A Metáfora Opaca – 1º capitulo – (texto parcial) - Franklin Goldgrub
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<strong>1º</strong> capítulo - (<strong>texto</strong> <strong>parcial</strong>)<br />
www.franklingoldgrub.com<br />
O oráculo e a esfinge<br />
A <strong>Metáfora</strong> <strong>Opaca</strong> -<br />
franklin goldgrub<br />
Assim, o analista que evocasse a situação analítica como algo de real e<br />
falasse do amor de sua paciente como alguma coisa ilusória não teria<br />
muita autoridade, justamente no momento em que acreditava exercê-la<br />
(...)<br />
(...) o amor de transferência é, além do mais, um sintoma como qualquer<br />
outro, e será preciso admitir, então, que os sintomas são mais ou menos<br />
'normais' .[1]<br />
Mais do que as divergências teóricas, o principal indício da diversidade de<br />
abordagens psicanalíticas é a ausência de consenso metodológico.<br />
Apesar disso, os autores que se dedicam ao tema, não importa sua<br />
filiação (kleiniana, lacaniana, "ortodoxa"), jamais deixam de apontar a<br />
transferência como o principal diferencial da intervenção psicanalítica em<br />
relação às outras modalidades psicoterápicas.<br />
Em compensação, o próprio conceito de transferência varia<br />
conforme o enfoque teórico. A ótica lacaniana apresenta o analisando
como um pirata intelectual cuja intenção, mais do que a transformação<br />
pessoal, é apropriar-se do saber que atribui ao psicanalista. Os kleinianos<br />
exumam as emoções arcaicas de que acreditam ser alvo enquanto os<br />
freudianos, por sua vez, procuram enquadrar as manifestações afetivas do<br />
paciente nos vértices do triângulo edipiano.<br />
Tais diferenças, porém, não alteram o fato de que todas as<br />
correntes compartilham do mesmo pressuposto. Os sentimentos dirigidos<br />
ao analista prevalecem sobre qualquer outro tema na abordagem padrão<br />
da psicanálise contemporânea. A descoberta do fenômeno transferencial,<br />
feita por Freud a partir de uma reflexão retrospectiva sobre o caso Dora<br />
[2], integrou ao âmbito da intervenção clínica falas até então tidas como<br />
extrínsecas ao tratamento, porque diziam respeito a questões factuais,<br />
contratuais e... a um inesperado interesse do divã pela poltrona.<br />
É comum que o paciente inicie sua incursão "extra-muros" fazendo<br />
perguntas teóricas ou metodológicas. Não raro pretende discutir, durante<br />
a própria sessão, mudanças de horário e preço, bem como reposições e<br />
arranjos de férias. A tentativa de mesclar o processo analítico com o que<br />
poderia parecer uma temática extrínseca costumeiramente precede a<br />
intensificação de expectativas referentes a um contato mais pessoal.<br />
Até perceber que essas atitudes inocentes transportavam<br />
mercadoria contrabandeada, digna da maior atenção, Freud considerava<br />
como material legítimo da alfândega psicanalítica apenas as queixas,<br />
relatos sobre a vida afetiva, descrições de sintomas e conflitos, fantasias<br />
sexuais, recordações de infância, sonhos e atos falhos. A extensão da<br />
escuta rigorosa a todo e qualquer conteúdo representa uma aplicação<br />
coerente dos conceitos associação livre e atenção flutuante, pilares do<br />
método psicanalítico.
Como se sabe, a regra fundamental existe para ser transgredida. Em<br />
relação aos pacientes, os silêncios, atrasos, faltas, atuações e falas<br />
truncadas são perfeitamente compreensíveis - a resistência foi uma das<br />
primeiras evidências com que Freud se deparou. Quanto aos<br />
psicanalistas, a tendência a hierarquizar e priorizar determinados temas,<br />
em obediência a esta ou aquela concepção teórica, carece de qualquer<br />
justificativa. Se no momento de sua descoberta a transferência<br />
representou um avanço metodológico considerável na medida em que<br />
resultou na inclusão de todo e qualquer conteúdo no âmbito da<br />
associação livre, sua hipertrofia levou à situação exatamente oposta. Hoje,<br />
o interesse quase exclusivo pelas expectativas afetivas do paciente detém<br />
a principal quota de responsabilidade pela transformação do divã no<br />
proverbial leito de Procusto.<br />
Em seus primórdios, a psicanálise seguia o modelo médico tradicional,<br />
que distinguia ciosamente o joio (contato pessoal) do trigo (dados<br />
clínicos). (A posterior valorização do rapport relativiza mas não elimina<br />
essa distinção, que permanece vigente em medicina). Quanto à<br />
psicanálise, na medida em que a fantasia, em sua concepção inicial, era<br />
concebida como deformação das recordações infantis, os relatos de<br />
eventos transcorridos no presente eram considerados de menor interesse,<br />
porque "lógicos" e "objetivos". Graças à escuta da transferência é que<br />
puderam ser incorporados à jurisdição da clínica. Daí em diante o<br />
interesse deslocou-se não só do passado para o presente mas também,<br />
algo menos notado, do discurso para a afetividade. Essa dupla<br />
perspectiva passou a guiar a compreensão do material associativo. Em<br />
acréscimo, quando o enfrentamento da resistência tornou-se prioridade<br />
máxima, a transferência adquiriu importância ainda maior visto que Freud<br />
não tardou em reconhecê-la como a mais significativa das defesas.
Quando o passado era o objeto por excelência da escuta psicanalítica, as<br />
manifestações transferenciais, contemporâneas do tratamento, portanto<br />
"reais" e atuais, se afiguraram como obstáculo aparentemente<br />
intransponível. Pareciam inviabilizar o processo psicanalítico da mesma<br />
forma que o grito de incêndio esvazia os teatros, segundo uma<br />
comparação sugestiva feita pelo próprio Freud.<br />
Uma vez entendida como radiografia do padrão emocional, a<br />
transferência começa sua ascensão irresistível ao zênite do firmamento<br />
metodológico, na qualidade de objeto principal (e na perspectiva kleiniana<br />
talvez único) da intervenção clínica. A confiabilidade dos relatos acerca da<br />
infância havia sido abalada pela descoberta das distorções da memória, a<br />
que se deu o nome de fantasia.[3] Considerou-se então que seria possível<br />
deduzir as vivências infantis das modalidades de vínculo estabelecidas<br />
entre os ocupantes do divã e da poltrona. Os psicanalistas kleinianos<br />
promoveram a transferência ao duplo estatuto de objeto e instrumento da<br />
prática clínica. Desenvolveu-se uma nova atitude metodológica, a de<br />
identificar os próprios sentimentos, entendidos como reativos, para<br />
melhor auscultar os do paciente.<br />
Assim descrita, a transferência parece permitir acesso ao que há de mais<br />
concreto na situação clínica e de mais recôndito na afetividade do<br />
paciente - a matriz da afetividade, construída na primeira infância. Com<br />
efeito, se a descoberta da fantasia aproximou acontecimento e ficção a<br />
ponto de torná-los indiscerníveis, os sentimentos aferíveis no hic et nunc<br />
da sessão devolvem ao psicanalista a segurança de estar diante da<br />
realidade, com a vantagem suplementar de permitir-lhe sondar<br />
diretamente, em carne e osso, o padrão de relacionamento afetivo<br />
governado pelas vivências primárias.
Entretanto, se a indagação acerca das emoções transferenciais amplia a<br />
jurisdição da associação livre, por outro lado resulta numa escuta seletiva<br />
que colide com a atenção flutuante.<br />
O modelo clínico fundado na análise da transferência<br />
consubstanciou-se numa prática freqüentemente padronizada, visto que<br />
guiada por conceitos teóricos. O psicanalista equipado com o contador<br />
Geiger transferencial tende a desconsiderar o sentido subjacente às<br />
associações livres e se concentra no objetivo de conhecer as causas do<br />
conflito, supostamente situadas na infância. Acredita que o mapeamento<br />
dos sentimentos transferenciais permitirá compreender as relações<br />
objetais do paciente mediante a identificação de suas origens.<br />
O questionamento dessa atitude soará como uma heresia para aqueles<br />
que se mantêm fiéis ao modelo médico. Todavia, não é difícil perceber<br />
que a preocupação com a etiologia e o diagnóstico insufla nova vida ao<br />
conceito de realidade material, incompatível com a interpretação, cujo<br />
objeto é o discurso, ou seja, a realidade psíquica. Possivelmente esse<br />
estado de coisas resulta de que a interrogação sobre o sentido, proposta<br />
metodológica de A Interpretação dos Sonhos, não foi estendida a<br />
conteúdos não oníricos. Se, como observa Octave Mannoni, a<br />
interpretação é o ato pelo qual se reconhece o psicanalista, a psicanálise<br />
pós-freudiana (quer kleiniana, lacaniana ou de qualquer outra extração),<br />
parece convencida de que se deve "ir além" da associação livre e<br />
empenha seus esforços em descobrir esse "plus". A psicanálise pós-<br />
interpretativa se transforma numa "pós-psicanálise".<br />
Cabe suspeitar, porém, que a renúncia à interpretação deve-se sobretudo<br />
à falta de compreensão e conhecimento, que por sua vez decorre da<br />
inexistência de uma teoria do método.
Interpretação e transferência no caso Dora<br />
O caso Dora inspirou numerosas reflexões, tanto teóricas como<br />
metodológicas. Deste último ponto de vista, parece ter tido a função de<br />
demonstrar que o psicanalista não pode restringir-se a interpretar as<br />
associações mas precisa manter-se atento sobretudo àqueles aspectos<br />
da fala do paciente que tem por referência a própria situação terapêutica.<br />
Foi à desatenção com os sentimentos da jovem em relação a ele - bem<br />
como a um possível erro de interpretação[4] - que Freud atribuiu a<br />
interrupção do tratamento.<br />
Temos assim duas explicações para o fim precoce da análise de Dora. Em<br />
vias de enamorar-se pelo analista, na esteira de sua relação com o sr. K.,<br />
Dora deixou o divã no intuito de preservar a paixão infantil pelo pai ou,<br />
bem diferentemente, para evitar saber a respeito de seus sentimentos<br />
pela senhora K. (A última hipótese postula a identificação de Dora com o<br />
pai, amante da Sra. K.).[5]<br />
Os dois sonhos de Dora manifestam sua recusa em deixar a redoma<br />
familiar. No primeiro, o perigo representado pela relação com o casal K. é<br />
metaforizado pelo incêndio do chalé e no segundo o interesse pelo<br />
casamento (a cidade desconhecida onde ela vagueia) é interrompido pela<br />
urgência de retornar a Viena (à relação com o pai).<br />
Freud parece ter extraído da análise de Dora a lição de que interpretar é<br />
insuficiente para vencer a resistência. O surpreendente é que, apesar<br />
disso, a redação do caso foi empreendida com a finalidade explícita de<br />
exemplificar o papel da interpretação de sonhos no procedimento clínico,<br />
a ponto de poder ser considerado um apêndice ao famoso livro de 1900.<br />
A hesitação entre interpretar ou ficar à espreita da transferência, questão
que nasce com Dora, retrata não apenas a dificuldade específica desse<br />
caso mas um impasse não solucionado que perdura na psicanálise<br />
contemporânea.<br />
Lacan observou que a resistência ao tratamento é sempre a resistência do<br />
psicanalista. Que o paciente freqüentemente "nada queira saber" é<br />
bastante compreensível (a resistência é legítima e faz parte da situação). A<br />
contra-transferência do analista costuma manifestar-se simultaneamente<br />
pelo "querer saber" e pelo "querer curar".<br />
A "recusa em expor-se" pode ser descrita, em termos genéricos, como<br />
um pedido de amor (daí a postura do psicanalista ser julgada fria e<br />
distante), que ao não ser atendido pode transformar-se em hostilidade. O<br />
apelo afetivo tem várias acepções: proteção, amizade, preferência,<br />
cooperação, aconselhamento, orientação, ajuda, cumplicidade e inclusive<br />
amor no sentido comum da palavra. Em última instância significa: "Aceite-<br />
me como sou, não exija que eu me transforme".<br />
A contra-transferência como resistência do analista está presente no caso<br />
Dora. A herança médica de Freud não poderia deixar de manifestar-se<br />
dessa forma. O desejo de curar e a preocupação em demonstrar a<br />
cientificidade da psicanálise o impeliam nessa direção. O querer-saber<br />
refere-se à causalidade imediata (quem é o verdadeiro objeto da paixão<br />
reprimida?) e o querer-curar tem por matriz a suposição etiológica de que<br />
Dora sofria de uma ligação excessiva ao pai. Esta, portanto, deveria ser<br />
combatida. Freud, em conseqüência, exibe uma empenhada militância<br />
anti-edipiana e procura convencer a moça de que ela está enamorada do<br />
marido da amante do pai, sentimento que em parte colide e em parte<br />
deriva de sua paixão infantil - mas que, em todo caso, parece-lhe menos<br />
"grave".
Quando Dora deixa a análise, Freud faz a pergunta que desde então será<br />
repetida muitas vezes pelos psicanalistas: "Onde foi que eu errei"?[6]<br />
Conjectura então que o objeto do amor secreto, causa do conflito, não<br />
era o senhor K. mas sua esposa. A metodologia não é questionada; Freud<br />
acredita ter cometido apenas um erro de atribuição. Lacan, ao debruçar-<br />
se sobre a questão, concorda com a auto-crítica freudiana. Para ele,<br />
Dora, como boa histérica, ama a Sra. K. Essas suposições mostram a<br />
adesão de ambos, Freud e Lacan, a uma concepção clínica<br />
diagnosticante. O conflito de Dora resultaria quer da ligação ao pai quer<br />
da identificação com ele, e se expressaria pelo desejo e pela recusa<br />
simultâneos de um(a) substituto(a) da figura paterna.<br />
A hipótese não deixa de ser plausível em termos de atribuição causal<br />
tendo em vista a "realidade" dos sentimentos de Dora. O problema é que<br />
se trata de algo irrelevante. Pois cabe perguntar se pertence ao escopo<br />
de uma análise estabelecer a quem se dirige tal ou qual sentimento<br />
recalcado. Se a resposta for afirmativa, ela inclui a suposição que as<br />
associações livres serviriam como pistas para identificar o "verdadeiro"<br />
padrão afetivo.<br />
Algo bem diferente resulta da concepção de que as associações livres<br />
constituem o conteúdo manifesto de um sentido específico a ser<br />
desvendado em cada ocasião. Nessa perspectiva não se trataria de saber<br />
quais são os "verdadeiros sentimentos"[7] de quem se analisa mas, bem<br />
diferentemente, que sentido subjaz ao que se manifestou na "sessão" em<br />
questão.<br />
"Recomendações aos médicos que praticam a psicanálise"[8], um dos<br />
artigos sobre técnica, publicado sete anos depois, preconiza uma postura<br />
clínica que a psicanálise contemporânea parece ter abandonado.
Enquanto o trabalho está em andamento, escreve Freud, o psicanalista<br />
deve abster-se de construir hipóteses abrangentes, evitando avaliações e<br />
prognósticos.[9] Em Dora, Freud ainda aderia à atitude médica por<br />
excelência; a insistência em fazer com que a paciente admita seu amor<br />
pelo Sr. K. lembra um xarope empurrado goela abaixo. O procedimento<br />
não parece muito adequado, principalmente quando a própria transcrição<br />
das sessões revela um material (o segundo sonho, por exemplo) bem<br />
mais rico.<br />
Pode-se dizer que Freud, acreditando ter chegado ao âmago do conflito,<br />
impõe o seu saber como uma espécie de remédio que a paciente deve<br />
aceitar para curar-se. Priva-se assim de entrar em contato com a<br />
especificidade de cada sessão, concedendo mão preferencial à hipótese<br />
genérica. Supor que houve um erro (a Sra. K. é que seria o verdadeiro<br />
alvo da paixão proibida) apenas altera o diagnóstico e deixa intacta a<br />
atitude.<br />
A plausibilidade da hipótese genérica não esgota a compreensão do<br />
conflito. Duas observações podem ser feitas a esse respeito:<br />
primeiramente, a ligação ao pai talvez seja uma metáfora representando a<br />
identidade de filha, que Dora tem dificuldade em abandonar; por outro<br />
lado , os sentimentos dirigidos ao Sr. K. (e/ou à Sra. K.) servem de<br />
metáfora à identidade feminina. Em pleno conflito, Dora não adere nem<br />
renuncia plenamente a qualquer dessas posições.<br />
Tais raciocínios não pretendem ampliar ou substituir os diagnósticos de<br />
Freud e Lacan. Visam assinalar que a causa, em psicanálise, somente<br />
pode ser concebida genericamente - e conseqüentemente seu valor<br />
clínico é nulo. O conflito entre infantilidade e condição adulta constitui o<br />
conflito por excelência[10].
Trata-se de uma afirmação aplicável, na perspectiva psicanalítica, ao<br />
conjunto dos seres humanos. Mas, por outro lado, suas manifestações se<br />
revestem de características absolutamente singulares, que é o que<br />
interessa ao trabalho clínico. Em decorrência, cabe reconhecer que o<br />
material de cada sessão é único.<br />
A noção de repetição, muito difundida em psicanálise, refere-se sempre<br />
ao conteúdo manifesto e reflete muito mais o desejo de saber do analista<br />
bem como a correspondente dificuldade de ouvir sem preconceitos. O<br />
método psicanalítico se destina a captar a especificidade de cada<br />
conjunto de associações livres, para o que faz-se preciso renunciar à<br />
pretensão de qualquer expectativa prévia, tanto por motivos práticos<br />
como éticos.[11]<br />
Cabe perguntar a que descoberta se consagra o método. Os adeptos da<br />
análise de transferência apontariam os sentimentos e emoções arcaicos<br />
como alvo privilegiado da escuta, que se assemelharia assim a uma<br />
prática pedagógica dedicada à superação dos resíduos infantis.[12] Para<br />
tanto seria necessário enfrentar as defesas que, a pre<strong>texto</strong> de preservar<br />
uma auto-imagem favorável, protegem a autonomia dos feudos edipianos<br />
ou pré-edipianos face aos decretos do eu adulto. Uma a uma as<br />
máscaras de uma maturidade falsa ou incompleta deveriam ser retiradas<br />
para aceder a essas regiões onde predomina a afetividade primária<br />
caracterizada pelo maniqueísmo, a expectativa de amor incondicional, o<br />
narcisismo, a onipotência, a desconsideração pelo desejo do outro, o<br />
temor à rejeição, a angústia da separação, a ambivalência, a clivagem,<br />
etc.<br />
A referida enumeração e sua terminologia indicam por si sós o teor<br />
moralizante dessa concepção, bem como a escala de valores subjacente.
Trata-se de uma perspectiva que apenas substitui a postura religiosa<br />
(condenação do prazer pecaminoso e preconização da virtude) pela<br />
psiquiátrica (condenação da "infantilidade" e preconização da<br />
"maturidade"). Como acontece com qualquer noção valorativa, não existe<br />
definição consensual de 'prazer', 'maturidade', 'recalque, 'infantilidade'<br />
ou 'perversão'. O psicanalista que adota esse enfoque acabará por<br />
operacionalizá-lo mediante critérios pessoais.<br />
O diagnóstico de sentimentos e atitudes se apóia numa perspectiva<br />
teórica inspirada na medicina, pautada pelas noções de saúde (ou<br />
"equilíbrio") e doença (ou "comprometimento"). Correspondentemente,<br />
também visa a "cura" (por transformação da infantilidade em maturidade).<br />
Como não ver nesses critérios a presença de uma contra-transferência<br />
que, como se diz habitualmente da transferência, já está presente antes<br />
do começo da análise? Não é de surpreender que, tratado como uma<br />
criança, o ocupante do divã seja compelido à rebeldia e à submissão, ao<br />
amor e ao ódio, à idealização e à projeção, à admiração e à decepção, à<br />
proteção e ao abandono... Suplementarmente, o paciente é cientificado<br />
que deixar de manifestar tais "emoções primárias" equivale a não se<br />
envolver com o tratamento, resistir-lhe, sabotá-lo.<br />
O fundamentalismo lacaniano<br />
Foi reagindo a esse estado de coisas que Lacan redigiu sua catalinária "A<br />
situação da psicanálise e a formação do psicanalista em 1956". O <strong>texto</strong> é<br />
cáustico em relação às diretrizes dos institutos de psicanálise,<br />
responsáveis por práticas adaptacionistas e a conseqüente capitulação<br />
perante preconceitos e valores morais extrínsecos às questões do<br />
analisando. A essa denúncia da traição do pacto psicanalítico seguem-se<br />
outras críticas, não menos veementes, de teor metodológico. Não é claro
se os exemplos mencionados por Lacan traduzem idiossincrasias deste<br />
ou daquele clínico ou se a invasão da prática por "técnicas" de intuição,<br />
adivinhação, escuta literal e escuta com o 'terceiro ouvido'[13] refletem os<br />
desvios da própria formação. Em todo caso atestam suficientemente as<br />
falhas na transmissão da metodologia bem como uma política de laissez<br />
faire. Para Lacan, quase duas décadas após a morte de Freud, a<br />
psicanálise ingressara num processo de deterioração ética, teórica,<br />
metodológica e epistemológica.<br />
A argumentação é extremamente convincente. Falta-lhe apenas a pá de<br />
cal, ou seja, a comparação com uma atitude metodológica coerente,<br />
para estabelecer o contraste da maneira devida. Como Freud havia<br />
legado exemplos práticos de interpretação mas não uma teoria do<br />
método psicanalítico (apesar de ter formulado dois conceitos básicos,<br />
associação livre e atenção flutuante), seria de se esperar que Lacan, sob o<br />
lema do retorno a Freud, inaugurasse um trabalho de reflexão acerca da<br />
prática freudiana. Não é o que acontece. Quando Lacan se refere às<br />
intervenções de Freud, reconhece a sagacidade, a sensibilidade e<br />
sobretudo a ética do criador da psicanálise, mas diferentemente do que<br />
aconteceu em relação à teoria, cuja inspiração se empenhou em<br />
recuperar, ele não inquire a metodologia freudiana. Em decorrência, não<br />
se encontra nos Escritos nem nos Seminários sequer o esboço de uma<br />
teoria da interpretação. Tal omissão parece mostrar mais uma vez que<br />
Lacan se sente muito mais à vontade no terreno da crítica, da denúncia,<br />
da desconstrução e do sarcasmo, onde seu talento é inegável.<br />
Um especialista em demolições. Talvez a bandeira do retorno a Freud<br />
tenha inibido a discussão de uma prática com a qual Lacan não<br />
concordava - ou não concordava plenamente. Constrangimento? Seja<br />
qual for o motivo, constata-se que, ao contrário do que aconteceu com os
conceitos teóricos, examinados minuciosamente, é inútil vasculhar os<br />
<strong>texto</strong>s lacanianos em busca de uma reflexão sistemática acerca da<br />
'Deutung'.<br />
A alternativa de percorrer vias indiretas tampouco remedia a situação.<br />
Nesse caso, o mais aconselhável seria consultar os numerosos<br />
comentários lacanianos sobre A Interpretação dos Sonhos, principal <strong>texto</strong><br />
metodológico de Freud[14]. Decerto Lacan se debruça sobre os sonhos<br />
da injeção de Irma, da bela açougueira e do filho que está sendo velado,<br />
mas o que está em pauta pouco tem a ver com a discussão<br />
metodológica. É principalmente à tradução dos mecanismos de<br />
condensação e deslocamento pelos conceitos metáfora e metonímia,<br />
inerente à preocupação de levar água ao moinho da definição lingüística<br />
de inconsciente, que suas incursões são consagradas. O<br />
prosseguimento lógico desse esforço, ou seja, a definição da<br />
interpretação como processo intrinsecamente discursivo, não é<br />
empreendido.<br />
Correspondentemente, na mesma época (final da década de 50), os<br />
seminários e escritos passam a veicular cada vez mais freqüentemente o<br />
termo significante, primeiramente como contrapartida lingüística e depois<br />
substituto daquilo que os psicanalistas designam habitualmente por<br />
"inconsciente". É difícil precisar quando a prática clínica lacaniana<br />
promove o significante a objeto de intervenção, mas não deve estar muito<br />
longe desse momento teórico. Tem-se a impressão que se na abordagem<br />
kleiniana o crescente privilégio concedido à transferência acabou por<br />
promover a contra-transferência à função de instrumento, ubiqüidade que<br />
privilegia a afetividade em ambos os pólos da situação clínica, algo<br />
semelhante ocorre com a noção de significante no campo lacaniano. O<br />
discurso do analisando é decomposto em seus elementos mínimos,
sobretudo fonológicos, operação que exige do analista uma intervenção<br />
igualmente oracular, ou seja, esquiva à compreensão. Esta última é<br />
desautorizada enquanto atitude pedagógica subserviente à consciência.<br />
A celebração do significante, inconsciente feito verbo, e sua coroação<br />
como conceito chave, se inscreve na adesão lacaniana ao estruturalismo,<br />
seguindo a via traçada por Roman Jakobson e Claude Lévi-Strauss. À<br />
subversão da lingüistica por Saussure segue-se, meio século depois, a<br />
leitura subversiva do genebrino por Lacan. O signo saussureano é<br />
focalizado com a lente da primeira tópica, de maneira a fazer prevalecer o<br />
significante (inconsciente) sobre o significado (consciente), em seguida<br />
redefinidos como simbólico e imaginário. Nesse momento a<br />
argumentação corre paralela à fórmula epistemológica "o inconsciente<br />
está estruturado como uma linguagem". Como matriz da linguagem, o<br />
significante, emancipado das armadilhas do significado, torna-se o<br />
núcleo do inconsciente.<br />
Na esteira dessas reformulações Lacan enrigece a relação inconsciente/<br />
consciência, subordinando ferreamente o imaginário ao simbólico. As<br />
conseqüências na prática clínica serão consideráveis; tudo o que portar a<br />
presença do significado será considerado espúrio. O significante, por seu<br />
turno, concebido segundo o modelo do fonema, é designado pelo termo<br />
letra, o que lhe assegura proteção face a toda e qualquer questionamento<br />
proveniente da lingüística. O discurso, em vez de ser entendido como<br />
efeito da articulação entre os níveis fonológico, morfológico, sintático e<br />
semântico, é definido como enunciado e nessa medida associado ao<br />
significado. O pecado capital do discurso é o de situar-se na jurisdição da<br />
consciência. A partir daí o destino da interpretação já está traçado.[15]
A retomada da linguagem como objeto e instrumento da prática clínica,<br />
longe de constituir um retorno ao Freud da associação livre e da atenção<br />
flutuante, privilegia o fonema, átomo da linguagem e modelo da letra<br />
lacaniana, encarnação viva do significante , logo do inconsciente[16].<br />
Parece datar desse momento o descarte do discurso como objeto da<br />
intervenção clínica. O lacanismo participa à sua maneira de um<br />
movimento mais amplo que atravessa a psicanálise, cujo denominador<br />
comum é o abandono do procedimento interpretativo formulado com<br />
base no modelo metodológico da interpretação de sonhos. No caso<br />
lacaniano, um dos indícios mais claros dessa escolha é a oposição<br />
conceitual "palavra plena" / "palavra vazia", que do ponto de vista da regra<br />
fundamental constitui um verdadeiro absurdo.<br />
A interpretação cai em desgraça<br />
Nem kleinianos nem lacanianos explicitam os motivos pelos quais o<br />
discurso deva ser eclipsado pela transferência e pelo significante, mas não<br />
é improvável que isso decorra da ausência de uma teoria dedicada à<br />
compreensão da articulação entre manifestação e latência. A afirmação<br />
pode surpreender, mas se A Interpretação dos Sonhos consta de<br />
numerosos exemplos ilustrativos do método formado pelo par associação<br />
livre/atenção flutuante, é preciso reconhecer, por outro lado, que nem<br />
nesse nem em qualquer outro <strong>texto</strong> de Freud se encontra o equivalente a<br />
uma reflexão sistemática sobre o método interpretativo e suas condições<br />
de possibilidade. Além disso, e apesar de algumas passagens em que<br />
Freud afirma que a interpretação de sonhos constitui o modelo do próprio<br />
método psicanalítico, a utilização do procedimento interpretativo em<br />
relação a conteúdos não oníricos, mesmo se eventualmente praticada,<br />
jamais foi teorizada e sequer tematizada.
Outra possível razão do abandono do método interpretativo já foi<br />
mencionada. Trata-se da "lição" extraída do caso Dora: interpretar é<br />
perigoso para a continuidade da análise.<br />
Cabe acrescentar que O manejo da interpretação de sonhos em<br />
psicanálise[17], graças a um possível mal-entendido, pode ter jogado a pá<br />
de cal no túmulo da interpretação. Nesse artigo de 1911 Freud<br />
recomenda não prosseguir em sessões posteriores a interpretação<br />
incompleta de um sonho, dando mão preferencial à associação livre. Em<br />
seu arrazoado ele adverte o psicanalista a não manifestar interesse<br />
especial por sonhos, atitude que intensificaria a resistência, tornando as<br />
charadas oníricas mais difíceis de lembrar e mais indecifráveis.<br />
A argumentação em si é inquestionável. Contudo, na medida em que<br />
Freud não preveniu contra possíveis mal-entendidos, tudo leva a crer que<br />
o corolário, para muitos, foi o de que a própria interpretação (e não<br />
apenas o interesse seletivo por sonhos) aumenta progressivamente as<br />
dificuldades do trabalho terapêutico. O que, por outro lado, não deixa de<br />
ser plausível: os progressos da análise, alcançados via interpretação,<br />
costumam mobilizar a resistência, intensificada pelo catalisador<br />
transferencial. Mas, se para evitar a resistência for necessário renunciar ao<br />
avanço da análise...<br />
"E, no entanto, a interpretação é o ato pelo qual se reconhece o analista;<br />
podemos mesmo nos perguntar o que mais ele poderia fazer". Como diria<br />
Pompeu[18], navegar é preciso. As associações livres que expressam a<br />
resistência e a transferência permanecem tão metafóricas como qualquer<br />
outro conteúdo discursivo e, nessa medida, igualmente interpretáveis.
Além disso, O manejo da interpretação de sonhos em psicanálise pode<br />
dar a impressão de que o interesse pelo sonho se opõe à regra da<br />
associação livre. Freud permaneceu, por iniciativa própria, analisando os<br />
dois sonhos de Dora durante várias sessões seguidas. A responsabilidade<br />
por esse deslize metodológico, porém, não recai sobre o método<br />
interpretativo. O erro consistiu em privilegiar determinado conteúdo (o<br />
sonho), em detrimento da associação livre.<br />
Como o procedimento interpretativo permaneceu indevidamente restrito<br />
ao sonho, compartilhou seu destino, ou seja, a destituição do papel<br />
central que até então ocupava na prática psicanalítica. É provável que O<br />
manejo da interpretação de sonhos em psicanálise constitua o resultado<br />
final (e paradoxal) da reflexão sobre o valor clínico da interpretação de<br />
sonhos, ou seja, da interpretação propriamente dita. De certa maneira<br />
representa o prosseguimento do mea culpa freudiano proferido por<br />
ocasião da interrupção do tratamento de Dora. Em suma, a suspeição<br />
que recaiu sobre o método interpretativo resulta da auditoria a que foi<br />
submetido em virtude do insucesso da referida análise.<br />
Entretanto, uma leitura atenta permite, como nos processos judiciais,<br />
reabrir o caso. É possível que Dora tenha deixado tão rapidamente a<br />
análise não em virtude dos "excessos interpretativos" mas justamente<br />
porque Freud foi além da interpretação, dando mostras eloqüentes do que<br />
ele mesmo denominaria posteriormente furor sanandis.<br />
Nada disso, porém, foi discutido ou ventilado. Uma espécie de decreto<br />
administrativo, proferido sem alarde, faz a interpretação cair em desgraça.<br />
Tão secreto foi o procedimento que ninguém parece ter-se dado conta,<br />
nem os próprios protagonistas. Para isso contribuiu decisivamente o<br />
prestígio do termo, que continuou a ser usado, mas para designar outras
práticas. (Houve um rei sueco cujo cadáver foi mantido sobre o cavalo<br />
para evitar que os inimigos, a quem inspirava terror, soubessem da sua<br />
morte).<br />
Seria o caso de concluir que a reflexão retrospectiva sobre Dora modifica<br />
as diretrizes metodológicas de Freud, transformando a interpretação em<br />
procedimento estético mas ineficaz, espécie de "agente provocador" da<br />
resistência? É muito provável. Sobretudo se introduzirmos a ressalva de<br />
que a interpretação e o sonho mantiveram sua importância teórica como<br />
demonstrações inexcedíveis da "outra cena", enquanto eram demitidos<br />
silenciosamente da prática clínica. O sonho passa assim de "via real para<br />
o inconsciente" a fenômeno perigosamente sedutor. Abria-se dessa<br />
maneira o caminho para que a transferência herdasse do sonho a posição<br />
de principal conteúdo a ser perscrutado.<br />
A hierarquização de conteúdos não cessou de afirmar-se cada vez mais<br />
na prática psicanalítica. Trata-se de uma atitude incompatível com a<br />
associação livre e a atenção flutuante. Os respectivos efeitos serão<br />
nefastos. É lícito desconfiar que o anátema em relação à interpretação<br />
tampouco é alheio à preocupação de manter o paciente em análise,<br />
mediante a priorização do vínculo.<br />
Exagero? Talvez. Mas há como que uma admissão disso na idéia - tão<br />
comum entre psicanalistas - de que a motivação fundamental da<br />
demanda por análise resulta mais da transferência do que da queixa.<br />
Não que a transferência deixe de comparecer com o candidato na<br />
primeira entrevista. É óbvio que toda análise se funda numa expectativa<br />
dirigida a seu praticante - mas o que acontece nesse momento inicial não<br />
difere substancialmente do que ocorre em muitas outras relações
profissionais. É no decorrer do processo que a transferência, na acepção<br />
freudiana do termo, enquanto intensificação da resistência, passa a<br />
refletir a especificidade da situação analítica.<br />
É difícil evitar a suspeita de que a hipertrofia da transferência aproxima a<br />
psicanálise das práticas amparadas na sugestão. Isso não escapou a<br />
Freud. Os <strong>texto</strong>s Transferência e Terapia Analítica, das Conferências<br />
Introdutórias à Psicanálise, de 1916/17, abordam a citada objeção sem<br />
conseguir refutá-la.<br />
A inexistência de uma teoria do método interpretativo deve muito à<br />
incompreensão das relações entre linguagem e inconsciente. Esse, aliás,<br />
foi um dos principais motes da intervenção lacaniana, mas sua aplicação<br />
conduziu ao impasse visto a primazia concedida ao significante em<br />
detrimento do discurso.<br />
Na ausência de uma teoria da interpretação, a psicanálise deslizou ao<br />
longo de três caminhos. Um deles conduziu ao pragmatismo de<br />
inspiração médica, cuja marca é o abandono da palavra em prol das<br />
emoções. Outro tomou a sociedade como fons et origo do inconsciente e<br />
enfatizou estratégias adaptativas, preconizando a aliança com a "parte<br />
saudável" do eu. O terceiro orientou-se por uma visão iconoclasta,<br />
amalgamando surrealismo e non-sense zen, amparados num esforço de<br />
erudição sobre cuja autenticidade somente os crentes convictos deixam<br />
de alimentar dúvidas.<br />
Primazia do significante e interpretação<br />
A revolução lacaniana, da qual caberia esperar a teorização da<br />
interpretação, descartou-a por confundi-la com aplicação da teoria ao
discurso e/ou análise das relações de objeto. Vista a partir do ângulo<br />
lacaniano, a interpretação pecaria por favorecer a inoculação dos valores<br />
do analista no paciente. O lacanismo entende que o método deve ater-se<br />
ao manejo do significante, o que supostamente vacinaria o analista e o<br />
impediria de contaminar o analisando com sua subjetividade. Em<br />
decorrência, o discurso passa a ser ciosamente evitado, quer como<br />
instrumento quer como objeto da prática psicanalítica. O enunciado cai<br />
sob o anátema proferido em nome da primazia do significante. Mesmo<br />
assim, o termo 'interpretação' freqüenta os <strong>texto</strong>s lacanianos, embora<br />
numa acepção bem diferente da que lhe havia sido dada por Freud.<br />
O estado de coisas atual reflete essa notável confusão, tanto<br />
metodológica como terminológica. Sem que sua teorização tenha<br />
ultrapassado os conceitos associação livre e atenção flutuante, sobre os<br />
quais raras e sobretudo improfícuas reflexões foram empreendidas, o<br />
procedimento interpretativo enquanto método ficou restrito aos sonhos e<br />
ao mesmo tempo o termo interpretação conheceu um desvio semântico,<br />
passando a designar quase qualquer tipo de intervenção psicanalítica.<br />
Tem sido empregado para descrever tanto a aplicação da teoria ao<br />
discurso (freudismo ortodoxo) como a captação dos sentimentos<br />
transferenciais e sua atribuição a protótipos infantis (kleinismo). Até<br />
mesmo a atomização lacaniana (que desintegra palavras e frases em<br />
fonemas, sílabas e sintagmas) foi descrita como interpretação, embora os<br />
termos pontuação, escansão e corte sejam bem mais adequados.<br />
A atenção dedicada aos atos falhos, a ênfase nas aliterações, sílabas,<br />
anagramas e trocadilhos, consubstanciou-se em intervenções destinadas<br />
a surpreender, desmistificar, desexplicar, desinterpretar, desintelectualizar<br />
e sobretudo desconstruir, verbo que antes de ser cunhado por Derrida já
portava a marca registrada do ethos lacaniano, sempre a serviço da<br />
denúncia militante dirigida a qualquer pretensão de compreensão.<br />
O significado é o alvo principal das enigmáticas invectivas proferidas nas<br />
sessões de tempo variável. As anedotas do budismo zen parecem ter<br />
fornecido o modelo exato para o modus operandi lacaniano. Agente de<br />
uma crítica ao ritual psicanalítico, o psicanalista lacaniano visa o estupor<br />
do analisando à maneira de um pintor que usa a tinta para destruir a tela.<br />
O exemplo não é inteiramente gratuito. A arte contemporânea, em seu<br />
aspecto mais contestador, parece ter inspirado o consultório surrealista<br />
apto a registrar a escrita automática do significante.<br />
Não estaria muito enganado quem buscasse no dadaísmo a raiz oculta do<br />
non sense lacaniano.<br />
Adepto do paradoxo pelo paradoxo, Lacan não tardou em proclamar o<br />
desejo de analisar-se como sintoma por excelência, já que embute a<br />
idealização do analista, sujeito suposto saber. Em decorrência, a principal<br />
diretriz clínica lacaniana é a esquiva a qualquer expectativa. No<br />
consultório, bem entendido, já que fora dele a imagem do erudito é<br />
construída com afinco exemplar nos cartéis, supervisões, seminários,<br />
publicações, debates, etc. Lacan se autorizava a supervisionar e<br />
coordenar grupos de estudo com analisandos, bem como convocar para<br />
seu divã interlocutores e alunos que considerava "interessantes". A<br />
mesma prática costuma ser seguida por seus discípulos. Mesmo que nem<br />
todo lacaniano tenha um trânsito intenso pelo milieu ou pela mídia, ele se<br />
beneficia da atribuição de saber (suposto ou não) simplesmente por<br />
pertencer a instituições dirigidas por herdeiros e êmulos do mestre. À<br />
sedução exercida por esse mesmo saber sobre o neófito é que será<br />
atribuída sua decisão de analisar-se. Fecha-se então o círculo. O totem da
ua Lille criou um novo tipo de clã, em que o tabu do incesto foi revogado<br />
e a endogamia tornou-se a regra.<br />
A resistência do psicanalista<br />
Já foi observado que os pacientes costumam trazer às sessões<br />
conteúdos que contemplam as expectativas de seus psicoterapeutas. É<br />
difícil dizer até que ponto tal observação é plausível, mas na medida em<br />
que for será preciso reconhecer que ela retrata uma prática situada nos<br />
antípodas da regra fundamental. Esta, de fato, estipula que não há, por<br />
definição, qualquer conteúdo preferencial. A menção ao desejo incestuoso<br />
vale tanto quanto uma queixa de coceira no dedão ou a descrição<br />
minuciosa do teto do consultório. A única atitude da qual se poderia dizer<br />
que transgride a regra fundamental é a resistência. Contudo, na medida<br />
em que também se trata de uma manifestação inconsciente, torna-se<br />
paradoxalmente legítima. Assim, tem pleno direito a participar - ainda que<br />
pelo avesso - da situação analítica.<br />
A seleção de material, pretextando graus variados de importância e<br />
pertinência, ilustra à perfeição a resistência do analista. A famosa aliança<br />
entre os protagonistas da cena clínica ganharia assim um significado<br />
inesperadamente irônico... Algo semelhante pode ser dito acerca da<br />
transferência. A auto-imagem construída pelo lacaniano, se for possível<br />
generalizar[19], é representada pela erudição enigmática, tanto quanto a<br />
do kleiniano procura transmitir maturidade e continência e a do freudiano<br />
alardeia franqueza e neutralidade. Os psicanalistas também costumam<br />
receber seus pacientes ou analisandos com expectativas prévias. Os
diferentes divãs de Procusto estão preparados de antemão para hospedar<br />
quer o desejo de saber, quer a dependência ou a ambivalência.<br />
Haveria como isentar-se da auto-imagem profissional e da expectativa<br />
prévia em relação aos demandantes? A questão é espinhosa e será<br />
abordada adiante. De qualquer maneira, o psicanalista não tem qualquer<br />
motivo para antecipar o movimento transferencial, a não ser o afã por<br />
controle e segurança, contraditório com os princípios da sua prática.<br />
Em um dos escritos sobre técnica Freud critica o "...procedimento<br />
insensato de alguns analistas que"preparam freqüentemente suas<br />
pacientes para o surgimento da transferência erótica de modo a que o<br />
tratamento possa progredir ou até mesmo instam as pacientes a "ir em<br />
frente e enamorar-se do médico".[20] Cabe perguntar se as expectativas<br />
acima mencionadas não traduzem algo semelhante: "Vá em frente e<br />
manifeste seu desejo (de apropriar-se de meu saber, de aprender, de ser<br />
protegido e orientado, de seduzir, agredir, rivalizar, admirar, decepcionar-<br />
se, etc.) para que eu possa utilizar as fórmulas padronizadas de<br />
intervenção".<br />
Precisamente a partir do momento em que os psicanalistas entendem<br />
legítimo utilizar a teoria no consultório é que, parafraseando Freud,<br />
passam a correr o risco de selecionar, condenando-se a nunca descobrir<br />
nada além do que já sabiam de antemão (ou seja, teoricamente). A<br />
previsão relativa aos sentimentos transferenciais que surgirão no decorrer<br />
da análise não deixa de veicular uma expectativa apoiada em suposições<br />
teóricas. A ênfase na transferência tipo "sujeito suposto saber" constitui<br />
claramente uma antecipação que contraria a recomendação lacaniana de<br />
agir como se não se conhecesse a teoria[21].
Por outro lado, não deixa de ser interessante que Lacan descarte a<br />
possibilidade de superar (alterar, atenuar) a transferência pela respectiva<br />
interpretação, alegando que esta última depende da própria transferência<br />
para ter eficácia. Se, por outro lado, a transferência não é senão uma das<br />
manifestações do imaginário, do ilusório, da idealização, da projeção, da<br />
infantilidade, etc., então o ceticismo lacaniano se estende<br />
obrigatoriamente a qualquer transformação que caiba esperar de uma<br />
análise. Além disso, subordinar a eficácia do método psicanalítico ao<br />
fenômeno que representa por excelência a resistência é, também de<br />
antemão, e mediante um diktat, condenar a psicanálise ao impasse.<br />
Interpretar na transferência parece representar a impossibilidade, auto-<br />
infligida, de interpretar a transferência (ou, mais precisamente, o discurso<br />
que a manifesta). Suplementarmente, conforme observado acima, tal<br />
enfoque situa a psicanálise no âmbito dos tratamentos por sugestão.<br />
Enfim, a hipertrofia da transferência manifesta-se atualmente sob duas<br />
formas. É considerada simultaneamente o objeto e o instrumento da<br />
intervenção psicanalítica (kleinismo) ou uma de suas formas (a apropriação<br />
do saber do analista) é promovida à condição de modalidade exclusiva<br />
(lacanismo).<br />
Pesquisa e sublimação<br />
Que outra resposta poderia ser dada à pergunta pelo objeto da prática<br />
psicanalítica? Se tomarmos por base os dois conceitos que permanecem<br />
referenciando o método - e cuja substituição, independentemente de seu<br />
desuso, ainda não foi proposta - a resposta é relativamente simples. A<br />
atenção flutuante não elege qualquer tema em particular - por definição.
Ou não seria atenção flutuante nem teria sentido pedir ao paciente que<br />
associe livremente. A regra é chamada fundamental porque propicia<br />
material para a interpretação. Transforma, por assim dizer, a palavra em<br />
<strong>texto</strong> apto a ser lido. Seu objetivo é abrir espaço para o discurso, no qual<br />
os sentimentos transferenciais e o significante (principalmente via ato falho<br />
e repetições vocabulares) podem ter seu lugar, como aliás qualquer outro<br />
tema ou manifestação. Nem mais nem menos.<br />
Não surpreende que a associação livre e a atenção flutuante tenham se<br />
tornado incômodas para o lacanismo e o kleinismo. Menos ainda é por<br />
acaso que o respectivo questionamento se assemelhe às críticas que tem<br />
por alvo a interpretação. A argumentação é similar e lembra boatos e<br />
maledicências propagados a boca pequena. A não oficialização do<br />
enfrentamento talvez se explique pelo respeito a uma tradição já<br />
consagrada e também por deferência e reverência ao próprio Freud, mas<br />
fundamentalmente se deve a que para propor uma nova concepção é<br />
necessário previamente discutir a questão metodológica, tarefa capaz de<br />
desencorajar a muitos.<br />
Razão pela qual são preferidas as críticas en passant, destiladas em<br />
surdina.<br />
"(...) a partir de que elementos específicos o analista intervirá, se nenhum<br />
dos materiais é a priori privilegiado em sua escuta?" questiona um autor<br />
lacaniano que dedica alguns comentários ao tema.[22] Se Dor acredita<br />
que a escuta deve privilegiar certos temas (ou significantes) certamente<br />
supõe que o ato clínica não prescinde da teoria, pois quem decide que<br />
certos temas são mais importantes que outros é a teoria.
Contudo, é precisamente a renúncia a qualquer saber prévio que Freud<br />
advoga em Conselhos aos médicos que exercem a psicanálise. Dor, para<br />
quem o conceito atenção flutuante se deve a uma "intuição freudiana",<br />
argumenta que procurando captar o 'inconsciente' do analisando com o<br />
mesmo instrumento o psicanalista corre o risco de ser perturbado pela<br />
sua subjetividade. "(...) no exercício da atenção flutuante, como pode o<br />
analista desvencilhar-se da influência de suas próprias motivações<br />
inconscientes?"<br />
Instalado o impasse, o crítico concede que "(...) as concepções<br />
metapsicológicas elaboradas por Lacan não permitem solucionar<br />
profundamente esses diferentes problemas". Mesmo assim, elas teriam o<br />
mérito de "(...) pelo menos introduzir um ponto de vista técnico original a<br />
esse respeito".[23] Que não é outro senão permanecer "(...) receptivo aos<br />
significantes que advêm, através do dizer, para além dos significados que<br />
se organizam no dito"[24].<br />
A primeira pergunta (a partir de que elementos o analista intervirá?) revela<br />
que para Dor a noção de discurso não entra absolutamente em conta,<br />
sequer para ser criticada. Demonstra também que sua concepção clínica<br />
é guiada pela busca de determinados conteúdos ("significantes"),<br />
julgados mais importantes do que outros, à maneira da famosa boutade<br />
de Orwell. Nada mais distante da atitude que levou Freud a propor o que<br />
chamou de associação livre. Por outro lado, a menção ao risco das<br />
influências inconscientes devidas à atenção flutuante tem por implicação<br />
que se o psicanalista permanecer com o dedo devidamente apoiado no<br />
gatilho teórico, no caso o da teoria do significante, suas motivações<br />
inconscientes se dissiparão ou diminuirão significativamente. Concepção<br />
intrigante, na medida em que provém de um psicanalista.
A pesquisa científica, como qualquer outro ato humano, não tem porque<br />
ser desvinculada das determinações inconscientes (ou seja, da linguagem;<br />
já nos Três Ensaios..., de 1905, Freud mencionava a pulsão<br />
epistemológica). A existência de determinações inconscientes não faz<br />
com que a pesquisa seja invalidada pela subjetividade. Se for, que valor<br />
caberia dar à teoria psicanalítica, incluindo a vertente lacaniana? O<br />
inconsciente não consiste apenas no que é recalcado; isso é patente em<br />
Freud (cf. seu estudo sobre Da Vinci) e se torna mais evidente ainda<br />
quando o inconsciente é redefinido como linguagem. No caso da prática<br />
científica ou profissional bem desempenhada, analogamente ao que<br />
acontece com a criação artística, é fácil perceber que estamos diante do<br />
que Freud conceituou como sublimação. Por estranho que pareça, a<br />
maioria dos psicanalistas não leva em conta a sublimação e menos ainda<br />
sua relação com o inconsciente. E isso apesar do livro sobre o chiste...<br />
De qualquer forma, se é óbvio que Dor tem pleno direito a defender esse<br />
ponto de vista, sua posição se beneficiaria muito de uma argumentação<br />
crítica que levasse em conta as razões alegadas por Freud para propor a<br />
regra fundamental.<br />
A idéia de que observações e hipóteses ganham em isenção quando<br />
livres de viseiras teóricas é um truísmo bem mais recomendado do que<br />
efetivamente observado na prática científica. Provavelmente por essa<br />
razão as descobertas científicas são relativamente raras em comparação<br />
com repetições, dogmatismos, erros e impasses. Não obstante, a<br />
revogação do princípio é impensável. Aplicá-lo à psicanálise, como faz<br />
Freud ao preconizar que o psicanalista renuncie ao saber prévio, é<br />
perfeitamente condizente com a isenção que caberia esperar de um<br />
pesquisador. Aliás, é condizente também com uma recomendação feita<br />
nos mesmos moldes... pelo próprio Lacan[25].
Para Dor, pelo contrário, a isenção implica no risco de ser "influenciado<br />
pelas próprias motivações inconscientes". Talvez Dor deseje exorcizar o<br />
risco da falha interpretativa, inevitavelmente presente em toda hipótese<br />
científica. Colocar em pé o ovo da isenção requer bastante disciplina e<br />
habilidade, mas é possível; em contrapartida, ainda não nasceu quem<br />
faça a omelete da hipótese sem quebrar os ovos da apólice do seguro<br />
contra erros.<br />
A pesquisa não garante a descoberta. Se os erros se devem a distorções<br />
subjetivas, cabe afirmar que todo projeto dedicado ao conhecimento, em<br />
qualquer ciência, está sujeito ao equívoco. Desse ponto de vista, e ao<br />
contrário do que dizem os que enfatizam a dificuldade suplementar<br />
representada pelo estudo de um objeto a cuja categoria pertencemos,<br />
não há diferença entre ciências naturais e humanas.<br />
Lacan redefine a função da intervenção psicanalítica (ainda que continue a<br />
designá-la pelo termo 'interpretação'). Para ele,(...) o valor de uma<br />
interpretação não se mede pela sua "(...) correspondência com a<br />
realidade"[26], podendo ser inexata mas (...) não obstante verdadeira, no<br />
sentido de que possui poderosos efeitos simbólicos (cf. Escritos, pg.<br />
237)."[27]<br />
Do ponto de vista da regra fundamental, trata-se de uma afirmação<br />
totalmente questionável, porque a interpretação visa o sentido do<br />
discurso, não a 'realidade' (como quer que seja definida). Substituir<br />
'realidade' por 'verdade' torna essa tese ainda mais discutível. Além<br />
disso, a posição lacaniana faz supor que "qualquer coisa" pode ser dita<br />
porque, em última análise, é capaz de provocar "poderosos efeitos<br />
simbólicos".
Durante os milênios que antecederam seu enquadramento nas fórmulas<br />
matemáticas da física e da química, a natureza convocava<br />
poderosamente o imaginário da humanidade, como testemunha o<br />
animismo. Isso não impediu que se desenvolvesse paulatinamente o<br />
conhecimento de suas leis. A menos que o lacanismo descarte<br />
igualmente a ciência[28] não há como deixar de reconhecer que o modus<br />
operandi científico inclui a interpretação. Onde há interpretação há risco.<br />
As teorias científicas são mais do que coleções de fatos e descrições de<br />
fenômenos; apóiam-se na aferição e na sistematização mas,<br />
fundamentalmente, constituem leituras. A interpretação sempre diz algo<br />
sobre o fenômeno, não "qualquer coisa". Implica em compromisso, ou<br />
seja, aceita a possibilidade do erro para poder reivindicar, em<br />
contrapartida, sua eventual validade.<br />
A preconização de permanecer "(...) receptivo aos significantes que<br />
advêm, através do dizer, para além dos significados que se organizam no<br />
dito..." resulta num tipo de intervenção minimalista cuja meta principal<br />
parece ser a fuga a qualquer responsabilidade maior. De fato, quando se<br />
faz trocadilhos e anagramas não há qualquer possibilidade de erro - nem<br />
de acerto.<br />
A atitude clínica lacaniana se parece muito à preconização empirista de<br />
"deixar os fatos falarem por si mesmos". Apenas substitui os "fatos" pelo<br />
"inconsciente". Ao analisando é concedido o duvidoso privilégio de<br />
descobrir sozinho como lidar com as suas questões a partir das pistas<br />
fornecidas por pontuações, escansões e cortes. Intervenções tão<br />
enigmáticas que, como já se disse dos eletrochoques (cuja verdadeira<br />
função seria punir o paciente), poderiam ser úteis não em virtude de sua
qualidade intrínseca mas por desviar a atenção para essas charadas ainda<br />
mais herméticas do que os conflitos pessoais.<br />
Os que acreditam demonstrar a inoperância do método interpretativo pelo<br />
questionamento da atenção flutuante têm a sorte de estar sentados num<br />
galho mais forte do que o seu serrote. Há outras objeções ao método<br />
interpretativo, mas todas derivam fundamentalmente da incompreensão.<br />
Os críticos não se dignaram a teorizar o procedimento proposto por Freud<br />
em relação ao sonho e muito menos se interrogaram sobre a<br />
especificidade da interpretação face a outras modalidades de atuação.<br />
'Interpretação', insistamos, passou a designar praticamente qualquer tipo<br />
de intervenção, do comentário descompromissado ao diagnóstico,<br />
passando por diversas categorias de atos verbais, geralmente extraídos<br />
de opiniões pessoais ou apoiados na teoria psicanalítica. Às vezes a<br />
palavra interpretação chega a designar a própria interpretação. Mas é<br />
raro, a ponto de causar estranheza.<br />
Lacan e a interpretação<br />
Praticamente qualquer <strong>texto</strong> poderia ilustrar essa asserção. Por<br />
pertinência e brevidade convirá recorrer ao respectivo verbete do<br />
Dicionário Introdutório à Psicanálise Lacaniana, de Dylan Evans, que<br />
apesar de participar da confusão reinante retrata alguns aspectos<br />
importantes do debate sobre a interpretação.<br />
Após observar que o "(...) o analista oferece uma interpretação quando diz<br />
algo que subverte alguma maneira de ver "cotidiana" consciente do<br />
analisando"[29], o autor assinala que a interpretação teve como primeira<br />
função corrigir as omissões dos relatos, dando o exemplo do caso Lucy<br />
(Estudos sobre a Histeria, 1895), em que Freud diz à paciente que o
verdadeiro motivo da sua dedicação aos filhos de patrão é o amor por ele.<br />
Em seguida, constata que o "(...) modelo de interpretação foi estabelecido<br />
por Freud em A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900), ainda que<br />
explicitamente o mesmo se referisse apenas aos sonhos"[30].<br />
Segue-se a menção a um debate bem conhecido. Além do procedimento<br />
da associação livre, os sonhos também poderiam ser interpretados<br />
mediante uma atribuição de significados já codificados "(...) em virtude de<br />
suas relações com um sistema pré-existente de equivalências". Essa<br />
possibilidade é de início <strong>parcial</strong>mente admitida por Freud, que<br />
posteriormente lhe opõe certas reservas[31]. Evans observa ainda que<br />
"(...) Muito depressa na história do movimento psicanalítico, a<br />
interpretação se transformou na ferramenta mais importante do analista,<br />
seu meio primordial para conseguir efeitos terapêuticos. Visto que se<br />
supunha serem os sintomas expressão de uma idéia reprimida, pensava-<br />
se que a interpretação curava o sintoma ao ajudar o paciente a tomar<br />
consciência de sua idéia".<br />
Mas, prossegue, "(...) depois de um período inicial no qual o oferecimento<br />
de interpretações parecia alcançar efeitos notáveis, na década de<br />
1910/20 os analistas começaram a perceber que suas interpretações<br />
estavam se tornando menos efetivas. Em particular, o sintoma persistia<br />
inclusive depois de que o analista houvesse fornecido interpretações<br />
exaustivas".<br />
O motivo da súbita inoperância é atribuído pelos psicanalistas à<br />
resistência. Lacan diverge, afirmando que "(...) a eficácia decrescente da<br />
interpretação depois de 1920 devia-se a um fechamento do inconsciente<br />
que os próprios analistas haviam provocado (Seminário 2, pp. 10-11,<br />
Seminário 8, pg. 390)". Reduzidas a fórmulas pré-estabelecidas e
previsíveis, "(...) as interpretações careciam de importância e de valor de<br />
choque".<br />
Para outros analistas, acrescenta Evans, os problemas decorriam da<br />
crescente familiarização dos pacientes com a teoria psicanalítica. Em<br />
conseqüência, preconizou-se uma sofisticação do saber do analista para<br />
fazer frente a essa situação. Novamente Lacan diverge, propondo que<br />
[1] O amor de transferência (Isso não impede de existir, Octave Mannoni,<br />
1982).<br />
[2] Freud analisou Dora nos últimos meses do século XIX e publicou<br />
"Fragmentos da análise de um caso de histeria" em 1905.<br />
[3] Posteriormente o conceito de fantasia ganhou uma abrangência muito<br />
maior, passando a referir, em última instância, a singularidade intrínseca à<br />
subjetividade.<br />
[4] Freud considerou, nos três meses de duração da análise, que Dora<br />
estava apaixonada pelo 'Senhor K.'; em seus comentários retrospectivos,<br />
ao empreender a "autópsia" do caso, conjectura que o objeto da paixão<br />
talvez fosse a 'Sra. K.'.<br />
[5] Entretanto, nada impede a coexistência, pacífica ou não, de tais<br />
sentimentos.
[6] Posteriormente Freud entenderá que nem sempre os pacientes deixam<br />
a análise em virtude dos erros do analista. Às vezes, exatamente pelo<br />
motivo oposto...<br />
[7] Tarefa impossível, se entendermos que entre "verdade" e "sentido" há<br />
um abismo.<br />
[8] A palavra "médico", no título do artigo, indica que Freud estava ciente<br />
do viés que essa formação ocasionava... talvez com base em sua própria<br />
experiência pessoal.<br />
[9] "Não é bom trabalhar cientificamente num caso enquanto o tratamento<br />
ainda está continuando -reunir sua estrutura, tentar predizer seu<br />
progresso futuro e obter de tempos em tempos, um quadro do estado<br />
atual das coisas, como o estudo científico exigiria. Casos que são<br />
dedicados, desde o princípio, a propósitos científicos, e assim tratados,<br />
sofrem em seu resultado; enquanto os casos mais bem sucedidos são<br />
aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista,<br />
em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta<br />
neles, e sempre se os enfrenta com liberalidade, sem quaisquer<br />
pressuposições. A conduta correta para um analista reside em oscilar, de<br />
acordo com a necessidade, de uma atitude mental para outra, em evitar<br />
especulação ou meditação sobre os casos, enquanto eles estão em<br />
análise, e em somente submeter o material obtido a um processo sintético<br />
de pensamento após a análise ter sido concluida". (Recomendações aos<br />
médicos que exercem a psicanálise, pp. 152/153, O.C., vol. XII).<br />
[10] Essa descrição tampouco esgota a lógica do conflito. Ela conduz à<br />
teoria das pulsões (Thanatos vs Eros, desejo de não desejar vs aceitação
do desejo), que por sua vez se vincula estreitamente à teoria da<br />
constituição do sujeito.<br />
[11] "A técnica, contudo, é muito simples. (...) Consiste simplesmente em<br />
não dirigir o reparo para algo específico e em manter a mesma "atenção<br />
uniformemente suspensa" (como a denominei) em face de tudo o que se<br />
escuta (...) evitamos um perigo que é inseparável do exercício da atenção<br />
deliberada. Pois assim que alguém deliberadamente concentra bastante a<br />
atenção, começa a selecionar no material que lhe é apresentado (...)Ao<br />
efetuar a seleção, se seguir suas expectativas, estará arriscado a nunca<br />
descobrir nada além do que já sabe; e se seguir as inclinações,<br />
certamente falsificará o que possa perceber. Não se deve esquecer que o<br />
que se escuta, na maioria, são coisas cujo significado só é identificado<br />
posteriormente". (Idem, pp. 149/150; grifo meu).<br />
[12] O próprio Freud veiculou uma idéia semelhante (por exemplo, nas<br />
Cinco Lições de Psicanálise).<br />
[13] Essa metáfora, de sabor anedótico, chegou a ser efetivamente<br />
proferida.<br />
[14] E sumamente importante também do ponto de vista teórico e<br />
epistemológico.<br />
[15] "Com efeito, na medida em que o inconsciente emerge no discurso<br />
do sujeito pelo processo de enunciação, a atenção flutuante aparece<br />
sobretudo ao nível do enunciado e de seu sujeito". Joël Dor, "Introdução à<br />
leitura de Lacan", pp. 119/120.
[16] Os <strong>texto</strong>s mais ilustrativos desse movimento são o "discurso de<br />
Roma" (Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise, de<br />
1953) e A instância da letra no inconsciente ou a razão a partir de Freud<br />
(1957/8).<br />
[17] O primeiro, cronologicamente, dos artigos sobre técnica que Freud<br />
redigiu entre 1911 e 1915.<br />
[18] E Camões, e Fernando Pessoa...<br />
[19] Mas como não generalizar quando o adjetivo em questão (assim<br />
como "kleiniano", "freudiano", "bioniano", "winnicotiano") é brandido à<br />
maneira de uma carteira de identidade profissional?<br />
[20] Observações sobre o amor transferencial, 1915, O.C., volume XII, pg.<br />
211.<br />
[21] É muito difícil encontrar uma obra que não encerre contradições. A<br />
intenção da frase anterior é a de mostrar que a crença na inevitabilidade<br />
da transferência "sujeito suposto saber", alardeada a torto e a direito nos<br />
comentários sobre a especificidade da prática lacaniana, deveria antes ser<br />
motivo de reflexão e constrangimento.<br />
[22] Joël Dor, Introdução à leitura de Lacan, pg. 119.<br />
[23] Idem, ibidem.<br />
[24] Idem,p. 120.<br />
[25] Ver adiante.
[26] Sic.<br />
[27] Citação extraida do Diccionário Introductorio de Psicoanálisis<br />
Lacaniano, de Dylan Evans.<br />
[28] E realmente o faz em uma de suas vertentes, embora por outro lado<br />
Lacan tenha iniciado seu trabalho de renovação invectivando o misticismo<br />
pseudo-técnico que infestava a psicanálise na época.<br />
[29] A edição consultada é a tradução em castelhano, feita pela Editôra<br />
Paidós. A inserção da palavra "cotidiana" prejudica um pouco a<br />
inteligibilidade da frase mas de qualquer maneira a própria definição de<br />
Evans é imprecisa a ponto de ser equívoca.<br />
[30] Afirmação pertinente, mas que não suscita em Evans uma reflexão<br />
sobre suas implicações.<br />
[31] "(...) Freud sempre sustentou que a interpretação deve concentrar-se<br />
primordialmente no sentido particular, e preveniu contra a superestimação<br />
da importância dos símbolos na interpretação dos sonhos".<br />
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨<br />
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