69 mayra regina saraiva abreu - UFG
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capa índice GT1<br />
<strong>mayra</strong> <strong>regina</strong> <strong>saraiva</strong> <strong>abreu</strong><br />
Doutoranda em Sociologia<br />
diálogos entre a graduação e as pós-graduações<br />
Dona GErCIna: LaCUnas DE Uma narraTIVa<br />
resumo: Projeto de pesquisa cujo objetivo é reconstruir a trajetória,<br />
em seus diferentes tempos – biográfico e história coletiva –, de dona<br />
Gercina Borges, esposa de Pedro Ludovico Teixeira, interventor no<br />
Estado de Goiás por 15 anos (1930-1945) e governador eleito por<br />
mais quatro anos (1951-1945). O projeto propõe a comparação da sua<br />
experiência com as de outras ex-primeiras damas do Estado goiano,<br />
compreendendo os processos sociais pelos quais ela se liga ao seu<br />
quadro de referência histórica, sua incursão na história coletiva, ou<br />
seja, os processos que marcaram sua passagem na vida pública e que<br />
culminou, no caso de Gercina Borges, com a criação do mito “Gercina,<br />
mãe dos pobres”, erigido em torno de sua experiência coletiva,<br />
buscando a integração do desconhecido ou silenciado, nas narrativas<br />
oficiais, aos conteúdos já narrados na historiografia goiana.<br />
Palavras-chave: experiência, trajetória, Gercina Borges.<br />
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Resumo 2 :<br />
diálogos entre a graduação e as pós-graduações<br />
DONA GERCINA: LACUNAS DE UMA NARRATIVA<br />
Mayra Regina Saraiva de Abreu 1<br />
Projeto de pesquisa com o objetivo de reconstruir a trajetória, em seus diferentes<br />
tempos – biográfico e história coletiva –, de dona Gercina Borges, esposa de Pedro<br />
Ludovico Teixeira, interventor no Estado de Goiás por 15 anos (1930-1945) e<br />
governador eleito por mais quatro anos (1951-1945), comparando sua experiência com<br />
as outras ex-primeiras damas do Estado goiano, compreendendo os processos sociais<br />
pelos quais ela se liga ao seu quadro de referência histórica, sua incursão na sua<br />
história coletiva, ou seja, os processos que marcaram sua passagem na vida pública e<br />
que culminou, no caso da Gercina Borges, com a criação do mito “Gercina, mãe dos<br />
pobres” erigido em torno de sua experiência coletiva, buscando a integração do<br />
desconhecido, silenciado nas narrativas oficiais, aos conteúdos já narrados na<br />
historiografia goiana.<br />
Palavras-chave: experiência, trajetória, Gercina Borges.<br />
Os anos que antecedem a década de 1930 ensejaram no Brasil manifestações e<br />
movimentos sociais capazes de produzir mudanças na sociedade, ressignificando as<br />
expressões artísticas e culturais, adotando outras bases para a economia bem como<br />
abrindo às mulheres novos espaços de atuação e novas possibilidades no desenho das<br />
posições sociais.<br />
Em Goiás, os ventos da mudança também sopram a partir de 1930 e põem em<br />
marcha a desejada modernidade. O processo de interiorização do território brasileiro<br />
fez com que o Governo Federal estabelecesse novas frentes de desenvolvimento<br />
econômico e a região centro-oeste, que sempre ocupara posição periférica no cenário<br />
nacional durante a Primeira República, passa a ter centralidade no governo Vargas. A<br />
intervenção federal no Estado de Goiás, decorrente da crise política que se instaura em<br />
1930, permite as mudanças políticas e econômicas, ensejadoras de um projeto de<br />
modernização 3 , destituindo do poder de estado a oligarquia hegemônica até então.<br />
1 Graduada em Ciências Sociais pela <strong>UFG</strong>, Mestre em Sociologia e doutoranda em Sociologia na <strong>UFG</strong>.<br />
Socióloga na Secretaria de Cidadania e Trabalho do Governo do Estado de Goiás e professora do Centro<br />
Universitário de Goiás – Uni-Anhanguera.<br />
2 Trabalho desenvolvido sob a orientação da Profª Dr. Denise Paiva.<br />
3 Não queremos aqui entrar na discussão se esse processo, de fato representou, ou não, modernidade. O<br />
que se busca é evidenciar o caráter simbólico do discurso da modernidade e mudança predominante na<br />
época. Para maiores informações. Ver Chaul (1999).<br />
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Embora todas essas mudanças fossem orientadas pela estratégia de ocupação e<br />
expansão da econômica, é certo também que a marcha para o oeste tem em sua base<br />
motivações orientadas para o “novo” e o “moderno”, estabelecendo a ruptura com os<br />
padrões de comportamento, valores e grupos até então identificados como “arcaicos”,<br />
“antigos” ou “ultrapassados”.<br />
O movimento sufragista, nesta mesma década, orientado pelo discurso<br />
feminista reclama direito político às mulheres e ao mesmo tempo também introduz<br />
novas noções sobre o direito feminino e questionamentos acerca do papel da mulher<br />
na sociedade.<br />
Nesse contexto, Gercina Borges inicia sua vida pública ao lado do interventor do<br />
Estado, o médico Pedro Ludovico Teixeira. Gercina nasceu em Rio Verde, sudoeste<br />
goiano. Era filha de senador, morou em Franca, São Paulo, onde se formou no<br />
magistério, casou-se em 1914, mudando-se para Jataí para logo em seguida, retornar a<br />
Rio Verde. Com a vitória da Aliança Liberal e a nomeação de Pedro Ludovico Teixeira<br />
como interventor do Estado, mudou-se para a Cidade de Goiás, antiga Vila Boa, e, em<br />
1935, mudou-se definitivamente para a nova capital do Estado, Goiânia.<br />
Ela cresceu em uma região que, segundo Machado (1990), teria se<br />
transformado em um pólo econômico em virtude da pecuária, da agricultura e dos<br />
grandes proprietários de terra do sudoeste. A proximidade com Triângulo Mineiro e o<br />
acesso aos jornais e informações vindos de Minas Gerais contribuiu para a formação,<br />
nessa região, de uma mentalidade modernizadora e de um espírito inovador que<br />
posteriormente marcará a oposição entre o “atraso” e o “novo” na disputas política no<br />
estado goiano. Ali, a família de Gercina Borges conviveu com “grupo de homens<br />
(modernizadores)... identificados com a economia de mercado” (MACHADO, 1990, p.<br />
84). Fatos como esses, supõe-se, poderiam tê-la influenciado, podendo talvez suscitar<br />
entre as mulheres, especialmente em Gercina, novos valores capazes de orientar novas<br />
condutas no que se refere à atuação das mulheres.<br />
O desejo do novo e de uma nova capital do Estado, fomentados também na<br />
região sudoeste, onde vivera, embalam o sonho de seu esposo e de muitos goianos.<br />
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Uma nova capital seria o símbolo que levaria o estado a sair do marasmo políticoeconômico,<br />
além de representar o “novo tempo” que se estruturava nos horizontes<br />
2<br />
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nacionais. Era parte do “novo” Brasil; do tempo novo, do Estado Novo. Uma nova<br />
capital seria, sobretudo, a imagem de progresso(CHAUL, 1999, 81).<br />
A da mudança não era apenas de Pedro Ludovico. Era um deseja de Vargas, era uma<br />
necessidade capitalista. Era uma dinamização da economia goiana, incorporando-se<br />
mais e mais à economia nacional. Era, enfim, a meta política das oligarquias do Sul e do<br />
Sudoeste. Naquele momento, representava para o plano político do estado uma<br />
bandeira de luta, um símbolo de ascensão ao poder, uma ideologia global que poderia<br />
estar representada na transferência da capital, enquanto essa significasse o novo, o<br />
progresso, a centralização, a esperança(CHAUL, 1999, p. 77).<br />
O discurso elaborado pelas sufragistas reclama outro papel político para as<br />
mulheres e também se vale da oposição antigo\moderno na medida em que promove,<br />
na sociedade brasileira, reflexões sobre o papel e o lugar que caberia as mulheres na<br />
família e na comunidade.<br />
Mesmo em situação de isolamento dos grandes centros urbanos, os ideais<br />
sufragistas e a reflexão sobre o papel da mulher na sociedade e na família se fizeram<br />
sentir em Goiás e o movimento feminista reuniu goianas para reclamar um novo status<br />
às mulheres. Rocha e Bicalho (1999) discorrem sobre a movimentação de mulheres<br />
goianas em torno do voto feminino na velha capital, no Gabinete Literário Goiano.<br />
Lá estiveram<br />
Uma equipe de mulheres valorosas, que batalhavam pela emancipação da mulher, cuja<br />
diretoria era formada por pessoas ilustres como Consuelo Caiado, Maria Plecat,<br />
Angélica dos reis Gonçalves. A pauta de assunto do dia era o voto feminino, tema que<br />
será o embrião da luta pelo sufrágio universal. Ela adere e participa do movimento. Aos<br />
18 anos recebeu seu titulo eleitoral das mãos daquelas mulheres em solenidade.<br />
(ROCHA E BICALHO, 1999, p. 16).<br />
Kofes (2001) também encontra registros sobre a atuação da goiana Consuelo<br />
Caiado junto à Sociedade para o Progresso Feminino, fórum instituído na antiga capital<br />
do Estado, e sua vinculação à Bertha Lutz, feminista e Presidente da Federação<br />
Brasileira para o Progresso Feminino, situando a trajetória de Consuelo nesse embate<br />
de forças entre antigo e moderno. A oposição entre o moderno e o arcaico influenciará<br />
homens e mulher que viveram a década de 1930. Neste quadro histórico, incluindo a<br />
Cidade de Goiás, se encontravam também o interventor Pedro Ludovico Teixeira e sua<br />
esposa Gercina Borges Teixeira.<br />
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3<br />
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Não obstante os inúmeros registros desse período histórico, as referências na<br />
literatura e na historiografia goiana, mesmo quando relacionadas ao personagem<br />
Pedro Ludovico Teixeira raros são aqueles que, com exceção da obra de Oriente (1980),<br />
tratam com exclusividade da experiência e da trajetória de Gercina Borges Teixeira. As<br />
narrações, quando encontradas, limitam-se ao seu espírito generoso e cristão, ao seu<br />
papel de suplementadora.<br />
Entre aqueles que com ela conviveram, Gercina era tida como mulher bem<br />
formada, culta, com capacidade para mobilizar a sociedade goiana e liderá-la em apoio<br />
às causas sociais locais ou de interesse nacional. E mais, é reconhecida como mulher<br />
habilmente capaz de organizar eventos sociais com a finalidade de produzir a coalizão<br />
dos grupos políticos atuantes na época. Ainda assim, nessas memórias, Gercina Borges<br />
é tratada como suplementadora, colocada em lugar secundário e suas habilidades são<br />
reconhecidas como características de boa esposa.<br />
O silêncio que cerca Gercina gerou um processo de esquecimento, contestado<br />
por memórias subterrâneas, que resistem entre as pessoas comuns de seu quadro de<br />
referência, não sendo raro se lembrarem dela quando são citadas a Santa Casa de<br />
Misericórdia, o Bairro Popular, a Vila Nova e seus migrantes, as campanhas em prol dos<br />
soldados brasileiros em guerra. Tais citações e referências, no entanto, se limitam às<br />
suas ações assistencialistas e ao reconhecimento de um espírito caridoso, abnegado,<br />
imbuído de sentimento maternal exacerbado. Mesmo diante das inúmeras obras,<br />
serviços e campanhas em que se envolveu, suas ações foram sempre identificadas<br />
como próprias da caridade cristã, conferem-lhe a condição de suplentadora, comum às<br />
esposas, e destituem-na de motivações outras.<br />
A tentativa de dar-lhe visibilidade despertou o desejo de rever e reescrever<br />
esses mesmos contextos, reconstruindo a trajetória dessa mulher por meio da<br />
memória e da narrativa histórica, numa tentativa de, se possível, redefinir seu papel e<br />
sua história, comparando sua trajetória com as de outras mulheres que tenham, em<br />
Goiás, ocupado posição semelhante, sem, no entanto, terem sido silenciadas.<br />
Para Kofes (2001) há, em certos contextos sociais, uma tendência de não narrar<br />
alguém, de esquecer certos personagens considerando-os secundários, como quê<br />
produzindo sua ‘morte’ pela ausência da narrativa. Esse esquecimento não é casual, ele<br />
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4<br />
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ocorre na “presença de embates políticos, permeando a constituição das narrativas e<br />
permeando a lembrança e o esquecimento” (KOFES, 2001, p. 12).<br />
Há, segundo Schwob (1997), entre os pesquisadores, principalmente entre os<br />
biógrafos, uma tendência, de supor que somente “a vida dos grandes homens podia<br />
nos interessar” (SCHWOB, 1997, p. 23), por isto mesmo suprimiram dos registros<br />
históricos muitos relatos que, por vezes, deixaram dúvidas sobre certos indivíduos,<br />
personagens.<br />
Essa tendência, já identificada pelos pesquisadores 4 , fez com que a ciência<br />
histórica, até determina período, relatasse somente os pontos em que certos<br />
indivíduos se ligavam às ações gerais, permanecendo muda sobre muitos fatos e<br />
pessoas, valorizando e registrando fatos e acontecimentos a partir da perspectiva dos<br />
atores portadores de certos sinais de poder e prestígio, socialmente reconhecidos.<br />
Tomada dessa forma, em uma sociedade que valoriza a guerra, foram os indivíduos<br />
portadores de grande coragem e capacidade para o planejamento tático reverenciados<br />
em detrimento dos demais; nos grupos sociais em que os homens têm primazia na vida<br />
política e social, essa tendência fez com que os registros se limitassem,<br />
individualmente, a seus feitos.<br />
A narrativa histórica tendeu, a partir desta perspectiva, segundo Corrêa (1995),<br />
a relegar outros personagens ao esquecimento ou a uma posição secundária no quadro<br />
histórico em que viveram e atuaram. A memória resumiu assim aos monumentos<br />
apoteóticos, as datas e aos personagens constantemente relembrados e que<br />
constituem o que Halbwachs (1990) chamou de memória oficial, ou seja, a memória<br />
coletiva nacional.<br />
Assim, acontecimentos, cidadãos e grupos sociais, pela força da narrativa<br />
histórica, viram-se dela excluidos, esquecidos, ou quando presentes, ocupando lugar<br />
secundário. Trabalhadores, grupos étnicos e as mulheres formaram os excluidos da<br />
memória oficial e por isso mesmo, nos seus registros, perderam visibilidade.<br />
Relegadas ao esquecimento, ou a posições secundárias dadas, sobretudo pelos<br />
valores que, em certos contextos, orientaram a ação coletiva, incluindo os<br />
4 Hunt, ao tratar das influências dos paradigmas marxistas e dos “Annales” na história, chama a atenção<br />
para o fato da historiografia tradicional basear-se em pesquisa de fontes oficiais e centrar-se na narrativa<br />
dos líderes políticos, negligenciando “a história vinda de baixo”. Ver Hunt (1992).<br />
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5<br />
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enquadradores, as mulheres, nas sociedades patriarcais 5 , mantiveram-se à sobra dos<br />
nomes de seus pais, maridos, sendo reconhecidas socialmente pela identidade<br />
masculina as quais estavam ligadas no quadro social geral. Nas situações de<br />
casamento, o renome, dado pela adotação do nome de seus maridos, leva as esposas à<br />
perda de grande parte da identidade da qual são portadoras. O renome torna então<br />
difícil a tarefa de descobri-las e de narrá-las na medida em que leva as mulheres a<br />
assumir um papel secundário, suplementar e, ou facilitadora, das tarefas a que se<br />
propõem seus esposos, não lhes permitindo assim, ser reconhecidas como autoras de<br />
grandes feitos e habilidades. Ao serem renomeadas as “mulheres se tornam então<br />
esposas, e passam a ser assim também a ser consideradas pelos outros” (CORRÊA,<br />
1995, p. 114)<br />
Dada a generalidade da condição de esposa (esposa pode ser qualquer uma),<br />
essa nova posição social produz uma instabilidade capaz de levar a perda da<br />
identidade. A fragilidade da “esposa”, principal identidade social para as mulheres,<br />
limita de modo considerável, as chances de manter uma identidade social própria,<br />
fundada pelo próprio nome, ou seja, da qual o seu nome é o fundamento, ficando<br />
assim então tais indivíduos expostos aos riscos do desaparecimento do seu quadro de<br />
referência histórica. As mulheres em certas sociedades, assim como outros membros<br />
das minorias sociais, são, portanto, excluídas do foco da narrativa e servem como<br />
agentes sociais capazes de dar vida a outros atores sociais. Isso pode explicar o fato de<br />
que sobre certos personagens tenham-se somente rastros, indícios no contexto dos<br />
registros dos personagens portadores de sinais de poder.<br />
Priore (2000) atribui a invisibilidade das mulheres na história à sua associação<br />
com os grupos minoritários, tidos como os “de baixo”, e Abreu (2002), ao descrever a<br />
condição feminina em Goiás, ressalta a submissão das mulheres goianas ao ambiente<br />
doméstico, tido como privado, e ao universo masculino em esposos, pais e irmãos têm<br />
primazia.<br />
Não obstante a tendência dos biógrafos e das ciências históricas em descrever<br />
aquelas personalidades identificadas como os grandes homens de um tempo, os<br />
pesquisadores atuais, especialmente nos últimos quinze anos, têm estabelecido uma<br />
5 Para Castells o patriarcalismo caracteriza-se pela autoridade masculina, exercida pelo uso da força e da<br />
sujeição pessoal, sobre o ambiente familiar, a mulher e filhos. Ver Castells (1999).<br />
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6<br />
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disputa entre a memória oficial e uma memória subterrânea, que faz empatia com os<br />
marginalizados, “os de baixo”, de modo a reabilitá-los. Em função disso não são raras<br />
as reconstruções de trajetórias, narrativas e quadros de referências históricas a partir<br />
da experiência de sujeitos que dele tomaram parte sem que no instante da narrativa<br />
oficial lhes fossem atribuida importância e destaque. Pois, mesmo com a imposição de<br />
uma memória coletiva, identificada como sendo a memória nacional, pode subsistir no<br />
grupo memórias subterrâneas capazes de superar o quadro histórico de referência e<br />
rememorar exatamente aquilo/aqueles que um “os enquadradores de uma memória<br />
coletiva em um nível mais global se esforçam por minimizar ou eliminar” (POLLAK,<br />
1989, p.12). A persistência dessa memória subsumida nas narrativas oficiais denuncia<br />
conflitos e competição entre as memórias – memória oficial e memória subterrânea.<br />
Assim, mesmo diante da invisibilidade das mulheres na sociedade patriarcal<br />
...isso era apenas mera aparência, pois, tanto na vida familiar, quanto no mundo do<br />
trabalho, as mulheres souberam estabelecer formas de sociabilidade e de solidariedade<br />
que funcionavam, em diversas situações, como uma rede de conexões capazes de<br />
reforçar seu poder individual e grupal, pessoal ou comunitário.(PRIORE, 2000, p. 10).<br />
A igreja, as quermesses e as ações beneméritas patrocinadas por esta<br />
instituição apresentam-se então como loci nos quais as mulheres podiam agir<br />
publicamente sem que se vissem ameaçadas moralmente por pré-julgamentos capazes<br />
de associar suas habilidades (diplomacia, organização, liderança, articulação) a falta de<br />
recato, virtude e feminilidade 6 .<br />
É nesse universo da solidariedade cristã e religiosidade que encontraremos<br />
todas as referências a Gercina Borges Teixeira, esposa de Pedro Ludovico Teixeira,<br />
primeira-dama do estado goiano por 15 anos ininterruptos e, posteriormente, por mais<br />
quatro, quando seu esposo foi eleito governador de Goiás. No universo da<br />
religiosodade, Gercina teve sua rede tecida, toma parte da memória coletiva e sua<br />
lembrança sobreviveu então ao seu tempo histórico.<br />
Na historiografia e nas notas da imprensa goiana são inúmeros os registros que<br />
fazem referência à ela, porém, freqüentemente, as citações não extrapolam ao<br />
6 Ver Abreu (2001)<br />
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7<br />
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econhecimento de suas virtudes cristãs e morais. De “mulher abnegada” 7 , “excelente<br />
pessoa” 8 , “forte e digna” 9 , “mãe dedicada” 10 , “mulher religiosa” 11 à “mãe dos pobres” 12<br />
não faltam referências à caridosa Dona Gercina e às suas ações beneméritas<br />
empreendidas no sentido “de dar conforto aos pobres” 13 , aos migrantes 14 que<br />
chegavam a nova capital e também aos mais necessitados do interior e de outros<br />
estados e nações 15 .<br />
Mas, são nas memórias de José Júlio Guimarães Lima, relatadas a Teles (1986), e<br />
naquelas da Apresentação de Venerando de Freitas Borges, em Oriente (1980), que é<br />
possível delinear o problema da pesquisa na “Gercina: lacunas de uma narrativa”. Eis<br />
aqui partes destas reminiscências que interessam nesta pesquisa:<br />
Ignoro quais os homens que tiveram influência sobre Pedro Ludovico, mesmo porque<br />
sua personalidade era por demais forte. Parece-me todavia, que ele ouvia Dona<br />
Gercina, mesmo porque, dizem, que atrás de grandes homens há sempre uma<br />
mulher.(TELES, 1986, p. 102).<br />
Não há que contestar que Dona Gercina foi uma personalidade forte. Enérgica, sem ser<br />
agressiva; franca, sem ser autoritária; esclarecida e equilibrada; solidária e dotada de<br />
incomum senso político. (ORIENTE, 1980, p. 16).<br />
Tomando-as como referência e confrontando com o mito da mulher fervorosa e<br />
de alma caridosa que permitiu que as lembranças dessa mulher resistissem ao tempo<br />
na memória coletiva, a pesquisa se propõe a desconstruir o mito “Gercina mãe dos<br />
pobres” e reconstruir sua trajetória de vida em seus diferentes tempos – tempo<br />
biográfico e história coletiva – numa tentativa de integrar o desconhecido, silenciado<br />
nas narrativas oficiais, ao seu conteúdo. E mais, no decorrer da reconstrução, fazer um<br />
paralelo entre sua trajetória e a de outras mulheres da política goiana que, tendo<br />
ocupado a mesma posição social, a de primeira-dama, emergiram do renome e da<br />
condição de suplementadoras e revelam experiências e trajetórias diferentes.<br />
7<br />
Teles (1986), p. 71<br />
8<br />
idem., p. 83.<br />
9<br />
ibid., p. 102<br />
10<br />
Oriente (1980), p 30.<br />
11<br />
idem.<br />
12<br />
idem, p. 15 e 26.<br />
13<br />
idem, p. 15 e 26<br />
14<br />
idem, p. 15 e 26<br />
15<br />
Menezes (2004).<br />
capa índice GT1<br />
8<br />
77
A pesquisa tem como referencial teórico a produção bibliográfica sobre<br />
trajetória e memória, buscando pensar a sociedade goiana a partir dos atores<br />
individualmente considerados, para então estabelecer os nexos entre a trajetória,<br />
tempos (tempo biográfico e tempo social/história coletiva) e a sociedade. Se trata<br />
portanto de estabelecer nexos entre experiências particulares e sociedade.<br />
Toma como referencia então inicialmente os trabalhos de Maurice Halbwachs<br />
(1990) e Michael Pollak (1989), bem como daqueles produzidos por Mariza Corrêa<br />
(1995) e Suely Kofes (2001), apoiando-se nos conceitos de trajetória, memória coletiva,<br />
memória histórica, ou memória oficial, memória subterrânea e identidade. Como<br />
contraponto, faz uma discussão sobre os processos que culminam com o esquecimento<br />
e o silêncio ao qual são lançados certos personagens, nesse caso, em especial, Gercina<br />
Borges.<br />
Para efeito desta investigação, por trajetória se considera, o referencial adotado<br />
por Suely Kofes (2001), para quem trajetória é “o processo de configuração de uma<br />
experiência social singular”( p. 27), no qual se constroi ou reconstroi, por meio das<br />
indagações sobre uma pessoa, sua experiência e seu tempo social.<br />
Halbwachs (1990) considera que a memória é o passado vivido, é uma<br />
construção no presente de experiências e vivências no passado e que mesmo as<br />
lembranças mais individuais são constituídas no interior de um grupo. Idéias,<br />
sentimentos que a princípio são atribuídas ao sujeito, são na verdade suscitadas pelo<br />
grupo, referem-se a um ponto de vista sobre a memória coletiva. As lembranças podem<br />
ser reconstruídas e simuladas, criando representações do passado, expandindo<br />
percepções acerca desse passado a partir de informações prestadas por outros<br />
indivíduos do mesmo grupo.<br />
A memória coletiva não se resume a datas e aos acontecimentos importantes<br />
da história de uma sociedade. Esta é, para Halbwachs (1990), a memória histórica que<br />
pode está longe das percepções individuais. Ela atravessa as datas, monumentos e<br />
acontecimentos para aglutinar também a experiência, gostos, cheiros, idéias. É a soma<br />
de todas as memórias individuais, por isso mesmo, considera que as experiências não<br />
devem ser hierarquizadas ou desprezadas. A soma das varias memórias individuais<br />
permite a constituição de um quadro total em que tudo merece ser enfatizado e<br />
transcrito.<br />
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9<br />
78
A abordagem a Gercina incorpora os pressupostos relacionados a idéias de<br />
memória subterrânea, sistematizada por Michael Pollak (1989), relacionadas às<br />
experiências dos grupos marginalizados, das minorias e dos oprimidos, ou seja, das<br />
camadas populares, e que são negadas pela memória oficial, a memória nacional, e por<br />
isso mesmo a pesquisa recorre, além de fontes como registros biográficos, a<br />
historiografia, a literatura goiana e as chamadas fontes orais, artefatos da personagem,<br />
a história oral e ao testemunho.<br />
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