaltar outras passagens que<br />
possibilitam uma análise que reforça a representação de música engajada.<br />
Como vai abafar<br />
Nosso coro a cantar,<br />
Na sua frente.<br />
O verbo “abafar” toma o sentido de silenciar. Essa prática de silenciar é<br />
direcionada a todos os esquerdistas, ao proletariado, enfim, todos que sofreram com a<br />
dor do silêncio, que são indicados na palavra “coro”, que representa a união de várias<br />
vozes. Além dessa junção de vozes cantando uma só canção, a da liberdade de<br />
expressão e opinião, mais uma vez o antagonista da obra é ridicularizado. Tal<br />
argumento pode ser compreendido quando lido o verso “Na sua frente”. Independente<br />
de apreciar, ou não, a manifestação realizada pelos oprimidos – e tudo indica que não<br />
seria algo que traria satisfação ao opressor, pois aponta para um tempo já libertado –<br />
mais uma vez o adversário da massa seria posto à impotência de reagir.<br />
Outro fator de extrema importância a ser analisado é que o texto em questão é<br />
transmitido por meio do samba, gênero musical que geralmente traz a sensação de<br />
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alegria, porém, em escala menor que causa o efeito de introspecção. Diante disso,<br />
reforça-se o poder da música em expressar o grito oprimido de uma sociedade<br />
silenciada pelo medo, justificando assim, o porquê era tão vigiada – a música – pelos<br />
departamentos de censura, sofrendo tanto para ser concebida no leito da dor.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
A proposta aqui apresentada foi de estabelecer um elo do texto com a história<br />
para se obter a construção de sentido, uma possibilidade de leitura da obra de Chico<br />
Buarque, sabendo-se que uma obra de tal gabarito traz consigo muito mais do que<br />
imaginamos ou sabemos. Algo a ser ressaltado é que a visão apresentada é a do<br />
excluído. O compositor fez-se, e era, povo reprimido para denunciar ou referir-se ao<br />
governo militar. Então, muito mais do que é visto nessa análise proposta pode vir à tona<br />
se tomarmos outro caminho para análise. A apresentada limitou-se à história para<br />
construir sentido.<br />
Assim, pode-se identificar um quesito importante: a literatura, a arte, é a<br />
manifestação e o reflexo da sociedade; a arte em questão é a música. A música que é um<br />
discurso materializado em sons, palavras harmonizadas com o papel de transmitir<br />
críticas, ideologias, persuadir o seu receptor, a manifestação daquilo que o sujeito<br />
carrega consigo e conseqüência de toda a sua formação. Tudo isso possibilitado pela<br />
linguagem.<br />
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