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Recebido até Agosto/2011, aprovado até Setembro/2001.<br />

Vinculada ao Curso de Letras: Licenciatura e Bacharelado e ao Programa de Mestrado em Letras<br />

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul<br />

Unidade Universitária de Campo Grande – MS<br />

A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO: INTERTEXTOS EM CENA ∗<br />

www.cepad.net.br/linguisticaelinguagem<br />

www.linguisticaelinguagem.cepad.net.br<br />

Letícia Pereira de Andrade<br />

UEMS/PG-UFRGRS<br />

RESUMO: O presente trabalho propõe um diálogo do conto “A volta do marido pródigo”, de Guimarães Rosa,<br />

com outros textos, sobretudo sua adaptação teatral realizada pelo escritor e tradutor Paulo Hecker Filho, a partir<br />

do aparato teórico da Literatura Comparada e a intertextualidade.<br />

Palavras-chave: intertextos; conto; teatro.<br />

ABSTRACT: This paper proposes a dialogue of the short story "The Return of the Prodigal Husband," by Rosa,<br />

with other texts, especially his theatrical adaptation performed by the writer and translator Paul Hecker Filho,<br />

from the theoretical apparatus of Comparative Literature and intertextuality.<br />

Key-words: intertexts; short story; theater.<br />

ABRE-SE A CORTINA<br />

Parece óbvio que o conto “A volta do marido pródigo”, extraído do livro Sagarana<br />

(1946) de Guimarães Rosa, revela um caráter intertextual com a Parábola do Filho Pródigo,<br />

encontrada no Novo Testamento, narrada, entre outros Evangelistas, em Lucas 15.11-32. Mas,<br />

ao cursar a disciplina “Literatura Comparada: intertextualidade e Interdisciplinaridade”, os<br />

horizontes de estudos deste conto são ampliados, pois se estuda “o intertexto como um campo<br />

geral de fórmulas anônimas” (SAMOYAULT, 2008, p. 23). E são estas fórmulas anônimas,<br />

que propiciam um conhecimento mais amplo do texto literário por uma exploração de suas<br />

variantes, que se deseja aqui pontuar.<br />

Além das fronteiras particularizadas, propõe-se observar as relações entre o conto “A<br />

volta do marido pródigo” e alguns intertextos, como a parábola bíblica, as lendas do sapo e do<br />

cágado, da rãzinha catacega, do Pedro Malasartes e o heroísmo em Memórias de um Sargento<br />

de Milícia e Macunaíma, sobretudo, sua adaptação para o teatro de Paulo Hecker Filho, A<br />

volta do marido pródigo, de 1987.<br />

Observando a criação literária não como sistema fechado em si mesmo, mas em sua<br />

interação com outros textos sejam literários ou não (CARVALHAL, 20<strong>03</strong>), verificar-se-á a<br />

∗ Este artigo é resultado dos estudos da disciplina “Literatura Comparada: Intertextualidade e<br />

Interdisciplinaridade”, ministrada pela professora Dra. Lúcia de Sá Rebello, no Programa DINTER<br />

UFRGS/UEMS.


elação deste conto com alguns intertextos tanto no nível formal como temático, tentando<br />

perceber como se dá a adaptação do conto para o teatro. Neste estudo comparado, o conto<br />

escolhido não será visto como um texto fonte ou primeiro, mas nas relações entre textos e<br />

tessituras que se encontram de maneira horizontal, sem hierarquias, pois como explica René<br />

Wellek,<br />

A literatura comparada deseja superar preconceitos e provincianismos nacionais, mas<br />

disso não resulta ignorar ou minimizar a existência e a vitalidade das diferentes<br />

tradições nacionais. Precisamos tanto da literatura nacional quanto da geral,<br />

precisamos tanto da história quanto da crítica literárias, e precisamos da perspectiva<br />

ampla que somente a literatura comparada pode oferecer (WELLEK, 1980, p. 144).<br />

Assim separou-se, para este trabalho, o conto “A volta do marido pródigo”, tendo em<br />

vista dialogar com outros textos, sobretudo sua adaptação teatral realizada pelo escritor e<br />

tradutor Paulo Hecker Filho, a partir do aparato teórico da Literatura Comparada. Tem-se uma<br />

farta fortuna crítica de Rosa, mas não uma comparação entre seu texto “A volta do marido<br />

pródigo” e o de Paulo Hecker Filho, sob o mesmo título. Frente a esta lacuna, justifica-se a<br />

realização deste trabalho, tendo como base teórica uma bibliografia referente, sobretudo à<br />

intertextualidade.<br />

O processo criativo de Guimarães Rosa neste conto já aponta para uma linguagem<br />

dramatúrgica: “Quem sabe, a gente podia representar esse drama, hem seu Laio?” (ROSA,<br />

2011, p. 108); uma linguagem cômica que subverte o Bíblico, uma parábola caipira de uma<br />

sabedoria popular. Até o nome do protagonista, Eulálio de Souza Salãthiel, faz referência à<br />

Bíblia, pois, Salathiel, filho de Jeconias, é citado em Mateus 1.12. Eulálio também possui uma<br />

carga semântica significativa, pois, Eulalo, de origem grega, quer dizer “bem falante” adjetivo<br />

que define perfeitamente a personagem.<br />

Esse conto apresenta de forma picaresca os caprichos de Lalino Salãthiel, o marido<br />

pródigo, um homem de muito riso, de muita graça e pouco trabalho, conforme nota-se nesse<br />

trecho do conto: “Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é de<br />

adulador, mas sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre e quer ver todo-o-<br />

mundo alegre, perto de si. Isso que remoça. Isso é reger o viver” (ROSA, 2011, p.110). O<br />

espírito de malandragem dessa personagem possibilitou a Rosa empregar ironia e malícia,<br />

remetendo as personagens Macunaíma e Leonardo, exemplos de “heróis-malandros” na<br />

literatura brasileira.<br />

Também, sua trajetória remete à do filho pródigo, que abandona a família, levando<br />

consigo os seus bens, com o intuito de viver aventuras em lugares distantes e o regresso após<br />

2


a decepção que sofre com seus sonhos. Isso é apenas o motivo inicial, a partir do qual o<br />

narrador delineia a personalidade do “mulatinho malandro”, a personagem que tem um<br />

“jeitinho” brasileiro de agir. O que se percebe é que, no conto, não existe julgamento moral<br />

sobre o caráter de Lalino, que poderiam ser consideradas “más”. Nessa recriação de<br />

Guimarães Rosa há uma visão diferente daquela encontrada no ensinamento moral que a<br />

parábola bíblica pretendeu passar. O importante é retratar essa malandragem que oferece<br />

muitos elementos que explicitam a relação que o conto “A volta do marido pródigo” tem com<br />

a parábola bíblica e as fábulas, podendo entender o conto como uma paródia da parábola<br />

bíblica. Guimarães parece borrar as fronteiras de gênero parábola, conto e teatro. E a<br />

adaptação de Paulo Hecker seria um conto em cena?<br />

Nessa recriação de Paulo Hecker continua transcorrendo a visão rosiana: “SAPO<br />

GRANDE - Saga! OS OUTROS TRÊS - -rana! –rana! –rana! SAGARANA!”. Mas os sapos<br />

juntos a Lalino tornam-se personagens principais nesta sugestiva adaptação teatral, a qual é<br />

iniciada e concluída com um questionamento do sapo-rei – “E quem é que fica com a minha<br />

mulher?...” (HECKER, 1987, p. 14 e 108). Vejamos a seguir.<br />

1. “A Volta do marido pródigo” e alguns intertextos<br />

Como qualquer texto é o resultado de vários outros textos (KRISTEVA apud<br />

SAMOYAULT, 2008), parece claro afirmar que o texto “A volta do marido pródigo” tem<br />

vários intertextos ou contêm a fusão de alguma repetição esperada. Não se pretende aqui<br />

elencar a todos: o que parece impossível, haja vista que cada leitor, ao ler o conto, poderá ter<br />

várias outras percepções das já levantadas, aliás, “o intertexto é antes de tudo um efeito de<br />

leitura” (SAMOUYALT, 2008, p. 25). Assim o texto rosiano dialoga com outras narrativas.<br />

Nesse segundo conto de Sagarana é possível encontrar, por exemplo, a presença de uma<br />

narrativa encaixada, a fábula esópica do cágado e do sapo. É possível verificar, ainda, uma<br />

paródia que se realiza da parábola do filho pródigo, bastando, para isso, que se lembre do<br />

título do conto.<br />

“A volta do marido pródigo”, portanto, faz referência explicita à parábola do filho<br />

pródigo, desde o título. Trata-se de um varão chamado Eulálio de Souza Salãthiel que movido<br />

pelo sonho de conhecer a cidade grande e seus prazeres, abandona a esposa, arrependendo-se<br />

regressa para sua terra, sendo novamente acolhido por sua mulher. As seqüências narrativas<br />

básicas, nos dois textos, são as mesmas: um sujeito com dinheiro em mãos, abandona sua casa<br />

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e parte para uma terra distante, gasta todo o dinheiro com prostitutas, cai em desventura,<br />

retorna, reconcilia-se com a família e sofre a reação da comunidade.<br />

Contudo, enquanto a parábola pretende evocar uma temática divina (o modo como<br />

Deus sempre está à espera de seus filhos pródigos), o conto retrata as relações dos humanos<br />

entre si com outros desdobramentos intertextuais. Assim, além das referências bíblicas há<br />

uma alusão ao fingimento e ao cumprimento dos papeis sociais marcados pela aparência e<br />

pelas convenções, por isso o episódio de apascentar os porcos, na parábola bíblica,<br />

corresponde à atuação política de Lalino, no conto, sujeito que fora rejeitado pela sua<br />

comunidade local ao abandonar a esposa.<br />

Daí entra em cena a questão da malandragem para superar essa marginalização,<br />

referência implícita ao malandro Leonardo de Manuel Antonio de Almeida e Macunaíma de<br />

Mario de Andrade, dentre outros, ao representar a personagem Lalino. No conto, são<br />

representadas as artimanhas de Lalino de Souza Salãthiel, conhecido como “Seu Laio”. Essa<br />

personagem confirma boa parte dos estereótipos produzidos sobre o mulato pela literatura<br />

naturalista.<br />

Eulálio Salãthiel é um mestiço, típico representante de uma esfera carente e<br />

marginalizada da sociedade brasileira; ele é descrito como um mulato preguiçoso, astuto, sem<br />

caráter, imaginativo, que conversa muito e faz pouco ou nada, levando muitas vezes os outros<br />

a trabalharem por ele; é mestre em tirar proveito das situações, reconhecendo as forças e as<br />

fraquezas alheias e lançando mão da cordialidade e amabilidade em sua fala, características<br />

importantes no traçado malandro.<br />

O protagonista, na condição de mulato, é avaliado por Ivone Minaes (1985) como um<br />

malandro nos moldes definido por Candido em A dialética da malandragem. Uma vez que<br />

simultaneamente ao encarnar a malandragem, Lalino apresenta amabilidade e cordialidade,<br />

“— Olá, Batista! Bastião, bom dia! Essa fôrça como vai?!/ — Ei, Túlio, cada vez mais, hein?/<br />

— Bom dia, seu Marrinha! Como passou de ontem?” (ROSA, 2001, p. 101); riso fácil,<br />

“Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente [...] E logo comenta, risonho e burlão”<br />

(ROSA, 2001, p.101); possui, ainda, aderência aos fatos, que podem ser observados,<br />

sobretudo pela capacidade desse herói de se adequar aos momentos. Ele não reflete, age<br />

impulsivamente, guiado pelos desejos mais imediatos, sem ponderar as conseqüências,<br />

simplesmente ajustando-se aos resultados produzidos por suas atitudes, vivendo, desse modo,<br />

“ao sabor da sorte”, utilizando a astúcia para reverter uma situação adversa a seu favor.<br />

Percebe-se que ele não se curva à sociedade que o marginaliza e não assume uma posição de<br />

derrotado frente aos obstáculos que surgem.<br />

4


A linguagem é o elemento principal da malandragem presente no comportamento da<br />

personagem principal, e não somente a verbal, mas também a gestual. Essa hipótese já vem<br />

indicada no nome do protagonista, tendo em vista que Eulálio constitui-se em um nome<br />

composto que indica dois radicais de origem grega: eu=, advérbio cujo significado é “bem”, e<br />

lalein de “falar”. Eulálio significa, pois, aquele que fala bem, que é bom orador. A linguagem<br />

gestual, assim como a verbal, tende a assumir relativa importância no traçado malandro<br />

Lalino. Diversas passagens no livro contribuem a fim de indicar um destaque desse tipo de<br />

comunicação:<br />

Mas, lá detrás, escorregando dos sacos [...], dependura o corpo para fora, oscila e pula,<br />

maneiro, Lalino Salãthiel [...] Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente [...] Mas<br />

Lalino não sabe sumir-se sem executar o seu sestro, o volta-face gaiato [...] E Lalino<br />

fazia um gesto vago [...] Lalino Salãthiel gesticulava e modulava (ROSA, 2001, p.101-<br />

1<strong>03</strong>).<br />

Nesse sentido, esse “herói-malandro” persuade pessoas à sua volta por meio da<br />

comunicação adequada a cada interlocutor; a astúcia pode ser inclusive evidenciada pela<br />

utilização da linguagem que opera o convencimento e faz Lalino dominar a situação; a<br />

cordialidade e a simpatia de que vem carregada a comunicação da personagem faz com que<br />

ele se saia bem dos mais adversos momentos em que se encontra, levando todos, como se diz<br />

popularmente, “no bico”.<br />

A respeito da composição dessa personagem, pode-se ainda levar em conta a relação<br />

intertextual com a lenda de Pedro Malasartes, que assim como Lalino, é um anti-herói da<br />

gente simples, que adora artes e está quase sempre contra os mais ricos e poderosos. Chega<br />

atrasado no trabalho, porém consegue conquistar o chefe, ganhar o dia e fazer com que<br />

pensem em lhe arrumar um emprego melhor.<br />

Sua genealogia é da “grei dos sapos”. A referência ao sapo da fábula “A festa no<br />

céu”, traz a previsão que ele tem a sorte dos sapos, como o sapo da festa que consegue<br />

enganar até o anfitrião, São Pedro, e retorna são e salvo a terra através de sua malícia. “A<br />

festa no céu” consiste na estória do sapo que vai para o céu dentro da viola do urubu e que,<br />

perdendo o amigo cágado que é esborrachado numa pedra, ao final da festa se vê obrigado a<br />

arrumar um outro jeitinho de voltar a terra.<br />

Lalino vem de um lugarejo chamado Rio-do-Peixe, que remete um parentesco<br />

alegórico de Lalino com os sapos e as rãs, como a estória da rã catacega, que, trepando na laje<br />

e vendo o areal rebrilhante à soalheira, gritou - "Eh, aguão!..." - e pulou com gosto, e,<br />

queimando as patinhas, deu outro pulo depressa para trás. Estes anfíbios ora terrestres, ora<br />

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aquáticos, são inconstantes, como sua conduta e seu próprio nome: Eulálio de Souza Salãthiel,<br />

Senhor Eulálio, Lalino Salãthiel, Lalino, Seu Laio e Laio. Esses nomes aparecem de acordo<br />

com sua reação de espírito malandro.<br />

O heroísmo de Lalino é exatamente vender sua mulher e com o dinheiro ir para o Rio<br />

de Janeiro e lá gastar tudo até regressar e reconquistar a esposa sem devolver o dinheiro ao<br />

espanhol Ramiro que tinha pagado por Maria Rita, e ainda sai glorificado da situação. Ele tem<br />

uma luta vitoriosa – ganha as eleições para o Major e recupera Maria Rita, tornando-se um<br />

“herói às avessas”.<br />

Ao voltar a seu vilarejo corre imediatamente a sua ex-casa onde a ex-mulher não o<br />

guardava (como o pai do filho pródigo). Não obtendo sucesso em rever Maria Rita, fica a<br />

contemplar a natureza: “Toma a trilha da beira do córrego. Mas, que lindeza que é isto aqui!<br />

Não é que eu não me lembrava mais deste lugar?!” (ROSA, 2011, p. 122). E novamente lança<br />

mão da música para acalmar as paixões: “Eu estou triste como sapo na água suja...” (ROSA,<br />

2011, p. 123).<br />

Além de ludibriar as pessoas, Lalino tem também um interesse por algumas<br />

modalidades artísticas, como o teatro e a música. Oscar, inclusive, critica a postura sonhadora,<br />

fingidora e artística de Lalino: “precisa tomar juízo, fazer o que todo-o-mundo faz!...”<br />

(ROSA, 2011, p. 125). O interesse do protagonista pelo teatro é grande, inclusive, segundo<br />

ele, estava responsável pela organização da peça Visconde sedutor, no qual se estabelece uma<br />

relação indissociável entre gesto e a palavra. Parece desse modo que a sedução malandra da<br />

personagem principal é caracterizada pela associação da linguagem verbal à mímica.<br />

Assim, se por um lado, o protagonista é sedutor como o Visconde da peça que<br />

organiza, por meio da aplicação de uma linguagem adequada a cada interlocutor; por outro<br />

lado, ele demonstra falta de caráter, pois é obrigado constantemente a utilizar essa sedução<br />

verbal para fugir de suas obrigações. Percebe-se, assim, a personalidade do protagonista como<br />

conseqüência da sua evidente procedência folclórica. Ele não tinha nenhum escrúpulo em<br />

iludir o chefe, prejudicar os companheiros ou vender sua mulher como se fosse um objeto<br />

para levar uma vida devassa no Rio de Janeiro; esse comportamento é compensado pela<br />

amabilidade e cordialidade, fruto de sua condição de híbrido.<br />

Híbrido também é a forma do extenso conto de Rosa: predominância de diálogos e<br />

descrições, introduzindo um novo modo de leitura da parábola bíblica, cruzando o texto<br />

folclórico com a literatura estrangeira, como a citação dos títulos Vingança do Bastardo, de<br />

Eleonora Vorsky (pseudônimo de Alexandro Machado) e Um Visconde Sedutor de Jenna<br />

Petersen.<br />

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literária:<br />

Lalino inventa sua peça de teatro, com vozes, cenário, atos, conforme a regra<br />

- O primeiro ato, é assim, seu Marrinha: quando levanta o pano, é uma casa de<br />

mulheres. O Visconde, mais os companheiros, estão bebendo junto com elas,<br />

apreciando música, dançando... Tem umas vinte, todas bonitas, umas vestidas de luxo,<br />

outras assim... sem roupa nenhuma quase...<br />

- Tu está louco, seu Laio!?... Onde que já se viu esse despropósito?!... Até o povo<br />

jogava pedra e dava tiro em cima!... Nem o subdelegado não deixava' a gente aparecer<br />

com isso em palco... E as famílias, homem? Eu quero é levar peça para famílias...<br />

Você não estará inventando? Onde foi que tu viu isso?<br />

- Ora, seu Marrinha, pois onde é que havia de ser?!... No Rio de Janeiro! Na capital...<br />

Isso é teatro de gente escovada... (ROSA, 2001, p.108).<br />

Lalino nesta época não conhecia Rio de Janeiro, mas a sua mente fértil lhe fazia um<br />

Visconde Sedutor que descobre uma atração poderosa de conhecer as delícias da cidade<br />

grande.<br />

Rosa transforma seu conto em um texto extenso, ao fazer relações com tantos outros<br />

textos, como as estórias do universo folclórico, do teatro, do drama de “Visconde Sedutor”.<br />

Observa-se que na análise intertextual não existe a pura repetição, sendo que o trabalho<br />

literário exerce sempre uma função crítica sobre a forma e conteúdo, quer a intencionalidade<br />

seja explícita ou não.<br />

2. A volta do conto no teatro<br />

Paulo Hecker Filho, crítico literário porto alegrense, publica, em 1987, (41 anos após<br />

a publicação de Sagarana por Guimarães Rosa), A volta do Marido Pródigo: a volta do conto<br />

rosiano para a literatura brasileira por meio da adaptação teatral.<br />

Acredita-se que não foi difícil esta tarefa, pois o próprio Guimarães Rosa deu<br />

indícios no conto para uma versão teatral, como o próprio Hecker aponta no prefácio: “estive<br />

sempre vendo tudo em cena” (...) “Além das alusões no texto ao teatro como meta beleza, se<br />

sente, ao adaptar, que tinha uma visão nítida da peça possível, como sua evolução dramática”<br />

(HECKER, 1987, p. 5).<br />

A adaptação teatral de Hecker se apóia na criação da personagem principal, Seu<br />

Laio, como o conto que, aliás, se intitula também “Traços biográficos de Latino Salãthiel”.<br />

Comparando os dois textos, percebe-se que não há fronteira nítida entre gêneros. A própria<br />

palavra volta sugere aqui a circunferência, um contorno que não se sabe onde está o início<br />

nem o fim. Rosa, ao escrever o conto, já borra essas fronteiras, pois ao invés de escrever uma<br />

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narrativa curta, própria de um conto, escreve uma narrativa extensa, cheia de ação, descrições<br />

e humor.<br />

Paulo Hecker Filho (1987, p. 5), “sem se deixar levar pelas interpretações” (como ele<br />

mesmo diz no prefácio), traz de volta à cena da arte brasileira, o mulato Laio, agora, com um<br />

conjunto de sapos mais evidentes (O Sapo Grande e outros três). Uma hora depois do conto,<br />

se passa as ações do texto teatral: no conto a saga inicia às “dez horas da manhã”; e na<br />

adaptação, “às onze horas da amanhã”, o que parece sugerir poucas mudanças na adaptação.<br />

O narrador do conto aparece no texto de Hecker como a figura dramática ALTO-<br />

FALANTE. Normalmente, de acordo com Brook (1970), o texto teatral dispensa o narrador,<br />

porque no teatro a história não é contada, mas, sim, mostrada pelas personagens vividas pelos<br />

atores. Entretanto, Hecker não dispensa o narrador (que é o alto-falante), os diálogos e as<br />

rubricas (didascálias) que já constituíam elementos de ação dramática no conto rosiano.<br />

As rubricas (didascálias), segundo Brook (1970), são elementos do teatro que<br />

orientam os atores sobre o momento de proceder no palco. Contudo, Rosa em seu conto já<br />

utilizava este recurso entre parênteses: “(Correia tinha feito uma cara ruim...); (Generoso<br />

aceita, calada a boca)” (ROSA, 2001, p. 1<strong>03</strong>-104). Essas frases ou palavras indicando o<br />

ambiente, a época, os costumes, os gestos, os objetos e entonações de voz dos atores grafadas<br />

entre parênteses, também, foram reutilizadas no texto de Paulo Hecker sem negrito para<br />

diferenciar das falas grafadas em negrito.<br />

Paulo Hecker Filho, em relação às falas, apenas tirou os sinais de travessões que<br />

indicam início das falas das personagens no conto, e utilizou a separação por nomes de<br />

personagens grafadas com letras maiúsculas: OS SAPOS, ALTO-FALANTE, BASTIÃO,<br />

ESTEVÃO, MARRA, GENEROSO, CORREIA, LAIO, RAMIRO, MARIA RITA, JIJO,<br />

OSCAR, ANACLETO, LAUDÔNIO, VIGÁRIO, SECRETÁRIO DO INTERIOR. Também,<br />

ao invés de dividir o texto em IX capítulos, dividiu-o em dois Atos: Primeiro Ato, A<br />

PARTIDA, p. 11; Segundo Ato, A VOLTA, p. 51.<br />

Assim há apenas um encontro, uma volta realmente do conto rosiano ao roteiro<br />

teatral de Hecker. Voltaram os gestos, as rubricas, as falas idênticas (exceto dos sapos que<br />

foram acrescidos numa referência a SAGARANA), os repertórios musicais... Os gestos<br />

continuam não enclausurados pelas palavras! Cada um tem o seu lugar importante. Agora os<br />

sapos, na adaptação, ocuparam uma posição mais “elevada”: iniciar e terminar o drama.<br />

O crítico Paulo Hecker Filho interessou pelos sapos que estavam diluídos no conto e<br />

assim ressaltou a qualidade da encenação. No conto, o sapo era um intertexto. Na peça teatral,<br />

uma das personagens mais importantes acoplado a Laio (o Sapo Grande). Como na análise<br />

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intertextual do conto, na peça teatral, Laio é comparado aos sapos. Hecker Filho inicia seu<br />

texto, depois de descrever o cenário, com quatro sapos num estranho diálogo:<br />

O SAPO GRANDE<br />

Saga!<br />

OS OUTROS TRÊS<br />

- rana!<br />

SAPO GRANDE<br />

Saga!<br />

OS TRES<br />

- rana!<br />

SAPO GRANDE<br />

Sagarana!<br />

OS TRÊS<br />

Sagarana!<br />

SAPO GRANDE<br />

Chico?<br />

OS TRÊS<br />

Nhô?<br />

SAPO GRANDE<br />

Você vai?<br />

OS TRÊS<br />

Vou!<br />

SAPO GRANDE<br />

Quando eu morrer, quem é que fica com os meus filhos?<br />

OS TRÊS<br />

(Consecutivamente) - Eu não... Eu não! (O primeiro, forte) Eu não!<br />

(...)<br />

SAPO GRANDE<br />

Quando eu morrer, quem é que fica com a minha mulher?<br />

OS TRÊS<br />

(Exultantes) – É eu! É eu! É eu! É eu! É eu!<br />

SAPO GRANDE<br />

(Com humor) – Saga!<br />

OS TRÊS<br />

(Dionisíacos) – rana! Sagarana! Sagarana!<br />

(HECKER, 1987, p. 11-13)<br />

Além do título do texto, esse coaxar dos sapos remete ao livro de Guimarães Rosa,<br />

Sagarana. Palavra esta que significa “próximo a uma saga”: saga – radical de origem<br />

germânica significando “canto heróico”, “lenda”; e -rana – sufixo de origem tupi significando<br />

“que exprime semelhança”. Essas vozes dos sapos fazem alusão à malandragem que há nas<br />

relações sociais regidas pelos interesses: homens se interessam mais por mulheres do que por<br />

filhos.<br />

9


O Sapo-rei no conto é remetido às ações de Lalino, aqui, o Sapo Grande,<br />

acompanhado do artigo definido funciona como anafórico, ou seja, indica um sapo que já<br />

conhecemos – o Seu Lalino do conto que volta para sua mulher. Assim se tem o desfecho da<br />

peça:<br />

SAPO GRANDE<br />

Saga!<br />

OS OUTROS TRÊS<br />

(Saltando e gritando em fuzarca) - rana! - rana! - rana!<br />

SAGARANA!<br />

SAPO GRANDE<br />

E quem é que fica com os meus filhos quando eu<br />

morrer?!<br />

OS TRES<br />

Eu não! Eu não! Eu não! Eu não! Eu não!<br />

SAPO GRANDE<br />

Pobres órfãos!... Pobres órfãos!... Saga!<br />

OS TRÊS<br />

- rana!<br />

SAPO GRANDE<br />

(com fleuma humorística) – E quem é que fica com a<br />

minha mulher?...<br />

OS TRÊS<br />

(separados e juntos com entusiasmo) – É eu! É eu! É eu!<br />

É eu! É eu!<br />

SAPO GRANDE<br />

(depois dum pestanejo malicioso, com clareza) – Mas é<br />

que eu ainda não morri!... Tou vivo, mulher, e tou<br />

indo!<br />

(HECKER, 1987, p. 107,108)<br />

Os outros sapos ficaram jururus, como os companheiros de Lalino quando este<br />

retornou para casa. Todos queriam a sua mulher. Mas no conto não aparece sinais de crianças<br />

do casal. Assim esta adaptação teatral, ao trazer o conto para um outro contexto, amplia o<br />

humor e a crítica da sociedade através do circuito dos sapos que aparecem e reaparecem no<br />

palco humano.<br />

FECHA-SE A CORTINA<br />

A volta do marido pródigo, seja o conto ou a adaptação teatral de Paulo Hecker<br />

Filho, não foge à maneira de outros textos rosiano: sempre nos trazendo mais inquietações do<br />

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que respostas; transmitindo perguntas, fazendo-nos não aceitar facilmente as convenções que<br />

nos são oferecidas; ou seja, exigindo do leitor uma atitude de reflexão frente à sociedade.<br />

Tanto o conto como o roteiro teatral tem uma gramática gestual, uma criação poética,<br />

forte o suficiente para colocar personagens frente ao espectador/leitor. É possível enxergar as<br />

cenas! E ao comparar o conto de Rosa com o roteiro teatral de Hecker, é possível intensificar<br />

esteticamente ainda mais o diálogo com o espectador, pois os sapos coaxam audivisivelmente.<br />

Em A volta do marido pródigo, de Paulo Hecker Filho há repetições das falas das<br />

personagens e do narrador/alto-falante, com o acréscimo do circuito dos sapos. Percebe-se<br />

que o conto de Guimarães, mesmo não estando no formato de roteiro teatral, já poderia ser<br />

encenado, pois o texto é todo constituído de diálogo entre personagens e outros elementos<br />

próprios do teatro. Como diz Hecker (1987, p. 5), “tem a vitalidade de uma comédia clássica”,<br />

apoiada na criação de uma grande personagem, Laio.<br />

Essas realizações propriamente poéticas da criação de Laio, além de apresentar um<br />

vasto material folclórico e sociológico, imprescindível para o conhecimento de um “mulato<br />

brasileiro”, iluminam trevas que vai nos fazer sorrir, como o dono dos bois no dito: “Pra uns<br />

as vacas morrem, pra outros até boi pega a parir”...<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis: Vozes, 1970.<br />

CARVALHAL, Tânia. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo:<br />

UNISINOS, 20<strong>03</strong>.<br />

HECKER FILHO, Paulo. A volta do Marido Pródigo. Comédia extraída de um conto de<br />

Guimarães Rosa. Porto Alegre: Tchê, 1987.<br />

MINAES, Ivone. A linguagem malandra em Guimarães Rosa. Revista de Letras. São Paulo,<br />

n. 25, p. 25-34, 1985.<br />

ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />

SAMOYAUT, Tiphaine. A Intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec. 2008.<br />

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WELLEK, René. Conceitos de crítica. São Paulo: Cultrix, 1980.<br />

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