veja mais clicando aqui - Jakobsson Estúdio
veja mais clicando aqui - Jakobsson Estúdio
veja mais clicando aqui - Jakobsson Estúdio
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Primeiro de Março Paciência<br />
Sete Sete Quafá Vila Igaratã<br />
Camarista Meyer Coelho<br />
Netto Rio do Ouro Santa<br />
Isabel Rio Parnaíba<br />
Canal do Anil Bosque Mont<br />
Serrat Mesa do Imperador<br />
Imperador<br />
Jardim Jardim Moriçaba Campo de<br />
Paulo Medeiros Vista Alegre<br />
Maldito Juscelino<br />
Belo Granja Sítio Sítio do Pai João<br />
Caminho do Lúcio Ladeira<br />
do Calharins Caminho do<br />
Waldemar Ponte nte do Rio dos<br />
Cachorros Cachorross Caminho CCaminho<br />
do<br />
Arroio io Estrada EEstrada<br />
do Quitite<br />
Nossa Senhora da Penha Penha<br />
Pedro da Cunha e Menezes
MALDITO JUSCELINO<br />
<br />
Pedro da Cunha e Menezes
© Andrea <strong>Jakobsson</strong> <strong>Estúdio</strong> Editorial Ltda., 2010.<br />
Texto: Pedro de Castro da Cunha e Menezes<br />
Produção editorial: Renata Arouca<br />
Revisão: Maria Beatriz Branquinho da Costa<br />
Capa: Erika Martins<br />
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do todo ou parte em qualquer<br />
suporte sem a autorização expressa da Editora.<br />
Andrea <strong>Jakobsson</strong> <strong>Estúdio</strong> Editorial Ltda.<br />
Rua Senador Dantas 75 grupo 1310<br />
Centro, Rio de Janeiro, RJ 20031-204<br />
Telfax: [21] 2533-9353<br />
www.jakobssonestudio.com.br<br />
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE<br />
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ<br />
M51m<br />
Menezes, Pedro da Cunha e., 1961-<br />
Maldito Juscelino / Pedro da Cunha e Menezes. -<br />
Rio de Janeiro : Andréa <strong>Jakobsson</strong> <strong>Estúdio</strong>, 2010.<br />
172p.<br />
ISBN 978-85-88742-40-6<br />
1. Romance brasileiro. I. Título.<br />
10-1063. CDD: 869.93<br />
CDU: 821.134.3(81)-3<br />
10.03.10 16.03.10 017994
MALDITO JUSCELINO<br />
<br />
Pedro da Cunha e Menezes
PREFÁCIO<br />
A trama do romance Maldito Juscelino envolve crime, suspense e violência. Classificar<br />
o livro como um representante do gênero policial, entretanto, seria um equívoco só<br />
permitido aos cegos. Embora sua história objetive prender e agradar a todos os<br />
leitores, o valor da obra não está somente na substância, mas também na forma. Ao<br />
contrário de Brasília, que foi projetada sobre a cartografia do Planalto Central, o<br />
Maldito Juscelino foi concebido sobre um mapa detalhado do Grande Rio.<br />
O romance aborda a decadência da cidade maravilhosa sob o prisma de vários personagens.<br />
Alguns com pinta de estrela, outros com apenas 15 minutos de fama,<br />
nenhum deles aparece gratuitamente. Todos têm alguma ligação profunda com a<br />
Guanabara. Seus interesses e paixões são cariocas: leem Lima Barreto, José de Alencar<br />
e Rubem Fonseca, escutam Marcelinho da Lua, Farofa Carioca, Pixinguinha e MV<br />
Bill, evocam D. Sebastião, Zuenir Ventura e Raimundo de Castro Maia, mergulham<br />
nas Ilhas Cagarras, sobem as montanhas da região oceânica de Niterói, jantam nos<br />
restaurantes de Santa Teresa, apreciam as estátuas que adornam as ruas da antiga<br />
capital do Brasil.<br />
Seus nomes não foram escolhidos ao acaso. O Major Vidigal é figura real da história<br />
setecentista da cidade e personagem da ficção de Jo<strong>aqui</strong>m Manuel de Macedo<br />
(Memórias de um sargento de milícias), Edson Passos é uma homenagem ao copacabaníssimo<br />
personagem Ed Mort de Luís Fernando Veríssimo (não por outra<br />
razão é gaúcho e torcedor do América), Ilha é um apelido cuja gênese explica o<br />
nome do bairro homônimo na região de Guaratiba, Campo dos Afonsos é aeronauta<br />
(ou araújo na gíria dos aviadores) e mora na rua Gago Coutinho (o grande piloto<br />
português, que foi o primeiro a sobrevoar o Atlântico Sul), Magalhães é um<br />
oficial intendente da FAB. Enfim, todos os nomes, mesmo quando não parecem,<br />
têm relação com a geografia, mas também com a história e a situação atual do Rio<br />
de Janeiro. Assim, o penteado do comandante do Bope em estilo príncipe valente,
além de ser um corte de cabelo, é uma referência a dois ex-comandantes daquele<br />
batalhão da polícia carioca, o turbilhão em que o dr. Coelho Netto vê o Rio de<br />
Janeiro se debater é um famoso livro daquele ilustre tricolor e o Cutty Sark que embebeda<br />
os personagens foi escolhido menos pelo malte e <strong>mais</strong> pelo seu rótulo que<br />
mostra a entrada da Baía de Guanabara. Tampouco há no livro data ou número<br />
sem significado. O 1711 do voo Paris-Rio é o ano que Duguay Trouin invadiu o Rio<br />
de Janeiro; Primeiro de Março é a data de fundação da cidade, Dezoito e Sete Sete<br />
são comunidades em Bangu.<br />
Estoril, Nova Jérsei, San Francisco, Colúmbia, Califórnia, Monte Carlo, Cabo Verde,<br />
Madagascar, Ubá, Uberlândia, Olinda, Santa Catarina e Rio Grande, entre outros,<br />
estão no livro não por serem cidades e estados do mundo e do Brasil, mas por denominarem<br />
bairros do Rio de Janeiro e sua área metropolitana. Olavo Bilac, José<br />
Bonifácio, Carlos Drummond de Andrade, Tancredo Neves, João XXIII e João Paulo<br />
II tampouco ganharam espaço no livro por seus dotes literários, políticos ou religiosos,<br />
mas porque fazem parte da geografia carioca.<br />
Pois é, se a trama discute os valores em voga na cidade, também mostra o Rio nu e<br />
cru como ele é e apresenta ao leitor lados da Guanabara que ele provavelmente<br />
não conhece. Isso é tudo fruto do mapa que o autor seguiu.<br />
A ideia vem de longe. No fim da década de 1980, com muito tempo livre nas mãos,<br />
Pedro da Cunha e Menezes comprou o Guia Quatro Rodas e decidiu visitar cada um<br />
dos bairros do Grande Rio, sem esquecer nenhum. Não conseguiu vê-los todos (na<br />
verdade, visitou pouco <strong>mais</strong> da metade), mas ao longo de cinco anos tornou-se conhecedor<br />
da cidade em que nasceu como poucos. Seguiu a mesma proposta para<br />
redigir Maldito Juscelino. Listou 1.565 bairros, favelas, conjuntos residenciais, subúrbios,<br />
morros habitados e marcos urbanos relevantes do Rio (isso é que os geográfos<br />
chamam de megalópole). O objetivo era que a história percorresse todos eles, um a<br />
um, e que o desenrolar do romance fosse definido pelo traçado imposto ao autor<br />
pela cartografia carioca. Também nessa empreitada foi mal-sucedido. Infelizmente,<br />
mesmo com todos os recursos da ficção, não conseguiu ir a Quafá, Vila Igaratã e<br />
Camarista Meyer. Tampouco logrou navegar nas águas do Rio Parnaíba, represar o<br />
Canal do Anil ou desfrutar das sombras benfazejas do Bosque Mont Serrat. Os frangos<br />
que quis criar na Granja de Paulo Medeiros morreram antes de serem chocados<br />
e não chegaram à Mesa do Imperador, como planejado. As flores que plantou nos<br />
jardins Moriçaba, do Carmo e Campo Belo, murcharam, não chegando a formar<br />
buquês. Sem elas, o charme do autor não foi suficiente. Acabou repelido nas tentativas<br />
de flerte com Adriana, Eliane, Maria José, Núbia e Ana Clara. Suas pernas
cansaram-se na subida das ladeiras do Calharins e de Santa Isabel. Não alcançou o<br />
topo. Paciência, a Vista Alegre do Recreio que se descortina lá de cima fica para<br />
outra vez. Por fim, perdeu-se em sua tentativa de visitar o sítio do Pai João. Arriscou<br />
três trajetos diferentes: pelo Caminho do Lúcio, na hora de cruzar o Rio do Ouro,<br />
escolheu a Ponte de Coelho Netto. Ao perceber o equívoco, voltou. Tomou o<br />
Caminho do Waldemar, mas por ali, a Ponte do Rio dos Cachorros estava quebrada.<br />
Arriscou ainda o Caminho do Arroio Pavuna, mas foi parar na Estrada do Quitite<br />
que não tinha nada a ver com o destino desejado. Em sua obsessão para citar todas<br />
as localidades, ainda tentou uma prece à Nossa Senhora da Penha. Não adiantou,<br />
ainda há tantos lugares recalcitrantes que sozinhos poderiam formar uma nova<br />
cidade. Ainda assim, o romance descobre, com seus personagens, locais, diálogos e<br />
citações exatos 1502 bairros, localidades e favelas dessa metrópole que, apesar de<br />
suas mazelas, insiste em seguir sendo a síntese do Brasil. No trajeto, faz alusão a<br />
diversos episódios marcantes da história e da cultura do Rio de Janeiro.<br />
Talvez nem mesmo o leitor atento seja capaz de identificar <strong>mais</strong> de um terço dessas<br />
localidades ou citações. Embora fique <strong>aqui</strong> o desafio, esse não foi o objetivo do<br />
autor. Pelo contrário, espera-se que a homenagem a tantos lugares, efemérides,<br />
personagens e acontecimentos da Guanabara não seja em detrimento do prazer da<br />
história contada. Afinal, a parte é menos importante que o todo e essa é a mensagem<br />
que o carioca precisa aprender, se genuinamente deseja que sua cidade ja<strong>mais</strong><br />
deixe de ser maravilhosa. Na ficção, assim como na realidade, é tarefa difícil de<br />
ser empreendida com sucesso, mas o objetivo almejado vale o esforço.<br />
Horácio Cardoso Franco
8<br />
|<br />
maldito juscelino<br />
Dedico esse livro especialmente a Luiz Barros, mas também a todos aqueles que,<br />
cariocas da gema, da clara ou da casca do ovo, teimam em querer fazer do Rio de<br />
Janeiro uma Cidade Maravilhosa de se viver.<br />
Agradeço a Mag Paletta, Rogério Fulgêncio, Carlos da Cunha e Menezes, Ruy<br />
da Cunha e Menezes, Celina Lutz, Frederico Faulhaber, Luiz Fernando Vitor Filho,<br />
Ana Leonor e Cristina Capêlo, conjunto de amigos cuja revisão paciente ajudou-<br />
me a corrigir os infinitos erros e impropriedades. Qualquer falha que tenha per-<br />
manecido é de minha exclusiva responsabilidade.
MALDITO JUSCELINO<br />
<br />
9<br />
|<br />
maldito juscelino
PRELÚDIO<br />
Onze e trinta da manhã. A viatura 01-1565 entra em contato com a sala de ope-<br />
rações do 21º BPM:<br />
— 1565, 1565, câmbio.<br />
— Prossiga, 1565.<br />
— Operações, Zulu 20 para Romeu Delta Juliete primeiro-nono-sexto-negativo.<br />
O operador da sala digita a placa pedida no computador ligado com maré-zero:<br />
— VOLKSWAGEN BRASÍLIA, ANO 1960, COR AZUL E AMARELA, PRODUTO DE ROUBO.<br />
O operador solta um palavrão.<br />
— Não pode ser, os dados não batem. Tem vírus nessa merda. Levanta, troca de<br />
computador, redigita a placa.<br />
– VOLKSWAGEN GOLF, ANO 2000, VERMELHO E PRETO, PRODUTO DE ROUBO.<br />
1565, 1565, a placa pertence a Golf, ano 2000, vermelho e preto, produto de roubo,<br />
repito, produto de roubo, positivo?<br />
– Positivo, positivo, 1565.<br />
A viatura liga a sirene e inicia a perseguição. O Golf é bem <strong>mais</strong> veloz que a limi-<br />
tada patrulhinha do batalhão, mas os dois carros têm que costurar pelo trânsito da<br />
avenida, e a sirene ajuda a viatura a se aproximar do Golf. O estampido é seco e<br />
muito conhecido dos soldados. A viatura está sendo repelida a tiros. O “SD” carona<br />
saca um dos seus 38 e revida. O Golf bate; seu motorista não sabia que, em frente ao<br />
21º BPM, a avenida 28 de Agosto tem suas duas mãos divididas por um canteiro.<br />
Rapi-damente os quatro bandidos saem do carro, jogam-se no asfalto e continuam o<br />
tiroteio. O “SD” motorista para a 1565 e os soldados procuram abrigo, descarregando<br />
seus revólveres. Do portão do batalhão saem dezenas de papa-mikes disparando contra<br />
os ocupantes do veículo batido. O reforço do 21º chegou em boa hora; as sub-metralhadoras<br />
já estão funcionando, trazendo consigo a certeza de uma definição<br />
11<br />
|<br />
maldito juscelino
12<br />
|<br />
maldito juscelino<br />
favorável da peleja. Os meliantes põem as mãos nas cabeças e, ainda deitados, esperam,<br />
sem muita esperança, a sentença final. Os policiais engatilham suas armas.<br />
<br />
O capitão está em sua sala refrigerada, mas o ruído do ar-condicionado é superado<br />
pelos tiros. Sai para o pátio e pergunta ao primeiro “SD” que encontra:<br />
— Que porra é essa!!!?<br />
— O pau tá comendo <strong>aqui</strong> em frente, senhor, uns bandidos que estavam trocando<br />
tiros com a 1565 colidiram em frente ao batalhão. Bateram no canteiro da avenida.<br />
Tenente, sargentos, tá todo mundo lá, só não fui porque estou preso.<br />
Rapidamente o capitão retorna à sua sala, põe um carregador na sua HK-9 mm,<br />
pega dois de reserva e sai do quartel. O barulho é ensurdecedor. Entra no meio do fogo<br />
cruzado. Pouco depois o tiroteio cessa. Os papa-mikes engatilham suas armas.<br />
— Não matem eles, não matem eles! — grita o capitão.<br />
Os PMs continuam com suas armas apontadas e prontas para disparar. Não querem<br />
acreditar no que estão ouvindo. O capitão aponta sua pistola para os PMs e repete:<br />
— Ninguém atira!<br />
Numa sala dentro do 21º, os ocupantes do Golf são questionados e respondem às<br />
perguntas. Estão presentes um major, o capitão e a guarnição da 1565.<br />
— Sim, senhor. A gente meteu um Peugeot lá em Bangu, mas ele enguiçou. Então<br />
ganhamos esse Golf em Nova Iguaçu para assaltar um banco <strong>aqui</strong> em São João. Precisávamos<br />
do dinheiro para alugar umas peças. Depois deu no que deu. Se não fosse<br />
o senhor, a gente tava morto.
MARLENE E GLÓRIA<br />
Conheci Glória há cerca de três anos. Lembro-me bem de que era um dois de maio,<br />
pois no feriado da véspera meus amigos foram todos à praia enquanto eu tive que<br />
fazer um voo para La Paz. Ela embarcou no aeroporto de El Alto. Chegou a bordo<br />
vestindo uma saia esvoaçante e um casaco de alpaca. A pele muito branca, realçada<br />
por uma vasta cabeleira negra, o pescoço adornado por um vistoso cordão de prata<br />
e o rosto parcialmente escondido atrás de um par de óculos escuros. Estava de braços<br />
dados com Guadalupe, uma estudante boliviana que fazia graduação na Universi-<br />
dade Federal do Rio de Janeiro, com quem uns meses antes eu me embriagara de<br />
amores na noite de Copacabana. Guadalupe abriu um belo sorriso para mim e sugeriu<br />
um novo encontro. Depois da decolagem e terminado o serviço de voo, senteime<br />
ao lado delas. Quando pousamos, já tinha anotado o telefone de Glória.<br />
Guadalupe, apesar do charme e do brilho radiante nos olhos amendoados, sumiu da<br />
minha vida. Minha cota de salsa e merengue estava prá lá de esgotada. Glória passou<br />
a ser onipresente.<br />
Em nosso primeiro encontro, quis impressioná-la. Levei-a para passear em Itacoatiara,<br />
que não frequentava há muitos anos. Minha memória fantasiava a praia como<br />
um pequeno paraíso na região oceânica de Niterói, onde na maré baixa ainda era possível<br />
retirar mexilhão e catar tatuí. Achava o lugar uma maravilha, mas não foi por isso<br />
que o escolhi. Tinha recém-terminado um namoro de cinco anos com uma despachante<br />
de voo da Varig, com quem ainda sonhava reatar. Ela me flagrara aos beijos<br />
com uma aeromoça dentro do avião. Não era para ter acontecido, Marlene deveria<br />
estar de folga no dia. O problema é que foi cobrir uma colega que adoecera e me<br />
pegou com a boca na botija. Rodou a baiana e terminou o relacionamento.<br />
O estranho é que a gente é galinha e pegador mas, quando uma coisas dessas<br />
acontece, nos damos conta de quanto amávamos nossas namoradas. Tentei de tudo<br />
13<br />
|<br />
maldito juscelino
14<br />
maldito juscelino |<br />
para reatar. Fiz ponto em sua casa, na parte alta da Rocinha. Fui laborioso. Levei<br />
ramos de hortênsias coroados por uma gardênia azul que, em qualquer parque, das<br />
flores é a <strong>mais</strong> bela. Comprei caixas de bombons, presentei-a com perfumes franceses,<br />
escrevi cartas apaixonadas, prometi levá-la de férias para as Ilhas Baleares ou para<br />
o Havaí, cheguei a fazer reserva de hotel em Malibu. Pedi interferência das suas tias<br />
que moravam na favela. Dona Irene e dona Francisca bem que tentaram ajudar. Também<br />
seu Pedro, amigo antigo da família, quis interceder. Mas não houve jeito. Perdi<br />
meu sossego, minha alegria e quase fiquei sem esperança. Apelei até para o Espírito<br />
Santo. Pensei em escrever ao Vaticano implorando a interferência de João Paulo II em<br />
pessoa. Como não tinha acesso ao Papa, conversei com quem tinha relações e influência<br />
com Deus no terreno da favela. Frei Gaspar e Frei Sampaio, dois jesuítas que<br />
distribuíam graças na comunidade, me atenderam solícitos. Segui seus conselhos, fiz<br />
do Senhor meu bom pastor. Passei a frequentar a Igreja de Nossa Senhora da Conceição,<br />
rezei novenas e pais-nossos, realizei trabalhos de caridade na favela. Marlene<br />
que é bom, contudo, não voltava para mim. Só me sobrou um baita vazio no coração.<br />
Quase morro do amor, quase morro da fé. Nada disso adiantou. “Besteira faz quem<br />
quer”, foi a última coisa que Marlene me disse, “agora vê se some do morro. Adeus”.<br />
E assim Glória começou como um prêmio de consolação. Uma menina branquinha<br />
de formas curvilíneas em cujo afeto eu poderia afogar as mágoas. Levei-a para Itacoatiara<br />
por que era o canto do Rio <strong>mais</strong> afastado que eu c-nhecia. Se ainda nutria<br />
alguma aspiração de voltar com Marlene, a armação tinha que ser bem feita. Ali as<br />
chances de trombar com algum amigo da minha ex eram quase nulas. Eu frequentava<br />
aquele extremo da Cidade Maravilhosa desde meus tempos de escoteiro, quando ir<br />
até lá era um empreendimento cansativo, feito de barca seguida de ônibus baldeador,<br />
que demorava anos para chegar ao destino. Dessa vez, fomos de moto. É longe, mas<br />
fizemos boa viagem. Não tive dificuldades para encontrar a figueira centenária que<br />
marca o início da trilha ligando o topo da estrada Gilberto Carvalho ao Pico do Alto<br />
Mourão. Filho de mateiro e criado na Floresta da Tijuca, quis impressionar Glória com<br />
meus supostos conhecimentos dos encantos escondidos do Rio de Janeiro (porque<br />
Niterói para mim é Rio). O tiro saiu pela culatra. Glória, apesar de esguia e bela, não<br />
é muito atlética. Sofreu horrores para subir a montanha. Na parte final, pouco antes<br />
de chegar ao cume do Morro do Elefante, onde há uma escala-minhada, travou. Ficou<br />
histérica. Não quis prosseguir de jeito nenhum. Estava morrendo de medo. Procurei<br />
convencê-la de tudo que é maneira, mas não fui bem-sucedido. Descemos sem
conseguir alcançar a <strong>mais</strong> bela vista de todo o Grande Rio. O que tinha sido pensado<br />
para ser uma brincadeira no parque virou programa de tupinambá.<br />
Quando finalmente pisamos nas areias de Itacoatiara, Glória estava exausta. Ten-<br />
tei chamar sua atenção para a praia formosa encaixada entre dois belos pontões de<br />
pedra lisa, crua e reluzente, sem igual do outro lado da baía. Glória só queria saber<br />
de se deitar. Transpirava profusamente, coçava sem parar as pernas picadas de<br />
formiga e ainda estava tensa da caminhada. Para o seu nível de experiência, aquela<br />
excursão no mato havia sido uma grande aventura por uma terra nova e bravia que<br />
ela só conhecia dos filmes de Indiana Jones. Quis logo apertar um baseado para relaxar.<br />
Me opus à ideia. Gosto da minha maconha, mas acho que fumar na praia dá<br />
bandeira, incomoda quem é careta e chama atenção da polícia. Glória não fez caso<br />
da argumentação e queimou sua erva. Me destaquei e fui dar um mergulho. Saí do<br />
mar alegre, achando que aquele era o meu dia, mas felicidade de pobre dura pouco.<br />
Glória havia caído no <strong>mais</strong> profundo dos sonos. Fiquei sem saber o que fazer. Imbuído<br />
de segundas intenções, tinha planejado almoçar em um restaurante caseiro<br />
em Piratininga e fechar a tarde com chave de ouro, apreciando o pôr do sol no Museu<br />
de Arte Contemporânea no Ingá. O projeto era mostrar à Glória um Rio bonito e diverso<br />
daquele que ela conhecia. Deu tudo errado e eu não tinha um plano B. A moça<br />
dormiu <strong>mais</strong> de duas horas. Fiquei a seu lado, de atalaia, para que nada, nem ninguém<br />
perturbasse seu descanso. Deixei-me entreter por seu par de seios semicobertos pelo<br />
escasso sutiã do biquíni. Fiquei imaginando aqueles peitos alvos e rijos como se fossem<br />
o Chimborazo e o Cotopaxi, dois vulcões cônicos que flanqueiam a capital do<br />
Equador, eternamente cobertos pelas neves da Cordilheira dos Andes. Foi um erro<br />
crasso. Glória passou esse tempo todo com a pele branca exposta ao sol. Despertou<br />
muito queimada. Saiu da praia vermelha como um pimentão. Um desastre.<br />
Tinha idealizado fazer sexo madrugada adentro. Preparara um arsenal de golpes<br />
sedutores: frases de efeito, espumantes gelados, filmes românticos, haxixe trazido de<br />
Amsterdã para ser fumado em narguilê digno dos califas de Bagdá e outros badulaques.<br />
A realidade foi um pouco diferente. Passei a noite na cama com Glória, sim.<br />
Mas com novalgina, água de coco e termômetro do lado de cá, cuia com cremes<br />
hidratantes e unguentos do lado de lá. Tirei serviço de enfermeiro.<br />
15<br />
|<br />
maldito juscelino
16<br />
maldito juscelino |<br />
QUATRO PLANTÕES<br />
Sexagésima quarta delegacia de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, São João<br />
de Meriti, Baixada Fluminense. Vinte de janeiro, meio-dia.<br />
O delegado Castilho chama o detetive André Rocha Miranda. Recebe-o com as<br />
janelas e o colarinho abertos. O ar-refrigerado da sala do delegado, único da repar-<br />
tição, está quebrado. Seu rosto suarento encontra-se encoberto por um jornal. Está<br />
lendo as notícias do dia. Não olha para cima, fala sem desviar a atenção do matutino.<br />
— Tá aí a portuguesa. Se despencou lá do Moneró só para falar comigo. Essa mu-<br />
lher vive <strong>aqui</strong>. É meio pancada, mas em memória ao inspetor Juliano Moreira, seu finado<br />
marido, atende ela pra mim e vê se trata ela direitinho.<br />
Rocha vira-se para sair. Ao atravessar a porta, ainda ouve o del. Castilho sussurrar<br />
alto instruindo-o a não revelar que ele estava na delegacia. A portuguesa era personagem<br />
folclórico na 64ª. Viúva de um policial das antigas, pirou quando o marido<br />
faleceu. Com efeito, a morte do velho Juliano Moreira foi cruel. Ao ser parado em<br />
uma falsa blitz, foi identificado pela bandidagem como cana dura. Ainda tentou reagir,<br />
mas não teve tempo. Morreu com <strong>mais</strong> de 15 tiros. A maioria no rosto, que ficou<br />
completamente desfigurado. No enterro, era lamentável o estado da portuguesa.<br />
Uivava como o vento; as lágrimas saíam aos borbotões, saltando de seus olhos como<br />
se fossem os gordos pingos de uma chuva de verão.<br />
Nos meses que se seguiram, a portuguesa se entregou à religião. Foi a forma que<br />
encontrou para aliviar a dor. Passou a frequentar a missa todos os dias. Assistia aos sermões<br />
de Miguel Dibo, um beneditino culto, muito <strong>mais</strong> devotado à história do que<br />
aos ensinamentos da Bíblia. Padre Miguel, por sua vez, era discípulo de Dom Sebastião,<br />
um bispo que, na década de 1950, empreendera uma nova cruzada se opondo com<br />
veemência à remoção da capital para Brasília. Fiel aos ensinamentos do mestre, Miguel<br />
acreditava que essa transferência tinha sido a mãe de todos os males que afligiam o
Rio de Janeiro: a favelização, o desinvestimento, a deterioração dos costumes, a inse-<br />
gurança pública e, sobretudo, a posterior fusão, que subordinara os interesses de uma<br />
cidade acostumada à sua independência a um estado atrasado e corrupto.<br />
D. Sebastião batera-se em sua cruzada pelo Rio até os limites de suas forças. Lutou<br />
contra tudo e contra todos. Até na Igreja, que era sua própria corporação, encontrou<br />
dificuldades. Foi repreendido <strong>mais</strong> de uma vez pelo cardeal Dom Jaime Câmara<br />
e, em sigilo, pelo próprio Papa João XXIII.<br />
Tanto fez que acabou sumindo misteriosamente dois anos antes da inauguração da<br />
nova capital. Após rezar uma missa dominical na matriz de Guaratiba, seguira para<br />
uma reunião com os opositores da construção de Brasília em um restaurante chamado<br />
A Casa dos Quibes, na verdade pouco <strong>mais</strong> que um boteco na avenida Marrocos, em<br />
Bangu. O encontro não correu bem. Vários eleitores do presidente Juscelino — veio<br />
gente até de Nova Iguaçu — haviam se infiltrado no bar e tumultuaram o discurso do<br />
religioso. O clima subiu a temperaturas dignas do Saara e o pau comeu. Ao final, os<br />
seguidores do bispo foram desbaratados à porrada. O próprio Dom Sebastião desapareceu<br />
na confusão e ja<strong>mais</strong> foi encontrado de novo.<br />
Pois é. Desde que perdeu o marido, a portuguesa meteu na cabeça que Dom Sebastião<br />
não havia morrido na batalha da Casa dos Quibes. Insuflada pelos sermões sebastianistas<br />
de Padre Miguel, acreditava piamente que o bispo havia de reaparecer e<br />
restaurar a grandeza e a autonomia do Rio de Janeiro.<br />
Com o passar dos anos começou a ser acometida de delírios. Via Dom Sebastião nos<br />
lugares <strong>mais</strong> estranhos, dentro do tanque de sua casa, jogando bola de gude com os<br />
alunos na hora do recreio no meio do campo do colégio do seu neto, recolhendo<br />
oferendas de macumba nas encruzilhadas do Parque Roial, pregando para crianças assustadas<br />
agarradas à barra das saias das mães, negociando uma pechincha na venda<br />
da varanda, saboreando as frutas <strong>mais</strong> maduras do jardim pedregoso que era o quintal<br />
de sua casa, fritando castanha-de-caju com óleo de dendê em uma casinha no<br />
Guarabu e por aí afora. A cada visão correspondia uma queixa na delegacia do bairro.<br />
Queria que alguém fosse lá resgatar o pobre Dom Sebastião e convencê-lo a reassumir<br />
suas funções de defensor perpétuo do Rio de Janeiro. No princípio, a tiragem<br />
ainda a recebia, anotava seu pleito e prometia providências. Com o passar do tempo,<br />
contudo, os antigos colegas de Juliano Moreira foram se aposentando e a portuguesa<br />
não lograva <strong>mais</strong> sequer ser ouvida pela Polícia. Por isso é que, mês sim outro também,<br />
ela empreendia a longa jornada até Meriti para informar o paradeiro de Dom<br />
17<br />
|<br />
maldito juscelino
18<br />
maldito juscelino |<br />
Sebastião. O del. Castilho tinha sido íntimo de seu marido e, ainda por cima, era ca-<br />
xias. Na 64ª, a portuguesa era sempre atendida.<br />
Acabava sobrando para Rocha. Era o <strong>mais</strong> novinho na delegacia. Cabia a ele roer<br />
o osso duro. Mal chegou à recepção, já deu com a pança da portuguesa apoiada no<br />
balcão. Com seu forte sotaque de Lisboa temperado pelo hálito azedo dos dentes de<br />
alho que comia todas as manhãs, ela metralhou:<br />
— Dom Sebastião está a andar aí. Eu o vi hoje mesmo embaixo de um salgueiro que<br />
plantei no viçoso jardim que mantenho nos fundos de casa. O gajo está com saúde,<br />
mas está encantado ou coisa parecida. Quando comecei a falar com ele, saiu apressado<br />
e se escondeu no terrenão da olaria desativada lá do bairro. Eu corri atrás e não<br />
o encontrei, mas pá, que tá lá, isso ele tá. Ele não gosta de ser flagrado. É cheio de<br />
engenhos esse Sebastião.<br />
Rocha virou o rosto para se resguardar das lufadas impregnadas de alho e começou<br />
a anotar. Simulava estar levando o caso a sério, mas a lusa não se convenceu. Entrou<br />
a esbra<strong>veja</strong>r:<br />
— Vocês só escrevem e rabiscam. Para ter bom sucesso tem é que mandar alguém lá!<br />
O detetive suspirou e respondeu:<br />
— Não se preocupe dona, a polícia irá já. Tão logo tenhamos uma viatura, enviamos<br />
alguém.<br />
O argumento, construído em cima de um montão de veículos parados por falta de<br />
manutenção, não aplacou a viúva.<br />
— Estou vendo que o pátio está cheio de carros. Em bom português, irá já quer<br />
dizer agora mesmo, não é depois, nem amanhã. Falta <strong>aqui</strong> é alguém como o finado<br />
inspetor Mesquita. Com ele não havia essa falta de vontade de trabalhar. Vocês são<br />
todos vagabundos!<br />
Enquanto falava, lançava um chafariz de perdigotos no chão, no balcão, no rosto<br />
do detetive. Rocha perdeu as estribeiras:<br />
— Sua velha coroca, vira essa boca do mato pra lá. Vê se escova os dentes de<br />
manhã antes de falar com as pessoas. Além disso, desiste. Troca o disco. Esse cara já<br />
morreu. Faleceu. Bateu as botas! Ficou para santo. São Sebastião não vai renascer.<br />
Nunca vai voltar, entendeu? Ja<strong>mais</strong>! A senhora só vai encontrá-lo quando tomar o<br />
caminho do céu.<br />
Nem sequer tinha acabado de despejar sua ira e a portuguesa já estava uivando.<br />
O del. Castilho apareceu em menos de 40 segundos. Abraçou a velha, acariciou seus
cabelos. Chamou o detetive Sampaio, ordenou que pegasse seu automóvel e levasse<br />
a viúva de volta para casa. Recomendou que vasculhasse a olaria.<br />
— Se Dom Sebastião ainda estiver lá, ache-o.<br />
Retornou à sua sala. Convocou o inspetor Silvestre.<br />
— Esse Rocha é duro de<strong>mais</strong>. Não tem maturidade para atender o público. Vamos<br />
ter que tomar uma providência. O que você acha da ideia de transferi-lo para o setor<br />
de homicídios?<br />
19<br />
|<br />
maldito juscelino
20<br />
maldito juscelino |<br />
64ª Homicídios<br />
Sexagésima quarta delegacia, São João de Meriti, Baixada Fluminense. Primeiro de<br />
março, três e trinta da manhã. Toca o telefone, atende o detetive Sampaio; fala, con-<br />
versa, toma notas, desliga. Traga uma última vez seu Marlboro, suspira, amassa a<br />
guimba do cigarro no cinzeiro e, pesadamente, levanta-se.<br />
As paredes estão com a tinta descascando, o chão está impregnado de poeira e,<br />
apesar dos janelões e do pé-direito altíssimo, a D.P. é quente como uma sauna fin-<br />
landesa. Sampaio cruza a sala de atendimento e atravessa duas portas para entrar<br />
num recinto escuro. Para em frente a um sofá velho e desconjuntado. Ali, com a barba<br />
por fazer, dorme um homem. O inspetor ainda hesita antes de despertá-lo, chega a<br />
levar as mãos aos bolsos em busca do maço de cigarros, mas desiste. Olha com ca-<br />
rinho o pequeno ventilador que acalenta seu colega. Uma propriedade particular, é<br />
claro. A Polícia Civil não possui verba para luxos.<br />
O tira Rocha acorda com cara de espanto. Olhos arregalados, remela, dor de<br />
cabeça, o cabelo em desalinho <strong>mais</strong> parece uma juba. Apruma-se no sofá. Estica os<br />
braços. Espreguiça-se. Escancara a boca, abre o bocejo característico e largo dos leões,<br />
com direito a bafo e tudo (Sampaio vira o rosto). Levanta-se. Lava a cara.<br />
<br />
Homicídios. A PM informa e a Civil faz a perícia do local, só que a 64ª não dispõe<br />
de viatura para este tipo de serviço. Dos quatro veículos da delegacia, só o do dele-<br />
gado está em condições de uso, os outros repousam há semanas na oficina Auto Cas-<br />
tro, de propriedade de um detetive aposentado. O Estado não liberou a verba para<br />
pagar a manutenção. Francisco de Castro não cobra mão de obra. Seus mecânicos vão<br />
consertando os carros à medida que conseguem receber os acessórios que precisam<br />
ser repostos, mas o processo não é simples. Sem dinheiro, nem mesmo as peças<br />
chegam em sincronia com a necessidade. Dez para as quatro da manhã, o tira Rocha