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José Jorge de Carvalho, Artes Sagradas Afro-brasileiras

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o canibalizado não tem opção nenhuma além <strong>de</strong> mimetizar-se com o outro antropófago<br />

como forma <strong>de</strong> sobrevivência. 3<br />

Insisto em que se faça bem essa distinção, entre esses dois discursos da elite<br />

brasileira que surgiram em situações geopolíticas opostas: a <strong>de</strong>mocracia racial<br />

nor<strong>de</strong>stina e a antropofagia paulista. Em certo sentido, o discurso freyreano seria uma<br />

resposta ao discurso paulista, em uma tentativa <strong>de</strong> voltar ao Brasil arcaico e regionalista,<br />

quando aqueles propunham a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> metropolitana. Contudo, entendidos como<br />

falas próprias da elite branca, ambas as posturas tiveram o mesmo efeito na tradição<br />

afro-brasileira, a saber, <strong>de</strong> colocar à disposição <strong>de</strong>ssa elite, para seu uso indiscriminado,<br />

os patrimônios sagrados indígenas e africanos. E com isso, nesses últimos setenta anos,<br />

apesar <strong>de</strong> inúmeras tentativas, os negros não conseguiram gerar um contra-discurso que<br />

marcasse um território e colocasse em cheque essa retórica branca como uma retórica da<br />

predação. Houve tentativas, como a da Frente Negra Brasileira nos anos trinta, o Teatro<br />

Experimental do Negro e o Movimento Quilombo <strong>de</strong> Abdias do Nascimento nos anos<br />

cinquenta e o Movimento Negro Unificado, nos anos setenta do século passado. Apesar<br />

da contundência <strong>de</strong>ssas reações, a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> forças sempre foi muito gran<strong>de</strong> e a<br />

elite branca pautou a repercussão – nacional e pública – das imagens singulares das artes<br />

afro-<strong>brasileiras</strong>, sobretudo por ter nas mãos o controle absoluto da mídia.<br />

II. A Falsa Proximida<strong>de</strong> da Elite Branca com o Mundo <strong>Afro</strong>-Brasileiro<br />

Gostaria <strong>de</strong> ilustrar as consi<strong>de</strong>rações anteriores, <strong>de</strong> relação predatória e unilateral<br />

da elite branca com as tradições religiosas afro-<strong>brasileiras</strong>, com um breve relato<br />

etnográfico. Quando assisti ao documentário Casa Gran<strong>de</strong> & Senzala, <strong>de</strong> Nelson Pereira<br />

dos Santos, sobre a vida e a obra <strong>de</strong> Gilberto Freyre, pu<strong>de</strong> rever uma cena que havia<br />

presenciado ao vivo em 1980, quando fazia minha pesquisa <strong>de</strong> campo <strong>de</strong> doutorado no<br />

xangô do Recife. Nelson Pereira havia reproduzido alguns segundos <strong>de</strong> uma reportagem<br />

da TV Globo pernambucana sobre um toque <strong>de</strong> orixás ocorrido no Sítio <strong>de</strong> Pai Adão <strong>de</strong><br />

Água Fria em abril <strong>de</strong> 1980, como parte das homenagens aos 80 anos do gran<strong>de</strong> escritor.<br />

Obviamente, as imagens do noticiário inseridas no documentário passavam a impressão<br />

<strong>de</strong> que aquela comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> santo havia oferecido aquela festa em honra <strong>de</strong> Gilberto<br />

Freyre, o qual dizia ter sido amigo do famoso sacerdote Pai Adão. Seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes<br />

celebravam, assim, a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa relação tão íntima e fraterna entre brancos da<br />

elite e negros pobres <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> ex-escravos, exatamente como reza a i<strong>de</strong>ologia da<br />

<strong>de</strong>mocracia racial plasmada no livro Casa Gran<strong>de</strong> & Senzala.<br />

O que o documentário não esclarece é que aquela festa não foi uma manifestação<br />

espontânea <strong>de</strong> apreço do povo <strong>de</strong> santo ao escritor. Naquela época, eu residia na casa do<br />

pai <strong>de</strong> santo que oficiava no Sítio <strong>de</strong> Pai Adão e pu<strong>de</strong> acompanhar <strong>de</strong> perto todas as<br />

negociações e os preparativos para aquele espetáculo enganoso. A Fundação Joaquim<br />

Nabuco havia solicitado ao pai <strong>de</strong> santo que organizasse um toque para os orixás<br />

especificamente em homenagem a Gilberto Freyre na semana em que ele completava 80<br />

anos. A festa foi paga inteiramente pela Fundação, que alocou dinheiro para todos os<br />

gastos <strong>de</strong> um toque público para os orixás (recursos para a comida, as bebidas, as<br />

roupas, os tambores, ogãs, os fogos, a limpeza e os arranjos do salão, etc.). Ou seja,<br />

mesmo tendo ocorrido durante o mês <strong>de</strong> abril, aquele não foi o costumeiro toque <strong>de</strong><br />

Ogum do Sítio <strong>de</strong> Pai Adão. A festa incluiu até uma pequena palestra <strong>de</strong> Freyre,<br />

3 Já discuti essa dimensão política da antropofagia estética em outro ensaio (<strong>Carvalho</strong> 2004).<br />

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