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<strong>Uma</strong> <strong>vida</strong> <strong>tecida</strong> <strong>de</strong> <strong>palavras</strong><br />
( Nei<strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Santos – ALANE/PB )*<br />
Tece, tece,tece, tece,<br />
Bem <strong>tecida</strong> essa canção<br />
Um a um, fio por fio,<br />
Como faz o tecelão<br />
Que fabrica o seu tecido<br />
De cambraia <strong>de</strong> algodão.<br />
(Marcus Accioly. Poemeto do Tecelão ou A Canção Tecida) **<br />
A trajetória literária <strong>de</strong> Arriete Vilela começou muito cedo, não<br />
importa a data da publicação do seu primeiro livro. No texto <strong>de</strong> teor<br />
autobiográfico, Alma rendilhada, alma enrodilhada (1), vamos<br />
encontrar a menina <strong>de</strong> olhar buliçoso a observar a avó fazendo<br />
rendas na almofada <strong>de</strong> bilros e, diante da fascinação do movimento<br />
ligeiro e preciso das mãos da avó, a “menina miúda” faz uma<br />
revelação: Avó, quando eu crescer, também quero fazer renda, mas<br />
não é <strong>de</strong> linha, não, é <strong>de</strong> papel. (2) E esse tem sido o trilhar da<br />
poeta, cronista, contista, ensaísta e romancista Arriete Vilela – tecer<br />
rendas <strong>de</strong> papel.<br />
A leitura dos poemas, contos, crônicas, memórias e romance <strong>de</strong><br />
Arriete Vilela revela-nos uma escritora preocupada com a arte da<br />
palavra, com a tessitura do fazer poético. Se há recorrência temática,<br />
essa recorrência vem sempre revestida <strong>de</strong> uma roupagem nova, o<br />
bordado nunca é o mesmo, a palavra <strong>tecida</strong> adquire nuances<br />
diferentes.<br />
Arriete gosta <strong>de</strong> reescrever seus textos e elementos<br />
intratextuais se apresentam <strong>de</strong> forma reiterada. Edilma Bomfim(3),<br />
no livro A Escritura do Desejo, dissertação <strong>de</strong> mestrado sobre<br />
Fantasia e Avesso, afirma que:<br />
O recurso do fio da meada faz que o texto <strong>de</strong> Arriete seja tecido<br />
<strong>de</strong> tal forma que cada novo texto é a paráfrase do primeiro, ou<br />
melhor, dizendo; Fantasia e avesso é um intertexto do próprio texto,<br />
que se revela na intratextualida<strong>de</strong> do discurso.<br />
1
Sônia van Dijck, no ensaio Arriete e o mergulho na palavra (4),<br />
<strong>de</strong>staca que a produção espaçada <strong>de</strong> Arriete se <strong>de</strong>ve a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> tempo para amadurecer o texto, e complementa: Quando um livro<br />
seu é entregue ao público, lá estão as <strong>palavras</strong> exatas, prenhes <strong>de</strong><br />
polissemia.<br />
O professor e crítico literário Roberto Sarmento (5) faz uma<br />
observação sobre Fantasia e Avesso que po<strong>de</strong> ser aplicada a outros<br />
livros <strong>de</strong> Arriete. Diz o crítico:<br />
O gran<strong>de</strong> herói do texto <strong>de</strong> Arriete, que parece ser o amor, é,<br />
na verda<strong>de</strong>, a palavra. A fantasia e o seu avesso entregam-se, em<br />
todas as páginas, a uma luta <strong>de</strong> vaivéns, avanços e recuos. Todo o<br />
texto é a discussão acerca da palavra poética: pretextando falar do<br />
amor, o texto fala <strong>de</strong> si mesmo. (p.31. grifos do autor)<br />
Feitas essas consi<strong>de</strong>rações preliminares, caminhemos ao<br />
encontro do mais recente livro da autora – Á<strong>vida</strong>s paixões, Áridos<br />
amores (6).<br />
Comecemos pela capa – fotografia <strong>de</strong> um mar sereno; galhos<br />
secos retorcidos que aparecem em primeiro plano e flores <strong>de</strong><br />
vermelho intenso contrastando com o ver<strong>de</strong>-azul do mar. Esse<br />
contraste das cores condiz com o título do livro. “Á<strong>vida</strong>s paixões” se<br />
associam a um <strong>de</strong>sejo intenso, ardoroso, inflamado; “Áridos amores”<br />
remetem à dureza, algo seco, frio.<br />
O livro, como um todo, compõe-se <strong>de</strong> 40 poemas não<br />
nominados, apenas numerados; os poemas 35,36,37 e 38 foram<br />
pinçados do livro “ Vadios Afetos”. 36 poemas vêm antecedidos por<br />
epígrafes e uma epígrafe <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis antece<strong>de</strong> a<br />
apresentação dos poemas. Machado <strong>de</strong> Assis, profundo conhecedor<br />
da alma humana, filosofa, com certo pessimismo, na epígrafe<br />
escolhida para abertura do livro: Alguma coisa escapa ao naufrágio<br />
das ilusões.<br />
2
No que se refere à escolha das epígrafes, sentimos que foi um<br />
trabalho <strong>de</strong> garimpagem, a escolha acertada para cada poema. <strong>Uma</strong><br />
breve amostragem <strong>de</strong>ssas escolhas comprova o que afirmamos.<br />
O poema 25 traz uma epígrafe <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire: O tempo é o<br />
obscuro inimigo que nos corrói o coração e o primeiro verso do<br />
poema ratifica a epígrafe: O tempo <strong>de</strong>s/const/rói a <strong>vida</strong> e a 5ª.<br />
estrofe, formada apenas por um verso, é uma repetição<br />
compartilhada da <strong>de</strong>sconstrução: O tempo nos tem <strong>de</strong>s/const/ruído.<br />
O poema 38, publicado anteriormente em “Vadios afetos”, vem<br />
acompanhado <strong>de</strong> uma epígrafe <strong>de</strong> Mário Quintana: Amar é mudar a<br />
alma <strong>de</strong> casa. Essa epígrafe se contextualiza, <strong>de</strong> forma mais<br />
evi<strong>de</strong>nte, na última estrofe:<br />
E como não recomeçar o jogo<br />
se, à maneira <strong>de</strong> Quintana,<br />
é o amor que muda a minha alma <strong>de</strong> casa?<br />
Há muito coisa ainda para dizer, mas isso exige um estudo<br />
centrado apenas nas epígrafes e há poemas que precisam ser<br />
<strong>de</strong>scobertos, <strong>palavras</strong> que merecem ser contempladas mais <strong>de</strong> perto.<br />
No universo poético <strong>de</strong> Á<strong>vida</strong>s paixões, Áridos amores, o Poema<br />
17, que vamos transcrever na íntegra, talvez seja o mais<br />
representativo do trabalho artesanal <strong>de</strong> Arriete Vilela com a palavra:<br />
Poema 17<br />
Não enxerguem um símbolo on<strong>de</strong> nenhum foi pretendido.<br />
Não me interessa<br />
o lado direito do bordado<br />
da minha escrita.<br />
Samuel Beckett<br />
3
Prefiro emaranhar-me aos fiapos<br />
do avesso que sou – em que o tecer,<br />
pelos repetidos caprichos,<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser revelador.<br />
Não me interessam os registros,<br />
à esquerda do bordado,<br />
que parecem contar a história<br />
que os outros pensam ser a minha<br />
- e que não é - .<br />
Prefiro pelejar-me nos esgarçamentos<br />
das pontas que não foram <strong>de</strong><strong>vida</strong>mente<br />
arrematadas e em que ressoam<br />
vozes femininas,<br />
como se bisavó e avó,<br />
mãe e tia pu<strong>de</strong>ssem, enfim, reconhecer<br />
que se <strong>de</strong>sperdiçaram em amores abrasadores<br />
e tirânicos.<br />
Aliás, sinto-me cansada da herança <strong>de</strong>ssas mulheres<br />
cujo bordado da própria <strong>vida</strong> <strong>de</strong>ixou à mostra<br />
cores <strong>de</strong>sesperadas, ciúmes <strong>de</strong>snecessários<br />
e afetos enrodilhados.<br />
Por isso permaneço quieta<br />
nas flores azuis do linho:<br />
só o que me interessa<br />
é a interiorida<strong>de</strong><br />
do bordado.<br />
A epígrafe <strong>de</strong> Samuel Beckett é retomada em forma <strong>de</strong> versos<br />
na 3ª. estrofe do poema, quando o eu-lírico assim se expressa:<br />
Não me interessam os registros,<br />
à esquerda do bordado,<br />
que parecem contar a história<br />
que os outros pensam ser a minha<br />
- e que não é -.<br />
4
Muitas vezes o leitor quer atribuir certos registros como<br />
símbolos <strong>de</strong> uma <strong>vida</strong>, mas as <strong>palavras</strong> camuflam sentimentos,<br />
dores, afetos e amores. Tudo é e não é, como bem disse Guimarães<br />
Rosa.<br />
O direito do bordado, na sua aparência, é o lado revelador da<br />
verda<strong>de</strong>, por isso o eu-lírico prefere emaranhar-se nos fiapos do<br />
avesso, nas pontas que não foram <strong>de</strong><strong>vida</strong>mente arrematadas e<br />
permanecer oculta na interiorida<strong>de</strong> do bordado.<br />
No início do nosso texto, falamos sobre a presença da<br />
intratextualida<strong>de</strong> nos poemas, contos e crônicas <strong>de</strong> Arriete Vilela. O<br />
Poema 17 contém muitos elementos intratextuais. “Avesso”,<br />
“bordado”, “fiapos”, “tecer”, “afetos” são vocábulos reiterados em<br />
seus inúmeros livros. Arriete é uma tecelã que sabe, como nos versos<br />
<strong>de</strong> Marcus Accioly, tecer bem <strong>tecida</strong> uma canção. Na sua fábrica, ela<br />
produz tecidos <strong>de</strong> cambraia <strong>de</strong> algodão e borda as <strong>palavras</strong> em folhas<br />
<strong>de</strong> papel que são lançadas ao vento. Felizes são aqueles que<br />
conseguem apanhar algumas <strong>de</strong>ssas folhas.<br />
• Nei<strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Santos é ensaísta e crítica literária.<br />
• Poemeto do Tecelão ou A canção <strong>tecida</strong> foi <strong>de</strong>dicado a<br />
Hermilo Borba Filho e publicado no Diário <strong>de</strong><br />
Pernambuco. Recife, 16 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1967.<br />
* Este texto foi publicado no jornal O Norte. João Pessoa, 30 <strong>de</strong> setembro<br />
<strong>de</strong> 2003, C3<br />
5
NOTAS<br />
1. O texto Alma enrodilhada, alma rendilhada se encontra no livro<br />
2.<br />
Artesanias da Palavra. Arriete Vilela et al. Maceió: Grafmarques,<br />
2001, p. 21-22. Esse mesmo texto foi transcrito no livro Memórias<br />
Rendilhadas: vozes femininas. Nei<strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e Yolanda Limeira<br />
(Orgs.) João Pessoa: UFPB/ Editora Universitária,2006. p. 13-14.<br />
Essa citação está presente no texto Alma enrodilhada, alma<br />
rendilhada. Op.cit.<br />
3. A dissertação <strong>de</strong> mestrado <strong>de</strong> Edilma Bomfim versou sobre o livro <strong>de</strong><br />
Arriete Vilela Fantasia e Avesso com o título A Escritura do Desejo.<br />
Cf: BOMFIM , Edilma Acioli. Maceió: EDUFAL, 2001, p. 56.<br />
4. DIJCK, Sônia van. Arriete e o mergulho na palavra.<br />
5.<br />
http://www.soniavandijck.com/arriete.htm. Este texto também foi<br />
publicado em Fabulação. Um novo tempo. João Pessoa, ano I, n.5,<br />
set.2003, p.12-14 e em O Jornal. Maceió, 12 out. 2003.<br />
LIMA, Roberto Sarmento. Da palavra amor ao amor da palavra. In:<br />
Leitura. Revista do Departamento <strong>de</strong> Letras Clássicas e Vernáculas da<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Alagoas. Maceió, n.4.p.9, jul/<strong>de</strong>z.1988.<br />
6. VILELA, Arriete. Á<strong>vida</strong>s paixões, Áridos amores. Maceió:<br />
Grafmarques, 2007.<br />
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