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Contos do Norte, de João Marques de Carvalho

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The Project Gutenberg EBook of <strong>Contos</strong> <strong>do</strong> <strong>Norte</strong>, by <strong>João</strong> <strong>Marques</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Carvalho</strong><br />

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with<br />

almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or<br />

re-use it un<strong>de</strong>r the terms of the Project Gutenberg License inclu<strong>de</strong>d<br />

with this eBook or online at www.gutenberg.net<br />

Title: <strong>Contos</strong> <strong>do</strong> <strong>Norte</strong><br />

Author: <strong>João</strong> <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong><br />

Release Date: May 4, 2009 [EBook #28691]<br />

Language: Portuguese<br />

Character set encoding: ISO-8859-1<br />

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS DO NORTE ***<br />

Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images<br />

of public <strong>do</strong>main material from Google Book Search)<br />

J. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong><br />

<strong>Contos</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>Norte</strong><br />

Belem <strong>do</strong> Pará<br />

Editor—Alfre<strong>do</strong> Augusto Silva—Editor<br />

TYPOGRAPHIA ELZEVIRIANA<br />

1907


Obras <strong>de</strong> MARQUES <strong>de</strong> CARVALHO<br />

IX<br />

CONTOS DO NORTE<br />

DO MESMO AUCTOR<br />

O Sonho <strong>do</strong> Monarcha Opusculo<br />

Lavas Opusculo<br />

Paulino <strong>de</strong> Brito Opusculo<br />

Hortencia 1 volume<br />

O Livro <strong>de</strong> Judith 1 volume<br />

<strong>Contos</strong> Paraenses 1 volume<br />

Entre as nymphéas 1 volume<br />

A Carteira d'um diplomata (1.ª serie) 1 volume<br />

EM PREPARAÇÃO<br />

Um livro alegre<br />

J. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong><br />

<strong>Contos</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>Norte</strong><br />

Belem <strong>do</strong> Pará<br />

Editor—Alfre<strong>do</strong> Augusto Silva—Editor


{I}<br />

UMA HOMENAGEM<br />

TYPOGRAPHIA ELZEVIRIANA<br />

1907<br />

A JOSÉ MARQUES BRAGA<br />

Meu caro <strong>Marques</strong> Braga,<br />

Este livro é, na quasi totalida<strong>de</strong>, uma homenagem ao povo paraense.<br />

O escriptor que traçou os contos seguintes não occulta o pen<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

seu espirito pela vida seminoma<strong>de</strong> <strong>do</strong>s conterraneos, que tão sobriamente vegetam no<br />

coração das florestas. Viajar sempre com elles pelos buliçosos rios amazonicos,<br />

extendi<strong>do</strong> no paneiro <strong>de</strong> popa da embarcação indigena, abertas as velas ao sopro galerno<br />

<strong>do</strong> vivificante{II} marajoara, seria a realisação d'um sonho,—bello sonho <strong>de</strong> retrocesso<br />

á existencia primitiva, se quizerem, mas <strong>de</strong> intensa consolação moral.


Quan<strong>do</strong> o caboclo, arma<strong>do</strong> <strong>do</strong> longo varejão por elle mesmo talha<strong>do</strong> no<br />

matto, impelle a canôa para o leito da<br />

correnteza, fazen<strong>do</strong>-se ao largo, não pensem que leva cuida<strong>do</strong>s no espirito ou maguas<br />

no coração: a cida<strong>de</strong> é para elle um agrupamento complexo <strong>de</strong> sêres transvia<strong>do</strong>s, o antro<br />

on<strong>de</strong> formigam incomprehensiveis falsificações{III} da natureza. Elle afasta-se contente<br />

com o cigarro ao canto da bôcca, uma jucunda satisfacção nos recessos da alma.<br />

Partin<strong>do</strong> para o sitio, para a roça, o caboclo é o triumpha<strong>do</strong>r das selvas, o zomba<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s<br />

preconceitos, resigna<strong>do</strong> ás inclemencias <strong>do</strong>s homens,—que{IV} as da natureza são-lhe<br />

familiares e já insensiveis talvez. E quan<strong>do</strong>, ao meio <strong>do</strong> rio, <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra as velas á viração,<br />

inunda-se-lhe o cerebro <strong>de</strong> uma ineffavel volupia, to<strong>do</strong> o encanto da liberda<strong>de</strong> dilue-se


no seu espirito, <strong>de</strong>liciosamente infiltra<strong>do</strong>.<br />

Bastam-lhe os horisontes alcança<strong>do</strong>s com o olhar tranquillo. O vapor avista<strong>do</strong> ao longe,<br />

o qual, repleto <strong>de</strong> passageiros, attinge-o em poucas voltas <strong>de</strong> helice e o ultrapassa<br />

rapidamente,—pensaes acaso que o incommoda ou lhe provoca rebelliões <strong>de</strong> impotente<br />

<strong>de</strong>sespero? O caboclo <strong>de</strong>spreza esses recursos da navegação <strong>do</strong>s brancos. O que o<br />

enthusiasma é justamente a sua canôa, on<strong>de</strong> foi crea<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> seus filhos vieram á vida e<br />

on<strong>de</strong> á luz <strong>do</strong> sol paraense fechou os olhos á velha mulher engelhada e querida,{V} que<br />

o amammentara com o seu leite maternal. Esse batelzinho, tão fragil e tão veleiro, é o<br />

enlevo das suas contemplações <strong>de</strong> fatalista, tugurio e vehiculo, ganha-pão e leito <strong>de</strong><br />

amores simples.{VI}<br />

Toda a singeleza da vida, com pequenas aspirações e nenhum rancor, ali se con<strong>de</strong>nsa<br />

entre as pranchas <strong>do</strong> casco e os pannos das vélas,—mortalha e tumba, em caso <strong>de</strong><br />

necessida<strong>de</strong>.<br />

A canôa é o caboclo, chova ou faça sol, cantem nas ramarias da margem as aves da<br />

floresta ou regouguem sobre o pequeno mastro as imprecações <strong>do</strong> temporal: acolhe-os o<br />

caboclo com egual socego <strong>de</strong> alma, a mesma indifferente resignação, que é o symptoma<br />

<strong>do</strong> mais valoroso espirito resistente e da mais acrisolada bonda<strong>de</strong> nativa.<br />

A agua é a gran<strong>de</strong> fascina<strong>do</strong>ra, na Amazonia. Existirão realmente as yaras?<br />

Teu velho amigo,


REPRESALIAS<br />

{12}<br />

{13}<br />

REPRESALIAS<br />

MARQUES DE CARVALHO.{11}<br />

Não muito distante <strong>de</strong> Salinas, a <strong>do</strong>is passos <strong>do</strong> mar,—o caboclo Antonio edificara a sua<br />

palhoça. A areia das dunas extendia-se-lhe á porta, corria em <strong>de</strong>clive para a agua,<br />

forman<strong>do</strong> alaranja<strong>do</strong> estendal, da côr da madresylva morena.<br />

Mas a floresta, que entestava com a habitação, ensombrava to<strong>do</strong> o recinto. Galhos<br />

seculares espalhavam-se em <strong>do</strong>cel por cima <strong>do</strong> ubim <strong>do</strong> tecto. Ali, quan<strong>do</strong> o vento <strong>do</strong><br />

largo sacudia o arvore<strong>do</strong>, em noites <strong>de</strong> plenílunio, o{14} canto <strong>do</strong> sabiá tinha<br />

modulações sau<strong>do</strong>sissimas, como se fôra cantilena <strong>de</strong> creanças.<br />

Maré cheia, poucos passos separavam a porta da cabana <strong>do</strong> logar on<strong>de</strong> a areia sorvia o<br />

rendilha<strong>do</strong> das escumas. E <strong>do</strong> copiar <strong>do</strong> Antonio ouvia-se então perfeitamente o embate<br />

<strong>do</strong> marulho no flanco da canôa atada ao velho poste <strong>de</strong> acapú, que uma cruz rematava.<br />

*<br />

* *<br />

Havia muito que ali habitavam Antonio e o filho. Elles proprios tinham construi<strong>do</strong> a<br />

casa <strong>de</strong> sapé, com os recursos encontra<strong>do</strong>s na matta. D'antes, moravam em Salinas, on<strong>de</strong><br />

o caboclo era pesca<strong>do</strong>r e <strong>do</strong>s mais afregueza<strong>do</strong>s.<br />

Um drama terrivel, porém, induzira-os a <strong>de</strong>ixar a localida<strong>de</strong>, procuran<strong>do</strong> no silencio e<br />

isolamento da costa <strong>de</strong>spovoada o consolo <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> dôr commum.{15}<br />

Uma tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> temporal, a companheira <strong>de</strong> Antonio tivera a velleida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar banho<br />

no oceano. Montanhas <strong>de</strong> agua corriam <strong>do</strong> largo, urravam furiosas ao chegar á praia, no<br />

<strong>de</strong>sespero com que rebentavam na areia. O ceu to<strong>do</strong> estava negro, acolchoa<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

nuvens: coriscos fuzilavam incessantemente e a chuva, levada pela ventania,<br />

transformava-se em nevoeiro subtil e frio.<br />

Vizinhos, que tinham visto a mulher encaminhar-se para o mar, perguntaram-lhe se<br />

estava louca. Ella, porém, dissera que velhos amigos não brigam.<br />

—E sei nadar muito bem, concluiu, senhora <strong>de</strong> si propria.<br />

Equivocara-se. Comquanto não se afastasse senão uns quarenta ou cincoenta metros,<br />

uma onda maior enlaçou-a fragorosa, suspen<strong>de</strong>u-a como um argueiro, levou-a para<br />

longe. De terra viram-n'a erguida na crista da vaga. Debatia-se valente, bracejava com<br />

energia, em direcção á praia.{16}


Mas um grito resoou no grupo <strong>de</strong> especta<strong>do</strong>res transi<strong>do</strong>s. Antonio, palpitante <strong>de</strong> pavor,<br />

apontava para o mar. Ao longe, em direcção á cabocla, levantara-se outra onda enorme,<br />

que vinha corren<strong>do</strong> vertiginosamente. Comprehen<strong>de</strong>u-o a rapariga: re<strong>do</strong>brou <strong>de</strong><br />

esforços, afim <strong>de</strong> alcançar o littoral antes que a formidavel serrania d'agua a envolvesse.<br />

Esta, no entanto, corria célere, cachoeiran<strong>do</strong>. E, n'um momento, alcançou a infeliz,<br />

arrastou-a para a praia, on<strong>de</strong> rebentou n'um estrepito me<strong>do</strong>nho.<br />

Toda a gente, que a curiosida<strong>de</strong> fizera acercar-se até á agua, tinha fugi<strong>do</strong>, gritan<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>sesperada. Ao voltarem-se, quebrara-se a vaga. Mas a pobre cabocla fôra cuspida na<br />

areia com violencia, jazia morta, o peito pisa<strong>do</strong>, um fio <strong>de</strong> sangue escorren<strong>do</strong> da bocca<br />

entreaberta.<br />

Correu Antonio a tiral-a para a terra, beijan<strong>do</strong>-a com frenesi. Não podia crer que<br />

houvesse morri<strong>do</strong>{17} a mãe <strong>do</strong> seu filho. Quan<strong>do</strong>, após instantes <strong>de</strong> vãos esforços para<br />

a reanimar, comprehen<strong>de</strong>u afinal a terrivel <strong>de</strong>sgraça, escapou-se-lhe <strong>do</strong> peito um grito<br />

rouco <strong>de</strong> angustia e o <strong>de</strong>sgraça<strong>do</strong> <strong>de</strong>smaiou, cain<strong>do</strong> <strong>de</strong> bruços sobre o cadaver.<br />

*<br />

* *<br />

Teve o caboclo profun<strong>do</strong> sentimento. E não per<strong>do</strong>ou ao mar,—ao mar que elle tanto<br />

amara,—a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> inesperada, a incrivel e covar<strong>de</strong> traição.<br />

Reuniu os amigos, enterrou o cadaver no cemiterio da villa. Quan<strong>do</strong> passava o feretro<br />

na praia, ao dia seguinte, ainda o mar sacudia as vagas alterosas, sob o ceu pardacento.<br />

Regressan<strong>do</strong> a casa, tomara Antonio a resolução <strong>de</strong> retirar-se <strong>de</strong> Salinas. Assim fez, <strong>de</strong><br />

facto: em menos <strong>de</strong> uma semana ven<strong>de</strong>u os poucos moveis, entrouxou a roupa,{18}<br />

alguns objectos necessarios á alimentação e uma espingarda; e, embarcan<strong>do</strong> na canôa<br />

com o filho, levantou ferro, içou a vela e partiu.<br />

Nem elle mesmo sabia para on<strong>de</strong> <strong>de</strong>vera ir. Deixou-se levar pelo vento, prolongan<strong>do</strong> a<br />

costa. Ao cahir da tar<strong>de</strong>, como avistasse uma enseada, aportou;—saltaram a terra.<br />

Essa noite, <strong>do</strong>rmiram-n'a ao ar livre. Mas o caboclo, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> a embarcação, fechara o<br />

punho ergui<strong>do</strong>, proferin<strong>do</strong> uma ameaça ao mar. Rompera este o pacto tacito que entre<br />

ambos existira, roubara-lhe a companheira i<strong>do</strong>latrada. Pois ali mesmo jurava, invocan<strong>do</strong><br />

o testemunho das estrellas e a memoria da inolvidavel ausente,—que havia <strong>de</strong> vingar-se.<br />

Elle e o filho nada mais fariam <strong>do</strong> que investigar o horisonte, buscan<strong>do</strong> surprehen<strong>de</strong>r<br />

qualquer signal, pedin<strong>do</strong> soccorro, das embarcações que naufragassem. E haviam <strong>de</strong><br />

roubar ao mar tantas quantas victimas{19} po<strong>de</strong>ssem,—tantas vidas quantas eram as<br />

penas que lhes ralavam o coração. Essa seria a vingança d'um mari<strong>do</strong> e d'um filho<br />

inconsolaveis.<br />

*<br />

* *


Annos fazia que ali moravam, na casa por elles proprios construida com os materiaes<br />

tira<strong>do</strong>s á floresta proxima. Cada noite, vinham para fóra, extendiam-se na areia,<br />

silenciosos e pensativos, esquadrinhan<strong>do</strong> o largo com o olhar affeito á escuridão.<br />

Desesperava-os, entretanto, a monotonia da existencia. Parece que a sorte zombava-lhes<br />

das intenções. Jamais haviam podi<strong>do</strong> realizar o intento da primeira victoria,—o<br />

almeja<strong>do</strong> triumpho, que embriagasse como a cachaça. Calmo ordinariamente, o mar<br />

enorme tinha uma impassibilida<strong>de</strong> irritante.{20} Barcos <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong>res <strong>de</strong>slisavam ao<br />

longe, similhavam gran<strong>de</strong>s gaivotas brancas, esfrolan<strong>do</strong> a vaga com as azas. Vapores<br />

passavam também, ora os costeiros, ora os vastos paquetes <strong>do</strong> sul:—uma navegação<br />

precisa, em dias <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s, quasi á mesma hora.<br />

*<br />

* *<br />

Uma noite, porém, a tempesta<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a tardinha ribombara ao longe, approximouse<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ramente.<br />

A cabana <strong>do</strong>s caboclos era a cada instante illuminada pelo clarão <strong>do</strong>s relampagos,<br />

estremecia na vibração <strong>de</strong> cavernosos trovões.<br />

A espaços, segun<strong>do</strong>s após uma fulguração mais accentuada, retinia o raio, na matta<br />

vizinha. E os <strong>do</strong>is irreconciliaveis inimigos <strong>do</strong> oceano entreolhavam-se mu<strong>do</strong>s,{21}<br />

com uma pequena chamma <strong>de</strong> esperança rebrilhan<strong>do</strong> ao fun<strong>do</strong> das pupillas irrequietas.<br />

Seria aquella a noite reservada para a satisfacção da primeira <strong>de</strong>sforra? O coração dizialhes<br />

que sim.<br />

De subito, no silencio relativo que se estabelecera entre um relampago e um trovão,<br />

pareceu a Antonio ouvir um grito longinquo,—som quasi imperceptivel, talvez<br />

phantasia <strong>do</strong> seu vehemente <strong>de</strong>sejo.<br />

—Não ouviste? perguntou baixinho, n'um offego.<br />

O rapazito conservou-se cala<strong>do</strong>, mas parecia prestar attenção.<br />

—Ha <strong>de</strong> ser coruja, explicou ao cabo d'um instante.<br />

Mas outro grito ouviu-se então, d'esta feita mais accentua<strong>do</strong>. Não havia duvida, alguém<br />

pedia soccorro.<br />

—É obra! exclamou Antonio.<br />

—Parêsque sim, disse o rapaz.<br />

E, levantan<strong>do</strong>-se, correram para fóra.{22}<br />

*<br />

* *


Ahi, a chuva caía violentamente. Negro o ceu, negro o mar,—tornavam-se a cada<br />

instante d'uma livi<strong>de</strong>z violacea, com o lampejo <strong>do</strong>s relampagos. Ondas <strong>de</strong>batiam-se em<br />

tropel, vinham quebrar-se na praia com extranha furia. Mas os mais pavorosos<br />

estron<strong>do</strong>s eram os da insondavel floresta virgem, sinistro consorcio <strong>do</strong> cair da agua nas<br />

ramarias, <strong>do</strong> soluço <strong>do</strong>s galhos agita<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s gritos in<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s <strong>de</strong> toda a sorte <strong>de</strong><br />

animaes surprehendi<strong>do</strong>s pela tormenta, <strong>de</strong>saloja<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s poisos, ataca<strong>do</strong>s nas tocas<br />

esconsas.<br />

No primeiro momento, nada viram os <strong>do</strong>is caboclos; cegava-os <strong>de</strong>slumbra<strong>do</strong>ramente o<br />

palpitar <strong>do</strong>s relampagos. Comtu<strong>do</strong>, seus olhos expertos breve triumpharam das trevas<br />

ululantes. E ao cabo <strong>de</strong> curta concentração, volta<strong>do</strong>s{23} para o largo, enxergaram a<br />

pouca distancia da linha da agua um vulto negro, que ora subia a admiraveis alturas, ora<br />

<strong>de</strong>sabava rapi<strong>do</strong> ao seio <strong>de</strong> profun<strong>do</strong>s valles movediços.<br />

Novo grito, indistincto a quem não tivesse a pratica da vida maritima, scindiu o espaço,<br />

pedin<strong>do</strong> soccorro. Não havia hesitar. Antonio, impossibilita<strong>do</strong> <strong>de</strong> cruzar a vista com o<br />

filho, tomou-lhe um braço, apertou-o nervosamente. Comprehen<strong>de</strong>u-o o rapaz. Era<br />

aquella a hora da famosa represalia!<br />

Atiraram-se os <strong>do</strong>is ao mar, <strong>de</strong>spidas n'um momento as simples calças <strong>de</strong> dril azul, sem<br />

uma in<strong>de</strong>cisão. Eil-os que nadam, com extraordinarios esforços, em direcção ao negro<br />

vulto oscillante além, á flôr das ondas in<strong>do</strong>maveis. Guia-os uma alegria enorme,—o<br />

enthusiasmo entôa risonhos hymnos ao fun<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas almas singelas.<br />

Para Antonio, esse é o momento{24} da inebriante <strong>de</strong>sforra. Vae vingar-se <strong>do</strong> oceano!<br />

Vae vingar-se <strong>do</strong> oceano!<br />

—Coragem, curumim! grita ao filho, sem ser ouvi<strong>do</strong>.<br />

E nadam os <strong>do</strong>is, nadam corajosos, avançan<strong>do</strong> com difficulda<strong>de</strong>, mas, apezar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>,<br />

avançan<strong>do</strong> sempre.<br />

*<br />

* *<br />

Chegaram emfim ao ponto <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>. Era uma pequena canôa, fun<strong>de</strong>ada sem duvida<br />

antes da tormenta.<br />

Pae e filho saltaram para <strong>de</strong>ntro da embarcação, quasi inteiramente alagada. Á pôpa,<br />

sobre o paneiro já toma<strong>do</strong> pela agua, estava um homem extendi<strong>do</strong>.<br />

Hirto, esperou um relampago e indicou por acenos—pois falar seria inutil esforço em<br />

meio áquelle barulho macabro <strong>do</strong>s elementos—que o mastro, parti<strong>do</strong> pelo raio, caíra<br />

sobre elle, quebran<strong>do</strong>-lhe{25} uma perna. E á luz <strong>de</strong> outro relampago, <strong>de</strong>monstrou a<br />

<strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> que a embarcação estivesse prestes a sossobrar. Com effeito, a agua<br />

subia sempre.<br />

Já Antonio tomara-o nos braços, colhen<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> encontro ao coração. Firmou-o mais á<br />

esquerda, gritou-lhe ao ouvi<strong>do</strong> que não fizesse o menor movimento e, galgan<strong>do</strong> a borda,<br />

atirou-se ao mar, segui<strong>do</strong> <strong>do</strong> rapaz.


Eil-os agora que nadam jubilosa, difficultosamente para a costa. É ainda maior, se<br />

possivel, a alegria <strong>do</strong>s caboclos. Vingaram-se <strong>do</strong> inimigo, furtan<strong>do</strong>-lhe uma prêza... Que<br />

ventura!<br />

Não é tar<strong>de</strong>, entretanto, para o hymno <strong>de</strong>finitivo <strong>do</strong> triumpho: o mar sabe disputar-lhes a<br />

victoria, porque, emquanto a tormenta, no seu auge agora, <strong>de</strong>sencan<strong>de</strong>ia pelo espaço<br />

uma estrepitosa arrogancia, o oceano saco<strong>de</strong> o negro <strong>do</strong>rso, incha alterosas serranias e<br />

atira-os á direita e á esquerda, como tabocas pôdres.{26}<br />

Antonio é valente, Antonio conhece o valor <strong>do</strong> adversario, porém não o teme: bem<br />

maior é a gloria, n'essas condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>segualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> forças. Está fatigadissimo, que<br />

não é pequena façanha affrontar a furia das ondas, em occasião <strong>de</strong> temporal, trazen<strong>do</strong><br />

nos braços um corpo humano. Mas a memoria da sau<strong>do</strong>sa companheira perdida em<br />

i<strong>de</strong>ntica situação é um consolo e uma animação. Essa bemdita memoria faz o milagre <strong>de</strong><br />

o alentar mais efficazmente <strong>do</strong> que um bom trago <strong>de</strong> canna. E o forte caboclo, sem saber<br />

ao certo a que distancia da praia se encontra, sente-se <strong>de</strong> repente atira<strong>do</strong> sobre a areia,<br />

abraça<strong>do</strong> ao seu protegi<strong>do</strong>.<br />

Já está <strong>de</strong> pé, illeso. Fulge-lhe no peito illimita<strong>do</strong> contentamento. Sem olhar para traz,<br />

abaixa-se, toma nos braços a prêza roubada ao mar e parte a correr para a cabana,<br />

murmuran<strong>do</strong> na ancia <strong>de</strong> precipita<strong>do</strong>s offegos:<br />

—Ven... ci, ca... na... lha!{27}<br />

Porém a lucta foi renhida e longa; mal atirou á sua propria rê<strong>de</strong> o corpo <strong>de</strong>smaia<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

naufrago, caiu por terra, sem senti<strong>do</strong>s.<br />

*<br />

* *<br />

Voltan<strong>do</strong> a si, ao amanhecer, Antonio levantou-se estremunha<strong>do</strong>. Após um esforço<br />

mental,—no primeiro instante <strong>de</strong> nada se recordara,—lembrou-se da lucta com o oceano<br />

e da sua victoriosa consequencia, a salvação <strong>de</strong> um homem. Este ahi estava, extendi<strong>do</strong><br />

na rê<strong>de</strong>, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Ouvia-o resonar compassadamente. Seu filho teria vela<strong>do</strong> por<br />

ambos...<br />

O caboclo percorreu com a vista o pequeno aposento, mais illumina<strong>do</strong> pelo in<strong>de</strong>ciso<br />

alvor <strong>do</strong> que pela tenue luz da can<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> andiroba, bruxoleante. On<strong>de</strong> estaria o<br />

pequeno? foi a interrogação que fez a si proprio. Havia <strong>de</strong> ter sai<strong>do</strong>... Prestou attento<br />

ouvi<strong>do</strong> aos murmurios{28} <strong>do</strong> exterior. Uma gran<strong>de</strong> calma <strong>de</strong>vera ter substitui<strong>do</strong> o<br />

impeto <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> da tormenta, porque o mar tinha agora ondulações regularissimas,<br />

<strong>de</strong>nunciadas pelo prolonga<strong>do</strong> arrastar das vagasinhas preguiçosas. A floresta jazia<br />

entorpecida, sem um silvo <strong>de</strong> passaro, como reconcentrada na volupia <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> banho<br />

da noite.<br />

Demora<strong>do</strong>s minutos que<strong>do</strong>u-se assim aquelle homem, immovel no solo, junto á rê<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>. Sua attenção, affeita á vida na costa, seguia, pelos arrui<strong>do</strong>s que<br />

atravessavam as pare<strong>de</strong>s da cabana, o vae-vem da onda socegada. Ao cabo <strong>de</strong> longo<br />

tempo <strong>de</strong> applicação, tornou a lembrar-se <strong>do</strong> filho, que não voltara. Teria i<strong>do</strong> arriscar<br />

um tiro por perto, no matto?...


Ergueu-se então Antonio, foi espreitar o rosto <strong>do</strong> naufrago, que <strong>do</strong>rmia sempre,<br />

mergulha<strong>do</strong> n'um gran<strong>de</strong> somno febril, com a perna assusta<strong>do</strong>ramente inchada.{29}<br />

Quan<strong>do</strong> levantava a cabeça, Antonio fixou o olhar n'um ponto da pare<strong>de</strong> e teve um<br />

calafrio: pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um prego, estava a espingarda e este facto arredava a hypothese <strong>de</strong><br />

ter i<strong>do</strong> o pequeno á caça. Mas então, por on<strong>de</strong> andava elle?<br />

Terrivel suspeita ergueu-se-lhe ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> espirito, confrangen<strong>do</strong>-lhe o coração. Se<br />

tivesse morri<strong>do</strong>?... Era impossivel! O rapaz ia voltar, com certeza. Entretanto, não ficou<br />

tranquillo, embora tratasse <strong>de</strong> distrair-se, preparan<strong>do</strong> um cigarro e apagan<strong>do</strong> a can<strong>de</strong>ia.<br />

Lá estava um pezar <strong>de</strong>sassocega<strong>do</strong>, agacha<strong>do</strong> no recondito <strong>do</strong> coração.<br />

Veiu apressa<strong>do</strong> para fóra. Seus olhos percorreram a praia, n'um relance: tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>serto.<br />

Nas dunas mais proximas da floresta, a vegetação rasteira havia si<strong>do</strong> lavada e sorria na<br />

brandura <strong>do</strong> seu ver<strong>de</strong> tenro. Á beira <strong>do</strong> matto, as gran<strong>de</strong>s arvores retorciam immoveis<br />

os sombrios musculos no<strong>do</strong>sos, to<strong>do</strong>s{30} embebi<strong>do</strong>s d'agua. E no firmamento<br />

esfuma<strong>do</strong>, poucas nuvens se <strong>de</strong>stacavam, tingin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> côr <strong>de</strong> rosa.<br />

Voltou-se Antonio para o mar. As aguas tinham um espreguiçamento suave. Do barco<br />

que naufragara á vespera nada mais se via: ou fôra a pique, ou o temporal o arrastara a<br />

qualquer ponto longinquo da costa.<br />

Signal <strong>do</strong> rapaz absolutamente não havia. Na areia, banhada pela chuva até mui tar<strong>de</strong>,<br />

tinham-se <strong>de</strong>sfeito as pegadas <strong>de</strong> Antonio, recolhen<strong>do</strong> com o naufrago. Mas então, se o<br />

filho tivesse <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> na cabana e só pela manhã saísse, o chão pisa<strong>do</strong> <strong>de</strong> fresco havia<br />

<strong>de</strong> indicar a direcção por elle tomada. E a verificação <strong>de</strong> que o solo estava to<strong>do</strong> liso, por<br />

egual, foi conclu<strong>de</strong>nte para o caboclo.<br />

Duas lágrymas, ar<strong>de</strong>ntes quaes malaguetas, queimaram-lhe as palpebras e um soluço<br />

estrangulou-lhe na garganta a emissão <strong>de</strong> um improperio feroz.{31}<br />

Ainda appellan<strong>do</strong> para uma esperança fortuita, <strong>de</strong>itou o infeliz a correr ás tontas <strong>de</strong> um a<br />

outro la<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong> o filho em gran<strong>de</strong>s gritos. Respondiam-lhe os echos da floresta,<br />

<strong>de</strong>moradamente. E o oceano, sem perturbar-se, arrastava as ondas languidas, que<br />

formavam rendas espumosas, sobre a finissima areia da côr da madresylva morena.<br />

A subitas, estarreceu o caboclo. Além, junto á linha da agua, muito distante <strong>do</strong> sitio<br />

on<strong>de</strong> se achava, lobrigaram seus olhos <strong>de</strong> pae um vulto extranho e logo o coração<br />

bra<strong>do</strong>u-lhe que era o cadaver <strong>do</strong> curumim. Antonio poz-se a correr—a voar—para o<br />

sitio a que o presentimento o compellia.<br />

*<br />

* *<br />

Não é um pezar o que leva esse homem no coração: é um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> angustias, um<br />

turbilhão{32} <strong>de</strong> agonias. Ensopada, a areia facilita-lhe a carreira, pela resistencia que<br />

lhe offerece aos pés <strong>de</strong>scalços. E cada pegada, um instante calcada no solo, fórma, bem<br />

<strong>de</strong>pressa, uma pequena poça que reflecte na sua superficie, sobrepon<strong>do</strong>-os, o ver<strong>de</strong> claro<br />

da vegetação das dunas e o rosa<strong>do</strong> suavissimo das nuvens, tocadas <strong>de</strong> sol.


Uma distancia insignificante separa-o já <strong>do</strong> vulto que tão lugubremente o attrae. E o<br />

<strong>de</strong>sgraça<strong>do</strong> reconhece logo o cadaver <strong>do</strong> filho.<br />

Mais alguns passos vacillantes e Antonio cae a soluçar sobre o corpo da creança<br />

afogada. E o seu pranto, as lamentações que profere, têm menos a expressão <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>sespero, <strong>do</strong> que da confissão da propria impotencia, na lucta inutil <strong>de</strong> represalias que<br />

havia trava<strong>do</strong> com o oceano.{33}<br />

UM EXGOTTADO<br />

{34}<br />

{35}<br />

UM EXGOTTADO<br />

O pobre Heitor foi leva<strong>do</strong> á sepultura n'uma triste e chuvosa manhã <strong>de</strong> abril. Como não<br />

tivesse bens que <strong>de</strong>ixassem aberta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um galanteio posthumo, nas folhas<br />

d'um testamento, acompanhou-o até Santa Isabel apenas o bom compadre Fernan<strong>de</strong>s, o<br />

inestimavel enfermeiro nos poucos e longos dias <strong>de</strong> soffrimento.<br />

O largo circulo <strong>de</strong> seus amigos eximiu-se <strong>do</strong> incommo<strong>do</strong> da viagem a bond,<br />

<strong>de</strong>sculpan<strong>do</strong>-se com o mau tempo, quan<strong>do</strong>, mais tar<strong>de</strong>,{36} um ou outro <strong>de</strong>frontava<br />

com o paciente Fernan<strong>de</strong>s.<br />

*<br />

* *<br />

Não obstante, aquelle infeliz fôra, na vida, um moireja<strong>do</strong>r notavel. Toda a cida<strong>de</strong><br />

conhecia-lhe o nome. Fizera-o á custa <strong>de</strong> muitos annos <strong>de</strong> improbo trabalho, n'uma<br />

repartição movimentada e importante. Quan<strong>do</strong> fechava o serviço official, não era para<br />

casa que ia o Heitor: tomava o caminho <strong>do</strong> diario on<strong>de</strong> collaborava e que lhe <strong>de</strong>via<br />

gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> seus melhores exitos.<br />

Quantas noites não passou elle em claro, n'uma superexcitação agri<strong>do</strong>ce, obsidia<strong>do</strong> pela<br />

idéa d'um artigo sensacional, enthusiasma<strong>do</strong> por uma nova secção, enerva<strong>do</strong> na<br />

improficua procura d'um termo proprio, d'um vocabulo justo, que exacta e<br />

completamente{37} interpretasse o seu pensamento!<br />

Mas era mais <strong>do</strong> que um jornalista, o Heitor: era um litterato <strong>de</strong> vocação. Seu anhelo<br />

mais vehemente consistia na publicação d'um livro, novella ou contos, que fôsse a<br />

<strong>de</strong>finitiva consagração <strong>do</strong> seu nome <strong>de</strong> escriptor. Muito joven, fizera nas lettras uma<br />

estréa banal, quan<strong>do</strong> estudante. Lançara, como tantos, um manifesto politico em verso e<br />

commettera sonetos como toda a gente os perpetra, aos 20 annos. Porém <strong>de</strong>pressa lhe<br />

disse o bom senso não serem os versos o seu forte e Heitor <strong>de</strong>dicou-se á prosa. Tivera,<br />

ao principio, um estylo guinda<strong>do</strong>, quasi gongorico: influencia <strong>de</strong> Camillo Castello<br />

Branco, que o impressionara violentamente. Fez-se pesquiza<strong>do</strong>r <strong>de</strong> vocabulos raros e<br />

tentou remoçar, com honras <strong>de</strong> neologismos, termos venerandamente archaicos. Seu<br />

criterio, entretanto, aconselhou-o com brandura a emancipar-se{38} <strong>de</strong> alheias


influencias, a mostrar-se nú ao publico, sem artificios <strong>de</strong> linguagem. Foi-lhe salutar a<br />

propria observação: a fórma tornou-se mais simples, a expressão mais singela, a idéa<br />

mais clara.<br />

Succedia que voltava alta noite <strong>do</strong> trabalho, fatigadissimo, os olhos avermelha<strong>do</strong>s, o<br />

cerebro ôco e pesa<strong>do</strong>; e, na vehemencia <strong>de</strong> seu amor ás lettras, assim mesmo sentava-se<br />

á mesa, a rabiscar tiras consecutivas, a esmo, com <strong>de</strong>sespero.<br />

Davam-se, então, alternadamente, gran<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sencontradas luctas n'aquelle espirito.<br />

Vinham-lhe ás vezes, á lembrança <strong>do</strong> exito <strong>de</strong> um livro novo, reviviscentes<br />

enthusiasmos. O clangoroso clarim da emulação retinia-lhe aos ouvi<strong>do</strong>s,<br />

anima<strong>do</strong>ramente. Sentia-se Heitor capaz <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s commettimentos, fazia projectos e<br />

planos <strong>de</strong> romances,—uma edição <strong>de</strong> luxo, á Guillaume, com gravuras artisticas,<br />

executadas em Paris.{39}<br />

Era um <strong>do</strong>s seus sonhos mais persistentes um livro amazonico, to<strong>do</strong> cheio <strong>de</strong> vinhetas<br />

com paizagens nossas, que interpretassem, nas linhas <strong>do</strong> <strong>de</strong>senho, as perspectivas que o<br />

texto havia <strong>de</strong> pintar ainda mais eloquentemente <strong>do</strong> que o lapis. Á idéa d'essas<br />

illustrações, seu espirito alcan<strong>do</strong>rava-se em gran<strong>de</strong>s esperanças. To<strong>do</strong> o corpo vibravalhe<br />

<strong>de</strong> emoção artistica, pregosan<strong>do</strong> os applausos incondicionaes <strong>de</strong> seus conterraneos.<br />

E projectava d'uma assentada <strong>do</strong>is romances e tres ou quatro contos. Preparava-se para<br />

escrever, limpava a penna, dispunha meticulosamente o papel <strong>de</strong>ante <strong>de</strong> si e... fitava o<br />

tecto, á espreita da primeira palavra, como se tivesse <strong>de</strong> agarral-a <strong>de</strong> surpresa; mas a<br />

phrase tornava-se arredia, occultava-se n'um borborinho <strong>de</strong> pensamentos e o tempo<br />

fugia, na <strong>de</strong>sanimada esterilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Heitor.<br />

Chegavam-lhe <strong>de</strong>pois á memoria{40} as rui<strong>do</strong>sas ovações feitas a outros escriptores, a<br />

acceitação <strong>de</strong> seus livros, a popularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus nomes em to<strong>do</strong> o paiz. Tentava, n'um<br />

esforço <strong>de</strong> energia, vencer a improductivida<strong>de</strong>, forçar a idéa; tornava a molhar a penna,<br />

endireitava o papel: tu<strong>do</strong> era inutil. Estava escripto que nada po<strong>de</strong>ria fazer.<br />

Deitava-se então, n'um <strong>de</strong>sanimo, soprava a luz; ficava na escuridão da sua soleda<strong>de</strong>, os<br />

olhos escancara<strong>do</strong>s, com um offego <strong>de</strong> raiva a seccar-lhe a guela. Era justamente isso a<br />

sua arrelia. Uma vez <strong>de</strong>ita<strong>do</strong>, tinha, logo <strong>de</strong>pois, a intelligencia lucidissima: organisava<br />

as idéas, formulava phrases mentalmente, alinhava perio<strong>do</strong>s inteiros. E, n'uma<br />

crispação, conhecia—presentia—que, se escrevesse assim, teria garanti<strong>do</strong> o agra<strong>do</strong><br />

publico, que é o vestibulo da immortalida<strong>de</strong> para o escriptor. Saltava ás pressas para o<br />

chão, accendia a vela, atirava-se á mesa:—mas o encantamento{41} quebrava-se,<br />

permanecen<strong>do</strong> ali apenas o homem <strong>de</strong> lettras impotente, o jornalista exgotta<strong>do</strong>, o<br />

funccionario embruteci<strong>do</strong>, que longas horas <strong>de</strong> trabalho material impossibilitaram para<br />

as lucubrações artisticas. Vinham-lhe então vibrantes assomos <strong>de</strong> tremulas<br />

<strong>de</strong>sesperações. Infeliz Heitor!<br />

*<br />

* *<br />

Uma feita, lembrou-se <strong>de</strong> buscar na historia antiga assumpto para uma novella.<br />

Naturalmente, o clarão <strong>de</strong>slumbrante da Grecia chamava-lhe a intelligente attenção e<br />

Heitor <strong>de</strong>liberou logo que a vida hellenica da éra premessianica seria a preferida da sua


penna. Sem gran<strong>de</strong> esforço, presentiu que série <strong>de</strong> quadros impressiona<strong>do</strong>res po<strong>de</strong>riam<br />

inspirar-lhe os requintes d'aquella civilisação assombrosa, mesmo em suas{42}<br />

<strong>de</strong>sabridas paixões carnaes, em seus vicios triumphantes. E que bellas perspectivas<br />

havia <strong>de</strong> esboçar, na phrase curta e incisiva a que insensivelmente affeiçoara-se-lhe o<br />

estylo!<br />

Assumptos não lhe faltavam. Toda a serie <strong>de</strong> lendarias hetairas,—Thais, Sapho,<br />

Aspasia,—prestar-lhe-ia ensejo para admiraveis paginas. E sonhava então fazer obra<br />

nova, fazer obra sua, propriamente <strong>do</strong> seu cerebro. Queria divorciar-se <strong>de</strong> intenções<br />

preconcebidas, seguir trilha não arroteada ainda. Sua novella seria em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s<br />

original,—que não fôssem imputar-lhe a pecha <strong>de</strong> imita<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Flauberts, <strong>do</strong>s Anatoles<br />

France, <strong>do</strong>s Pierres Loüys.<br />

Excellentemente educa<strong>do</strong>, encontrara Heitor em consecutivas viagens optima occasião<br />

para illustrar-se. Seu espirito, em assumptos d'arte, possuia um admiravel senso<br />

esthetico, que a contemplação <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s trabalhos geniaes <strong>de</strong> todas as epochas<br />

havia{43} crea<strong>do</strong> e corrigi<strong>do</strong>. Sonhara, <strong>de</strong> prompto, fazer illustrar o seu volume com<br />

silhuetas <strong>de</strong> Carlos Aguiar, paizagens <strong>de</strong> De Angelis e <strong>de</strong>liciosos molhos <strong>de</strong> flôres <strong>de</strong><br />

Julieta França. Havia <strong>de</strong> enchel-o <strong>de</strong> illuminuras, <strong>de</strong>liciosamente. Seria um livro<br />

amoroso, toda a nu<strong>de</strong>z <strong>do</strong> amor hellenico trescalan<strong>do</strong> vivida volupia no texto e<br />

fulguran<strong>do</strong> em vinhetas, n'uma exuberancia <strong>de</strong> corpos juvenis, como harmonioso hymno<br />

á Forma immortal. E todas estas idéas vinham-lhe ao cerebro sem baixa concupiscencia,<br />

antes por enthusiasmo artistico, eleva<strong>do</strong> e regenera<strong>do</strong>r.<br />

Entretanto, nada fazia. Quedava-se horas inteiras senta<strong>do</strong> á secretária, já pensativo, já<br />

distrai<strong>do</strong>, rabiscan<strong>do</strong> palavras ermas <strong>de</strong> senso, ao acaso. E que não havia mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

surprehen<strong>de</strong>r a idéa matriz, fundil-a na primeira phrase, <strong>de</strong>finitiva e triumphal. To<strong>do</strong>s os<br />

perio<strong>do</strong>s pareciam-lhe inserviveis, sem nervos. Tocava-os com a vista, sopesava-os com<br />

o{44} espirito: eram expressões molles como enguias, que escorregavam-lhe <strong>do</strong>s<br />

senti<strong>do</strong>s e caíam n'uma laxidão para o olvi<strong>do</strong>, seguidas da sauda<strong>de</strong> <strong>do</strong>lorosa d'aquelle<br />

impotente sonha<strong>do</strong>r.<br />

*<br />

* *<br />

Quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>eceu, Heitor presentiu que estava tu<strong>do</strong> acaba<strong>do</strong>. Ia morrer. Subiram-lhe<br />

então as lagrymas ás palpebras, rolaram pelas faces como pesadas, ar<strong>de</strong>ntes perolas em<br />

fusão: lamentava o passa<strong>do</strong>, arrependia-se <strong>de</strong> tantos annos <strong>de</strong> transigencia com a inercia.<br />

Dizia-lhe a consciencia que era <strong>de</strong> sua culpa, se tão pequena bagagem litteraria legava á<br />

Amazonia,—embal<strong>de</strong> o infeliz, para <strong>de</strong>sculpar-se a si proprio, estivesse no direito <strong>de</strong><br />

invocar a absorvente tyrannia da existencia, a ingratidão universal. E, em poucos<br />

dias,{45} então, cobriu-se-lhe <strong>de</strong> cans a <strong>de</strong>sgrenhada cabeça scisma<strong>do</strong>ra.<br />

No instante em que expirou, esboçava Heitor um meio sorriso transluci<strong>do</strong>: dir-se-ia<br />

estar a ver perpassarem ainda as frótas d'Alexandre, mar Jonio a fóra, ao som <strong>do</strong>s<br />

instrumentos musicos <strong>de</strong> cortezãs sagradas, erectas á prôa e á pôpa, a<strong>do</strong>ravelmente<br />

nuas.{46}<br />

{47}


CONTO DO NATAL<br />

{48}<br />

{49}<br />

CONTO DO NATAL<br />

O velho padre Jacintho estava já abroquela<strong>do</strong> na dupla coiraça da virtu<strong>de</strong> e da eda<strong>de</strong>.<br />

Não havia cara bonita <strong>de</strong> mulher nova que lhe attraisse um olhar mais <strong>de</strong>mora<strong>do</strong>, assim<br />

como não existia pecca<strong>do</strong>, venial ou mortal, cuja <strong>de</strong>nuncia pu<strong>de</strong>sse conturbal-o. Tinha o<br />

sacer<strong>do</strong>te ouvi<strong>do</strong>s castos para quantos <strong>de</strong>lictos lhe segredavam as beatas, atravez da<br />

lamina <strong>de</strong> folha esburacada <strong>do</strong> confissionario.<br />

E era sempre com a mais tranquilla meiguice, toda paternal,{50} que monotonamente<br />

prescrevia um Padre-Nosso e uma Avè-Maria como penitencia ás mais reinci<strong>de</strong>ntes<br />

pecca<strong>do</strong>ras.<br />

Trinta annos <strong>de</strong> pastoreio <strong>de</strong> ovelhas espirituaes haviam-lhe da<strong>do</strong>, com a calma<br />

imperturbavel, o anesthesico da sensualida<strong>de</strong>.<br />

D'entre as suas mais assiduas confessadas distinguia-se, pelo ameno rosto e fervorosa<br />

<strong>de</strong>voção, uma joven mulatinha, filha d'um fazen<strong>de</strong>iro da comarca <strong>de</strong> Chaves. Era um<br />

primor, a Maricota, requestada por muitas leguas em torno, na cálida terra marajoara,<br />

on<strong>de</strong> o amor bebe roborantes philtros aperitivos, na <strong>do</strong>ce emanação das gordas<br />

pastagens restolhadas.<br />

Ninguém mais attenta <strong>do</strong> que ella aos <strong>de</strong>veres <strong>do</strong> culto catholico e ao cumprimento <strong>de</strong><br />

suas obrigações <strong>do</strong>mesticas: «rapariga da ponta», consagrava-a a opinião da comarca,<br />

pelo orgão competentissimo <strong>do</strong> conspicuo juiz <strong>de</strong> direito.<br />

Quan<strong>do</strong> chegou <strong>de</strong>zembro, Maricota combinara com o vaqueiro{51} Antonio, seu<br />

namora<strong>do</strong> <strong>de</strong> infancia, que a fosse pedir em casamento no dia <strong>de</strong> Natal. Tinha fé na data,<br />

que havia <strong>de</strong> angariar-lhe maior mésse <strong>de</strong> venturas; e ainda em obediencia á inclinação<br />

religiosa, abalou campos a fóra, até á resi<strong>de</strong>ncia <strong>do</strong> clerigo, a quem confiou a tarefa <strong>de</strong><br />

formular perante seus progenitores o pedi<strong>do</strong> sacramental em nome <strong>do</strong> rapaz.<br />

Ao tremulo pastor d'almas agra<strong>do</strong>u aquella incumbencia intencional, como lisongeira<br />

homenagem á sua dupla auctorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> confessor e velho amigo da familia.<br />

Que fosse com Deus e ficasse certa <strong>de</strong> que, no dia <strong>de</strong> Natal, pela tar<strong>de</strong>, lá estaria a<br />

representar o maganão.<br />

*<br />

* *<br />

Á porta da casa principal da fazenda, á beira-rio, em Marajó. Tar<strong>de</strong> assoalhada<br />

pomposamente,{52} na magnificencia vence<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> astro a <strong>de</strong>scambar pelo<br />

espaço transluci<strong>do</strong>. Chovera uma hora antes e o céu, azul e bruni<strong>do</strong>, estava ermo <strong>de</strong>


nuvens. Dos campos infinitos, muito ver<strong>de</strong>s ao perto, gradativamente azula<strong>do</strong>s á medida<br />

que a vista buscava o horizonte, subiam olores a<strong>do</strong>cica<strong>do</strong>s, o bom cheiro <strong>do</strong>s fortes<br />

pastos ensopa<strong>do</strong>s d'agua. E <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s estabulos, era um retintim jovial <strong>de</strong> cavaquinhos<br />

e violas, o ar<strong>de</strong>nte sapateio das danças campesinas.<br />

Toda a familia da Maricota, sentada no copiar em <strong>de</strong>rre<strong>do</strong>r da secular mangueira<br />

fron<strong>do</strong>sa da esquerda, palestrava contente, ouvin<strong>do</strong> as boas chalaças inoffensivas <strong>do</strong><br />

sacer<strong>do</strong>te.<br />

Os <strong>do</strong>is noivos—noivos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meia hora antes—conversavam a alguns passos <strong>de</strong><br />

distancia <strong>do</strong> grupo principal. Para o vaqueiro, esse instante era o mais feliz da vida.<br />

Pulava-lhe o coração <strong>de</strong>sencontra<strong>do</strong> no peito arfante, rebrilhavam-lhe as pupillas, que<br />

reflectiam a{53} imagem, sempre meiga e a<strong>do</strong>rada, da sua querida Maricota. Parecialhe<br />

que a voz da rapariga, n'esse primeiro colloquio já realiza<strong>do</strong> com o assenso da<br />

familia, e por isso <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um sabor novo, possuia inflexões <strong>de</strong>sconhecidas,<br />

entonações extranhas, um avelluda<strong>do</strong> espesso como o refresco <strong>do</strong> assahy.<br />

Á moça, entretanto, como que um pensamento fixo a preoccupava. Duas vezes já,<br />

<strong>de</strong>ixara sem resposta, ou respon<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>moradamente, a uma apaixonada interrogação <strong>do</strong><br />

noivo, ternamente segredada em tremulo balbucio <strong>de</strong> emoção.<br />

Notou-o o velho padre, ao observal-os <strong>de</strong> longe. Erguen<strong>do</strong> a voz, perguntou-lhe n'um<br />

sorriso:<br />

—Que tens, filha? Em que pensas?<br />

E a Maricota, levantan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> ao pé <strong>do</strong> noivo, acercou-se da familia e:<br />

—Penso, explicou, que por ser hoje dia <strong>de</strong> Natal, o sr. padre bem{54} po<strong>de</strong>ria obter<br />

para mim a graça <strong>de</strong> ficar sempre «virgem antes <strong>do</strong> parto, no parto e <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> parto»...<br />

E voltan<strong>do</strong>-se para o vaqueiro, a sorrir—innocente ou maliciosa? ninguem po<strong>de</strong>ria<br />

reconhecel-o, no meio da estupefacção geral,—accrescentou:<br />

—Não <strong>de</strong>ves zangar-te com isso; Jesus foi filho <strong>de</strong> Deus, e São José não <strong>de</strong>u o<br />

cavaco!{55}<br />

A NETA DA CABOCLA DE OURÉM<br />

{56}<br />

{57}<br />

A NETA DA CABOCLA DE OURÉM<br />

D'entre as raparigas que, ha <strong>do</strong>is annos, se divertiam nos agapes venusinos <strong>de</strong> Belém,<br />

distinguia-se, pela seductora graça <strong>de</strong> toda a sua pessôa, uma joven cabocla, <strong>de</strong> feições<br />

correctas e penetrantes, <strong>de</strong> irressistivel olhar, to<strong>do</strong> malicia e promessas <strong>de</strong> prazer.


Chamavam-lhe os intimos—a Paquinha, pelo apimenta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s saracoteios, nas danças<br />

nacionaes.<br />

Esta personagem viera para Belém alguns mezes antes. Seu passa<strong>do</strong>, bem poucos o<br />

conheciam; sabia-se vagamente que, nascida em{58} Ourém, fôra creada pela avó,<br />

humil<strong>de</strong> tapuia cujo nome a chronica <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhara registrar. Morrera-lhe a mãe ás poucas<br />

horas <strong>do</strong> puerperio difficil. Até á a<strong>do</strong>lescencia, a vida tinha <strong>de</strong>slisa<strong>do</strong> sem peripecias<br />

notaveis, na insipi<strong>de</strong>z lacustre <strong>do</strong> logarejo. Um dia, porém, suas graças fascinaram o<br />

escrivão <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s vapores da linha:—<strong>de</strong>ixou-se a rapariga raptar, em triste madrugada<br />

<strong>de</strong> chuva. O seductor, passa<strong>do</strong> o primeiro enlêvo, na capital, diminuiu os mantimentos<br />

na dispensa; mas, a pretexto <strong>de</strong> ciumes, entrou <strong>de</strong> espancal-a com vigor. Por um<br />

momento, resignou-se a neta da cabocla <strong>de</strong> Ourém; todavia, foi curta a passiva<br />

submissão. Lembrou-se <strong>do</strong>s mimos perdi<strong>do</strong>s, no carinhoso lar da avó e fugiu da casa <strong>do</strong><br />

embarcadiço, disposta a voltar para junto da velhinha.<br />

Na rua, teve a impressão <strong>de</strong> achar-se n'um labyrintho: era a primeira vez que sahia, em<br />

tamanho povoa<strong>do</strong>; a casaria chegou a{59} fazer-lhe me<strong>do</strong>, per<strong>de</strong>u o geito <strong>de</strong> andar:<br />

lagrymas fluiram-lhe <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s olhos negros, <strong>de</strong>sconsoladamente. Ao quebrar uma<br />

esquina, esbarrou em apressa<strong>do</strong> transeunte, pediu-lhe orientação para o caminho <strong>do</strong><br />

porto. Acolhida com sympathia, contou-lhe a sua curta historia; n'aquella noite, jantou<br />

bem, bebeu champagne pela vez primeira—e resolveu ficar na cida<strong>de</strong>.<br />

O convivio com este novo amante durou apenas uma semana: pobres ambos, que<br />

tinham a lucrar na associação <strong>de</strong> duas miserias? Mu<strong>do</strong>u-se para um hotel.<br />

Em poucos dias, tornou-se conhecidissima. A ingenuida<strong>de</strong> natural <strong>do</strong>s seus mo<strong>do</strong>s, a<br />

lhaneza <strong>do</strong>s a<strong>de</strong>manes, a propria incorrecção com que se expressava, constituiam outros<br />

tantos aperitivos da concupiscencia <strong>de</strong> seus protectores. Conquistar-lhe as preferencias,<br />

um bom sorriso, ao menos, era afan em que se empenhavam <strong>do</strong>is terços da população<br />

viril <strong>de</strong>{60} Belém. Tenham paciencia os dissimula<strong>do</strong>s paes <strong>de</strong> familia; aqui lhes <strong>de</strong>lato<br />

a fraqueza: muitos <strong>do</strong>s que me lêm, andaram com o espirito captivo <strong>de</strong> extranha<br />

preoccupação, por causa da heroina d'este conto. E não poucos commenda<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>s<br />

mais adiposos e conspicuos, tiveram noitadas <strong>de</strong> insomnia, flatulencias insidiosas,—<br />

ruminan<strong>do</strong> a reluctancia da moça em acceitar-lhes as tenta<strong>do</strong>ras propostas. Paquinha<br />

comprazia-se menos em viciosas intimida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> que no revoluteio das valsas; e a<br />

inebriante effervescencia <strong>de</strong> uma taça <strong>de</strong> champagne, em jucun<strong>do</strong> banquete, offerecialhe<br />

maior attracção <strong>do</strong> que as promessas <strong>de</strong> installações <strong>do</strong> luxo, que por experiencia<br />

sabia <strong>de</strong>ver serem sempre ephemeras, tão fugidio é o capricho <strong>do</strong>s homens.<br />

Por causa d'esta anomalia, tinha frequentes discussões com as amigas, pessoas praticas,<br />

absolutamente divorciadas <strong>do</strong> seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> encarar a vida. Choviam-lhe nos{61}<br />

ouvi<strong>do</strong>s os mais pon<strong>de</strong>raveis conselhos:—que não fôsse tola em <strong>de</strong>sprezar com<br />

levianda<strong>de</strong> os ensejos <strong>de</strong> fazer-se in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, para preferir a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res adventicios,<br />

optimos rapazes, é certo, porém cujos recursos não po<strong>de</strong>riam bastar ás exigencias <strong>do</strong> seu<br />

trato. Encolhia a hetaira os bellos, roliços hombros morenos. Ella era assim mesmo:<br />

fôssem lá contrafazer-lhe a natureza! E novas razões brotavam ainda á flôr <strong>do</strong>s labios<br />

das solicitas conselheiras e já ella, gingan<strong>do</strong>, a pensar no baile proximo, cantarolava<br />

uma copla <strong>de</strong> modinha, na suprema lascivia <strong>de</strong> sua juvenil formosura.<br />

Tal era a neta da cabocla <strong>de</strong> Ourém.


*<br />

* *<br />

Similhante <strong>de</strong>spreoccupação, entretanto, <strong>de</strong>via <strong>de</strong> achar um termo. Paquinha, um dia,<br />

amou. Despertan<strong>do</strong>, manhã alta, no amplo,{62} macio leito <strong>do</strong> seu excellente chálet, á<br />

estrada São Jeronymo, foi com uma pontinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento que verificou a<br />

ausencia <strong>de</strong> Julio, o seu companheiro da vespera. Porque, esse dissabor, se o mancebo<br />

ficara <strong>de</strong> partir pela madrugada, sem a accordar? Nem ella propria, ao principio, soube<br />

<strong>de</strong>finir bem o traiçoeiro mal-estar; e apenas quan<strong>do</strong> lhe notou a insidia, foi que<br />

<strong>de</strong>sconfiou <strong>do</strong> novo sentimento, esboça<strong>do</strong> por uma sauda<strong>de</strong> melancholica.<br />

Ergueu-se contrariada, <strong>de</strong> mau humor. Nem mesmo o banho, satura<strong>do</strong> d'ervas cheirosas,<br />

conseguiu tranquillizar-lhe os nervos. Almoçou pouco e, em toda a tar<strong>de</strong>, conservou-se<br />

reclusa, auscultan<strong>do</strong> a alma. De um natural ingenuo, admirava-se da surpresa d'aquelle<br />

affecto incipiente. Discutiu probabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> outras causas,—ainda inclinada a não<br />

attribuir a uma origem passional a sua preoccupação. Mas atraz <strong>de</strong> quantos argumentos<br />

a volição lhe{63} inspirasse, via sempre o perfil <strong>do</strong> mancebo que a impressionara,—<br />

sorri<strong>de</strong>nte perfil, cujo maior encanto residia, certo, n'um ar <strong>de</strong> meiguice e ternura, que<br />

não estava acostumada a ver no rosto, simplesmente luxurioso, <strong>de</strong> seus habituaes<br />

convivas. Sentiu como se no palacio <strong>do</strong>s seus sonhos se houvesse rasga<strong>do</strong> uma gran<strong>de</strong><br />

janella, toda ornada <strong>de</strong> flôres o<strong>do</strong>riferas. Por lá entrava a luz, a bemdita luz <strong>de</strong> um sol <strong>de</strong><br />

felicida<strong>de</strong>; e entravam tambem auras bemfazejas, varren<strong>do</strong>-lhe o intimo <strong>do</strong> coração. Á<br />

rapariga, então, acudiam aspirações novas, uma ancia, até ali <strong>de</strong>sconhecida, empós <strong>do</strong><br />

idéal,—tu<strong>do</strong> mal <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> ainda, porém já pregosa<strong>do</strong> com intima volupia. Como era<br />

bom aquillo, apezar <strong>de</strong> dar-lhe um to<strong>do</strong>-nada <strong>de</strong> incomprehensivel soffrimento moral!<br />

Seria isso o amor?<br />

Quan<strong>do</strong> anoiteceu, tornou ao banheiro, para a copiosa ablução vesperal. Jorran<strong>do</strong> na<br />

larga piscina <strong>de</strong> marmore, a agua cantava{64} branda melopéa, que fazia pensar nas<br />

yaras. Frascos <strong>de</strong> vinagres caros aromatizavam <strong>de</strong> essencias o ar humi<strong>do</strong>. E o amplo<br />

espelho <strong>do</strong> fun<strong>do</strong>,—a um canto <strong>do</strong> qual De Angelis, o pintor sacro-mundano, traçara,<br />

com o seu pincel malicioso, uma a<strong>do</strong>ravel nu<strong>de</strong>z <strong>de</strong> caboclinha com feições <strong>de</strong><br />

archanjo,—expandia a polida superficie, como n'um enorme bocejo <strong>de</strong> impaciencia, á<br />

espera d'ess'outra nu<strong>de</strong>z animada, que estava para vir confiar-lhe as suas mais capitosas<br />

intimida<strong>de</strong>s.<br />

Despiu-se Paquinha, qual um automato. As mãos, errantes, <strong>de</strong>sabotoavam e <strong>de</strong>slaçavam,<br />

sem segurança; o espirito, alhea<strong>do</strong>, vagava longe, contornan<strong>do</strong> <strong>de</strong> osculos mentaes a<br />

imagem ausente <strong>de</strong> Julio. Só a sensação da agua fria trouxe Paquinha á realida<strong>de</strong>. Com<br />

certeza, amava ao rapaz. E, alfim convencida, disposta tambem a conquistal-o,<br />

entregou-se, com re<strong>do</strong>brada attenção, ao preparo <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os artificios da galanteria<br />

feminil.{65} O espelho, <strong>de</strong>ante <strong>do</strong> qual, ao sahir <strong>do</strong> banho, patenteou o corpo inteiro,<br />

n'um bran<strong>do</strong> arrepio mádi<strong>do</strong>, mostrava-lhe com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> os requintes da mais<br />

triumphante belleza. Pois era preciso realçar taes <strong>do</strong>tes, empregal-os com arte, com uma<br />

ascen<strong>de</strong>ncia discreta, para a realização da conquista projectada. E, n'um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro<br />

olhar, satisfeito, ás proprias fórmas,—olhar encerran<strong>do</strong> beijos,—Paquinha teve a<br />

convicção da victoria próxima.<br />

Em pouco tempo, quanta mudança n'essa mulher, já tão diversa da primitiva neta da<br />

cabocla <strong>de</strong> Ourém!


*<br />

* *<br />

A seducção começou n'aquella mesma noite, no baile da Rapioca. Ao magote <strong>de</strong><br />

mancebos que affluira á porta da sala, a solicitar valsas e polkas, respon<strong>de</strong>u ella,{66}<br />

sorrin<strong>do</strong>, estar já compromettida «para todas as danças». E logo, com uma leve<br />

ancieda<strong>de</strong>, os negros olhos tenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Paquinha perscrutaram o aposento, procuran<strong>do</strong><br />

Julio.<br />

Lá não estava o rapaz. Se tinha vin<strong>do</strong>? perguntou a um janota. Ante a resposta negativa,<br />

pulou-lhe um sobresalto no coração, como se algo lhe faltasse <strong>de</strong> subito na integrida<strong>de</strong><br />

da existencia moral.<br />

Tornou-se notada a preocupação da rapariga, <strong>do</strong>idivanas proclamada em to<strong>do</strong>s os<br />

festivaes <strong>de</strong> Cythera. Não houve galanterio <strong>de</strong> admira<strong>do</strong>res que a distrahisse da tristeza<br />

em que mergulhara. Nem os mais requebra<strong>do</strong>s maxixes conseguiram chamal-a ao salão<br />

<strong>de</strong> baile. Pedi<strong>do</strong>s, supplicas, ar<strong>de</strong>ntes appellos ao seu primitivo enthusiasmo<br />

choreographico, tu<strong>do</strong> foi impotente.<br />

—Que terá hoje a Paquinha? perguntavam uns aos outros os moços, intriga<strong>do</strong>s.{67}<br />

—Partes! diziam as <strong>de</strong>mais mulheres, com sarcasmo.<br />

Breve, porém, houve a explicação <strong>do</strong> caso. Julio acabava <strong>de</strong> chegar; a um chama<strong>do</strong> da<br />

tenta<strong>do</strong>ra tapuia, enlaçou-a n'um orgulho, e o bello par fez irrupção na sala, ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong><br />

ao som <strong>de</strong> um boston.<br />

—Ah! disse em côro quasi toda a assistencia, comprehen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>.<br />

—Temos novida<strong>de</strong>! exclamou um velhote careca, <strong>de</strong> barba ponteaguda e olhinhos<br />

amen<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s.<br />

—Paixão, disque! motejou uma valsista esgrouviada.<br />

Emtanto, Julio e Paquinha <strong>de</strong>slizavam com subida elegancia, ao rythmo da musica,<br />

falan<strong>do</strong> baixo, no aconchego <strong>de</strong> intensa ventura.<br />

Terminada a valsa, a rapariga conduziu o cavalheiro para uma janella da ante-sala. Na<br />

altura <strong>do</strong> sobra<strong>do</strong>, que sobrepujava os predios adjacentes, brisas suavissimas corriam<br />

sob a luz serena <strong>do</strong> luar. Uma ternura sem limites dilatou-lhe a alma enamorada. E<br />

ali,{68} no afastamento, ao som d'um preludio <strong>de</strong> quadrilha, Paquinha tomou uma das<br />

mãos <strong>de</strong> Julio e segre<strong>do</strong>u, com a emoção a sacudir-lhe a voz:<br />

—Se eu te amasse?...<br />

Estava o moço muito longe <strong>de</strong> prever similhante pergunta. De surpresa foi a primeira<br />

impressão. Logo, porém, sorriu—jubilo ou ironia?—e exclamou:<br />

—Serias a mais justa e misericordiosa creatura da terra, meu amor!


—Vamo'-nos, então, repoz a caboclinha, sempre a meia-voz, gravemente.<br />

Descen<strong>do</strong> a escada, Paquinha levava o coração repleto <strong>de</strong> alegria. Seu rosto,<br />

transmuda<strong>do</strong> pelo contentamento, exprimia <strong>de</strong>liciosas impressões. Era ella quem seguia<br />

a<strong>de</strong>ante, agarrada á mão direita <strong>do</strong> rapaz, com um ar <strong>de</strong> triumpho, que lhe duplicava a<br />

belleza. Julio constituia a sua presa,—a presa da alma apaixonada. Como era bom amar<br />

e ser amada!{69}<br />

Quan<strong>do</strong> o mancebo accor<strong>do</strong>u, na manhã seguinte, po<strong>de</strong>ria attestar que a suprema <strong>de</strong>licia<br />

é privilegio da vida terrena. D'aquella noite datou uma existencia encanta<strong>do</strong>ra para<br />

ambos, no poetico chálet. To<strong>do</strong>s os momentos que as occupações lhe davam <strong>de</strong> folga,<br />

passava-os Julio ao la<strong>do</strong> da amante, n'um connubio que offerecia seducções<br />

paradisiacas.<br />

O joven par <strong>de</strong>sappareceu das agglomerações, isolou-se, para melhor fruir o arroubo <strong>de</strong><br />

uma prolongada intimida<strong>de</strong> sem testemunhas. Viveram ambos as mais agradaveis horas<br />

que aos mortaes é da<strong>do</strong> gosar,—na tranquillida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ninho perfumoso, sem ambições<br />

além <strong>do</strong> proprio amor, em mutua a<strong>do</strong>ração. Descobria cada qual que o outro possuia<br />

inestimaveis meritos e, com uma surpresa ingenua, confessavam reciprocamente que a<br />

mais perfeita parida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caracteres pre<strong>de</strong>stinava-os para uma eterna comprehensão<br />

bemaventurada.<br />

Era <strong>de</strong> vel-os, unidinhos e amorosos,{70} nas <strong>do</strong>ces noitadas <strong>de</strong> paixão, quan<strong>do</strong> a innata<br />

phantasia romantica os encaminhava para a farfalhante penumbra <strong>do</strong> caramanchel, no<br />

jardim! Jasmineiros e eloendros <strong>de</strong>sabotoavam as re<strong>do</strong>lentes flôres, que choviam como<br />

bençãos <strong>do</strong> céu propicio sobre o enlace <strong>do</strong> joven par. Maior felicida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>ra Julio<br />

exigir na terra.<br />

O primeiro mez <strong>de</strong> tal cohabitação foi, <strong>de</strong>veras, o mais afortuna<strong>do</strong> que jamais passou a<br />

neta da cabocla <strong>de</strong> Ourém.<br />

*<br />

* *<br />

Ao começar, porém, <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> mez, entrou o amante <strong>de</strong> ser mais <strong>de</strong>mora<strong>do</strong> nas<br />

excursões ao centro da cida<strong>de</strong>. Desculpava-se com a exigencia <strong>do</strong>s negocios,—<br />

difficulda<strong>de</strong>s imprevistas, que cumpria vencer á força <strong>de</strong> diligencias pessoaes.<br />

Apaixonada em extremo,{71} Paquinha acreditava n'estas razões, tanto mais quanto<br />

Julio, sempre <strong>de</strong>lica<strong>do</strong>, nenhuma differença sensivel apresentava no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> a tratar.<br />

Não obstante, passageiras distracções alheavam, ás vezes, o espirito <strong>do</strong> rapaz. Tinha, em<br />

certos momentos, um como atrazo da memoria, <strong>de</strong>moras em respon<strong>de</strong>r á companheira;<br />

esforçava-se, com remorsos, com pena da victima, por vencer a preoccupação que<br />

traiçoeiramente o empolgava, mesmo nas horas <strong>de</strong> intimos <strong>de</strong>vaneios, nos braços da<br />

caboclinha. Mau gra<strong>do</strong> a energia com que luctava por afastar <strong>de</strong> si extranhos<br />

pensamentos,—a idéa <strong>de</strong> outrem, a lembrança d'uma creatura i<strong>de</strong>almente loira e<br />

divinamente bella, entrevista algumas tar<strong>de</strong>s antes, apo<strong>de</strong>rava-se-lhe <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, com<br />

persistencia. E em pouco tempo, a intrusa estabeleceu-lhe na mente absoluto<br />

pre<strong>do</strong>minio. Foi uma obsidiação <strong>de</strong>sespera<strong>do</strong>ra. Quan<strong>do</strong>, á força <strong>de</strong> reagir contra a<br />

capitulação{72} involuntaria, buscava nos amplexos da cabocla attracções que


suppunha efficazes, a contragosto entrecerrava as palpebras e affigurava-se-lhe então<br />

que <strong>de</strong>sapparecera d'ali a meiga Paquinha, já gosada e por <strong>de</strong>mais conhecida. Julgava<br />

realmente possuir entre os braços a extrangeira, a outra, aquella <strong>de</strong> nome <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong><br />

até, porém que elle adivinhava <strong>de</strong>liciosamente bôa para ser assim estreitada com ternura<br />

e com frenesi amada.<br />

O phenomeno havia <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scoberto, mais ce<strong>do</strong> ou mais tar<strong>de</strong>. Paquinha presentiu-o,<br />

advinhou-o mais <strong>do</strong> que o percebera. Surprehen<strong>de</strong>u-o <strong>de</strong> uma feita que o moço, colhi<strong>do</strong><br />

por ella com os braços enlaçantes, fizera ligeiro movimento para furtar-lhe a bôcca á<br />

pressão <strong>do</strong>s rôxos labios sensuaes. Quê! repugnavam-lhe os beijos da amante! Retirouse<br />

<strong>de</strong> junto d'elle a filha <strong>do</strong> sertão, dissimulan<strong>do</strong> a pungitiva surpresa. A alcôva, a<br />

mansão aromatica e discreta on<strong>de</strong> tamanhas{73} venturas <strong>de</strong>sfructara, acolheu por to<strong>do</strong><br />

esse longo dia a lacrymosa hetaira.<br />

N'um momento, <strong>de</strong>sven<strong>do</strong>u-se-lhe a realida<strong>de</strong> aos olhos da alma angustiada: era o tédio,<br />

o enfaro que vencera o companheiro estremeci<strong>do</strong>! Que lhe fizera ella, entretanto, para<br />

tornar-se-lhe menos interessante? Pois não tinha sempre os mesmos carinhos <strong>do</strong>s<br />

primitivos tempos, a completa <strong>de</strong>dicação que se requer entre seres liga<strong>do</strong>s para a vida<br />

<strong>de</strong>finitiva? Passou em revista o seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r, as phrases das mais pequenas<br />

conversas, seus gestos, por insignificantes que fôssem. Com <strong>de</strong>sespero, interpellou a<br />

consciencia e esta mostrou-se tranquilla, convicta <strong>do</strong> <strong>de</strong>ver cumpri<strong>do</strong>. Não atinava com<br />

a razão <strong>de</strong> tal mudança; bon<strong>do</strong>sa <strong>de</strong> mais, só a si mesma imputava a causa da molesta<br />

transição. Desnu<strong>do</strong>u-se ante o largo espelho <strong>do</strong> guarda-roupa e, examinan<strong>do</strong> o proprio<br />

corpo com olhares imparciaes, como se{74} fôssem os <strong>de</strong> outra pessôa, encontrou-se<br />

correctissima <strong>de</strong> fórmas, seductora <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> e belleza. D'aquelle corpo, que poucos<br />

haviam possui<strong>do</strong>, que encantos lhe recusara ella? Esta interrogação avultou entre todas,<br />

sobrelevan<strong>do</strong>-as. Linha d'elle não havia que lhe não tivesse si<strong>do</strong> offertada em<br />

holocausto, aos cariciosos contactos <strong>do</strong>s labios sussurrantes <strong>de</strong> osculos, nos immortaes<br />

momentos <strong>de</strong> voluptuosa vesania. To<strong>do</strong> o seu formoso sêr, tão appetitoso como um<br />

fructo equatorial, fôra-lhe da<strong>do</strong> sem complica<strong>do</strong>s pu<strong>do</strong>res, no incondicional sacrificio <strong>de</strong><br />

immenso amor, sincero e simples. Tambem havia-lhe si<strong>do</strong> fiel, como as mais puras<br />

mulheres, e <strong>do</strong>cemente respeitosa, e patriciamente digna, em todas as relações fóra <strong>do</strong>s<br />

ambitos da alcova. Que mais <strong>de</strong>sejava Julio?<br />

Choran<strong>do</strong> sempre, arrepen<strong>de</strong>u-se quasi <strong>de</strong> lhe não ter poupa<strong>do</strong> a visão completa da sua<br />

pessoa. Segre<strong>do</strong>s supremos, se os houvesse{75} guarda<strong>do</strong>, como avára, po<strong>de</strong>ria agora<br />

<strong>de</strong>scobrir-lh'os e com elles talvez conseguisse reconquistar o imperio que previa já<br />

perdi<strong>do</strong> para sempre... para sempre...<br />

Um <strong>de</strong>sconsolo constringiu-lhe a garganta, com amargura. E o pranto, que então verteu,<br />

foi o mais senti<strong>do</strong> com que já regara o seu infortunio a neta da cabocla <strong>de</strong> Ourém.<br />

*<br />

* *<br />

Não eram essas as <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras lagrymas que Paquinha havia <strong>de</strong> chorar, baptizan<strong>do</strong> o seu<br />

<strong>de</strong>sventura<strong>do</strong> amor. Tinha <strong>de</strong> resgatar com outras provações mais pungentes a anterior<br />

volubilida<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>sprezo a que votara as legiões <strong>de</strong> a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res, alfim vinga<strong>do</strong>s por<br />

Julio.


Logo <strong>de</strong>pois da fatal <strong>de</strong>sillusão, quiz tentar captival-o <strong>de</strong> novo, rehaver o primitivo<br />

<strong>do</strong>minio na{76} alma <strong>do</strong> mancebo. Fez-se então humil<strong>de</strong>, muito humil<strong>de</strong>, quasi<br />

servil,—requintan<strong>do</strong> a meiguice <strong>do</strong>s affagos no anceio <strong>de</strong> conservar-lhe a affeição e<br />

achan<strong>do</strong> ainda ineffaveis carinhos no inextinguivel thesoiro da sua alma attribulada.<br />

Quasi não falava, temen<strong>do</strong> chocal-o por alguma phrase menos justa, ou <strong>de</strong> duplo<br />

senti<strong>do</strong>; mas toda a eloquencia das <strong>do</strong>ces expressões saltava-lhe <strong>do</strong>s olhos, em vivos<br />

lampejos enamora<strong>do</strong>s. Tu<strong>do</strong> inutil, ai! Esta mesma passivida<strong>de</strong>, a que o rapaz ficara<br />

indifferente ao principio, chegou <strong>de</strong>pois a irrital-o; e, d'uma feita, ao cabo <strong>de</strong> longo<br />

silencio <strong>de</strong> apaixonada contemplação da amante, ergueu-se elle, exclaman<strong>do</strong>:<br />

—Que diabo tens tu, mulher? Pareces uma lesma! Arre!<br />

E, toman<strong>do</strong> o chapéu, foi-se para a rua.<br />

Não voltou á tar<strong>de</strong>. Toda a noite, esperou-o Paquinha <strong>de</strong>bal<strong>de</strong>. Cada bond que subia da<br />

cida<strong>de</strong> trazia na coloração <strong>do</strong>s pharoes{77} fulgores da esperança d'aquella creatura;<br />

mas tambem levava a sua angustia mais negra quan<strong>do</strong> ultrapassava a porta <strong>do</strong> jardim,<br />

afastan<strong>do</strong> estrada a fóra o arrui<strong>do</strong> das rodas. O insondavel tormento durou ainda no<br />

outro dia. Só á tar<strong>de</strong>, parou um carro á porta. Correu Paquinha a receber o amante,—que<br />

outrem não esperava ella, prestes a per<strong>do</strong>ar tu<strong>do</strong> a troco <strong>de</strong> um beijo compassivo.<br />

Surgiu-lhe <strong>de</strong>ante o cocheiro, exten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> uma carta. Em <strong>de</strong>z linhas, Julio <strong>de</strong>spedia-se<br />

da rapariga, allegan<strong>do</strong> ter nota<strong>do</strong> que a sua companhia, d'elle, já lhe não offerecia<br />

encantos!<br />

Foi esta ferina evasiva que mais <strong>do</strong>eu na alma <strong>de</strong> Paquinha. Nem um só momento<br />

pensou em dissuadir Julio, cuja perversida<strong>de</strong>, assim tão cruamente cynica, chegou quasi<br />

a revoltal-a. Que o <strong>de</strong>sengano era <strong>de</strong>finitivo, sem remissão, comprehen<strong>de</strong>u-o logo; mas<br />

o seu amor-proprio, <strong>de</strong> tal arte avilta<strong>do</strong>, teve a força <strong>de</strong> suffocar o sentimento{78} <strong>do</strong><br />

aban<strong>do</strong>no. E a cabocla chorou então <strong>de</strong> raiva,—porque as lagrymas <strong>do</strong> amor<br />

incomprehendi<strong>do</strong> tinham si<strong>do</strong> todas <strong>de</strong>rramadas quan<strong>do</strong> ella ainda pensava existir no<br />

moço uma alma digna <strong>de</strong> possuir-lhe a immensa paixão.<br />

No dia seguinte, ce<strong>do</strong>, Paquinha man<strong>do</strong>u chamar um leiloeiro e ven<strong>de</strong>u-lhe os moveis<br />

pela quinta parte <strong>do</strong> real valor. Horas <strong>de</strong>pois, vestida com simplicida<strong>de</strong>, levan<strong>do</strong> n'uma<br />

só mala as poucas roupas preferidas, seguia para Ourém,—n'uma lancha fretada, com<br />

importante agio, pelo mesmo compra<strong>do</strong>r das alfaias.<br />

Quan<strong>do</strong> a embarcação <strong>de</strong>u as primeiras voltas <strong>de</strong> helice,—a joven tapuia, sentada á<br />

pôpa, envolveu a cida<strong>de</strong> n'um longo, inexprimivel olhar <strong>de</strong> odio. Descen<strong>do</strong> por traz da<br />

ilha das Onças, o sol rutilava, magnifico; e os milhares <strong>de</strong> vidraças, pelas janellas da<br />

casaria, no littoral, como que retribuiram-lhe esse olhar n'uma <strong>de</strong>slumbrante<br />

reverberação incendida.{79} Mas Paquinha volvera as pupillas para o alto, para o<br />

nascente e viu que o ceu, d'uma serenida<strong>de</strong> auspiciosa, arre<strong>do</strong>ndava a pureza da sua<br />

cupula toda azul, misericordiosamente, sobre a terra e sobre as aguas.<br />

Cabocla,—supersticiosa. Paquinha inferiu gratos augurios d'esse tranquillo aspecto <strong>do</strong><br />

espaço. Se o nascente assim promissor estava, porque não havia ella <strong>de</strong> tornar a crer no<br />

futuro e esperar o almeja<strong>do</strong> socego para a sua pequenina alma <strong>do</strong>lorida, cuidan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros dias da mãe <strong>de</strong> sua mãe? A esperança <strong>do</strong> amor trouxera-a um dia, aguas<br />

abaixo; restituia-a o amor da esperança no bem-estar da consciencia.


Foi com taes sentimentos que regressou ao lar da sau<strong>do</strong>sa avó, na insipi<strong>de</strong>z lacustre <strong>do</strong><br />

logarejo paraense, a neta da cabocla <strong>de</strong> Ourém.{80}<br />

{81}<br />

O BANHO DA TAPUIA<br />

{82}<br />

{83}<br />

O BANHO DA TAPUIA<br />

Clareara ha pouco a manhã e o dia annunciava-se formoso, na serena pompa das galas<br />

equatoriaes. To<strong>do</strong> o céu escancarava a limpi<strong>de</strong>z da abobada <strong>de</strong> turqueza, á espera <strong>do</strong> sol.<br />

Tenue viração suspirava nas ramarias <strong>do</strong> matto, d'on<strong>de</strong> vinham o papaguear <strong>do</strong>s<br />

periquitos, arrulhos <strong>de</strong> rôlas, trina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> aves invisiveis. Pela praia arenosa, as garças,<br />

poisadas sobre folhagens rasteiras, similhavam gran<strong>de</strong>s, extranhas flôres <strong>de</strong> immaculada<br />

alvura. E rente á agua, atravessan<strong>do</strong> o rio caudaloso,{84} um ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> marrecas<br />

<strong>de</strong>s<strong>do</strong>brava a escura fita <strong>do</strong> seu vôo compassa<strong>do</strong>, quasi <strong>de</strong> margem a margem.<br />

No alto da ribanceira, ao fim <strong>do</strong> caminho <strong>do</strong> sitio, entre dunas ver<strong>de</strong>jantes <strong>de</strong> ajurús,<br />

appareceu Hortencia, a joven tapuia. Vinha estremunhada ainda. Nas palpebras, que<br />

longos cilios ensombravam, <strong>de</strong>moravam-se preguiças <strong>de</strong> somno. A humida polpa <strong>do</strong>s<br />

labios tinha esboços <strong>de</strong> bocejos. O farto cabello, preso pelo pente <strong>de</strong> tartaruga ao alto da<br />

cabecinha <strong>do</strong>idivanas, a custo se fixava ali, não tão bem que, rebel<strong>de</strong>, não formasse <strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s da nuca, sobre os hombros, pesadas quedas se<strong>do</strong>sas.<br />

Deteve-se a rapariga, mordiscan<strong>do</strong> folhas silvestres. Seu olhar <strong>de</strong>vassou o listrão<br />

serpeante <strong>do</strong> rio <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> embarcações e foi-se para o alto, a mirar o nascente<br />

enrubesci<strong>do</strong>. Mas a frescura da riba fustigou-lhe os tenros membros mal vesti<strong>do</strong>s pelo<br />

saiote curto e{85} pela camisinha branca, <strong>de</strong> renda<strong>do</strong> <strong>de</strong>cote. Estremeceu Hortencia<br />

n'um arrepio e, alongan<strong>do</strong> os braços, gemeu voluptuosa no <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro espreguiçamento<br />

matinal. E, já <strong>de</strong>slaçan<strong>do</strong> o cós da saia, <strong>de</strong>sceu a correr para a agua, pregosan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>licia<br />

<strong>do</strong> banho.<br />

Minutos <strong>de</strong>pois, caín<strong>do</strong> pelos quadris a camisinha cheirosa, Venus tapuia ostentava na<br />

clarida<strong>de</strong> da manhã o encanto irresistivel da sua juventu<strong>de</strong>, a triumphal perfeição da sua<br />

nu<strong>de</strong>z.<br />

No mattagal, houve como um re<strong>do</strong>bramento <strong>de</strong> canto <strong>de</strong> passarinhos, ao tempo que o<br />

sol, vencen<strong>do</strong> a floresta, mordia com a tepi<strong>de</strong>z <strong>do</strong>s primeiros raios as carnes morenas <strong>de</strong><br />

Hortencia. Chapinharam os pequeninos pés; a frialda<strong>de</strong> liquida provocou bran<strong>do</strong>s<br />

offêgos: começara o banho da tapuia.{86}<br />

*<br />

* *


Demora<strong>do</strong> tempo esteve a rapariga <strong>de</strong>ntro da agua. Quem pó<strong>de</strong> resistir á tentação d'um<br />

banho ao ar livre, na costa marajoara, pela manhã? Já o sol, aguçan<strong>do</strong> os quentes<br />

dar<strong>do</strong>s, vencêra larga distancia pelo espaço. A ella, porém, pouco importavam os<br />

insidiosos ataques <strong>do</strong> astro. Sem parar um momento, ora percorria consi<strong>de</strong>raveis<br />

extensões a na<strong>do</strong>, á flôr <strong>do</strong> rio, ora caprichava em experimentar o proprio fôlego, com<br />

atura<strong>do</strong>s mergulhos. Quan<strong>do</strong> emergia a formosa cabeça atraz da qual a correnteza<br />

espalhava a negra cabelleira, tinha nos olhos uma jucunda expressão <strong>de</strong> gaudio,<br />

tenta<strong>do</strong>ramente. Ali estava uma das mais requestadas mulheres <strong>de</strong> Soure, ignorante <strong>do</strong>s<br />

proprios meritos, apenas interessada no <strong>de</strong>sfructe das sensações <strong>de</strong> bem-estar{87}<br />

proporcionadas pela immersão no rio. No entanto, <strong>de</strong>screr da existencia das sereias<br />

amazonicas certo não po<strong>de</strong>ria quem a visse então, no banho, erguen<strong>do</strong> sobre a superficie<br />

das aguas o bronzea<strong>do</strong> busto palpitante, <strong>de</strong> que se <strong>de</strong>stacavam, n'uma seducção<br />

vertiginosa, as linhas correctissimas <strong>do</strong>s pequenos seios virginaes.<br />

Taes eram, por certo, as reflexões que tambem estava a fazer, miran<strong>do</strong>-a, o negro<br />

Manoel, por entre as folhagens que limitam o areial da praia. Filho <strong>de</strong> africanos,<br />

enamora<strong>do</strong>, atrevera-se a amar Hortencia. Feio e boçal, bem comprehen<strong>de</strong>ra a<br />

impossibilida<strong>de</strong> d'esta paixão pela creatura que tantas vezes repudiara varonis caboclos<br />

das fazendas e até <strong>de</strong>ngosos brancos da cida<strong>de</strong>. Mas o que não pu<strong>de</strong>ra evitar e ninguem<br />

no mun<strong>do</strong> conseguiria impedil-o, era essa quotidiana emboscada, para a ver no banho.<br />

Cada dia, não trinavam ainda os primeiros pipillos <strong>do</strong>s passaros, já elle estava entre<br />

os{88} monticulos <strong>de</strong> areia, agacha<strong>do</strong> na verdura, á espera da tapuia. Enxergal-a núa,<br />

era o seu goso suprêmo. Não lhe perdia um gesto; nem uma só linha d'aquelle corpo<br />

<strong>de</strong>seja<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser perscruta<strong>do</strong>, beija<strong>do</strong>, <strong>de</strong>flora<strong>do</strong> pela sua lascivia <strong>de</strong> hottentote.<br />

Concentrava nos olhos to<strong>do</strong>s os arrancos d'um vigoroso anceio <strong>de</strong> posse. Os appetites<br />

libidinosos da sua raça ferviam-lhe no peito, á vista da rapariga. Entretanto, jamais<br />

ousara sair-lhe ao encontro. É que o receio <strong>de</strong> uma repulsa quasi certa e a consequente<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> seu criminoso recurso, <strong>de</strong>tinham-lhe o atrevimento, limitan<strong>do</strong>-o hoje á<br />

mesma observação inerte <strong>de</strong> muitos mezes antes. E quem o divisasse mais <strong>de</strong> uma vez<br />

ali para<strong>do</strong> perante a conturbativa visão, diria erroneamente que, á força <strong>de</strong> a admirar<br />

com respeito, o negro alfim <strong>de</strong>purara os <strong>de</strong>sejos, transmudan<strong>do</strong>-os em culto á belleza<br />

incoercivel.{89}<br />

*<br />

* *<br />

O momento, porém, que elle, o africano sordi<strong>do</strong>, mais prezava, era aquelle em que<br />

Hortencia, sain<strong>do</strong> da agua, vinha seccar aos toques da brisa a nu<strong>de</strong>z amena <strong>do</strong> corpo.<br />

Eil-a justamente que náda para a beira, fatigada emfim <strong>do</strong>s prolonga<strong>do</strong>s brincos. Já<br />

tomou pé e a pouco e pouco vêm apparecen<strong>do</strong> os braços, o busto com os seios e a <strong>do</strong>ce<br />

curva ab<strong>do</strong>minal, os quadris salientes, as roliças pernas, toda a perfeição <strong>de</strong> linhas<br />

feminis; já palmilha sobre a areia, que lhe cobre os pés como com um par <strong>de</strong> sandalias<br />

<strong>de</strong> missanguinhas brilhantes. E agora, o mádi<strong>do</strong> corpo fica erecto aos beijos <strong>do</strong> vento,<br />

emquanto os longos cabellos pen<strong>de</strong>m sobre as costas, gottejantes. É esta a feroz<br />

allucinação <strong>do</strong> negro. Toda a formosura da virgem ali está patente á sua vista, na{90}<br />

magesta<strong>de</strong> <strong>do</strong> quadro paraense, sauda<strong>do</strong> pelo trinar das aves. Bastar-lhe-ia dar alguns<br />

passos, reflecte, e exten<strong>de</strong>r as mãos, para alcançar e possuir tamanha perfeição. Detémn'o,<br />

comtu<strong>do</strong>, o receio <strong>de</strong> trahir-se. E o me<strong>do</strong> <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a posse mental da tapuia que o<br />

inhibe <strong>de</strong> saltar para junto d'ella, braman<strong>do</strong> como caprípe<strong>de</strong> silvano.


Innocente e tranquilla, sem <strong>de</strong>sconfiar da luxuriosa surpresa, a banhista, n'um gesto<br />

peculiar, que <strong>de</strong>svenda o emocionante emmaranhamento das axillas, toma os cabellos,<br />

torce-os á direita, exgottan<strong>do</strong>-os e os ennastra em trança farta, que pren<strong>de</strong> sobre a<br />

cabeça. Veste <strong>de</strong>pois a camisa, passan<strong>do</strong> por ultimo a sáia <strong>de</strong> risca<strong>do</strong> azul. E ainda<br />

amarran<strong>do</strong>-lhe o cós, dirige-se cantan<strong>do</strong> por entre as dunas cobertas <strong>de</strong> ajurús, até ao<br />

caminho que leva ao sitio.<br />

Só então, o negro Manoel sae <strong>do</strong> mattagal, corre á praia, ao ponto on<strong>de</strong>, momentos<br />

antes, estivera a tapuia. Tem os olhos injecta<strong>do</strong>s{91} <strong>de</strong> sangue, os labios entreabertos:<br />

arqueja. O rosto, coberto <strong>de</strong> ralos pellos que se juntam em ponta bipartida sobre o<br />

mento, é bem o <strong>de</strong> um fauno espicaça<strong>do</strong> pela animalida<strong>de</strong> da bérra. Revolve-se no chão,<br />

gemen<strong>do</strong> em ancioso <strong>de</strong>liquio <strong>de</strong> erotomano. E, para acalmar o vehemente anhelo<br />

insatisfeito, espoja-se, crava os <strong>de</strong>ntes no solo,—esfrega as faces e a fronte no logar<br />

on<strong>de</strong> a agua, escorren<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo da rapariga, tinha ensopa<strong>do</strong> a areia, enchen<strong>do</strong>-a <strong>de</strong><br />

frescura.<br />

Do seio da matta, sóbe, expiran<strong>do</strong> á distancia, o canto jovial da tapuia; e ali perto, qual<br />

ironia da floresta, uma ave sibila persistente a escarninha palavra que lhe <strong>de</strong>u o nome:<br />

—Bemtevi!{92}<br />

{93}<br />

COMPLICAÇÕES PSYCHOLOGICAS<br />

{94}<br />

{95}<br />

COMPLICAÇÕES PSYCHOLOGICAS<br />

A CAMERINO ROCHA.<br />

Velas soltas, ban<strong>de</strong>ira topetada no mastro gran<strong>de</strong>, o minusculo hiate <strong>de</strong> Alfre<strong>do</strong> singrava<br />

galhar<strong>do</strong> as aguas <strong>do</strong> Guajará, em rumo <strong>do</strong> oceano.<br />

Manhã clara, d'uma belleza diaphana e prazenteira. O rio tinha scintillações prateadas,<br />

fluin<strong>do</strong> n'uma suavida<strong>de</strong> infinita. Aqui e ali, para os la<strong>do</strong>s da foz, os pannos das<br />

embarcações tapuias espalmavam-se no horizonte, <strong>de</strong>stacadas em vivo contraste sobre o<br />

azul esplen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> céu. Em terra,{96} traquinan<strong>do</strong>, borboletas enormes polvilhavam<br />

sobre os aningaes das margens a luminosa poeira das azas pintalgadas. E toda a vida das<br />

mattas alevantava-se em gorgeios, grasni<strong>do</strong>s e aromas.<br />

A bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> Nymphéa, na diminuta coberta, acabara agora mesmo o serviço <strong>do</strong> café<br />

matinal. Chicaras disseminadas pelos bancos da amurada rescendiam ainda <strong>do</strong> alegre<br />

cheiro da infusão escaldante; e já os cigarros <strong>de</strong> optimo Bragança fumegavam,—<br />

emquanto ao arrui<strong>do</strong> da palestra juntava-se, á meia-nau, o ranger <strong>do</strong>s moitões e cabos <strong>do</strong><br />

velame <strong>de</strong>sfralda<strong>do</strong>.


De irreprehensivel córte, a nave offerecia interior e externamente uma perfeição <strong>de</strong><br />

linhas e uma limpeza completa. N'ella estava a mirar-se, orgulhoso, o proprietario, ali<br />

<strong>de</strong>ita<strong>do</strong>, á popa, em fina re<strong>de</strong> branca <strong>de</strong> fio <strong>de</strong> carretel. Eis a sua maior dita, viajar no<br />

pequeno hiate, veleiro e gracioso. Nem a certeza <strong>do</strong>s bens pecuniarios herda<strong>do</strong>s annos<br />

antes, nem a seducção{97} das valsas em que ro<strong>do</strong>piara outr'ora pelos salões á moda,<br />

enlaçan<strong>do</strong> frageis bustos <strong>de</strong> morenitas capitosas,—tiveram jamais para Alfre<strong>do</strong><br />

similhante <strong>do</strong>m <strong>de</strong> encantamento, esta vertigem ineffavel, que recebia ao <strong>de</strong>slizar, á flôr<br />

das ondas, caminho <strong>do</strong> Atlantico, a bor<strong>do</strong> da sua a<strong>do</strong>rada miniatura <strong>de</strong> navio. Era, com<br />

effeito, um jubilo vehemente e incomparavel, uma sensação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, que o exaltava<br />

em <strong>de</strong>liciosos arroubos. Julgava-se então um sêr á parte, um privilegia<strong>do</strong> da vida,—<br />

pre<strong>de</strong>stinada creatura para quem o dinheiro, longe <strong>de</strong> tornar-se elemento <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sequilibrio mental, com a allucinação das gran<strong>de</strong>zas, fôra apenas o meio <strong>de</strong> realizar<br />

aspirações <strong>de</strong> isolamento que o afastassem, com intermissões felizes, <strong>do</strong> convivio<br />

commum. E cada vez que assim velejava sobre a agua, na manhã triumphal, suas<br />

conversas com o mestre eram menos uma palestra coor<strong>de</strong>nada, <strong>do</strong> que expansões da<br />

alma enthusiasmada{98} por estas fugas maritimas, em meio á ru<strong>de</strong> gente da faina.<br />

O mancebo sorvia em largos haustos a brisa experta <strong>do</strong> largo; e, impellin<strong>do</strong> a rê<strong>de</strong> com<br />

o bico <strong>do</strong> pé <strong>de</strong> encontro á antepára metallica da amurada, exclamava n'um soliloquio<br />

enleva<strong>do</strong>:<br />

—Voga, Nymphéa! Voga, meu hiate! Além, n'uma enseadasinha da costa assoalhada e<br />

calma,—é o socego infinito que nos aguarda: a ti, os beijos ca<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong>s das vagas; a<br />

mim, os osculos da unica mulher verda<strong>de</strong>iramente sincera que já encontrei!<br />

E seus olhos, percorren<strong>do</strong> a coberta, beijavam tambem, com ternuras <strong>de</strong> pae, os ambitos<br />

<strong>do</strong> hiate.<br />

*<br />

* *<br />

Podia-se affirmar que estava ali um homem verda<strong>de</strong>iramente experimenta<strong>do</strong>. Her<strong>de</strong>iro<br />

unico <strong>de</strong>{99} gran<strong>de</strong> fortuna, que o pae amoedara na vida commercial, em Belém,<br />

Alfre<strong>do</strong> vira-se emancipa<strong>do</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e cheio <strong>de</strong> sau<strong>de</strong>, aos 20 annos <strong>de</strong> eda<strong>de</strong>.<br />

Os primeiros tempos <strong>de</strong>corri<strong>do</strong>s após a morte <strong>de</strong> seu progenitor fôram para elle uma<br />

incessante peregrinação pelos mais remotos paizes. Sequioso <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>, partira da<br />

terra paraense com a pasta pejada <strong>de</strong> cartas d'or<strong>de</strong>ns sobre bancos <strong>de</strong> além-mar e a alma<br />

transbordante da ancia <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> ver e fruir. A febre <strong>do</strong> açodamento juvenil espicaçavalhe<br />

a in<strong>do</strong>mita curiosida<strong>de</strong>. Viajou toda a Europa, n'um gran<strong>de</strong> goso <strong>de</strong> intellectual<br />

aproveita<strong>do</strong>. Passou <strong>de</strong>pois ao Oriente, cujo exotismo tamanhas tentações lhe offerecêra<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a a<strong>do</strong>lescencia; e assim percorreu extranhos paizes <strong>de</strong> lenda, rebuscan<strong>do</strong> embal<strong>de</strong><br />

as phantasias <strong>do</strong>s poetas nas <strong>de</strong>cepções da <strong>de</strong>sillusoria realida<strong>de</strong>. Mas, cança<strong>do</strong> o<br />

proprio idéal, tornou á civilisação <strong>do</strong> Occi<strong>de</strong>nte, cujas requintadas complicações{100}<br />

ainda mais o intrigaram, após a recente digressão ás terras <strong>do</strong> paganismo.<br />

De toda a parte, surdiam-lhe duvidas pon<strong>de</strong>raveis,—terriveis incognitas <strong>do</strong>s problemas<br />

sociologicos, que a sua alma, <strong>de</strong> ten<strong>de</strong>ncias equitativas, em vão queria resolver. On<strong>de</strong><br />

está a justiça, na pratica humana?


Esta hesitação, esta irresoluta in<strong>de</strong>cisão que nada satisfazia, bem lhe dava a enten<strong>de</strong>r<br />

quão mesquinhas e oscillantes são as bases em que a socieda<strong>de</strong> assenta os principios<br />

com os quaes preten<strong>de</strong> reger-se. Chegou-lhe então o primeiro engulho <strong>do</strong> primeiro<br />

enfaro: aos 25 annos!<br />

Foi por causa d'esta <strong>de</strong>cepção que resolvera fugir da Europa. Embarcou para o novo<br />

mun<strong>do</strong>, em direcção aos Esta<strong>do</strong>s-Uni<strong>do</strong>s. Ao principio, teve um <strong>de</strong>slumbramento sem<br />

par. Aquella admiravel activida<strong>de</strong> das populações operosas, congregadas á voz <strong>do</strong><br />

capital omnipotente em torno ás fornalhas,{101} ás bigornas, ás machinas, ás<br />

retortas,—aquella activida<strong>de</strong> unica chegou a fazer-lhe vertigens <strong>de</strong> enthusiasmo. Ali<br />

encontrava elle, alfim, o idéal da raça humana, buliçosa na incessante producção,<br />

colmeia enorme compenetrada <strong>de</strong> que a rapi<strong>de</strong>z da vida não permitte mais um instante<br />

<strong>de</strong> folga sem prejuizo immediato.<br />

Comtu<strong>do</strong>, um curto exame <strong>de</strong> poucos dias revelou-lhe que os mesmos vicios <strong>de</strong> origem<br />

lá campeavam também, trazi<strong>do</strong>s no sangue europeu. A materia podia agir com afinco<br />

maior; mas o espirito soffria <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nticas enfermida<strong>de</strong>s,—a sê<strong>de</strong> das aspirações<br />

irrealizadas, o embate <strong>do</strong>s preconceitos, a agrura das competencias politicas e<br />

industriaes, toda a emmaranhada engrenagem das miserias <strong>de</strong> um seculo <strong>de</strong> egoistica<br />

injustiça a arrastar e esmagar os fracos, os <strong>de</strong>sprotegi<strong>do</strong>s, os simples.<br />

Abalou, por isso, terras a fóra. Veiu á America Central,—emblema da inconstancia da<br />

vida na{102} inconstancia <strong>do</strong>s seus governos e leis. Sem <strong>de</strong>ter-se, ultrapassou o isthmo,<br />

<strong>de</strong>sceu mais ao sul, transpon<strong>do</strong> os alcantis <strong>do</strong>s An<strong>de</strong>s, e remirou as faces emaciadas na<br />

fria onda marulhosa <strong>do</strong> estreito <strong>de</strong> Magalhães. Além, nos paizes <strong>de</strong> idioma espanhol,<br />

aguardava-o uma surpresa <strong>do</strong>lorosa. Habituara-se a ouvir tratarem-n'os <strong>de</strong> republiquetas<br />

e fôram, na maioria, fortes nações progressistas que se lhe <strong>de</strong>pararam. On<strong>de</strong> pensava<br />

achar povos <strong>de</strong>paupera<strong>do</strong>s e cida<strong>de</strong>s estacionarias, encontrou uma raça viril e ar<strong>do</strong>rosa,<br />

e capitaes magnificas, e bellos nucleos urbanos, <strong>de</strong> feição mo<strong>de</strong>rna, amplamente<br />

revolvi<strong>do</strong>s e reedifica<strong>do</strong>s sob a direcção <strong>de</strong> intelligentes patriotas. E a convicção <strong>de</strong> que,<br />

mais uma vez, andara errada a balofa ignorancia <strong>do</strong> chauvinismo brazilico, trouxe-lhe<br />

aos olhos duas lagrymas sinceras e uma nova <strong>de</strong>sillusão ao fun<strong>do</strong> da alma angustiada.<br />

Foi após este <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sgosto que regressou ao Brazil.{103}<br />

*<br />

* *<br />

Vogava sempre a embarcação, aguas a baixo, impellida na dupla força <strong>do</strong> vento e da<br />

correnteza. Andava na clarida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espaço a hilariante alegria <strong>do</strong>s bellos <strong>do</strong>mingos<br />

nortistas. A natureza em torno possuia, n'essa manhã, uma apparencia <strong>de</strong> tranquilida<strong>de</strong><br />

edénica, propicia ás meditações <strong>de</strong> Alfre<strong>do</strong>.<br />

Sempre extendi<strong>do</strong> na rê<strong>de</strong>, a baloiçar-se, fuman<strong>do</strong> consecutivas cigarrilhas, o moço<br />

passava em revista, no kalei<strong>do</strong>scopio da alma, as peregrinações <strong>de</strong> antanho. Como essa<br />

quadra agitada sumira-se fugace! Perdia-se agora nos longos esbati<strong>do</strong>s das simples<br />

recordações da primeira juventu<strong>de</strong>. Viagens; vae-vem <strong>do</strong> bulicio humano em gran<strong>de</strong>s<br />

centros populosos; cavalgatas pelas lezirias <strong>do</strong> Tejo e nas steppes russas; ascencões<br />

alpinas;{104} travessias perigosas <strong>de</strong> barrancos na Persia e cataractas americanas,—<br />

tu<strong>do</strong> ficava atraz, sem sauda<strong>de</strong>s, na meia-sombra <strong>do</strong>s factos aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s, para cuja


observancia o tempo lhe assignalava um sitio impessoal, <strong>de</strong> simples especta<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong>silludi<strong>do</strong>.<br />

Só lhe interessava agora o presente, que elle resumia no hiate e em certa caboclinha,<br />

amante estremecida. Para esta ultima eram os seus garbos <strong>de</strong> cavalheiro e os seus mais<br />

assiduos pensamentos <strong>de</strong> namora<strong>do</strong>. De que servia o passa<strong>do</strong>, se representava apenas a<br />

sombra <strong>de</strong> emoções extinctas? A propria lembrança <strong>de</strong> antigos amores não tinha mais a<br />

força <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar-lhe a attenção por longos minutos nem <strong>de</strong> arrancar-lhe um suspiro mais<br />

accentua<strong>do</strong>. E, comtu<strong>do</strong>, se, n'outros tempos, lhe affirmasse alguém que tal houvera <strong>de</strong><br />

succe<strong>de</strong>r, quiçá arriscasse ouvir experta reprimenda!<br />

Fôssem lá dizer-lhe que as seducções da tapuia paraense, mimosa{105} e ingenua,—<br />

duas vezes a<strong>do</strong>ravel pela graça e pela ignorancia timida,—seriam capazes <strong>de</strong> o<br />

transportar aos requintes da ventura, absorven<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> corpo e alma, perennemente, e<br />

purifican<strong>do</strong>-o <strong>do</strong>s primitivos contactos como n'uma piscina miraculosa... Protestaria <strong>de</strong><br />

certo, e com vehemencia. Mas a realida<strong>de</strong> era essa, entretanto...<br />

No <strong>de</strong>correr das viagens, claro está que o amor,—ao menos o que pensamos <strong>de</strong>ver ser o<br />

amor, aos 25 annos,—occupou-lhe bôa parte <strong>do</strong>s sonhos e vigilias. O seu album <strong>de</strong><br />

recordações amorosas offerecia uma admiravel serie complexa <strong>de</strong> perfis femininos,<br />

collecção cosmopolita, que abrangia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a irresistivel parisiense até á fascinante<br />

baya<strong>de</strong>ra, da mousmé, extranha na coloração estri<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>s garri<strong>do</strong>s arrebiques, á<br />

simples gentia sul-americana, melancholica e bon<strong>do</strong>sa na sua passivida<strong>de</strong> fatalista. E<br />

havia tambem flôres <strong>de</strong> oppostos climas, fitas, amuletos,{106} cartas,—um <strong>de</strong>lica<strong>do</strong><br />

muzeu <strong>de</strong> objectos <strong>de</strong>sbota<strong>do</strong>s, trescalan<strong>do</strong> o vago o<strong>do</strong>r das coisas esquecidas.<br />

Era tu<strong>do</strong> isto que <strong>de</strong>sfilava pela mente <strong>de</strong> Alfre<strong>do</strong>, n'esse mesmo instante. Aprazia-lhe,<br />

ás vezes, no capricho da sua volupia, evocar assim antigas epochas e rememorar<br />

passadas peripecias prazenteiras, para melhor fruir a actual ventura <strong>do</strong> seu gran<strong>de</strong> e<br />

saboroso amor da maturida<strong>de</strong>. Nenhuma paixão fôra comparavel a esta, que tamanhas<br />

attenções lhe merecia. Das sensações antigas, nem o resabio lhe ficara, ao toque <strong>do</strong><br />

intenso affecto <strong>de</strong> hoje, tão fun<strong>do</strong> lhe invadira elle a alma, com a obsidiação abençoada<br />

<strong>de</strong> predilecta tyrannia. E por vezes, revolven<strong>do</strong> papeis velhos, quedava-se interdicto,<br />

quasi envergonha<strong>do</strong>, ao lobrigar uma florzinha murcha ou triste cacho <strong>de</strong> cabellos<br />

<strong>de</strong>scora<strong>do</strong>s; interdicto, por ter-lhes esqueci<strong>do</strong> a proce<strong>de</strong>ncia, envergonha<strong>do</strong> <strong>de</strong> havel-os<br />

guarda<strong>do</strong> por tanto tempo, assim avaramente, quan<strong>do</strong> nem o coração{107} conservara o<br />

sentimento que os tornara valiosos, nem a memoria voluvel pudéra reter-lhes a<br />

lembrança.<br />

Tu<strong>do</strong> passara, na dissolvencia <strong>do</strong>s sonhos, na voragem <strong>do</strong>s annos. Illusões patrioticas e<br />

enthusiasmo pelos gosos instaveis, tragara-os o tempo, impassivelmente. Alfre<strong>do</strong> não<br />

lamentava este resulta<strong>do</strong>; pelo contrario, sentia-se feliz ao verificar que o coração,<br />

liberto <strong>de</strong> antigas peias, estava apto a consagrar toda a energia affectiva ao <strong>do</strong>ce culto <strong>de</strong><br />

um só amor, espontaneo e livre, no seio olente da floresta compassiva.<br />

Suas aspirações <strong>de</strong> reformas radicaes, seus impulsos para a propaganda em prol <strong>do</strong>s<br />

idéaes regenera<strong>do</strong>res da socieda<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>ram tambem o ar<strong>do</strong>r militante <strong>de</strong> outrora.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, a noção <strong>de</strong> uma exacta justiça é o para<strong>do</strong>xo mais extranho que a razão<br />

illogica <strong>do</strong> homem creou n'um dia <strong>de</strong> sarcasmo, para o proprio engo<strong>do</strong>. Então, <strong>de</strong> nada<br />

valia esbofar-se{108} em santo frenesi, conclaman<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> da restauração <strong>do</strong>s


principios equitativos. A malda<strong>de</strong> humana pre<strong>do</strong>minaria para to<strong>do</strong> o sempre, irresistivel,<br />

vence<strong>do</strong>ra. Restava-lhe, pois, submetter-se ao embate da onda larga da convenção. E,<br />

venci<strong>do</strong>, era nos arcanos <strong>de</strong> um novo amor que elle, ao mesmo tempo incredulo e<br />

pie<strong>do</strong>so, leva<strong>do</strong> velozmente pelo minusculo hiate, na clara manhã assolhada, ia buscar o<br />

<strong>do</strong>ce balsamo <strong>do</strong>s beijos sinceros, o supremo conforto para as tremendas <strong>de</strong>sillusões que<br />

as complicações psychologicas lhe proporcionaram.{109}<br />

UM CASO DA CABANADA<br />

{110}<br />

{111}<br />

UM CASO DA CABANADA<br />

Pelo São <strong>João</strong>, fizera Maria trese annos; e os paes haviam <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> que a primeira<br />

communhão se realizasse no <strong>do</strong>mingo <strong>de</strong> Paschoa <strong>do</strong> anno proximo, á missa da festa, na<br />

matriz da villa. Padre Constancio, o vigario, andava então a preparal-a, bon<strong>do</strong>samente.<br />

Todas as tar<strong>de</strong>s, mal terminava a leitura <strong>de</strong> vesperas, no breviario, lá vinha elle<br />

azinhagas a<strong>de</strong>ante, caminho da palhoça <strong>do</strong>s pesca<strong>do</strong>res. Corria a pequena a recebel-o,<br />

pés <strong>de</strong>scalços, curto o saiote, a face illuminada n'um sorriso. Sob{112} o cabeção <strong>de</strong><br />

retalhos, duas pequenas proeminencias <strong>de</strong>senhavam-se, accentuadas em ponta, <strong>de</strong> cada<br />

la<strong>do</strong> <strong>do</strong> thorax. Mas o velho sacer<strong>do</strong>te, que esses <strong>do</strong>is <strong>de</strong>lica<strong>do</strong>s pólos parecia haverem<br />

um instante interessa<strong>do</strong>, baixava os olhos com perfeita serenida<strong>de</strong>.<br />

—Como vae essa força? inquiria prazenteiro.<br />

Conversava um momento com o casal caboclo sobre assumptos insignificantes; <strong>de</strong>pois,<br />

tranquilamente, vinha sentar-se á porta, ao pé <strong>do</strong> enorme tamarin<strong>de</strong>iro, sorven<strong>do</strong> uma<br />

pitada. E começavam as praticas religiosas.<br />

Maria escutava as explicações <strong>do</strong> catecismo, os olhos prega<strong>do</strong>s na face <strong>do</strong> padre, n'essa<br />

fixi<strong>de</strong>z conturbativa com que as <strong>do</strong>nzellas innocentes encaram os homens.<br />

Muito calmo, ia o vigario repetin<strong>do</strong> e commentan<strong>do</strong> as phrases da Cartilha.<br />

Acompanhava-o a caboclinha, a meia voz, a seguir-lhe as palavras, n'uma gran<strong>de</strong><br />

concentração revela<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sejo{113} <strong>de</strong> conquistar, com as boas graças <strong>do</strong><br />

clerigo, os biscoitos que infallivelmente annunciavam o termo das prelecções. Depois,<br />

noite cerrada já, erguia-se Constancio, esvasiava o bolso da sotaina sobre a mesa <strong>do</strong><br />

copiar e, com uma palavra amavel para cada qual, abençoava a rapariga e regressava ao<br />

povoa<strong>do</strong>, aspiran<strong>do</strong> novas pitadas. Dos <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> carreiro, grillos trillavam<br />

monotonamente e, por cima <strong>do</strong>s arbustos cheirosos, tremeluziam com irrequietas<br />

phosphorescencias os vagalumes.<br />

*<br />

* *<br />

Uma tar<strong>de</strong>, mezes <strong>de</strong>pois, havia recolhi<strong>do</strong> a procissão <strong>de</strong> Ramos. O adro da matriz<br />

regorgitava <strong>de</strong> gente en<strong>do</strong>mingada. Toda a população seguira, ha pouco, o pallio


veneran<strong>do</strong>, cujas varas o juiz <strong>de</strong> direito, o presi<strong>de</strong>nte da{114} edilida<strong>de</strong>, o promotor e o<br />

<strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> policia empunhavam orgulhosamente.<br />

Sabia-se já que rebentara na capital o movimento da cabanada. Canôas, tripuladas por<br />

valentes rema<strong>do</strong>res, haviam trazi<strong>do</strong>, com innumeros fugitivos, a nova da revolução<br />

tremenda. E os pormenores, exaggeradamente relata<strong>do</strong>s pelos brancos, tinham<br />

<strong>de</strong>movi<strong>do</strong> o vigario Constancio e as auctorida<strong>de</strong>s a um re<strong>do</strong>bramento <strong>de</strong> pompa nas<br />

festas da Semana Santa,—a ver se Deus fazia passar a villa immune <strong>do</strong> ataque <strong>do</strong>s<br />

cabanos.<br />

A tar<strong>de</strong> caía em <strong>do</strong>ce esvaimento, por traz da floresta. Deslisava tranquillo o rio,<br />

espelhan<strong>do</strong> nuvens preguiçosas. Havia por toda a parte o tom suave das côres<br />

vespertinas, diluidas na flui<strong>de</strong>z das sombras incipientes. Apenas <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>, na<br />

margem opposta, um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro raio <strong>do</strong> sol enrubescia o areial da praia, sobre o qual um<br />

ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> gaivotas revoava, crocitan<strong>do</strong>.{115}<br />

A villa em peso acudira á solennida<strong>de</strong>, attrahida pelo repique jovial <strong>do</strong>s sinos. Por entre<br />

as portas escancaradas vinham <strong>de</strong> junto <strong>do</strong> altar-mór a<strong>do</strong>cicadas emanações <strong>de</strong><br />

thuribulos; o fumo azula<strong>do</strong> <strong>do</strong> incenso evolava-se muito subtil para o alto, como a<br />

imagem das aspirações geraes. E as mulheres, lá <strong>de</strong>ntro, oravam contrictas, duplican<strong>do</strong><br />

as preces ao ceu,—que não viessem os cabanos trazer até acolá as infamias cuja<br />

narrativa era bastante para levantar-lhes os cabellos apavoradamente.<br />

*<br />

* *<br />

A subitas, um murmurio na matriz annunciou que ia começar o sermão. Houve no adro<br />

um movimento <strong>de</strong> refluxo; afinal, mais ou menos toda gente penetrou na egreja. Raros<br />

homens ficaram saborean<strong>do</strong> as ultimas cachimbadas{116} nos rechinantes taquarys <strong>de</strong><br />

Cametá. Um minuto <strong>de</strong>pois, erecto no pulpito, palli<strong>do</strong> na alvura engommada da<br />

sobrepeliz <strong>de</strong> rendas, padre Constancio <strong>do</strong>minava o auditorio com a singeleza da sua<br />

palavra <strong>de</strong>spretenciosa.<br />

Appareceu então na praça que antece<strong>de</strong> o adro um grupo <strong>de</strong> homens <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s:<br />

quatro caboclos <strong>de</strong> féra catadura olhavam para tu<strong>do</strong> e para to<strong>do</strong>s, como se visitassem a<br />

localida<strong>de</strong> pela vez primeira. Buscavam, tanto quanto possivel, que ninguem os visse; e<br />

auxiliava-os a gosto uma gran<strong>de</strong> moita da carrapateiros, ahi <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s pela foice<br />

<strong>de</strong>scui<strong>do</strong>sa <strong>do</strong>s capina<strong>do</strong>res municipaes ou pelo capricho <strong>do</strong> sacristão, que era o<br />

superinten<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> asseio <strong>do</strong> sitio.<br />

Ia vin<strong>do</strong> a noitinha. O ceu fizera-se antes da côr da perola, mas a pouco e pouco<br />

ensombrava este matiz com as tintas da sua palheta nocticolor. Tauxiações in<strong>de</strong>cisas <strong>de</strong><br />

estrellinhas palpitantes{117} picavam-se aqui e ali, na sombria abobada. Volitavam<br />

auras fagueiras e, por toda a parte, invisiveis insectos zumbiam. Só o areial da praia<br />

fronteira extendia pela orla da floresta um listrão claro, como se houvesse absorvi<strong>do</strong> e<br />

conservasse o quente rubor <strong>do</strong> raio <strong>de</strong> sol que estivera a mor<strong>de</strong>l-o pouco antes.<br />

De repente, estron<strong>do</strong>u um tiro no adro; a chamma scintillou com viva fulgencia no<br />

crepusculo expirante. Um <strong>do</strong>s caboclos avançava, já affoito, <strong>do</strong> meio <strong>do</strong>s carrapateiros.<br />

Na matriz foi um só o presentimento geral: os cabanos! Padre Constancio quasi <strong>de</strong>smaia


no pulpito, muito palli<strong>do</strong>, sem voz. E nem <strong>de</strong>svaneci<strong>do</strong> estava o sobresalto da primeira<br />

surpresa e já toda gente pensava em correr a casa e encerrar-se. Mulheres levavam as<br />

mãos á cabeça, chaman<strong>do</strong> os filhos, gemen<strong>do</strong> <strong>de</strong> mansinho umas, lamentan<strong>do</strong>-se outras<br />

em altos gritos. Uma consternação! Pensar na resistencia ninguem{118} po<strong>de</strong>ria fazelo.<br />

A villa, bonacheirona, confiara ao ceu a tarefa <strong>de</strong> a livrar <strong>do</strong>s rebel<strong>de</strong>s: entre to<strong>do</strong>s os<br />

habitantes não seria facil encontrar e reunir mais <strong>de</strong> meia duzia <strong>de</strong> espingardas. Que<br />

calamida<strong>de</strong>! Deu-se então, por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, uma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m,—os atropellos, a<br />

algazarra <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s panicos. Buscava-se a porta principal, com fernesi. No entanto, a<br />

affluencia <strong>do</strong> povo formara uma columna espessa, <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> larga, e não tardaram as<br />

compressões. Creanças e mulheres estertoravam sob o sapateio <strong>do</strong>s fugitivos. Do adro<br />

vinha a grita <strong>do</strong>s cabanos, já senhores da localida<strong>de</strong>.<br />

Tremen<strong>do</strong> então pelas suas amadas ovelhas, sopesan<strong>do</strong> a responsabilida<strong>de</strong> em que<br />

incorrera, padre Constancio <strong>de</strong>ixou-se cair genuflexo e levantou as mãos, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

altar, com <strong>de</strong>svaira<strong>do</strong> fervor.{119}<br />

*<br />

* *<br />

Os cabanos tinham vin<strong>do</strong> por terra surprehen<strong>de</strong>r a villa em plena festa <strong>de</strong> Ramos.<br />

Guiara-os pelo matto o Mané Xico, o inimigo <strong>do</strong> juiz <strong>de</strong> direito, fican<strong>do</strong> no furo da<br />

Jararaca, a duas milhas <strong>de</strong> distancia, as numerosas canoas da expedição rebel<strong>de</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> os primeiros fugitivos sairam para o adro, já a praça contigua estava occupada<br />

pelos cabanos, em numero superior a duzentos, muito bem arma<strong>do</strong>s. Capitaneava-os o<br />

Borba, feroz caudilho que Angelim distinguira como chefe das operações n'aquellas<br />

bandas. Este individuo votava profunda ogerisa ao vigario: jamais lhe per<strong>do</strong>aria a<br />

reprimenda com que, um anno antes, o fulminara, em Curralinho, por ter esbofetea<strong>do</strong> a<br />

propria mulher. Que bello ensejo então para pregar-lhe{120} uma peça! Chamou o seu<br />

logar-tenente e man<strong>do</strong>u buscar o padre.<br />

Veiu logo o sacer<strong>do</strong>te, com a sobrepeliz amarrotada, a estola <strong>do</strong> avêsso, to<strong>do</strong> elle<br />

tremen<strong>do</strong> como a sururina moribunda.<br />

—Ora passe p'ra 'qui, seu fradalhão! gritou-lhe o Borba, mal o avistou entre <strong>do</strong>is<br />

cabanos, ameaça<strong>do</strong>ramente arma<strong>do</strong>s <strong>de</strong> clavinotes. E logo or<strong>de</strong>nou que fôssem buscar<br />

tambem a Mariasinha, filha <strong>do</strong> pesca<strong>do</strong>r Sabá.<br />

Quatro gran<strong>de</strong>s fogueiras, accêsas por or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> chefe, illuminavam o recinto. Ninguem<br />

mais ousara fugir; o povo agrupava-se pelo adro e pela praça, em recolhida attitu<strong>de</strong>,<br />

quasi sem movimentos, temeroso da morte. Eram tão maus os cabanos! Havia pelos<br />

grupos feminis silenciosos soluços. Lancinante quadro, em verda<strong>de</strong> e por elle é que o<br />

ancião chorava também perdidamente.<br />

—Faça-me soffrer, exclamou, porém não persiga esta boa gente!<br />

—Cale a bôcca, idiota! respon<strong>de</strong>u-lhe{121} o Borba, n'um meio sorriso que a to<strong>do</strong>s<br />

apavorou mais <strong>do</strong> que a maior das ameaças.


Entretanto, acercava-se um troço <strong>de</strong> rebel<strong>de</strong>s, trazen<strong>do</strong> comsigo Maria, discipula <strong>de</strong><br />

Constancio. Que vinha por seus pés quasi não se po<strong>de</strong>ria affirmar, pois era ao collo que<br />

o mais espadaú<strong>do</strong> caboclo a conduzia, semi-morta <strong>de</strong> mê<strong>do</strong>.<br />

Borba tomou petulante attitu<strong>de</strong>, cofian<strong>do</strong> as raras répas <strong>do</strong> bigo<strong>de</strong> falho, sempre a sorrir.<br />

Or<strong>de</strong>nou:<br />

—Padre Constancio, passe á frente!<br />

Arriscou o sacer<strong>do</strong>te algumas pernadas trôpegas.<br />

—Aqui, ao la<strong>do</strong> da Mariasinha, tornou a dizer o chefe.<br />

Constancio approximou-se.<br />

—E agora, intimou o caudilho; se quizer, dê um beijo na cunhantan. Eu sei que você<br />

gosta d'ella. Pois <strong>de</strong>speça-se!<br />

E, voltan<strong>do</strong>-se para os companheiros, explicou em voz fortissima:{122}<br />

—Deliberei repudiar a vibora <strong>de</strong> minha mulher, amigos, e casar-me com outra rapariga.<br />

Convi<strong>do</strong>-os para assistirem á ceremonia que padre Constancio, bem contra vonta<strong>de</strong>,<br />

celebrará agora mesmo. A egreja está preparada e a noiva é esta!<br />

E <strong>de</strong>signava a mimosa discipula <strong>do</strong> padre, cuja primeira communhão fôra marcada para<br />

o proximo <strong>do</strong>mingo.<br />

Não pô<strong>de</strong> o povo <strong>do</strong>minar uma exclamação <strong>de</strong> surpresa e repugnancia. Ao que logo<br />

retorquiu o cabano:<br />

—Que ninguem arre<strong>de</strong> d'ahi. O socego é a condição da vida <strong>do</strong>s habitantes da<br />

localida<strong>de</strong>.<br />

E toman<strong>do</strong> a caboclinha nos braços, levou-a para o templo. Constancio, barafustan<strong>do</strong>,<br />

protestava aos gritos, arrasta<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is sicarios.{123}<br />

*<br />

* *<br />

O <strong>de</strong>senlace <strong>do</strong> caso é evi<strong>de</strong>nte: recusan<strong>do</strong>-se a satisfazer ao sicario, o padre foi<br />

assassina<strong>do</strong> sobre os <strong>de</strong>graus <strong>do</strong> altar. Mas nem por isso a cheirosa e innocente<br />

Mariasinha <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser, d'então em <strong>de</strong>ante, a concubina <strong>do</strong> caudilho, que a violou ali<br />

mesmo, na sacristia.<br />

Só por tal preço os cabanos aban<strong>do</strong>naram a localida<strong>de</strong>, na manhã seguinte.{124}<br />

{125}<br />

UM COMO TANTOS


{126}<br />

{127}<br />

UM COMO TANTOS<br />

PARA O LICINIO SILVA, ESTA OBSERVAÇÃO.<br />

Haviam já passa<strong>do</strong> para Nazareth, <strong>de</strong> volta <strong>do</strong> Vero-peso, os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros bonds <strong>do</strong><br />

espectaculo. A pouco e pouco, os peões tinham rarea<strong>do</strong> no cimento <strong>do</strong>s largos passeios<br />

das avenidas,—o transito fizera-se nullo, um ou outro noctivago impenitente andava<br />

errante á sombra propicia das folhudas mangueiras, investigan<strong>do</strong> a distancia com<br />

olhares incendi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma ponta <strong>de</strong> lubricida<strong>de</strong> contida a contra-gosto. Nos renques da<br />

illuminação electrica{128} manifestavam-se eclipses intermittentes, contra os quaes<br />

praguejava, sem bem saber porquê, o cocheiro d'uma carruagem estacionada em frente<br />

ao Club Universal. Poucas mesas restavam no terraço <strong>do</strong> Café Riche. Entretanto, um<br />

crea<strong>do</strong> somnolento, não obstante a ausencia <strong>de</strong> frequenta<strong>do</strong>res, persistia, pelo habito, em<br />

dispôl-as em symetria, ro<strong>de</strong>an<strong>do</strong>-as <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras. O chão estava zebra<strong>do</strong> <strong>de</strong> humida<strong>de</strong>s<br />

a<strong>do</strong>cicadas, escorri<strong>do</strong> <strong>de</strong> Apollinaris transbordante, coalha<strong>do</strong> <strong>de</strong> rolhas, aqui e acolá<br />

brilhante <strong>de</strong> pedaços <strong>de</strong> capsulas das garrafas <strong>de</strong> cerveja. Perto, gania um cão. Mas<br />

outro cachorro irrompêra <strong>do</strong> centro da enorme praça, viera em linha recta, cabeça baixa<br />

e cauda erguida, para junto d'aquelle e, após as rapidas saudações peculiares, fôram-se<br />

ambos, General Gurjão a baixo. Liberrimos animaes!<br />

Silverio, meio volta<strong>do</strong> para a esquerda, acompanhara-os com a vista, distrahidamente;<br />

até <strong>de</strong>sapparecerem{129} na silente escuridão da rua. Estava senta<strong>do</strong> n'um banco, havia<br />

muitas horas, <strong>de</strong>fronte da curva <strong>do</strong>s bonds. O olhar avistara um cartaz colla<strong>do</strong> á pare<strong>de</strong><br />

da Casa A<strong>do</strong>lpho: uma parisiense, com a saia batida pelo rijo vento <strong>de</strong> Montmartre,<br />

puxava um carro-annuncio, formoso preconicio <strong>do</strong> estabelecimento. Pareceu-lhe que a<br />

sua situação moral estava em analogia com o quadro, afora os matizes garri<strong>do</strong>s. Elle<br />

tambem andava atrela<strong>do</strong> ao carro da vida, fustiga<strong>do</strong> e zurzi<strong>do</strong> pelo tufão <strong>do</strong>s dissabores<br />

<strong>do</strong>mesticos. As tintas, porém, com que se <strong>de</strong>vêra pintar a sua existencia tinham <strong>de</strong> ser<br />

amassadas na palheta das <strong>de</strong>sditas,—toda a gamma sombria das cores carregadas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o roxo <strong>do</strong>s goivos ao negro da infelicida<strong>de</strong>.<br />

Desviou a vista <strong>do</strong> obsidiante cartaz, pois não fôra para atiçar tristes lembranças que<br />

saíra <strong>de</strong> casa. Bem ao contrario, necessitava <strong>de</strong> distrahir o espirito, refrescar{130} o<br />

cerebro na suave tranquillida<strong>de</strong> da noite, em plena praça. Tirou o chapéu, conservan<strong>do</strong>o<br />

na mão direita e exten<strong>de</strong>u os braços pelo espaldar <strong>do</strong> banco. A cabeça, <strong>de</strong> largas<br />

entradas, pen<strong>de</strong>u para traz: dir-se-ia um crucifica<strong>do</strong>; e o olhar foi ao alto, cravou-se na<br />

insondavel amplidão <strong>do</strong> espaço, ao fun<strong>do</strong> da qual phosphoresciam estrellas, aos<br />

milhares. Afun<strong>do</strong>u-se então na tremenda reviviscencia <strong>do</strong>s seus infortunios.<br />

—Lá vae ella outra vez, bra<strong>do</strong>u alguém, á direita.<br />

Silverio, com um estremeção, voltou á vida exterior, buscan<strong>do</strong> <strong>de</strong>scobrir quem falava.<br />

Era o cocheiro,—o Ca<strong>de</strong>te ou o Bruzegas,—á porta <strong>do</strong> Club, encarapita<strong>do</strong> na bolêa, a<br />

<strong>de</strong>nunciar em soliloquio cada intermissão na luz <strong>do</strong> foco electrico mais próximo.<br />

—Feliz mortal, murmurou Silverio, invejoso da <strong>de</strong>spreoccupação d'aquelle homem.


O Riche, a cuja porta cabeceava o proprietario, estava sempre{131} illumina<strong>do</strong>; e o<br />

servente, fatiga<strong>do</strong> alfim <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar mesas e ca<strong>de</strong>iras que ninguém <strong>de</strong>sarrumava, ia<br />

toscanejan<strong>do</strong>, mesmo <strong>de</strong> pé, escora<strong>do</strong> á cêrca <strong>de</strong> uma das mangueiras. Cessara <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o<br />

movimento <strong>de</strong> transeuntes. Os <strong>de</strong>mais cafés da avenida haviam fecha<strong>do</strong>. Pelas janellas<br />

abertas <strong>do</strong> Universal, <strong>de</strong>sciam ondas da illuminacão <strong>do</strong>s salões <strong>de</strong>sertos. Nos <strong>do</strong>is<br />

passeios, varre<strong>do</strong>res urbanos passavam sobre o cimento, em largos gestos, longas<br />

vassoiras <strong>de</strong> sacahys. E bem a<strong>de</strong>ante <strong>de</strong> si, viu Silverio, ao meio <strong>do</strong> enorme<br />

quadrilongo, com o pe<strong>de</strong>stal ro<strong>de</strong>a<strong>do</strong> <strong>de</strong> fulgurantes globos electricos, erecta no alto da<br />

<strong>de</strong>sproporcionada columna, a estatua da Liberda<strong>de</strong>, emergin<strong>do</strong> por sobre a folhagem da<br />

arborisação.<br />

—Liberda<strong>de</strong>! Não ser eu também livre! murmurou suspiran<strong>do</strong>. E, mau gra<strong>do</strong> o seu<br />

empenho em distrahir as idéas, voltou a concentrar-se nas maguadas recordações da<br />

propria <strong>de</strong>sgraça.{132}<br />

Casa<strong>do</strong> ha quatro annos, com uma compatriota, uma italiana, a quem aliás déra logar em<br />

seu leito por um impulso <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong>, ante a extrema pobreza <strong>do</strong>s paes d'ella, a<br />

breve praso começou a verificar que disparida<strong>de</strong>s capitaes <strong>de</strong> genios e educação os<br />

incompatibilisavam para a vida commum. Ao principio, insignificantes arrufos<br />

chegaram a offerecer-lhe um sabor novo na existencia: das pazes que se lhes seguiam<br />

vinha um renascimento <strong>de</strong> ternura, uma ineffavel <strong>de</strong>licia para a intimida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s longos e<br />

mu<strong>do</strong>s amplexos. Illusorios aperitivos, taes amuos. A pouco e pouco avultaram,<br />

tomaram corpo, assumiram as proporções <strong>de</strong> graves pen<strong>de</strong>ncias barulhentas. A mulher<br />

tinha a bóssa da loquacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvida; e, quan<strong>do</strong> se enfurecia, eram interminaveis<br />

gritarias, que o <strong>de</strong>sesperavam na razão directa <strong>do</strong> natural socega<strong>do</strong> e taciturno <strong>do</strong><br />

infeliz.<br />

Aggravou-se <strong>de</strong>pois esta situação,{133} já bem penosa, com a intromissão <strong>do</strong>s paes <strong>de</strong><br />

Luiza. A sogra levou-lhe para o lar a contribuição <strong>de</strong> torturas ineditas. A cada gesto, a<br />

cada passo <strong>de</strong> Silverio, uma recriminação. Embal<strong>de</strong> buscava o pobre comprar a paz <strong>do</strong><br />

lar á custa <strong>de</strong> pequenos presentes para seus tres algozes: nada prestava, tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> infima<br />

especie. «Já viram homem tão falto <strong>de</strong> gosto?» O Silverio experimentara ao principio<br />

chamar á or<strong>de</strong>m a mulher, com o auxilio <strong>de</strong> raciocinios discretos, arrisca<strong>do</strong>s a me<strong>do</strong>,<br />

mansamente, meigamente. Emtanto, por amor <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is filhinhos que tinham surgi<strong>do</strong><br />

entre accessos <strong>de</strong> raiva e curtas calmarias, sacrificou to<strong>do</strong> o resquicio <strong>de</strong> sua virilida<strong>de</strong><br />

moral: recolheu-se ao impassivel silencio <strong>de</strong> quem acceita resigna<strong>do</strong> a brutalida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>stino. Quan<strong>do</strong> rebentavam-lhe no lar os gran<strong>de</strong>s temporaes, recolhia-se a um quarto,<br />

embrulhava-se na rê<strong>de</strong>, tapava ambos os ouvi<strong>do</strong>s. E mulher e sogra, espicaçadas pela<br />

inesperada{134} evasiva, iam levar-lhe a saraivada das invectivas superagudas,<br />

esganiçadas em falsete,—emquanto o sogro, impan<strong>do</strong> da farta bonaxira <strong>de</strong> malandrim<br />

obeso, fazia em voz cava os soturnos trovões das ameaças: «Hei <strong>de</strong> quebrar-te as pernas,<br />

cão!»<br />

To<strong>do</strong> o seu affecto reverteu para as duas creanças, um pequeno e uma rapariguita<br />

a<strong>do</strong>raveis, que chegavam a ter graça, tal a sua candi<strong>de</strong>z, mesmo repetin<strong>do</strong> em timi<strong>do</strong>s<br />

balbucios as calumniosas exclamações da velha: «Papae é mau! papae é feio!»<br />

Feio, sim, e não era por sua vonta<strong>de</strong> que nascera com uma caraça espalmada, que o sol<br />

da America <strong>do</strong> Sul tostara duramente. Mau, porém, não; e em silencio protestava contra<br />

o qualificativo. Dizia-lhe a consciencia não ser merecida a apostrophe; comtu<strong>do</strong>, sem


escorraçar os meninos com a mais leve sombra <strong>de</strong> censura, tomava-os ternamente pela<br />

cinta, sentava-os ao collo, um em{135} cada joelho, acariciava-os <strong>de</strong> manso, amimavaos,<br />

cobrin<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> beijos e <strong>de</strong> silenciosas lágrymas.<br />

De tu<strong>do</strong> isto lembrava-se o <strong>de</strong>sditoso Silverio, inerte no banco da avenida, as pernas<br />

entorpecidas pela <strong>de</strong>morada immobilida<strong>de</strong>. Ainda ha pouco, ao anoitecer, houvera em<br />

casa uma terrivel scena. Persuadira-se Luiza estar o mari<strong>do</strong> auferin<strong>do</strong> gran<strong>de</strong>s lucros<br />

n'uma industria inaugurada mezes antes, lucros que <strong>de</strong>sviava ás occultas para a Europa.<br />

E <strong>de</strong>u para exigir-lhe «a sua parte no negocio». Sogro e sogra tinham acudi<strong>do</strong> com<br />

argumentos e gritos: «De certo, é preciso pintar já para aqui os cobres!» E,<br />

<strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> preceitos juridicos, explicava o velhote que «a não cohabitação material<br />

<strong>do</strong>s conjuges recolhi<strong>do</strong>s sob o mesmo tecto não impedia a co-participação na pecunia».<br />

Dispensou-se <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sculpar, o Silverio; e, para não irem mais longe os bra<strong>do</strong>s, que<br />

estavam já a incommodar a vizinhança, tomou dissimuladamente{136} o chapéu, fugiu<br />

precipite rua a<strong>de</strong>ante, até á avenida. Ali, ao menos, estava fóra da socerina alçada. Safa!<br />

A vista da estatua suscitara-lhe a nostalgia da liberda<strong>de</strong>. Relanceou um olhar pelo<br />

passa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua chegada a Belém e pasmou <strong>de</strong> ainda sentir <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si o que se<br />

chama um coração e uma alma, após soffrimentos tão longos e tamanhos. On<strong>de</strong> teria<br />

elle o bomsenso, já revela<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a a<strong>do</strong>lescencia, quan<strong>do</strong> commetteu a levianda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

casar com Luiza? Nada o libertaria agora, porque a sua inteireza <strong>de</strong> animo, a sua<br />

correcção nativa lhe vedavam o supremo recurso da fuga. Prendiam-n'o ao cepo<br />

abençoadas ca<strong>de</strong>ias: os filhos, que eram os <strong>do</strong>ces élos ligan<strong>do</strong> o seu alvedrio á <strong>de</strong>sdita.<br />

As creanças! Elle também fôra pequenito, <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>so e travesso infante, nas amplas<br />

veigas lombardas, rescen<strong>de</strong>ntes a rosmaninho. Creara-o a inexgottavel ternura da velha<br />

mãe, e tinha si<strong>do</strong> ao som{137} <strong>do</strong>s ru<strong>de</strong>s osculos bonachões <strong>do</strong> pae que elle,<br />

apaparica<strong>do</strong> á porfia, encetara a solettração <strong>do</strong> singelo alphabeto das caricias familiares.<br />

Em casa, no antigo e pobre lar, tão areja<strong>do</strong> no verão e tão cheio <strong>de</strong> tepi<strong>do</strong>s brazeiros<br />

pelo inverno, quan<strong>do</strong> o norte inclemente bramia rispi<strong>do</strong> nos olivaes e carvalheiras, só<br />

recebera edificantes exemplos <strong>de</strong> tolerancia mutua entre esposos amantes, <strong>de</strong> respeito<br />

calmo, <strong>de</strong> intensissima affeição. E na dupla contemplação <strong>do</strong> carinho <strong>de</strong> seus<br />

progenitores e da forte paixão com que o ga<strong>do</strong> amava na pradaria, manhã ce<strong>do</strong>, ao<br />

abalar da arribana, iniciara Silverio, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> joven, o seu gran<strong>de</strong> sonho <strong>de</strong> um lar to<strong>do</strong><br />

meiguices, em férvida ventura conjugal. O sonho fôra <strong>de</strong>veras fugaz. Em pesa<strong>de</strong>lo<br />

tornara-se <strong>de</strong>pressa, n'estes ar<strong>de</strong>ntes paizes americanos, on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> parece crescer,<br />

<strong>de</strong>senvolver-se e passar vertiginosamente. Aquelles sau<strong>do</strong>sos tempos estavam longe,<br />

formavam um grupo separa<strong>do</strong>, distincto, na{138} vasta collecção <strong>de</strong> suas recordações<br />

<strong>de</strong> outróra. Presentemente, nada restava da tranquillida<strong>de</strong> em que se formara a sua<br />

a<strong>do</strong>lescencia, na Europa, nem <strong>do</strong>s esperançosos, dulcissimos sobresaltos que chegavam<br />

a tirar-lhe o somno, reten<strong>do</strong>-o até alta noite no sombrio tombadilho <strong>do</strong> vapor, quan<strong>do</strong><br />

fizera a travessia <strong>do</strong> Atlantico. Tu<strong>do</strong> fugira, na <strong>de</strong>finitiva liquidação da sua felicida<strong>de</strong>.<br />

Esta <strong>do</strong>lorosa introversão foi interrompida por um relinchar <strong>de</strong> cavallo. Olhou Silverio á<br />

direita, como voltan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um sonho. Tinham-se afasta<strong>do</strong> os varre<strong>do</strong>res, andava ainda no<br />

ar, peneirada na luz <strong>do</strong>s focos electricos, a poeira levantada pelas compridas vassoiras.<br />

Sempre aberto, o Universal manchava <strong>de</strong> claro a ramaria das mangueiras com a<br />

projecção das salas illuminadas. Em frente á porta, o cocheiro falava manso aos animaes<br />

impacienta<strong>do</strong>s. E o crea<strong>do</strong> <strong>do</strong> Riche, <strong>de</strong>sperto pelo relincho, obtivera <strong>do</strong> patrão a<br />

ventura{139} <strong>de</strong> um gesto, or<strong>de</strong>m muda para fechar.


Entrou Silverio a acompanhar-lhe com a vista os movimentos, as idas e vindas, mesas<br />

levadas aos pares, ca<strong>de</strong>iras conduzidas a duas e duas em cada mão. Feliz homem, esse<br />

crea<strong>do</strong>, pensava, se não tinha a inenarravel <strong>de</strong>sdita <strong>de</strong> possuir um inferno em vez <strong>de</strong> lar.<br />

Ia <strong>do</strong>rmir socega<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong> materialmente,—repara<strong>do</strong>ramente. A subitas,<br />

atravessou-se-lhe uma idéa no cerebro. Erguen<strong>do</strong>-se n'um esforço, bateu forte com os<br />

pés no lage<strong>do</strong>, para os <strong>de</strong>sentorpecer, e chamou o servente:<br />

—Deixe essa mesa, disse, traga um cognac.<br />

E sentou-se, com esta sentença espipada <strong>de</strong> sua ironia <strong>do</strong>lorida:<br />

—O alcool é a mortalha da dôr.{140}<br />

{141}<br />

INDICE<br />

{142}<br />

{143}<br />

PAG.<br />

Dedicatoria<br />

Uma homenagem I<br />

Represalias 13<br />

Um exgotta<strong>do</strong> 35<br />

Conto <strong>do</strong> natal 49<br />

A neta da cabocla <strong>de</strong> Ourém 57<br />

O banho da tapuia 83<br />

Complicações psychologicas 95<br />

Um caso da cabanada 111<br />

Um como tantos 127<br />

OPINIÕES DA IMPRENSA<br />

{144}<br />

{145}<br />

ENTRE AS NYMPHÉAS<br />

<strong>Contos</strong> e sensações<br />

POR


J. MARQUES DE CARVALHO<br />

Edição-miniatura <strong>de</strong> Arol<strong>do</strong> Moen, <strong>de</strong> Buenos-Aires<br />

OPINIÕES DA IMPRENSA<br />

Este novo livro <strong>do</strong> auctor <strong>de</strong> Hortencia foi muito lisonjeiramente acolhi<strong>do</strong> pela<br />

imprensa nacional e extrangeira. Vamos reproduzir algumas opiniões <strong>de</strong> jornaes e<br />

escriptores notaveis, externadas por occasião <strong>do</strong> apparecimento <strong>do</strong> formoso livrinho.<br />

D'O Paiz, <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

De Buenos-Aires recebemos um volume <strong>do</strong> livro Entre as Nymphéas, ultimo trabalho<br />

litterario <strong>do</strong> nosso compatriota{146} <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>, Secretario da Legação<br />

brazileira. Compõe-se <strong>de</strong> onze novellas escriptas na Amazonia e foi primorosamente<br />

impresso pela casa «La Vasconia» da capital argentina.<br />

É o primeiro livro em portuguez publica<strong>do</strong> em Buenos-Aires, mas não foi posto á venda<br />

ali. Apenas será encontra<strong>do</strong> na livraria Fauchon, d'esta capital.<br />

Em breve daremos a nossa opinião sobre o seu merito.<br />

Da Gazeta <strong>de</strong> Noticias, <strong>do</strong> Rio:<br />

Entre as Nymphéas é o titulo <strong>de</strong> um volume, escripto e publica<strong>do</strong> em Buenos-Aires pelo<br />

nosso compatriota J. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>, já tão vantajosamente conheci<strong>do</strong> pelos seus<br />

trabalhos litterarios. A edição é formosissima e <strong>do</strong> merito <strong>do</strong> livro com mais vagar<br />

falaremos.<br />

Do Jornal <strong>do</strong> Brazil, da Capital Fe<strong>de</strong>ral:<br />

Entre as Nymphéas, niti<strong>do</strong> e elegante volume, impresso em Buenos-Aires e <strong>de</strong> que é<br />

auctor o sr. J. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>, Secretario da Legação brazileira na Republica<br />

Argentina. Contém uma excellente collecção <strong>de</strong> contos e narrativas, escriptas em estylo<br />

correcto{147} e eleva<strong>do</strong> bastante para revelar as aptidões litterarias <strong>do</strong> auctor, que não é<br />

um <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> nas lettras patrias.<br />

Do Jornal <strong>do</strong> Commercio, <strong>do</strong> Rio:<br />

O sr. <strong>João</strong> <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>, Secretario da nossa Legação na Republica Argentina,<br />

publicou um volume com o titulo Entre as Nymphéas, conten<strong>do</strong> diversos trabalhos<br />

litterarios seus: compostos em diversas épocas e que offerecem agradavel leitura.<br />

A impressão feita em Buenos-Aires é nitida.


Ainda d'O Paiz, secção «Livros Novos»:<br />

Desobrigamo'-nos hoje <strong>do</strong> compromisso ha dias assumi<strong>do</strong>, publican<strong>do</strong> a impressão que<br />

nos <strong>de</strong>ixou a leitura <strong>do</strong> novo livro <strong>de</strong> <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>, Secretario da Legação<br />

brazileira era Buenos-Aires.<br />

O volume Entre as Nymphéas contém onze trabalhos, seis <strong>do</strong>s quaes inclui<strong>do</strong>s na 1.ª<br />

parte, sob a <strong>de</strong>nominação geral—Subjectivismo, fican<strong>do</strong> os outros cinco subordina<strong>do</strong>s<br />

ao titulo Objectivismo. Os primeiros contêm ou <strong>de</strong>screvem impressões intimas,<br />

subjectivas, conforme o proprio titulo indica, falan<strong>do</strong>{148} n'elles a alma «na livre<br />

expansão da sua illimitada sincerida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> todas as forças affectivas que possue». São<br />

<strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s pelo auctor a sua esposa, «o amparo <strong>do</strong>s seus <strong>de</strong>sanimos, o jubilo <strong>do</strong>s seus<br />

dias prazenteiros».<br />

A nota <strong>do</strong>minante <strong>do</strong> livro é toda <strong>de</strong> tristeza e <strong>de</strong> melancolia. Através <strong>de</strong> suas paginas<br />

percebe-se a sauda<strong>de</strong>, a dôr, o <strong>de</strong>sespero, o horror a tu<strong>do</strong> quanto não é puro, a tu<strong>do</strong><br />

aquillo que resulta da falsida<strong>de</strong>, da mentira, <strong>do</strong> convencional. Colloca<strong>do</strong> em meio das<br />

florestas virgens <strong>do</strong> Amazonas, viven<strong>do</strong> a vida simples <strong>do</strong>s habitantes d'aquellas<br />

paragens encanta<strong>do</strong>ras, que outra impressão po<strong>de</strong>ria beber o auctor em tão suggestiva<br />

situação, senão a impressão <strong>do</strong> bom, <strong>do</strong> justo, <strong>do</strong> sentimental?<br />

D'ahi a naturalida<strong>de</strong> com que o livro foi escripto, sem gran<strong>de</strong>s arreganhos <strong>de</strong> fórma,<br />

embora n'um ou n'outro perio<strong>do</strong> a gente fique a suppôr que <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong> pen<strong>de</strong><br />

para o falso nephelibatismo. Indubitavelmente a naturalida<strong>de</strong> é uma das primeiras<br />

qualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> escriptor, sen<strong>do</strong> que os livros que mais successo causam, são justamente<br />

aquelles em que o estylo, sempre correcto, sempre bello, não ultrapassa as raias <strong>do</strong><br />

espontaneo, <strong>do</strong> natural, para caír no ridiculo das adjectivações estrambolicas,<br />

retumbantes e malsonantes.<br />

Lê-se com prazer os onze contos concebi<strong>do</strong>s «entre as nymphéas, na região <strong>do</strong>s<br />

nenuphares e da Victoria Régia».{149} Destacamos, porém, da primeira parte, por nos<br />

ter melhor impressiona<strong>do</strong>, a fantasia intitulada O cemiterio da floresta, em que o auctor<br />

faz bonitas consi<strong>de</strong>rações sobre a hypocrisia das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s mortos e sobre a<br />

poesia <strong>de</strong> uma sepultura entregue á guarda das mattas virgens e ao eterno choro das<br />

aguas que <strong>de</strong>slisam mansamente junto á orla da floresta.<br />

Da segunda parte, on<strong>de</strong> apparece, com as Yaras paraenses, uma ponta <strong>de</strong> bom humor,<br />

pedimos permissão para salientar ainda <strong>do</strong>is trabalhos: Mater <strong>do</strong>lorosa e A filha <strong>do</strong><br />

Pagê, conto indigena com que o auctor fecha o seu livro.<br />

Entre as Nymphéas, embora impresso em Buenos-Aires—o trabalho typographico é<br />

admiravel—não está á venda n'aquella capital.<br />

Os jornaes platinos têm teci<strong>do</strong> muito mereci<strong>do</strong>s elogios ao nosso compatriota, com a<br />

apreciação <strong>do</strong> seu livro. La Patria Italiana, principalmente, diz ter-lhe causa<strong>do</strong> a mais<br />

agradavel das impressões a leitura <strong>do</strong>s contos <strong>de</strong> <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>, affirman<strong>do</strong> que<br />

Entre as Nymphéas vem augmentar os louros colhi<strong>do</strong>s pela actual geração litteraria <strong>do</strong><br />

Brazil.


Felicitamos cordialmente o nosso compatriota e collega, cujo talento <strong>de</strong> escriptor já se<br />

tem manifesta<strong>do</strong> nas suas diversas faces com a publicação <strong>de</strong> tres opusculos e <strong>de</strong> tres<br />

outros volumes: Hortencia, O livro <strong>de</strong> Judith e <strong>Contos</strong> Paraenses—to<strong>do</strong>s{150} bem<br />

recebi<strong>do</strong>s no paiz e no estrangeiro.<br />

De Valentim Magalhães, em folhetim d'A Noticia.<br />

Entre as Nymphéas é o lin<strong>do</strong> titulo <strong>de</strong> um livro lin<strong>do</strong>—por fóra e por <strong>de</strong>ntro.<br />

É seu auctor o sr. dr. J. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>, nosso ministro em Buenos-Aires. É um<br />

livrinho <strong>do</strong> feitio e <strong>do</strong> gosto d'esses da Collection Papyrus, impresso n'aquella cida<strong>de</strong> e<br />

edita<strong>do</strong> por Arnol<strong>do</strong> Moen.<br />

Contém onze narrativas divididas e grupadas em duas partes, que o auctor intitulou<br />

Subjectivismo e Objectivismo. São contos curtos, muito intimos e suavissimos os<br />

primeiros; pittorescos, rapi<strong>do</strong>s, flagrantes os segun<strong>do</strong>s,—to<strong>do</strong>s escriptos com elegancia<br />

e colori<strong>do</strong>.<br />

Da primeira parte citarei, como melhores, O isolamento, O naufragio <strong>do</strong> Purús e O<br />

cemiterio da floresta, e da segunda Mater <strong>do</strong>lorosa e A filha <strong>do</strong> pagé. O dr. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Carvalho</strong>, que já tem atraz <strong>de</strong> si varios livros, é um fantasista <strong>de</strong>lica<strong>do</strong> e sentimental, e<br />

apaixona<strong>do</strong> pela sua terra, o que lhe <strong>do</strong>bra o encanto e o valor.<br />

Entre as Nymphéas é um mimo: recommen<strong>do</strong>-o a quem se sinta embaraça<strong>do</strong> na escolha<br />

<strong>de</strong> um presente para uma menina ou senhora.{151}<br />

De Bellarmino Carneiro, n'O Paiz:<br />

A imprensa argentina não tem regatea<strong>do</strong> elogios ao precioso e elegante volume com que<br />

<strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong> acaba <strong>de</strong> fazer a sua reapparicão nas lettras patrias.<br />

E <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong> bem o merece, pois os seus trabalhos são obra <strong>de</strong> artista<br />

apaixona<strong>do</strong> e <strong>de</strong> homem <strong>de</strong> coração, como elle mesmo o confessa.<br />

Espirito educa<strong>do</strong> nas pugnas litterarias, a<strong>de</strong>stra<strong>do</strong> lucta<strong>do</strong>r da imprensa, temperamento<br />

rijo e masculo, como em regra o <strong>do</strong>s filhos da região septentrional, <strong>Marques</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Carvalho</strong>, ao <strong>de</strong>ixar o posto <strong>de</strong> redactor d'A Provincia <strong>do</strong> Pará, a brilhante folha <strong>do</strong><br />

norte, on<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong> ainda começara a trabalhar ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> dr. Assis, <strong>de</strong> Antonio<br />

Lemos, <strong>de</strong> Jovino Ayres e <strong>de</strong> muitos outros jornalistas distinctos, trazia um nome<br />

laurea<strong>do</strong>. Hortencia, Livro <strong>de</strong> Judith, <strong>Contos</strong> Paraenses e alguns opusculos em que<br />

firmou a sua ar<strong>de</strong>nte fé republicana, davam-lhe foros <strong>de</strong> escriptor consagra<strong>do</strong> pelos<br />

applausos publicos.<br />

Secretario <strong>do</strong> governo republicano <strong>do</strong> Pará e mais tar<strong>de</strong> diplomata, o auctor <strong>de</strong> Entre as<br />

Nymphéas, apezar das responsabilida<strong>de</strong>s e <strong>do</strong>s labores da carreira politica, não esqueceu<br />

o culto ás lettras, nem aban<strong>do</strong>nou os seus antigos idéaes.<br />

Prova-o o seu novo livro.{152}


Começamos estas linhas dizen<strong>do</strong> que a imprensa argentina colmara <strong>de</strong> elogios esse<br />

livro, cuja edição é um primor <strong>de</strong> factura typographica, e referimo'-nos a isto para<br />

mencionar <strong>de</strong> preferencia, entre tantas noticias laudatorias <strong>do</strong>s jornaes portenhos, como<br />

Patria Italiana, El Diario e muitos mais que vimos, o bellissimo artigo <strong>de</strong> Rubén Dario,<br />

o elegante e fino estylista, no periodico illustra<strong>do</strong> Buenos-Aires.<br />

Rubén Dario é um escriptor venezuelano e critico erudito, que illustra com seus<br />

trabalhos litterarios varias folhas da capital argentina, especialmente La Nación, on<strong>de</strong><br />

temos li<strong>do</strong> ultimamente o seu bellissimo estu<strong>do</strong> sobre o admiravel livro <strong>de</strong> Menén<strong>de</strong>z<br />

Pelayo, Antologia <strong>de</strong> poetas americanos.<br />

Tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> livro <strong>do</strong> nosso compatriota <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>, diz Ruben Dário [1] :<br />

«Pouco conhecida é entre nós outros a litteratura brazileira contemporanea, aliás tão<br />

opulenta e brilhante, que quasi po<strong>de</strong>ria consi<strong>de</strong>rar-se a primeira da America latina.<br />

Des<strong>de</strong> os velhos, os veteranos das lettras, que escrevem na Revista Brazileira, até essa<br />

ar<strong>de</strong>nte e amestrada geração que se manifesta em{153} publicações tão habilmente<br />

sustentadas como A Semana, a producção mental <strong>do</strong> Brazil é a muitas respeitos digna <strong>de</strong><br />

attenção, e d'ella, mais que <strong>de</strong> nenhuma outra <strong>do</strong>s paizes latino-americanos, se tem<br />

occupa<strong>do</strong> por vezes a critica européa.<br />

Quem conhece entre nós—para citar só um nome—esse critico <strong>de</strong> tão solida e profusa<br />

erudição, tão mo<strong>de</strong>rna varieda<strong>de</strong> e bella galhardia, que se chama Araripe Junior?»<br />

E accrescenta <strong>de</strong>pois:<br />

........................................<br />

«Ao percorrer as paginas d'este livro, vê-se que quem o tratou é escriptor que não<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha o amor da arte da palavra. Se não ha ali o labor <strong>de</strong> um artista, se não chega até<br />

aos virtuosismos <strong>de</strong> fórma <strong>de</strong> alguns <strong>do</strong>s seus jovens patricios—a verda<strong>de</strong> é que elle se<br />

proclama singelamente «naturalista na expressão»—tem uma espontaneida<strong>de</strong> e um dizer<br />

amavel que impressionam mui favoravelmente.<br />

Narra sem ambages; dá uma bella impressão da natureza tropical nas suas <strong>de</strong>scripções<br />

selvagens e fluviaes.<br />

No principio conta os suaves <strong>de</strong>leites <strong>do</strong> isolamento; Zimmermann ficaria muito<br />

satisfeito com elle. Depois, um ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> gaivotas leva-o a exhalar suspiros <strong>de</strong> vaga<br />

melancolia. Recordan<strong>do</strong> o pavoroso naufragio <strong>do</strong> Purús, no gran<strong>de</strong>{154} rio,<br />

catastrophe em que pereceu a mãe <strong>de</strong> sua mãe, a manifestação <strong>do</strong> sentimento expan<strong>de</strong>se<br />

em commoventes e intimos perio<strong>do</strong>s.<br />

As expansões familiares continuam em amorosos trechos <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s á sua filhinha. No<br />

Cemiterio da floresta, a phrase se avigora e o cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong> estylo substitue os anteriores<br />

<strong>de</strong>safôgos pessoaes, que se renovam n'uma pagina profundamente sentida, na qual<br />

rememora a morte <strong>de</strong> sua mãe. Ahi conclue a primeira parte, que elle <strong>de</strong>nominou<br />

Subjectivismo.


Na segunda, Objectivismo, encontram-se elegantes, <strong>de</strong>licadas, graciosas coisas. A pesca<br />

<strong>de</strong> Deodato é um conto repleto <strong>do</strong> bom-humor, que alegra o fantastico da narração; etc.<br />

Mater <strong>do</strong>lorosa é um triste episodio <strong>de</strong> dôr materna; Yaras paraenses, uma encanta<strong>do</strong>ra<br />

humorada; Uma historia <strong>de</strong> amor, uma série <strong>de</strong> cartas <strong>de</strong> um Marcel Prévost,<br />

agradabilissimas, e A filha <strong>do</strong> Pagé, uma narrativa muito humana e muito bonita.<br />

O livro lê-se rapidamente, gostosamente. Eu felicito o seu auctor, que me proporcionou<br />

uma feliz meia-noite até o amanhecer».<br />

Taes são os conceitos expressos pelo illustre critico em artigo especial <strong>do</strong> Buenos-Aires,<br />

illustra<strong>do</strong> com um excellente retrato <strong>de</strong> <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>.<br />

O nosso joven compatriota <strong>de</strong>ve sentir-se{155} bem compensa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus esforços,<br />

ven<strong>do</strong>-os prestigia<strong>do</strong>s por auctorida<strong>de</strong> tão eminente nas lettras americanas, e nós não<br />

dissimularemos o jubilo que nos enche a alma cada vez que o nome <strong>de</strong> um brazileiro<br />

levanta longe da Patria applausos e acclamações tão raramente e tão avaramente<br />

prodigaliza<strong>do</strong>s em geral.<br />

[1] Rubén Dario é um <strong>do</strong>s mais competentes criticos litterarios da actualida<strong>de</strong> e o mais<br />

vigoroso estylista em idioma espanhol na America <strong>do</strong> Sul.<br />

De Arthur Azeve<strong>do</strong>, na secção «Palestra», d'O Paiz:<br />

Li <strong>de</strong> uma assentada Entre as Nymphéas, o interessante livro que o nosso distincto<br />

compatriota J. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong> publicou em Buenos-Aires, on<strong>de</strong> exerce o logar <strong>de</strong><br />

1.º Secretario da Legação brazileira.<br />

O volume divi<strong>de</strong>-se em duas partes—Subjectivismo e Objectivismo. A primeira consta<br />

<strong>de</strong> paginas intimas, escriptas em estylo agradavel, mas um tanto rebusca<strong>do</strong>; na segunda,<br />

mais curiosa, mais simples e mais variada, encontram-se quatro bellos contos que<br />

transportam o leitor ás magestosas margens <strong>do</strong> Amazonas e Uma historia <strong>de</strong> amor,<br />

fantasia psychologica, condimentada à la mo<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris.<br />

Essa espirituosa composição contém sete cartas, escriptas por uma mulher durante mez<br />

e meio, que são o prologo, a acção e o <strong>de</strong>senlace <strong>de</strong> uma aventura <strong>de</strong> amor. O livro <strong>de</strong><br />

<strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>,{156} que sabe manejar a penna perfeitamente; contém paginas<br />

verda<strong>de</strong>iramente encanta<strong>do</strong>ras. A filha <strong>do</strong> Pagé o conto com que termina o livro, é uma<br />

chave <strong>de</strong> ouro.<br />

Accrescentarei que o volume, um primor <strong>de</strong> impressão, imitan<strong>do</strong> as mimosas edições<br />

Guillaume, <strong>de</strong> Paris, faz honra ao editor Arnol<strong>do</strong> Moen e á typographia La Vasconia, <strong>de</strong><br />

Buenos-Aires.<br />

O general <strong>do</strong>m Bartholomeu Mitre, que foi commandante das forças alliadas contra o<br />

Paraguay e presi<strong>de</strong>nte da Republica Argentina,—sen<strong>do</strong> além <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s mais<br />

eruditos e festeja<strong>do</strong>s litteratos contemporaneos, dirigiu a <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong> as<br />

seguintes linhas, ao receber um exemplar <strong>de</strong> Entre as Nymphéas.


Bartholomeu Mitre saúda attenciosamente ao ex. mo sr. J. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong><br />

Encarrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> Negocios <strong>do</strong> Brazil na Argentina e agra<strong>de</strong>ce o precioso livro que se<br />

serviu offerecer-lhe, o qual conservará como uma lembrança na sua Bibliotheca<br />

Americana, com a honrosa <strong>de</strong>dicatoria autographa <strong>do</strong> auctor, a quem <strong>de</strong>seja todas as<br />

felicida<strong>de</strong>s n'este paiz.{157}<br />

O sr. <strong>do</strong>m Mariano Pelliza, diplomata e historia<strong>do</strong>r argentino, tambem enviou estas<br />

palavras ao auctor:<br />

Mariano A. Pelliza, sub-secretario <strong>de</strong> Relações Exteriores, saúda ao seu amigo <strong>Marques</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong> e compraz-se em enviar-lhe os seus agra<strong>de</strong>cimentos pela joia litteraria (por<br />

esta vez,—joia—não é metaphora) com que teve a gentileza <strong>de</strong> o obsequiar.<br />

Herculano <strong>Marques</strong> Inglez <strong>de</strong> Souza, o illustre jurisconsulto e eminente litterato<br />

brazileiro, en<strong>de</strong>reçou a <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong> a seguinte carta:<br />

Cumpro um grato <strong>de</strong>ver, agra<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> cordialmente a V. a dupla distincção que se<br />

dignou fazer-me, offerecen<strong>do</strong>-me um exemplar <strong>do</strong> sou bello livrinho—Entre as<br />

Nymphéas e <strong>de</strong>dican<strong>do</strong>-me as sentidas e <strong>de</strong>licadas paginas que escreveu a proposito da<br />

tragedia <strong>do</strong> vapor Purús.<br />

Já conhecia <strong>de</strong> V. alguns trabalhos e, entre elles, a Hortencia, romance em que revela<br />

gran<strong>de</strong>s qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> observação e muito amor á verda<strong>de</strong> na Arte. O seu novo livro<br />

mostra que áquelles predica<strong>do</strong>s sabe V. alliar muito sentimento{158} verda<strong>de</strong>iro e um<br />

estylo colori<strong>do</strong> e sóbrio.<br />

A conceituada Revista Brazileira, <strong>do</strong> Rio, estampou o seguinte juizo critico:<br />

Como a canôa que <strong>de</strong>slisa por entre a vegetação aquatica que <strong>de</strong>u o titulo a este elegante<br />

livro <strong>de</strong> contos, vae a alma <strong>de</strong> quem o lê levada <strong>de</strong> narrativa em narrativa, sem se<br />

emmaranhar nas enrediças <strong>do</strong> estylo caprichosamente entrelaçadas.<br />

Com effeito, reproduzem-se n'este livro <strong>de</strong>lica<strong>do</strong> as infinitas gradações <strong>de</strong> côres que o<br />

sol <strong>do</strong>s tropicos, enfian<strong>do</strong> o pincel <strong>de</strong> raios pelo prisma das cataractas, fixou nas pennas<br />

das aves e nas folhas <strong>do</strong>s nenuphares. E com a vehemencia com que pelas regiões <strong>do</strong><br />

Amazonas brotam as açucenas <strong>do</strong> seio das aguas, o sentimento <strong>do</strong> bello enraiza<strong>do</strong><br />

profundamente na alma <strong>do</strong> escriptor <strong>de</strong>sabrochou em commovidas phrases á flôr <strong>do</strong><br />

pranto que lhe fez verter a sauda<strong>de</strong> da filhinha ausente ou da mãe que elle viu finar-se.<br />

Brin<strong>de</strong> a minha filha e Um anniversario são paginas escriptas com o proprio sangue e<br />

incluidas na 1.ª parte—Subjectivismo, que o auctor offerece a sua esposa. O<br />

subjectivismo terá sempre esta superiorida<strong>de</strong> incontestavel: que na ignorancia em que<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos seculos <strong>de</strong> philosophias ainda se encontra{159} o homem com respeito<br />

á lei <strong>do</strong> universo, somente a que em si sente pó<strong>de</strong> ter uma tal ou qual consciencia;<br />

d'on<strong>de</strong> resulta que, ainda quan<strong>do</strong> copía o mun<strong>do</strong> exterior, é o seu proprio sentimento<br />

que empresta ás coisas. Por isso o homem persiste em affirmar que os montes são<br />

tristes, que choram os mares, que riem as searas, que folgam as aves, e não quer ver que<br />

nem os montes são tristes, nem choram os mares, nem riem as searas, nem folgam as<br />

aves e que só elle é triste, chora, ri ou folga, porque só elle possue em toda a natureza a<br />

capacida<strong>de</strong> das alegrias supremas comparada com o <strong>do</strong>m das supremas angustias.


Da 2.ª parte—Objectivismo, commoveram-nos principalmente as duas narrativas Mater<br />

<strong>do</strong>lorosa e A filha <strong>do</strong> Pagé, a historia entristece<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> uma mãe que vê o filho enguli<strong>do</strong><br />

pelo gigante rio <strong>do</strong> <strong>Norte</strong> e a <strong>de</strong> um velho indio que chora a filha <strong>de</strong>shonrada. Estes <strong>do</strong>is<br />

contos confirmam-nos na crença <strong>de</strong> que é, quan<strong>do</strong> menos, inutil para a arte a distincção<br />

entre subjectivismo e objectivismo. Se o auctor logra transmittir a quem o lê a emoção<br />

espontanea ou reflexa <strong>de</strong> que se acha possui<strong>do</strong> (e é o caso <strong>do</strong> sr. <strong>Marques</strong> <strong>de</strong> <strong>Carvalho</strong>),<br />

a obra é verda<strong>de</strong>ira; se não logra, a obra é falsa, porque, em to<strong>do</strong> caso, é sempre o<br />

objectivismo <strong>do</strong> leitor que julga em ultima instancia.—S. R.<br />

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<strong>Carvalho</strong><br />

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WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.<br />

1.F.5. Some states <strong>do</strong> not allow disclaimers of certain implied<br />

warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.<br />

If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates<br />

the<br />

law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be<br />

interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by<br />

the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any<br />

provision of this agreement shall not void the remaining provisions.


1.F.6. INDEMNITY - You agree to in<strong>de</strong>mnify and hold the Foundation,<br />

the<br />

tra<strong>de</strong>mark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone<br />

providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in<br />

accordance<br />

with this agreement, and any volunteers associated with the<br />

production,<br />

promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,<br />

harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,<br />

that arise directly or indirectly from any of the following which you<br />

<strong>do</strong><br />

or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenbergtm<br />

work, (b) alteration, modification, or additions or <strong>de</strong>letions to any<br />

Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.<br />

Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm<br />

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of<br />

electronic works in formats readable by the wi<strong>de</strong>st variety of<br />

computers<br />

including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists<br />

because of the efforts of hundreds of volunteers and <strong>do</strong>nations from<br />

people in all walks of life.<br />

Volunteers and financial support to provi<strong>de</strong> volunteers with the<br />

assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's<br />

goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will<br />

remain freely available for generations to come. In 2001, the Project<br />

Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provi<strong>de</strong> a secure<br />

and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.<br />

To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation<br />

and how your efforts and <strong>do</strong>nations can help, see Sections 3 and 4<br />

and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.<br />

Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive<br />

Foundation<br />

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit<br />

501(c)(3) educational corporation organized un<strong>de</strong>r the laws of the<br />

state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal<br />

Revenue Service. The Foundation's EIN or fe<strong>de</strong>ral tax i<strong>de</strong>ntification<br />

number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at<br />

http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg<br />

Literary Archive Foundation are tax <strong>de</strong>ductible to the full extent<br />

permitted by U.S. fe<strong>de</strong>ral laws and your state's laws.<br />

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.<br />

Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered<br />

throughout numerous locations. Its business office is located at<br />

809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email<br />

business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact<br />

information can be found at the Foundation's web site and official<br />

page at http://pglaf.org<br />

For additional contact information:<br />

Dr. Gregory B. Newby<br />

Chief Executive and Director


gbnewby@pglaf.org<br />

Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg<br />

Literary Archive Foundation<br />

Project Gutenberg-tm <strong>de</strong>pends upon and cannot survive without wi<strong>de</strong><br />

spread public support and <strong>do</strong>nations to carry out its mission of<br />

increasing the number of public <strong>do</strong>main and licensed works that can be<br />

freely distributed in machine readable form accessible by the wi<strong>de</strong>st<br />

array of equipment including outdated equipment. Many small <strong>do</strong>nations<br />

($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt<br />

status with the IRS.<br />

The Foundation is committed to complying with the laws regulating<br />

charities and charitable <strong>do</strong>nations in all 50 states of the United<br />

States. Compliance requirements are not uniform and it takes a<br />

consi<strong>de</strong>rable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up<br />

with these requirements. We <strong>do</strong> not solicit <strong>do</strong>nations in locations<br />

where we have not received written confirmation of compliance. To<br />

SEND DONATIONS or <strong>de</strong>termine the status of compliance for any<br />

particular state visit http://pglaf.org<br />

While we cannot and <strong>do</strong> not solicit contributions from states where we<br />

have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition<br />

against accepting unsolicited <strong>do</strong>nations from <strong>do</strong>nors in such states who<br />

approach us with offers to <strong>do</strong>nate.<br />

International <strong>do</strong>nations are gratefully accepted, but we cannot make<br />

any statements concerning tax treatment of <strong>do</strong>nations received from<br />

outsi<strong>de</strong> the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.<br />

Please check the Project Gutenberg Web pages for current <strong>do</strong>nation<br />

methods and addresses. Donations are accepted in a number of other<br />

ways including including checks, online payments and credit card<br />

<strong>do</strong>nations. To <strong>do</strong>nate, please visit: http://pglaf.org/<strong>do</strong>nate<br />

Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic<br />

works.<br />

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenbergtm<br />

concept of a library of electronic works that could be freely shared<br />

with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project<br />

Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.<br />

Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed<br />

editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.<br />

unless a copyright notice is inclu<strong>de</strong>d. Thus, we <strong>do</strong> not necessarily<br />

keep eBooks in compliance with any particular paper edition.<br />

Most people start at our Web site which has the main PG search<br />

facility:<br />

http://www.gutenberg.net<br />

This Web site inclu<strong>de</strong>s information about Project Gutenberg-tm,<br />

including how to make <strong>do</strong>nations to the Project Gutenberg Literary


Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to<br />

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