o economista
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―Que importa se um homem é morto ou não, quando todo<br />
um reino está às portas da morte? E ouve com atenção:<br />
para salvar este reino, inventarei tudo o que for<br />
preciso. Tudo o que dê forças a estes homens e a estas<br />
mulheres para lutarem por ele até à última gota do seu<br />
sangue‖<br />
( in ―Este reino que eu escolhi‖ de Alice Vieira)<br />
2
―O SR. ZÉ, O PENTE E O CHURRASCO‖<br />
P<br />
orra, passavam dois dias que o Sr. Zé não tinha<br />
a cálida companhia da sua esposa, nas noites<br />
sem fronteira da sua cama. De que maneira!<br />
Sengara a mulher, o barulho dos candengues, as<br />
três boas refeições que o bom do senhor sempre tinha<br />
diariamente; como sozinho havia já sengado o raio do seu<br />
predilecto pente de osso, razão e incógnita de todas as<br />
demais senguices.<br />
Com isso, em casa, apenas restavam a casa, a cadela<br />
Violeta, o Sr. Zé, o seu primogénito parido, e um irmão.<br />
Até as duas latas de chouriço Nobre, não falando já de<br />
tudo e mais quanto desse para encher a pança, que na<br />
nobreza daquela casa havia, haviam sengado com a esposa.<br />
E tudo, por causa do pente de osso do senhor Zé! É que<br />
não havia pente de ouro mais dourado neste mundo, capaz<br />
de afrontar réplica aos de osso, predilectos do senhor<br />
Zé. Fosse lá que pente mais pente fosse, qual quê, se<br />
atreveria a substituir aos de osso predilectos do senhor<br />
Zé!<br />
Mas, porra, nesse dia houve uma xinguilança sem<br />
precedentes! Havia o senhor Zé acabado de se lavar,<br />
quando na pressa de ter de voltar ao segundo período de<br />
trabalho, quase teria ido com o cabelo despenteado. Vai<br />
então ao sítio do pente e patavina é que lá encontrou.<br />
Todo o mundo tinha de suspender fosse o que fosse<br />
que estive fazendo: defecando, sonhando ou morrendo, para<br />
dar um S.O.S aos calundús daquele homem. E lá todo o<br />
mundo, de Cabinda ao Cunene, foi se contagiando pelo<br />
xinguilar pentossóico do senhor Zé, pondo a mobília da<br />
sala comum no quintal, a do quintal na sala comum, e a do<br />
quarto de banho, essa então… no quarto de todos os<br />
calundús que havia naquela casa, transformada dum<br />
instante para o outro em alvoroço, em foge-abelha de<br />
acordar os mundos de sossego da vizinhança, tudo e todos<br />
à procura do pente de osso do senhor Zé!<br />
Mas para sempre o pente desaparecera…<br />
3
… Como para sempre vai também desaparecer, passados<br />
dois dias do desaparecimento pentossóico, o churrasco de<br />
cem escudos, tão bonito, tão engraçado e bem<br />
engindungado, que o senhor Zé havia comprado no Piri-<br />
Piri, com ele subido ao muceque, chegado à casa e por<br />
fim, lhe aterrando na cozinha.<br />
Nem sequer o churrasco tinha descansado e já o<br />
senhor Zé ameaçava a sua existência, mandando fritar<br />
continentes de batata e assar países de pimenta. E lá<br />
foram os quatro se empregando: o senhor Zé no quintal,<br />
dando um jeito de ocupar o vazio do tempo; o irmão,<br />
frigindo as batatas e assando os pimentas, isto no<br />
quintal; e também aqui, a cadela Violeta farejando aqui e<br />
ali, em cada centímetro quadrado que fosse…<br />
O primogénito-parido que se encontrava a shelltoxear<br />
o interior da casa, achou por bem e por lógica descansar<br />
o churrasco num divã existente no quintal, afim de evitar<br />
esse tão precioso bem a exposições shelltóxicas.<br />
Pois não é que, sentados já à mesa, mesa posta:<br />
pratos, talheres, copos, batatas e pimentas, o senhor Zé<br />
perguntando pelo churrasco, porra, o primogénito-parido<br />
vai da mesa embalado para o quintal, voltando instantes<br />
depois com a notícia de óbito na cara!<br />
---- Então? ---- perguntava o senhor Zé, engolindo<br />
as águas na boca.<br />
---- Não está lá, pai ---- respondeu tímido, o<br />
primogénito.<br />
Tudo parecia brincadeira…<br />
---- Mas o chôrrasco está aí na cozinha, como é que<br />
não está?<br />
----Sim pai. Mas depois fui meter lá fora no divã,<br />
por causa do shelltox.<br />
---- Por causa do shelltox… ---- arremedava o pai. -<br />
--- O shelltox come chôrrasco? Come?...<br />
4
Daí, os três meterem-se logo a barafundar o quintal<br />
todo, a casa toda, do norte ao sul, do este ao oeste,<br />
desmontando capoeiras, desandando pocilgas, cavando até<br />
mesmo o solo e o subsolo do solo e do tecto daquela casa.<br />
Só as estrelas testemunhavam gratuitamente aquele<br />
filme.<br />
E a cena prosseguia. O senhor Zé, o primogénitoparido<br />
e o irmão do senhor Zé, a protagonizarem sozinhos,<br />
mais uma cena familiar. Era um ―três contra todos‖ ao<br />
vivo.<br />
Mas eis que de repente vem à cabeça do senhor Zé<br />
cheirar o focinho da cadela Violeta, muito sossegadinha<br />
ante todo aquele exaltar de ânimos.<br />
---- Filha da puta! ---- bombardeou o Sr. Zé.<br />
Afinal o churrasco estava na pança da cadela?!...<br />
E foi nessa mesma pança que o senhor Zé começou por<br />
descarregar todo o seu quicoto, contra a desaparecimento<br />
físico do churrasco, tão enjindungado, tão sei lá… dando<br />
nela socos e pontapés de febre amarela, para logo de<br />
seguida ---- arrumada K.O. a cadela da cadela Violeta, --<br />
-- partir a cabeça do seu primogénito-parido, com dois<br />
coconotes bem grávidos de fúria, de raiva e desgraça, na<br />
desgraça daquela sua vida.<br />
---- Merda! Agora vão lá comer aquela merda! ----<br />
decretava o senhor Zé, ainda enfatuado de raiva.<br />
Mas ele também, não podendo fazer greve de fome, foi<br />
igualmente comer aquela merda.<br />
Mas, porra, que dessem mãos aos cães e lá a cadela<br />
Violeta, estou seguro, faria também os seus churrascos.<br />
Só tinha direito a ossos?<br />
Mas, nem aos ossos teria direito, é sabido. Porque o<br />
irmão do senhor Zé e o primogénito parido, mastigavam e<br />
engoliam todos os ossos que fossem aos seus dentes, e o<br />
5
senhor Zé, não só os mastigava e engolia, como também<br />
tinha deles preferência como matéria-prima dos seus<br />
pentes…<br />
Rangel, 11 de Setembro de 1985<br />
6
...A<br />
―DAS FITAS‖<br />
lternância do poder?, para quê, se ele<br />
só cortava fitas, Fitas e só FITAS,<br />
rodeado de muitas cadeiras de fitas que ele próprio tinha<br />
obtido das mangueiras de plástico de petróleo, que nem<br />
todas eram feitas aí muito perto do seu mbongue e da<br />
avenida estreita de mais para quem lá quisesse chegar e<br />
dizer: ó kota, então, já cortaste as minhas fitas?...<br />
Poucos sabiam ao certo, donde viera, como viera,<br />
nem por que cargas de petróleo o Das Fitas tinha vindo.<br />
Sabia-se é que na base da sua locomoção estava e sempre<br />
tinha de estar o petróleo nosso de cada dia muitos<br />
bilhões de dólares, de que ele só bilhas via, na hora em<br />
que a tesoura cansada tinha de ser enviada ao Nando, o<br />
homem dos afias e ele, aproveitava para tirar umas férias<br />
rápidas, rapidinhas, mas sempre eficientes, no bilhar do<br />
kota Lulas, ali próximo do rio do vale do Soroca.<br />
Ponto assente e unânime, é que o rapaz devia ter<br />
vindo de muito longe, das terras do Tunda-Daki, do<br />
Cambundi Catembo, do Quirima ou quiçá mesmo das terras do<br />
Luquembo. Falava songo, quimbundo, umbundo, e o<br />
português, é coisa que o rapaz, sim senhor, sabia<br />
maltratar:<br />
—— Ó ti Luís, os ngajo ndu Cipare quero sumbir as<br />
preço ndo manguera.<br />
—— Como assim?! —— interrogava o homem dos<br />
matraquilhos.<br />
—— É! Eles num sabe que nojo é que estamojo lhes<br />
ndare a dinhero, senão quem é que ia lhes comprare os<br />
manguera ndere. Aqui no Luanda água num há, manguera só<br />
ndá memo pros candera nde fita...<br />
—— Papá, o tisora já está prontado! —— era o filho<br />
a interromper-lhes.<br />
7
Pagou a conta das duas partidas de bilhar, deu<br />
o último trago da garrafa de cerveja, e foi retomar o<br />
serviço.<br />
Tinha cerca de trinta e cinco ou trinta e oito<br />
anos, mas a vida lhe promovera logo para lá dos quarenta,<br />
tal a responsabilidade que tinha para alimentar, vestir e<br />
cuidar do estado da saúde dos seus oito rebentos<br />
provenientes das suas duas mulheres, todos eles<br />
empregados ali na rua do Rei Ngola, rodeados de dióxido<br />
de carbono, de poeira, do cheiro nauseabundo vindo das<br />
águas residuais do rio Soroca, rodeados do barulho dos<br />
carros, do barulho das buzinas dos carros, do barulho da<br />
buzina dos comboios, das bicicletas, dos aviões e, graças<br />
a Deus do calor do sol a escorrer-lhes pelos rostos,<br />
pelos peitos, pelos braços, sempre a albergarem a forte<br />
funguta de catinga dos pêlos ruços dos sexos e das<br />
axilas.<br />
De quando em quando, uma brisazinha passava por<br />
aquele lugar, levando-lhes o aroma da cevada que muito<br />
perto dali fermentava nas caldeiras já capitalisticamente<br />
reguladas...<br />
Das Fitas ainda se lembrava da fita que o seu<br />
primo-como-irmão, man-Kizua, lhe contara, sobre os<br />
cubanos que haviam morrido na fábrica cervejeira, tempos<br />
idos, quando depois de lá andarem a labutar e a se<br />
entulharem de bué de cerveza, um deles reparando en el<br />
manometro de la caldera, descubrió que la maquinaria eres<br />
imperialista! E para aumentar a produção, produção,<br />
produção, o cubila sai-te de irregular para mais a<br />
temperatura da grande panela há muito regulada pelos<br />
tugas. Nem tempo de gritarem ―viva la Pátria!‖ tiveram, e<br />
ficaram todos com os cohones e as jinguingas<br />
diametralmente rebentadas pela súbita explosión de la<br />
caldeira imperialista.<br />
Nesse dia, Kizua, ainda como ajudante de<br />
enfitador, pensou que a guerra tivesse chegado ao<br />
interior da fábrica de cerveja e que como era óbvio<br />
estender-se-ia até ali na periferia. Mas ficou logo<br />
calmo, quando passado algum tempo não ouviu mais nenhuma<br />
explosão, nem o barulho de qualquer disparo retaliador.<br />
8
Apenas a imediata mudança na cor das águas do rio do vale<br />
do Soroca lhe chamara a atenção. De preto, as águas<br />
passaram para vermelho, aumentando o socialismo, a secção<br />
e a velocidade.<br />
Das Fitas nem dava pelo passar da brisa. O seu<br />
corpo tinha de estar em constante e incessante movimento.<br />
Não sabia porque motivo as fábricas tinham deixado de<br />
produzir fitas para as cadeiras dando preferência ao<br />
fabrico de mangueiras, que eram mais caras e ainda por<br />
cima tinham de ser recortadas de ponta a ponta e com todo<br />
o cuidado do mundo.<br />
Nessa altura em que quase não se verificava a<br />
produção de sofás, quatro cadeiras de fitas à volta de<br />
uma mesinha de madeira, tudo feito à duas pancadas, eram<br />
o cartão de visitas para a maior parte dos lares de<br />
Luanda, e não só.<br />
Camiões que viajavam para as províncias, sobretudo<br />
para as do interior, iam ao Das Fitas fazer grandes<br />
carregamentos de cadeiras, há muito encomendadas. A carga<br />
acabava sempre por ser despachada nos mercados paralelos,<br />
para onde até dirigentes e responsáveis do partido e do<br />
estado, iam comprar para colocar nos seus gabinetes,<br />
essas cadeiras que dificilmente partiam, e tal como a<br />
fita com que Das Fitas as encobria, vinha igualmente do<br />
petróleo o dinheiro da sua aquisição.<br />
Por essa e por outras, é que ele tinha de<br />
locomover braços, pernas, olhos, filhos, mulheres, tudo<br />
muito depressa e inteligentemente planeado, antes que<br />
aparecesse por lá um zongolador qualquer de olhos<br />
rasgados sabia-se lá em que Ásia, a se embebedar nele da<br />
―imperialista‖ ideia de inventar uma máquina de cortar<br />
mangueiras, de enfitar cadeiras, de lhe cortar os braços,<br />
a boca e a comida para as onze bocas, incluída a sua, que<br />
tinha todos os santos dias da semana, do mês e do ano, de<br />
alimentar, quando não aparecesse pela cubata adentro um<br />
visitante qualquer não solicitado, que «esses do mato<br />
visitam muito os outros sem se importarem pelas<br />
consequências logísticas e financeiras que tais<br />
veleidades acarretam»...<br />
9
Mas, colocar mais um ou mais dois pratos na mesa,<br />
já não era preocupação para Das Fitas, porquanto longe<br />
estavam os dias em que para as suas duas casas o<br />
matabicho era milho cozido, o almoço milho cozido, e para<br />
variar, tinham como jantar, milho torrado sobre o lume de<br />
restos de plástico e outros combustíveis que os seus<br />
filhos iam buscar às montanhas de lixo do Tunga e vinham<br />
alegremente colocar entre as massuícas...<br />
Quando, vindo do mato, aterrou com as suas duas<br />
mulheres, quatro filhos e algumas imbambas, na estação<br />
dos caminhos de ferro, ali junto do Tunga-Ngó, Das Fitas<br />
nem sabia sequer como seria o dia seguinte para si e para<br />
a sua família. O transporte teve de ser pago com alguns<br />
dos sacos de macroeira que haviam trago, e com o dinheiro<br />
obtido da venda dos sacos restantes, alugou uma cubata de<br />
quarto e sala, feito de chapas de zinco, aí mesmo no<br />
bairro Tunga-Ngó, para não terem de andar muito com os<br />
filhos, os dois kibutos contendo trapos, cuecas, canecas<br />
e panelas de lata, mexericos de pau e outros luxos<br />
divididos entre as duas cabeças das suas mulheres.<br />
Mas tendo a cubata apenas um quarto e uma sala,<br />
depois do aval positivo recebido do senhorio, Das Fitas<br />
conseguiu encontrar uma chapa de zinco na lixeira, com a<br />
qual fechou a porta do quarto, e para cada divisão, abriu<br />
uma porta dando para o quintal, tornando a cubata em duas<br />
cubatas gémeas e siamesas, com duas noites do seu corpo<br />
para cada corpo das suas duas mulheres, quando nenhuma<br />
delas estivesse com bandeiras à fio, é claro, porque ele<br />
Das Fitas não era homem de ver o fogo a se apagar sem<br />
dele se queimar.<br />
Alugada a casa, contas feitas, de dinheiro quase<br />
nada tinham, e da macroeira sobrava apenas um kibutozinho<br />
que a reunião do Conselho Consultivo entre Das Fitas e<br />
suas duas mulheres, com os seus quatro rebentos na<br />
condição de observadores, sem direito nem a palavra, nem<br />
ao voto, deliberou mandar colocar sob molho com um<br />
10
pouquinho de sal na água, e depois, com um litrinho de<br />
óleo alimentar comprado no mercado xará do bairro, lá<br />
foram as duas no dia seguinte postar-se junto à rua do<br />
Rei Kiluanje, para venderem bocadinhos de bombó fritos in<br />
loco, à olhos de ver e fome alguma deixar ficar.<br />
Tendo as mulheres partido para a rua, Das Fitas<br />
não ficou em casa a espera da lua. Trocou a ceroula<br />
branca e encardida, pela calça jeans que trouxera do<br />
mato, um bocadinho curta para a sua altura, mas que<br />
acompanhada da camisola com a cara sorridente do Camarada<br />
Presidente aí estampada, acrescido de um par de peúgas<br />
roídas pelos dibengos gulosos do chulé dos seus pés, já<br />
então enfiados nos pancos amarelinhos, comprados no<br />
mercado da Xauânde, era mais do que o suficiente para ir<br />
estampar-se todo ele igualmente à rua do Rei.<br />
Afinal, do ponto em que se postara, tinha<br />
enquadrado entre os quadrantes da sua observação, todos<br />
os movimentos e gestos das suas duas garinas e de<br />
qualquer cliente que delas se aproximasse, mas também ele<br />
próprio, era observado visto e reparado pelas pessoas que<br />
por ele passavam, não faltando mesmo algumas a lhe<br />
atirarem sorrisos e risos jocosos e abusivos, se calhar,<br />
pelas calças que lhe estavam a chover, e pelo ridículo<br />
amarelo dos seus sapatos. ―Esse então, veio de qualé<br />
mato?!‖, perguntavam-se, talvez, dentro de si muitos<br />
transeuntes. Alguns, não hesitavam mesmo em afrouxar o<br />
passo, só para reparem-no de baixo à cima, como se o<br />
homem fosse um alienígena, um extraterrestre, ou será que<br />
estavam pensando que ele fosse o Michael Jackson, o<br />
Nkwame Kruman, ou o Tshombé?<br />
...Das Fitas, estava-se nas tintas.<br />
Tendo um dos olhos firmemente fixado nas suas duas<br />
kimbetas, com o outro ia observando os carros e as<br />
pessoas que passavam ali a sua frente, mas volta e meia<br />
colocando mais um olho na observação das mulheres.<br />
No final do dia, posto já em casa, Das Fitas teve<br />
a sensação que um dos olhos ficara maior que o outro, um<br />
pouquinho desajustados, mas a suavizar-lhe tudo isso,<br />
veio depois o ajuste de contas dos novos kwanzas, que os<br />
11
membros efectivos do Conselho Consultivo imediatamente<br />
trataram de conferir.<br />
O resultado das vendas ultrapassara as<br />
expectativas. Saíra o dobro do valor calculado da<br />
macroeira, e do litro de óleo alimentar, e ainda sobrara<br />
quase meio litrito do óleo já utilizado.<br />
Arrependeram-se, entretanto, por terem vendido os<br />
sacos de macroeira, com o valor dos quais haviam alugado<br />
a cubata. Se pudessem voltar atrás, teriam se enfiado<br />
ainda na casa do primo Kizua, mas andando ambos em<br />
emulação socialista, Kizua tinha já então igualmente duas<br />
kimbetas e quatro rebentos a viverem em duas cubatas<br />
gémeas-siameses, no bairro do Nguanhá, também banhado<br />
pelo vale do Soroca, e nem sequer em tal hipótese pensar<br />
podiam.<br />
Das Fitas imaginava mesmo aquele camião que lhes<br />
trouxera da província todo carregado de macroeira, a ser<br />
descarregado ali na rua do Rei Ngola Kiluanje e logo logo<br />
molhado em tambores de duzentos litros e frito em enormes<br />
frigideiras do inferno, com uma enormíssima fila de<br />
transeuntes, ávidos em adquirirem infinitas quantidades<br />
de bombó frito, para revenderem lá onde fosse que<br />
estivessem indo. Imaginava até mesmo montar uma grande<br />
indústria de produção e comercialização de bombó frito,<br />
para distribuir por toda a cidade, pelas dezoito<br />
províncias do país, pelo continente africano, e exportar<br />
quiçá até mesmo para Portugal, União Soviética, França,<br />
Inglaterra e outras terras terrestres e extraterrestres.<br />
Imaginava-se ele próprio sentado num grande cadeirão a<br />
conferir o dinheiro, o kumbú todo, kibutos e kibutos de<br />
notas que no final de cada dia as mulheres trariam para<br />
casa, para ele o Manager, o Chairman, o Presidente do<br />
Conselho Consultivo, conferir, contar e tomar conta.<br />
Mas não tinham muito de que arrepender-se<br />
porquanto pouca ou nenhuma hipótese haviam tido para<br />
prescindirem da venda dos sacos de macroeira de onde<br />
saíra o dinheiro para o aluguel da cubata.<br />
Como prémio para as suas mulheres, nessa noite Das<br />
Fitas dividiu o seu corpo entre os das duas, para que no<br />
12
dia seguinte nenhuma ficasse com kikoto, com despeito da<br />
outra. E, de manhã cedinho, lá foram as duas kimbetas<br />
super alegres para o mercado do Tunga comprar bombó para<br />
fritarem na rua do Rei, sob o olhar sempre silencioso do<br />
marido.<br />
Passadas algumas semanas, vendo que o negócio do<br />
bombó frito ia de vento em popa, sem qualquer razão de<br />
queixa no relacionamento com as suas mulheres, nem no que<br />
havia entre ambas, tendo reunido os membros do Conselho<br />
Consultivo da sua família, o marido deliberou, usando da<br />
faculdade que lhe conferiam todas as linhas do direito e<br />
do torto de ele próprio sustenta-la, passar a vender<br />
kimbombo e kaporroto aí mesmo em casa.<br />
Quando o primeiro cliente deu entrada ao quintal<br />
de Das Fitas, este ficou bastante condoído com o aspecto<br />
físico do homem. Alto e estreito, tinha uns olhos muito<br />
encarnados, os gestos demorados de um ressacado que bebeu<br />
em demasia no dia anterior, as vestes amarrotadas e meio<br />
sujas, e umas sapatilhas 4x4 enlameadas e rebentadas nos<br />
bicos.<br />
Das Fitas quase se arrependera por ter montado o<br />
negócio, mas para que não se arrependesse ainda mais,<br />
quando depois a fome e outras necessidades lhe haveriam<br />
de apertar nos colarinhos, tratou de engavetar os seus<br />
sentimentalismos e foi imediatamente atender o cliente,<br />
logo seguido por mais três, afinal todos amigos e cada um<br />
parecido com o outro, tendo o primeiro pedido um pouco de<br />
kimbombo, para provar, ao que se seguiu a reserva de<br />
quatro católicos garrafões.<br />
—— Esta kissara é que está fixe!—— exclamou um<br />
deles.—— A daquela mbôa Madó, está parece que meteram lá<br />
lipa.<br />
—— Quem? Da Madó?—— interrogava um outro. ——<br />
Aquela bruxa, puta de merda, kissara do primeiro dia fica<br />
parece que já tem uma semana!?<br />
—— É mesmo! Põem lá lipa! —— asseverava ainda um<br />
outro. —— Compram Vallium para pôr nos bidões, uma neca<br />
só um gajo fica já bem tonado, onde é que já se viu?...<br />
13
Sendo a primeira vez que fazia, Das Fitas<br />
preparara apenas meio bidon, cerca de cem litros.<br />
Calculadas as contas, nem mais um litro devia sair do<br />
bidon. Estava todo vendido.<br />
Quando outros clientes apareceram e Das Fitas deulhes<br />
a informação de que já não havia mais kimbombo,<br />
ficaram furiosos com a notícia.<br />
acabou?<br />
—— Então, inda agora que abriram também já<br />
—— Fizemojo só kametade do bidon, minhas mano. ——<br />
informou Das Fitas. —— Vamojo já montare bidon inteiro.<br />
—— E não sobrou nem só uma caneca lá no fundo do<br />
bidon, kota? —— insistiu um dos clientes.<br />
—— Nada, mano, compraram memo todo o bidon...<br />
—— O quééé??!!! Todo o bidon?! Agora é que estamos<br />
fodidos! —– exclamou um dos clientes, em modos de<br />
desilusão e batendo já em retirada, seguido dos outros.<br />
Com toda essa demanda, Das Fitas pensou que mesmo<br />
enchendo um único bidon, não seria suficiente para<br />
satisfazer a clientela, pois além dele só mais uma casa<br />
naquelas cercanias vendia kimbombo, e ainda assim as<br />
pessoas andavam de cima à baixo à procura de bebida à<br />
altura dos seus parcos bolsos.<br />
A segunda montagem, foi já de duzentos litros de<br />
kimbombo. De manhã muito cedo, Das Fitas despejou um<br />
quilo de açúcar no bidon, e depois de remexer muito bem o<br />
conteúdo com a ajuda de um mexerico comprido, provou o<br />
produto e tendo achado que estava óptimo para ser<br />
vendido, tapou o bidon com um saco de plástico. Das Fitas<br />
veio depois para o quintal e colocou a embalagem vazia de<br />
fermento de pão, no extremo da ripa que suportava a porta<br />
do quintal.<br />
Numa mesinha de madeira junto a uma das portas,<br />
colocou algumas canecas de vidro, uma tigela com água, e<br />
14
na saliência de um prego espetado na parte superior da<br />
porta, fixou um maço vazio de tabacos, sinal de que havia<br />
também cigarros à venda.<br />
E sem mais delongas, foram logo aparecendo os<br />
primeiros clientes do dia, um atrás do outro, como se<br />
estivessem andando em fila indiana.<br />
—— Bom dia, kota! Como é que passou a noite? ——-<br />
cumprimentou o primeiro cliente a transpor a porta.<br />
Antes mesmo de acabar de responder ao primeiro, já<br />
outros cumprimentos caiam sobre Das Fitas e a todos foi<br />
respondendo sempre com o rosto sorridente.<br />
—— Kota, ouvimos a fuma da tua kissara... —— dizia<br />
um dos primeiros clientes. —— O kota vai ver só como é<br />
que os minzangalas daqui chupam a kissara, vai ver!. Pra<br />
já, kota me reserva já aí um garrafão. A malta só bebe já<br />
garrafão, uma caneca, uma caneca nos dá muita maçada.<br />
—— Ai-é? —— indagou Das Fitas.<br />
—— É verdade, kota. —— e reparando no maço vazio<br />
de tabacos pendurado na parede, —— Também tem náite,<br />
kota?<br />
—— Sim, temos.<br />
O cliente passou em revista todos os bolsos que<br />
trazia e finalmente retirou de um deles uma caixa de<br />
fósforos e um maço vazio.<br />
outro.<br />
—— Kota, arranja só aí ―jogador‖ de dez.<br />
—— Me traz também de vinte, kota. —— aproveitou um<br />
Das Fitas foi para dentro, tendo regressado<br />
instantes depois com um maço de tabacos. Ao entregar os<br />
cigarros de dez novos kwanzas ao primeiro solicitante,<br />
este segredou-lhe:<br />
—— Kota tem de passar a vender também uns pexitos.<br />
15
—— Pexitos, como?!—— indagou-lhe Das Fitas.<br />
—— Peixe frito, kota, com jindungo!<br />
—— Ai-é?!<br />
—— E mandioca cozida também, kota. —— acrescentou<br />
um outro.<br />
outro.<br />
—— E kapuka também, kota. ——acrescentou ainda um<br />
Falando com os seus botões, Das Fitas concluiu que<br />
a vida em Luanda era afinal fácil. A questão estava em se<br />
saber andar, encontrar um meio de vida, e pimbas!...<br />
—— Me deixa só aí umas jiguitas, Kota Café. ——<br />
pediu ao primeiro comprador de cigarros, um dos clientes<br />
que apresentava muitos sinais e cicatrizes no rosto e nos<br />
braços.<br />
—— A jiguita é minha! —— interrompeu um outro, tão<br />
jovem quanto o anterior. —— O kota está andar comigo,<br />
como é que a jiguita vai ser tua?!<br />
—— Olha, kota Café, esse miúdo Capriquito, desde<br />
ontem já que vem a se meter comigo! Eu sou mbora ntão<br />
frustrado, não me custa nada te arrebentar com uma ngala<br />
dos cornos e ir te cumprir! —— dizia, enfurecido,<br />
estoutro jovem ao mesmo tempo que se levantava do bloco<br />
de cimento onde encontrava-se sentado, para ir ao ataque<br />
daqueloutro.<br />
Vendo o progresso do enfurecido, Capriquito pôs-se<br />
imediatamente de pé, tirando da cintura, uma chave de<br />
fendas comprida e pontiaguda.<br />
Ante o perigo iminente, Das Fitas e kota Café,<br />
seguraram cada um dos rapazes, reconduzindo-os para os<br />
seus respectivos lugares.<br />
16
Das Fitas, foi logo para dentro de casa saindo de<br />
lá com dois cigarros, oferecendo um a cada um dos<br />
rapazes.<br />
—— Num se matam só puro causa ndu tabacos, minhas<br />
fírios.—— disse Das Fitas ao entregá-los os cigarros.<br />
—— Porra, nós estamos mesmo fodidos, —— dizia o<br />
kota Café —— Onde é que já se viu duas pessoas a quererem<br />
se bondar só por causa duma merda de jiguita, onde? Você<br />
não sabe se o outro é tuberculoso ou não. Só já o próprio<br />
tabaco já te faz mal, lhe acrescentas mais o micróbio do<br />
outro, como é que você fica?...<br />
—— O bacilo de Koch, kota.—— acrescentou um<br />
cliente, aparentemente com mais estudos e com ar mais<br />
sofisticado que os demais.<br />
—— Bacio de quê?! —— interrogou ainda um outro<br />
cliente, com aspecto de lúmpen.<br />
—— Bacilo de Koch. —— repetiu o Estudioso.<br />
—— Qual é bacio de cocó qual é quê! O que traz<br />
tubú, é a lucutina do tabaco, rapaz! —— dizia com muita<br />
autoridade o outro. —— A lucutina é um suco tipo<br />
lacatrão, tás a ver, que cola nos purmãos, tás a ver.<br />
Aquela merda começa a te chupar, a te chupar, e ficas bem<br />
escafebele, bem fininho, tipo musquito, tás a ver?...<br />
O outro, apenas estava quieto, a ouvir, sem<br />
qualquer possibilidade de ver as mentiras destoutro. Mas,<br />
reparando ao seu redor, achou que não podia deixar que<br />
aquele lúmpen lhe derrotasse logo ali à frente de todos.<br />
—— Estás a falar à toa! —— interrompeu ele.<br />
—— Estou a falar à toa, eu?! —— retorquiu,<br />
ofendido o outro, dando já sinais de enfurecimento.<br />
—— Pra já, você estudou até que classe?—— desafiou<br />
o Estudioso.<br />
17
—— Porra, aqui ninguém está a falar de classes,<br />
como é então você, estás armado em mais estudante que os<br />
outros ou quê?<br />
—— Eu não estou armado em nada. Só estou a dizer<br />
que estás a falar à toa. —— insistiu o Estudioso.<br />
—— Mas também me perguntaste até que classe é que<br />
eu estudei, num perguntaste? Eu tenho a minha décimaterceira,<br />
tás a ouvir? Num pensas que eu não estudei, a<br />
merda da tropa é que fodeu a minha vida, tás a ouvir?<br />
Eu...<br />
—— Éééh, chega!!! Vamos parar já!!! —— decretou o<br />
kota Café, interrompendo o Lúmpen, que de imediato ficou<br />
calado. —— Vocês não podem manter uma conversa à vontade,<br />
sem se ofenderem? O tabaco traz sim tuberculose, mas<br />
também a diamba! —— prosseguia o kota Café, reparando que<br />
o Lúmpen baixara a cabeça ao pronunciar a última palavra.<br />
—— A nicotina da diamba é que é mais forte. Por isso, o<br />
diambeiro tem que papar bem, tomar muito leite.<br />
—— É verdade, kota. —— apoiava o Lúmpen, como que<br />
a disfarçar-se da carapuça atirada pelo kota Café.<br />
Nessa altura, o quintal pequeno que era,<br />
encontrava-se já quase cheio de clientes, jovens e<br />
adultos e velhos de ambos os sexos, cada qual com a cara<br />
mais machucada que a do outro, cada um com vestuário e<br />
calçado segundo a sua maneira e estilo, cada um com a sua<br />
personalidade, mas todos eles evidenciando o quão<br />
desgraçadas e tristes eram as suas vidas.<br />
Noutro canto do quintal, a conversa era outra:<br />
—— Você sabe o que é um comando? —— perguntava ao<br />
outro, um dos clientes que fisicamente aparentava ser ou<br />
ter já sido militar. —— Um comando, é todo o filho da<br />
puta, filho de pobre, filho de camponês, parido no<br />
musseque ou num quimbo lá qualquer do mato, que é<br />
arrancado da casa dos seus pais, ou do carinho da sua<br />
mulher, para ir entregar a puta da sua vida na puta duma<br />
bala, dum obus, ou duma mina qualquer lá da puta da<br />
frente de combate, ouviu?<br />
18
—— É fodido, kota. —— apoiava, com a voz condoída<br />
o outro.<br />
—— Fodido, é favor! —— exclamou o Comando —— O<br />
mais fodido é não encontrar lá na frente de combate<br />
nenhum filho da puta de filho dum ministro, dum deputado,<br />
ou dum dirigente qualquer, que só vão para a tropa fazer<br />
recruta dum coro, rodeados de bifes, perfumes, leites e<br />
putas, para serem depois colocados nos gabinetes das<br />
cidades, ao pé dos papás, a espera que estes se reformem<br />
para lhes substituir no lugar, sabias?...<br />
Num outro canto do quintal, a conversa era<br />
diferente:<br />
—— Se não matassem o Nito Alves, ele é que havia<br />
de endireitar esta merda!<br />
—— É verdade! —— apoiava um outro —— Você leu o<br />
livro dele ―As Dez Teses da Minha Defesa‖?, porra, aquele<br />
muadiê tinha, iá?<br />
—— Iá, eu li! —— respondeu o outro —— Numa das<br />
teses ele dizia que é necessário descer ao povo, para<br />
subir com o povo. E o que é que esses filhos da puta do<br />
governo fazem? Descem ao povo, se é que descem, mas é<br />
para espetarem kibiona no cu do povo...<br />
—— É mesmo verdade! —— apoiava o outro.<br />
—— É verdade, é verdade, mas neste país, se alguém<br />
fala a verdade é logo preso ou morto. Até sobre a puta da<br />
perna que perdi lá no Cuito Cuanavale, não posso falar<br />
nada! —— dizia um outro cliente, levantando as calças<br />
para mostrar a prótese —— Está aqui esta merda, é<br />
mentira, não é verdade?!...<br />
No círculo do kota Café, a conversa rondava à<br />
volta de um outro assunto:<br />
—— Quem te disse, onde é que você leste, qual é o<br />
documento que viste, que te diz que o kota Elias é o rei<br />
19
da música angolana? —— perguntava o Lúmpen ao Estudioso,<br />
pelos vistos ambos já mais calmos e concordes.<br />
—— É pá, documento, documento, eu não posso dizer<br />
que vi, nem sei se existe algum. Ele pode não ser rei de<br />
jure, mas de facto ele é. —— afirmava o Estudioso.<br />
—— Não estou a entender o que tás a dizer, rei de<br />
juri, rei de fato, o que é que isso quer dizer então? ——<br />
perguntava ainda o Lúmpen.<br />
—— Você me disse ter estudado até a décimaterceira<br />
classe, não sei em que escola,... como é que não<br />
sabes falar sobre assuntos tão elementares?<br />
—— É pá, mô kamba, vamos deixar de nos complicar<br />
outra vez. Vamos só ficar aqui a discutir, a nos<br />
ofendermos, e o quê que cada um de nós vai ganhar?<br />
—— Nada. —— respondeu o Estudioso.<br />
—— É melhor chuparmos só o nosso kimbombo. ——<br />
concluiu o Lúmpen.<br />
Mas o kota Café, que muito discretamente seguia a<br />
conversa entre os dois, interviu logo:<br />
—— Mas se nós não falarmos aqui sobre o que se<br />
passa no nosso país, onde é que vocês pensam que poderão<br />
falar? Na Assembleia do Povo? No confessionário da<br />
igreja?<br />
—— O kota tem razão. —— disse o Estudioso —— Não<br />
sei onde é mesmo que li que a um povo pode esconder-se<br />
toda a verdade durante algum tempo, esconder-se alguma<br />
verdade todo o tempo, mas é impossível a ele esconder-se<br />
toda a verdade todo o tempo.<br />
—— Isso mesmo, rapaz. —— disse o kota Café —— Se<br />
eu por exemplo te dizer que Agostinho Neto chegou a<br />
apanhar uma sova em Kinshasa, quando o MPLA foi<br />
escorraçado de lá, vocês poderão não acreditar...<br />
20
—— O que é?! —— Agostinho Neto apanhar sova em<br />
Kinshasa? —— indagou o Lúmpen.<br />
—— Isso se calhar nem vem registado em nenhum<br />
documento do movimento, mas qualquer militante dessa<br />
época teve conhecimento disso, mas como pensam que isto<br />
talvez manche a figura do Presidente, então eles ocultam<br />
tacitamente tudo quanto é ou pensam que é ou tenha sido<br />
uma nódoa para o historial do movimento.<br />
—— O que o kota está a dizer, é semelhante ao que<br />
se passou na União Soviética. Agora que estão a falar de<br />
glaznost, perestroika, perestroika, é que está vindo ao<br />
de cima muita casca de jinguba, muito lixo atirado lá no<br />
mar alto deles.—— dizia o Estudioso, sob o olhar<br />
silencioso e pasmado do Lúmpen e de muitos outros<br />
clientes. —— Existe uma fotografia tirada na Praça<br />
Vermelha, junto ao Kremlin, onde aparecia para além de<br />
Lénine, muitos outros dirigentes como Stalin e tantos<br />
outros que à medida que iam cagando fora do bacio, iam<br />
sendo suprimidos daquela fotografia...<br />
—— Qualquer dia a fotografia ficava sem ninguém! —<br />
— acrescentou o kota Café.<br />
—— Éh! Lá isso é verdade!—— prosseguia o Estudioso<br />
—— Mas os factos não deixam de o ser, quando os seus<br />
suportes são suprimidos ou destruídos. É verdade que<br />
quando morre um mais-velho, é mais uma biblioteca que<br />
também se fecha, mas mesmo que ele nunca em toda a sua<br />
vida tivesse aberto a boca para dizer ―kizua ó xi ietu ió<br />
ndo biluka‖, ou coisa parecida, ele teria chegado a essa<br />
conclusão pelos factos que se lhe davam a constatar.<br />
Porque tudo tem as suas leis, e as leis da vida não são<br />
como as leis humanas, que são feitas mais ou menos de<br />
acordo com as suas necessidades de determinado tempo, de<br />
determinado grupo ou classe social no poder...<br />
Nessa altura, a maior parte dos clientes<br />
encontrava-se mais atenta à prosápia do Estudioso, que<br />
prosseguia dizendo:<br />
—— Eu, por exemplo, fiz tudo quanto me foi<br />
possível para não ir à tropa. Numa situação que eu acho<br />
21
normal, eu até iria, sob certo ponto de vista cívico e<br />
social, o que não quer dizer que não concorde com as<br />
Testemunhas de Jeová, por exemplo, ou com qualquer outra<br />
pessoa que de consciência se queira abster de matar, de<br />
tirar a vida a outrém. Então para quê que se é signatário<br />
de uma declaração dos Direitos Universais do Homem, se<br />
depois mandas matar aquilo que assumiste ser o mais<br />
sagrado de tudo?...<br />
—— A vida é complicada.—— acrescentou o kota Café<br />
—— Os Jeovás quase praticam o suicídio, quando se abstêm<br />
de receber transfusão de sangue...<br />
—— O que é considerado crime numa determinada<br />
sociedade, ou numa certa época, pode deixar de o ser<br />
noutra sociedade ou noutra época, e sob outro ponto de<br />
vista. —— retorquiu o Estudioso —— O suicídio dos<br />
Kamikazes, os haraquiris, a eutanásia e outras práticas<br />
que a história tem registado, têm os seus valores<br />
diferenciados em função do tempo, da época, do lugar,<br />
enfim, da interpretação e do intérprete.<br />
A apreciar a conversa a partir do sítio em que se<br />
encontrava sentado, o Comando pôs-se logo a recordar o<br />
seu falecido amigo e ex-colega da recruta, o Pirangú.<br />
Conhecera-o muito tempo antes de terem ido<br />
apresentar-se no posto de recrutamento do Rangel. Era<br />
então conhecido por Zé Manel, era um rapaz alto, de pele<br />
achocolatada, cabelos lisos, pretos. Tinha um pouco de<br />
sangue cabo-verdiano no seu sangue, e na escola, ali no<br />
Ngola Mbandi, o rapaz era muito animado e simpático.<br />
Nenhum sinal de violência ou de qualquer outro desvio<br />
psicológico. Tinha a voz meiga, suave. Era uma doçura de<br />
rapaz...<br />
—— Quando depois de muitos anos, o rapaz voltou ao<br />
bairro, —— contava o Comando, —— meus manos, aquilo era o<br />
quê?! ... Era mais um monstro que uma pessoa!...<br />
—— Tinham que lhe dar um banho, conforme dizem as<br />
mais velhas, para lhe tirarem os espíritos maus, os<br />
kalundús.—— acrescentou um dos clientes.<br />
22
——É verdade. Eu que estou aqui —— prosseguia ele<br />
—— fui também comando das tropas especiais. Se pudesse<br />
vos contar tudo o que nós vimos e fizemos, vocês não<br />
iriam acreditar. Nem tudo o que nós fizemos, fizemos<br />
conscientes do que estávamos fazendo. Na guerra comete-se<br />
barbaridades, chacinas, faz-se coisas que nem mesmo Diabo<br />
tem coragem de fazer. No dia seguinte, quando estiveres<br />
já mais sóbrio e voltares para visitar o local onde<br />
andaste a fazer das tuas, até pensas que foram os outros<br />
que cometeram tudo aquilo, e culpas os outros. Cego de<br />
tanta raiva, ainda vais ao ataque dos outros, querendo<br />
que eles paguem pelos erros que você mesmo cometeu.<br />
Nesse ponto o Estudioso pôs-se a imaginar o quão<br />
admirável é o modo como os actos que praticamos se<br />
repercutem, tarde ou cedo em nós mesmos. Pensou nas<br />
relações de causa e efeito, nos seus livros de filosofia<br />
ioga, com suas teorias sobre o dharma e o karma, pensou<br />
ainda nos muitos livros de Terça-Feira Lobsang Rampa, e<br />
na vasta biblioteca de livros que possuía, com uma boa<br />
parte deles furtados das livrarias e tabacarias da cidade<br />
de Luanda, e que por necessidade da vida, tivera de<br />
vendê-los quase todos ao João Alfarrabista, ali na Terra<br />
Nova.<br />
Sentado num bloco de cimento e a beber kimbombo, o<br />
Estudioso perguntava-se sobre a utilidade de lhe terem<br />
nascido, dado educação, e nessa altura encontrar-se no<br />
estado e nas condições em que se encontrava. Os muitos<br />
anos de formação em Cuba, custeados pelo Estado, de nada<br />
valiam...<br />
Por volta das dezasseis horas, o bidon de kimbombo<br />
esticou as pernas, e cada um dos clientes foi igualmente<br />
aos poucos retirando as suas em direcção a outros<br />
destinos. A noite foi chegando de mansinho, trazendo as<br />
duas kimbetas de Das Fitas de volta à casa.<br />
Depois do jantar, o Conselho Consultivo da Família<br />
reuniu em sessão ordinária, e tendo concluído que nesse<br />
dia houvera também dikomba, tanto na venda do kimbombo<br />
quanto na de bombó frito, deliberou a partir daí iniciarse<br />
com a montagem da indústria doméstica de kaporroto.<br />
23
Das Fitas comprou uma serpentina, dois tambores de<br />
duzentos litros, alguns garrafões vazios, e os<br />
ingredientes como, açúcar, fermento, farelo de milho, e a<br />
água acarretada pelas suas mulheres.<br />
Num canto do quintal, com a ajuda de algumas<br />
chapas de zinco achadas sabia ele onde, Das Fitas<br />
construiu então a sua pequena destilaria de kaporroto.<br />
Desde o dia da preparação da bebida ao da véspera<br />
da inauguração da destilaria, que a sua cabeça lhe dizia<br />
que algo estava faltando. O homem pensou, matutou, e<br />
apenas no quarto dia é que a mana Maria, a primeira<br />
mulher, recordou-lhe que faltava o combustível para a<br />
destilação, a ter lugar na madrugada seguinte.<br />
O tempo era escasso e a necessidade premente.<br />
Aflito, Das Fitas ainda pôde descarregar uma boa carga da<br />
sua raiva sobre as duas mulheres, por não lhe terem<br />
recordado nem terem elas próprias pensado sobre o que<br />
faltava.<br />
Como era já noite e impossível de adquirir lenhas<br />
no mercado, Das Fitas acompanhado das suas duas kimbetas,<br />
não pouparam esforços, e passando um pente que nem<br />
precisava de ser fino, nos Môcos de lixo que abundavam<br />
pelo bairro adentro e arredores, apanharam penicos,<br />
cadeiras, baldes, cestos, banheiras, sacos, tubos,<br />
mangueiras, tudo que de plástico fosse, e mais uns tantos<br />
bocados de madeira e papelão, que bem arrumados e<br />
amarrados, trouxeram para a destilaria. No regresso<br />
algumas pessoas ficaram parvamente a olhar para o trio e<br />
para a tão estranha carga que acarretavam. Mas para onde<br />
estavam indo aqueles três malucos? Seriam mesmo malucos?<br />
Talvez algumas pessoas, as mais perspicazes e de<br />
vistas largas, tivessem encontrado um ponto comum em tudo<br />
aquilo e achado o enigma. Talvez não. O que Das Fitas não<br />
precisava de encontrar ou de achar foi uma tesoura nova<br />
in folio bonita e esterilizada, para cortar a fita da<br />
inauguração da destilaria do kaporroto.<br />
Sem esperar pela chegada da madrugada, que era a<br />
altura em que a maior parte das pessoas ainda dormia e<br />
24
não haveria então ninguém a resmungar-se pelo fumo, a<br />
bebida começou logo a ser destilada, com os três a<br />
revezarem-se na vigília e colocação da lixarada<br />
combustível debaixo da panela-caldeira, enquanto um ou<br />
outro aproveitava para tirar um sono de pouca dura, mas<br />
indispensável à retêmpera dos seus corpos.<br />
Numa dessas sonecas, Das Fitas, sonhou que a<br />
destilaria tinha atingido o tamanho da refinaria de<br />
petróleo de Luanda, e ele, as suas duas mulheres, mana<br />
Maria e mana Ana, e mais alguns membros do governo,<br />
dentre os quais o seu primo-como-irmão, encontravam-se de<br />
pé, juntos à Sua Excelência o Senhor Dono da República,<br />
com uma enorme tesoura dourada na mão esquerda,<br />
preparando-se para cortar mais uma das muitas fitas que<br />
só ele sabia tão cientificamente cortar. Das Fitas<br />
sabendo que o Senhor Dono da República não era canhoto,<br />
saiu do seu lugar e foi cafetelar aos ouvidos de Sua<br />
Excelência, que tinha a dourada tesoura em mão errada. Em<br />
resposta, Sua Excelência lhe cafetelou que aquilo não<br />
fazia mal nenhum. Das Fitas insistiu que fazia sim, pois<br />
o kaporroto podia sair fraco e quase sem missanga alguma,<br />
o que afugentaria a sua clientela para outras e melhores<br />
paragens. Tinha mais: o kaporroto até podia sair queimado<br />
e a cheirar flato, bufo, o que seria mais grave ainda,<br />
porquanto afugentaria não só a clientela, mas igualmente<br />
a vizinhança dos arredores, ou na pior das hipóteses,<br />
estes é que se sentindo traídos pela qualidade do produto<br />
e seu cheiro nauseabundo daí proveniente, resolveriam<br />
tundar dali Sua Excelência o Senhor Dono da República,<br />
ele mesmo Das Fitas, suas duas mulheres, os membros do<br />
governo e outras embaixadas acólitas ali estacionadas.<br />
No auge da silenciosa mas forte discussão entre<br />
Das Fitas e o Dono da República, este, furioso, agarrou<br />
nos colarinhos daquele, o que prontamente mereceu a<br />
intervenção dos guardas pessoais de Sua Excelência o<br />
Senhor Dono da República.<br />
Nesse momento, mana Anita veio acordar Das Fitas,<br />
pois era altura de alternância na vigília da destilação.<br />
Admirado e espantado com o sonho que acabava de ter, Das<br />
Fitas interrogou-se sobre o seu significado, seu bom ou<br />
25
mau presságio, mas não achando resposta satisfatória, foi<br />
pôr as mãos no serviço.<br />
Finda a destilação, a mistura e o engarrafamento<br />
do kapuka, Das Fitas pôs de parte dois dos seis<br />
garrafões, enviando os restantes para serem despachados<br />
no mercado do Roque Santeiro.<br />
De manhã cedinho, as duas mulheres levando na<br />
cabeça as banheiras que continham os garrafões, já no<br />
interior do bairro Sambizanga, e não muito distantes do<br />
mercado, foram interceptadas por dois agentes da polícia,<br />
que de repente surgiram de um beco:<br />
—— Aí as duas cidadãs! —— chamou um deles.<br />
Mana Maria e mana Anita, quase que tropeçaram,<br />
assustadas pelo súbito aparecimento dos polícias, seguido<br />
daquela ordem dada em voz arrogante e ameaçadora.<br />
Quando as duas senhoras se aproximaram deles,<br />
repararam que no interior do beco havia já, afinal, muita<br />
gente com as suas cargas ao pé de si pousadas no chão.<br />
—— O que é que vai aí dentro, poisem as banheiras!<br />
—— ordenou o outro agente, no mesmo diapasão que o do<br />
anterior.<br />
—— Estamojo levare só kabucado ndo kapuka, mano. —<br />
— disse em voz trémula mana Maria.<br />
—— Kaporroto??!!—— exclamou o outro agente ao<br />
mesmo tempo que trocava um sorriso e um olhar tácitos com<br />
o colega —— Vamos, entrem depressa aí no beco! —— ordenou<br />
ele.<br />
Antes mesmo de as duas mulheres de Das Fitas terem<br />
acabado de entrar no beco, já os agentes mandavam parar<br />
mais dois rapazes, ambos com um porte físico deveras<br />
respeitável e cada um com uma grande sacola à tiracolo.<br />
—— Aí, os dois cidadãos! —— gritou um dos<br />
polícias.<br />
26
Os rapazes entreolharam-se, murmuraram entre si<br />
qualquer coisa, mas continuaram com o mesmo passo que<br />
traziam. Quando iam justamente a passar em frente dos<br />
agentes, um destes manipulou a AKA, ao que se seguiu a<br />
paragem dos rapazes.<br />
——O senhor polícia não tem maneiras de mandar<br />
parar as pessoas? —— perguntou em voz alta e destemida um<br />
dos rapazes.<br />
O polícia reparando bem para o aspecto físico dos<br />
rapazes, respondeu, em tom menos arrogante:<br />
—— Não tive nenhuma falta de maneiras, apenas<br />
mandei-vos parar.<br />
—— O senhor nem cumprimenta, nem nada, é só dizer<br />
«aí, os dois cidadãos!», como se só isso bastasse? ——<br />
indagou o outro jovem.<br />
Enquanto o clima à volta dos polícias e dos dois<br />
rapazes ia subindo de tom, no interior do beco, as<br />
pessoas parecendo animar-se com a cena, aumentavam<br />
igualmente o tom do que murmuravam:<br />
—— Não se deixem, são polícias gatunos!<br />
—— Éh! Nos meteram aqui no beco, pra quê? Temos<br />
que ir fazer as nossas vidas!<br />
—— Estão a nos pedir dinheiro, são polícias<br />
bandidos!<br />
Dir-se-ia que uma parte, a dos rapazes, estava<br />
dando ânimos de rebeldia à outra e vice-versa. Os dois<br />
rapazes tendo se identificado como militares, recusavamse<br />
entretanto, a declarar ou a mostrar o que havia dentro<br />
das sacolas.<br />
—— Nós aqui não vamos abrir sacola nenhuma! ——<br />
dizia um dos rapazes.<br />
—— Se quiserem, podemos ir até à esquadra! ——<br />
dizia o outro.<br />
27
No beco, de repente todos revoltaram-se:<br />
—— É melhor! Vamos à esquadra!<br />
—— Sim! Vamos mesmo! São gatunos!<br />
Com esse barulho, os moradores que antes apenas<br />
estavam mirando tudo a partir das suas portas ou das<br />
janelas, saíram em grande número para a rua, e juntaram<br />
as suas vozes às dos revoltados:<br />
—— Esses madalenas são gatunos!<br />
—— Vão mesmo na esquadra!<br />
—— Gatunos do povo, vão roubar o governo que não<br />
sabe vos pagar!<br />
—— Polícias gatunos!<br />
Com a confusão e o número de pessoas em crescendo,<br />
enfurecido, um dos agentes fez um tiro para o ar, mas ao<br />
contrário do que talvez esperasse, as pessoas, mormente<br />
as residentes, aumentaram ainda mais o barulho. Tirando<br />
proveito da situação, todos quantos encontravam-se no<br />
beco sob a custódia dos agentes, confundindo-se com os<br />
residentes foram aos poucos, matreiramente se enfiando e<br />
se esgueirando noutros becos que naquela rua desaguavam,<br />
restando apenas os dois rapazes militares caminhando os<br />
quatro em direcção à esquadra da polícia, não muito<br />
distante dali.<br />
Em casa, Das Fitas estava à braços com a venda do<br />
kapuka e do kimbombo, tendo o quintal a rebentar de<br />
clientes pelas costuras. Até mesmo os beiços da porta da<br />
entrada principal não mereceram qualquer piedade dos<br />
bebedores. Era ele lá dentro, ele cá fora, ele para o<br />
kapuka, ele para o kimbombo, ele para o cigarro, e até<br />
para o peixe frito apenas ele lá estava. Em tudo era o<br />
homem. Era muito poder concentrado numa só pessoa, mas<br />
não tinha como sair de tal situação, com as duas mulheres<br />
em missão de serviço, e nenhum dos pequenos ali presentes<br />
capaz de o ajudar naquele ministério.<br />
28
Sentados no mesmo banco, num dos cantos do quintal<br />
estavam o kota Café, o Capriquito, o Lúmpen, e o<br />
Estudioso.<br />
—— O meio não quer dizer nada, kota Café. —— dizia<br />
o Estudioso —— A esta hora estamos a chupar aqui o nosso<br />
kapuka, na cidade o filho do ministro está a injectar<br />
droga no sangue. Por quê que nós e eles fazemos isto? O<br />
que é que existe de comum, o que é que há subjacente ao<br />
impulso que nos leva, eles e nós, a nos agarrarmos ao<br />
kapuka, à cocaína, ao kimbombo, à liamba, à tudo o que é<br />
droga? O que é?...<br />
Ninguém ousou responder, e o Estudioso prosseguiu:<br />
—— Tenho mulher, três filhos e uma mãe já velha<br />
para sustentar. Tinha perto de mil e quinhentos livros na<br />
minha biblioteca, que às vezes quando a fome obrigava,<br />
tinha de tirar uns tantos para vender e comprar comida,<br />
vejam!, para comprar comida! Isso é vida? Isto é viver?<br />
Os filhos dos endinheirados drogam-se para esquecerem-se<br />
de quê? Para terem coragem de enfrentarem o quê? O<br />
inimigo? A vida? Qual inimigo? Qual vida, se tudo lhes<br />
corre às mil maravilhas?<br />
E ninguém se atrevia a interromper. O Estudioso,<br />
com os kalundús em crescendo, continuou:<br />
—— Meus irmãos, será que as consequências da<br />
guerra atingem esses filhos das putas da superestrutura<br />
do mesmo modo como atingem a nós?<br />
—— Nunca mais! —— respondeu o kota Café.—— Até o<br />
lixo, o lixo que eles produzem é mais sofisticado que o<br />
nosso lixo aqui do musseque. Num contentor de lixo da<br />
cidade, você pode encontrar maçã, chouriço, computador,<br />
telefone, televisor, gravador, fralda descartável, roupa,<br />
dinheiro. Aqui na buala, quem? Onde é que vais apanhar<br />
isso? Aqui só apanhas lata podre, cocó de galinha e<br />
farrapos!<br />
—— É verdade!—— apoiava o Capriquito, enquanto os<br />
demais riam.—— Um dia eu estava mais os meus avilos na<br />
29
anda dos Combatentes, de repente estávamos só a ver uma<br />
mbôa a trazer uma bandeja com um carabaixo inteiro e bem<br />
grelhado pronto a lhe despejar num contentor de lixo que<br />
estava ao nosso lado. Nós lhe berrámos: dona! dona! não<br />
faz isso, nos dá mbora! A mbôa nos deu a bandeja. Môs<br />
avilos, não queriam ver o gosto que aquilo não tinha!<br />
—— E estava podre? —— perguntou o Lúmpen.<br />
—— Qual podre, qual quê! Estava melhor do que<br />
antes de lhe assarem!...<br />
Num outro ponto do quintal, o Prótese pregava um<br />
outro sermão:<br />
—— A minha mbôa vende peixe frito, aqui mesmo<br />
junto da linha férrea.<br />
—— Ai-é?!—— admirava-se o amigo —— A minha,<br />
negócio dela é jinguba com bombó assado.<br />
—— Mas se esses gajos do ministério nos pagarem<br />
mesmo os nove meses de pensão em atraso, que eles nos<br />
prometeram, já vai dar pra lhe comprar uma máquina de<br />
fazer galetes.<br />
—— Ai-é?! O galete anda mesmo bem ?<br />
—— Quando o peixe está muito caro, lá na Moraia, a<br />
minha dama faz galetes, mas tem de alugar a máquina. O<br />
galete é que nos aguenta lá em casa.<br />
—— Porra, eu até admiro com este país. Com tanto<br />
mar de ponta a ponta, e o peixe ainda anda caro? ——<br />
indagava um terceiro cliente.<br />
Um cliente que encontrava-se de pé um tanto<br />
afastado do ponto em que se desenrolava a conversa,<br />
respondeu:<br />
—— Kota, eu sou puro marujo! Todo o peixe de<br />
Angola já está paiado!<br />
30
Todos os que acompanhavam a conversa puseram-se a<br />
rir. O marujo prosseguiu:<br />
—— Há muito segredo no alto-mar. Há pirataria, há<br />
tráfico, há guerra...<br />
outro.<br />
—— E a fiscalização das Pescas? —— interrompeu um<br />
—— Qual é o fiscal que não gosta de dinheiro?<br />
Quanto é que o estado paga a um fiscal?...<br />
Eram muitos os temas e os assuntos que os clientes<br />
abordavam lá no quintal. Das Fitas, às vezes, enquanto<br />
trabalhava, também ia pondo aqui e ali uma colher da sua<br />
opinião em cada conversa. Pegando uma deixa da conversa<br />
que decorria num dos grupos, noutro canto um dos clientes<br />
dizia:<br />
—— Essa do peixe vendido, faz-me lembrar aquela<br />
cena do ministro que tinha ido à União Soviética para<br />
assinar um contrato de pesca de dois anos. Antes da<br />
assinatura, os soviéticos lhe espetaram a ele e a toda a<br />
camarilha que lhe acompanhava bué de vodka, que nem viram<br />
como lhes espetaram mais um zero atrás do dois e o<br />
contrato acabou por ser de vinte anos! E ainda por cima<br />
bateram palmas!<br />
Todos meteram-se a rir.<br />
—— Por isso é que essa tal de expedição conjunta<br />
nunca mais acaba! —— acrescentou um outro cliente.<br />
—— Nem a expedição, nem a impedição de comermos o<br />
nosso bom cachucho, o nosso bom pungo. Nos dão a merda de<br />
peixe espada sem cabeça, toda lambuzada e depois de<br />
congelarem enviam para aqui pro zé-povito. Filhos das<br />
putas! —— acrescentava ainda um outro cliente.<br />
Metidas no meio do mercado, as duas mulheres de<br />
Das Fitas, tiveram ainda de ver passar muito avião no<br />
31
céu, antes de darem com o sítio da venda à grosso e à<br />
retalho do dito cujo produto.<br />
Um indivíduo a quem elas perguntaram aonde se<br />
comercializava o produto, prontificou-se logo a indicálas<br />
o sítio à troco de certo valor.<br />
Tão logo deram-se por perceber aos revendedores,<br />
na sua aproximação ao local, mana Maria e mana Anita<br />
viram-se de tal modo envolvidas por eles, que quase<br />
pensaram estarem sendo assaltadas:<br />
—— Já ocupei! Já ocupei! Já ocupei! —— gritava uma<br />
senhora, agarrando as banheiras que continham os<br />
garrafões de kaporroto.<br />
—— Aqui não há já ocupei! Elas é que sabem à quem<br />
é que vão vender. —— dizia uma outra, ajudando a pousar a<br />
banheira ao chão —— Nos dão ainda então um pouco de prova<br />
pra vermos como é que isto está...<br />
Surgiu imediatamente uma mão entregando um copo.<br />
Mana Maria tirou um pouco da bebida de cada garrafão, e<br />
deu à provar às duas interessadas.<br />
—— Está um pouco fraco!—— exclamou uma delas.<br />
Mais duas senhoras igualmente interessadas pediram<br />
para provar, porém uma das duas primeiras, replicou:<br />
—— Provar mais para quê? Será que nós que provámos<br />
não sabemos qual é o bom e qual é o mau kapuka?<br />
Ignorando o argumento da senhora, mana Anita<br />
serviu um bocado do garrafão e deu a provar à outra<br />
senhora.<br />
—— Este kapuka está sim forte! —— declarou ——<br />
Vamos aqui na minha barraca, eu vou pagar!<br />
—— Nós também vamos pagar! —— gritaram as duas<br />
primeiras ao mesmo tempo, puxando as duas kimbetas de Das<br />
Fitas para fora do cerco que já se havia formado, e<br />
afastando-se muito deste.<br />
32
Nessa hora, o mercado encontrava-se já em franco<br />
reboliço, com os vendedores ambulantes, os compradores e<br />
os trabalhadores raboteiros, cadiengueiros, gatunos,<br />
animais, carros, motorizadas, canhangulos, e tudo o mais,<br />
a cruzar-se em todas as direcção de todos os cantos.<br />
Acima de tudo isso, à bilionésimos de centímetros de<br />
altura girava uma fera, uma esfera, uma deusa chamada<br />
sol, a emitir todo o seu fogo e calor para o mercado,<br />
para as coisas no mercado, e para o corpo das pessoas no<br />
mercado.<br />
—— Nós vendemos bebida aí em baixo, é lá que está<br />
o dinheiro. —— disse uma das compradoras, seguida pelas<br />
duas mulheres de Das Fitas e pela outra que era, afinal<br />
amiga.<br />
—— Não é muito longe? —— perguntou mana Anita.<br />
—— Não; é mbora próximo. —— respondeu uma das<br />
compradoras.<br />
Embora não frequentassem com muita regularidade<br />
esse mercado, as duas kimbetas sabiam por demais das<br />
cenas de roubo, burla e até de morte, que lá se passavam.<br />
Mas talvez desconhecessem que a desonestidade e o crime<br />
usassem vestes mais versáteis e voláteis que as da<br />
honestidade e as da justiça...<br />
Tinham já deixado a área do mercado e encontravamse<br />
numa zona adjacente àquela, mas caracterizada por<br />
muitas casas e casotas, na sua maior parte feitas de<br />
chapas de zinco, papelão, plástico, e com uma confusão de<br />
becos a intermediá-las, tal que as duas kimbetas, ora<br />
indo para cima, ora para baixo, ora para a direita, ora<br />
para a esquerda, nem sabiam mais em que ponto da rosados-becos<br />
se encontravam.<br />
—— Maje o casa antão é onde é? —— indagava<br />
preocupada a mana Maria.<br />
—— É já aqui. —— respondeu uma das compradoras,<br />
empurrando uma porta que de repente apresentou-se à<br />
direita delas.<br />
33
Entraram as quatro mulheres num quintal pejado de<br />
jovens e adultos das mais diversas idades, estilos e<br />
posições dos dois sexos. Na realidade, a casa era um<br />
círculo de vários quartos, um ao lado do outro e com um<br />
vasto quintal ao centro. Ao fundo, sob a sombra de uma<br />
lona suportada por quatro paus, estava uma mesa à volta<br />
da qual estavam sentados vários clientes.<br />
Atravessaram o quintal e foram estacar-se junto à<br />
mesa. As duas compradoras ajudaram as mulheres de Das<br />
Fitas a poisar as banheiras ao chão, tiraram<br />
imediatamente os garrafões das banheiras e, pedindo a<br />
ajuda de um cliente, uma das compradoras levou os quatro<br />
garrafões para o interior de um dos quartos.<br />
—— O dinheiro está debaixo do colchão! —— disse a<br />
que ficou junto das duas mulheres.<br />
Entretanto, enquanto aguardavam, as duas kimbetas<br />
de Das Fitas ficaram entretidas a reparar no modo como<br />
muitas moças e senhoras espalhadas pelo quintal<br />
encontravam-se vestidas.<br />
—— Estou a ver que esta é uma casa de prostitutas.<br />
—— segredou mana Anita, em songo, aos ouvidos de mana<br />
Maria.<br />
—— É mesmo! Não estás a ver os quartos e os casais<br />
a entrarem e a saírem?<br />
A atenção das duas kimbetas, foi seguidamente em<br />
direcção à conversa daqueles clientes que estavam<br />
sentados próximo delas.<br />
—— Não te dei a minha chuxuta de favor! Os meus<br />
filhos e os meus irmãos lá em casa, precisam de comer! ——<br />
dizia uma jovem muito bonita e bem vestida, a um rapaz<br />
alto e robusto sentado ao lado dela.<br />
—— Eu já custumo te avisar, Chili. Aqui não há<br />
kilapi! Quer foder?: cu no chão, dinheiro na mão! ——<br />
afirmava uma outra jovem muito mais bonita que a<br />
anterior, sentada ao outro extremo da mesa. —— Porra,<br />
34
esses gajos pensam o quê?! Uma gaja também tem<br />
necessidades, tem filhos, tem marido matakassumuna, tem<br />
mãe para sustentar, temos de pagar mia do quarto onde se<br />
fodemos, ou pensam que é de favor? E ainda por cima,<br />
aparecem aqui esses filhos das putas dos comandos e dos<br />
polícias a quererem foder só de favor! Quem tem cuiudo,<br />
tesão dele a mais, que vá foder o governo, porra!<br />
Distraídas e buamadas com o que viam e escutavam,<br />
nenhuma das kimbetas de Das Fitas deu pela saída<br />
sorrateira da compradora que havia ficado com elas. Ao<br />
repararem no lugar aonde aquela se sentara, patavina de<br />
compradora lá viram, e muito espantadas dirigiram-se logo<br />
ao quarto para onde a primeira entrara com os garrafões,<br />
mas não encontraram lá vivalma.<br />
Reparando bem, descobriram que mais ao fundo do<br />
quarto uma das chapas encontrava-se solta, e abrindo-a<br />
depararam-se com o mesmo beco que ia dar à porta por onde<br />
haviam entrado.<br />
—— Agora é que nos burlaram muito bem! —— disse a<br />
mana Maria em alto e bom songo.<br />
—— Eu estava mesmo a desconfiar dessas duas! Não<br />
sei como foi também que nos distraímos... —— dizia a mana<br />
Anita.<br />
Saíram para o beco, entraram novamente para o<br />
quintal, indo para o fundo junto do rapaz que estava<br />
atendendo as bebidas. Talvez tendo já percebido o que<br />
estava acontecendo com as duas kimbetas, o rapaz esboçou<br />
logo um sorriso algo jocoso ao ver a aproximação delas.<br />
—— O que é que se passa, mamãs? ——antecedeu-se<br />
ele, com a cara cheia de sorrisos.<br />
—— Aqueres nduas mana que levaram nosso kapuka,<br />
num estamo lhes ver... —— informava a mana Anita.<br />
—— Ha, ha, ha! —— ria o rapaz —— O quê?! Aquelas<br />
duas que vieram convosco?! ... Ha, ha, ha!<br />
35
Outros clientes que encontravam-se aí perto,<br />
contagiados pelas gargalhadas do rapaz das bebidas,<br />
puseram-se também a rir, e de que maneira! As duas<br />
kimbetas, explicavam o que se passara:<br />
—— ... Eres nos faló moram aqui, um levou os<br />
garrafão para trazer a dinhero, a outro ficou aqui<br />
conojo, ndrepentemente fua!, dispareceu també! —— dizia a<br />
mana Maria.<br />
As pessoas à volta das duas kimbetas rebentavam os<br />
baixos ventres, de tanto rirem.<br />
—— Moram aqui? —— perguntou uma jovem, tentando<br />
controlar o seu riso.<br />
—— Nada! —— respondeu a mana Anita.<br />
—— Aquelas duas, também vêm só aqui fazer a vida<br />
delas. Aqui não mora ninguém!<br />
Maria.<br />
—— Uá-ué!!! O nosso kaproto!!! —— gritou mana<br />
—— Agora antão vamojo fazer comoé antão? ——<br />
indagava a primeira kimbeta de Das Fitas.<br />
—— Manas, —— dizia uma outra jovem —— é melhor só<br />
voltarem para a vossa casa...<br />
—— Uá-ué!!! —— gritou outra vez a mana Maria.<br />
—— Assim mesmo já vos deram do olho! —— continuou<br />
a jovem —— Vamos, pra vos acompanhar até na praça, se não<br />
vão só vos empaputar até nos biquini, nos bandidos aí<br />
nesses becos...<br />
Nessa altura, havia muito que o sol começara já a<br />
fazer a sua viagem descendente, e em casa Das Fitas<br />
estava preocupado com a demora das suas duas mulheres.<br />
Será que era a compra dos produtos para a próxima<br />
montagem do kaporroto, o que lhes estava tomando muito<br />
tempo? Será que os gatunos roubaram-lhes os garrafões ou<br />
mesmo o dinheiro? Porque razão então é que a mana Maria e<br />
36
a mana Anita estavam demorando lá no Roque? Será que<br />
foram atropeladas, elas que ainda não sabem atravessar<br />
bem as estradas? Será que se perderam nesses becos aí do<br />
Sambila? Será que...<br />
... Eram muitas as preocupações de Das Fitas. Nem<br />
mesmo as conversas dos clientes, que tinham sempre o<br />
condão de lhe distrair, puderam nessa altura lhe amainar<br />
a alma.<br />
—— Desde manhã que estou a ver o kota um pouco<br />
triste, o que é que se passa? —— perguntou um dos<br />
clientes.<br />
—— Triste num é. Estou mbora só pensar nos mana,<br />
desde manhã cedo que foram lá no Roque, caté aqui nada...<br />
—— Hã!... Não se preocupe, hoje como é sábado o<br />
mercado fica muito cheio...<br />
—— Afinare?! —— exclamou Das Fitas, como que a<br />
sossegar um pouco pela dica recebida.<br />
Um outro cliente ao lado, aproveitou o ensejo<br />
pondo também a sua colher na conversa:<br />
—— Sábado no Roque Santeiro, é o dia de maior<br />
dikomba! Todo o mundo lá faz dikomba!<br />
—— Tudo mundo, comoé? —— interrogou Das Fitas,<br />
ansioso.<br />
—— Quer dizer: como o mercado fica muito cheio,<br />
porque é o dia em que a maior parte das pessoas tem tempo<br />
para fazer as suas compras, então há mais gente no<br />
mercado, há mais vendas, mas também... —— fez uma<br />
pequenina pausa, criando mais suspense —— ... há mais<br />
roubos!<br />
Ouvindo isso, Das Fitas voltou ao seu estado<br />
emocional anterior, mas indiferente ao que lhe ia na<br />
alma, ou no semblante, a grande parte da clientela<br />
prosseguia bebendo e conversando, não faltando aqui e<br />
37
ali, um pratinho de peixe frito ao lado, para ir-se<br />
fazendo boca.<br />
Um outro cliente que se juntara ao grupo integrado<br />
pelo kota Café, Capriquito, Estudioso, Lúmpen, e outros,<br />
parecia monopolizar a atenção da maior parte das pessoas<br />
no quintal. O modo como se vestia, os gestos e a<br />
linguagem, davam-lhe bandeira de ser um intelectual...<br />
—— Ser diferente, num meio onde a maioria só tem<br />
de dizer sim, para agradar ao outro, ao partido, ao<br />
clube, a seja quem for, num meio onde tens de ser um<br />
lambe-botas, um fantoche, um hipócrita, porque senão<br />
perdes o emprego, perdes a promoção, perdes os amigos,<br />
perdes a mulher, perdes o marido, perdes a família,<br />
perdes todos os direitos de um cidadão comum, meus<br />
irmãos, não é fácil, é preciso... —— reparou ao redor ——<br />
ter colhões!<br />
Depois de dar um gole do seu copo, prosseguiu:<br />
—— Quando um grupo social, e o homem é um ser<br />
social, seja lá que tipo de grupo for, se o grupo, se o<br />
conjunto é amorfo de raiz, quer dizer, se não há<br />
transparência e equidade a partir das suas bases<br />
estruturais, digo mesmo a partir do chefe, então, há<br />
grande probabilidade de a maior parte dos elementos do<br />
grupo ou do conjunto tornar-se amorfo, apagado, inerte,<br />
monótono. Se de repente um dos elementos aparece com o<br />
chapéu do grupo posto às avessas, então ele começa já a<br />
ser visto como fraccionista, como traidor. De repente as<br />
pessoas deixam de sentar-se ao lado de ti, deixam de<br />
cumprimentar-te, de te convidarem, de te visitarem,<br />
deixam de te apoiar, apoiar a tua família; tu entras em<br />
bancarrota total, és desprezado, cuspido, apedrejado, por<br />
teres escrito, cantado, publicado, ou apenas por teres<br />
sugerido algo que não é do agrado do chefe. E se o chefe<br />
não gostou, então todos os demais elementos do conjunto<br />
hão de deixar de gostar, mesmo que intimamente o<br />
quisessem!...<br />
Voltou a bebericar do seu copo; todos pareciam<br />
querer mais dele, e ele prosseguiu:<br />
38
—— Ser diferente, meus caros irmãos, é de qualquer<br />
modo, uma escolha, uma opção ainda não disponível no<br />
estado vigente das coisas. —— parecia concluir o<br />
Intelectual.<br />
—— Mas a dialéctica da vida diz que uma pinha não<br />
pode ficar muito tempo na garganta... —— dizia o<br />
Estudioso.<br />
—— Lá isso é verdade! —— apoiou o Intelectual.<br />
—— ... Ou tiramos a pinha, ou ela acaba<br />
apodrecendo aí mesmo! —— insistiu o Estudioso.<br />
—— Sim. Mas a depender da sua espessura, da sua<br />
consistência e da sua estrutura, ao apodrecer ela pode<br />
afectar o meio que a circunda, depauperando-o, fenecendoo<br />
até à morte. —— dizia o Intelectual —— Portanto, não se<br />
deve insistir em manter a pinha na garganta, ela pode<br />
levar-nos à morte, pode...<br />
O Lúmpen, que estava bem atento à conversa, talvez<br />
não estando a entender patavina do vocabulário ali<br />
versado, interrompeu:<br />
—— Os kotas não podiam falar assim mais<br />
abertamente, pra nós também entendermos?...<br />
—— Tens razão! —— atendeu o Intelectual —— Os<br />
discursos, a prosa e a poesia, às vezes dão muita volta,<br />
usam muitos dikindos, como se diz aqui no nosso calão,<br />
só para dizer que o Presidente é um déspota, é um<br />
ditador...<br />
—— E fazem isso para quê? Para ninguém entender? —<br />
— insistia o Lúmpen.<br />
—— Para poucos entenderem, ou se calhar mesmo<br />
ninguém.<br />
—— Mas, porquê?<br />
—— Bem o quê que te posso dizer... Fazem isso por<br />
muitas e variadas razões, mas geralmente é porque comem<br />
39
ainda do prato do sistema, no prato do poder, e fazem<br />
isso, usam muitos estilos e truques de bandidagem<br />
literários, por medo de sofrerem retaliações e<br />
represálias. É aquilo que eu há bocadinho estava a<br />
dizer...<br />
—— E agora que estão aí a falar de acordos de<br />
Bicesse, multipartidarismo, eleições e não sei quê mais,<br />
se um dia esses muadiês ganham as eleições, será que vão<br />
deixar de ser comunistas, que de resto nunca foram... Vai<br />
deixar de haver centralismo democrático, que também nunca<br />
houve... Vai haver descentralização do poder? ——<br />
interrogou o kota Café.<br />
—— Meus manos, —— dizia o Intelectual, fazendo uma<br />
breve pausa, como que para ganhar fôlego —— Se você vive<br />
durante muito tempo com uma criança em casa, que é tua<br />
enteada, e passas a vida lhe maltratando, lhe oprimindo,<br />
lhe dando o que resta do teu prato, quando resta; mesmo<br />
que depois apareça alguém a te dizer que essa criança<br />
afinal é teu filho ou tua filha, e que o nome dela não é<br />
autocracia e sim democracia, será que logo depois<br />
passarás a lhe tratar já por democracia, sem dares com a<br />
língua nos dentes, sem nada?... Será que passarás<br />
imediatamente a lhe tratar com um afecto natural,<br />
expontâneo, com um amor de facto?...<br />
—— Pode ser até que sim. —— respondeu o Estudioso<br />
—— eu estou a ver até onde é que o kota quer chegar, se<br />
bem que às vezes aí é que entra o dilema dos escritores,<br />
dos jornalistas e dos políticos; é difícil explicitar com<br />
parábolas e provérbios, para que todos entendam certas<br />
ideias e pensamentos de índole mais subtil. Na verdade,<br />
não é fácil mudar o regime de um país, mudá-lo de facto.<br />
Há sempre reminiscências que ficam, que continuam... No<br />
papel podes dizer que acabou, que já não há mais<br />
tribalismo, não há mais racismo, mas a praxis vai mostrar<br />
o contrário. Então os brancos sul-africanos que por<br />
décadas e décadas se lhes ensinou que o negro é bicho, é<br />
animal, será que quando mudarem de sistema vão também<br />
imediatamente mudar de mentalidade, mudar de atitude?...<br />
—— Depende de quem ganhar as eleições. —— disse um<br />
cliente.<br />
40
—— Em parte sim, mas essa mudança de que me estou<br />
a referir, não é apenas a da classe no poder, é uma<br />
mudança mais abrangente, mais radical...—— disse o<br />
Estudioso.<br />
—— Bom, —— interrompeu o Intelectual —— eu também<br />
estou a ver onde você quer chegar, até porque os nossos<br />
pontos coincidem, se bem que noto uma pequena confusão na<br />
apresentação ou exposição das tuas ideias. O que eu<br />
estava a querer dizer, é o seguinte: Se um dia houver<br />
eleições em Angola, não pensem que os que lá estão<br />
deixarão de ser gatunos e corruptos ou que os que querem<br />
lá também estar, deixarão de ser tribalistas e<br />
sangrentos, só porque mudou o sistema político do país,<br />
nunca mais! A mentalidade e a personalidade dos homens<br />
não muda da noite para o dia, e enquanto se espera que<br />
eles mudem, o povo vai sofrendo, continuando a sofrer, de<br />
barriga vazia, boca fechada e com a felicidade<br />
constantemente adiada...<br />
—— E então o que é que se deve fazer? —— perguntou<br />
o kota Café.<br />
—— É não deixar esses canalhas tomarem o poder! ——<br />
disse o Intelectual.<br />
Aflitas com a burla de que haviam sido alvo, as<br />
duas kimbetas de Das Fitas, encontravam-se ainda às<br />
voltas, a rodear pelo enorme mercado do Roque Santeiro,<br />
na esperança de acharem e surpreenderem as duas<br />
burladoras, mas foi tudo em vão.<br />
De regresso à casa, vieram todo o caminho a<br />
murmurarem-se e a lançarem blasfémias e pragas e<br />
promessas, com profundos muxoxos e favas a fazerem de<br />
pontuação e de acentuação, conforme fosse a carga<br />
explosiva de cada vocábulo. Ao se lhes cruzar alguma<br />
41
senhora com o aspecto semelhante a qualquer uma das<br />
burladoras, as duas kimbetas afrouxavam o passo,<br />
aumentavam ainda mais o volume da voz e direccionavam as<br />
antenas dos seus olhares fulminantes de raiva, à coitada<br />
da inocente.<br />
—— Aqui no Luanda afinare é anssi?! Comere os<br />
forço nda outro, si maje ni menos?! Fungire cus kapuka<br />
nda outro, vamojo lhes pore as mbaço naqueres fíria ndas<br />
puta, vão vere só! —–vomitava a mana Maria.<br />
—— Quatro garrafãos... Quatro!!!, logo-logo! ——<br />
lamentava a mana Anita.<br />
Quando chegaram à casa, no quintal havia já poucos<br />
clientes: aqueles que tendo ainda bebida nos seus copos,<br />
iam bebericando enquanto conversavam. Lendo imediatamente<br />
a mensagem que vinha do semblante das suas duas mulheres,<br />
Das Fitas foi logo ter com elas.<br />
—— Comoé antão, só agoras?<br />
As duas procuraram antes qualquer coisa onde<br />
pudessem sentar-se, e depois de tirarem os bebés das<br />
costas, respiraram fundo, e a primeira dama rompeu com o<br />
silêncio:<br />
dama.<br />
—— A mana Anita, exprica.<br />
—— A mana é que exprica!<br />
—— Você é que exprica! —— insistia a primeira<br />
—— Pôras! —— interrompeu, aborrecido, o marido ——<br />
Exprica, exprica, quaré que vai expricare antão?<br />
Sentindo-se na pele de primeira dama, mana Maria<br />
começou por explicar toda a fita, desde o genérico, o<br />
princípio, o meio, até o fim, sem tempo para qualquer<br />
pausa ou intervalo, tal era a ânsia de Das Fitas em<br />
conhecer a fita completa do holocausto, do harmagedom, da<br />
hecatombe, que não parava de dizer ―e depoje?... E<br />
depoje?‖...<br />
42
—— ... E despoje procuramojo ainda tudo o praça,<br />
mas nada! —— informava a mana Maria.<br />
—— E depoje? —— perguntou o marido.<br />
—— Haka! Despoje maje comoé? —— interpelava-se a<br />
primeira mulher, já aborrecida.<br />
—— Antão num foram nos quadra ndo purícia ni nada?<br />
—— Ir nos quadra comoé, se a negóxio era ndo<br />
kapuka?! —— interrogou mana Anita.<br />
—— Pôras! Antão as purícia num mbebe kaproto? As<br />
purícia num é esse tudo os dia custuma vire aqui mbebere<br />
o kapuka, mbebere o kimbombo? Não é as purícia que queria<br />
receber os garrafãos? Comoé agoras num ajuda o povo?! ——<br />
interrogava-se Das Fitas já no auge do seu aborrecimento.<br />
Depois de alguns minutos de silêncio, como se o<br />
diabo tivesse passado dentro do quarto aonde se<br />
encontravam, o marido prosseguiu, em songo:<br />
—— Sabem duma coisa?... A dona da casa esteve cá e<br />
disse que vai precisar da casa.<br />
—— O quêê!!! —— exclamaram as duas ao mesmo tempo.<br />
—— Sim. Vai precisar da casa; temos só mais um mês<br />
para ficar aqui.<br />
—— Mas, porquê então?! —— interrogou mana Maria.<br />
—— Parece que o filho dela engravidou uma miúda e<br />
terão de vir cá morar.<br />
—— Possa! Aqui em Luanda afinal é assim? ——<br />
perguntou mana Anita<br />
—— Mas não podias lhe perguntar se não dá para<br />
arranjarem outra casa e com o dinheiro desta pagarem as<br />
rendas da outra? —— perguntava a primeira mulher.<br />
43
—— Perguntei-lhe isso, mas ela me disse que é<br />
melhor mesmo arranjarmos outra casa.<br />
Nessa noite, Das Fitas nem quis jantar, de tanto<br />
pensar no dinheiro perdido com os quatro garrafões<br />
furtados e como se não bastasse, na notícia-aviso da<br />
iminente retirada da casa.<br />
Para onde iriam eles viverem? Será que naquelas<br />
imediações apareceria alguma casa que pudessem alugar?<br />
Será que numa outra casa poderiam prosseguir com os seus<br />
negócios? Será que lá também teriam muitos clientes, como<br />
os que tinham naquela casa? Será que...<br />
Sem poder responder a todas essas perguntas e<br />
inquietações, Das Fitas acabou por ser levado pelo sono,<br />
um sono profundo, propício aos sonhos e aos pesadelos.<br />
Os dias que se seguiram foram de imenso trabalho<br />
para Das Fitas e sua família. Recompondo-se do desfalque<br />
que o furto kaporrótico lhe desfechara, ele e sua família<br />
fizeram da derrota sofrida, forças para continuar com<br />
mais empenho na produção das duas bebidas, e não só. Por<br />
deliberação do Conselho Consultivo da Família, mana Anita<br />
com a ajuda da Jingongo, a primeira filha de Das fitas e<br />
mana Maria, deram continuidade no trabalho de fritar<br />
bombó desde manhã até o pôr do sol, no local habitual,<br />
enquanto à mana Maria coube a pasta do ministério de<br />
apregoar, zungar peixe em tudo quanto fosse rua, beco,<br />
estrada ou auto-estrada.<br />
Começou então a ser já habitual ver a kimbeta<br />
primeira de Das Fitas rasgar os caminhos de qualquer<br />
bairro, a gritar: ―é sardinha! é sardinha!‖, e ás vezes<br />
os miúdos seguindo atrás, respondiam: ―mas tem pinha!,<br />
com arroz, cuia! Mas está podre!‖<br />
Mana Maria ficava fula com essa zombaria dos<br />
petizes, mas logo logo deixava de ficar quando alguém lhe<br />
chamasse para comprar a sua sardinha, a lambula, o<br />
carapau, ou outro peixe que estivesse vendendo.<br />
44
Mesmo sendo época de cacimbo, com o frio a apertar<br />
por dentro e mais ainda lá fora, mana Maria tinha de<br />
arrancar muito cedo o seu corpo e o do bebé, das<br />
quenturas da cama, andar à pé até ao mercado do Tunga<br />
Ngó, aonde apanhava em conjunto com outras senhoras<br />
peixeiras, um candongueiro que as levava até à praia da<br />
Corimba, à Ilha de Luanda, ou até ao porto pesqueiro,<br />
conforme fosse o sítio onde estivesse a sair mais peixe.<br />
Adquirido o peixe, muitas eram as senhoras que<br />
vinham já vendendo a partir mesmo da Baixa, vindo à pé<br />
até ao subúrbio, mas mana Maria não possuindo traquejo<br />
para atravessar as muitas e grandes estradas e avenidas<br />
que se lhe atravessavam, preferia vir de carro até ao<br />
musseque e daqui começar a zunga, indo de bairro em<br />
bairro até acabar a banheira de peixe.<br />
Tal como as zungueiras vendedoras de peixe,<br />
muitos, muitíssimos eram os que zungavam já desde<br />
manhãzinha, os mais diversos produtos como sabão, omo,<br />
lixívia e palha-de-aço. Eram pessoas das mais diversas<br />
idades, mas maioritariamente jovens, a quem as mais<br />
básicas necessidades humanas como alimentação, vestuário<br />
e saúde, falaram mais alto que as promessas alardeadas e<br />
até propagadas em camisolas e cartazes e discursos, de se<br />
lhes dar escola, emprego, ao menos algo que lhes<br />
dignificasse como donos de tantos poços de petróleo...<br />
Durante as suas vendas, muitas eram as vezes em<br />
que mana Maria era chamada a vender uma ou duas simples<br />
sardinhas para uma casa com mais de dez, doze bocas.<br />
Perguntando-se a si mesma se tal quantidade bastasse,<br />
mana Maria ficava depois a saber que não compravam mais<br />
por não possuírem possibilidades para mais. Ás vezes, a<br />
essas famílias ela dava um pouco mais de esquebras, mas<br />
saia estupefacta com o que ia por detrás daquilo que<br />
aparentemente lhe dava a entender que fossem famílias sem<br />
problemas, lares sem dificuldades. ―Também fazem kilapi<br />
de lambula?!‖ —— interrogava-se ela. No fundo, era a vida<br />
que estava mal para todos...<br />
Outras vezes, depois de tanto zungar, ela fazia<br />
pequenas paragens sob a sombra duma árvore qualquer que<br />
lhe aparecesse no percurso, para descansar um bocado<br />
45
dessa quentura e desse calor que quase todos os dias lhe<br />
faziam companhia, mas também para aproveitar amamentar a<br />
criança ou dar água à esta e a si mesma.<br />
A lembrança daquelas jovens bonitas e finas,<br />
daquelas senhoras com família, filhos, e maridos em casa,<br />
a prostituírem-se naqueles barrancos por detrás do<br />
mercado do Roque Santeiro, a entregarem os seus bonitos<br />
corpos, a miúdos e a jovens drogados e bêbedos, bandidos<br />
e gatunos, muitos deles com a idade muito abaixo da<br />
delas, tudo a troco de míseros kwanzas, para sustentarem<br />
as suas famílias, tudo isso vinha à memória de mana<br />
Maria.<br />
A sua lembrança ia depois para os raboteiros, os<br />
cadiengueiros, com seus carrinhos de madeira espalhados<br />
por todo o mercado e também nas principais paragens de<br />
autocarro ou nas de táxis, nas lojas, nos armazéns, em<br />
todo lado em que havia sempre um jovem, um adulto, um<br />
velho ou mesmo uma criança, à espera e prontos para<br />
acarretarem uma caixa, um embrulho, um saco de fuba, um<br />
saco com lixo, uma botija de gás, um caixão, um cadáver,<br />
tudo a troco de míseros kwanzas, para sustentarem-se a si<br />
e as suas famílias.<br />
Mana Maria pensava ainda naqueles gatunos, miúdos<br />
e adultos armados com punhais, cacos de garrafa e<br />
pistolas, que de madrugada e à noitinha ficavam<br />
entrincheirados nas ruelas e becos próximos dos<br />
principais mercados, para caírem de assalto, de<br />
preferência sobre as senhoras, mexendo-lhes em tudo e até<br />
no mais íntimo dos seus corpos, na ânsia de lhes<br />
retirarem jóias, relógios, dinheiro, e às vezes um pouco<br />
do prazer dos seus sexos, quando não fossem ao extremo de<br />
lhes serem retiradas as vidas.<br />
Com todas essas lembranças, mana Maria não podia<br />
esquecer-se de que um pouco do dinheiro que esses jovens<br />
roubavam nos mercados, roubavam às pessoas, esse dinheiro<br />
que os raboteiros ganhavam, que as prostitutas recebiam<br />
em troca da entrega dos seus corpos, com uma parte desse<br />
dinheiro muitos deles, de regresso às suas casas iam ao<br />
Das Fitas beber um kimbombo, um kapuka, para apagarem<br />
esse imenso fogo, essa imensa tortura, esse inferno que<br />
46
era o viver de cada dia das pessoas. Esta, era a<br />
lembrança que mais doía à consciência de mana Maria...<br />
Porém, tão logo se levantasse, para retomar a<br />
caminhada, a recordação de todos esses factos<br />
desvaneciam-se da sua mente, para dar lugar ao rouco<br />
pregão do peixe.<br />
Os dias que restavam para permanecerem na casa<br />
eram já bastante escassos para Das Fitas e sua família.<br />
Mesmo após uma forte batida pelos arredores, com muitas<br />
encomendas à mistura, Das Fitas não conseguiu encontrar<br />
uma residência, um chimbeco ou algo que lhes valesse. No<br />
auge da sua aflição, um anjo dos pobres desceu das nuvens<br />
para recordá-lo que bem próximo dali muita gente estava a<br />
levantar cabanas encostadas ao cercado de betão da linha<br />
férrea.<br />
Sem medir pernas, deslocou-se imediatamente para o<br />
terreno, em missão de reconhecimento e recolha de<br />
informações, e tendo constatado que a situação lhe era<br />
favorável pôs logo em movimento tudo quanto era<br />
necessário para o levantamento de uma cabana de chapas,<br />
onde pudesse albergar a sua família.<br />
Nesse tempo, a televisão, a rádio e o jornal,<br />
estavam demasiado cansados e mesmo aborrecidos de todas<br />
as semanas, meses, anos, transmitirem as entrevistas<br />
sempre iguais e bonitas de que o comboio para a terra de<br />
Das Fitas retomaria já o seu funcionamento hoje, amanhã,<br />
depois de amanhã, no próximo mês, entrevistas sempre<br />
acompanhadas com muita emoção, com muita ansiedade, dadas<br />
talvez por quem pôde enfeitiçar o governo a gastar<br />
milhões de barris de petróleo na construção desses muros<br />
de betão que, graças à Deus tiveram a utilidade de<br />
emprestarem uma parede às quatro que constituíam a nova<br />
casa de Das Fitas, e de certamente colocar algumas<br />
comissões de dinheiro verde das terras do tio Sam, nos<br />
maduros e grandíssimos bolsos do entrevistado e nos de<br />
raia mais grossa, escondida nos ficheiros ocultos do<br />
subconsciente social.<br />
47
Para a construção da cabana, Das Fitas solicitara<br />
a ajuda do Capriquito e do Lúmpen, colocando-lhes à<br />
disposição um garrafão de kimbombo, como agradecimento.<br />
—— Ó kota Zé, o kota já viu como é que o governo é<br />
mesmo vigarista? —— perguntou o Lúmpen.<br />
—— Vingarista comoé?<br />
—— Então, gastaram só bué de cimento para fazerem<br />
esses muros e essas pontes todas, e o comboio, ora porque<br />
vai começar já a apitar no próximo ano, no próximo mês, e<br />
agora até hoje nada!<br />
—— É puro causa ndo nguera! —— exclamou Das Fitas.<br />
—— Então mandaram fazer pra quê? —— quis saber<br />
Capriquito.<br />
—— Fizeram só bué de ponte, bué guda, o povo nem<br />
passa lá, passa mbora em baixo! —— prosseguiu o Lúmpen.<br />
—— E ainda por cima vão meter o lixo lá por cima<br />
da ponte, ha, ha, há —— ria-se o Capriquito<br />
Fitas.<br />
—— Tuto é puro causa ndo nguera! —— gozou Das<br />
Até ao entardecer desse dia a cabana própria de<br />
Das Fitas estava pronta para albergar a sua família,<br />
embora faltasse ainda levantar o quintal. Mas se repente<br />
um parente seu qualquer chegasse do mato, vindo lá dos<br />
fundos do Luquembo, ou do Cambundi-Catembo, e lhe fosse<br />
apresentada a cabana, talvez até ficasse com inveja de<br />
Das Fitas, e de regresso ao kimbo decidisse mesmo em<br />
enviar um raio, uma onda ou um feitiço forte e feio de<br />
fazer o comboio, que nessa altura ainda saia do Bungo ao<br />
musseque Baia, descarrilar destruir a cabana e, fosse<br />
Deus surdo, se possível mesmo matar toda a família de Das<br />
Fitas, incluindo o seu chefe.<br />
Então, como era possível em tão pouco tempo,<br />
perguntar-se-ia talvez o parente, ele Das Fitas ter já<br />
construído uma casa de chapas de zinco na capital,<br />
48
enquanto os seus parentes lá bem longe, no mato, ainda<br />
viviam em cabanas de capim e de adobe? Não podia ser. Ele<br />
e a sua família teriam mesmo de morrer...<br />
Mas, ao invés disso, a construção da casa foi como<br />
que mais um impulso para o seu desejo de continuar a<br />
viver.<br />
Quando terminou o prazo dado pelo senhorio, já a<br />
maior parte dos clientes de Das Fitas tinha tomado<br />
conhecimento da sua nova casa, não muito distante da<br />
antiga e, tal como acontecera aquando da construção, para<br />
a transladação das imbambas Das Fitas teve também a ajuda<br />
do Lúmpen e do Capriquito.<br />
Semanas após a mudança, alguns clientes vieram<br />
contá-lo que quem estava a morar na antiga residência,<br />
não era nenhum filho da dona da casa, mas sim a própria<br />
dona em carne e osso.<br />
—— Quer dizer, —— informava em primeira mão o kota<br />
Pelargon, um dos seu clientes habituais —— a mbôa<br />
arranjou duas sulanas que passam lá o dia a atender...<br />
—— Atender o quê antão?! —— perguntava surpreso, o<br />
Das Fitas.<br />
—— Oh, o kota não sabe?!<br />
—— Saber o quê, antão?!<br />
—— Eu ando a pensar que o kota já sabe, afinal o<br />
kota anda mbora distraído! —— insistia o Pelargon<br />
aumentando ainda mais a ansiedade em Das Fitas. —— Olha,<br />
kota, naquele kubiko agora também já vendem kimbombo e<br />
kapuka...<br />
—— Afinare??!!! Kimbombo e kapuka??!!!<br />
—— E quem monta é mesmo a mbôa Bia, a dona da<br />
casa. As sulanas, porra, são duas jovens torradinhas!, só<br />
ficam lá o dia inteiro, para atender...<br />
—— Ai-é?! E fica memo cheio ndas criente?!<br />
49
—— Mais ou menos. Os clientes, acho que só vão lá<br />
mais por causa daquelas duas sulanas, kota. O kimbombo é<br />
muito fraco, o kapuka... mais ou menos. Mas as miúdas<br />
mesmo, kota, é que são um fogo, são bonitas, pele cor de<br />
mobília, bons rabos...<br />
—— Xê rapaz! Tás a ficar maluco ou quê?... ——<br />
interrompia um outro cliente.<br />
Encostado ao umbral de uma porta, Das Fitas ficou<br />
depois por algum tempo calado, como que a falar<br />
interiormente consigo mesmo. Não demorou a sair do seu<br />
solilóquio:<br />
—— Minhas manos, —— dirigindo-se aos poucos<br />
clientes que nessa hora da manhã encontravam-se a beber<br />
no quintal —— aqui no Luanda eu estou ver os pessoa té<br />
muito inveja nda outro. Antão ela me mintiu a fírio<br />
ingravidou, afinare é para sueu saire junto cu a mia<br />
famíria, e ela montare lá també negóxio ndera?!<br />
—— Não tem dica kota! —— tentava suavizar o<br />
Pelargon —— O kota é massongo, e aqui na banda o kimbombo<br />
dos massongo é que abana!...<br />
—— Por isso ando ver aqui as criente ndiminuiu,<br />
afinare é lá que estão ire?!...<br />
No final do dia, quando as duas mulheres<br />
encontravam-se já em casa, Das Fitas contou-lhes<br />
imediatamente o que se estava passando na antiga casa<br />
onde moravam. Ao contrário do que ele talvez esperasse,<br />
a reacção de ambas as mulheres foi de quase indiferença,<br />
porquanto comentando à sós tal assunto, no mesmo dia do<br />
aviso de retirada, as mulheres não tinham achado<br />
quaisquer motivos que tivessem levado a senhoria a tal<br />
decisão, e duvidavam mesmo que qualquer um dos filhos que<br />
ela tinha, sendo o que elas sabiam que eram, aceitasse em<br />
viver nas condições em que a casa se apresentava, e<br />
tinham mesmo chegado à conclusão que essa do filho ter<br />
engravidado uma miúda era tudo, menos a razão principal<br />
para a decisão tomada pela dona da casa.<br />
50
—— Pangare os renda, nojo estamojo pangare, ——<br />
dizia mana Maria —— quaré a male antão que agente fiz?<br />
—— Aqueres fírio ndela parece jimundele é que vai<br />
ceitar morare aqui?! —— interrogava-se a segunda mulher.<br />
Ante a indiferença das mulheres, Das Fitas ficou<br />
um tanto admirado, mas dissimulou tudo isso para mostrar<br />
que ele, sendo ainda um homem capaz, não estava<br />
susceptibilizado nem se importando pelo logro e pela<br />
desonestidade da dona Bia.<br />
Enquanto tivesse mãos e pernas e saúde, sabia por<br />
demais como fazer frente às intempéries do tempo e da<br />
vida. Nem elas se importaram ou se sentiram magoadas,<br />
porque razão havia de ser ele, um homem, a choramingar, a<br />
ter que rebaixar-se ao senhorio de uma cabana de latas<br />
―feto mbora tuto atoamente!‖ —— assim pensava ele.<br />
E como prova de tudo, estava ali a sua casa de<br />
dois quartos e uma sala, maiores que os da cabana da dona<br />
Bia.<br />
Todavia, com o passar dos dias, Das Fitas foi se<br />
apercebendo que a clientela, sobretudo durante o dia,<br />
tinha reduzido ainda mais. A preferência da clientela ia<br />
mais para o kaporroto, alegando que assim era, em virtude<br />
da estação de cacimbo que nessa altura estavam<br />
atravessando. Mas essa desculpa era travada pelo epiglote<br />
de Das Fitas, porquanto ele era da opinião, também<br />
endossada pelo kota Pelargon, pelo Lúmpen, e pelo<br />
Capriquito, embora considerasse que fossem talvez<br />
endossos característico de aduladores e de chulos, de que<br />
essa maré baixa de clientes, era devido ao golpe baixo de<br />
marketing, principalmente no que tocava ao tratamento da<br />
imagem e outros feitiços kamundongos, operados pela<br />
―mbruxa nda ndona Bia‖.<br />
—— Aquelas duas sulanas é que são as culpadas,<br />
kota! —— dizia o Pelargon —— Só as kinamas, só os pacote,<br />
kota, aquelas miúdas parece têm feitiço!...<br />
51
—— Se até aquele kota que gosta bué de finar o<br />
português e mais o kota Café, agora só param já lá... ——<br />
acrescentou o Capriquito.<br />
—— Aí-é?! —— exclamou Das Fitas, oferecendo um<br />
cálice mais de kapuka à cada um dos três.<br />
—— Até na mbôa Madó, esses dias também está fraco!<br />
—— disse o Lúmpen, bebendo um gole do copo que tinha na<br />
mão. —— Todos os clientes estão ir mbora na mbôa Bia...<br />
—— E tem mais, kota, —— dizia o Pelargon —— o que<br />
está a fazer muitos muadiês irem lá, é também a<br />
música!...<br />
Fitas.<br />
—— Ah!, també té lá mújica?! —— espantava-se Das<br />
—— E também já cimentaram o quintal! ——<br />
acrescentou o Lúmpen.<br />
—— Pôra, aquere invejosa va nganhare muito<br />
dinhero. Caté meteu lá jiputa pra chamar as criente... ——<br />
disse Das Fitas, desolado.<br />
Face à concorrência de dona Bia, Das Fitas<br />
planeava também comprar um gravador, mandar cimentar o<br />
quintal, já então levantado, e, —— levou tempo a se<br />
convencer, arranjar mesmo duas jovens ―també bonito, e<br />
cus rabo que mano Pelargon falou‖, de preferência<br />
massongos, para passarem a atender a bebida.<br />
Levando o dossiê de tal plano para a aprovação dos<br />
restantes membros do Conselho Consultivo, estes<br />
imediatamente reagiram:<br />
—— Quar quê??!! —— espantava-se a mana Maria ——<br />
meter no casa jibandida pra tender o bebidas?!! Vucê tás<br />
maruco ou antão mbembeste?<br />
—— Se ere ndona Mbia meteu lá jimulhere, antão<br />
nojo també sámojo jimulhere, nojo també pode tender<br />
jicriente! —— disse por sua vez a segunda mulher.<br />
52
Nunca até então ele tivera notado qualquer gesto<br />
por parte das suas duas mulheres, que fosse contrário às<br />
suas intenções, nem tão-pouco pensava que algum dia elas,<br />
tão respeitosas, humildes e submissas que eram, pudessem<br />
fazê-lo. Tal só acontecia, pensava ele, por estarem a<br />
viver na cidade capital, onde viam muitas mulheres a<br />
rebelarem-se contra os maridos, os filhos contra os<br />
pais,e os jovens contra os velhos. Mas o que estava<br />
oculto na reacção manifestada pelas duas mulheres, era,<br />
segundo ele, o ciúme.<br />
—— Esse que vucês está sentir sueu já sabe. ——<br />
retrucava ele —— Mas as criente está fugire muito mbora<br />
no ndona Mbia, aqui o kimbombo está xixilare bué, só o<br />
kapuka está andare assi assi...<br />
—— Ndexa astare! —— interrompeu a primeira mulher<br />
—– ningué va morere cu a fome!<br />
—— A nojo está tu judare. Um dia ndeujo vai judare<br />
també, vucê vai ranjar a emprego, nojo també nu vai<br />
parare... —— acrescentava a segunda mulher.<br />
Passadas algumas semanas, Kizua veio à sua casa<br />
visitá-lo, e tomando conhecimento da situação que ele<br />
atravessava, propôs-lhe trabalharem juntos no fabrico<br />
artesanal de cadeiras de fitas, ali à rua do Rei. A filha<br />
primeira, Jingongo, já então uma adolescente, foi nomeada<br />
para o lugar do pai, no atendimento da bebida, na<br />
sequência da impossibilidade de Das Fitas continuar no<br />
cargo, ou por ele querer talvez mostrar que um homem que<br />
se preze, deve, depois do tempo suficientemente<br />
necessário, deixar o lugar, o cargo e a cadeira aos<br />
outros, resistindo à esse gosto e prazer quase que<br />
instintivos que muitos estúpidos têm de perpetuar-se na<br />
ocupação e na posse de algo que os outros, muitos, às<br />
vezes bastante melhores, igualmente aspiram alcançar...<br />
E como há coisas, tantas, melhor vistas pelos<br />
olhos de estranhos, Jingongo afinal, tinha já muitos dos<br />
requisitos físicos, que segundo a opinião do kota<br />
Pelargon, eram indispensáveis como chamariz da clientela.<br />
Tendo ela muitas amigas já igualmente bem crescidinhas<br />
que iam passar parte do seu tempo em sua casa, muitos<br />
53
clientes foram aos poucos frequentando menos a casa<br />
―daquelas duas bailundas, bandidas e chuladoras‖, como<br />
depois veio a considerar o kota Pelargon, preferindo a<br />
casa de Jingongo onde ―aparecem lá umas catorzinhas bué<br />
fixes!‖<br />
——Não vale a pena só irem na mboa Bia! —— sugeria<br />
o Pelargon à alguns clientes que junto dele bebiam.<br />
—— Mas por quê então, kota Pelargon? —— perguntava<br />
um cliente.<br />
—— Aquelas damas que estão lá, aquelas BBC me<br />
deram cabo, elas me deram cabo!... —— lamentava Pelargon,<br />
já meio embriagado.<br />
E Jingongo foi segurando o negócio, enquanto mana<br />
Maria zungava peixe, mana Anita continuava a fritar bombó<br />
mesmo ali à berma da rua do Rei, não muito distante do<br />
pequeno largo onde Das Fitas tinha começado a trabalhar,<br />
como ajudante de enfitador.<br />
No seu primeiro dia de trabalho, veio à memória<br />
de Das fitas, a primeira vez em que havia chegado até<br />
ali, nesse mesmo ponto em que era já o seu mbongue, um<br />
terreno baldio aonde agora mulheres, crianças, rapazes,<br />
jovens e adultos, passavam o dia a trabalhar e à vender.<br />
Tudo ali ia desembocar essencialmente na produção<br />
artesanal e na venda de cadeiras de fitas e de material<br />
sobressalente. Duas serralharias de proprietários<br />
diferentes também aí localizadas eram as principais<br />
fornecedoras dos esqueletos das cadeiras, enquanto que as<br />
duas fábricas de produtos de plástico instaladas próximo<br />
do local, eram as fornecedoras das fitas e de outros<br />
acessórios que fossem necessários ao apetrechamento das<br />
cadeiras.<br />
Numa altura em que era escassa e cara a produção<br />
de mobiliário doméstico no país, muitos recorriam ali<br />
para encherem o vazio das suas casas com um jogo de<br />
quatro cadeiras de fitas. Era a mobília de sala mais<br />
barata e ao alcance da maior parte dos bolsos. Mas havia<br />
também muita gente que para lá se dirigia não para<br />
54
comprar ou visitar aquele local, mas para vender<br />
carcaças, esqueletos de cadeiras que tinham quiçá<br />
arrumado na arrecadação, em cima do tecto da casa, ou<br />
atirado num canto qualquer do quintal e mais tarde, ante<br />
a ameaça de uma greve de panelas, tivessem se sentido<br />
obrigadas a vender.<br />
Nos primeiros dias do seu novo emprego, Das Fitas<br />
tratou de comportar-se como qualquer recém-empregado<br />
ainda não cacimbado nem traquejado nas lides laborais se<br />
comporta. Era excessivamente zeloso no que tocasse a<br />
pontualidade e a disciplina, e não arredava obediência a<br />
tudo quanto lhe mandassem fazer.<br />
Era uma época em que o índice de vendas estava<br />
atingindo os maiores picos dos himalaias já atingidos<br />
pela sua produção. Mesmo trabalhando de segunda à<br />
segunda, era difícil cumprir com os prazos de entrega das<br />
encomendas, vindas de revendedores de Luanda e das<br />
províncias, principalmente das do interior, das do<br />
nordeste, e das do sul do país, o que seria evitado se em<br />
face da situação fosse admitido mais pessoal para a<br />
produção.<br />
Todavia, o mbongue não funcionava como se fosse<br />
uma empresa, com tudo o que lhe é característico. Era uma<br />
aglomeração de vários grupos de produção com uma certa<br />
inter-relação e colaboração entre si, mas independentes<br />
uns dos outros.<br />
Se estivessem atravessando um período de boas ou<br />
de más vendas, tal era logo visto, sentido e apalpado por<br />
todos, e cada grupo era livre de tomar as suas<br />
deliberações em função das circunstâncias que<br />
atravessavam, desde que tal não prejudicasse os demais.<br />
A admissão e a demissão do pessoal, era também da<br />
competência de cada grupo e nenhum bastardo estranho<br />
qualquer, podia um dia desses tendo acordado com a nádega<br />
destapada, descobrir que encontrava-se desempregado e<br />
fobado, e vir desde o seu subúrbio qualquer da cidade,<br />
para querer dar-se ao desplante, ao luxo de lá montar o<br />
seu posto de vendas de cadeiras. Era literalmente<br />
escorraçado.<br />
55
Embora o mbongue ter-se formado espontaneamente,<br />
depois que o negócio se tornou rentável e concorrido até<br />
ao ponto já então atingido, foram concomitante e<br />
livremente surgindo regras e regulamentos tidos e achados<br />
por consenso geral como necessários e indispensáveis<br />
tanto à boa convivência dos grupos quanto ao rendimento<br />
dos seus negócios.<br />
Entretanto, alguns dias depois de Das Fitas ter<br />
iniciado a trabalhar, Kizua caiu doente, pois havia já<br />
algum tempo que se vinha queixando de dores no tórax, e<br />
para o seu lugar deixou interinamente Das Fitas, quem<br />
embora novato, era todavia o elemento mais velho do<br />
grupo, logo a seguir ao man-Kizua, e o da maior confiança<br />
deste.<br />
Num desses dias em que Das Fitas era quase sempre<br />
o primeiro a chegar no mbongue, encontrou sentado e à sua<br />
espera um jovem que aparentava andar à volta dos dezoito<br />
ou vinte anos.<br />
A manhã era então ainda uma criança, embora a rua<br />
do Rei estivesse já bem movimentada com aquela azáfama de<br />
viaturas e de pessoas que já lhe era peculiar.<br />
Das Fitas ia aproximando-se da tenda de trabalho,<br />
e ao vê-lo o jovem pôs-se de pé, cumprimentando-o:<br />
—— Bom dia, mano Zé!<br />
Das Fitas chegou até ele e estendeu-lhe a mão<br />
direita, não obstante a sua perplexidade por não saber de<br />
quem se tratava, porquanto não era habitual àquela hora<br />
aparecerem já clientes lá no mbongue.<br />
saúde?<br />
—— Mbo ndia, mano! —— respondeu ele —— Antão o<br />
—— A minha saúde está mais ou menos —— respondeu o<br />
jovem já em songo, para maior espanto e alegria de Das<br />
Fitas ——- Apenas o mano Kizua é que ontem à noite tivemos<br />
de lhe levar ao hospital do Sanatório...<br />
56
—— Lhe levaram ao hospital?!!<br />
—— Sim, ontem à noite —— prosseguia o jovem,<br />
mostrando-se um pouco impaciente e ao mesmo tempo ansioso<br />
—— Assim ele me mandou vir no mano buscar duzentos<br />
dólares para entregar lá no hospital...<br />
—— Duzentos?! —— admirou-se Das Fitas —— e as<br />
mulheres dele, onde é que estão...<br />
—— A mana Joana dormiu lá no hospital e a mana<br />
Antonica é que veio dormir em casa, por causa das<br />
crianças, mas assim mesmo já deve estar à caminho do<br />
hospital, conforme combinamos.<br />
Ante a gravidade da situação, Das Fitas pensou em<br />
deslocar-se ao hospital para ver o seu primo, e ser ele<br />
próprio a levar o dinheiro, mas recordando-se pouco<br />
depois que nessa manhã haveria de fazer a entrega de uma<br />
encomenda de cem cadeiras que iriam nesse mesmo dia para<br />
o Cafunfo, não teve outra saída, senão a de ter que<br />
atender ao enviado do primo e a de ele mais tarde,<br />
fechado o negócio, dar um pulo até ao hospital tido como<br />
dos tuberculosos.<br />
—— E ere nu mandou ni escrita ni nada?!...<br />
O jovem, algo preocupado, esboçou um sorriso<br />
forçado e respondeu depois:<br />
—— Se ele está muito grave, mano, como é que havia<br />
então de escrever?!<br />
—— Mas está mesmo mal, mal?! —— perguntou Das<br />
Fitas, em songo.<br />
—— Não estão aceitar lhe internar por falta de<br />
dinheiro...<br />
—— Tem razão, tem razão —— dizia Das Fitas,<br />
batendo com a mão esquerda na cabeça, enquanto com a<br />
direita sacava a carteira enfiada num dos bolsos<br />
traseiros da calça.<br />
57
Nessa altura, alguns trabalhadores dos outros<br />
grupos, começavam já a chegar, e um ou outro mandava de<br />
longe um bom dia ao Das Fitas.<br />
—— Mas estes moços ndaqui hoje está chengare<br />
tarde, comoé antão? —— interrogava-se preocupado, o chefe<br />
interino —— podia te ndare ainda um combanhante...<br />
Tirou o dinheiro da carteira, e dum pequeno maço<br />
de notas verdes, sacou duas de cada cem dólares que<br />
entregou ao jovem, recomendando:<br />
—— Vai ndereto no spitare mano! É muito ndinhero<br />
que vucê está levare, sueu pudia te combanhare, maje vai<br />
vire jicriente levantare lá o encomenda, antão depoje vou<br />
ire lá no spitare, uviu? Exprica mbé no mano Kizua, e nos<br />
mana, uviu?<br />
—— Tá bem, tá bem. Respondeu o rapaz, guardando o<br />
dinheiro na sua carteira de documentos, e estendendo já a<br />
mão para despedir-se do Interino.<br />
—— E ere primo Kizua está no quaré salas?<br />
—— Ainda não tem sala, por falta do dinheiro! —–<br />
disse o jovem já mais alegre e mais apressado.<br />
—— Antão vai já memo cu depressa, uviu?<br />
E o rapaz, todo pernilongo, pôs-se logo a andar.<br />
Momentos depois do jovem ter desandado, um dos<br />
trabalhadores da tenda vinha se aproximando. Cumprimentou<br />
o Interino, e perguntou:<br />
—— Me cruzei aí com o vizinho do kota Kizua, será<br />
que veio aqui...<br />
—— Lhe viste?! —— perguntou Das Fitas, ansioso e a<br />
lançar o olhar lá para a direcção em que aqueleoutro se<br />
abalara. —— O primo Kizua está muito ngrave no spitare<br />
ndo Sanitório!<br />
—— O quê?!, o kota Kizua??!<br />
58
—— É!... Vucê chengaste só agora se não pundia ire<br />
lhe combanhare caté no spitare...<br />
Enquanto isso, os trabalhadores foram chegando, e<br />
o Interino foi repetindo a cada um deles o mesmo disco<br />
com a música única do internamento hospitalar do seu<br />
primo-como-irmão. Todos eles ficaram tristes pelo facto e<br />
foram fazendo já acertos para uma visita colectiva ao seu<br />
chefe.<br />
Das Fitas foi depois dando sequência ao seu<br />
trabalho, com o pensamento a rondar à volta de mil-e-uma<br />
nebulosas de coisas. Após ter enfitado, à muito custo,<br />
duas cadeiras, achou por bem suspender o que vinha<br />
fazendo. Ao seu lado os colegas iam conversando e<br />
trabalhando.<br />
—— O kota Kizua devia parar de pintar —— dizia o<br />
Perneta, o lixador .<br />
—— O problema é que a tinta exige muito leite. Um<br />
gajo tem de papar bem e tomar sempre leite todos os dias.<br />
—— disse o Dosolho, um dos enfitadores.<br />
—— E a lata de leite-em-pó que custa mais de dez<br />
dólares! Aí é que está a puíta! —— exclamou o man-Pinça,<br />
ajudante de pintor —— Daqui há pouco também sou eu a ir<br />
parar no Sanatório...<br />
—— Mas ere també mbembe muito kaproto! —— interviu<br />
o Interino —— e depoje fuma lá maje o tambaco!...<br />
Momentos depois apareceu o camião que trazia o<br />
cliente que havia encomendando os vinte-e-cinco jogos de<br />
cadeiras com destino à Lunda-Norte.<br />
Todo o mundo teve de suspender o trabalho para<br />
ajudar no transporte das cadeiras do armazém da<br />
serralharia do man-Pimas aí próximo, para o camião.<br />
Dentro da cabina, com a assistência de Desolho, Das Fitas<br />
ia fechando as contas com o cliente.<br />
59
Fechada a transacção, Das Fitas deu algumas<br />
instruções, deixou outras tantas recomendações e, na<br />
companhia de Dosolho pôs-se logo à caminho do bairro<br />
Palanca, onde ficava o Sanatório. Um táxi que saia do<br />
mercado dos Kwanzas, pô-los imediatamente em frente do<br />
portão do hospital.<br />
O capim alto ao redor do edifício de quatro pisos,<br />
e os charcos de água das primeiras chuvas desse ano,<br />
chamaram logo a atenção do Interino.<br />
——Antão aqui també tem lá nguera? —— perguntou ele<br />
em tom de zombaria.<br />
—— Por quê que faz essa pergunta, kota?<br />
—— Olha só o capinho mbé arto, as lagoa ndo água<br />
cu musquito, os sapo a ngritare...<br />
—— O que é que isso tem, kota?<br />
—— Um spitare onde tem lá jiduente fica ansi<br />
parece é mata?...<br />
—— Hã!... —— exclamou Dosolho, entendendo já o<br />
sentido das palavras do Interino —— Aqui, se você vem com<br />
tubú, kota, você sai com katolotolo!...<br />
Dirigiram-se à recepção, onde do outro lado do<br />
balcão duas jovens de batas brancas não responderam ao<br />
cumprimento deles, tão empolgadas estavam na conversa<br />
sobre a novela que a televisão passava à noite.<br />
—— E você pensa que a malaique é que vai ficar com<br />
o retratista? —— dizia uma, aproximando-se para atendêlos.<br />
—— Se ela não ficar com o retratista aquela besta<br />
também não vai ficar! —— dizia a outra, sentada com as<br />
pernas cruzadas num sofá cujas espumas dos braços<br />
carcomidas pelo uso, deixavam mostrar as madeiras do seu<br />
esqueleto.<br />
60
—— Informem-se, por favor! —— disse a que se<br />
aproximara, apoiando os cotovelos no balcão, enquanto com<br />
uma lima na mão esquerda, aparava as unhas da direita.<br />
O Interino reparando pela não destreza da<br />
catalogadora, pensou com os seus botões: ―o mano Kizua<br />
ndeve morer‖. Foi Dosolho quem começou a informar:<br />
—— Temos aqui um doente...<br />
—— O nome? Quando é que deu entrada? —— interrogou<br />
ela altiva e com ares desprezíveis.<br />
Sentada no sofá, a outra jovem continuou<br />
conversando, indiferente ao que se passava no balcão:<br />
—— E onde é que logo à noite vamos ver a novela,<br />
se aqui não há energia?<br />
—— Kizua! Mano Kizua! —— disse o Interino,<br />
emendando.<br />
—— O quê?! Mano Kizua?!... —— espantou-se a<br />
catalogadora —— Isso é nome de pessoa?! Ha! ha!, ha! ——<br />
pôs-se ela a rir. E respondendo à outra:<br />
—— Vamos ver no Kapolo, lá tem gerador.<br />
Depois, olhando mais atentamente para a dupla à<br />
sua frente:<br />
—— Kizua quê? Digam qual é o nome e qual é o<br />
apelido, senhores! —— gritou ela.<br />
—— Kizua Mateus, mana —— disse o Interino, como<br />
que a pedir esmolas.<br />
—— E quem é que vai ficar aqui? —— perguntou a que<br />
estava atendendo, enquanto com a ponta da lima procurava<br />
o nome numa lista aí ao lado.<br />
—— Ficare comoé? —— perguntou Das Fitas, perplexo.<br />
61
—— A pergunta não foi para o senhor! —— disse ela<br />
elevando a voz —— Não vê que estou a conversar com a<br />
minha colega?...<br />
outra.<br />
—— O ti João pode ficar aqui. —— respondeu a<br />
Algumas pessoas sentadas nos bancos encostados às<br />
paredes, acompanhavam a cena do balcão, mostrando com<br />
trejeitos, murmúrios e abanar de cabeças, o seu<br />
desapontamento.<br />
A catalogadora deu mais duas olhadas à lista e<br />
depois disse:<br />
—— Aqui neste hospital, não entrou nenhum mano<br />
Kizua Mateus! —— rematou ela, impaciente, regressando<br />
logo ao sofá.<br />
Uma senhora de estatura baixa envergando uma bata<br />
de cor azul e com um balde de limpeza à mão, fez um sinal<br />
de chamada para os dois homens.<br />
Indo ter com a senhora, Das Fitas teve então a<br />
intuição de que aquele não era o hospital onde se<br />
encontrava o seu primo-como-irmão. ―Mas ere ndisse<br />
Sanitório...‖ —— pensou o Interino. Quando chegaram junto<br />
da senhora, esta indicou-lhes uma porta, seguindo-os<br />
atrás.<br />
—— Os senhores estão à procura de quem? ——<br />
perguntou ela respeitosamente.<br />
—— Estamos a procura de Kizua Mateus. —— disse<br />
Dosolho —— Entrou aqui ontem à noite...<br />
—— E o nome dele não aparece nas listas?<br />
—— Não, nu parece. —— respondeu o Interino.<br />
A senhora fez um breve silêncio, reparou da cabeça<br />
aos sapatos aquelas duas figuras à sua frente e pousando<br />
o balde num canto, disse:<br />
62
—— Vamos! Essas moças da recepção só atendem bem<br />
com gasosa...<br />
E viajaram por quase tudo quanto era o hospital<br />
Sanatório de baixo à cima, da direita para a esquerda, do<br />
direito ao avesso de toda a sua insalubridade, e nada,<br />
nadinha de man-Kizua Mateus por lá tinha dado entrada,<br />
morrido, passeado ou saído.<br />
Ao despedirem-se da senhora, ela toda risos,<br />
perguntou:<br />
—— Então não me deixam só lá uma gasosinha?...<br />
Os dois, admirados, entreolharam-se e Das Fitas<br />
levando a mão ao bolso, tirou uma nota de dez mil novos<br />
kwanzas e entregou à senhora.<br />
—— Obrigada! —— disse ela sorrindo. —— Voltem<br />
sempre!...<br />
Depois de terem dado alguns passos calados,<br />
Dosolho rompeu com o silêncio:<br />
—— Se o kota Kizua não está aqui, onde é que ele<br />
pode estar?<br />
—— O rapage que foi mbuscare o ndinhero ndisse que<br />
ere mano Kizua está na spitare nda Sanitório, comoé<br />
agoras num está lá?<br />
—— O rapaz que... Qual rapaz que foi lá buscar<br />
dinheiro?! —— indagava Dosolho, admirado com a novidade.<br />
—— Quanto é??...<br />
—— Nduzento ndolare...<br />
——Du-ze-ntos??!! —— espantou-se o outro.<br />
—— Nu me ndisse comoé nome ndere, maje é rapage<br />
nosso lá ndo tera, é vizinho ndere ndo mano Kizua...<br />
—— Kota, sabe o que é... —— interrompia Dosolho ——<br />
isso de conterrâneo, é fita!<br />
63
—— Quaré, fitas??!<br />
—— É fita, é mentira! —— explicou Dosolho. —— Isto<br />
está a me cheirar burla!<br />
O Interino começou logo a suar, a transpirar<br />
vapores de sangue e raiva de querer esquartejar a cara<br />
daquele ―fíria nda putas‖, mas foi pondo uns freiozinhos<br />
nos poros já escancarados como bocas de jacarés em<br />
atalaia, pois podia dar-se o caso de ―ere mano Kizua<br />
estare mbora noutro Sanitório‖.<br />
Encontravam-se já dentro do táxi que ia para o<br />
Roque Santeiro, de onde caminhariam depois à pé até ao<br />
Nguanhá, onde morava o primo-como-irmão do Interino. O<br />
sol a aproximar-se do zénite parecia estar levando em<br />
digueza para lá também o calor dos corpos dos passageiros<br />
no interior do superlotado táxi.<br />
—— Maje ó mano Ndojiolho, antão num tem maje<br />
outro spitare Sanitório aqui no Luanda?<br />
Alguns dos passageiros atiraram os seus olhos para<br />
a fonte do que os seus ouvidos haviam captado. O Interino<br />
sentiu-se atingido, mas estava mais interessado em saber<br />
a resposta ao que perguntara e às tantas questões que<br />
efervesciam dentro de si.<br />
—— Que eu saiba, só há um Sanatório em Luanda. ——<br />
respondeu Dosolho.<br />
—— E quaré ? —— perguntou o Interino, com<br />
ansiedade.<br />
—— Então, não estamos a sair mesmo de lá?! «Esse<br />
kota parece que está a estagiar...»<br />
—— Ah! Afinare é só aquere...?!<br />
Dosolho não respondeu, antes optou por esclarecerlhe<br />
o que ia dentro do seu pensamento:<br />
64
—— Kota Zé, —— dizia ele, com muita calma —— é<br />
melhor pôr de lado isso de Sanatório, Sanatório. Só<br />
depois de nós chegarmos lá em casa do kota Kizua é que<br />
vamos saber toda a verdade.<br />
—— É nverdade memo! —— assentiu o Interino.<br />
O trajecto Sanatório-Roque Santeiro era longo e<br />
demorado pelos engarrafamentos já clássicos de muitos<br />
trechos das vias, pelos eternos buracos nas estradas,<br />
pelas paragens de fazer apear e de fazer desapear<br />
passageiros, e como se tal não bastasse, pelos agentes de<br />
trânsito que aqui, ali e acolá, muitos numa só viagem<br />
mandavam parar uma, duas, três, dez vezes e dez viaturas<br />
de uma só vez, para nelas descobrirem a falta dum pisca,<br />
duma taxa disto e daquilo e daquilo, duma licença de<br />
condução, duma identificação no tabellaire, de um anjo da<br />
guarda, de qualquer pretexto de fazer a viatura, o táxi<br />
ficar ali minutos, horas, anos estacionado, com os<br />
passageiros no seu interior a ficarem assados de tanto<br />
calor, ou a quererem já bazar embora, até que o figurão<br />
do vaidoso agente de trânsito abrisse o jogo da «gasosa»<br />
que ele próprio desavergonhadamente a sorrir punha no<br />
bolso ou se calhar já depois dumas birras no bucho,<br />
ebrirridente mandava o motorista pagar à um mocito<br />
abancado numa esquina lá mais adiante, para inglês ver...<br />
Poucas eram as vezes que Das Fitas, desde que se<br />
abalara com a família do mato para a capital, andava de<br />
táxi. Para ele essa viagem estava sendo mais longa e<br />
demorada que a maior viagem já feita em toda a sua<br />
existência. Se não fosse andar com o Dosolho, dava-lhe na<br />
gana de numa dessas longas paragens dum próximo<br />
engarrafamento, fugir do táxi e ir embora à correr até à<br />
casa do seu primo-como-irmão.<br />
—— «Pôras, —— chateava-se ele com os seus botões —<br />
— andare ndo caro aqui no Luanda é fodidos. É calore, é<br />
parare, é nhenque-nhoco ndesses nzairenses aqui, pessoa<br />
nu sabe quê que estão falare, é jipurícia pára aqui, pede<br />
ndinhero ari, pôras!... Jicandongueiro anda pára, anda<br />
pára, comoé pessoa ansi pode chegar kabucado cedo?»<br />
65
Já na área do Sambizanga, o funil de aproximação<br />
ao mercado do Roque era tão fechado que o motorista<br />
preferiu, tal como muitos outros, embrenhar-se pelas<br />
ruelas e becos do bairro. Aqui também, crianças e jovens,<br />
moradores, colocavam barricadas de pedras, tambores, e<br />
quem quisesse passar com a sua viatura, tinha de pagar<br />
portagem.<br />
Dentro do táxi alguns passageiros, já aborrecidos,<br />
murmuravam, tendo um deles explodido:<br />
—— Tirem lá essa merda dos tamborões do caminho! —<br />
— gritou ele da janela, para os jovens.<br />
—— Kota, —— dizia o motorista —— esses miúdos<br />
daqui são mbora frustrados, deixa só eu falar com eles...<br />
O motorista fez um sinal chamando os que se<br />
encontravam de pé junto à barricada. Dois deles,<br />
corporalmente bem constituídos e com franzidos nas<br />
testas, aproximaram-se da janela do motorista.<br />
—— É pá, agora ainda não tenho nada, mas quando eu<br />
voltar vos deixo uma fesada...<br />
—— Quando vortar, num dá kota, nós também estamo<br />
aqui bem fobado, ainda num pancamos nada... —— disse um<br />
deles.<br />
O motorista tirou do cinzeiro uma nota de cinco<br />
mil novos kwanzas e pô-la no bolso da camisa do rapaz.<br />
Este e o outro, já sorridentes, foram afastar os<br />
tambores, deixando a viatura passar. Um arzinho de ânimo<br />
foi respirado pelos ocupantes do táxi.<br />
—— Este é um país da porcaria! —— exclamou uma<br />
senhora com ares de ter queimado muita pestana à estudar.<br />
—— Miúdos que deveriam a esta hora estar sentados na<br />
cadeira da escola, ou nas bibliotecas a pesquisar, que<br />
deveriam estar em casa a ler um livro, estão aqui a<br />
pedintarem uns míseros dinheiros, para matarem a fome.<br />
Que país é este?<br />
66
—— E estão todos os dias a descobrir poços de<br />
petróleo! —— adicionou um outro passageiro.<br />
—— Mas também, de que vale teres tantos estudos se<br />
depois não és valorizado, se depois és atirado na<br />
sarjeta? —— interrogava-se ainda a senhora.<br />
Encontravam-se já em pleno mercado, e o cobrador<br />
do táxi, um miúdo com doze, catorze anos, na sua voz rija<br />
e rouca, gritou logo para as pessoas que se aproximavam<br />
do carro:<br />
—— Brigada! Congolenses-praça!<br />
Desceram do táxi e puseram-se à caminho. Das Fitas<br />
verificou se tinha a carteira de documentos no bolso de<br />
trás das calças, e contente por ter tudo em ordem,<br />
esticou ainda mais a passada. À medida que iam se<br />
aproximando da casa do primo-como-irmão do Interino, a<br />
ansiedade, a preocupação, a pulsação e a transpiração,<br />
iam também aumentando na pessoa de Das Fitas.<br />
De longe puderam ver algumas crianças brincando<br />
junto à porta do quintal de Kizua, e já próximos algumas<br />
vieram agarrar-se aos pés dos dois, cumprimentando-os.<br />
—— Quem está no dentro? —— indagou logo o<br />
Interino.<br />
—— Tá lá mamã Antonica. —— respondeu a mais<br />
crescidinha de todas, seguindo-os atrás. —— «Antão mano<br />
Kizua e mana Maria estão memo no spitare» —— pensou Das<br />
Fitas. —— Dá ricença! —— pediu ele, já no interior do<br />
quintal e com Dosolho atrás de si.<br />
Uma senhora com um bebé ao colo, surgiu à frente<br />
deles, vindo do interior da casa. Embora esboçando um<br />
sorriso ao ver o Interino, parecia entretanto não<br />
conseguir ocultar o semblante de tristeza que trazia no<br />
restante dela. Os gestos e o olhar traíam o seu sorriso.<br />
—— Quaré spitare que ere está? —— perguntou<br />
imediatamente o Interino, estendendo a mão para<br />
cumprimentar.<br />
67
—— Ere está no posto médico. —— respondeu a<br />
mulher, em songo. E em songo prosseguiu a conversa:<br />
—— Afinal está no posto médico e apareceu lá o<br />
vosso vizinho, nosso conterrâneo...<br />
—— Qual vizinho?! —— interrompeu a mulher —— Fazer<br />
o quê?!...<br />
—— Agora é que estou lixado! —— exclamou o<br />
Interino, pondo as mãos na cabeça.<br />
—— Hoje de manhã muito cedo apareceu lá no serviço<br />
um vizinho vosso a dizer que o kota Kizua estava<br />
internado no Sanatório —— explicava Dosolho, enquanto o<br />
Interino fora atirar-se num banco, como que a contorcerse<br />
das dores da intrujice —— ... E levou duzentos<br />
dólares...<br />
—— Nduzentos ndo-la-res!? - gritou a mulher —— E<br />
quaré a nome ndele, vucês lhe conhece?!<br />
Em poucos minutos, o quintal ficou imediatamente<br />
cheio de gente.<br />
——Antão... Ainda espera! —— disse a mulher, e foi<br />
para dentro da casa saindo pouco depois com um álbum de<br />
fotografias na mão.<br />
O Interino arrancou o seu corpo do banco e veio<br />
com todos os seus olhos também ver o que estava sendo<br />
mostrado.<br />
mesmo!<br />
—— É este? —— perguntou a mulher, ofegante.<br />
—— É ele! É ele! —— gritou o Interino —— é ele<br />
—— Vamojo no casa ndere! —— ordenou a mulher,<br />
seguido do Interino, Dosolho, de todos os que haviam<br />
enchido o quintal, com a raia miúda a fazer de cauda<br />
final.<br />
68
——Quem é mandou ere Layguimin ire mbuscare<br />
nduzento dolares, quem é?! —— ia a rabujar-se a mulher.<br />
—— Ele parece que tem feitiço. —— dizia Das Fitas,<br />
em songo —— O meu coração estava mesmo muito pesado, mas<br />
como ele estava a falar os nomes das pessoas aqui de casa<br />
e na nossa língua, aí eu criei confiança nele e lhe<br />
entreguei o dinheiro. Eu queria ir com ele mas não havia<br />
ninguém para ficar na oficina, e também tinha um negócio<br />
para fechar....<br />
—— É aqui casa ndere! —— disse a mulher, toda<br />
trombuda, empurrando uma porta de chapas.<br />
Ao ouvir o barulho de gente entrando no quintal,<br />
um jovem que aparentava ter dezoito ou vinte anos, saiu<br />
de dentro para o quintal com a cara trancada e assustada.<br />
Ao vê-lo, o Interino secundado por Dosolho, caiu logo em<br />
cima dele, agarrando-lhe nos braços. Atónito e pasmado, o<br />
jovem nem ofereceu qualquer resistência.<br />
—— É este mesmo! É este mesmo! —— gritaram eles.<br />
—— Mas o que é que se passa, mana Antonica? ——<br />
perguntou ele, acto-contínuo, sem compreender patavina do<br />
que se estava passando.<br />
—— Ondê está o Minguilay? —— perguntou-lhe em<br />
songo, a mulher de Kizua, ofegante e ansiosa, reparando<br />
bem nas feições do jovem.<br />
Nesse ponto, Interino e Dosolho entreolharam-se e<br />
deram-se logo conta de que estavam diante do irmão gémeo<br />
do outro que de manhã havia aparecido no mbongue.<br />
Desiludidos, largaram os braços do jovem, contando e<br />
ouvindo seguidamente toda a história.<br />
Em altas horas da noite anterior, as duas mulheres<br />
do primo-como-irmão do Interino haviam mandado chamar<br />
Layguimin, que era conterrâneo, vizinho e companheiro de<br />
copos de Kizua, a fim de ajudar a levar o seu «compadre»<br />
ao posto de socorros que ficava aí próximo, pois tinha a<br />
tensão muito alta e outras complicações cujos nomes<br />
ninguém sabia.<br />
69
Minguilay, o outro gémeo, um grande nómada que<br />
aparecia e desaparecia quando bem lhe dessem as pernas<br />
tão longas que possuía, era quem se encontrava em casa.<br />
Naquela azáfama de pega aqui, levanta ali, na quase<br />
escuridão da noite dum bairro negro e pobre,<br />
maioritariamente habitado por arremedo de pessoas, por<br />
indivíduos socialmente descartáveis, aturdidas pelo<br />
estado em que o marido se encontrava, nenhuma das duas<br />
mulheres do primo-como-irmão do Interino pôde então<br />
distinguir se ele era o trigo ou se era o joio, quando o<br />
mais importante era salvar o pão delas de cada dia ali a<br />
esvair-se de vida.<br />
——E agora? —— perguntou Dosolho, estupefacto com<br />
tudo o que lhe era dado ver e ouvir.<br />
Encontravam-se já à caminho do posto de socorros.<br />
Após um breve silêncio, Layguimin respondeu:<br />
—— Bom, aqui ele não tem praticamente nada de<br />
valor, eu também reparo mbora mos fogareiros à gás aqui<br />
no bairro...<br />
—— Ere Minguilay se nu vortare aqui cum dinhero,<br />
eu vou viajar no Malange! —— disse enfurecida mana<br />
Antonica.<br />
E polemizando nisto e naquilo acabaram por chegar<br />
ao posto de socorros, combinados entretanto a manter em<br />
secreto o assunto dos duzentos dólares burlados, até que<br />
o primo-como-irmão do Interino se desinterinasse da<br />
doença de uma vez por todas.<br />
Todavia, chegados no local, tudo indicava tudo<br />
menos raio algum de luz mostrando grandes esperanças de<br />
melhoria por parte do doente.<br />
O enfermeiro, um jovem com a dentição de leite<br />
ainda mal digerida, cercado de todos os meios<br />
insuficientes para salvar Kizua, a mexer aqui, coçar ali<br />
e a esfregar acolá, fez tudo o que estava ao seu alcance<br />
para não mandar evacuar o doente para um hospital grande<br />
70
e de verdade, até que o sorteado do homem resolveu dar<br />
mesmo o caldo...<br />
O Nguanhá era um bairro maioritariamente habitado<br />
por malanginos massongos, o que fazia com que em<br />
situações como as de morte, roubo, ou qualquer outro<br />
infortúnio que exigisse a solidariedade humana, todos se<br />
sentissem parentes do sorteado. O carácter sociável do<br />
falecido, fizera dele um indivíduo bem conhecido no seu<br />
meio, e tal fez-se reflectir no óbito, onde quase todo o<br />
bairro apareceu para dar os seus pêsames à família<br />
enlutada.<br />
Não havendo morte sem desculpas, alguns parentes<br />
muito inconformados com a desencarnação de Kizua,<br />
formaram uma cabala de espermatizar todo o seu kikoto no<br />
«bandido do enfermeiro», com um bouquet de bofetadas e<br />
pontapés, pelo sacrifício consentido em não enviar o<br />
doente para outras paragens melhores equipadas e<br />
autorizadas. Dali vieram ao óbito arrancar o Layguimin<br />
das lágrimas de crocodilo que vertia pelo seu «compadre»,<br />
para aumentar o volume delas apanhando um cabaz do mesmo<br />
bouquet, mas já em versão não-profissional, por ter sido<br />
ele quem muitas vezes vinha buscar o outro para irem<br />
incendiar-se de kaporroto.<br />
Para voarem mais depressa e mais alto, os<br />
bebedores de kapuka, dentre os quais a dupla Kizua-<br />
Layguimin, tinham no bairro uma casa especializada no<br />
fabrico de kaporroto feito à base de combustível de<br />
avião. Era conhecida por Porta do Céu, por ser dentre a<br />
maior parte das casas que vendiam bebidas, a que mais<br />
clientes mandava desta para a melhor. Ainda assim, a<br />
clientela nunca diminuía, como se a morte de um trouxesse<br />
à existência mais de dez.<br />
Guiada pelo Layguimin, a cabala foi finalmente<br />
despejar todo o seu kikoto, todo doce fel da sua raiva,<br />
na Porta do Céu, partindo todos os garrafões arquivados e<br />
também os que estavam sendo vendidos, para que os<br />
vendedores, se quisessem fossem depois queixar-se à<br />
polícia.<br />
71
O funeral duma pessoa, era nesses dias uma boa<br />
passarela para muita gente aproveitar mostrar como e quão<br />
caros eram as suas vestes e os seus calçados. No enterro<br />
do primo-como-irmão do Interino, apareceu gente vestida<br />
dos mais diversos modos, modas e modelos; desde as mais<br />
velhas de panos e quimonos, às raparigas e até senhoras<br />
já de certa idade a mostrarem partes íntimas dos seus<br />
corpos, capazes de porem teso e de pé o sexo de um morto<br />
com um olho zongolador ainda semiaberto.<br />
Era tanta a pressa que muitas pessoas pareciam ter<br />
em se desembaraçarem do morto, que as músicas do óbito já<br />
não eram cantadas a viva voz, já não saiam da alma das<br />
pessoas, como antigamente, mas tocadas por um reprodutor<br />
de cassetes que punha no ar músicas em várias línguas de<br />
uma religião que lhes era desconhecida. Algumas mais<br />
velhas mandavam parar o reprodutor para puderem cantar,<br />
tocar e dançar as dolentes canções da sua terra, mas<br />
volta e meia os mais jovens punham outra vez a tocar as<br />
cassetes com canções de Mpeve Yá Nlongo, que muito poucos<br />
massongos sabiam cantar.<br />
A marcha fúnebre para o cemitério da Mulemba Waxa-Ngola,<br />
foi mais rápida que a primeira corrida de<br />
automóveis do mundo. Foi mesmo pena não puderem<br />
ultrapassar o carro em que ia a urna, porque senão<br />
chegaria muitos séculos depois de todos os outros carros<br />
que lhe seguiam, trazendo muitos jovens a fazerem<br />
acrobacias, a berrarem impropérios bonitos e piropos<br />
românticos, a pularem, a gritarem de tanta alegria, que<br />
muitos transeuntes e muitos acompanhantes talvez<br />
pensassem mesmo em hibernar os seus corpos ainda vivos,<br />
ou já mortos, para que fossem descongelados apenas numa<br />
sociedade em que a moral, a ética e o civismo fossem<br />
estritamente observados, pelo menos nesses momentos<br />
sobremaneira tristes para quem perde um ente querido.<br />
Na maior parte dos actos do óbito, o Interino era<br />
o que mais protagonismo tinha, só em muito raros casos<br />
delegando o seu poder, mas não teve capacidade nem<br />
autoridade suficientes para manter as pessoas todas junto<br />
à cova, até que a urna contendo o corpo do seu primocomo-irmão<br />
fosse totalmente coberto de terra.<br />
72
A maior parte delas, sobretudo as mais jovens,<br />
tendo atirado um punhado de terra ao buraco, como que a<br />
dizer «tchau, tchau», punha-se logo a desandar dali, a<br />
fugirem em direcção às viaturas, como se tivessem medo<br />
que o morto ressuscitasse e fosse logo lhes inviabilizar<br />
a festança e a bebedeira subsequentes aos funerais dos<br />
dias modernos.<br />
Das Fitas sentiu o peso de sustentar e de chefiar<br />
praticamente quatro famílias, e resolveu que dali em<br />
diante, ele próprio já na qualidade de responsável-chefe<br />
da tenda, teria de dar tudo de si, para levar a empresa a<br />
bom porto.<br />
Pela experiência já então adquirida, pôde sem<br />
receio e sem tremelicar, virar o ―p‖ de patrão e de<br />
parlapatão, à ―d‖ de dono e de democrata, para que não só<br />
ele, mas todos os que ali trabalhavam, se sentissem donos<br />
da tenda, donos da mesma causa, donos dos lucros e dos<br />
prejuízos. O trabalho foi sendo mais eficiente, com menos<br />
desperdícios e maior rentabilidade.<br />
A vida pessoal de cada um dos membros da tenda foi<br />
mudando. Das Fitas promoveu a interacção entre os membros<br />
de todas as famílias de cada membro da tenda e<br />
paulatinamente todos foram se sentindo como irmãos,<br />
amigos, parentes, visitando-se mutuamente, indo cada um à<br />
festa do outro, ao óbito do outro, sem constrangimentos<br />
ou embaraço algum de motivação hierárquica ou por motivo<br />
de quaisquer outros preconceitos.<br />
Com o aumento da produção, Dosolho ficou<br />
encarregado por um posto de vendas aberto no mercado do<br />
Roque Santeiro. Man-Pinças foi substituído pelo filho<br />
primogénito do falecido man-Kizua, e promovido para<br />
acompanhante de carga e responsável de vendas no mercado<br />
da Xauânde, em Malange. Chiquito, o primogénito de Das<br />
Fitas, foi colocado no posto de enfitador e o pai<br />
acumulou o cargo que já tinha ao de cortador de fitas.<br />
A falta de fitas para cadeiras fez com que as<br />
mangueiras para rega, feitas de plástico e rasgadas em<br />
tiras, fosse a alternativa para prosseguirem com a<br />
produção de cadeiras.<br />
73
Dado o modo hábil e expedito de Das Fitas rasgar<br />
as mangueiras, a sua tenda podia fornecer fitas para as<br />
outras e inclusive para os clientes de fora. Passou então<br />
a ser cognominado de man-Zé das Fitas.<br />
Muito próximo do mbongue, o vale do Soroca não<br />
parava de receber os resíduos sólidos e líquidos vindo<br />
das residências e das fábricas contíguas ao seu percurso.<br />
Nesse tempo em que as águas das chuvas aumentavam o seu<br />
caudal, tornando perigosa a sua travessia, nos momentos<br />
de pausa no serviço, Das Fitas aproveitava para dar uma<br />
volta nas suas beiras, a fim de apreciar a força da<br />
correnteza das suas águas.<br />
Das Fitas ficava a pensar nas muitas histórias do<br />
vale do Soroca, as vidas levadas pelas águas, cujos<br />
corpos eram arrastados e depositados na baía de Luanda,<br />
quando não tivessem o azar de serem travados por algum<br />
dos muitos obstáculos estendidos ao longo dos seus<br />
meandros.<br />
Da baía, o seu pensamento ia para o alto mar.<br />
Tanta a imensidão do mar! Quem lhe dera fosse o seu corpo<br />
afundado nas longínquas entranhas do alto mar, quando<br />
morresse!<br />
Regressando do seu passeio, ficava também a pensar<br />
nessa lenta mas imparável chegada das cadeiras de<br />
plástico. Quanta coisa dava o petróleo, heim!... Um dia<br />
chegaria em que o fabrico artesanal de cadeiras de fitas<br />
seria suplantado e abafado pela invasão das de plástico.<br />
Quantas famílias, quantas bocas não seriam então<br />
afectadas por essa invasão? Como poderiam defender-se?<br />
Onde poderiam recorrer? Quem se importaria com o destino<br />
das suas vidas?...<br />
Das Fitas esboçava já mentalmente um quadro negro<br />
do que seriam os dias do futuro, em que as vendas<br />
baixariam sobremaneira, e se as vendas baixassem, a<br />
produção consequentemente baixaria também. Até que o<br />
petróleo acabasse, ninguém trocaria a sua cadeira de<br />
plástico por uma de fitas. Ninguém prescindiria da sua<br />
cadeira de petróleo mais rijo, mais consistente,<br />
74
perpétuo... Ninguém compraria mais sequer uma cadeira de<br />
fitas de petróleo menos rijo, menos consistente,<br />
mutável...<br />
Os sinais dos últimos dias deste «sistema iníquo<br />
de coisas» far-se-iam então sentir com mais acutilância<br />
em todas as casas de todos os trabalhadores do mbongue.<br />
Haveria fome, doenças, terramotos, maremotos,<br />
celestemotos, numa casa após outra e em todas ao mesmo<br />
tempo. Os filhos revoltar-se-iam contra os pais, as<br />
mulheres contra os maridos, irmãos contra irmãos, seria<br />
enfim, o fim da sociedade, seria o caos geral, seria... o<br />
fim do mundo...<br />
Com essa antevisão dos dias do futuro, decidiu que<br />
ainda estava a tempo de tomar outras precauções. Tinha de<br />
deixar o poder, a cadeira... De que lhe valeria manter-se<br />
obcecado com a posse de algo para o qual havia já<br />
evidências de que mais dias, menos dias o tempo se<br />
encarregaria de lhe desapossar?...<br />
... Era tempo para a Alternância do Poder...<br />
Escrito em Luanda, entre a Petrangol e o São Pedro da Barra, de 05 de Dezembro de 2004 a 05 de<br />
Janeiro de 2005<br />
75
Rangel, 20.06.84<br />
R<br />
O ECONOMISTA<br />
asgava o astro-rei, nos seus primeiros<br />
aios, as frestas da casa de madeira, onde<br />
no final de cada dia ia repousar os seus músculos, suas<br />
graças e desgraças.<br />
Tal como tantos outros, havia ocupado uma bela<br />
vivenda nas confusões do 25 de Abril, onde teria<br />
repousado, não fosse as suas acções estarem mormente<br />
submetidas à satisfação da sua ambição maior.<br />
Vendera tanto a vivenda quanto tudo o que lá havia: a<br />
mobília completa e alguma roupa, deixados pelos donos, e<br />
tudo isso sem piedade a truques de amortizações ou outros<br />
estorvos.<br />
Lá fora, os galos não paravam de cantar. Feito o<br />
asseio matinal, aprontou-se muito rapidamente e já cá na<br />
rua, levava mais uma vez e em largos passos, aquela sua<br />
bem vincada personalidade, antítese dos dois pares de<br />
parede da casa alugada no Catambor.<br />
Trabalhava ali na Auto-Reparadora Bom-Escape,<br />
radicalmente à esquerda do caminho que seguia, afinal à<br />
busca de um colega, companhia de todos os dias.<br />
O percurso que o levava à casa do colega, fazia-o<br />
sempre com as mais largas passadas, já o mesmo não<br />
acontecendo quando de lá saía. E, não fosse o muito à<br />
esquerda da sua casa, e a necessidade inevitável de lá<br />
sempre cedinho passar, nada mais faria levantar<br />
suspeitas, quiçá até dúvidas, sobre as suas boas<br />
intenções.<br />
Bateu a porta no instante sempre I de encontrar o<br />
colega ainda a lavar-se, e mais não esperou, para lhe<br />
dizer, zangado no rosto e na voz, mas hiperalegre no imo:<br />
---- Então, ainda não estás pronto, homem?<br />
77
E coisa que nem esperava que o mandassem, foi sentarse<br />
lá dentro ao pé da mesinha de ferro, que era o coração<br />
da sala, dir-se-ia, a capital da casa: um quarto de<br />
madeira, com mil-e-uma estrelas no zinco das chapas, e<br />
com um pequeno quintal.<br />
Enquanto aguardava, foi conversando com a esposa do<br />
colega, que do outro extremo do quarto, preparava o matabicho.<br />
Mas estava à quantas milhas do que falava!<br />
Era certo que todo o seu pensamento estava escoltando<br />
o que dali há pouco se haveria de anunciar. O colega já<br />
nem pasmava, ao vislumbrar nele o alívio que não sabia<br />
dissimular, quando o convidava a matambar.<br />
Conjugaram o gerúndio do estreito e insípido matabicho,<br />
e logo meteram-se à caminho do serviço.<br />
No Bom-Escape, o relacionamento entre Zito e os<br />
colegas, era óptimo, inverso do que havia entre ele e o<br />
patronato, por ser dentre os trabalhadores, quem mais<br />
apontava as dificuldades por que passavam. Tal, era o<br />
suficiente para a boa reputação junto dos seus colegas, e<br />
para a sua consequente colocação na antecâmara do olhoda-rua,<br />
pelo senhor patrão.<br />
Mas sabia tirar partido de todas as marés e nada lhe<br />
impedia que não aproveitasse para se afogar de dívidas<br />
sob a maré dos colegas. E quando metido no seu trabalho<br />
ou onde quer que estivesse, desse conta da aproximação de<br />
alguém à quem devesse, antecipava-se-lhe com alguma das<br />
tantas chaladices que tão rapidamente sabia inventar,<br />
levando a que o outro se esquecesse por completo de lhe<br />
chatear, e até ia-se embora às gargalhadas.<br />
Só mesmo quando Deus se lhe deparava é que o azar<br />
acontecia, e aí, tinha de inventar doenças e roubos e<br />
feitiços e óbitos que, coitado, só ele tinha sempre. Era<br />
só ver o seu rosto para se não desacreditar.<br />
Na manhã seguinte, ao passar pela casa do colega,<br />
encontrou-o doente. Ficou extremamente triste e<br />
aborrecido pelo facto. E rezou que o colega melhorasse o<br />
78
mais depressa possível. Se possível, naquele mesmo<br />
instante.<br />
----Faz lá coragem, rapaz! Uma febre de nada é que<br />
vai te fazer faltar, te fazer perder o teu pão de cada<br />
dia, juntamente com a tua mulher?<br />
----Nada. Estou mesmo mal, eu é que estou a me<br />
sentir.<br />
E teve de ir sozinho. Sem matabichar…<br />
Posto no local de serviço, todos os anjos do céu<br />
desceram ao seu corpo, e os colegas acreditaram que não<br />
era um simples colega de Juca, mas um verdadeiro irmão. E<br />
porque os momentos tristes fossem sempre longos, teve<br />
nesse dia, o dia de trabalho mais longo de toda a sua<br />
existência. Todavia, ao largar é que se lhe deparou o<br />
outro extremo das consequências que a falta de Juca<br />
reflectia sobre a sua pessoa.<br />
Onde jantar? …<br />
E lá estava ele, ele ante ele, ele ante o dilema de<br />
passar ou não passar pela casa do colega. Sim, tudo seria<br />
natural, e ele, uma pessoa acima de qualquer suspeita, se<br />
não fosse aquele muito à esquerda… Mas… ―quando está bom,<br />
vou sempre lhe acompanhar, agora que está doente não vou<br />
lhe visitar nem nada?‖<br />
Resolveu então passar por lá.<br />
Bem longe dos seus olhos, o mar ia já lentamente<br />
engolindo os últimos raios de sol, incendiando todo o<br />
horizonte. Na cidade, as luzes iam já acendendo, quiçá um<br />
pouco antes da hora habitual, e pensando ser já tarde, só<br />
pôde acelerar um pouquinho mais a passada, mas mesmo<br />
assim, quem lhe visse, não diria que estivesse a andar.<br />
―----Esses do mato, gostam mbora de campar cedo.‖---pensou.<br />
Pediu licença. Mais uma, dentre as… não sabia quantas<br />
já havia pedido ante aquela porta. Pediu mais uma, mais<br />
79
duas, antes de lhe abrirem a porta, com moléculas de um<br />
agradável cheiro logo lhe agredindo o olfacto. E de<br />
cheiros assim, quem não gostava?<br />
Reflectiu no tempo que passara a pedir uma, duas,<br />
muitas licenças, enquanto do lado de dentro saía um<br />
barulho de tampas e panelas e… zás! Não estando nem<br />
panela nem nada sobre o fogão, concluiu que ―essa<br />
malanginha de merda deve mazé esconder as panelas‖.<br />
Não se fez cadavérico ante aquilo, mas arcanjo ante o<br />
companheiro doente.<br />
----Pois é, Juca. Todos miza lá estão tristes…<br />
----Ai-é?!… Isso passa já. Amanhã vou já trabalhar…<br />
----Oxalá, Juca, oxalá. Pensa só no teu pão de cada<br />
dia, mô camba…<br />
Ená! Dir-se-ia estar mais doente que o colega! O<br />
coração torrenciava-lhe de lágrimas, e a voz só por pouco<br />
não desfalecia!<br />
Apesar de tudo, a mulher do colega não parava de<br />
flagelá-lo com olhadas cépticas e pejorativas, como se<br />
ele não se sentisse realmente consternado pela doença do<br />
marido!<br />
Porém, fazendo vista grossa à tudo aquilo, deliberou<br />
queimar a cadeira de fitas em que se sentava, derretendose<br />
a conversar com o convalescente colega. Mas este,<br />
aliando-se ao carácter e estado de espírito da mulher,<br />
acabou por escabecear, tal como ela. E Zito todo<br />
distraído ali a monologar…<br />
Quando apercebeu-se da situação, não mostrou nem<br />
sequer o mínimo indício de despeito. Antes pelo<br />
contrário, pôs-se igualmente a escabecear. Pareciam três<br />
grandes actores a viverem uma boa farsa.<br />
Mas Juca, não tardou a interromper o desenrolar da<br />
peça. Despertou, e muito delicadamente tocou de leve no<br />
braço do colega.<br />
80
----Então Zito, ainda não é tarde?<br />
O colega imerso no seu fingido escabecear, todoouvidos,<br />
não ouviu a pergunta do colega, mas, num ápice,<br />
a esposa pulou da soneca em que parecia encontrar-se, do<br />
lado de lá da cortina, e veio à capital da casa<br />
estremecer o nosso colega.<br />
----Te perguntaram se ainda num é tardiê?…<br />
----Ãh?…<br />
Era Zito. Era o fim da farsa e da visita. Despediu-se<br />
do casal, sem deixar de notar um grande alívio na pessoa<br />
da mulher e registar a desculpa de o colega não puder<br />
acompanhá-lo, por não ter ainda recuperado a força dos<br />
pés…<br />
―----Qual é lá força dos pés! Tás mazê fobô!‖----<br />
pensou Zito.<br />
Cá fora, já a noite rondava. Após afastar-se à uns<br />
tantos metros da casa de Juca, sem mais nem menos, Zito<br />
fez meia-volta, aproximando-se novamente da mesma, em<br />
passo de gato. Da porta do quintal, pôde captar o barulho<br />
de tampas e muxoxos de mulher, a evadir-se de dentro. E<br />
no impasse de bater ou não a porta, viu no ecrã da sua<br />
mente, a mulher junto ao fogão, Juca faminto da vida,<br />
estirado numa cadeira de fitas, com as águas da boca a<br />
lhe escorrerem pelo peito abaixo.<br />
Um barulho de talheres a vir de dentro, fez com que<br />
optasse por bater na porta, não sem antes reunir à sua<br />
volta, os ares do maior assustado do mundo. Três batidas<br />
bem fortes racharam a porta, indo amortalhar a alma do<br />
casal, mormente no seu lado feminino, não tendo sequer<br />
tempo algum para esconder as panelas.<br />
---- Mas, quem é que stá bater assim essa hora??!----<br />
era a voz rude da mulher.<br />
81
―----Abre lá mazê a porta, sua malanginha de merda!‖.<br />
Sou eu! Zito! Abre só a porta, comadre! Ai, meu Deus!…<br />
A mulher, vindo para abrir a porta, e estando já à<br />
meio do quintal, quando soube que era o seu ―compadre‖,<br />
rebentou uma tamanha fava repleta de muxoxos de<br />
estarrecer os ouvidos mais surdos do mundo, mas<br />
inofensivos aos de Zito.<br />
Muito chateada, deu meia-volta, voltando para junto<br />
do marido.<br />
----É outra vez o teu colega.---- queixou-se, não sem<br />
terminar com mais um muxoxo.<br />
À nova batida, veio o colega abrir.<br />
---- É pá Juca, já viram o meu azar???!----<br />
perguntava, quase empurrando o colega à sua frente.<br />
----Mas qual é então o teu azar, ainda há bocado que<br />
saíste daqui?<br />
---- O quêêê??! Vamos ainda lá dentro pra te contar<br />
como se passou. Iam matar-me nos bandidos! Aqui afinal é<br />
assim??!…<br />
---- Mas é verdade mesmo?!---- interrogava, Juca.<br />
----Juro mesmo sangue de Cristo! Até já nem tenho só<br />
força de andar, me arranjam só já um cantinho pra eu<br />
descansar. Afinal, aqui há bandidos?…<br />
No meio do silêncio da noite, apenas ouvia-se a<br />
conversa dos dois colegas, de pé no quintal, misturada<br />
com estalos de muxoxo de mulher megera, a emanarem-se da<br />
capital da casa. Lá dentro, de ouvidos bem grudados à<br />
conversa, a mulher era uma máquina de muxoxos.<br />
Acabaram os dois amigos por entrar, e ao se lhe<br />
deparar a mesa, mesa posta, comida, pratos, talheres e<br />
tudo, Zito fez tudo para não reparar nela. Mas tudo era<br />
em vão.<br />
82
Juca havia tacitamente confiado que, enquanto retesse<br />
o colega no quintal, à volta de juras e azares e o resto<br />
à parte, a mulher iria aproveitar o compasso de tempo,<br />
para voltar a esconder as panelas e desfazer rapidamente<br />
a mesa. Mas a realidade era outra, ou seja, a mesma, o<br />
que muito lhe surpreendeu.<br />
À mulher, toda a representação do azarado era já<br />
indiferente. Momice de macaco velho, com reflexo<br />
condicionado à distância. E, ao invés de preocupar-se,<br />
nem que fosse a fingir, com o azar do seu ―compadre‖,<br />
serviu um prato para si, e a peidar favas e muxoxos, foi<br />
enfiar-se para lá da cortina de mabela, fronteira entre a<br />
capital da casa e o quarto, não sem antes fulminar o<br />
compadre, com uma rancorosa olhada de estéril megera<br />
indomável.<br />
---- Vamos jantar?---- perguntou, quase sem vontade,<br />
o colega.<br />
Nisto, Zito fez tudo para fazer uma cara esquisita.<br />
----Hum!, até nem me dá só mais vontade de comer…<br />
---- Nem te dá mais vontade de comer… ---- arremedou<br />
friamente o marido, enquanto uma arrogante tosse do tipo<br />
tifóide, atravessava a cortina, vindo aterrar na mesa,<br />
aonde encontravam-se já sentados os dois colegas.<br />
Zito fez ouvido grosso à tosse da malangina, e<br />
começou a servir-se. E a servir-se de que maneira!<br />
---- Serve, Zito, serve mais!---- mandava Juca, vendo<br />
o outro a servir-se exageradamente ---- ―Eu como capim…‖-<br />
--- rematou, intimamente.<br />
Zito construiu um morro do Môco de comida no seu<br />
prato, antes de empurrar a maré-baixa restante ao dono da<br />
comida e da casa. O seu coração estava em festa.<br />
Nessa noite o colega melhorou, e na manhã seguinte,<br />
lá foram os dois companheiros, lado a lado, rumo ao<br />
serviço.<br />
83
A manhã estava já aberta ao sol. Depois de tanto<br />
andarem lado a lado calados, Zito rompeu o mutismo.<br />
---- Juca, a tua mulher não é como você…<br />
---- Não é como eu?! ---- interrogou Juca, pasmado<br />
pela súbita afirmação do colega.---- … Isso é normal!<br />
---- Neste mundo então, devemos nos ajudar uns aos<br />
outros. Os mais velhos já diziam: ku dibana, ku<br />
dibakessa… Hoje és tu, amanhã é o outro…<br />
---- Isso é!---- concordava Juca---- Mas, não deves<br />
ligar. As mulheres quando estão grávidas ficam sempre<br />
rabugentas… Mas ela gosta de ti…<br />
---- Ai é?!---- admirava-se Zito.---- Possa, nem<br />
parece, Juca. Verdade mesmo?!…<br />
---- É verdade!… Só que ela é de momentos. Fica<br />
parece tem kalundús. Eu só é que lhe entendo…<br />
Encontravam-se já em pleno fulcro da cidade.<br />
Gradualmente a agitação dos carros, das buzinas, da<br />
fumaça, e dos transeuntes, ia aumentando. À essa hora, já<br />
o sol se havia disposto melhor, pintando a manhã numa<br />
bonita cor-de-rosa.<br />
No serviço, alguns colegas foram saudar Juca e lhe<br />
confirmar que no dia anterior Zito estivera muito<br />
desanimado, o mesmo acontecendo com todos da sua secção.<br />
Era mais um ponto para Zito. E sem mais cantigas, para<br />
evitar que o negro do patrão aparecesse por lá a finar-se<br />
em branco, trazendo a espada de estar indulgentemente a<br />
pagar cinco mil escudos mensais à categoria de ajudante<br />
de mecânico, depressa puseram-se a trabalhar.<br />
Agora sim, podiam falar, molengar, gritar, pular,<br />
fazer tudo que não fosse diminuir a mais valia àquele<br />
84
pequeno-burguês, sorteado nas confusões que haviam dado<br />
fuga aos dono do que se gabava dono.<br />
À hora do almoço, Zito e Juca dirigiram-se ao<br />
Restaurante Portugália, ali mesmo no coração da baixa.<br />
Leram o menu, e seguidamente aproximaram-se da caixa,<br />
para adquirirem as senhas que davam direito às refeições<br />
e às bebidas.<br />
Já o colega havia comprado duas, quando Zito<br />
encontrava-se ainda à procura da carteira por tudo quanto<br />
era bolso, algibeira ou cafocolo. E nada. A carteira não<br />
apareceu.<br />
---- Deve ficar no bolso da outra camisa, lá no<br />
serviço. ---- disse ao colega.<br />
Não sendo a primeira a vez que tal acontecia, Juca<br />
pensou que apenas podia ser mais uma daquelas suas<br />
tácticas de lhe pedir dinheiro por empréstimo. E<br />
antecedendo-se ao que dali há pouco sairia da boca do<br />
colega, puxou pela carteira e comprou mais duas senhas.<br />
---- Vai fazendo as contas, heim?---- disse Juca,<br />
entregando as senhas a Zito.<br />
Com um abanar da cabeça, Zito concordou, não dizendo<br />
nada mais.<br />
Sentados num dos extremos do interior do restaurante,<br />
não demorou a serem atendidos. Zito comeu as duas<br />
refeições, e ainda mais um bocadão deixado por Juca, e<br />
mesmo assim, não mostrou ares de ter ficado repleto…<br />
Nessa tarde haviam de receber os salários. De<br />
regresso ao serviço, pelo caminho, após ter contado ao<br />
colega duas tremendas estórias de rebentar o baixoventre,<br />
Zito preveniu a Juca que não poderia ainda pagar<br />
todas as suas dívidas, por precisar de liquidar os três<br />
meses de renda, da casa em que residia, pois ―estão quase<br />
a me tundar‖…<br />
85
Juca compreendeu a situação do outro, e disse-lhe que<br />
a liquidação da dívida podia ficar para o mês seguinte…<br />
―Sem falta!‖<br />
À tarde, o clima de trabalho na oficina, estava no<br />
auge do agradável, porém, sem aquelas passeatas de uns à<br />
secção dos outros, porque… ai, se o pagador passasse!…<br />
Todo mundo recebeu o seu salário, e à hora da saída,<br />
quase todo ele foi ter com Zito. Zito, que no final de<br />
todos os meses tinha sempre óbitos, muitas rendas<br />
atrasadas por pagar, enfim… ―ku dibana, ku dibakessa, não<br />
se preocupem, sou um homem de palavra…‖<br />
Para a grande surpresa de Juca, Zito que morava no<br />
Catambor, mas que não havia dia que não passasse pela<br />
casa do colega, ali na Corimba, quer quando fosse ao<br />
serviço, como quando de lá voltasse, nessa tarde não quis<br />
saber nem de Juca, nem de companhias de Juca, nem de<br />
jantares, nem de nada! Resolveu despedir-se do colega à<br />
dado passo do caminho, e evaporou-se em direcção ao seu<br />
cubículo.<br />
---- Mas, como é?! Tens algum problema ou quê?----<br />
interrogou Juca, admirado pela súbita decisão do colega.<br />
---- Não há problema nenhum. Tenho de passar na<br />
Calemba, pagar as rendas! Então, não é lá que mora a<br />
bruxa da dona da casa?…<br />
Era a última vez que se despediam. À dona da casa,<br />
não precisava despedir-se…<br />
Chateado como tão constantemente era, tanto no bairro<br />
onde morava, pelas dívidas sem fim que contraía aos<br />
vizinhos, aos amigos de pouca ou nenhuma intimidade; os<br />
empréstimos sem devolução que suplicava à todos, tal como<br />
na oficina, onde os colegas confiavam-lhe algumas peças<br />
de auto para ele Zito, o mais habilidoso, vendê-las cá<br />
fora, sem disso receberem mais do que desculpas de não<br />
ter ainda podido despachar as peças por kapuete,<br />
kabolokosso e kamundanda, Zito só encontraria paz e<br />
sossego, num mundo bastante afastado daqueles e dos<br />
86
demais, por onde já tivesse deixado idênticas<br />
complicações.<br />
No Catambor, arrumou devidamente as suas imbambas sob<br />
um silêncio sepulcral tal, que ninguém deu-se ao azar de<br />
testemunhar.<br />
Na madrugada da manhã seguinte, já de combina com uma<br />
carrinha, mudou-se para o bairro da Mabor, onde semanas<br />
antes havia já feito contactos, levando consigo as<br />
escassas e antiquadas mobílias de que se prezava<br />
proprietário, isto é: o seu catre de molas aguadas, o<br />
papelão que fazia a vez de colchão, a raspadeira, o pau<br />
de dentes, o caducado armário pertencente à ―bruxa da<br />
dona da casa‖, e trazia como amortizador das muitas<br />
rendas que duas vezes lhe havia pago… a velha banheira de<br />
esmalte, o bacio de esmalte, a toalha, a velha toalha de<br />
rosto, mais que ruçada de tanto lhe limpar os gostos e<br />
desgostos da vida; os sapatos à perce, as sapatilhas, as<br />
calças, as camisolas, coisas todas meio-suas, meioalheias,<br />
mas totalmente suas na elegância da rua.<br />
Mudou com tudo isso e mais algo que constituía o<br />
zénite da sua personalidade: um garrafão, banco<br />
subterrâneo das suas economias…<br />
Catambor e Mabor, rimavam. Mas, talvez nem soubesse<br />
que rimassem, nem que houvera metempsicose entre os dois<br />
bairros…<br />
No início era tudo muito bonito. Passeou o bairro<br />
inteiro com o pente fino das suas pernas, fazendo um<br />
estudo minucioso do mesmo, até no mais insignificante dos<br />
pormenores. Após tê-lo dissecado, concluiu que o bairro<br />
era agradável para se residir. Era calmo e com gente<br />
muito simpática.<br />
Na nova casa, Zito encontrou alguns livros que soube<br />
depois terem pertencido ao anterior ocupante. Sempre que<br />
voltasse das suas procuras de emprego, pegava no mais<br />
volumoso dos livros e vinha postar-se no umbral da porta<br />
da rua, enterrando nele os olhos.<br />
87
Aqui, ficava a ler, a olhar, a ver, a ser visto e<br />
tido como um grande amante dos livros, e não só. Certo<br />
dia, passava por ele um trio de lindas moças, e ficou<br />
diametralmente siderado ao ouvir uma delas dizer ―nesta<br />
casa, só moram já grandes muadiés‖…<br />
Para amortizar o êxtase, resolveu vir para dentro<br />
arrumar-se na sumptuosidade do seu catre. E aqui ficou<br />
durante muito tempo a meditar sobre a sua vida. A partir<br />
desse dia, começou a dedicar-se mais à leitura e a<br />
transportar consigo o volumoso livro, para onde quer que<br />
fosse.<br />
E passou a sonhar muito. Às vezes sonhava que estava a<br />
voar, a voar sobre o livro. Mas, eram sonhos difíceis.<br />
Houve um, em que havia fantasmas de todas as cores e<br />
idades, armados com diabólicos garfos, a lhe impedirem a<br />
aterragem. Outras vezes, acontecia conseguir identificar<br />
muitos desses fantasmas: patrões brancos, de quem em<br />
tempos idos fora criado, caxico, hoje deste, amanhã<br />
daquele, sempre a furtar-lhes; gente de todos os bairros<br />
por onde já passara e lhes tivesse pago patavina de<br />
dívida, e até o Coelho, o Sô Coelho, a quem nunca tivera<br />
roubado ou furtado, por ser ele quem lhe havia ensinado<br />
tantas e tantas artes, e sobretudo a de como ser rico…<br />
todos apareciam nos sonhos, a empurrá-lo para os céus. E<br />
no meio daquele do sonho, interrogou-se:<br />
―---- Será que vou para o Céu, ou será que vou para o<br />
Inferno?… Será que estou morto?…‖<br />
E quando viu continuar a desfilar ante os seus olhos<br />
todo o seu passado de sacristão, engraxador,<br />
cadiengueiro, ardina, batoteiro, monangambé, ajudante de<br />
quimbanguleiro, e ajudante de mecânico, aí, concluiu que<br />
estava morto e à caminho do Inferno.<br />
Era o que lhe havia ensinado o Coelho, o Sô Coelho,<br />
um comerciante para quem havia trabalhado, no musseque<br />
Sambizanga, e dele apreendido grande parte da sua<br />
filosofia de vida.<br />
88
O ―Mestre Coelho‖, como ele lhe tratava, tinha vindo<br />
desterrado de Portugal ainda muito jovem, e aqui passara<br />
por muitas e profundas experiências, muitas e imensas<br />
dores, antes de estabelecer-se como comerciante e passar<br />
os derradeiros dias da sua vida numa onda mais ou menos<br />
cor-de-rosa.<br />
Com Zito, não tinha receios nenhuns de se abrir.<br />
Chamava-o de ―meu filho‖, e por incrível que pareça, até<br />
juntos bebiam vinho e fumavam liamba. Era um biaco<br />
cacimbado, que dizia ser perito em ―espertezas de negro‖,<br />
mas na verdade, em espertezas de branco é que era mil<br />
vezes Nobel.<br />
Contara a Zito como havia acumulado e economizado,<br />
para puder chegar até onde havia chegado, e não se<br />
cansava de lhe repetir: ―acumular, economizar sempre,<br />
rapaz!‖<br />
Quando despertou do sonho e se achou sozinho no<br />
quarto, chegou à conclusão que estivera a sonhar. E<br />
passou as noites seguintes a ler até altas horas, para<br />
evitar o sonhar aqueles sonhos do diabo. Mas isso às<br />
vezes lhe tornava o sono mais tranquilo, o que não<br />
impedia que lhe apertassem a garganta e lhe asfixiassem,<br />
por feiticeiros e bruxos vindos do Catambor, do Bom-<br />
Escape, e do resto à parte, para bungular no seu quintal.<br />
Em todo o lado, a sua alma estava sendo praguejada. O<br />
seu nome era levado às igrejas da Muxima, Santa Ana,<br />
Nazaré; entrava aos ouvidos de santos e de quimbandeiros,<br />
nos livros de Deus, e nos de Diabo.<br />
Porém, por mais absurdo que fosse, a vida sabia<br />
absolver os seus inocentes. Zito, não tinha pecados… E<br />
ali estava ele. Cheio de força e de vontade de viver. Os<br />
sonhos não constituíam obstáculos. Eram os efeitos da<br />
alma que se purga.<br />
Possuidor daquele seu ar de franqueza, a mímica<br />
cativante e arrebatadora, a personalidade no trajar, que<br />
obstáculos o intimidariam? Não via esse preconceito snobe<br />
que tantos incultos enxergavam, em dialogar, em<br />
cumprimentar ou fazer um adeus a quem quer que fosse,<br />
89
criança ou adulto, animal ou figura. Se estivesse andando<br />
pela rua e um carro bonito passasse por ele, não hesitava<br />
em levantar o braço para saudar um miserável qualquer que<br />
nele estivesse. Diariamente, fazia amizades com moças e<br />
moços do bairro e até com senhores de idade já avançada<br />
ou ainda atrasada, que viam nele, um rapaz de juízo, um<br />
literato, um poeta de se deixar tirar o cabaço da filha,<br />
por cheirar futuro de muata.<br />
Quanto mais não fosse por isso, como teria, ele Zito,<br />
dificuldades em emprestar fosse o que fosse a quem fosse,<br />
quanto, quando, onde, e como quisesse? Quem se atreveria<br />
a impedir-lhe a entrada em festas ou em combas? ―Então<br />
você não conhece o man-Zito, ou quê?! Deixa-me lá passar,<br />
oh gente!‖<br />
E deste modo, aumentava a sua fama. Evitando, se é<br />
que evitava, o ridículo, tinha uma forma muito<br />
característica de alegrar as festas, fazendo-se amigo de<br />
todos, a quem aproveitava para bajular no mais que<br />
pudesse, e até prontificavam-se a dar-lhe mais! E aí, com<br />
uma expressão algo esquisita, Zito dizia: ―obrigado p‘la<br />
gentileza!‖<br />
Inconscientemente, Zito foi se tornando um<br />
biscateiro, pois pouco ligava já ao book, e muito menos<br />
ao que as pessoas pensavam dele, quando se tratasse de<br />
algum meio de economizar e acumular.<br />
Quando algum vizinho tivesse um porco, um cabrito,<br />
para matar, um fogão ou um motor qualquer para reparação,<br />
―é só mandar me chamar!‖…<br />
O livro foi ganhando poeira, enquanto Zito ia se<br />
tornando um exímio na arte de reparar fogões e geleiras e<br />
arcas, que não tardou a colocar ele mesmo, uma tabuleta<br />
sobre a porta, com os dizeres:<br />
REPARAÇÕES<br />
DE<br />
GELEIRAS E<br />
FOGÕES<br />
ZITO<br />
90
Sobre frio, poucos conhecimentos tinha, mas nem de<br />
longe tal o preocupava. Era a arte de esfriar o quente da<br />
vida, e pronto. Porém, mais cedo do que pensava, viu a<br />
casa afogada de fogões e geleiras e arcas, em que se<br />
salvar daquela inundação de dinheiro, que rapidamente ia<br />
desaguando no seu garrafão.<br />
Apenas, depois de muita hesitação, arranjou dois<br />
ajudantes. O negócio foi prosperando, mas não sem<br />
dificuldades. Tirando peças de uma coisa para outra é que<br />
Zito conseguia despachar as obras. Mas, nesse andar, e<br />
porque teimasse em não gastar dinheiro a comprar<br />
sobressalentes, muitas coisas iam se transformando em<br />
simples carcaças. E estas iam aumentando, ao mesmo tempo<br />
que as mentiras e intrujices do proprietário da tabela.<br />
Aos fins de semana, Zito gostava de desanuviar,<br />
desembaraçar-se daquele cemitério de carcaças que ia<br />
sendo a sua casa, e perder-se pelas ruas e becos da<br />
Mabor.<br />
Ia certa tarde num desses passeios, mãos enfiadas nas<br />
algibeiras, andar arqueado, quando se achou ante um<br />
conhecido do Catambor, mesmo diante da fábrica que dá<br />
nome ao bairro.<br />
---- Oh, Zito! Pópilas, pensei que já tinhas morrido!<br />
Afinal mulundu ni mulundu ka di sangá, mutu ni mutu, sai<br />
kizua ha di sanga.<br />
----É verdade, Noé, aqui estamos!…<br />
---- Olha, já da outra vez, estava eu a acompanhar um<br />
funeral, e te vi lá mais adiante… e onde é mesmo que fica<br />
a tua casa?…<br />
---- ―Porra!‖… É pá, quer dizer…<br />
Mas já o outro conhecia, o que ele havia de dizer.<br />
---- E então, o meu dinheiro?…<br />
Ia a responder, mas o outro não estava para mais<br />
palavras. Queria factos.<br />
91
---- Vamos!, hoje tenho que conhecer a tua casa.<br />
Desde há tanto tempo, as sapatilhas não são estas que até<br />
estão já todas rotas?…<br />
Em crescendo ia a exaltação dos ânimos do outro, e<br />
para evitar a curiosidade das pessoas à volta dos dois,<br />
Zito decidiu levar o amigo a conhecer a sua casa.<br />
A tarde paulatinamente ia dando lugar à noite.<br />
Meteram-se pelo interior do bairro, e enquanto andavam,<br />
Zito afinal, ia equacionando o modo de safar-se daquele<br />
inoportuno amigo.<br />
Levava-o na mais sambila área de becos que conhecera<br />
logo que fora lá morar, e não demorou a se lhe deparar a<br />
incógnita. O dia, já então estava mais para o lado da<br />
noite que do da tarde. Chegaram num entroncamento de<br />
becos e… zás! Mais uma vítima acabava de ser<br />
electrocutada pela massa cinzenta de Zito.<br />
O amigo, estrangeiro naquelas bandas, preocupado com<br />
as horas, ia à frente de Zito, quem naquele momento<br />
emulava a passada de tartaruga. Contudo, para certificarse<br />
da presença deste, ia fazendo todo o tipo de perguntas<br />
que lhe apetecesse.<br />
----Ó Zito, tás a te lembrar do Gama?…<br />
Nessa altura, entretanto, já Zito se havia<br />
esguedelhado para um outro beco. Como não tivesse obtido<br />
resposta, o amigo virou-se imediatamente para trás. Mas<br />
toda a rapidez era nenhuma. Tentou ainda seguir as marcas<br />
das suas sapatilhas de Zito, mas feliz e infelizmente já<br />
por lá reinava a escuridão, e todos os esforços foram em<br />
vão. E pensando que ―monte e monte nunca se encontram,<br />
mas pessoa e pessoa, um dia encontrar-se-ão‖… voltou<br />
embora.<br />
Nessa noite, Zito meditou bastante. Não tinha razões<br />
de queixa quanto à vida. Quem estava constantemente a<br />
queixar-se eram os clientes, os ajudantes dele, o<br />
senhorio. Quem sempre chateava os outros, eram os outros<br />
nele. Não pedia nada a ninguém, porque pedindo, ele<br />
92
estava tão-somente a acumular, a guardar o que lhe davam,<br />
a guardar os outros. E meditando muito mais, concluiu que<br />
era um pobre diabo.<br />
Zito continuou a trabalhar, mas já sem aquela força<br />
de vontade e garra iniciais. Os clientes continuavam<br />
sempre a reclamar-se, a ameaçá-lo com contrafés e contrafactos.<br />
Zito argumentava. Que lhe entendessem e<br />
compreendessem a falta de sobressalentes reinante no<br />
mercado. Que ele não tinha culpa alguma que tivessem<br />
sabotado as lojas dos brancos que à entrada e à saída<br />
sabotaram. Que estes sim, é quem eram os verdadeiros<br />
sabotadores dos seus fogões, e geleiras e arcas, e não<br />
ele, pessoa insuspeita, a confirmar na vizinhança e quem<br />
mais em Luanda, na terra, no céu ou no inferno, o<br />
conhecesse.<br />
Mas ninguém ia confirmar. E isso provava que ele era<br />
ninguém. Que estava sendo alvo de uma conspiração não<br />
secreta. Tinha os factos à vista!<br />
E começou a sentir um medo horrível de viver sozinho,<br />
no meio daquele cemitério de geleiras, fogões e arcas, em<br />
que à noite feiticeiros guardavam o seu corpo, para<br />
depois, em orgia satã o assarem num monstruoso fogão. Que<br />
horror!<br />
Passado alguns dias, Zito deslocou-se ao musseque<br />
Mulemba-wa-xa Ngola, a procura de casa para residir,<br />
tendo conseguido encontrar um anexo, após gastar um bom<br />
cabedal.<br />
Ao constatar que o dono da casa era um velho e<br />
quimbandeiro, Zito torceu três vezes o nariz, mas já não<br />
podia retroceder. Ponderando bem sobre as circunstâncias<br />
que a sua vida atravessava, não tinha muito tempo a<br />
perder.<br />
Na madrugada seguinte, mudou-se para a nova<br />
residência com todas as suas imbambas, incluindo uma<br />
geleira, um fogão e uma arca, como troco das muitas<br />
geleiras e fogões e arcas, que pouco havia concertado.<br />
93
Somava e seguia. Mas, até aonde iria ele?… Para algum<br />
lado, evidentemente. E por isso, ia para qualquer lado…<br />
A Mulemba, terra de Ngola, era uma zona industrial<br />
com grandes fábricas a chamarem por ele. Mas as<br />
constantes insistências do velho Kaxika à volta da sua<br />
mão-de-obra, acabaram por convencê-lo.<br />
Na Mabor, o nome de Zito era guloseima na boca da<br />
vizinhança. O prestígio que vinha perdendo por parte<br />
daquela, acabou por consumar-se com a sua fuga. Muitos<br />
clientes que apareciam na antiga casa, transtornados pela<br />
sua fuga sem adeus nem recado, queriam retirar mais do<br />
que lá haviam colocado.<br />
Enquanto isso, a dona da casa, não menos lesada pelo<br />
facto, discutia com os ex-ajudantes de Zito, o destino da<br />
oficina. A senhora reclamava para si a propriedade da<br />
casa e consequentemente, tudo quanto lá estivesse, fosse<br />
de quem fosse, porque ―durante um ano, apenas me pagou a<br />
renda de um mês‖…<br />
No fundo, o que ela queria era lundular, herdar a<br />
tabuleta e o seu significado de Zito, que os ex-ajudantes<br />
reclamavam para si. Porém, ela, com filhos e afilhados<br />
uniformizados e com coldres nas cinturas, acabou por<br />
esmagar a rebeldia dos frangotes.<br />
Na Mulemba, Zito estava à-vontade. No velho Kaxika,<br />
quimbandeiro com monumento por erguer, apareciam pessoas<br />
e deuses de qualquer índole, linhagem, raça ou<br />
nacionalidade. Era difícil saber o que havia na base da<br />
sua personalidade, para fundamentar-se a versatilidade de<br />
Zito. Não se importava em nada com o que era, fora ou<br />
deveria ser. Se o povo ladrasse ou deixasse de ladrar,<br />
não era ele mesmo o povo, quem dizia que uma coisa não<br />
tinha nada a ver com outra? Parecia ser um esquizóide.<br />
Mas então, e o seu tipo atlético? E a sua musculatura?…<br />
Estremecia os postulados dos homens. Talvez fosse um<br />
deus…<br />
Mestre Coelho, lhe dissera certa vez, que para<br />
singrar na vida, um homem deve aprender tudo. Estavam a<br />
94
conversar, encostados ao balcão, e num papel de embrulho<br />
o branco escreveu: TUDO. Zito leu, e compreendeu TUDO…<br />
Como ajudante de quimbandeiro, não havia pormenor<br />
algum que não aproveitasse, detalhe algum que não<br />
apreendesse. Os gestos de Kaxika, a linguagem, a<br />
eloquência e tudo mais, Zito arquivava muito bem na sua<br />
cachimónia.<br />
De quando em quando, ele e o velho, viajavam às<br />
igrejas da Muxima, Santa Ana, e também à todas quanto<br />
havia em Luanda. Nelas depositavam moedas e bugigangas e<br />
bruxedos, e de lá traziam água e azeite bentos,<br />
imprescindíveis ao seu trabalho.<br />
Certa vez, noite no auge, foram ambos desenterrar<br />
ossos atrás do cemitério do 14. Na ida o velho informara<br />
a Zito que se tratava de um tipo de pedras, necessárias à<br />
alguns tratamentos que iria fazer, e que era norma ali<br />
aparecerem.<br />
Estavam mesmo próximos do muro que limitava o<br />
cemitério, banhado de uma ponta a outra, com lavras de<br />
mandioqueiras, que em número, levavam vantagem ao dos<br />
mortos que já haviam dado entrada no cemitério. Aqui,<br />
fantasmas de corpos que haviam sido mundanos, exercitavam<br />
marchas em ordem unida. Os túmulos vibravam, e desabavam<br />
os dos que em vida haviam sido pobres.<br />
Ali, havia não só túmulos de pobres, como também de<br />
ricos. Túmulos mil vezes melhor que muita casa de gente<br />
viva, gente do Rangel, gente do Sambizanga, gente do<br />
Catambor, gente da Lixeira. Na marcha, os seus fantasmas<br />
iam no pelotão dianteiro e tinham patentes altas.<br />
Enquanto os fantasmas marchavam, muitos corpos eram<br />
despejados dos seus túmulos, por seus familiares não<br />
terem pago por eles, a renda única de lá perpetuamente<br />
habitarem. Alguns coveiros aproveitavam os ossos, boas<br />
lenhas para aquecer um café, um feijão, um funje, no<br />
intervalo entre dois enterros, isto quando não fosse dia<br />
de dikomba, de que tanto adoravam, para não terem tempo<br />
algum de tomar sequer um café, comer um feijão, um funje,<br />
dada a grande probabilidade de gorjetas a chover.<br />
95
E rogavam que houvesse endemias, epidemias,<br />
poligamias, altas taxas de natalidade, nenhuma esperança<br />
de vida, altas taxas de mortalidade, e uma infinita bicha<br />
de funerais a dirigir-se para lá, para nunca mais tomarem<br />
um café, comerem um feijão, ou um funje, e apoderarem-se<br />
do mundo.<br />
Do lado de fora, Zito cavava. Quando sentiu a enxada<br />
bater em algo duro, achou que devia tratar-se das pedras.<br />
E pousando a enxada ao lado, debruçou-se sobre o buraco,<br />
para retirar o que lá pensava houver.<br />
Pânico! Crânios humanos!… Gritou bem alto, de medo,<br />
mas não ouviu o grito. Ao reparar à sua volta, não viu o<br />
velho. Tudo havia se tornado mais escuro. As<br />
mandioqueiras pareciam pessoas que haviam sido vendidas<br />
na maiombola, e trabalhavam perpetuamente naquelas<br />
lavras.<br />
Não muito acima daquilo, nuvens pretas passavam<br />
silenciosamente. Tudo ali, era silêncio. Apenas Zito<br />
continuava histericamente a gritar, a lutar para fugir<br />
dali o mais depressa e longe que pudesse.<br />
Porém, forças ocultas mantinham-lhe cativo.<br />
Gradualmente, foi ouvindo um barulho de vozes e<br />
passos uniformes, a vir do cemitério. Apurando melhor o<br />
ouvido, percebeu o barulho cada vez mais próximo, e no<br />
instante seguinte, o muro do cemitério rompeu-se.<br />
Três pelotões de esqueletos humanos, comandados pelo<br />
velho Kaxika, caminhavam na sua direcção. De repente,<br />
viu-se livre das forças que o prendiam, e com todos os<br />
pés que tinha, pôs-se a correr endiabradamente, até à sua<br />
casa.<br />
Atirou-se logo à cama, com a roupa, os calçados, e o<br />
cansaço. Para dormir um sono intranquilo e longo. Dos<br />
mais longos da sua vida. Quando acordou, já o velho tinha<br />
atendido um bom número de pacientes. Nesse dia, a casa<br />
estava mais cheia que nunca. Todas as raças e um albino<br />
96
cuja raça não sabia, estavam ali. Senhoras e moças com<br />
caras de santas e de prostitutas, senhores e moços com<br />
caras de cornos e de adúlteros, estavam todos ali. Um<br />
perfume vindo não sabia de que axila, penetrava docemente<br />
todos os orifícios do seu corpo cansado e inerte, no<br />
umbral da sua porta.<br />
E ficou durante algum tempo a olhar parvamente, as<br />
pessoas que estupidamente o olhavam. Mas o que estava<br />
vendo, não eram aquelas pessoas…<br />
Após se ter preparado, foi para junto do velho. Logo,<br />
pôs as mãos no que havia por se fazer, mas via-se que o<br />
seu pensamento não estava naquilo. O humor não era o<br />
habitual, o que não tardou a despertar a atenção das<br />
pessoas que não estavam ali pela primeira vez, e mormente<br />
a do velho.<br />
---- Não dormiste bem, mano Zito?… ---- perguntou em<br />
quimbundo o velho.<br />
---- Dormi---- respondeu Zito, secamente.<br />
O velho, cabisbaixo, engoliu em seco a resposta e não<br />
disse mais nada. Entendeu tudo. Estava derrotado. Zito<br />
era mais forte do que calculara…<br />
Até ao meio desse dia, continuaram a trabalhar<br />
normalmente, mas cada um aparentemente indiferente ao<br />
estado de espírito do outro. Fora das três dimensões, é<br />
que discutiam, se flagelavam, se xingavam…<br />
Zito jamais saberia o que se passara na noite<br />
anterior, junto ao cemitério, se não fosse<br />
‗kanzuela‘(pessoa que fala no momento em que vem ao<br />
mundo). O seu espírito era bastante forte, e em sonhos<br />
esclarecia-lhe todos quantos pretendessem roubar-lhe a<br />
vida.<br />
E nessa noite sonhara deveras imenso. Conhecia muito<br />
bem a gramática dos sonhos. A sua sintaxe e a sua<br />
morfologia. Não havia miragens: Kaxika queria a sua vida…<br />
97
Lhe havia dito certa vez o Coelho, o Mestre Coelho,<br />
no auge de uma puxada de liamba, que enterrara a mãe, no<br />
quintal da loja. Que não temia, nem a fantasmas, nem a<br />
infernos. Que a única coisa digna de ser temida neste<br />
mundo, era o medo. Zito temia o medo. Tinha dele até um<br />
reflexo condicionado muito apurado, a fim de não o fugir<br />
e puder enfrentá-lo de peito aberto. Porém, tinha por<br />
natureza não pôr em demasiado risco a sua vida.<br />
À tarde, feita a interrupção dos tratamentos para<br />
almoçarem, Zito, de chofre, declarou ao velho que não<br />
almoçava, e que iria embora dali no dia seguinte.<br />
Mostrando despeito na voz, nos gestos, e no olhar, Kaxika<br />
ainda queria saber a razão daquela tão abrupta decisão.<br />
Zito nada argumentou. O rosto do velho, mais que um<br />
facto, era um ícone. Não precisou de lê-lo.<br />
Saiu e apenas regressou à noite. De manhã muito cedo,<br />
pegou no garrafão, em todos os demais haveres, e sem<br />
precisar das pernas, mudou-se para o Bairro dos Ossos.<br />
O novo bairro não era muito diferente do musseque da<br />
Mulemba wa xa Ngola. As casas e os ambientes eram<br />
idênticos.<br />
Os quase doze meses passados junto do velho, poucos<br />
ingressos deram ao seu garrafão, mas em contrapartida,<br />
trouxera de lá alguns conhecimentos e muita experiência.<br />
E após uma semana de tanto pensar, ponderar, e alambicar,<br />
encontrou finalmente, o seu ganha-pão.<br />
Quimbandeiro… Então? Não era o mesmo Zito, quem na<br />
Mulemba ajudara o velho Kaxika?…<br />
Não havia tempo a perder. Comprou todas as bugigangas<br />
necessárias ao seu trabalho: espelhos, balaios, miçangas,<br />
panelas de barro, ocusso, pemba. Arranjou farrapos<br />
vermelhos, brancos, pretos, e cordas e paus e peles e<br />
unhas e penas. Comprou pregos, parafusos, porcas e<br />
anilhas e o resto à parte. Ossos, não precisava comprar.<br />
Era o que havia de mais, por aquelas bandas. E teria<br />
graça alguma, chamarem de Bairro dos Ossos, a um bairro<br />
que os não tivesse?…<br />
98
Zito estava completamente mudado. Ele ia para algum<br />
lado, e por isso tinha de mudar constantemente. De rosto,<br />
de voz, de trajo, de idade, e se não fosse estar num Cu<br />
da civilização, estaria até num seu inferno, com outra<br />
cor e outro sexo.<br />
Todavia, ninguém ali o conhecia como sendo<br />
quimbandeiro, apesar das miçangas e dos paus com que<br />
andava de um lado para o outro, pendurados ao pescoço.<br />
Mas isso de modo algum ameaçava o investimento feito.<br />
Sabia guardar, e também aguardar.<br />
E aguardou.<br />
Certa noite, ouviu a vizinha do lado disparatar a<br />
gatos que andavam por cima da casa, e na manhã seguinte,<br />
de pé na sua porta, ia aquela passando, quando Zito a<br />
deteve.<br />
---- Mana, chega inda aqui.<br />
A vizinha, meio à-vontade, meio desconfiada,<br />
aproximou-se a ele.<br />
---- A mana me discurpa. A mana stá com doença no<br />
corpo…<br />
---- Doença? No corpo?!---- interrogou ela, atónita.<br />
---- Sim mana. Tem pessoa que anda te perseguir. ----<br />
rematou Zito.<br />
A vizinha admirada e preocupada, queria de Zito muito<br />
mais. Entraram para o quintal, e do muito, o quimbandeiro<br />
deu-lhe apenas o aperitivo: far-lhe-ia o tratamento.<br />
E receitou-lhe a trazer, duas panelinhas de barro, uma<br />
cabirí, um litro de vinho tinto, e outro de branco.<br />
0s dados estavam lançados...<br />
E aos ouvidos desta, e daquela, e daqueloutra vizinha,<br />
a senhora foi rapidamente veiculando a notícia,<br />
informando-as de que realmente vinha se sentindo doente,<br />
99
havia algum tempo... --- Desde aquele dia que a minha<br />
enrival veio na minha casa---- informava ela.<br />
E antes de ela concluir o receitado, já pelo vizinho<br />
iam passando algumas vizinhas e pacientes de longe e de<br />
além-mar. Durante alguns tratamentos, Zito, do lado de<br />
dentro, escutava muito bem as conversas que os pacientes<br />
no quintal iam tecendo. Gravava muito bem as suas vozes,<br />
os seus problemas, e até os elogios que um ou outro lhe<br />
dedicava.<br />
Assim, antes de recebê-los, já Zito tinha um<br />
diagnóstico sobre a maior parte deles.<br />
Certa noite, apareceu para ser tratada, uma mocita a<br />
cheirar uns dezoito cacimbos ainda, acompanhada da mãe e<br />
de uma tia. Apesar de bastante doente e fisicamente<br />
apresentar-se bastante abatida, o seu rosto e o seu<br />
corpo, exalavam para Zito, beleza e pureza tais, que não<br />
fosse estar acompanhada…<br />
―---- Mas que peito, que chuchas, meu Deus!‖----<br />
pensava dentro de si.<br />
Deixou de lado esses maus pensamentos e pôs mais<br />
atenção no seu trabalho. Num prato esmaltado, raso,<br />
desfez um pouco de ocusso e um pouco de pemba, colocou aí<br />
duas moedas, tendo por último deitado nele algumas gotas<br />
de óleo e de água. Pegou num cabaço que estava ao seu<br />
lado e tirou dele um gole. Era vinho. Com o que restava<br />
na boca, borrifou violentamente a moça, na cara, no<br />
peito, e nas coxas.<br />
---- Esse teu tio, esse teu tio…---- começou por<br />
dizer, sem tirar os fugidios olhos do peito aonde estavam<br />
os seios da mocita.<br />
Nisto, a mãe e a tia entreolharam-se, como que<br />
chegando a um ponto tácito. O quimbandeiro misturou tudo<br />
o que estava no prato, tornando-se numa massa vermelha.<br />
Com esta, fez cruzes nas palmas, nas patas e na testa da<br />
paciente. Voltou a beber da cabaça, para borrifar os<br />
quatro cantos do quarto. Os espíritos, os calundus, já<br />
estavam na cabeça do quimbanda. Os seus movimentos e<br />
100
gestos e gritos, tornavam-se cada vez mais rápidos e<br />
imperceptíveis. Mexia aqui, remexia ali, e ninguém<br />
percebia nada.<br />
---- Esse teu tio, esse teu tio!… Qual é o mal então<br />
que vuçê lhe fizeste? Ele também não tem filhos, não tem<br />
filhas?…---- dizia o quimbandeiro.<br />
E no auge da sua febre de espíritos, como um<br />
possesso, desnudou a blusa da paciente, quase desmaiando<br />
ao tocar nos seios dela, e foi imperceptivelmente<br />
chupando aqui e ali, em diferentes partes do seu tronco,<br />
enquanto ia despejando parafusos, pregos, porcas, numa<br />
panela de barro que estava ao seu lado.<br />
Restabelecida a calma, o quimbandeiro pegou na<br />
panela, e despejou todo o seu conteúdo num prato.<br />
Os olhos da mãe e os da tia, caíram no prato.<br />
---- Eh! Eh! Já viram?! Estás a ver São? Estás a ver<br />
?! Quando te dizia não fica só nesse teu tio fiticeiro!<br />
Estás a ver as coisas que te tiraram?! ---- Era a mãe.<br />
A tia, com a boca aberta, mas muda, só pouco depois<br />
disse:<br />
---- Ias morrer, minha filha. Não querem ver o teu<br />
bem. Não querem te ver a estudar…<br />
O quimbandeiro, com a cabeça deitada para baixo, as<br />
mãos atiradas à qualquer sorte, escutava, imóvel e<br />
atento. Lá fora, a noite ia alta. No céu não havia luz,<br />
apenas a escuridão de grandes massas de nuvens em<br />
movimento. Ondas de vento, passavam e voltavam a passar.<br />
De manhã, Zito preparou um banho com folhas<br />
aromáticas. No quintal, a mãe e a tia ajudavam a paciente<br />
a lavar-se, enquanto no quarto, o quimbandeiro preparava<br />
alguns pós, volta e meia espreitando para o busto da<br />
mocita, completamente nu, colado nas frestas.<br />
Ao contrário do que fora a noite, a manhã apresentavase<br />
extremamente bonita, com um céu de safira claro-<br />
101
escuro, o sol radiante, e as ruas movimentadas. Senhoras<br />
de balaios à cabeça, filhos às costas, a catana numa mão,<br />
e na outra a cabaça de água, dirigiam-se às lavras.<br />
Adolescentes com sacos ou latas às mãos, vazios ou<br />
carregados com resíduos de rezes, cruzavam-se pelos<br />
caminhos que iam desaguar à lixeira dos matadouros.<br />
Depois de lavada a paciente, esta e as senhoras de<br />
que se fazia acompanhar, voltaram para o interior da<br />
casa. Aqui, Zito entregou à mãe, três embrulhos contendo<br />
pós, ditando as suas respectivas indicações. Amarrou um<br />
fio de mateba num dos dedos do pé direito da paciente, e<br />
uma tira de pano vermelho no pulso da sua mão direita.<br />
---- Se estas cordas rebentarem, não voltem a<br />
apanhar, ouviram?…<br />
As senhoras, impacientes pelo deferimento de uma<br />
preocupação que haviam exposto ao quimbanda, solicitaram<br />
na pessoa da tia:<br />
---- Então mano, não nos diz inda o nome desse<br />
cadiapemba que queria comer a nossa filha?...<br />
---- O tratamento ainda não acabou. Agora vão deixar<br />
só dois contos. Arranjam quatro litros de vinho: dois de<br />
tinto, dois de branco; duas galinhas de quimbundo, e uma<br />
panela de barro. Falta lhe tirar mais algumas coisas.<br />
Depois vos digo o nome desse tio dela feiticeiro. Podem<br />
ir!…<br />
Nessa manhã, apareceu a vizinha de Zito, de quem as<br />
chapas da casa eram todas as noites, palco de gatos que<br />
choramingavam como bebés.<br />
Trazia as duas panelinhas de barro, uma cabírí, um<br />
litro de vinho branco, e outro de tinto, conforme<br />
recomendação do quimbanda, e ainda alguns escudos.<br />
À essa altura, já o quintal encontrava-se preenchido<br />
de pacientes. Ao pé da porta, outras pessoas<br />
encontravam-se sentadas, aguardando a sua vez. Quando o<br />
quimbanda saiu ao quintal para saudar os pacientes, viu a<br />
vizinha sentada no meio de algumas senhoras, e pediu-a<br />
102
que se levantasse. Aproximou-se dela, e com um olhar<br />
edaz, leu o seu rosto .<br />
----A tua enrival quer te dar cabo !----disse de<br />
chofre, o quimbanda, imediatamente voltando para o<br />
quarto.<br />
O espanto na cara da vizinha, reflectiu-se na de todos<br />
quantos se encontravam no quintal, logo transbordando<br />
para as dos que lá fora aguardavam a sua vez. Todo o<br />
mundo pôs-se a comentar o facto.<br />
Zito tratou a vizinha, tendo tirado da sua testa uma<br />
ponta de agulha. No dia seguinte, foi à sua casa com uma<br />
vassoura de mateba e as duas panelinhas de barro.<br />
Pediu água da sanga, e com a vassoura, borrifou todas<br />
as portas e cantos da casa. Recomendou que guardasse uma<br />
panelinha debaixo da cama onde dormia com o marido, e que<br />
enterrasse a outra junto à entrada principal, para<br />
impedir que o mal entrasse naquela casa.<br />
O nome de Zito ia longe, além-mar, além-terra, alémuniverso.<br />
No garrafão, o dinheiro já não cabia. Precisou<br />
de arranjar outro.<br />
Quando Zito voltou da casa da vizinha, encontrou<br />
dentre as várias pessoas que o esperavam, uma senhora<br />
que se fazia acompanhar de um filho em avançado estado de<br />
giba.<br />
----Já andámos tanto, em todas igrejas, todos<br />
hospitais, em todo o lado, e nada!----lamentava-se a<br />
senhora.<br />
O quimbandeiro levantou a camisa do miúdo, apalpando a<br />
corcundinha a florescer nas suas costas.<br />
----Este caso é simples!---- afirmou Zito ----Vamos!<br />
Entrou no interior da casa, seguido pela senhora e<br />
pelo miúdo. Mandou à mãe, que deitasse o filho numa<br />
esteira estendida no chão, indo ele sentar-se ao bordo da<br />
sua cama.<br />
103
---- Quando é que lhe descobriu a giba?<br />
---- Há quase um ano, mano. Não sei à quantas<br />
senhoras já não lhe levei, mas o miúdo continua na<br />
mesma…<br />
---- Pois! Uma pessoa que trata esta doença, não pode<br />
ter marido ou mulher. Durante o tratamento, a mãe do<br />
filho não pode dormir com o marido, ou com qualquer outro<br />
homem. ---- dizia o quimbandeiro ---- O teu filho, não<br />
tem ninguém que está lhe perseguir. A primeira pessoa que<br />
estava a lhe tratar, é que estava a tratar mal e tinha<br />
mbora marido, se dormia mbora com o homem dela…<br />
----Já viram?!---- pasmava-se a senhora ---- Tanto<br />
dinheiro que aquela senhora não comeu!…<br />
---- A mana tem marido? ---- perguntou Zito.<br />
---- Tenho sim, mano.<br />
---- Eu vou começar a lhe tratar. Aparece aqui todos<br />
os dias de manhã muito cedo. Mora longe?<br />
---- Na Petrangol. Mas o meu marido tem carro.<br />
---- Ãh… Vão precisar ter muita paciência mesmo…<br />
---- Tá bem mano.<br />
---- Não podem dormir juntos, quer dizer, podem ficar<br />
na mesma cama, né, mas…<br />
---- Não faz mal. O que nós queremos só, é a saúde do<br />
nosso filho.----concluiu a mãe, subentendendo o que o<br />
quimbanda queria dizer.<br />
Zito fez algumas fricções às costas do miúdo, com uma<br />
mistura de óleo de palma, ocusso, jipepe, e pemba, e<br />
mandou-lhes logo embora.<br />
Uma semana depois de tratada, a vizinha do quimbanda<br />
foi à casa da rival, acusá-la.<br />
104
O bairro da Petrangol, era pouco populoso, mas nessa<br />
tarde ninguém quis perder aquele teatro de rua. As duas<br />
mulheres em forte contenda, pareciam disputar os aplausos<br />
do público. Senhoras que acarretavam água, pousavam os<br />
tambores ao chão, para de mãos à cintura, assistirem a<br />
peça.<br />
Aqui e além, uma panela ao fogão, um bebé a chorar,<br />
eram abandonados, para atender-se ao chamado dos assobios<br />
e aplausos vindos de fora.<br />
E as duas rivais continuavam a lutar, cada uma a<br />
reclamar a primazia na assistência, apontando-se os dedos<br />
à cara uma da outra, e a levantarem as suas próprias<br />
saias, para os assobios dos moços, ávidos em comerem ao<br />
menos com os olhos, as suas coxas nuas.<br />
Para um bairro, sem uma única sala de cinema ou de<br />
teatro, onde raramente aparecia o cinema volante, e onde<br />
as pessoas diziam ―vou em Luanda‖, para virem à cidade,<br />
do ponto de vista sociológico, era justo, a presença<br />
daquelas pessoas ali, e justificável a razão de tantas<br />
panelas queimadas, bebés caídos das camas, jantares em<br />
atraso; maridos batendo nas mulheres, arranjando outras<br />
companheiras, mais obedientes, mais submissas,<br />
insusceptíveis de atacarem as suas rivais, e sem aviso<br />
nem recado, provocarem aquela aglomeração de gente, com<br />
poucos escapes para os seus stresses.<br />
Quando o marido da vizinha do quimbanda tomou<br />
conhecimento do ocorrido, ficou extremamente chateado,<br />
deslocando-se logo para o Bairro dos Ossos, a fim de<br />
partir os ossos da primeira mulher, e projectá-la da casa<br />
para fora, com todas as suas imbambas, panelas, trouxas,<br />
e pentes e penicos…<br />
A mulher foi para a casa da mãe, na Mulemba wa xa<br />
Ngola, acompanhada dos seus dois filhos, tendo um dia<br />
depois reunido a família, expondo-a tudo quanto se<br />
passava em sua casa.<br />
105
Entretanto, todas as manhãs Zito continuava a receber<br />
a senhora cujo filho tinha giba. O quimbandeiro parecia<br />
satisfeito com o tratamento, pois quando friccionava o<br />
petiz, este até gemia e peidava, enquanto com palavras<br />
afáveis ia o quimbanda acariciando a mãe.<br />
---- Está a ver, mana? Nem uma semana ainda fez, e a<br />
coisa está já a desaparecer!…<br />
Mas a senhora também possuía olhos que viam. Havia<br />
quase uma semana que estava a ver, e a coisa sempre ali e<br />
a não desaparecer. Pelo contrário, a cifose do miúdo<br />
parecia ter crescido mais. Em casa do petiz, todos<br />
partilhavam dessa opinião.<br />
Sobre a cura do filho, já o marido tinha esgotado<br />
toda a sua sagrada esperança. Onde é que ainda não haviam<br />
ido? Quanto é que já não haviam gasto?…<br />
---- Tudo! Porra, tudo! E o miúdo continua na mesma,<br />
porra!---- dizia o marido exaltado.<br />
Porém, no fundo de todo o seu aborrecimento e<br />
exaltação, estava quiçá, outrossim, o facto do tratamento<br />
do filho já havia um bom tempo, o privar de incendiar-se<br />
no fogo de corpo que a mulher todos as noites, ia<br />
abusivamente juntar à gasolina do seu.<br />
E então, era impossível conter-se. Tentava imaginarse<br />
sozinho no oceano da cama, mas a imaginação ia sempre<br />
desaguar no fogo da mulher. Mexia-se, remexia-se, dizia<br />
haver percevejo na cama, mas o que ele queria mesmo, era<br />
mexer o percevejo grande que ao seu lado dormia.<br />
Havia dois dias que não levava a mulher e o filho ao<br />
tratamento. ―Já não me meto mais nisso.‖---- declarara.<br />
Todavia, num sábado à tarde, sem o conhecimento da<br />
mulher, resolveu ir ter com o quimbanda, no Bairro dos<br />
Ossos.<br />
Nesse dia, Zito havia acordado muito bem, apesar de<br />
ter tido um sono intranquilo, com pessoas dos arredores e<br />
do ultramar, a virem atacar a sua casa, cada uma<br />
empunhando um enorme osso.<br />
106
O sábado continuava a passar normalmente, sem grandes<br />
sobressaltos. Entretanto, lá para o meio da tarde, um<br />
grupo de pessoas, constituído pela vizinha do quimbanda,<br />
o marido desta, e alguns familiares de ambas as partes,<br />
irrompeu pela casa do quimbandeiro, no mesmo instante em<br />
que uma viatura acabava de estacionar junto à sua porta.<br />
Todos quantos se encontravam no quintal, ficaram<br />
estupefactos, ao verem aquele pelotão vir intrepidamente<br />
engravidar, sem apelo nem aviso, o quartito do<br />
quimbandeiro. E o barulho, tomou conta do lugar…<br />
---- Eh! Eh! Vucê também já é quimbanda?! Quimbanda<br />
da ondê??! ---- perguntava a mãe da vizinha ---- Vucê,<br />
não andava na Mulemba?! A ajudar o velho Kaxika?! Vucê,<br />
quer trazer azar na minha filha??! Vucê…<br />
O senhor que havia estacionado o carro lá fora,<br />
seguindo a caravana encabeçada pela velha que naquele<br />
momento estava falando, viu atrás de si todos quantos<br />
estavam no quintal, duplamente estupefactos com o<br />
estupefaciente que se fumava no quartito do quimbandeiro.<br />
Queria dizer algo, desabafar, disparatar, despregar todas<br />
as paredes alheias da casa do quimbandeiro, derramar todo<br />
o seu kikoto, todo o seu rancor orgástico nocturno, na<br />
boca de Zito.<br />
Mas, alguma coisa na expressão do quimbanda refreava<br />
o seu impulso…<br />
O quimbanda, reconhecendo de imediato a pessoa da mãe<br />
da vizinha, pela primeira vez em toda a sua existência,<br />
baixou a cara, de vergonha.<br />
Nos seus trinta anos, passara já por muita<br />
experiência, afrontara brancos e padres, negros e diabos,<br />
patroas adúlteras imaculadas, e patrões cornos e<br />
corneteiros, hetero e homossexuais, bandidos do sandokan,<br />
e pequenos e grandes burgueses, e nunca!… nunca baixara a<br />
sua cara, de medo ou de vergonha. Nunca!<br />
E ali estava ele, envergonhado em todas as moléculas de<br />
todas as células do seu corpo, qual um pobre diabo<br />
107
apanhado em flagrante delito, a defecar numa pia<br />
baptismal.<br />
A<br />
<br />
Boavista preparava-se para a<br />
passagem do ano. No ar, o fumo e<br />
o cheiro de churrascos e demais assados, ia desaguar na<br />
praia ali próximo, e no além-mar, apressando a chegada<br />
dos navios. Aqui e ali, um pé de música, uma roda de<br />
amigos, um riso, uma gargalhada, uma lágrima de mel,<br />
parida pela emoção de um cérebro inebriado.<br />
Era um bairro quase ao nível do mar. Tudo quanto<br />
está ao nível do mar, é imenso e azul. Sal para o mal,<br />
mel e doce para o bem e para o amor.<br />
---- Pois é, Jenito. Quantos anos lá vão?…<br />
---- Oh, primo, muitos, muitos anos. Desde que a<br />
mãe morreu…<br />
---- E assim, primo, que pensas fazer da tua vida?…<br />
Já tens um fogão, uma geleira e uma arca… pensas te<br />
casar tão cedo?<br />
---- Não. Casar ainda não. Agora tenho que arranjar<br />
um outro emprego, e continuar a estudar…<br />
---- Exactamente!---- interrompeu o primo---- Tens<br />
de estudar, sobretudo. Aqui, como vês, a casa é grande.<br />
Tens aí um quarto para ti, livros para te cultivares…<br />
Caso tenhas alguma dificuldade, podes colocá-la a mim,<br />
sem qualquer receio. O necessário é encarares tudo com<br />
responsabilidade. Os tempos mudam, tudo muda Jenito.<br />
TUDO!…<br />
Até parecia a encarnação do Mestre Coelho, morto de<br />
tuberculose, duas semanas antes do 25 de Abril… Porém,<br />
108
nunca o velho comerciante lhe tinha dito que tudo<br />
mudasse. Deveria o Coelho viver um pouquinho mais e<br />
logo saberia que afinal tudo muda. O primo, este não<br />
precisou de aguardar por muito tempo, para lembrar a<br />
Zito que tudo mudava…<br />
Na primeira sexta-feira que passou na Boavista,<br />
teve uma manhã metaforicamente calma, com banhos de<br />
praia e de sol, seguidos de uma tarde cheia de leitura<br />
e de música. A noite foi acontecendo calmamente.<br />
Serenamente. Sem miragens… A noite veio devagar,<br />
devagarinho, tal como viria a notícia.<br />
Encontravam-se à mesa, a esposa do primo, o primo,<br />
e Zito. Conjugavam o gerúndio do jantar. Do rádio vinha<br />
música suave. Entretidos na conversa, não deram pela<br />
introdução da notícia. Mas, pouco depois, a esposa do<br />
primo chamaria a atenção de todos.<br />
---- Escutem!<br />
E escutaram. Atentamente. Silenciosamente.<br />
---- Tudo muda, Jenito. ---- disse o primo, como<br />
que segredando.<br />
---- O quê?---- interrogou Zito.<br />
---- Isso que há dias te disse e agora podes<br />
confirmar…<br />
---- Não percebo. O que é que o primo quer dizer?<br />
No auge da alegria, o primo quase gritou.<br />
---- Que tudo muda, primo! Vamos trocar o dinheiro,<br />
nova Angola, novo ano, novo dinheiro!…<br />
Zito continuava sem perceber nada. A mulher do<br />
primo quis explicá-lo, mas de imediato Zito perguntou<br />
ao marido.<br />
---- Mas antigamente, também não trocavam o<br />
dinheiro, primo? Vinha sempre dinheiro novo?<br />
109
----Não é dinheiro novo, primo! Novo dinheiro! Com<br />
a nossa bandeira! Toda essa cambada de Silva Portos e<br />
Salazares Aeroportos, vai pro lixo! Pro lixô! Pro<br />
lixôôô!<br />
Zito estava caindo do Evereste. Do Morro do Môco,<br />
do Monte de Ícaro. E cada ―pro lixô!‖ do primo, era uma<br />
bala a cravejar-se no mais íntimo do seu coração.<br />
De facto, o último ―pro lixôôô!‖ do primo,<br />
atravessou como um míssil, o coração de Zito, indo em<br />
direcção aos dois garrafões grávidos de dinheiro,<br />
escondidos no forno do fogão, num dos cantos do seu<br />
quarto.<br />
Mas Zito, não atingido na cabeça, ainda pôde<br />
agarrar-se num fôlego de vida e regenerar o humor<br />
perdido, adiando a morte dos garrafões.<br />
Atento ao que continuavam a noticiar, o casal não<br />
se apercebeu da mudança de humor em Zito.<br />
---- Mas então, se vão trocar, como é que o<br />
dinheiro vai para o lixo? ---- interrogava Jenito,<br />
perceptivelmente despeitado na voz.<br />
---- É claro, Jenito! ---- explicava a esposa do<br />
primo ---- Para que havíamos de precisar do dinheiro do<br />
colono? Eles vão criar postos de troca…<br />
---- Ãah! V-ão criar pos-tos de tro-ca! ----<br />
exclamou alegremente Zito ---- Pensei que iam deitar<br />
fora todo o meu… todo o dinheiro! ---- exclamou,<br />
atabalhoadamente se corrigindo.<br />
Estava de volta ao espírito que o animava. Longe de<br />
pensar que haveria de oscilar…<br />
---- Não. ---- prosseguia a prima, sem no entanto<br />
ter reparado nas palavras de Jenito ---- Não se vai<br />
fazer isso. Os postos para a troca da moeda…<br />
110
---- Então só vão trocar as moedas ?!! ----<br />
interrompeu Zito.<br />
A emoção era demasiada. Mais. Era geral. Era<br />
nacional, universal… No Miramar ou no Cafunfo, no<br />
Lobito ou na Lixeira, no Rangel ou na Catepa, todos os<br />
rádios estavam até ao máximo dos seus volumes. Quiçá,<br />
até nas fronteiras do Maiombe, nas do Cunene, e nas de<br />
todas as frentes de combate, os soldados estivessem<br />
dançando, e os inimigos, mesmo sem troca de tiros,<br />
morrendo de amargura e de desânimo.<br />
E são tão tristes a amargura e o desânimo! E<br />
nessa noite, eles entraram com tanta delicadeza, aos<br />
ouvidos de kamanguistas e candongueiros. Suspenderam<br />
relações sexuais, a conjugação de milhares de verbos. Dos<br />
verbos urinar e defecar. Levaram à morte cardíaca,<br />
grandes corações que por este mundo vegetavam. Eram<br />
corações grandes, embrulhados em glicoses e gorduras,<br />
carros e dólares e diamantes e ouros, suados pelas mãos<br />
dos pobres. Corações tão sujos e enormes, absurdamente<br />
enormes; absurdamente mortos por uma tão inofensiva<br />
notícia…<br />
Demasiada, era a emoção. E entre o barulho que havia<br />
em todos os lares e cantos e becos, da terra de Ngola<br />
Kiluanje Kia Samba, irrompia a voz de Santos Júnior…<br />
«Etu tuandala ku mona ó kitadi kia Ngola, ni polo<br />
ya Agostinho Neto eeh!…»<br />
---- Não, Zito. ---- prosseguia a prima---- Quando<br />
se fala em troca da moeda, quer dizer troca de todo o<br />
dinheiro. Das moedas e das notas.<br />
---- Ãh… Pensei que eram só as moe-das! ---exclamou<br />
Zito.<br />
O primo que até ali permanecia com os ouvidos mais<br />
grudados ao rádio que ao que se passava à sua volta,<br />
interromperia passados instantes:<br />
111
---- Acho que todos vão trocar a mesma quantidade<br />
de dinheiro. Certamente que estabelecerão um tecto<br />
máximo por pessoa…<br />
---- E onde é que serão colocados os postos de<br />
troca?---- perguntava a esposa.<br />
Apesar de atento, Zito estava noutro estado de<br />
humor.<br />
---- Nas Comissões de Bairro, no Banco…----<br />
explicava o marido.<br />
Jenito pediu licença para retirar-se da mesa, e<br />
dirigiu-se para o seu quarto.<br />
---- Já tão cedo, primo? ---- perguntava o primo,<br />
notando alguma tristeza na aspecto do primo.<br />
---- Sim, primo. Estou cansado e com sono. ----<br />
explicou, indo em direcção à porta do seu quarto.<br />
---- Este rapaz, tem algum problema. ---- segredou<br />
o primo à esposa.<br />
Entretanto, após a transmissão daquela histórica<br />
notícia, muitos saíram à rua para lavarem os seus rostos<br />
com a brisa vinda do mar. E com este e aquele e<br />
aqueleoutro vizinho, formavam grupos de conversar e<br />
discutir o assunto da troca da moeda.<br />
Zito estava cansado. Realmente estava cansado, mas<br />
nem por isso o sono lhe acontecia. Todos os átomos do seu<br />
corpo e da sua alma, estavam acordados. Entre os olhos e<br />
as mãos, havia uma maçã-de-Adão, quente e dilatada.<br />
Cautelosamente, Zito abriu o forno do fogão retirando<br />
daí os dois garrafões que continham o dinheiro acumulado<br />
durante quase quatro anos, fruto de muito sacrifício,<br />
risco, fome, sede e calor e frio, sofridos por ele e por<br />
todos quantos lhe haviam dado a guardar, comida,<br />
calçados, peças de automóveis, dinheiro, fogões,<br />
geleiras, arcas, o catre e o armário hipotecados à dona<br />
112
da casa do Bairro dos Ossos, pelas rendas de dois meses,<br />
que Zito não se desafiara a pagar. Sofridos por ele por<br />
todos quanto ele tratou enquanto quimbanda.<br />
Zito, após ter-se certificado de que a porta do<br />
quarto encontrava-se realmente bem fechada, derramou na<br />
sua cama o conteúdo dos dois garrafões. E ficou até<br />
madrugada dentro, arrumando os seus escudos…<br />
Nunca havia sonhado com os pais, desde que estes<br />
haviam morrido, nem sequer com os irmãos, em<br />
Ndalatando. Nessa noite, sonhou com o Mestre Coelho…<br />
A manhã de sábado, estava bastante movimentada. Das<br />
ruelas e dos becos, vinham jovens e velhos desaguar na<br />
rua principal, em direcção à Comissão do Bairro, onde<br />
encontrava-se montado um posto de troca. Nesse dia<br />
ninguém iria trabalhar.<br />
Só depois de muito meditar, pensar, alambicar e<br />
repensar, é que Zito decidiu abrir-se ao primo. Chamou<br />
este ao seu quarto, e logo declarou:<br />
---- Tenho cá um grande problema, primo…<br />
---- Problema?!… ---- interrompeu o primo,<br />
espantado.<br />
---- Está aí, primo. ---- disse Zito, destapando o<br />
lençol sobre os montes de dinheiro espalhados na cama.<br />
---- O quê??!<br />
O berro do primo, arrancou a esposa que se<br />
encontrava no quarto de banho, aproximando-se da porta<br />
do quarto de Zito.<br />
---- O que é que se passa, ò Simões?! ----<br />
perguntava a mulher, entrando para o quarto. Ao reparar<br />
no que havia na cama, o coração quase que lhe saiu do<br />
lugar. Os três entreolhavam-se, como se intimamente se<br />
perguntassem ―e agora?‖…<br />
---- Agora, temos que contar, primo.<br />
113
---- Todo! ---- exclamou o primo, electrizado pela<br />
quantidade de escudos.<br />
---- Todo sim, mas podem tirar o cavalinho da chuva<br />
que nem tudo isso aí será trocado. ---- dizia a esposa,<br />
ainda estupefacta pelo que se lhe deparava.<br />
Entretanto, passados os dois dias previstos para a<br />
troca, conseguiu-se apenas trocar metade das centenas<br />
de milhares de escudos, que Zito havia acumulado. Tudo<br />
graças à perspicácia e à inteligência da mulher do<br />
primo. Foram, deveras, dois dias de uma tempestade<br />
nunca antes verificada no país, após a qual, e tal como<br />
após qualquer uma, começou-se a respirar um novo<br />
oxigénio, a viver-se sob uma brisa mais suave.<br />
Encontravam-se os dois primos à mesa, conversando.<br />
----…É preciso esquecer essas coisas, Jenito ----<br />
dizia o primo, vendo Zito muito pensativo ---- A vida é<br />
mesmo assim.<br />
----É verdade primo…<br />
----Por isso ----prosseguia o outro ---- doravante<br />
é preciso encarar as coisas como homem. Economizar sim<br />
mas no banco, primo. É melhor estar prevenido primo!<br />
Aqui ainda vão acontecer muitas coisas, muitas, primo!<br />
Muitas! Muitas!…<br />
« Esse muadié deve estar bêbado » ---- pensou Zito.<br />
E abrandando um pouco mais a voz, o primo<br />
prosseguiria:<br />
---- Uma revolução traz sempre outras revoluções<br />
atrás de si, primo. Por isso não se pode pensar que<br />
esta troca é a única. Já…<br />
Zito sobressaltou-se:<br />
---- Então, quer dizer…<br />
114
---- Calma, Jenito! Já houve mais trocas. Não<br />
trocas de moeda, Jenito. Parece que todo o teu<br />
pensamento só ronda à volta do dinheiro… Quer comer<br />
outra vez o suor…<br />
Com a atenção em crescendo, Zito interrompeu:<br />
---- Qual suor então, primo Simões?<br />
---- Não te zangues, Jenito. Se há uma pessoa<br />
realmente preocupada com a tua vida, com o teu futuro,<br />
essa pessoa sou eu, teu primo ---- dizia Simões.<br />
Enquanto os dois conversavam à mesa, a mulher na<br />
sala de visitas, lia. O receptor de rádio estava<br />
apagado. Através das persianas de uma janela que dava à<br />
baia, entravam pequenas lufadas de ar fresco.<br />
A aura reinante na casa do primo, os banhos de<br />
praia e sol, iam gradualmente influenciando o carácter<br />
e o temperamento da pessoa de Zito. As partidas de<br />
futebol no campo da Textang, as belas moças da<br />
Boavista, as suas festas e os seus óbitos, pareciam<br />
pouco interessá-lo. Mesmo depois que começou a<br />
trabalhar, esses atractivos estavam longe de suplantar<br />
a sua preferência pelo cinema, pela praia e pela<br />
leitura. Neste particular, vinha se interessando cada<br />
vez mais, pesasse o facto de a estante do casal<br />
albergar na sua maior parte, livros de Marxismo-<br />
Leninismo, Economia Política, Filosofia, História,<br />
Psicologia, Direito, e de mais políticas que nunca<br />
curvavam à esquerda, para lhe explicarem na linguagem<br />
da sua quarta classe, a essência do que lia.<br />
E ele lia. Na sala, no quarto, na varanda; de pé,<br />
sentado, deitado, de gatas, na tentativa de apanhar um<br />
raio de luz, em que viajar e chegar primeiro que todos,<br />
afinal, ao coração das lindas moças malanginas,<br />
santomenses, cabo-verdianas e de mais cabos que na<br />
Boavista amaduravam. Dir-se-ia que Zito estava se<br />
transfigurando.<br />
As pessoas daquele bairro podiam ir ao cinema, ás<br />
praias, às livrarias, aos hospitais, às bibliotecas,<br />
115
aonde quisessem, e jamais diriam «estou ir em Luanda».<br />
Luanda era ali. Ali era Luanda, apesar das barrocas de<br />
lixo do Miramar ameaçarem o bairro e a baía, com os<br />
três estados físicos dos detritos da Civilização<br />
Humana. Apesar da cegueira dialéctica das chuvas<br />
lentamente soterrarem as casas do bairro e a linha<br />
férrea que por ali passava, com as areias sujas do<br />
Sambizanga e das suas barrocas.<br />
Zito, de quando em vez, gostava de ir às barrocas<br />
do Miramar. Não, para ver o mar ou o céu. Da baía<br />
também podia ver-se o mar e o céu, casarem no<br />
horizonte. Gostava de lá ir, para ver o «motocross»,<br />
apesar de este não ser então o que já havia sido em<br />
tempos idos...<br />
Numa calma tarde de domingo, Zito deslocou-se até<br />
lá para assistir à uma corrida de desanuviar.<br />
Motorizadas de todas as cilindradas estavam lá, e de<br />
igual modo pessoas de todos os lados.<br />
Ia a corrida para lá do meio, quando sem aviso nem<br />
licença...<br />
---- ...Um gajo aparece à minha frente a me<br />
perguntar onde é que eu andava!---- contava Zito ao um<br />
colega, dentro do seu gabinete.<br />
---- E você?---- interrogou o outro.<br />
----Eu fiquei sempre nas minhas … «você não é o<br />
Zito?», perguntava ele. Zito? Eu?! O camarada deve estar<br />
enganado! «Você não é o Zito, que trabalhou no Bom-<br />
Escape? Não conheceste lá um Juca?»…<br />
---- Mas o muadiê não estava a ver bem, ou quê? ---<br />
- interrompia o colega.<br />
---- Se não estava a ver bem?... A ver bem demais<br />
ele estava. Eu é que não queria vê-lo ali à minha<br />
frente.<br />
---- Então lhe conhecias?<br />
116
---- Iá! O gajo tinha trabalhado comigo numa<br />
oficina...<br />
---- No Bom-Escape --- acrescentava o outro ----E<br />
porquê que não querias lhe ver?<br />
---- O gajo se fazia de amigo, mas afinal era um<br />
grande bufo ao serviço do dono.<br />
---- Ai-é!<br />
---- E o patife é quem fez para me tirarem da<br />
oficina. Soube isso depois...<br />
---- O que fazias nessa oficina?<br />
---- Fazia o controlo do pessoal e outros trabalhos<br />
administrativos.<br />
---- Então, já há bastante vens a trabalhar em<br />
Recursos Humanos?<br />
---- Iá.<br />
Ainda faltava muito para a hora do almoço. Do<br />
guiché, dois senhores aguardavam que qualquer um<br />
daqueles dois palradores, deixasse de olhá-los com<br />
indiferença e lhes viesse atender primeiro, e depois,<br />
sim, que continuassem a conversar até o fim do mundo.<br />
Só depois, e quiçá porque as nádegas lhes estivessem a<br />
doer de tanto sentar, foi o colega atendê-los:<br />
---- Os camaradas sabem que à esta hora já não<br />
atendemos.---- atirou de chofre. ---- Não temos<br />
transporte e precisamos largar cedo.<br />
---- Mas eu só queria saber de um documento…---- ia<br />
a dizer um dos senhores.<br />
---- Todos os documentos estão no gabinete do<br />
chefe, ainda não baixaram---- interrompeu o<br />
funcionário.<br />
117
Os senhores foram-se embora e os dois burocratas<br />
continuaram a palrar até ficarem afónicos e com as<br />
nádegas totalmente achatadas. Fecharam a repartição e<br />
dirigiram-se ao refeitório.<br />
Ao regressar à casa, Zito não encontrou ninguém.<br />
Com a sua chave, abriu as portas e entrou. Ao<br />
atravessar a sala rumo ao seu quatro, um bilhete por<br />
cima da mesa, chamou a sua atenção. A sogra do primo<br />
encontrava-se gravemente doente. Para não ficar<br />
sozinho em casa, depois de lavar-se, jantou e foi para<br />
o cinema.<br />
No Kipaka corria o «Mas, que tropa!» com Franco<br />
Franchi e Ciccio Ingraccia a explodirem o baixo-ventre<br />
de estátuas e deuses, com as parvoíces da civilização<br />
ocidental.<br />
Quando Zito chegou, já o filme tinha começado, e<br />
teve de perder algum tempo e fita, antes de encontrar o<br />
seu lugar.<br />
Pouco depois de sentar-se, e justamente quando ia<br />
lançando uma gargalhada, apareceram duas apetitosas<br />
moças que se acomodaram cada uma num dos dois lados,<br />
deste modo, ficando ele entre as duas.<br />
Pelo aspecto, tiques e vozes, Zito considerou-as<br />
«mininas finas», «mininas da Baixa». E se quisessem,<br />
podiam pedi-lo para trocar o lugar com uma delas e<br />
assim ficarem juntas. Mas tal não aconteceu.<br />
O filme prosseguia. Era uma amostra de quanto os<br />
macacos já haviam evoluído. E os outros macacos, estes<br />
a quem aqueloutros por incultura chamavam de macacos,<br />
berravam, gritavam, choravam; por entenderem a<br />
macaquice da sua linguagem.<br />
Zito não era macaco. Era um homem…<br />
O filme prosseguia e as duas moças conversavam<br />
entre si como se a separá-las nada estivesse; berravam,<br />
levantavam-se com cócegas no baixo-ventre; faziam<br />
118
escândalos dizendo a Zito que não eram nada «finas»,<br />
nem tão-pouco «da Baixa».<br />
Um homem não entende a linguagem das formigas, nem<br />
a dos macacos; nem tem por que se rir escandalosamente<br />
das suas brincadeiras.<br />
No auge da densidade cómica de uma sequência, as<br />
moças a rirem, a berrarem, vacilaram e …Tomas! Tomas! A<br />
quererem bater-se, bateram naquele rapaz fechado e<br />
mudo. Estaria cego ou doente?<br />
---- Oh, pá! Desculpe..--- disse uma delas.<br />
Para o espanto das moças, Zito respondeu às duas<br />
palmadas com uma grande gargalhada de lhes colocar dali<br />
por diante no mundo dos macacos. E foram conversando<br />
naturalmente ao longo do filme. Ao intervalo as moças<br />
convidaram-lhe a tomar um sumo. Aceitou. Estava feita a<br />
amizade.<br />
Quando o filme terminou, os três seguiram juntos<br />
até à saída. Antes de se despedirem, ele perguntou:<br />
---- Moram longe daqui?<br />
---- Nem tanto.--- disse uma.<br />
---- na Boavista.--- disse a outra.<br />
Amanhã estava linda. Da janela via-se passar bandos<br />
de cegonhas lá no céu. Não muito longe, era o mar, o<br />
imenso mar, de onde vinha aquela brisa suave, a<br />
envolver todos os corpos que ali trabalhavam, o bater<br />
de máquinas dactilógrafas, e o barulho de vozes<br />
humanas.<br />
---- Viemos todo o caminho a conversar sobre o<br />
filme, sobre nós; são simpáticas as tipas. ---- contava<br />
Zito ---- Mostraram-me a casa delas...<br />
119
---- O que é que elas são; irmãs? ---- perguntou o<br />
colega.<br />
---- São primas. Prometi ir à procura delas logo à<br />
noite.<br />
Indiscretamente, uma senhora deu entrada na<br />
repartição.<br />
---- Ó Simões, nunca mais assinam o meu cartão?<br />
A violência com que a pergunta entrou aos ouvidos<br />
de Zito foi reflectir-se no gesto com que abriu uma das<br />
gavetas da sua secretária.<br />
Ficou por lá a vasculhar, enquanto a colega<br />
encostada no parapeito da janela, meio voltada para o<br />
lado de fora; sacou da carteira a<br />
tiracolo, uma caixa de pó-de-arroz, passando batom<br />
sobre os lábios.<br />
---- O cartão rapaz, preciso de sair já!---- disse<br />
reparando para fora.<br />
---- Já?! ---- exclamou o outro colega ---- já<br />
trabalhaste as oito horas?<br />
A colega, já à frente de Zito, olhou de esguelha<br />
àquela e fez um muxoxo.<br />
---- Quem é que as trabalha? Meta-te na tua vida …-<br />
--- segurou o cartão que Zito lhe metia nas mãos, ao<br />
mesmo tempo que uma buzina vinda de fora lhe arrancava<br />
dali:<br />
---- Essa gaja é muito armadinha. ---- disse o<br />
colega descansando as mãos no tabulador da máquina ----<br />
sabes quem é que anda a lhe mexer?<br />
---- Não. Tu sabes? ---- perguntou Zito.<br />
---- O chefe Correia, um grande feio…<br />
---- Ai é?!<br />
120
A sogra do primo piorara. A prima ficaria junto<br />
dela o tempo necessário. Em casa, Zito fazia as<br />
arrumações e as refeições.<br />
As suas relações com Alice e Marisa foram se<br />
estreitando cada vez mais. Porém, com a última é que<br />
foi se afeiçoando mais. Não obstante a grande diferença<br />
nos seus níveis de cultura, tinham todavia muitos<br />
pontos de vista em comum. Zito estava totalmente<br />
transfigurado.<br />
O ambiente existente em sua casa agradava a Marisa,<br />
tornando muito frequentes as suas vindas para aqui. O<br />
primo, um tanto espantado, porquanto não via em Zito<br />
capacidade para tamanha conquista, simpatizou-se logo<br />
com a moça, tão logo Zito o apresentou.<br />
---- Agarra bem, rapaz! ---- segredou ele.<br />
E Zito agarrou bem… O corpo dela. Estavam sós. Era<br />
tarde. Ela estava livre. E ele faltara ao serviço para<br />
estar ali junto dela. Do corpo dela. Aos seus olhos o<br />
corpo de Marisa transbordava com todo o seu fogo lhe<br />
queimando o peito e lhe incendiando a libido.<br />
---- Que pensas de tudo isso, Jenito? ----<br />
perguntava ela.<br />
---- Tudo o que é de bom para mim e para ti,<br />
Marisa.<br />
---- Tenho medo sabe. ---- disse ela, tirando da<br />
sua coxa a mão de Zito.<br />
---- Também eu tenho medo.<br />
---- De quê?<br />
121
---- Do que tu temes, Marisa ---- respondia ele ---<br />
- sempre disseste que não tinhas medo de nada, que eras<br />
adulta e vacinada, que…<br />
---- Não te enerves! ---- exclamou ela,<br />
aconchegando-se mais ao colo dele.<br />
A passagem de um comboio foi marcado com um longo<br />
beijo.<br />
---- Sabes ---- dizia ela ---- sou virgem.<br />
Zito sorriu. Voltaram a beijar-se.<br />
---- Por que sorriste? ---- perguntou ela depois,<br />
com um pouco de despeito na voz.<br />
---- Por alegria, Marisa. Acho que todo homem<br />
sente-se feliz quando encontra uma mulher como tu.<br />
Ela permaneceu calada. Lentamente as mãos dele<br />
foram desnudando o corpo dela. Lentamente o sol ia<br />
morrendo no horizonte. No mar, a maré lentamente ia<br />
subindo. Não tardou a matar a sede da sua libido no<br />
oásis do sexo dela.<br />
Quando o primo chegou a casa, encontrou Zito a<br />
bater um funje.<br />
---- A mãe da Gabriela não aguentou mais …<br />
---- Morreu?!<br />
---- Morreu, Jenito ---- disse o primo dirigindose<br />
para o quarto.<br />
Ao ouvir um barulho que saía do quarto de banho,<br />
estacou.<br />
---- Quem está aí ? ---- perguntou .<br />
---- É a Marisa, primo. ---- respondeu Zito.<br />
122
---- A tomar banho ?<br />
---- Não, a lavar-se; sujaram-lhe de lama quando<br />
ia acompanhá-la.<br />
primo.<br />
---- Ai-é ? Foi algum carro?<br />
---- Sim, primo.<br />
«Esse rapaz pensa que me embrulha…» ---- pensou o<br />
Lá fora, a noite já estava mais próxima. Zito e<br />
Marisa encontravam-se sentados à mesa, quando o primo<br />
saiu do quarto.<br />
---- Então Marisa! ---- saudou ele.<br />
---- Tudo bem, obrigada.<br />
Após uma pausa:<br />
---- E assim, quando será o funeral? ----<br />
perguntou Zito.<br />
---- Talvez amanhã à tarde. Conheces a casa?<br />
---- Sim ---- respondeu Zito ---- De manhã vou ao<br />
serviço pedir uma dispensa e à tarde apareceremos lá, né<br />
Marisa?<br />
---- Sim ---- respondeu ela.<br />
O aspecto de Marisa pareceu um tanto estranho ao<br />
primo.<br />
---- Então, deram-te um banho de lama? ----<br />
perguntou aquele.<br />
---- Um tanto perplexa, respondeu a sorrir:<br />
---- É verdade!<br />
123
O primo não comeu. Despediu-se dos dois e saiu<br />
logo. Momentos depois, foi a vez deles também saírem.<br />
Zito ia acompanhá-la à casa. Pelo caminho, ao dobrarem<br />
uma esquina, apareceu à sua frente, Alice, a prima dela.<br />
---- São! --- exclamou ela de espanto. --- Só agora?<br />
O casal estacou.<br />
---- O velho já chegou? --- interrogou Marisa.<br />
---- Acaba de chegar mesmo há instantes! --- disse a<br />
outra, retomando a caminhada. --- Venho já aí.<br />
O casal, por sua vez, resolveu despedir-se aí<br />
mesmo. Beijaram-se, e cada qual foi para o seu lado.<br />
O corpo da mãe de Gabriela, seria enterrado no<br />
Alto das Cruzes. Ao contrário do que fora, quando se<br />
casara, desta feita ia no primeiro carro. Ia com vagar,<br />
indiferente a tudo e todos, com calma, e sem pressa<br />
alguma de cortar cedo o bolo da terra.<br />
Ao regressarem do cemitério, Marisa mostrou á<br />
Zito a casa do tio, na qual havia vivido durante algum<br />
tempo.<br />
---- Quanto tempo andaste aí?<br />
---- Uns dois anitos.<br />
---- Por que razão saíste de lá? O bairro até é bom…<br />
---- Adoecia sempre. Estava constantemente a sonhar<br />
com o meu tio, não havia noite que não me apertassem na<br />
garganta e então resolvi sair.<br />
---- Esses tios, esses tios…<br />
O cortejo agora voltava depressa, com variável<br />
distância entre os carros e já com alguns intermediários<br />
no meio. Ao longo das artérias, bandeiras vermelhas<br />
anunciavam aproximação de mais um 1º de Maio. Posta em<br />
124
casa, Marisa dirigiu-se imediatamente ao quarto de banho.<br />
Tinham chegado as regras.<br />
«----Meu Deus! Preciso me cuidar…» ---- pensou ela<br />
Entretanto, o relacionamento entre Marisa e Alice<br />
começara a deteriorar-se, pois esta pouco se simpatizava<br />
com o namorado da prima, ao contrário do que parecera na<br />
noite em que se conheceram.<br />
Para Zito, tal ia se evidenciando no facto de<br />
Alice virar a cara para o outro lado, quando por acaso se<br />
encontrassem na rua; nunca lhe dirigir a palavra quando<br />
os três estivessem juntos e responder-lhe quase com<br />
desdém nas vezes em que ia a procura de Marisa.<br />
---- Não sei quando é que hás de dar conta que esse<br />
rapaz não te fará feliz, São ---- dizia Alice.<br />
---- É uma questão de tempo, tá bem Alice? E ademais<br />
não é minha preocupação imediata saber se ele me fará<br />
feliz ou não. Já te perguntaste se também eu porventura<br />
lhe farei feliz?<br />
---- Não te armes em parva, é ele o homem:<br />
---- Pois! Nisso é que te enganas ----dizia a Marisa -<br />
--- Para já podes estar bem descansada comigo e com ele.<br />
Nós nos amamos, Alice. Por favor, tente compreender<br />
isso...<br />
Mas Alice dava poucas mostras de compreender<br />
aquilo. Talvez tenha compreendido alguma coisa, quando em<br />
casa deram pela gravidez de Marisa.<br />
O pai ficou fulo. Na samba, a mulher com quem já<br />
não vivia, declinou todas as culpas a ele. Em casa, o<br />
clima era de tensão.<br />
O facto, impossível de continuar ali fechado,<br />
resolveu dar uma volta pela vizinhança, tamanha era a<br />
secura das bocas ditas azuis.<br />
125
---- Evita, vem só, vou te contar umas!---- chamava<br />
uma bisbilhoteira.<br />
A outra, apreensiva, aproximava-se e saudavam-se<br />
batendo-se com as mãos, uma na da outra, enquanto<br />
trocavam um olhar como que de cúmplices.<br />
---- É o quê mesmo? ---- perguntava esta.<br />
---- A coisa então, a menina fina, que não dá<br />
confiança a ninguém, está grávida!<br />
---- Quem?! A São?!... Dessa já eu sei!...<br />
E era o mesmo diálogo nesta ou naquela casa. O assunto<br />
era o mesmo, neste ou naqueloutro grupo de rapazes ou de<br />
raparigas. Apesar de tudo, Marisa mantinha a cabeça<br />
erguida, dir-se-ia indiferente à todas as metedices. Nem<br />
à Alice deu vapores a ares de gracinhas, que presumia ela<br />
já possuir. Outrossim, ao contrário do que muitos<br />
igualmente esperavam, Marisa continuou a frequentar as<br />
aulas, a ir ao cinema, e a fazer quase tudo o que<br />
geralmente antes fazia.<br />
Entretanto, pressionado pelos familiares dela, Zito,<br />
acompanhado do primo e da esposa deste, compareceu logo<br />
em casa de Marisa.<br />
Na sala, Marisa e Zito sentados ante os seus<br />
familiares, assemelhavam-se a uma ré e um réu aguardando<br />
pela leitura das suas sentenças.<br />
---- Então vamos lá ao que nos trouxe aqui ---- dizia<br />
o pai de Marisa ---- Menina São, vai nos explicar como é<br />
que esse vosso namoro está, quem é o responsável por essa<br />
gravidez, enfim, explique-nos tudo. Hoje em dia vocês<br />
decidem tudo à vossa maneira. Os pais não sabem com quem<br />
andam metidas... ---- a voz do pai era de lágrimas ----<br />
Enfim, não sei mais o que dizer...<br />
Entretanto, desde que Zito havia se sentado naquela<br />
sala, uma das senhoras, que parecia ser a mãe de Marisa,<br />
não parava de lhe olhar. Na verdade, parecia haver algo<br />
de suspeitoso naquilo, pois não obstante a boa ventilação<br />
126
que havia na sala, Zito era o único que ali suava. E de<br />
que maneira!<br />
Após Marisa ter tomado a palavra e atribuído à Zito a<br />
responsabilidade pela sua gravidez, pediram ao rapaz que<br />
confirmasse o que a outra dissera.<br />
Como se com o peso do corpo duplicado, Zito levantouse,<br />
e limpando o suor no seu rosto, tomou da palavra:<br />
---- De facto, tudo quanto ela disse é verdade. Sou<br />
sim o autor da gravidez. Nunca nos havia passado pela<br />
cabeça essa intenção, mas aconteceu, que é que podemos<br />
fazer...<br />
Posto isso, e enquanto se sentava, Zito notou um certo<br />
alívio, um aspecto já bondoso, no rosto cujos olhos antes<br />
pareciam lhe querer fulminar.<br />
«A kota ficou desorientada, confusa. Deve ter se<br />
agarrado na possibilidade de eu ser apenas muito parecido<br />
com ele. O português é de Portugal, o aspecto, a<br />
personalidade, é outra. Está atandacanhada. Porra, o<br />
mundo é pequeno! É uma bola!. Não há dúvidas. Ela é a<br />
dama. Marisa, heim! Quem diria ser aquela garina! Porra,<br />
mas essa velha começa a olhar-me outra vez... A<br />
incógnita faz-lhe cócegas, cócegas, CÓCEGAS! Vou dar o<br />
fora. Que se lixe tudo! Não! Ela... ela me ama. O amor<br />
perdoa. Mas que mal fiz eu?!... Pára de me olhar, dona,<br />
pare!»...<br />
A atenção de Zito não se podia dicotomizar. Na<br />
verdade, era já indiferente a fosse o que fosse o que ali<br />
se estivesse a falar. Só quando viu a mãe de Marisa a<br />
tomar pela primeira vez a palavra, é que imediatamente<br />
voltou a sua atenção ao que se passava na sala.<br />
---- Bom, realmente vocês se escolheram, a minha filha<br />
está grávida, e a nós como famílias, resta-nos apenas vos<br />
unir. Se vão se dar bem ou não, o caso é convosco. Hoje<br />
em dia só temos de vos olhar... Agora, se não é<br />
indiscrição, quero pedir ao menino para me dizer só uma<br />
coisa...<br />
127
Aqui, de repente Zito começou novamente a suar.<br />
---- Onde é que morava antes de vir viver com o seu<br />
primo?<br />
«Eu sabia! Essa kota tem boa memória. Quer que eu<br />
caia, assim de favor, na sua ratoeira! Bem pudera,<br />
mãezinha, mas o destino assim o quis. O destino quer que<br />
eu seja o marido da sua filha...»<br />
---- Antes de vir parar na casa do meu primo, eu vivia<br />
na Vila Alice, mãezinha. ---- respondeu Zito, com<br />
firmeza.<br />
---- Ah, na Vila Alice... arremedava a mãe ---- É que<br />
o menino é bem parecido com um senhor que conheci nesses<br />
lados do Cacuaco.<br />
---- Cacuaco?! Não, nem sequer conheço Cacuaco. ----<br />
concluiu Zito.<br />
Ele não podia ser o que a senhora estava desconfiando<br />
que fosse. A prosápia e o trajo atrapalhavam toda e<br />
qualquer suspeita sobre ele.<br />
E passado algum tempo, a reunião terminou. Deveriam<br />
voltar a reunir dali há um mês, para a marcação da data<br />
de casamento. Quanto ao alembamento, decidiu a família<br />
dela que tinha nenhuma importância. Que se casassem e<br />
constituíssem também o seu próprio lar.<br />
Logo após a retirada de Zito e sua família, a mãe de<br />
Marisa, verteu para fora o que lhe vinha preocupando.<br />
---- Ó mana Laura ---- chamava ela à irmã ---- diz lá:<br />
o rapaz não é muito parecido com aquele mais velho do<br />
Bairro dos Ossos?<br />
---- Quem é?! O mais velho Zito?!... «Essa minha irmã<br />
tem cada uma!» ... Então a mana não vê mesmo que este é<br />
moço ainda, e depois...<br />
A irmã rebentou-se às gargalhadas, contagiando os<br />
demais ainda na sala.<br />
128
---- O moço até é de presença ---- comentava um dos<br />
tios ---- Tem personalidade, tem...<br />
---- Realmente, pelo aspecto, deve ser de boa<br />
família... ---- interrompia o pai.<br />
Posto em casa, Zito continuou a pensar na suspeita<br />
levantada pela mãe de Marisa. Será que desfeito o<br />
equívoco, poderia continuar sossegado? Até<br />
quando seria ocultado esse seu segredo? Sabia Marisa que<br />
ele era também conhecido por Zito?<br />
Entretanto, enquanto o casamento não chegava, a<br />
gravidez de Marisa ia sim chegando, aumentando, crescendo<br />
o relacionamento entre a sua família e a de Zito.<br />
Alice, aparentemente indiferente ao caso da prima,<br />
aguardava com ansiedade o seu desfecho final. Todavia,<br />
não deixava de se lhe gabar do namorado, do seu carro e<br />
da riqueza da família, na tentativa de despertar na prima<br />
sentimentos de inveja.<br />
---- Talvez este ano, se Deus nos ajudar, ele termine<br />
a faculdade. ---- gabava-se Alice.<br />
---- Oxalá Deus vos ajude. ---- rematava Marisa, sem<br />
qualquer despeito.<br />
<br />
Certo sábado à tarde, Zito deslocou-se à casa da<br />
noiva, e antes de chegar, viu à distância um automóvel<br />
estacionado junto à porta dela. Encostados ao automóvel<br />
encontravam-se Alice e o que supunha ser o namorado.<br />
Ao cumprimentá-los, reparou que a cara do suposto<br />
namorado não lhe era totalmente desconhecida. E entrou<br />
para dentro da casa a matutar sobre onde tinha conhecido<br />
o indivíduo.<br />
129
Cá fora, o namorado de Alice, por sua vez, ficou<br />
igualmente a tentar recordar-se de onde conhecera Zito.<br />
---- Esse rapaz trabalhou comigo, já há muitos anos --<br />
-- dizia ele a Alice.<br />
---- Onde é que trabalharam?<br />
---- Ele era mecânico na oficina de um tio meu. O nome<br />
é que me esquece...<br />
----Jenito, não?<br />
---- Jenito?!... Não! Não lhe conheci por esse nome.<br />
Mas daqui há bocado já me recordo...<br />
Passado algum tempo em silêncio, ele interrompeu:<br />
---- Vamos dar uma volta?<br />
Ela concordou. Meteram-se no carro e arrancaram.<br />
Paulatinamente o dia ia escurecendo. Na avenida Marginal,<br />
a pouca intensidade do trânsito se harmonizava com a<br />
suavidade das águas da baía.<br />
---- Eduardo... acho que estou grávida ---- disse<br />
Alice rompendo um longo silêncio.<br />
---- Grávida?!---- admirava-se ele, mudando<br />
imediatamente de humor. ---- Grávida desde quando?<br />
---- Este mês as regras ainda não apareceram. Amanhã é<br />
já 1.º de Maio ---- explicava ela.<br />
Após outro longo silêncio, ele atirou:<br />
---- Penso que é prematuro para nós termos já um<br />
filho. Que pensas tu? ---- perguntou ele, tomando cuidado<br />
para não susceptibilizá-la.<br />
---- Quanto a mim, Edu, um filho só iria nos unir<br />
ainda mais...<br />
130
Eduardo continuou calado e algo distante. Alice,<br />
igualmente calada e distante, parecia decidida a não<br />
voltar a tocar no assunto, por enquanto.<br />
No horizonte ainda podia ver-se o sol a se afogar no<br />
mar. Atrás de si, ficava a cidade, agora já iluminada e<br />
a encher-se outra vez daquela agitação característica das<br />
noites de fim de semana.<br />
Desceram do carro e abraçados foram sentar-se à beira<br />
da praia, onde instantes depois Eduardo lembrou-se do<br />
nome por que conhecera Zito, e ficaram a conversar sobre<br />
ele.<br />
A escuridão era agora quase total. Entraram em casa e<br />
verificaram que o casal saíra. Zito dirigiu-se ao seu<br />
quarto, seguido de Marisa que de imediato pôs-se a<br />
admirar as novidades do quarto: um guarda-fato, uma cama<br />
com duas mesas de cabeceira, uma cristaleira, e uma mesa<br />
com seis cadeiras, estes, pendurados sob o tecto da casa.<br />
Sem conseguirem trocar sequer uma palavra, olharam-se<br />
fixamente durante um instante e logo se beijaram e<br />
atiraram-se à cama...<br />
Quando Alice e o namorado chegaram à casa, encontraram<br />
Marisa e Zito a conversarem junto à porta.<br />
Cumprimentaram-se e aí Eduardo decidiu manifestar-se a<br />
Zito.<br />
---- Zito! Estás a te recordar de mim?...<br />
Zito, espantado e ao mesmo tempo admirado, ainda<br />
pensou que talvez se estivesse a tratar dum equívoco da<br />
outra parte.<br />
----Eu sou o Edu, trabalhei contigo no Bom-Escape! ---<br />
- atirou o outro ante os ares de dúvida de Zito.<br />
131
---- Edu... Edu... ----fingia rebuscá-lo mentalmente,<br />
mas teve de anuir ---- Ah, Edu! Possas, estás mais gordo!<br />
Estás muito modificado!<br />
E lá ficaram trocando recordações dos tempos idos.<br />
Entretanto, Marisa aparentemente indiferente ao que<br />
ouvira, entrou para casa um tanto apreensiva, sem que<br />
Zito denotasse esse pormenor.<br />
«----Zito!... O tal senhor que me havia tratado,<br />
chamava-se Mestre Zito! Sim, Mestre Zito, é mesmo assim<br />
que lhe chamavam. É tal e qual o Jenito! Será pura<br />
coincidência? Meu Deus, será que o Jenito era esse Mestre<br />
Zito? Será?!... Mas aquele, era já um velho...»...<br />
---- Não sabia que também te chamassem por Zito ----<br />
atirou-lhe ela mal deu entrada na sala.<br />
Indo sentar-se junto dela, calmamente perguntou:<br />
---- Que Zito?! Ele confundia-me sempre com um primo<br />
meu chamado Zito, aliás, trocava sempre os nossos nomes,<br />
e assim ficou.<br />
Após a retirada de Zito, Alice chamou Marisa para o<br />
quarto que ambas compartilhavam. Com uma seriedade que<br />
havia tempo não encontrava na prima, escutou<br />
silenciosamente tudo quanto ouvira de Eduardo, a respeito<br />
dos pretéritos perfeitos, imperfeitos, mais que perfeitos<br />
e mais que imperfeitos da pessoa de Zito.<br />
Marisa ficou simplesmente pálida e exangue.<br />
«----Quimbandeiro??! ... Meu Deus!!! Então ele é<br />
aquele velho que me havia tratado?! Estou criando dentro<br />
de mim o filho dele... desse... desse quimbandeiro??!<br />
Serei mulher desse indivíduo?!...»...<br />
Não pôde aguentar mais. As lágrimas que desde a sua<br />
alma começaram a correr, transbordaram para fora dos seus<br />
olhos. Olhos bonitos. Os mesmos olhos que havia cerca de<br />
três anos tinham visto aquele jovem, aquele jovem cujo<br />
primeiro rebento levava dentro de si. Quimbandeiro... Não<br />
era, não podia ser verdade...<br />
132
E passou a noite inteira a chorar, a chorar e a pensar<br />
na desgraça em que caíra. Tivesse ela dado ouvidos ao que<br />
a prima lhe vinha dizendo e talvez viesse a saber<br />
exactamente com quem estava metida. «----<br />
Quimbandeiro!...»...<br />
Não sendo já possível o aborto, decidiu nessa mesma<br />
noite terminar o seu noivado com Zito, e aguardar até ao<br />
parto, para atirar-lhe à cara o seu rebentozinho de exquimbandeiro.<br />
Porém, de manhã ao contar a sua decisão à prima, esta<br />
dissuadiu-a que seria melhor, para que não restasse<br />
alguma memória, desfazer-se da criança tão logo nascesse.<br />
---- Desfazer-se como? ---- perguntou Marisa.<br />
---- Épa, fazer o que as pessoas por lógica têm<br />
feito. Sei lá... Eu no teu lugar punha o lixo desse homem<br />
imediatamente num contentor de lixo.<br />
---- O quê? Num contentor?! ---- interrogou Marisa,<br />
admirada com a ousadia da outra ---- Meter o meu filho<br />
num contentor?<br />
Alice permanecia calada, agora bastante surpreendida<br />
com a súbita mudança na pessoa da prima.<br />
---- Num contentor eu não vou meter o meu filho,<br />
porque ele não é lixo. Ele não terá culpa nenhuma de<br />
nascer. ---- Marisa ia ganhando uma expressa algo<br />
tresloucada ---- Ele vai nascer e vai viver! Terá um pai<br />
e uma mãe. Ele foi o que foi. Mas agora é o que é. É a<br />
pessoa que eu amo e continuarei a amar. Digam o que<br />
disserem sobre ele, mas deixar de lhe amar eu não vou<br />
deixar...<br />
Tudo quanto soube sobre Zito, guardou hermeticamente<br />
no esquecimento da sua memória. O tempo foi passando e<br />
enquanto isso, soube continuar com a cabeça erguida sem<br />
133
qualquer rebaixamento com relação a prima, mesmo tendo<br />
ela prometido guardar segredo sobre o passado de Zito.<br />
Entretanto, havia já um tempo que Alice vinha<br />
apresentando notáveis mudanças no seu aspecto físico, o<br />
que não deixou de saltar á vista das pessoas, mormente<br />
das de Marisa, apesar do esforço que fazia para<br />
dissimular o facto. Mas até ali nunca houvera argumentos<br />
que tivessem ido contra factos. A barriga ia crescendo,<br />
aumentando na proporção inversa da das vindas do<br />
namorado.<br />
Uma semana antes de Alice ter tido o bebé, Eduardo<br />
apareceu na televisão. Havia já alguns meses que não<br />
aparecia em casa de Alice, mas nessa noite ele reapareceu<br />
em sinais de TV, a ser julgado em conjunto com uma dezena<br />
de indivíduos, por tráfico ilícito de diamantes.<br />
Com excepção dela e do seu recém-nascido, ninguém mais<br />
encontrava-se em casa. Era o desmoronar de todos os seus<br />
sonhos, das esperanças que ainda alimentava com relação a<br />
Eduardo. Com lágrimas nos olhos e um nó quente na<br />
garganta, desligou o televisor. No quarto pegou em dez<br />
comprimidos de Vallium-10 e despediu-se deste mundo...<br />
Quando Alice morreu, passavam já três meses que Marisa<br />
e Zito eram casados e viviam com o seu primogénito em<br />
casa própria. Um dia, Zito de nome completo: João Adérito<br />
Simões, filho de Constância Adérito e de João Simões,<br />
promovido a Chefe de Secção, no seu português de oito<br />
classes, feito com tanto, mas tanto sacrifício, botou<br />
algumas palavras num papel branco, constituiu missiva, e<br />
foi ele mesmo levá-la ao gabinete do director.<br />
Nesse tempo, mesmo almoçando quotidianamente o peixe<br />
frito com arroz, no refeitório da empresa, o salário não<br />
lhe servia sequer para ter uma alimentação condigna, como<br />
um ser humano de verdade, e isto sem falar dos calçados<br />
de calçar, das roupas de vestir, nem do pagamento da<br />
renda da casa onde morava.<br />
João Adérito dir-se-ia o único trabalhador que na<br />
empresa realmente trabalhava. Mal tocasse o despertador,<br />
134
punha-se logo de pé, e meia hora depois lá estava ele<br />
rumando ao serviço.<br />
Aqui, só se o relógio-marcador estivesse zangado, é<br />
que não picava o cartão mais picado de todos que a<br />
empresa ostentava. Respeitava tanto os seus chefes, como<br />
os seus subordinados, sendo que igual respeito lhe era<br />
retribuído.<br />
Isso e mais, era o que tinha de reputado.<br />
Consequentemente, foi sem hesitações nem cepticismos que<br />
a Comissão Sindical e a Célula do Partido na empresa,<br />
decidiram atribuí-lo o mérito de trabalhador mais<br />
destacado, por mais de uma vez.<br />
Mas isso ainda era insuficiente. O que tanto almejava<br />
era muito mais que essas ventoinhas e ventonhocas, que<br />
nem ―matando‖ dava para comprar o seu sonho de todos os<br />
tempos. Não queria, nem geleiras, nem televisores, nem<br />
televi nada. Queria era..<br />
Não precisava memorizar.<br />
Passados alguns dias, a missiva pejada de erudição<br />
erudita, incluso o último, dos mil-e-um elogios, em que<br />
deixava ao Camarada Director os seus protestos de mais<br />
Alta Estima e Consideração, voltou ás suas mãos, toda ela<br />
grávida de rubricas, deferida pelo Camarada Director<br />
Geral.<br />
Só se fosse sexta-feira e houvesse vinho no<br />
refeitório!...<br />
Mas em casa é que bastando ver a mulher, não pode<br />
conter a monumentalidade da sua satisfação:<br />
---- Marisa! Marisa!<br />
---- É o quê? Já estás bêbado, né? ---- respondia a<br />
mulher saindo do quarto.<br />
---- Marisa, realmente estou bêbado, filha! Desta vez<br />
é que podemos dizer de boca cheia: adeus miséria!<br />
135
---- Mas, explica-me então, ganhaste a sorte grande ou<br />
quê?<br />
Zito não explicou. Apenas quando foram para o quarto e<br />
João Adérito Simões, chefe da secção do pessoal da ENCI-<br />
UEE, leu sílaba por sílaba, o despacho do Director-Geral,<br />
é que Marisa sossegou.<br />
---- Ouviste? Ouviste bem? Temos o Isuzu! Agora é que<br />
nenhum viococo vai nos aguentar! ---- exaltava-se o<br />
marido.<br />
E logo que teve a autorização de retirar do parque da<br />
empresa o quase sepultado camião, João Adérito Simões,<br />
começou a parecer chanfrado...<br />
Tratou tudo quanto é documento de carro, entrou mil e<br />
uma vezes no Registo de Propriedade Automóvel, saiu não<br />
sei quantas vezes das Obras Públicas, assinou Deus sabe<br />
quantos papéis, e lá teve o raio do Isuzu nas suas tão<br />
arrojadas mãos.<br />
Enquanto os outros Isuzus da empresas andavam parados<br />
por falta de peças sobressalentes, aqui o do senhor<br />
Simões tinha até de sobra.<br />
Todo mundo ficou atandacanhado com a sorte de João<br />
Adérito. Mas, depois que passaram dois meses sem verem o<br />
homem a regressar das férias, é que a direcção da empresa<br />
começou a rogar azares e má-venturas ao bom do<br />
trabalhador.<br />
Mas, qual lá! João Adérito não quis saber de secção<br />
nenhuma. Agora, era o director-geral de si mesmo, da sua<br />
Isuzu. Não teria de prestar contas a ninguém, exceptuando<br />
a sua esposa. Nem ao Diabo, nem a Deus.<br />
E quando o Isuzu ficou pronto, pintado e artilhado e<br />
tudo, no dia seguinte, Zito, nem matabicho sequer quis<br />
matabichar e... para frente era o caminho...<br />
Fez algumas manobras, deixou todas as ruas do seu<br />
bairro para trás, apanhou a Hoje Ya Henda, e nem um<br />
quilómetro sequer andou...<br />
136
---- Éh! Éh! Candongueiro! Candongueiro!<br />
Não gostou tanto do apelido, mas do dinheiro é que não<br />
haveria de não gostar. Ora essa...<br />
---- Bom-dia, camarada! ---- cumprimentava uma<br />
senhora, aproximando-se do carro.<br />
---- Bom-dia mana! Vão para onde?<br />
---- Vamo na Corimba, mano, nos leva só!...<br />
E ele estava ali para quê?<br />
---- Subam! ---- ordenou o motorista.<br />
João Adérito mirou no retrovisor, mas não acreditando<br />
neste, pôs a cabeça fora para se certificar se<br />
efectivamente podia seguir ou não. Sim, podia. Largou<br />
devagar a embraiagem, e foi acelerando nas calmas. Mas, o<br />
que para ele era muito, para os outros motoristas nem<br />
pouco ainda era.<br />
---- Mano, então, anda inda codepressa! ---- suplicava<br />
uma das senhoras.<br />
---- É do trânsito, mana... Há radar.---- explicou o<br />
motorista.<br />
---- Ra... nhinhi? ---- indagou a outra.<br />
---- Radar, mana, radar!...<br />
---- Eme nge ijia o radare ionoio...<br />
---- É máquina que não deixa os carros andar depressa,<br />
senão o motorista paga multa. ---- explicou Zito.<br />
---- Euâ! Anda mbora ntão devagar. ---- sugeriu uma<br />
das senhoras.<br />
E lá estava o Isuzu azulinho de João Adérito Simões a<br />
descer a Clínica do Prenda. João Adérito queria mais um<br />
137
pé no meio dos dois que já possuía. Sim, para estar mais<br />
à-vontade e não precisar de estar com aquela confusão de<br />
se enganar nos pedais. Assim, cada pedal teria o seu pé.<br />
Mas, mesmo não sendo trípode, a vida já lhe ia correndo<br />
bem.<br />
Ai-ué!... A estrada da Corimba lhe recordava aqueles<br />
tempos-Juca, aqueles tempos-Catambor, Bom-Escape,<br />
Portugália. Ai-ué! Ai-ué mana Esperançaee! Aqueles vinte<br />
escudos mensais de lhe lavar e engomar a roupa. Ai-ué<br />
Gamaee, ai-ué dona Evitaee, aqueles peixes fritos que lhe<br />
fiava. Ai-ué...<br />
---- Mano então, aqui tem lá mais radare hanga nhinhi?<br />
---- indagava aflita, uma das senhoras.<br />
---- Tem. Tem radar, mana. Radar graande!... ----<br />
explicou o motorista.<br />
E passado algum tempo, lá chegaram ao local dos<br />
pescadores, que é aonde afinal as senhoras queriam<br />
chegar.<br />
---- Mano ntão, quanto é? ---- perguntava uma delas.<br />
---- Mana já sabe, é quinhentos kwanzas cada cabeça.<br />
Ou também querem pagar as caixas vazias?<br />
O motorista, afinal não era lá tão má pessoa...<br />
---- Pode nos esperar até comprarmos, mano? ----<br />
queria saber uma delas.<br />
---- Se não demorarem...<br />
Mas, qual lá! Logo que apareceu uma dikota a lhe<br />
suplicar transporte João Adérito disse ―aqui é quem chega<br />
primeiro‖. Pôs o Isuzu em funcionamento e...<br />
---- Para onde vão? ---- perguntou o motorista aos<br />
demais que haviam surgido.<br />
---- Ajuda Marido, mano. ---- explicaram os demais.<br />
138
---- Pois é, ajudem os maridos, que eu cá ajudo a<br />
mulher. ---- disse em jeito de brincadeira, o motorista.<br />
---- É verdade, mano... ---- as peixeiras puxavam<br />
conversa ---- ... da forma que a vida está, é preciso<br />
trabalhar muito, ter jeito, senão ufuá ni nzala!<br />
---- Eu cá, era chefe de secção. ---- explicava João<br />
Simões ---- Ganhava doze mil kwanzas por mês. Mas nem com<br />
isso. Só para comprar uma calça, é preciso ter jeito, é<br />
verdade, senão não comes...<br />
---- Não é bâ, mano! ---- apoiavam algumas peixeiras.<br />
Na carroçaria, algumas senhoras impacientavam-se com a<br />
moleza de João Simões:<br />
----Esse camarada começou guiar ntão qualé dia? ----<br />
perguntou uma.<br />
---- Parece lhe emprestaram o carro, ou o quê então? -<br />
--- quis saber uma outra.<br />
Porém, uma das senhoras, a transbordar de tanta<br />
impaciência, aproximou-se da janela da cabina, e batendo<br />
nela com raiva, expeliu toda a sua raiva.<br />
---- Anda ntão mais depressa, camarada! ---- gritou a<br />
senhora.<br />
---- Fica parece estamos ir de boleia ----<br />
acrescentava uma outra. ---- Mesmo hora de dikomba, é<br />
esta que está nos passar...<br />
O motorista, não podendo virar-se para trás, dada a<br />
sua inexperiência, limitou-se a perguntar a uma das<br />
peixeiras que com ele ia à cabina, o que queriam as da<br />
carroçaria.<br />
---- Estão a pedir para andar mais depressa, mano.<br />
Sabe como é, na praça, peixe é de manhã cedo.<br />
139
---- Ah... Só que se eu andar depressa, depois vocês é<br />
que vão pagar a multa do radar e depois ficarem presas no<br />
meu lugar. ---- ameaçava o motorista.<br />
Estava o sinal vermelho lá à frente. Mas o Isuzu tinha<br />
um defeito: estava sempre a peidar, a deitar gases<br />
intestinais. E ao subir a estrada da Clínica do Prenda, é<br />
que foi um problema. O Isuzu quis enguiçar! Sukuama!<br />
Subia muito devagar, devagarinho, parecia um bebé na<br />
fase de engatinhamento. Outras viaturas, maiores e mais<br />
carregadas que ele, ultrapassavam-no lhe deixando os mais<br />
bonitos elogios:<br />
---- Olá Isuzu! Isso está podre, pá!<br />
---- Éh, candongueiro, põe isso na siderurgia!<br />
A manhã estava fresca, mas na cabina João Simões<br />
suava. As senhoras que vinham na parte de trás, não se<br />
aguentavam mais de impaciência. Batiam no vidro ainda<br />
novo da cabina do Isuzão. Pulavam, berravam, choravam,<br />
mas lá o carro ia aos poucos comendo a íngreme subida,<br />
pesasse embora a fumaça que saía do seu escape, indo<br />
poluir a pureza daquela bela manhã.<br />
Coitado do João Simões! A subida parecia sem fim.<br />
---- Que desgraça, mana! Já viram então esse carro?<br />
Este não é azar? ---- continuava a explodir uma das<br />
peixeiras.<br />
Depois que terminou a subida, o Isuzu ganhou<br />
velocidade, e lá estavam as peixeiras na carroceria a<br />
dançar.<br />
---- Pois é! Assim é que é! ---- dizia uma.<br />
---- É verdade bâh! Estávamos só parece é no funeral<br />
que estamos ir! ---- dizia uma outra.<br />
―Puam-Puam‖! ---- buzinava um carro que vinha atrás.<br />
Zito acelerou ainda mais. Ia a curvar para a direita e<br />
140
nem sequer piscara. Ainda foi a tempo de ouvir o ―oh, que<br />
filho duma merda!‖.<br />
João Adérito engoliu bem. Quis lá saber! Passou o<br />
largo 1º de Maio, apanhou a Cónego Manuel das Neves,<br />
mercado do S.Paulo, e foi finalmente parar no mercado<br />
paralelo Ajuda Marido.<br />
---- Nunca mais vamos vir no teu carro. Olha só como é<br />
que a praça está já bem cheia! ---- reclamou-se uma das<br />
peixeiras.<br />
Zito nada respondeu. Recebeu o dinheiro e foi<br />
estacionar o Isuzu frente ao mercado do S. Paulo, para<br />
fazer a linha Luanda-Caxito, que diziam ser bastante<br />
―quente‖. E não tardou a ser aquecido pelos primeiros<br />
passageiros:<br />
---- Bom-dia, mano! ---- cumprimentava uma mais-velha<br />
----Não vai na Funda?<br />
---- Caxito! Caxito! ---- berrou João Simões.<br />
João Adérito Simões estava contente. E tinha motivos<br />
bastantes para tal. No seu íntimo porém, uma voz ---- não<br />
sabia se do coração ou da razão ---- lhe dizia que era<br />
arriscado nesse seu primeiro dia de trabalho, ir já tão<br />
longe, e ao demais, sem ajudante.<br />
Mas enquanto lutava com os seus pensamentos, o Isuzu<br />
afinal foi enchendo. Que culpa tinha ele?...<br />
Desceu do carro, para verificar se já podia arrancar.<br />
A carroceria estava completamente cheia, mas João Adérito<br />
Simões queria mais:<br />
---- Aí, esses cestos estão a ocupar lugar! Arrumá-los<br />
bem, senão as donas vão descer!<br />
E mais pessoas subiram para o Isuzu. Momentos depois,<br />
João Adérito Simões pôs a viatura em funcionamento,<br />
rumando para Caxito. Ao passarem pelo Campo da Revolução,<br />
foi contemplando de esguelha a paisagem marítima que se<br />
estendia à sua esquerda, e recordando-se da Boavista...<br />
141
―Ai-ué, Boavista! Ai-ué, primo Jojó, com as estantes dele<br />
cheias de filosofiaée! Ai-ué, Quipaka, aqueles filmes dos<br />
chalados italianos!...‖.<br />
Ao aproximar-se da 9ª esquadra da Polícia, já no<br />
interior do Sambizanga, João Adérito Simões reduziu a<br />
velocidade, que nem era muita, e quase ia fazendo um<br />
adeus à cara franzida da sentinela. Lá mais adiante,<br />
via-se já a Blackhood Wodge, que não tardou a ficar para<br />
trás. Ao fazerem a rotunda, mais abaixo, um kiburaco na<br />
estrada, foi o suficiente para colocar em instantânea<br />
suspensão, todas as nádegas que vinham sentadas na<br />
carroçaria. Alguns gostaram do incidente.<br />
---- Embrulha, sócio!<br />
---- Xinjiké kué nioco!<br />
Mas outros, sobretudo os mais idosos, não gostaram:<br />
---- Kamuanho dinge, papa-ué!<br />
Ao passarem pela ponte da Boavista, todo o mundo fechou<br />
o bico. Só se ouviam os peidos do Isuzu lá atrás. Um<br />
pouco mais adiante, ficava a ENCI-U.E.E., e lembrando-se<br />
disso, João Adérito Simões, filho de João Simões e de<br />
Constância Adérito, enfiou mais uma mudança. Qual não foi<br />
o seu espanto, quando um dos velhos pneus da frente,<br />
resolve furar mesmo ali, diante da empresa em que havia<br />
trabalhado!<br />
Parecia mentira, mas pela primeira vez na vida, Zito<br />
acreditou que um carro também tem sentimentos. Tem<br />
coração, tem aparelho digestivo, tem intestinos, tem<br />
ânus. Um carro, também raciocina...<br />
Ora, o Isuzu tivera simplesmente saudades da sua<br />
antiga residência, e resolveu apenas parar aí, para<br />
contempla-la por alguns momentos.<br />
Zito estava preocupado com os clientes. Não. Não tanto<br />
com eles, mas sobretudo com o dinheiro deles. E enquanto<br />
fazia a troca de pneus, Zito recordou-se da troca da<br />
moeda...<br />
142
Iria haver outra?...<br />
Rangel, 13 de Janeiro de 1990<br />
143
Tem escrito e por publicar:<br />
Sebastião António Ventura de<br />
Azevedo, Produtor-Realizador<br />
de Cinema e Televisão,<br />
nasceu no Rangel aos 31 de<br />
Dezembro de 1963. Escreve<br />
poesia e prosa desde 1980.<br />
o SEBASTIANA– Prosa<br />
o A MORTE E OS DOIS ENTERROS DE NGA MBAXI– Prosa<br />
o TURMA 6ªF – Prosa<br />
o TETÉTE – Prosa<br />
o O DIÁRIO DE UM RECLUSO – Prosa<br />
o PAISAGENS – Prosa<br />
o O CORPO DE ALEXANDRA – Poesia<br />
144
eBook Angola<br />
A livraria virtual de todos os angolanos...<br />
Tel. : 927 00 17 80<br />
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A maior loja virtual angolana.<br />
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