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Sic transit Gloria Mundi - Inteligência

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I N S I G H T<br />

quanto a imagem do próprio Mauá ali desenhada. O motivo<br />

é o mesmo: os êxitos do empresário gaúcho estavam<br />

visceralmente ligados ao apoio do Estado por intermédio<br />

de seus amigos políticos, quase todos conservadores:<br />

Uruguai, Eusébio, Paraná... Ao contrário do que o filme dá<br />

a entender, portanto, o apoio do Estado foi essencial para<br />

as vitórias de Mauá., cujos negócios começaram a ir por<br />

água abaixo, justamente, quando começou a prevalecer a<br />

orientação liberal em matéria econômica, na década de<br />

1870, quando visconde pediu moratória e depois faliu.<br />

Daí a maior singeleza do seu mausoléu. Embora lacrada a<br />

cadeado, as cruzes que ornamentam as portas da cripta são<br />

vazadas, de forma que é possível enxergar por entre elas<br />

a urna coberta de pó, bolor e teias onde jazem os ossos<br />

do visconde. Depois de tantos ricaços, monarcas, chefes<br />

de Estado, banqueiros, é uma aranha aquela que veio a se<br />

tornar companheira de eternidade do grande Mauá...<br />

Tudo muito interessante, mas nada do Caravelas....<br />

Começo a perder a esperança de<br />

encontrá-lo, porque subo a escadaria que<br />

dá acesso ao segundo plano do cemitério e<br />

só encontro defuntos tipo Segundo Reinado. Ao mesmo<br />

tempo, vão rareando os sepulcros mais recentes, como<br />

se não houvesse interesse das famílias contemporâneas<br />

em se enterrarem nas partes mais elevadas do cemitério.<br />

Passo pelos túmulos do compositor Leopoldo Miguez;<br />

do Conselheiro Silva Maia, do senador Paulino Soares de<br />

Sousa, filho do Visconde de Uruguai e último grande prócer<br />

fluminense do Partido Conservador. Encontro também<br />

antepassados meus, da família Mesquita, que nem sabia<br />

estarem enterrados lá: meu pentavô, o Marquês de Bonfim;<br />

meu tetravô, o Conde de Mesquita; e o Barão de Bonfim<br />

meu bisavô. O marquês e o conde foram enterrados em<br />

tumbas diferentes, em planos diferentes do cemitério,<br />

mas simetricamente alinhados: o pai, embaixo; o filho, em<br />

cima. Foi uma pena que os filhos do barão não tenham<br />

administrado melhor a dinheirama herdada; nesse caso, eu<br />

estaria perambulando agora por um cemitério melhorzinho<br />

– o Père Lachaise, por exemplo –, na companhia de gente<br />

INTELIGÊNCIA<br />

mais glamourosa, como Chateaubriand, Balzac, Chopin,<br />

Proust – e não atrás de nobres de fancaria, com bizarros<br />

nomes em tupi-guarani.<br />

Mais adiante, deparo com um jazigo vazio com uma<br />

placa, informando que ali havia sido enterrado em 1880<br />

o mais graduado aristocrata brasileiro – ninguém mais<br />

ninguém menos do que o Duque de Caxias. Em 1949, os<br />

militares fizeram a caridade de tirá-lo dali para instalá-lo<br />

no seu atual panteão, em frente ao Ministério da Guerra,<br />

na Presidente Vargas. Feliz Caxias: até depois de morto a<br />

Fortuna lhe sorriu...<br />

Subo os degraus da enorme escadaria para o terceiro<br />

e último nível do cemitério... Estou absolutamente solitário<br />

num raio de pelo menos cem metros ao meu redor e, entre<br />

os mortos – porque vivos não os há, salvo eu e por enquanto<br />

–, não há nenhum enterrado há menos de cem anos.<br />

O lugar é desolador: vejo o viaduto em baixo e, do outro<br />

lado, as casas de Santa Teresa. À minha direita, embaixo, a<br />

entrada do túnel; mais em cima, a favela do Morro da Coroa.<br />

Atrás de mim, no alto, cada vez mais perto, a favela do<br />

morro da Mineira. Na verdade, o cemitério ficou encravado<br />

no meio da favela, de modo que, quanto mais alto se está<br />

no cemitério, mais alto se está também na própria favela (e<br />

mais perto, portanto, dos QGs dos traficantes). A ilustração<br />

crescente dos defuntos contrasta cada vez mais com o completo<br />

abandono de suas tumbas e criptas, quebradas, bem<br />

como com a proximidade da favela, que já diviso a pouco<br />

mais de trinta metros, com seus casebres, antenas, varais<br />

e janelas que dão diretamente para o cemitério. Começo<br />

a olhar as tumbas às pressas, às carreiras mesmo, porque<br />

não acalento o desejo juntar-me tão cedo à companhia<br />

dos ilustres senhores a quem rendo visita.<br />

A primeira tumba de gente conhecida é a do Senador<br />

Dantas, hoje rua da Cinelândia. Manuel Pinto de Sousa<br />

Dantas chegou a Presidente do Conselho de Ministros<br />

em 1884, quando, apoiado por seu jovem protegido, Rui<br />

Barbosa, tentou aprovar uma primeira versão daquela<br />

que viria a ser a Lei dos Sexagenários. Enfrentou então a<br />

fúria dos escravocratas chefiados, entre outros, pelo seu<br />

hoje vizinho, o conselheiro Paulino, que cumprimentei faz<br />

outubro •Novembro •Dezembro 2009<br />

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