José Jorge de Carvalho, Artes Sagradas Afro-brasileiras
José Jorge de Carvalho, Artes Sagradas Afro-brasileiras
José Jorge de Carvalho, Artes Sagradas Afro-brasileiras
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
pelas salas <strong>de</strong> exposição do Centro por repulsa aos objetos <strong>de</strong> origem africana lá<br />
exibidos. Se ficássemos na repulsa, ainda po<strong>de</strong>ríamos ser multiculturais, mesmo que <strong>de</strong><br />
um modo medíocre, <strong>de</strong>vido à mera recusa às trocas. Infelizmente, a história dos últimos<br />
séculos nos lembra que a repulsa não se <strong>de</strong>tém no distanciamento passivo; ela costuma<br />
dar lugar ao ódio, ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> eliminação, ao achincalhe, à perseguição, à sanha<br />
<strong>de</strong>strutiva, aos projetos <strong>de</strong> queima e apagamento da memória. É o diferente africano e<br />
indígena que não po<strong>de</strong> mais ser tolerado. Estamos assistindo, nos últimos anos, no<br />
Brasil, as primeiras manifestações do projeto <strong>de</strong> intolerância artística e religiosa que vai<br />
além da simples repulsa e passa ao ato agressivo. A partir daqui já não estaremos<br />
falando em encontro entre culturas, mas <strong>de</strong> retorno ao genocídio cultural que fundou<br />
nosso país.<br />
Reflitamos que há uma motivação por trás <strong>de</strong>ssa recusa: nas religiões <strong>de</strong> matrizes<br />
africanas, se Ossãe vive, a floresta é salva. On<strong>de</strong> não há Ossãe, todas as árvores po<strong>de</strong>m<br />
ser cortadas, porque na lógica dualista das religiões antropocêntricas, a natureza não tem<br />
vida. O seu dualismo consiste justamente em uma negação feroz <strong>de</strong> todo processo <strong>de</strong><br />
geração: a virginda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maria, a negação da sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus, a fecundação por um<br />
espírito, a ressurreição integral do corpo. Nessa tradição mitológica, a natureza jamais é<br />
ativa, e jamais se transforma. E esse lugar infértil, inerte e passivo, alocado à natureza<br />
po<strong>de</strong> ser visto na concepção dos templos cristãos. Qualquer igreja mo<strong>de</strong>rna, seja católica<br />
ou protestante, po<strong>de</strong> ser concebida, projetada e construída por arquitetos e engenheiros<br />
que escolherão os materiais e as plantas ao seu bel prazer, segundo seus estilos <strong>de</strong><br />
paisagismo e arquitetura, que são inteiramente arbitrários do ponto <strong>de</strong> vista espiritual.<br />
Tanto faz que espécies <strong>de</strong> árvores e <strong>de</strong> flores enfeitarão o templo, pois elas não estão em<br />
contato com o mundo encantado dos <strong>de</strong>uses da natureza. E seguindo essa mesma lógica,<br />
as árvores e as flores po<strong>de</strong>m inclusive ser eliminadas, ou substituídas por simulacros<br />
artificiais, feitos <strong>de</strong> materiais sintéticos industrializados. O mesmo po<strong>de</strong> ocorrer com as<br />
fontes <strong>de</strong> água, incluídas como mero adorno, seja <strong>de</strong> um hotel, <strong>de</strong> uma escola ou <strong>de</strong> uma<br />
igreja – os templos acabam como parques temáticos à lá Disney, tão caros a Jean<br />
Baudrillard em sua crítica aguda à precessão do simulacro. Enfim, em um templo<br />
cristão, a natureza não fala. Já num templo <strong>de</strong> xangô ou candomblé, todas as plantas,<br />
todas as fontes <strong>de</strong> água são lugares <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção – todos os objetos estão vivos e<br />
comunicados com os seres humanos. Fazer arte a partir <strong>de</strong>sse princípio é colocar-se em<br />
uma posição <strong>de</strong> comunhão, respeito e preservação da natureza e suas manifestações.<br />
Tudo é vital e sujeito ao ciclo cósmico <strong>de</strong> transformação da vida em morte e da morte<br />
em vida.<br />
VII. Os Valores Civilizatórios das <strong>Artes</strong> <strong>Sagradas</strong> <strong>Afro</strong>-Brasileiras<br />
O <strong>de</strong>bate atual que mobiliza as pessoas conscientes nos cinco continentes é que<br />
está acabando a água, estão acabando os rios, as cachoeiras, as florestas, os minerais, os<br />
hidrocarbonetos. Estão atacando Oxum, Iemanjá, Ossãe, Oxumarê, Ogum, Oxóssi.<br />
Nesta perspectiva, o ataque evangélico ao mundo sagrado afro-brasileiro faz parte <strong>de</strong><br />
um plano político global que se apóia nessa postura filosófica frente à natureza. O Brasil<br />
é um país que não só <strong>de</strong>tém uma parte da natureza intacta do mundo, como conta<br />
também com tradições sagradas que a reverenciam (entre elas o candomblé, o xangô e<br />
as religiões indígenas). Portanto, se cristianizamos inteira e <strong>de</strong>finitivamente nosso<br />
espaço simbólico e natural, seguindo a lógica <strong>de</strong>sse cristianismo que recusa a alterida<strong>de</strong>,<br />
nossa terra passa a tornar-se arrasada, alguém po<strong>de</strong> plantar soja no Brasil inteiro, porque<br />
já não há limite para o agronegócio. Esta discussão é teológica, econômica, política e<br />
17