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José Jorge de Carvalho, Artes Sagradas Afro-brasileiras

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Buarque <strong>de</strong> Holanda, <strong>de</strong> um “domínio europeu (...) brando e mole” (Holanda 2003:51).<br />

Des<strong>de</strong> o século XVI até o presente, <strong>de</strong> fato, não houve uma única década no Brasil em<br />

que as tradições religiosas <strong>de</strong> origem africana e indígena pu<strong>de</strong>ram expressar-se com<br />

inteiro e livre acesso ao espaço público. Igualmente, a idéia <strong>de</strong> um “languescimento <strong>de</strong><br />

Deus”, do mesmo Holanda (id:62), é um disparate diante da pressão ininterrupta do<br />

po<strong>de</strong>r branco cristão sobre a população negra e suas expressões culturais <strong>de</strong> origem<br />

africana.<br />

Só muito recentemente, portanto, as religiões afro-<strong>brasileiras</strong> adquiriram estatuto<br />

pleno <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong>. Em 1975, ano da eliminação do alvará, acabávamos <strong>de</strong> entrar<br />

plenamente na era da socieda<strong>de</strong> do espetáculo. Po<strong>de</strong>ríamos até fazer um paralelo entre a<br />

<strong>de</strong>scriminalização das religiões afro-<strong>brasileiras</strong> e a consolidação da mídia televisiva nos<br />

anos setenta. Aqueles que viram o filme inglês Beyond Citizen Kane (Além do Cidadão<br />

Kane), até hoje proibido no Brasil – po<strong>de</strong>m ter uma idéia <strong>de</strong> como foi montado esse<br />

imério extraordinário da Re<strong>de</strong> Globo, sem paralelo no mundo e ícone do po<strong>de</strong>r<br />

midiático no Brasil, consolidado durante o regime militar. A partir daquele momento, a<br />

umbanda e o candomblé passaram <strong>de</strong> práticas escondidas para fonte <strong>de</strong> espetáculos, na<br />

lógica <strong>de</strong>ssa recém fundada cultura <strong>de</strong> massas. O controle policial do alvará foi<br />

substituído pela assimilação lenta e progressiva da mídia, e os rituais afro-brasileiros<br />

saíram do seu recinto sagrado para aparecer nas novelas, contribuindo para a<br />

manutenção da audiência. Para que tal mudança se <strong>de</strong>sse, foi preciso estabilizar um<br />

novo conjunto <strong>de</strong> imagens audiovisuais afro-<strong>brasileiras</strong>, como se uma nova Delegacia <strong>de</strong><br />

Jogos e Diversões tivesse <strong>de</strong>slocado o sentido histórico específico dos jogos e diversões<br />

preferidos das comunida<strong>de</strong>s dos terreiros para que eles, esvaziados agora <strong>de</strong> seus<br />

símbolos <strong>de</strong> diferença e resistência, começassem a se difundir segundo os interesses dos<br />

brancos.<br />

Propomos um regresso à presença estatal justamente porque essa <strong>de</strong>sautorização<br />

constante das tradições sagradas <strong>de</strong> origem africana (e também do xamanismo, das<br />

danças e dos cantos das tradições indígenas) convocou vários atores brancos cujas ações<br />

<strong>de</strong> predação cultural, ou com fins <strong>de</strong> lucro ou <strong>de</strong> censura em nome <strong>de</strong> crenças religiosas<br />

intolerantes, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ram os interesses dos artistas <strong>de</strong>ssas tradições. Acredito que nem<br />

a socieda<strong>de</strong> civil nem o mercado po<strong>de</strong>rão equilibrar esse quadro sem uma intervenção<br />

<strong>de</strong> Estado.<br />

Tivemos uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> agentes políticos e sociais, ao longo <strong>de</strong> gerações,<br />

envolvidos nesse projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sautorização. Lembremos primeiro dos padres, dos<br />

bispos, das or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> Roma, das constantes pressões pela romanização do catolicismo<br />

no Brasil. Como ilustra o episódio das beatas do Padre Cícero <strong>de</strong> Juazeiro do Norte, o<br />

catolicismo no Brasil era intolerante até mesmo com as manifestações locais da fé cristã.<br />

Depois vieram os teólogos, legitimando o cristianismo e discursando sobre a suposta<br />

sofisticação do monoteísmo frente ao politeísmo, da pretensa sutileza das religiões da<br />

transcendência frente à rusticida<strong>de</strong> das religiões fetichistas, não faltando inclusive<br />

aqueles que justificaram a repressão religiosa aberta contra as religiões afro-<strong>brasileiras</strong>.<br />

Tivemos também médicos e psiquiatras que tentaram enquadrar o transe religioso afrobrasileiro<br />

como uma instância <strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio e insanida<strong>de</strong> mental. Juristas, procurando<br />

justificar também uma espécie <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong> intrínseca dos a<strong>de</strong>ptos, como se a<br />

ausência <strong>de</strong> cidadania das tradições religiosas pu<strong>de</strong>sse ser justificada legalmente.<br />

Jornalistas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século <strong>de</strong>zenove, fazendo reportagens exotizantes e <strong>de</strong>tratoras das<br />

práticas religiosas dos a<strong>de</strong>ptos. Pesquisadores <strong>de</strong> várias origens, folcloristas,<br />

profissionais liberais <strong>de</strong>slocados das suas áreas específicas; enfim, vários formadores <strong>de</strong><br />

opinião que ao longo <strong>de</strong> gerações lançaram dos discursos médico, jurídico e psiquiátrico<br />

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