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o economista

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―Que importa se um homem é morto ou não, quando todo<br />

um reino está às portas da morte? E ouve com atenção:<br />

para salvar este reino, inventarei tudo o que for<br />

preciso. Tudo o que dê forças a estes homens e a estas<br />

mulheres para lutarem por ele até à última gota do seu<br />

sangue‖<br />

( in ―Este reino que eu escolhi‖ de Alice Vieira)<br />

2


―O SR. ZÉ, O PENTE E O CHURRASCO‖<br />

P<br />

orra, passavam dois dias que o Sr. Zé não tinha<br />

a cálida companhia da sua esposa, nas noites<br />

sem fronteira da sua cama. De que maneira!<br />

Sengara a mulher, o barulho dos candengues, as<br />

três boas refeições que o bom do senhor sempre tinha<br />

diariamente; como sozinho havia já sengado o raio do seu<br />

predilecto pente de osso, razão e incógnita de todas as<br />

demais senguices.<br />

Com isso, em casa, apenas restavam a casa, a cadela<br />

Violeta, o Sr. Zé, o seu primogénito parido, e um irmão.<br />

Até as duas latas de chouriço Nobre, não falando já de<br />

tudo e mais quanto desse para encher a pança, que na<br />

nobreza daquela casa havia, haviam sengado com a esposa.<br />

E tudo, por causa do pente de osso do senhor Zé! É que<br />

não havia pente de ouro mais dourado neste mundo, capaz<br />

de afrontar réplica aos de osso, predilectos do senhor<br />

Zé. Fosse lá que pente mais pente fosse, qual quê, se<br />

atreveria a substituir aos de osso predilectos do senhor<br />

Zé!<br />

Mas, porra, nesse dia houve uma xinguilança sem<br />

precedentes! Havia o senhor Zé acabado de se lavar,<br />

quando na pressa de ter de voltar ao segundo período de<br />

trabalho, quase teria ido com o cabelo despenteado. Vai<br />

então ao sítio do pente e patavina é que lá encontrou.<br />

Todo o mundo tinha de suspender fosse o que fosse<br />

que estive fazendo: defecando, sonhando ou morrendo, para<br />

dar um S.O.S aos calundús daquele homem. E lá todo o<br />

mundo, de Cabinda ao Cunene, foi se contagiando pelo<br />

xinguilar pentossóico do senhor Zé, pondo a mobília da<br />

sala comum no quintal, a do quintal na sala comum, e a do<br />

quarto de banho, essa então… no quarto de todos os<br />

calundús que havia naquela casa, transformada dum<br />

instante para o outro em alvoroço, em foge-abelha de<br />

acordar os mundos de sossego da vizinhança, tudo e todos<br />

à procura do pente de osso do senhor Zé!<br />

Mas para sempre o pente desaparecera…<br />

3


… Como para sempre vai também desaparecer, passados<br />

dois dias do desaparecimento pentossóico, o churrasco de<br />

cem escudos, tão bonito, tão engraçado e bem<br />

engindungado, que o senhor Zé havia comprado no Piri-<br />

Piri, com ele subido ao muceque, chegado à casa e por<br />

fim, lhe aterrando na cozinha.<br />

Nem sequer o churrasco tinha descansado e já o<br />

senhor Zé ameaçava a sua existência, mandando fritar<br />

continentes de batata e assar países de pimenta. E lá<br />

foram os quatro se empregando: o senhor Zé no quintal,<br />

dando um jeito de ocupar o vazio do tempo; o irmão,<br />

frigindo as batatas e assando os pimentas, isto no<br />

quintal; e também aqui, a cadela Violeta farejando aqui e<br />

ali, em cada centímetro quadrado que fosse…<br />

O primogénito-parido que se encontrava a shelltoxear<br />

o interior da casa, achou por bem e por lógica descansar<br />

o churrasco num divã existente no quintal, afim de evitar<br />

esse tão precioso bem a exposições shelltóxicas.<br />

Pois não é que, sentados já à mesa, mesa posta:<br />

pratos, talheres, copos, batatas e pimentas, o senhor Zé<br />

perguntando pelo churrasco, porra, o primogénito-parido<br />

vai da mesa embalado para o quintal, voltando instantes<br />

depois com a notícia de óbito na cara!<br />

---- Então? ---- perguntava o senhor Zé, engolindo<br />

as águas na boca.<br />

---- Não está lá, pai ---- respondeu tímido, o<br />

primogénito.<br />

Tudo parecia brincadeira…<br />

---- Mas o chôrrasco está aí na cozinha, como é que<br />

não está?<br />

----Sim pai. Mas depois fui meter lá fora no divã,<br />

por causa do shelltox.<br />

---- Por causa do shelltox… ---- arremedava o pai. -<br />

--- O shelltox come chôrrasco? Come?...<br />

4


Daí, os três meterem-se logo a barafundar o quintal<br />

todo, a casa toda, do norte ao sul, do este ao oeste,<br />

desmontando capoeiras, desandando pocilgas, cavando até<br />

mesmo o solo e o subsolo do solo e do tecto daquela casa.<br />

Só as estrelas testemunhavam gratuitamente aquele<br />

filme.<br />

E a cena prosseguia. O senhor Zé, o primogénitoparido<br />

e o irmão do senhor Zé, a protagonizarem sozinhos,<br />

mais uma cena familiar. Era um ―três contra todos‖ ao<br />

vivo.<br />

Mas eis que de repente vem à cabeça do senhor Zé<br />

cheirar o focinho da cadela Violeta, muito sossegadinha<br />

ante todo aquele exaltar de ânimos.<br />

---- Filha da puta! ---- bombardeou o Sr. Zé.<br />

Afinal o churrasco estava na pança da cadela?!...<br />

E foi nessa mesma pança que o senhor Zé começou por<br />

descarregar todo o seu quicoto, contra a desaparecimento<br />

físico do churrasco, tão enjindungado, tão sei lá… dando<br />

nela socos e pontapés de febre amarela, para logo de<br />

seguida ---- arrumada K.O. a cadela da cadela Violeta, --<br />

-- partir a cabeça do seu primogénito-parido, com dois<br />

coconotes bem grávidos de fúria, de raiva e desgraça, na<br />

desgraça daquela sua vida.<br />

---- Merda! Agora vão lá comer aquela merda! ----<br />

decretava o senhor Zé, ainda enfatuado de raiva.<br />

Mas ele também, não podendo fazer greve de fome, foi<br />

igualmente comer aquela merda.<br />

Mas, porra, que dessem mãos aos cães e lá a cadela<br />

Violeta, estou seguro, faria também os seus churrascos.<br />

Só tinha direito a ossos?<br />

Mas, nem aos ossos teria direito, é sabido. Porque o<br />

irmão do senhor Zé e o primogénito parido, mastigavam e<br />

engoliam todos os ossos que fossem aos seus dentes, e o<br />

5


senhor Zé, não só os mastigava e engolia, como também<br />

tinha deles preferência como matéria-prima dos seus<br />

pentes…<br />

Rangel, 11 de Setembro de 1985<br />

6


...A<br />

―DAS FITAS‖<br />

lternância do poder?, para quê, se ele<br />

só cortava fitas, Fitas e só FITAS,<br />

rodeado de muitas cadeiras de fitas que ele próprio tinha<br />

obtido das mangueiras de plástico de petróleo, que nem<br />

todas eram feitas aí muito perto do seu mbongue e da<br />

avenida estreita de mais para quem lá quisesse chegar e<br />

dizer: ó kota, então, já cortaste as minhas fitas?...<br />

Poucos sabiam ao certo, donde viera, como viera,<br />

nem por que cargas de petróleo o Das Fitas tinha vindo.<br />

Sabia-se é que na base da sua locomoção estava e sempre<br />

tinha de estar o petróleo nosso de cada dia muitos<br />

bilhões de dólares, de que ele só bilhas via, na hora em<br />

que a tesoura cansada tinha de ser enviada ao Nando, o<br />

homem dos afias e ele, aproveitava para tirar umas férias<br />

rápidas, rapidinhas, mas sempre eficientes, no bilhar do<br />

kota Lulas, ali próximo do rio do vale do Soroca.<br />

Ponto assente e unânime, é que o rapaz devia ter<br />

vindo de muito longe, das terras do Tunda-Daki, do<br />

Cambundi Catembo, do Quirima ou quiçá mesmo das terras do<br />

Luquembo. Falava songo, quimbundo, umbundo, e o<br />

português, é coisa que o rapaz, sim senhor, sabia<br />

maltratar:<br />

—— Ó ti Luís, os ngajo ndu Cipare quero sumbir as<br />

preço ndo manguera.<br />

—— Como assim?! —— interrogava o homem dos<br />

matraquilhos.<br />

—— É! Eles num sabe que nojo é que estamojo lhes<br />

ndare a dinhero, senão quem é que ia lhes comprare os<br />

manguera ndere. Aqui no Luanda água num há, manguera só<br />

ndá memo pros candera nde fita...<br />

—— Papá, o tisora já está prontado! —— era o filho<br />

a interromper-lhes.<br />

7


Pagou a conta das duas partidas de bilhar, deu<br />

o último trago da garrafa de cerveja, e foi retomar o<br />

serviço.<br />

Tinha cerca de trinta e cinco ou trinta e oito<br />

anos, mas a vida lhe promovera logo para lá dos quarenta,<br />

tal a responsabilidade que tinha para alimentar, vestir e<br />

cuidar do estado da saúde dos seus oito rebentos<br />

provenientes das suas duas mulheres, todos eles<br />

empregados ali na rua do Rei Ngola, rodeados de dióxido<br />

de carbono, de poeira, do cheiro nauseabundo vindo das<br />

águas residuais do rio Soroca, rodeados do barulho dos<br />

carros, do barulho das buzinas dos carros, do barulho da<br />

buzina dos comboios, das bicicletas, dos aviões e, graças<br />

a Deus do calor do sol a escorrer-lhes pelos rostos,<br />

pelos peitos, pelos braços, sempre a albergarem a forte<br />

funguta de catinga dos pêlos ruços dos sexos e das<br />

axilas.<br />

De quando em quando, uma brisazinha passava por<br />

aquele lugar, levando-lhes o aroma da cevada que muito<br />

perto dali fermentava nas caldeiras já capitalisticamente<br />

reguladas...<br />

Das Fitas ainda se lembrava da fita que o seu<br />

primo-como-irmão, man-Kizua, lhe contara, sobre os<br />

cubanos que haviam morrido na fábrica cervejeira, tempos<br />

idos, quando depois de lá andarem a labutar e a se<br />

entulharem de bué de cerveza, um deles reparando en el<br />

manometro de la caldera, descubrió que la maquinaria eres<br />

imperialista! E para aumentar a produção, produção,<br />

produção, o cubila sai-te de irregular para mais a<br />

temperatura da grande panela há muito regulada pelos<br />

tugas. Nem tempo de gritarem ―viva la Pátria!‖ tiveram, e<br />

ficaram todos com os cohones e as jinguingas<br />

diametralmente rebentadas pela súbita explosión de la<br />

caldeira imperialista.<br />

Nesse dia, Kizua, ainda como ajudante de<br />

enfitador, pensou que a guerra tivesse chegado ao<br />

interior da fábrica de cerveja e que como era óbvio<br />

estender-se-ia até ali na periferia. Mas ficou logo<br />

calmo, quando passado algum tempo não ouviu mais nenhuma<br />

explosão, nem o barulho de qualquer disparo retaliador.<br />

8


Apenas a imediata mudança na cor das águas do rio do vale<br />

do Soroca lhe chamara a atenção. De preto, as águas<br />

passaram para vermelho, aumentando o socialismo, a secção<br />

e a velocidade.<br />

Das Fitas nem dava pelo passar da brisa. O seu<br />

corpo tinha de estar em constante e incessante movimento.<br />

Não sabia porque motivo as fábricas tinham deixado de<br />

produzir fitas para as cadeiras dando preferência ao<br />

fabrico de mangueiras, que eram mais caras e ainda por<br />

cima tinham de ser recortadas de ponta a ponta e com todo<br />

o cuidado do mundo.<br />

Nessa altura em que quase não se verificava a<br />

produção de sofás, quatro cadeiras de fitas à volta de<br />

uma mesinha de madeira, tudo feito à duas pancadas, eram<br />

o cartão de visitas para a maior parte dos lares de<br />

Luanda, e não só.<br />

Camiões que viajavam para as províncias, sobretudo<br />

para as do interior, iam ao Das Fitas fazer grandes<br />

carregamentos de cadeiras, há muito encomendadas. A carga<br />

acabava sempre por ser despachada nos mercados paralelos,<br />

para onde até dirigentes e responsáveis do partido e do<br />

estado, iam comprar para colocar nos seus gabinetes,<br />

essas cadeiras que dificilmente partiam, e tal como a<br />

fita com que Das Fitas as encobria, vinha igualmente do<br />

petróleo o dinheiro da sua aquisição.<br />

Por essa e por outras, é que ele tinha de<br />

locomover braços, pernas, olhos, filhos, mulheres, tudo<br />

muito depressa e inteligentemente planeado, antes que<br />

aparecesse por lá um zongolador qualquer de olhos<br />

rasgados sabia-se lá em que Ásia, a se embebedar nele da<br />

―imperialista‖ ideia de inventar uma máquina de cortar<br />

mangueiras, de enfitar cadeiras, de lhe cortar os braços,<br />

a boca e a comida para as onze bocas, incluída a sua, que<br />

tinha todos os santos dias da semana, do mês e do ano, de<br />

alimentar, quando não aparecesse pela cubata adentro um<br />

visitante qualquer não solicitado, que «esses do mato<br />

visitam muito os outros sem se importarem pelas<br />

consequências logísticas e financeiras que tais<br />

veleidades acarretam»...<br />

9


Mas, colocar mais um ou mais dois pratos na mesa,<br />

já não era preocupação para Das Fitas, porquanto longe<br />

estavam os dias em que para as suas duas casas o<br />

matabicho era milho cozido, o almoço milho cozido, e para<br />

variar, tinham como jantar, milho torrado sobre o lume de<br />

restos de plástico e outros combustíveis que os seus<br />

filhos iam buscar às montanhas de lixo do Tunga e vinham<br />

alegremente colocar entre as massuícas...<br />

Quando, vindo do mato, aterrou com as suas duas<br />

mulheres, quatro filhos e algumas imbambas, na estação<br />

dos caminhos de ferro, ali junto do Tunga-Ngó, Das Fitas<br />

nem sabia sequer como seria o dia seguinte para si e para<br />

a sua família. O transporte teve de ser pago com alguns<br />

dos sacos de macroeira que haviam trago, e com o dinheiro<br />

obtido da venda dos sacos restantes, alugou uma cubata de<br />

quarto e sala, feito de chapas de zinco, aí mesmo no<br />

bairro Tunga-Ngó, para não terem de andar muito com os<br />

filhos, os dois kibutos contendo trapos, cuecas, canecas<br />

e panelas de lata, mexericos de pau e outros luxos<br />

divididos entre as duas cabeças das suas mulheres.<br />

Mas tendo a cubata apenas um quarto e uma sala,<br />

depois do aval positivo recebido do senhorio, Das Fitas<br />

conseguiu encontrar uma chapa de zinco na lixeira, com a<br />

qual fechou a porta do quarto, e para cada divisão, abriu<br />

uma porta dando para o quintal, tornando a cubata em duas<br />

cubatas gémeas e siamesas, com duas noites do seu corpo<br />

para cada corpo das suas duas mulheres, quando nenhuma<br />

delas estivesse com bandeiras à fio, é claro, porque ele<br />

Das Fitas não era homem de ver o fogo a se apagar sem<br />

dele se queimar.<br />

Alugada a casa, contas feitas, de dinheiro quase<br />

nada tinham, e da macroeira sobrava apenas um kibutozinho<br />

que a reunião do Conselho Consultivo entre Das Fitas e<br />

suas duas mulheres, com os seus quatro rebentos na<br />

condição de observadores, sem direito nem a palavra, nem<br />

ao voto, deliberou mandar colocar sob molho com um<br />

10


pouquinho de sal na água, e depois, com um litrinho de<br />

óleo alimentar comprado no mercado xará do bairro, lá<br />

foram as duas no dia seguinte postar-se junto à rua do<br />

Rei Kiluanje, para venderem bocadinhos de bombó fritos in<br />

loco, à olhos de ver e fome alguma deixar ficar.<br />

Tendo as mulheres partido para a rua, Das Fitas<br />

não ficou em casa a espera da lua. Trocou a ceroula<br />

branca e encardida, pela calça jeans que trouxera do<br />

mato, um bocadinho curta para a sua altura, mas que<br />

acompanhada da camisola com a cara sorridente do Camarada<br />

Presidente aí estampada, acrescido de um par de peúgas<br />

roídas pelos dibengos gulosos do chulé dos seus pés, já<br />

então enfiados nos pancos amarelinhos, comprados no<br />

mercado da Xauânde, era mais do que o suficiente para ir<br />

estampar-se todo ele igualmente à rua do Rei.<br />

Afinal, do ponto em que se postara, tinha<br />

enquadrado entre os quadrantes da sua observação, todos<br />

os movimentos e gestos das suas duas garinas e de<br />

qualquer cliente que delas se aproximasse, mas também ele<br />

próprio, era observado visto e reparado pelas pessoas que<br />

por ele passavam, não faltando mesmo algumas a lhe<br />

atirarem sorrisos e risos jocosos e abusivos, se calhar,<br />

pelas calças que lhe estavam a chover, e pelo ridículo<br />

amarelo dos seus sapatos. ―Esse então, veio de qualé<br />

mato?!‖, perguntavam-se, talvez, dentro de si muitos<br />

transeuntes. Alguns, não hesitavam mesmo em afrouxar o<br />

passo, só para reparem-no de baixo à cima, como se o<br />

homem fosse um alienígena, um extraterrestre, ou será que<br />

estavam pensando que ele fosse o Michael Jackson, o<br />

Nkwame Kruman, ou o Tshombé?<br />

...Das Fitas, estava-se nas tintas.<br />

Tendo um dos olhos firmemente fixado nas suas duas<br />

kimbetas, com o outro ia observando os carros e as<br />

pessoas que passavam ali a sua frente, mas volta e meia<br />

colocando mais um olho na observação das mulheres.<br />

No final do dia, posto já em casa, Das Fitas teve<br />

a sensação que um dos olhos ficara maior que o outro, um<br />

pouquinho desajustados, mas a suavizar-lhe tudo isso,<br />

veio depois o ajuste de contas dos novos kwanzas, que os<br />

11


membros efectivos do Conselho Consultivo imediatamente<br />

trataram de conferir.<br />

O resultado das vendas ultrapassara as<br />

expectativas. Saíra o dobro do valor calculado da<br />

macroeira, e do litro de óleo alimentar, e ainda sobrara<br />

quase meio litrito do óleo já utilizado.<br />

Arrependeram-se, entretanto, por terem vendido os<br />

sacos de macroeira, com o valor dos quais haviam alugado<br />

a cubata. Se pudessem voltar atrás, teriam se enfiado<br />

ainda na casa do primo Kizua, mas andando ambos em<br />

emulação socialista, Kizua tinha já então igualmente duas<br />

kimbetas e quatro rebentos a viverem em duas cubatas<br />

gémeas-siameses, no bairro do Nguanhá, também banhado<br />

pelo vale do Soroca, e nem sequer em tal hipótese pensar<br />

podiam.<br />

Das Fitas imaginava mesmo aquele camião que lhes<br />

trouxera da província todo carregado de macroeira, a ser<br />

descarregado ali na rua do Rei Ngola Kiluanje e logo logo<br />

molhado em tambores de duzentos litros e frito em enormes<br />

frigideiras do inferno, com uma enormíssima fila de<br />

transeuntes, ávidos em adquirirem infinitas quantidades<br />

de bombó frito, para revenderem lá onde fosse que<br />

estivessem indo. Imaginava até mesmo montar uma grande<br />

indústria de produção e comercialização de bombó frito,<br />

para distribuir por toda a cidade, pelas dezoito<br />

províncias do país, pelo continente africano, e exportar<br />

quiçá até mesmo para Portugal, União Soviética, França,<br />

Inglaterra e outras terras terrestres e extraterrestres.<br />

Imaginava-se ele próprio sentado num grande cadeirão a<br />

conferir o dinheiro, o kumbú todo, kibutos e kibutos de<br />

notas que no final de cada dia as mulheres trariam para<br />

casa, para ele o Manager, o Chairman, o Presidente do<br />

Conselho Consultivo, conferir, contar e tomar conta.<br />

Mas não tinham muito de que arrepender-se<br />

porquanto pouca ou nenhuma hipótese haviam tido para<br />

prescindirem da venda dos sacos de macroeira de onde<br />

saíra o dinheiro para o aluguel da cubata.<br />

Como prémio para as suas mulheres, nessa noite Das<br />

Fitas dividiu o seu corpo entre os das duas, para que no<br />

12


dia seguinte nenhuma ficasse com kikoto, com despeito da<br />

outra. E, de manhã cedinho, lá foram as duas kimbetas<br />

super alegres para o mercado do Tunga comprar bombó para<br />

fritarem na rua do Rei, sob o olhar sempre silencioso do<br />

marido.<br />

Passadas algumas semanas, vendo que o negócio do<br />

bombó frito ia de vento em popa, sem qualquer razão de<br />

queixa no relacionamento com as suas mulheres, nem no que<br />

havia entre ambas, tendo reunido os membros do Conselho<br />

Consultivo da sua família, o marido deliberou, usando da<br />

faculdade que lhe conferiam todas as linhas do direito e<br />

do torto de ele próprio sustenta-la, passar a vender<br />

kimbombo e kaporroto aí mesmo em casa.<br />

Quando o primeiro cliente deu entrada ao quintal<br />

de Das Fitas, este ficou bastante condoído com o aspecto<br />

físico do homem. Alto e estreito, tinha uns olhos muito<br />

encarnados, os gestos demorados de um ressacado que bebeu<br />

em demasia no dia anterior, as vestes amarrotadas e meio<br />

sujas, e umas sapatilhas 4x4 enlameadas e rebentadas nos<br />

bicos.<br />

Das Fitas quase se arrependera por ter montado o<br />

negócio, mas para que não se arrependesse ainda mais,<br />

quando depois a fome e outras necessidades lhe haveriam<br />

de apertar nos colarinhos, tratou de engavetar os seus<br />

sentimentalismos e foi imediatamente atender o cliente,<br />

logo seguido por mais três, afinal todos amigos e cada um<br />

parecido com o outro, tendo o primeiro pedido um pouco de<br />

kimbombo, para provar, ao que se seguiu a reserva de<br />

quatro católicos garrafões.<br />

—— Esta kissara é que está fixe!—— exclamou um<br />

deles.—— A daquela mbôa Madó, está parece que meteram lá<br />

lipa.<br />

—— Quem? Da Madó?—— interrogava um outro. ——<br />

Aquela bruxa, puta de merda, kissara do primeiro dia fica<br />

parece que já tem uma semana!?<br />

—— É mesmo! Põem lá lipa! —— asseverava ainda um<br />

outro. —— Compram Vallium para pôr nos bidões, uma neca<br />

só um gajo fica já bem tonado, onde é que já se viu?...<br />

13


Sendo a primeira vez que fazia, Das Fitas<br />

preparara apenas meio bidon, cerca de cem litros.<br />

Calculadas as contas, nem mais um litro devia sair do<br />

bidon. Estava todo vendido.<br />

Quando outros clientes apareceram e Das Fitas deulhes<br />

a informação de que já não havia mais kimbombo,<br />

ficaram furiosos com a notícia.<br />

acabou?<br />

—— Então, inda agora que abriram também já<br />

—— Fizemojo só kametade do bidon, minhas mano. ——<br />

informou Das Fitas. —— Vamojo já montare bidon inteiro.<br />

—— E não sobrou nem só uma caneca lá no fundo do<br />

bidon, kota? —— insistiu um dos clientes.<br />

—— Nada, mano, compraram memo todo o bidon...<br />

—— O quééé??!!! Todo o bidon?! Agora é que estamos<br />

fodidos! —– exclamou um dos clientes, em modos de<br />

desilusão e batendo já em retirada, seguido dos outros.<br />

Com toda essa demanda, Das Fitas pensou que mesmo<br />

enchendo um único bidon, não seria suficiente para<br />

satisfazer a clientela, pois além dele só mais uma casa<br />

naquelas cercanias vendia kimbombo, e ainda assim as<br />

pessoas andavam de cima à baixo à procura de bebida à<br />

altura dos seus parcos bolsos.<br />

A segunda montagem, foi já de duzentos litros de<br />

kimbombo. De manhã muito cedo, Das Fitas despejou um<br />

quilo de açúcar no bidon, e depois de remexer muito bem o<br />

conteúdo com a ajuda de um mexerico comprido, provou o<br />

produto e tendo achado que estava óptimo para ser<br />

vendido, tapou o bidon com um saco de plástico. Das Fitas<br />

veio depois para o quintal e colocou a embalagem vazia de<br />

fermento de pão, no extremo da ripa que suportava a porta<br />

do quintal.<br />

Numa mesinha de madeira junto a uma das portas,<br />

colocou algumas canecas de vidro, uma tigela com água, e<br />

14


na saliência de um prego espetado na parte superior da<br />

porta, fixou um maço vazio de tabacos, sinal de que havia<br />

também cigarros à venda.<br />

E sem mais delongas, foram logo aparecendo os<br />

primeiros clientes do dia, um atrás do outro, como se<br />

estivessem andando em fila indiana.<br />

—— Bom dia, kota! Como é que passou a noite? ——-<br />

cumprimentou o primeiro cliente a transpor a porta.<br />

Antes mesmo de acabar de responder ao primeiro, já<br />

outros cumprimentos caiam sobre Das Fitas e a todos foi<br />

respondendo sempre com o rosto sorridente.<br />

—— Kota, ouvimos a fuma da tua kissara... —— dizia<br />

um dos primeiros clientes. —— O kota vai ver só como é<br />

que os minzangalas daqui chupam a kissara, vai ver!. Pra<br />

já, kota me reserva já aí um garrafão. A malta só bebe já<br />

garrafão, uma caneca, uma caneca nos dá muita maçada.<br />

—— Ai-é? —— indagou Das Fitas.<br />

—— É verdade, kota. —— e reparando no maço vazio<br />

de tabacos pendurado na parede, —— Também tem náite,<br />

kota?<br />

—— Sim, temos.<br />

O cliente passou em revista todos os bolsos que<br />

trazia e finalmente retirou de um deles uma caixa de<br />

fósforos e um maço vazio.<br />

outro.<br />

—— Kota, arranja só aí ―jogador‖ de dez.<br />

—— Me traz também de vinte, kota. —— aproveitou um<br />

Das Fitas foi para dentro, tendo regressado<br />

instantes depois com um maço de tabacos. Ao entregar os<br />

cigarros de dez novos kwanzas ao primeiro solicitante,<br />

este segredou-lhe:<br />

—— Kota tem de passar a vender também uns pexitos.<br />

15


—— Pexitos, como?!—— indagou-lhe Das Fitas.<br />

—— Peixe frito, kota, com jindungo!<br />

—— Ai-é?!<br />

—— E mandioca cozida também, kota. —— acrescentou<br />

um outro.<br />

outro.<br />

—— E kapuka também, kota. ——acrescentou ainda um<br />

Falando com os seus botões, Das Fitas concluiu que<br />

a vida em Luanda era afinal fácil. A questão estava em se<br />

saber andar, encontrar um meio de vida, e pimbas!...<br />

—— Me deixa só aí umas jiguitas, Kota Café. ——<br />

pediu ao primeiro comprador de cigarros, um dos clientes<br />

que apresentava muitos sinais e cicatrizes no rosto e nos<br />

braços.<br />

—— A jiguita é minha! —— interrompeu um outro, tão<br />

jovem quanto o anterior. —— O kota está andar comigo,<br />

como é que a jiguita vai ser tua?!<br />

—— Olha, kota Café, esse miúdo Capriquito, desde<br />

ontem já que vem a se meter comigo! Eu sou mbora ntão<br />

frustrado, não me custa nada te arrebentar com uma ngala<br />

dos cornos e ir te cumprir! —— dizia, enfurecido,<br />

estoutro jovem ao mesmo tempo que se levantava do bloco<br />

de cimento onde encontrava-se sentado, para ir ao ataque<br />

daqueloutro.<br />

Vendo o progresso do enfurecido, Capriquito pôs-se<br />

imediatamente de pé, tirando da cintura, uma chave de<br />

fendas comprida e pontiaguda.<br />

Ante o perigo iminente, Das Fitas e kota Café,<br />

seguraram cada um dos rapazes, reconduzindo-os para os<br />

seus respectivos lugares.<br />

16


Das Fitas, foi logo para dentro de casa saindo de<br />

lá com dois cigarros, oferecendo um a cada um dos<br />

rapazes.<br />

—— Num se matam só puro causa ndu tabacos, minhas<br />

fírios.—— disse Das Fitas ao entregá-los os cigarros.<br />

—— Porra, nós estamos mesmo fodidos, —— dizia o<br />

kota Café —— Onde é que já se viu duas pessoas a quererem<br />

se bondar só por causa duma merda de jiguita, onde? Você<br />

não sabe se o outro é tuberculoso ou não. Só já o próprio<br />

tabaco já te faz mal, lhe acrescentas mais o micróbio do<br />

outro, como é que você fica?...<br />

—— O bacilo de Koch, kota.—— acrescentou um<br />

cliente, aparentemente com mais estudos e com ar mais<br />

sofisticado que os demais.<br />

—— Bacio de quê?! —— interrogou ainda um outro<br />

cliente, com aspecto de lúmpen.<br />

—— Bacilo de Koch. —— repetiu o Estudioso.<br />

—— Qual é bacio de cocó qual é quê! O que traz<br />

tubú, é a lucutina do tabaco, rapaz! —— dizia com muita<br />

autoridade o outro. —— A lucutina é um suco tipo<br />

lacatrão, tás a ver, que cola nos purmãos, tás a ver.<br />

Aquela merda começa a te chupar, a te chupar, e ficas bem<br />

escafebele, bem fininho, tipo musquito, tás a ver?...<br />

O outro, apenas estava quieto, a ouvir, sem<br />

qualquer possibilidade de ver as mentiras destoutro. Mas,<br />

reparando ao seu redor, achou que não podia deixar que<br />

aquele lúmpen lhe derrotasse logo ali à frente de todos.<br />

—— Estás a falar à toa! —— interrompeu ele.<br />

—— Estou a falar à toa, eu?! —— retorquiu,<br />

ofendido o outro, dando já sinais de enfurecimento.<br />

—— Pra já, você estudou até que classe?—— desafiou<br />

o Estudioso.<br />

17


—— Porra, aqui ninguém está a falar de classes,<br />

como é então você, estás armado em mais estudante que os<br />

outros ou quê?<br />

—— Eu não estou armado em nada. Só estou a dizer<br />

que estás a falar à toa. —— insistiu o Estudioso.<br />

—— Mas também me perguntaste até que classe é que<br />

eu estudei, num perguntaste? Eu tenho a minha décimaterceira,<br />

tás a ouvir? Num pensas que eu não estudei, a<br />

merda da tropa é que fodeu a minha vida, tás a ouvir?<br />

Eu...<br />

—— Éééh, chega!!! Vamos parar já!!! —— decretou o<br />

kota Café, interrompendo o Lúmpen, que de imediato ficou<br />

calado. —— Vocês não podem manter uma conversa à vontade,<br />

sem se ofenderem? O tabaco traz sim tuberculose, mas<br />

também a diamba! —— prosseguia o kota Café, reparando que<br />

o Lúmpen baixara a cabeça ao pronunciar a última palavra.<br />

—— A nicotina da diamba é que é mais forte. Por isso, o<br />

diambeiro tem que papar bem, tomar muito leite.<br />

—— É verdade, kota. —— apoiava o Lúmpen, como que<br />

a disfarçar-se da carapuça atirada pelo kota Café.<br />

Nessa altura, o quintal pequeno que era,<br />

encontrava-se já quase cheio de clientes, jovens e<br />

adultos e velhos de ambos os sexos, cada qual com a cara<br />

mais machucada que a do outro, cada um com vestuário e<br />

calçado segundo a sua maneira e estilo, cada um com a sua<br />

personalidade, mas todos eles evidenciando o quão<br />

desgraçadas e tristes eram as suas vidas.<br />

Noutro canto do quintal, a conversa era outra:<br />

—— Você sabe o que é um comando? —— perguntava ao<br />

outro, um dos clientes que fisicamente aparentava ser ou<br />

ter já sido militar. —— Um comando, é todo o filho da<br />

puta, filho de pobre, filho de camponês, parido no<br />

musseque ou num quimbo lá qualquer do mato, que é<br />

arrancado da casa dos seus pais, ou do carinho da sua<br />

mulher, para ir entregar a puta da sua vida na puta duma<br />

bala, dum obus, ou duma mina qualquer lá da puta da<br />

frente de combate, ouviu?<br />

18


—— É fodido, kota. —— apoiava, com a voz condoída<br />

o outro.<br />

—— Fodido, é favor! —— exclamou o Comando —— O<br />

mais fodido é não encontrar lá na frente de combate<br />

nenhum filho da puta de filho dum ministro, dum deputado,<br />

ou dum dirigente qualquer, que só vão para a tropa fazer<br />

recruta dum coro, rodeados de bifes, perfumes, leites e<br />

putas, para serem depois colocados nos gabinetes das<br />

cidades, ao pé dos papás, a espera que estes se reformem<br />

para lhes substituir no lugar, sabias?...<br />

Num outro canto do quintal, a conversa era<br />

diferente:<br />

—— Se não matassem o Nito Alves, ele é que havia<br />

de endireitar esta merda!<br />

—— É verdade! —— apoiava um outro —— Você leu o<br />

livro dele ―As Dez Teses da Minha Defesa‖?, porra, aquele<br />

muadiê tinha, iá?<br />

—— Iá, eu li! —— respondeu o outro —— Numa das<br />

teses ele dizia que é necessário descer ao povo, para<br />

subir com o povo. E o que é que esses filhos da puta do<br />

governo fazem? Descem ao povo, se é que descem, mas é<br />

para espetarem kibiona no cu do povo...<br />

—— É mesmo verdade! —— apoiava o outro.<br />

—— É verdade, é verdade, mas neste país, se alguém<br />

fala a verdade é logo preso ou morto. Até sobre a puta da<br />

perna que perdi lá no Cuito Cuanavale, não posso falar<br />

nada! —— dizia um outro cliente, levantando as calças<br />

para mostrar a prótese —— Está aqui esta merda, é<br />

mentira, não é verdade?!...<br />

No círculo do kota Café, a conversa rondava à<br />

volta de um outro assunto:<br />

—— Quem te disse, onde é que você leste, qual é o<br />

documento que viste, que te diz que o kota Elias é o rei<br />

19


da música angolana? —— perguntava o Lúmpen ao Estudioso,<br />

pelos vistos ambos já mais calmos e concordes.<br />

—— É pá, documento, documento, eu não posso dizer<br />

que vi, nem sei se existe algum. Ele pode não ser rei de<br />

jure, mas de facto ele é. —— afirmava o Estudioso.<br />

—— Não estou a entender o que tás a dizer, rei de<br />

juri, rei de fato, o que é que isso quer dizer então? ——<br />

perguntava ainda o Lúmpen.<br />

—— Você me disse ter estudado até a décimaterceira<br />

classe, não sei em que escola,... como é que não<br />

sabes falar sobre assuntos tão elementares?<br />

—— É pá, mô kamba, vamos deixar de nos complicar<br />

outra vez. Vamos só ficar aqui a discutir, a nos<br />

ofendermos, e o quê que cada um de nós vai ganhar?<br />

—— Nada. —— respondeu o Estudioso.<br />

—— É melhor chuparmos só o nosso kimbombo. ——<br />

concluiu o Lúmpen.<br />

Mas o kota Café, que muito discretamente seguia a<br />

conversa entre os dois, interviu logo:<br />

—— Mas se nós não falarmos aqui sobre o que se<br />

passa no nosso país, onde é que vocês pensam que poderão<br />

falar? Na Assembleia do Povo? No confessionário da<br />

igreja?<br />

—— O kota tem razão. —— disse o Estudioso —— Não<br />

sei onde é mesmo que li que a um povo pode esconder-se<br />

toda a verdade durante algum tempo, esconder-se alguma<br />

verdade todo o tempo, mas é impossível a ele esconder-se<br />

toda a verdade todo o tempo.<br />

—— Isso mesmo, rapaz. —— disse o kota Café —— Se<br />

eu por exemplo te dizer que Agostinho Neto chegou a<br />

apanhar uma sova em Kinshasa, quando o MPLA foi<br />

escorraçado de lá, vocês poderão não acreditar...<br />

20


—— O que é?! —— Agostinho Neto apanhar sova em<br />

Kinshasa? —— indagou o Lúmpen.<br />

—— Isso se calhar nem vem registado em nenhum<br />

documento do movimento, mas qualquer militante dessa<br />

época teve conhecimento disso, mas como pensam que isto<br />

talvez manche a figura do Presidente, então eles ocultam<br />

tacitamente tudo quanto é ou pensam que é ou tenha sido<br />

uma nódoa para o historial do movimento.<br />

—— O que o kota está a dizer, é semelhante ao que<br />

se passou na União Soviética. Agora que estão a falar de<br />

glaznost, perestroika, perestroika, é que está vindo ao<br />

de cima muita casca de jinguba, muito lixo atirado lá no<br />

mar alto deles.—— dizia o Estudioso, sob o olhar<br />

silencioso e pasmado do Lúmpen e de muitos outros<br />

clientes. —— Existe uma fotografia tirada na Praça<br />

Vermelha, junto ao Kremlin, onde aparecia para além de<br />

Lénine, muitos outros dirigentes como Stalin e tantos<br />

outros que à medida que iam cagando fora do bacio, iam<br />

sendo suprimidos daquela fotografia...<br />

—— Qualquer dia a fotografia ficava sem ninguém! —<br />

— acrescentou o kota Café.<br />

—— Éh! Lá isso é verdade!—— prosseguia o Estudioso<br />

—— Mas os factos não deixam de o ser, quando os seus<br />

suportes são suprimidos ou destruídos. É verdade que<br />

quando morre um mais-velho, é mais uma biblioteca que<br />

também se fecha, mas mesmo que ele nunca em toda a sua<br />

vida tivesse aberto a boca para dizer ―kizua ó xi ietu ió<br />

ndo biluka‖, ou coisa parecida, ele teria chegado a essa<br />

conclusão pelos factos que se lhe davam a constatar.<br />

Porque tudo tem as suas leis, e as leis da vida não são<br />

como as leis humanas, que são feitas mais ou menos de<br />

acordo com as suas necessidades de determinado tempo, de<br />

determinado grupo ou classe social no poder...<br />

Nessa altura, a maior parte dos clientes<br />

encontrava-se mais atenta à prosápia do Estudioso, que<br />

prosseguia dizendo:<br />

—— Eu, por exemplo, fiz tudo quanto me foi<br />

possível para não ir à tropa. Numa situação que eu acho<br />

21


normal, eu até iria, sob certo ponto de vista cívico e<br />

social, o que não quer dizer que não concorde com as<br />

Testemunhas de Jeová, por exemplo, ou com qualquer outra<br />

pessoa que de consciência se queira abster de matar, de<br />

tirar a vida a outrém. Então para quê que se é signatário<br />

de uma declaração dos Direitos Universais do Homem, se<br />

depois mandas matar aquilo que assumiste ser o mais<br />

sagrado de tudo?...<br />

—— A vida é complicada.—— acrescentou o kota Café<br />

—— Os Jeovás quase praticam o suicídio, quando se abstêm<br />

de receber transfusão de sangue...<br />

—— O que é considerado crime numa determinada<br />

sociedade, ou numa certa época, pode deixar de o ser<br />

noutra sociedade ou noutra época, e sob outro ponto de<br />

vista. —— retorquiu o Estudioso —— O suicídio dos<br />

Kamikazes, os haraquiris, a eutanásia e outras práticas<br />

que a história tem registado, têm os seus valores<br />

diferenciados em função do tempo, da época, do lugar,<br />

enfim, da interpretação e do intérprete.<br />

A apreciar a conversa a partir do sítio em que se<br />

encontrava sentado, o Comando pôs-se logo a recordar o<br />

seu falecido amigo e ex-colega da recruta, o Pirangú.<br />

Conhecera-o muito tempo antes de terem ido<br />

apresentar-se no posto de recrutamento do Rangel. Era<br />

então conhecido por Zé Manel, era um rapaz alto, de pele<br />

achocolatada, cabelos lisos, pretos. Tinha um pouco de<br />

sangue cabo-verdiano no seu sangue, e na escola, ali no<br />

Ngola Mbandi, o rapaz era muito animado e simpático.<br />

Nenhum sinal de violência ou de qualquer outro desvio<br />

psicológico. Tinha a voz meiga, suave. Era uma doçura de<br />

rapaz...<br />

—— Quando depois de muitos anos, o rapaz voltou ao<br />

bairro, —— contava o Comando, —— meus manos, aquilo era o<br />

quê?! ... Era mais um monstro que uma pessoa!...<br />

—— Tinham que lhe dar um banho, conforme dizem as<br />

mais velhas, para lhe tirarem os espíritos maus, os<br />

kalundús.—— acrescentou um dos clientes.<br />

22


——É verdade. Eu que estou aqui —— prosseguia ele<br />

—— fui também comando das tropas especiais. Se pudesse<br />

vos contar tudo o que nós vimos e fizemos, vocês não<br />

iriam acreditar. Nem tudo o que nós fizemos, fizemos<br />

conscientes do que estávamos fazendo. Na guerra comete-se<br />

barbaridades, chacinas, faz-se coisas que nem mesmo Diabo<br />

tem coragem de fazer. No dia seguinte, quando estiveres<br />

já mais sóbrio e voltares para visitar o local onde<br />

andaste a fazer das tuas, até pensas que foram os outros<br />

que cometeram tudo aquilo, e culpas os outros. Cego de<br />

tanta raiva, ainda vais ao ataque dos outros, querendo<br />

que eles paguem pelos erros que você mesmo cometeu.<br />

Nesse ponto o Estudioso pôs-se a imaginar o quão<br />

admirável é o modo como os actos que praticamos se<br />

repercutem, tarde ou cedo em nós mesmos. Pensou nas<br />

relações de causa e efeito, nos seus livros de filosofia<br />

ioga, com suas teorias sobre o dharma e o karma, pensou<br />

ainda nos muitos livros de Terça-Feira Lobsang Rampa, e<br />

na vasta biblioteca de livros que possuía, com uma boa<br />

parte deles furtados das livrarias e tabacarias da cidade<br />

de Luanda, e que por necessidade da vida, tivera de<br />

vendê-los quase todos ao João Alfarrabista, ali na Terra<br />

Nova.<br />

Sentado num bloco de cimento e a beber kimbombo, o<br />

Estudioso perguntava-se sobre a utilidade de lhe terem<br />

nascido, dado educação, e nessa altura encontrar-se no<br />

estado e nas condições em que se encontrava. Os muitos<br />

anos de formação em Cuba, custeados pelo Estado, de nada<br />

valiam...<br />

Por volta das dezasseis horas, o bidon de kimbombo<br />

esticou as pernas, e cada um dos clientes foi igualmente<br />

aos poucos retirando as suas em direcção a outros<br />

destinos. A noite foi chegando de mansinho, trazendo as<br />

duas kimbetas de Das Fitas de volta à casa.<br />

Depois do jantar, o Conselho Consultivo da Família<br />

reuniu em sessão ordinária, e tendo concluído que nesse<br />

dia houvera também dikomba, tanto na venda do kimbombo<br />

quanto na de bombó frito, deliberou a partir daí iniciarse<br />

com a montagem da indústria doméstica de kaporroto.<br />

23


Das Fitas comprou uma serpentina, dois tambores de<br />

duzentos litros, alguns garrafões vazios, e os<br />

ingredientes como, açúcar, fermento, farelo de milho, e a<br />

água acarretada pelas suas mulheres.<br />

Num canto do quintal, com a ajuda de algumas<br />

chapas de zinco achadas sabia ele onde, Das Fitas<br />

construiu então a sua pequena destilaria de kaporroto.<br />

Desde o dia da preparação da bebida ao da véspera<br />

da inauguração da destilaria, que a sua cabeça lhe dizia<br />

que algo estava faltando. O homem pensou, matutou, e<br />

apenas no quarto dia é que a mana Maria, a primeira<br />

mulher, recordou-lhe que faltava o combustível para a<br />

destilação, a ter lugar na madrugada seguinte.<br />

O tempo era escasso e a necessidade premente.<br />

Aflito, Das Fitas ainda pôde descarregar uma boa carga da<br />

sua raiva sobre as duas mulheres, por não lhe terem<br />

recordado nem terem elas próprias pensado sobre o que<br />

faltava.<br />

Como era já noite e impossível de adquirir lenhas<br />

no mercado, Das Fitas acompanhado das suas duas kimbetas,<br />

não pouparam esforços, e passando um pente que nem<br />

precisava de ser fino, nos Môcos de lixo que abundavam<br />

pelo bairro adentro e arredores, apanharam penicos,<br />

cadeiras, baldes, cestos, banheiras, sacos, tubos,<br />

mangueiras, tudo que de plástico fosse, e mais uns tantos<br />

bocados de madeira e papelão, que bem arrumados e<br />

amarrados, trouxeram para a destilaria. No regresso<br />

algumas pessoas ficaram parvamente a olhar para o trio e<br />

para a tão estranha carga que acarretavam. Mas para onde<br />

estavam indo aqueles três malucos? Seriam mesmo malucos?<br />

Talvez algumas pessoas, as mais perspicazes e de<br />

vistas largas, tivessem encontrado um ponto comum em tudo<br />

aquilo e achado o enigma. Talvez não. O que Das Fitas não<br />

precisava de encontrar ou de achar foi uma tesoura nova<br />

in folio bonita e esterilizada, para cortar a fita da<br />

inauguração da destilaria do kaporroto.<br />

Sem esperar pela chegada da madrugada, que era a<br />

altura em que a maior parte das pessoas ainda dormia e<br />

24


não haveria então ninguém a resmungar-se pelo fumo, a<br />

bebida começou logo a ser destilada, com os três a<br />

revezarem-se na vigília e colocação da lixarada<br />

combustível debaixo da panela-caldeira, enquanto um ou<br />

outro aproveitava para tirar um sono de pouca dura, mas<br />

indispensável à retêmpera dos seus corpos.<br />

Numa dessas sonecas, Das Fitas, sonhou que a<br />

destilaria tinha atingido o tamanho da refinaria de<br />

petróleo de Luanda, e ele, as suas duas mulheres, mana<br />

Maria e mana Ana, e mais alguns membros do governo,<br />

dentre os quais o seu primo-como-irmão, encontravam-se de<br />

pé, juntos à Sua Excelência o Senhor Dono da República,<br />

com uma enorme tesoura dourada na mão esquerda,<br />

preparando-se para cortar mais uma das muitas fitas que<br />

só ele sabia tão cientificamente cortar. Das Fitas<br />

sabendo que o Senhor Dono da República não era canhoto,<br />

saiu do seu lugar e foi cafetelar aos ouvidos de Sua<br />

Excelência, que tinha a dourada tesoura em mão errada. Em<br />

resposta, Sua Excelência lhe cafetelou que aquilo não<br />

fazia mal nenhum. Das Fitas insistiu que fazia sim, pois<br />

o kaporroto podia sair fraco e quase sem missanga alguma,<br />

o que afugentaria a sua clientela para outras e melhores<br />

paragens. Tinha mais: o kaporroto até podia sair queimado<br />

e a cheirar flato, bufo, o que seria mais grave ainda,<br />

porquanto afugentaria não só a clientela, mas igualmente<br />

a vizinhança dos arredores, ou na pior das hipóteses,<br />

estes é que se sentindo traídos pela qualidade do produto<br />

e seu cheiro nauseabundo daí proveniente, resolveriam<br />

tundar dali Sua Excelência o Senhor Dono da República,<br />

ele mesmo Das Fitas, suas duas mulheres, os membros do<br />

governo e outras embaixadas acólitas ali estacionadas.<br />

No auge da silenciosa mas forte discussão entre<br />

Das Fitas e o Dono da República, este, furioso, agarrou<br />

nos colarinhos daquele, o que prontamente mereceu a<br />

intervenção dos guardas pessoais de Sua Excelência o<br />

Senhor Dono da República.<br />

Nesse momento, mana Anita veio acordar Das Fitas,<br />

pois era altura de alternância na vigília da destilação.<br />

Admirado e espantado com o sonho que acabava de ter, Das<br />

Fitas interrogou-se sobre o seu significado, seu bom ou<br />

25


mau presságio, mas não achando resposta satisfatória, foi<br />

pôr as mãos no serviço.<br />

Finda a destilação, a mistura e o engarrafamento<br />

do kapuka, Das Fitas pôs de parte dois dos seis<br />

garrafões, enviando os restantes para serem despachados<br />

no mercado do Roque Santeiro.<br />

De manhã cedinho, as duas mulheres levando na<br />

cabeça as banheiras que continham os garrafões, já no<br />

interior do bairro Sambizanga, e não muito distantes do<br />

mercado, foram interceptadas por dois agentes da polícia,<br />

que de repente surgiram de um beco:<br />

—— Aí as duas cidadãs! —— chamou um deles.<br />

Mana Maria e mana Anita, quase que tropeçaram,<br />

assustadas pelo súbito aparecimento dos polícias, seguido<br />

daquela ordem dada em voz arrogante e ameaçadora.<br />

Quando as duas senhoras se aproximaram deles,<br />

repararam que no interior do beco havia já, afinal, muita<br />

gente com as suas cargas ao pé de si pousadas no chão.<br />

—— O que é que vai aí dentro, poisem as banheiras!<br />

—— ordenou o outro agente, no mesmo diapasão que o do<br />

anterior.<br />

—— Estamojo levare só kabucado ndo kapuka, mano. —<br />

— disse em voz trémula mana Maria.<br />

—— Kaporroto??!!—— exclamou o outro agente ao<br />

mesmo tempo que trocava um sorriso e um olhar tácitos com<br />

o colega —— Vamos, entrem depressa aí no beco! —— ordenou<br />

ele.<br />

Antes mesmo de as duas mulheres de Das Fitas terem<br />

acabado de entrar no beco, já os agentes mandavam parar<br />

mais dois rapazes, ambos com um porte físico deveras<br />

respeitável e cada um com uma grande sacola à tiracolo.<br />

—— Aí, os dois cidadãos! —— gritou um dos<br />

polícias.<br />

26


Os rapazes entreolharam-se, murmuraram entre si<br />

qualquer coisa, mas continuaram com o mesmo passo que<br />

traziam. Quando iam justamente a passar em frente dos<br />

agentes, um destes manipulou a AKA, ao que se seguiu a<br />

paragem dos rapazes.<br />

——O senhor polícia não tem maneiras de mandar<br />

parar as pessoas? —— perguntou em voz alta e destemida um<br />

dos rapazes.<br />

O polícia reparando bem para o aspecto físico dos<br />

rapazes, respondeu, em tom menos arrogante:<br />

—— Não tive nenhuma falta de maneiras, apenas<br />

mandei-vos parar.<br />

—— O senhor nem cumprimenta, nem nada, é só dizer<br />

«aí, os dois cidadãos!», como se só isso bastasse? ——<br />

indagou o outro jovem.<br />

Enquanto o clima à volta dos polícias e dos dois<br />

rapazes ia subindo de tom, no interior do beco, as<br />

pessoas parecendo animar-se com a cena, aumentavam<br />

igualmente o tom do que murmuravam:<br />

—— Não se deixem, são polícias gatunos!<br />

—— Éh! Nos meteram aqui no beco, pra quê? Temos<br />

que ir fazer as nossas vidas!<br />

—— Estão a nos pedir dinheiro, são polícias<br />

bandidos!<br />

Dir-se-ia que uma parte, a dos rapazes, estava<br />

dando ânimos de rebeldia à outra e vice-versa. Os dois<br />

rapazes tendo se identificado como militares, recusavamse<br />

entretanto, a declarar ou a mostrar o que havia dentro<br />

das sacolas.<br />

—— Nós aqui não vamos abrir sacola nenhuma! ——<br />

dizia um dos rapazes.<br />

—— Se quiserem, podemos ir até à esquadra! ——<br />

dizia o outro.<br />

27


No beco, de repente todos revoltaram-se:<br />

—— É melhor! Vamos à esquadra!<br />

—— Sim! Vamos mesmo! São gatunos!<br />

Com esse barulho, os moradores que antes apenas<br />

estavam mirando tudo a partir das suas portas ou das<br />

janelas, saíram em grande número para a rua, e juntaram<br />

as suas vozes às dos revoltados:<br />

—— Esses madalenas são gatunos!<br />

—— Vão mesmo na esquadra!<br />

—— Gatunos do povo, vão roubar o governo que não<br />

sabe vos pagar!<br />

—— Polícias gatunos!<br />

Com a confusão e o número de pessoas em crescendo,<br />

enfurecido, um dos agentes fez um tiro para o ar, mas ao<br />

contrário do que talvez esperasse, as pessoas, mormente<br />

as residentes, aumentaram ainda mais o barulho. Tirando<br />

proveito da situação, todos quantos encontravam-se no<br />

beco sob a custódia dos agentes, confundindo-se com os<br />

residentes foram aos poucos, matreiramente se enfiando e<br />

se esgueirando noutros becos que naquela rua desaguavam,<br />

restando apenas os dois rapazes militares caminhando os<br />

quatro em direcção à esquadra da polícia, não muito<br />

distante dali.<br />

Em casa, Das Fitas estava à braços com a venda do<br />

kapuka e do kimbombo, tendo o quintal a rebentar de<br />

clientes pelas costuras. Até mesmo os beiços da porta da<br />

entrada principal não mereceram qualquer piedade dos<br />

bebedores. Era ele lá dentro, ele cá fora, ele para o<br />

kapuka, ele para o kimbombo, ele para o cigarro, e até<br />

para o peixe frito apenas ele lá estava. Em tudo era o<br />

homem. Era muito poder concentrado numa só pessoa, mas<br />

não tinha como sair de tal situação, com as duas mulheres<br />

em missão de serviço, e nenhum dos pequenos ali presentes<br />

capaz de o ajudar naquele ministério.<br />

28


Sentados no mesmo banco, num dos cantos do quintal<br />

estavam o kota Café, o Capriquito, o Lúmpen, e o<br />

Estudioso.<br />

—— O meio não quer dizer nada, kota Café. —— dizia<br />

o Estudioso —— A esta hora estamos a chupar aqui o nosso<br />

kapuka, na cidade o filho do ministro está a injectar<br />

droga no sangue. Por quê que nós e eles fazemos isto? O<br />

que é que existe de comum, o que é que há subjacente ao<br />

impulso que nos leva, eles e nós, a nos agarrarmos ao<br />

kapuka, à cocaína, ao kimbombo, à liamba, à tudo o que é<br />

droga? O que é?...<br />

Ninguém ousou responder, e o Estudioso prosseguiu:<br />

—— Tenho mulher, três filhos e uma mãe já velha<br />

para sustentar. Tinha perto de mil e quinhentos livros na<br />

minha biblioteca, que às vezes quando a fome obrigava,<br />

tinha de tirar uns tantos para vender e comprar comida,<br />

vejam!, para comprar comida! Isso é vida? Isto é viver?<br />

Os filhos dos endinheirados drogam-se para esquecerem-se<br />

de quê? Para terem coragem de enfrentarem o quê? O<br />

inimigo? A vida? Qual inimigo? Qual vida, se tudo lhes<br />

corre às mil maravilhas?<br />

E ninguém se atrevia a interromper. O Estudioso,<br />

com os kalundús em crescendo, continuou:<br />

—— Meus irmãos, será que as consequências da<br />

guerra atingem esses filhos das putas da superestrutura<br />

do mesmo modo como atingem a nós?<br />

—— Nunca mais! —— respondeu o kota Café.—— Até o<br />

lixo, o lixo que eles produzem é mais sofisticado que o<br />

nosso lixo aqui do musseque. Num contentor de lixo da<br />

cidade, você pode encontrar maçã, chouriço, computador,<br />

telefone, televisor, gravador, fralda descartável, roupa,<br />

dinheiro. Aqui na buala, quem? Onde é que vais apanhar<br />

isso? Aqui só apanhas lata podre, cocó de galinha e<br />

farrapos!<br />

—— É verdade!—— apoiava o Capriquito, enquanto os<br />

demais riam.—— Um dia eu estava mais os meus avilos na<br />

29


anda dos Combatentes, de repente estávamos só a ver uma<br />

mbôa a trazer uma bandeja com um carabaixo inteiro e bem<br />

grelhado pronto a lhe despejar num contentor de lixo que<br />

estava ao nosso lado. Nós lhe berrámos: dona! dona! não<br />

faz isso, nos dá mbora! A mbôa nos deu a bandeja. Môs<br />

avilos, não queriam ver o gosto que aquilo não tinha!<br />

—— E estava podre? —— perguntou o Lúmpen.<br />

—— Qual podre, qual quê! Estava melhor do que<br />

antes de lhe assarem!...<br />

Num outro ponto do quintal, o Prótese pregava um<br />

outro sermão:<br />

—— A minha mbôa vende peixe frito, aqui mesmo<br />

junto da linha férrea.<br />

—— Ai-é?!—— admirava-se o amigo —— A minha,<br />

negócio dela é jinguba com bombó assado.<br />

—— Mas se esses gajos do ministério nos pagarem<br />

mesmo os nove meses de pensão em atraso, que eles nos<br />

prometeram, já vai dar pra lhe comprar uma máquina de<br />

fazer galetes.<br />

—— Ai-é?! O galete anda mesmo bem ?<br />

—— Quando o peixe está muito caro, lá na Moraia, a<br />

minha dama faz galetes, mas tem de alugar a máquina. O<br />

galete é que nos aguenta lá em casa.<br />

—— Porra, eu até admiro com este país. Com tanto<br />

mar de ponta a ponta, e o peixe ainda anda caro? ——<br />

indagava um terceiro cliente.<br />

Um cliente que encontrava-se de pé um tanto<br />

afastado do ponto em que se desenrolava a conversa,<br />

respondeu:<br />

—— Kota, eu sou puro marujo! Todo o peixe de<br />

Angola já está paiado!<br />

30


Todos os que acompanhavam a conversa puseram-se a<br />

rir. O marujo prosseguiu:<br />

—— Há muito segredo no alto-mar. Há pirataria, há<br />

tráfico, há guerra...<br />

outro.<br />

—— E a fiscalização das Pescas? —— interrompeu um<br />

—— Qual é o fiscal que não gosta de dinheiro?<br />

Quanto é que o estado paga a um fiscal?...<br />

Eram muitos os temas e os assuntos que os clientes<br />

abordavam lá no quintal. Das Fitas, às vezes, enquanto<br />

trabalhava, também ia pondo aqui e ali uma colher da sua<br />

opinião em cada conversa. Pegando uma deixa da conversa<br />

que decorria num dos grupos, noutro canto um dos clientes<br />

dizia:<br />

—— Essa do peixe vendido, faz-me lembrar aquela<br />

cena do ministro que tinha ido à União Soviética para<br />

assinar um contrato de pesca de dois anos. Antes da<br />

assinatura, os soviéticos lhe espetaram a ele e a toda a<br />

camarilha que lhe acompanhava bué de vodka, que nem viram<br />

como lhes espetaram mais um zero atrás do dois e o<br />

contrato acabou por ser de vinte anos! E ainda por cima<br />

bateram palmas!<br />

Todos meteram-se a rir.<br />

—— Por isso é que essa tal de expedição conjunta<br />

nunca mais acaba! —— acrescentou um outro cliente.<br />

—— Nem a expedição, nem a impedição de comermos o<br />

nosso bom cachucho, o nosso bom pungo. Nos dão a merda de<br />

peixe espada sem cabeça, toda lambuzada e depois de<br />

congelarem enviam para aqui pro zé-povito. Filhos das<br />

putas! —— acrescentava ainda um outro cliente.<br />

Metidas no meio do mercado, as duas mulheres de<br />

Das Fitas, tiveram ainda de ver passar muito avião no<br />

31


céu, antes de darem com o sítio da venda à grosso e à<br />

retalho do dito cujo produto.<br />

Um indivíduo a quem elas perguntaram aonde se<br />

comercializava o produto, prontificou-se logo a indicálas<br />

o sítio à troco de certo valor.<br />

Tão logo deram-se por perceber aos revendedores,<br />

na sua aproximação ao local, mana Maria e mana Anita<br />

viram-se de tal modo envolvidas por eles, que quase<br />

pensaram estarem sendo assaltadas:<br />

—— Já ocupei! Já ocupei! Já ocupei! —— gritava uma<br />

senhora, agarrando as banheiras que continham os<br />

garrafões de kaporroto.<br />

—— Aqui não há já ocupei! Elas é que sabem à quem<br />

é que vão vender. —— dizia uma outra, ajudando a pousar a<br />

banheira ao chão —— Nos dão ainda então um pouco de prova<br />

pra vermos como é que isto está...<br />

Surgiu imediatamente uma mão entregando um copo.<br />

Mana Maria tirou um pouco da bebida de cada garrafão, e<br />

deu à provar às duas interessadas.<br />

—— Está um pouco fraco!—— exclamou uma delas.<br />

Mais duas senhoras igualmente interessadas pediram<br />

para provar, porém uma das duas primeiras, replicou:<br />

—— Provar mais para quê? Será que nós que provámos<br />

não sabemos qual é o bom e qual é o mau kapuka?<br />

Ignorando o argumento da senhora, mana Anita<br />

serviu um bocado do garrafão e deu a provar à outra<br />

senhora.<br />

—— Este kapuka está sim forte! —— declarou ——<br />

Vamos aqui na minha barraca, eu vou pagar!<br />

—— Nós também vamos pagar! —— gritaram as duas<br />

primeiras ao mesmo tempo, puxando as duas kimbetas de Das<br />

Fitas para fora do cerco que já se havia formado, e<br />

afastando-se muito deste.<br />

32


Nessa hora, o mercado encontrava-se já em franco<br />

reboliço, com os vendedores ambulantes, os compradores e<br />

os trabalhadores raboteiros, cadiengueiros, gatunos,<br />

animais, carros, motorizadas, canhangulos, e tudo o mais,<br />

a cruzar-se em todas as direcção de todos os cantos.<br />

Acima de tudo isso, à bilionésimos de centímetros de<br />

altura girava uma fera, uma esfera, uma deusa chamada<br />

sol, a emitir todo o seu fogo e calor para o mercado,<br />

para as coisas no mercado, e para o corpo das pessoas no<br />

mercado.<br />

—— Nós vendemos bebida aí em baixo, é lá que está<br />

o dinheiro. —— disse uma das compradoras, seguida pelas<br />

duas mulheres de Das Fitas e pela outra que era, afinal<br />

amiga.<br />

—— Não é muito longe? —— perguntou mana Anita.<br />

—— Não; é mbora próximo. —— respondeu uma das<br />

compradoras.<br />

Embora não frequentassem com muita regularidade<br />

esse mercado, as duas kimbetas sabiam por demais das<br />

cenas de roubo, burla e até de morte, que lá se passavam.<br />

Mas talvez desconhecessem que a desonestidade e o crime<br />

usassem vestes mais versáteis e voláteis que as da<br />

honestidade e as da justiça...<br />

Tinham já deixado a área do mercado e encontravamse<br />

numa zona adjacente àquela, mas caracterizada por<br />

muitas casas e casotas, na sua maior parte feitas de<br />

chapas de zinco, papelão, plástico, e com uma confusão de<br />

becos a intermediá-las, tal que as duas kimbetas, ora<br />

indo para cima, ora para baixo, ora para a direita, ora<br />

para a esquerda, nem sabiam mais em que ponto da rosados-becos<br />

se encontravam.<br />

—— Maje o casa antão é onde é? —— indagava<br />

preocupada a mana Maria.<br />

—— É já aqui. —— respondeu uma das compradoras,<br />

empurrando uma porta que de repente apresentou-se à<br />

direita delas.<br />

33


Entraram as quatro mulheres num quintal pejado de<br />

jovens e adultos das mais diversas idades, estilos e<br />

posições dos dois sexos. Na realidade, a casa era um<br />

círculo de vários quartos, um ao lado do outro e com um<br />

vasto quintal ao centro. Ao fundo, sob a sombra de uma<br />

lona suportada por quatro paus, estava uma mesa à volta<br />

da qual estavam sentados vários clientes.<br />

Atravessaram o quintal e foram estacar-se junto à<br />

mesa. As duas compradoras ajudaram as mulheres de Das<br />

Fitas a poisar as banheiras ao chão, tiraram<br />

imediatamente os garrafões das banheiras e, pedindo a<br />

ajuda de um cliente, uma das compradoras levou os quatro<br />

garrafões para o interior de um dos quartos.<br />

—— O dinheiro está debaixo do colchão! —— disse a<br />

que ficou junto das duas mulheres.<br />

Entretanto, enquanto aguardavam, as duas kimbetas<br />

de Das Fitas ficaram entretidas a reparar no modo como<br />

muitas moças e senhoras espalhadas pelo quintal<br />

encontravam-se vestidas.<br />

—— Estou a ver que esta é uma casa de prostitutas.<br />

—— segredou mana Anita, em songo, aos ouvidos de mana<br />

Maria.<br />

—— É mesmo! Não estás a ver os quartos e os casais<br />

a entrarem e a saírem?<br />

A atenção das duas kimbetas, foi seguidamente em<br />

direcção à conversa daqueles clientes que estavam<br />

sentados próximo delas.<br />

—— Não te dei a minha chuxuta de favor! Os meus<br />

filhos e os meus irmãos lá em casa, precisam de comer! ——<br />

dizia uma jovem muito bonita e bem vestida, a um rapaz<br />

alto e robusto sentado ao lado dela.<br />

—— Eu já custumo te avisar, Chili. Aqui não há<br />

kilapi! Quer foder?: cu no chão, dinheiro na mão! ——<br />

afirmava uma outra jovem muito mais bonita que a<br />

anterior, sentada ao outro extremo da mesa. —— Porra,<br />

34


esses gajos pensam o quê?! Uma gaja também tem<br />

necessidades, tem filhos, tem marido matakassumuna, tem<br />

mãe para sustentar, temos de pagar mia do quarto onde se<br />

fodemos, ou pensam que é de favor? E ainda por cima,<br />

aparecem aqui esses filhos das putas dos comandos e dos<br />

polícias a quererem foder só de favor! Quem tem cuiudo,<br />

tesão dele a mais, que vá foder o governo, porra!<br />

Distraídas e buamadas com o que viam e escutavam,<br />

nenhuma das kimbetas de Das Fitas deu pela saída<br />

sorrateira da compradora que havia ficado com elas. Ao<br />

repararem no lugar aonde aquela se sentara, patavina de<br />

compradora lá viram, e muito espantadas dirigiram-se logo<br />

ao quarto para onde a primeira entrara com os garrafões,<br />

mas não encontraram lá vivalma.<br />

Reparando bem, descobriram que mais ao fundo do<br />

quarto uma das chapas encontrava-se solta, e abrindo-a<br />

depararam-se com o mesmo beco que ia dar à porta por onde<br />

haviam entrado.<br />

—— Agora é que nos burlaram muito bem! —— disse a<br />

mana Maria em alto e bom songo.<br />

—— Eu estava mesmo a desconfiar dessas duas! Não<br />

sei como foi também que nos distraímos... —— dizia a mana<br />

Anita.<br />

Saíram para o beco, entraram novamente para o<br />

quintal, indo para o fundo junto do rapaz que estava<br />

atendendo as bebidas. Talvez tendo já percebido o que<br />

estava acontecendo com as duas kimbetas, o rapaz esboçou<br />

logo um sorriso algo jocoso ao ver a aproximação delas.<br />

—— O que é que se passa, mamãs? ——antecedeu-se<br />

ele, com a cara cheia de sorrisos.<br />

—— Aqueres nduas mana que levaram nosso kapuka,<br />

num estamo lhes ver... —— informava a mana Anita.<br />

—— Ha, ha, ha! —— ria o rapaz —— O quê?! Aquelas<br />

duas que vieram convosco?! ... Ha, ha, ha!<br />

35


Outros clientes que encontravam-se aí perto,<br />

contagiados pelas gargalhadas do rapaz das bebidas,<br />

puseram-se também a rir, e de que maneira! As duas<br />

kimbetas, explicavam o que se passara:<br />

—— ... Eres nos faló moram aqui, um levou os<br />

garrafão para trazer a dinhero, a outro ficou aqui<br />

conojo, ndrepentemente fua!, dispareceu també! —— dizia a<br />

mana Maria.<br />

As pessoas à volta das duas kimbetas rebentavam os<br />

baixos ventres, de tanto rirem.<br />

—— Moram aqui? —— perguntou uma jovem, tentando<br />

controlar o seu riso.<br />

—— Nada! —— respondeu a mana Anita.<br />

—— Aquelas duas, também vêm só aqui fazer a vida<br />

delas. Aqui não mora ninguém!<br />

Maria.<br />

—— Uá-ué!!! O nosso kaproto!!! —— gritou mana<br />

—— Agora antão vamojo fazer comoé antão? ——<br />

indagava a primeira kimbeta de Das Fitas.<br />

—— Manas, —— dizia uma outra jovem —— é melhor só<br />

voltarem para a vossa casa...<br />

—— Uá-ué!!! —— gritou outra vez a mana Maria.<br />

—— Assim mesmo já vos deram do olho! —— continuou<br />

a jovem —— Vamos, pra vos acompanhar até na praça, se não<br />

vão só vos empaputar até nos biquini, nos bandidos aí<br />

nesses becos...<br />

Nessa altura, havia muito que o sol começara já a<br />

fazer a sua viagem descendente, e em casa Das Fitas<br />

estava preocupado com a demora das suas duas mulheres.<br />

Será que era a compra dos produtos para a próxima<br />

montagem do kaporroto, o que lhes estava tomando muito<br />

tempo? Será que os gatunos roubaram-lhes os garrafões ou<br />

mesmo o dinheiro? Porque razão então é que a mana Maria e<br />

36


a mana Anita estavam demorando lá no Roque? Será que<br />

foram atropeladas, elas que ainda não sabem atravessar<br />

bem as estradas? Será que se perderam nesses becos aí do<br />

Sambila? Será que...<br />

... Eram muitas as preocupações de Das Fitas. Nem<br />

mesmo as conversas dos clientes, que tinham sempre o<br />

condão de lhe distrair, puderam nessa altura lhe amainar<br />

a alma.<br />

—— Desde manhã que estou a ver o kota um pouco<br />

triste, o que é que se passa? —— perguntou um dos<br />

clientes.<br />

—— Triste num é. Estou mbora só pensar nos mana,<br />

desde manhã cedo que foram lá no Roque, caté aqui nada...<br />

—— Hã!... Não se preocupe, hoje como é sábado o<br />

mercado fica muito cheio...<br />

—— Afinare?! —— exclamou Das Fitas, como que a<br />

sossegar um pouco pela dica recebida.<br />

Um outro cliente ao lado, aproveitou o ensejo<br />

pondo também a sua colher na conversa:<br />

—— Sábado no Roque Santeiro, é o dia de maior<br />

dikomba! Todo o mundo lá faz dikomba!<br />

—— Tudo mundo, comoé? —— interrogou Das Fitas,<br />

ansioso.<br />

—— Quer dizer: como o mercado fica muito cheio,<br />

porque é o dia em que a maior parte das pessoas tem tempo<br />

para fazer as suas compras, então há mais gente no<br />

mercado, há mais vendas, mas também... —— fez uma<br />

pequenina pausa, criando mais suspense —— ... há mais<br />

roubos!<br />

Ouvindo isso, Das Fitas voltou ao seu estado<br />

emocional anterior, mas indiferente ao que lhe ia na<br />

alma, ou no semblante, a grande parte da clientela<br />

prosseguia bebendo e conversando, não faltando aqui e<br />

37


ali, um pratinho de peixe frito ao lado, para ir-se<br />

fazendo boca.<br />

Um outro cliente que se juntara ao grupo integrado<br />

pelo kota Café, Capriquito, Estudioso, Lúmpen, e outros,<br />

parecia monopolizar a atenção da maior parte das pessoas<br />

no quintal. O modo como se vestia, os gestos e a<br />

linguagem, davam-lhe bandeira de ser um intelectual...<br />

—— Ser diferente, num meio onde a maioria só tem<br />

de dizer sim, para agradar ao outro, ao partido, ao<br />

clube, a seja quem for, num meio onde tens de ser um<br />

lambe-botas, um fantoche, um hipócrita, porque senão<br />

perdes o emprego, perdes a promoção, perdes os amigos,<br />

perdes a mulher, perdes o marido, perdes a família,<br />

perdes todos os direitos de um cidadão comum, meus<br />

irmãos, não é fácil, é preciso... —— reparou ao redor ——<br />

ter colhões!<br />

Depois de dar um gole do seu copo, prosseguiu:<br />

—— Quando um grupo social, e o homem é um ser<br />

social, seja lá que tipo de grupo for, se o grupo, se o<br />

conjunto é amorfo de raiz, quer dizer, se não há<br />

transparência e equidade a partir das suas bases<br />

estruturais, digo mesmo a partir do chefe, então, há<br />

grande probabilidade de a maior parte dos elementos do<br />

grupo ou do conjunto tornar-se amorfo, apagado, inerte,<br />

monótono. Se de repente um dos elementos aparece com o<br />

chapéu do grupo posto às avessas, então ele começa já a<br />

ser visto como fraccionista, como traidor. De repente as<br />

pessoas deixam de sentar-se ao lado de ti, deixam de<br />

cumprimentar-te, de te convidarem, de te visitarem,<br />

deixam de te apoiar, apoiar a tua família; tu entras em<br />

bancarrota total, és desprezado, cuspido, apedrejado, por<br />

teres escrito, cantado, publicado, ou apenas por teres<br />

sugerido algo que não é do agrado do chefe. E se o chefe<br />

não gostou, então todos os demais elementos do conjunto<br />

hão de deixar de gostar, mesmo que intimamente o<br />

quisessem!...<br />

Voltou a bebericar do seu copo; todos pareciam<br />

querer mais dele, e ele prosseguiu:<br />

38


—— Ser diferente, meus caros irmãos, é de qualquer<br />

modo, uma escolha, uma opção ainda não disponível no<br />

estado vigente das coisas. —— parecia concluir o<br />

Intelectual.<br />

—— Mas a dialéctica da vida diz que uma pinha não<br />

pode ficar muito tempo na garganta... —— dizia o<br />

Estudioso.<br />

—— Lá isso é verdade! —— apoiou o Intelectual.<br />

—— ... Ou tiramos a pinha, ou ela acaba<br />

apodrecendo aí mesmo! —— insistiu o Estudioso.<br />

—— Sim. Mas a depender da sua espessura, da sua<br />

consistência e da sua estrutura, ao apodrecer ela pode<br />

afectar o meio que a circunda, depauperando-o, fenecendoo<br />

até à morte. —— dizia o Intelectual —— Portanto, não se<br />

deve insistir em manter a pinha na garganta, ela pode<br />

levar-nos à morte, pode...<br />

O Lúmpen, que estava bem atento à conversa, talvez<br />

não estando a entender patavina do vocabulário ali<br />

versado, interrompeu:<br />

—— Os kotas não podiam falar assim mais<br />

abertamente, pra nós também entendermos?...<br />

—— Tens razão! —— atendeu o Intelectual —— Os<br />

discursos, a prosa e a poesia, às vezes dão muita volta,<br />

usam muitos dikindos, como se diz aqui no nosso calão,<br />

só para dizer que o Presidente é um déspota, é um<br />

ditador...<br />

—— E fazem isso para quê? Para ninguém entender? —<br />

— insistia o Lúmpen.<br />

—— Para poucos entenderem, ou se calhar mesmo<br />

ninguém.<br />

—— Mas, porquê?<br />

—— Bem o quê que te posso dizer... Fazem isso por<br />

muitas e variadas razões, mas geralmente é porque comem<br />

39


ainda do prato do sistema, no prato do poder, e fazem<br />

isso, usam muitos estilos e truques de bandidagem<br />

literários, por medo de sofrerem retaliações e<br />

represálias. É aquilo que eu há bocadinho estava a<br />

dizer...<br />

—— E agora que estão aí a falar de acordos de<br />

Bicesse, multipartidarismo, eleições e não sei quê mais,<br />

se um dia esses muadiês ganham as eleições, será que vão<br />

deixar de ser comunistas, que de resto nunca foram... Vai<br />

deixar de haver centralismo democrático, que também nunca<br />

houve... Vai haver descentralização do poder? ——<br />

interrogou o kota Café.<br />

—— Meus manos, —— dizia o Intelectual, fazendo uma<br />

breve pausa, como que para ganhar fôlego —— Se você vive<br />

durante muito tempo com uma criança em casa, que é tua<br />

enteada, e passas a vida lhe maltratando, lhe oprimindo,<br />

lhe dando o que resta do teu prato, quando resta; mesmo<br />

que depois apareça alguém a te dizer que essa criança<br />

afinal é teu filho ou tua filha, e que o nome dela não é<br />

autocracia e sim democracia, será que logo depois<br />

passarás a lhe tratar já por democracia, sem dares com a<br />

língua nos dentes, sem nada?... Será que passarás<br />

imediatamente a lhe tratar com um afecto natural,<br />

expontâneo, com um amor de facto?...<br />

—— Pode ser até que sim. —— respondeu o Estudioso<br />

—— eu estou a ver até onde é que o kota quer chegar, se<br />

bem que às vezes aí é que entra o dilema dos escritores,<br />

dos jornalistas e dos políticos; é difícil explicitar com<br />

parábolas e provérbios, para que todos entendam certas<br />

ideias e pensamentos de índole mais subtil. Na verdade,<br />

não é fácil mudar o regime de um país, mudá-lo de facto.<br />

Há sempre reminiscências que ficam, que continuam... No<br />

papel podes dizer que acabou, que já não há mais<br />

tribalismo, não há mais racismo, mas a praxis vai mostrar<br />

o contrário. Então os brancos sul-africanos que por<br />

décadas e décadas se lhes ensinou que o negro é bicho, é<br />

animal, será que quando mudarem de sistema vão também<br />

imediatamente mudar de mentalidade, mudar de atitude?...<br />

—— Depende de quem ganhar as eleições. —— disse um<br />

cliente.<br />

40


—— Em parte sim, mas essa mudança de que me estou<br />

a referir, não é apenas a da classe no poder, é uma<br />

mudança mais abrangente, mais radical...—— disse o<br />

Estudioso.<br />

—— Bom, —— interrompeu o Intelectual —— eu também<br />

estou a ver onde você quer chegar, até porque os nossos<br />

pontos coincidem, se bem que noto uma pequena confusão na<br />

apresentação ou exposição das tuas ideias. O que eu<br />

estava a querer dizer, é o seguinte: Se um dia houver<br />

eleições em Angola, não pensem que os que lá estão<br />

deixarão de ser gatunos e corruptos ou que os que querem<br />

lá também estar, deixarão de ser tribalistas e<br />

sangrentos, só porque mudou o sistema político do país,<br />

nunca mais! A mentalidade e a personalidade dos homens<br />

não muda da noite para o dia, e enquanto se espera que<br />

eles mudem, o povo vai sofrendo, continuando a sofrer, de<br />

barriga vazia, boca fechada e com a felicidade<br />

constantemente adiada...<br />

—— E então o que é que se deve fazer? —— perguntou<br />

o kota Café.<br />

—— É não deixar esses canalhas tomarem o poder! ——<br />

disse o Intelectual.<br />

Aflitas com a burla de que haviam sido alvo, as<br />

duas kimbetas de Das Fitas, encontravam-se ainda às<br />

voltas, a rodear pelo enorme mercado do Roque Santeiro,<br />

na esperança de acharem e surpreenderem as duas<br />

burladoras, mas foi tudo em vão.<br />

De regresso à casa, vieram todo o caminho a<br />

murmurarem-se e a lançarem blasfémias e pragas e<br />

promessas, com profundos muxoxos e favas a fazerem de<br />

pontuação e de acentuação, conforme fosse a carga<br />

explosiva de cada vocábulo. Ao se lhes cruzar alguma<br />

41


senhora com o aspecto semelhante a qualquer uma das<br />

burladoras, as duas kimbetas afrouxavam o passo,<br />

aumentavam ainda mais o volume da voz e direccionavam as<br />

antenas dos seus olhares fulminantes de raiva, à coitada<br />

da inocente.<br />

—— Aqui no Luanda afinare é anssi?! Comere os<br />

forço nda outro, si maje ni menos?! Fungire cus kapuka<br />

nda outro, vamojo lhes pore as mbaço naqueres fíria ndas<br />

puta, vão vere só! —–vomitava a mana Maria.<br />

—— Quatro garrafãos... Quatro!!!, logo-logo! ——<br />

lamentava a mana Anita.<br />

Quando chegaram à casa, no quintal havia já poucos<br />

clientes: aqueles que tendo ainda bebida nos seus copos,<br />

iam bebericando enquanto conversavam. Lendo imediatamente<br />

a mensagem que vinha do semblante das suas duas mulheres,<br />

Das Fitas foi logo ter com elas.<br />

—— Comoé antão, só agoras?<br />

As duas procuraram antes qualquer coisa onde<br />

pudessem sentar-se, e depois de tirarem os bebés das<br />

costas, respiraram fundo, e a primeira dama rompeu com o<br />

silêncio:<br />

dama.<br />

—— A mana Anita, exprica.<br />

—— A mana é que exprica!<br />

—— Você é que exprica! —— insistia a primeira<br />

—— Pôras! —— interrompeu, aborrecido, o marido ——<br />

Exprica, exprica, quaré que vai expricare antão?<br />

Sentindo-se na pele de primeira dama, mana Maria<br />

começou por explicar toda a fita, desde o genérico, o<br />

princípio, o meio, até o fim, sem tempo para qualquer<br />

pausa ou intervalo, tal era a ânsia de Das Fitas em<br />

conhecer a fita completa do holocausto, do harmagedom, da<br />

hecatombe, que não parava de dizer ―e depoje?... E<br />

depoje?‖...<br />

42


—— ... E despoje procuramojo ainda tudo o praça,<br />

mas nada! —— informava a mana Maria.<br />

—— E depoje? —— perguntou o marido.<br />

—— Haka! Despoje maje comoé? —— interpelava-se a<br />

primeira mulher, já aborrecida.<br />

—— Antão num foram nos quadra ndo purícia ni nada?<br />

—— Ir nos quadra comoé, se a negóxio era ndo<br />

kapuka?! —— interrogou mana Anita.<br />

—— Pôras! Antão as purícia num mbebe kaproto? As<br />

purícia num é esse tudo os dia custuma vire aqui mbebere<br />

o kapuka, mbebere o kimbombo? Não é as purícia que queria<br />

receber os garrafãos? Comoé agoras num ajuda o povo?! ——<br />

interrogava-se Das Fitas já no auge do seu aborrecimento.<br />

Depois de alguns minutos de silêncio, como se o<br />

diabo tivesse passado dentro do quarto aonde se<br />

encontravam, o marido prosseguiu, em songo:<br />

—— Sabem duma coisa?... A dona da casa esteve cá e<br />

disse que vai precisar da casa.<br />

—— O quêê!!! —— exclamaram as duas ao mesmo tempo.<br />

—— Sim. Vai precisar da casa; temos só mais um mês<br />

para ficar aqui.<br />

—— Mas, porquê então?! —— interrogou mana Maria.<br />

—— Parece que o filho dela engravidou uma miúda e<br />

terão de vir cá morar.<br />

—— Possa! Aqui em Luanda afinal é assim? ——<br />

perguntou mana Anita<br />

—— Mas não podias lhe perguntar se não dá para<br />

arranjarem outra casa e com o dinheiro desta pagarem as<br />

rendas da outra? —— perguntava a primeira mulher.<br />

43


—— Perguntei-lhe isso, mas ela me disse que é<br />

melhor mesmo arranjarmos outra casa.<br />

Nessa noite, Das Fitas nem quis jantar, de tanto<br />

pensar no dinheiro perdido com os quatro garrafões<br />

furtados e como se não bastasse, na notícia-aviso da<br />

iminente retirada da casa.<br />

Para onde iriam eles viverem? Será que naquelas<br />

imediações apareceria alguma casa que pudessem alugar?<br />

Será que numa outra casa poderiam prosseguir com os seus<br />

negócios? Será que lá também teriam muitos clientes, como<br />

os que tinham naquela casa? Será que...<br />

Sem poder responder a todas essas perguntas e<br />

inquietações, Das Fitas acabou por ser levado pelo sono,<br />

um sono profundo, propício aos sonhos e aos pesadelos.<br />

Os dias que se seguiram foram de imenso trabalho<br />

para Das Fitas e sua família. Recompondo-se do desfalque<br />

que o furto kaporrótico lhe desfechara, ele e sua família<br />

fizeram da derrota sofrida, forças para continuar com<br />

mais empenho na produção das duas bebidas, e não só. Por<br />

deliberação do Conselho Consultivo da Família, mana Anita<br />

com a ajuda da Jingongo, a primeira filha de Das fitas e<br />

mana Maria, deram continuidade no trabalho de fritar<br />

bombó desde manhã até o pôr do sol, no local habitual,<br />

enquanto à mana Maria coube a pasta do ministério de<br />

apregoar, zungar peixe em tudo quanto fosse rua, beco,<br />

estrada ou auto-estrada.<br />

Começou então a ser já habitual ver a kimbeta<br />

primeira de Das Fitas rasgar os caminhos de qualquer<br />

bairro, a gritar: ―é sardinha! é sardinha!‖, e ás vezes<br />

os miúdos seguindo atrás, respondiam: ―mas tem pinha!,<br />

com arroz, cuia! Mas está podre!‖<br />

Mana Maria ficava fula com essa zombaria dos<br />

petizes, mas logo logo deixava de ficar quando alguém lhe<br />

chamasse para comprar a sua sardinha, a lambula, o<br />

carapau, ou outro peixe que estivesse vendendo.<br />

44


Mesmo sendo época de cacimbo, com o frio a apertar<br />

por dentro e mais ainda lá fora, mana Maria tinha de<br />

arrancar muito cedo o seu corpo e o do bebé, das<br />

quenturas da cama, andar à pé até ao mercado do Tunga<br />

Ngó, aonde apanhava em conjunto com outras senhoras<br />

peixeiras, um candongueiro que as levava até à praia da<br />

Corimba, à Ilha de Luanda, ou até ao porto pesqueiro,<br />

conforme fosse o sítio onde estivesse a sair mais peixe.<br />

Adquirido o peixe, muitas eram as senhoras que<br />

vinham já vendendo a partir mesmo da Baixa, vindo à pé<br />

até ao subúrbio, mas mana Maria não possuindo traquejo<br />

para atravessar as muitas e grandes estradas e avenidas<br />

que se lhe atravessavam, preferia vir de carro até ao<br />

musseque e daqui começar a zunga, indo de bairro em<br />

bairro até acabar a banheira de peixe.<br />

Tal como as zungueiras vendedoras de peixe,<br />

muitos, muitíssimos eram os que zungavam já desde<br />

manhãzinha, os mais diversos produtos como sabão, omo,<br />

lixívia e palha-de-aço. Eram pessoas das mais diversas<br />

idades, mas maioritariamente jovens, a quem as mais<br />

básicas necessidades humanas como alimentação, vestuário<br />

e saúde, falaram mais alto que as promessas alardeadas e<br />

até propagadas em camisolas e cartazes e discursos, de se<br />

lhes dar escola, emprego, ao menos algo que lhes<br />

dignificasse como donos de tantos poços de petróleo...<br />

Durante as suas vendas, muitas eram as vezes em<br />

que mana Maria era chamada a vender uma ou duas simples<br />

sardinhas para uma casa com mais de dez, doze bocas.<br />

Perguntando-se a si mesma se tal quantidade bastasse,<br />

mana Maria ficava depois a saber que não compravam mais<br />

por não possuírem possibilidades para mais. Ás vezes, a<br />

essas famílias ela dava um pouco mais de esquebras, mas<br />

saia estupefacta com o que ia por detrás daquilo que<br />

aparentemente lhe dava a entender que fossem famílias sem<br />

problemas, lares sem dificuldades. ―Também fazem kilapi<br />

de lambula?!‖ —— interrogava-se ela. No fundo, era a vida<br />

que estava mal para todos...<br />

Outras vezes, depois de tanto zungar, ela fazia<br />

pequenas paragens sob a sombra duma árvore qualquer que<br />

lhe aparecesse no percurso, para descansar um bocado<br />

45


dessa quentura e desse calor que quase todos os dias lhe<br />

faziam companhia, mas também para aproveitar amamentar a<br />

criança ou dar água à esta e a si mesma.<br />

A lembrança daquelas jovens bonitas e finas,<br />

daquelas senhoras com família, filhos, e maridos em casa,<br />

a prostituírem-se naqueles barrancos por detrás do<br />

mercado do Roque Santeiro, a entregarem os seus bonitos<br />

corpos, a miúdos e a jovens drogados e bêbedos, bandidos<br />

e gatunos, muitos deles com a idade muito abaixo da<br />

delas, tudo a troco de míseros kwanzas, para sustentarem<br />

as suas famílias, tudo isso vinha à memória de mana<br />

Maria.<br />

A sua lembrança ia depois para os raboteiros, os<br />

cadiengueiros, com seus carrinhos de madeira espalhados<br />

por todo o mercado e também nas principais paragens de<br />

autocarro ou nas de táxis, nas lojas, nos armazéns, em<br />

todo lado em que havia sempre um jovem, um adulto, um<br />

velho ou mesmo uma criança, à espera e prontos para<br />

acarretarem uma caixa, um embrulho, um saco de fuba, um<br />

saco com lixo, uma botija de gás, um caixão, um cadáver,<br />

tudo a troco de míseros kwanzas, para sustentarem-se a si<br />

e as suas famílias.<br />

Mana Maria pensava ainda naqueles gatunos, miúdos<br />

e adultos armados com punhais, cacos de garrafa e<br />

pistolas, que de madrugada e à noitinha ficavam<br />

entrincheirados nas ruelas e becos próximos dos<br />

principais mercados, para caírem de assalto, de<br />

preferência sobre as senhoras, mexendo-lhes em tudo e até<br />

no mais íntimo dos seus corpos, na ânsia de lhes<br />

retirarem jóias, relógios, dinheiro, e às vezes um pouco<br />

do prazer dos seus sexos, quando não fossem ao extremo de<br />

lhes serem retiradas as vidas.<br />

Com todas essas lembranças, mana Maria não podia<br />

esquecer-se de que um pouco do dinheiro que esses jovens<br />

roubavam nos mercados, roubavam às pessoas, esse dinheiro<br />

que os raboteiros ganhavam, que as prostitutas recebiam<br />

em troca da entrega dos seus corpos, com uma parte desse<br />

dinheiro muitos deles, de regresso às suas casas iam ao<br />

Das Fitas beber um kimbombo, um kapuka, para apagarem<br />

esse imenso fogo, essa imensa tortura, esse inferno que<br />

46


era o viver de cada dia das pessoas. Esta, era a<br />

lembrança que mais doía à consciência de mana Maria...<br />

Porém, tão logo se levantasse, para retomar a<br />

caminhada, a recordação de todos esses factos<br />

desvaneciam-se da sua mente, para dar lugar ao rouco<br />

pregão do peixe.<br />

Os dias que restavam para permanecerem na casa<br />

eram já bastante escassos para Das Fitas e sua família.<br />

Mesmo após uma forte batida pelos arredores, com muitas<br />

encomendas à mistura, Das Fitas não conseguiu encontrar<br />

uma residência, um chimbeco ou algo que lhes valesse. No<br />

auge da sua aflição, um anjo dos pobres desceu das nuvens<br />

para recordá-lo que bem próximo dali muita gente estava a<br />

levantar cabanas encostadas ao cercado de betão da linha<br />

férrea.<br />

Sem medir pernas, deslocou-se imediatamente para o<br />

terreno, em missão de reconhecimento e recolha de<br />

informações, e tendo constatado que a situação lhe era<br />

favorável pôs logo em movimento tudo quanto era<br />

necessário para o levantamento de uma cabana de chapas,<br />

onde pudesse albergar a sua família.<br />

Nesse tempo, a televisão, a rádio e o jornal,<br />

estavam demasiado cansados e mesmo aborrecidos de todas<br />

as semanas, meses, anos, transmitirem as entrevistas<br />

sempre iguais e bonitas de que o comboio para a terra de<br />

Das Fitas retomaria já o seu funcionamento hoje, amanhã,<br />

depois de amanhã, no próximo mês, entrevistas sempre<br />

acompanhadas com muita emoção, com muita ansiedade, dadas<br />

talvez por quem pôde enfeitiçar o governo a gastar<br />

milhões de barris de petróleo na construção desses muros<br />

de betão que, graças à Deus tiveram a utilidade de<br />

emprestarem uma parede às quatro que constituíam a nova<br />

casa de Das Fitas, e de certamente colocar algumas<br />

comissões de dinheiro verde das terras do tio Sam, nos<br />

maduros e grandíssimos bolsos do entrevistado e nos de<br />

raia mais grossa, escondida nos ficheiros ocultos do<br />

subconsciente social.<br />

47


Para a construção da cabana, Das Fitas solicitara<br />

a ajuda do Capriquito e do Lúmpen, colocando-lhes à<br />

disposição um garrafão de kimbombo, como agradecimento.<br />

—— Ó kota Zé, o kota já viu como é que o governo é<br />

mesmo vigarista? —— perguntou o Lúmpen.<br />

—— Vingarista comoé?<br />

—— Então, gastaram só bué de cimento para fazerem<br />

esses muros e essas pontes todas, e o comboio, ora porque<br />

vai começar já a apitar no próximo ano, no próximo mês, e<br />

agora até hoje nada!<br />

—— É puro causa ndo nguera! —— exclamou Das Fitas.<br />

—— Então mandaram fazer pra quê? —— quis saber<br />

Capriquito.<br />

—— Fizeram só bué de ponte, bué guda, o povo nem<br />

passa lá, passa mbora em baixo! —— prosseguiu o Lúmpen.<br />

—— E ainda por cima vão meter o lixo lá por cima<br />

da ponte, ha, ha, há —— ria-se o Capriquito<br />

Fitas.<br />

—— Tuto é puro causa ndo nguera! —— gozou Das<br />

Até ao entardecer desse dia a cabana própria de<br />

Das Fitas estava pronta para albergar a sua família,<br />

embora faltasse ainda levantar o quintal. Mas se repente<br />

um parente seu qualquer chegasse do mato, vindo lá dos<br />

fundos do Luquembo, ou do Cambundi-Catembo, e lhe fosse<br />

apresentada a cabana, talvez até ficasse com inveja de<br />

Das Fitas, e de regresso ao kimbo decidisse mesmo em<br />

enviar um raio, uma onda ou um feitiço forte e feio de<br />

fazer o comboio, que nessa altura ainda saia do Bungo ao<br />

musseque Baia, descarrilar destruir a cabana e, fosse<br />

Deus surdo, se possível mesmo matar toda a família de Das<br />

Fitas, incluindo o seu chefe.<br />

Então, como era possível em tão pouco tempo,<br />

perguntar-se-ia talvez o parente, ele Das Fitas ter já<br />

construído uma casa de chapas de zinco na capital,<br />

48


enquanto os seus parentes lá bem longe, no mato, ainda<br />

viviam em cabanas de capim e de adobe? Não podia ser. Ele<br />

e a sua família teriam mesmo de morrer...<br />

Mas, ao invés disso, a construção da casa foi como<br />

que mais um impulso para o seu desejo de continuar a<br />

viver.<br />

Quando terminou o prazo dado pelo senhorio, já a<br />

maior parte dos clientes de Das Fitas tinha tomado<br />

conhecimento da sua nova casa, não muito distante da<br />

antiga e, tal como acontecera aquando da construção, para<br />

a transladação das imbambas Das Fitas teve também a ajuda<br />

do Lúmpen e do Capriquito.<br />

Semanas após a mudança, alguns clientes vieram<br />

contá-lo que quem estava a morar na antiga residência,<br />

não era nenhum filho da dona da casa, mas sim a própria<br />

dona em carne e osso.<br />

—— Quer dizer, —— informava em primeira mão o kota<br />

Pelargon, um dos seu clientes habituais —— a mbôa<br />

arranjou duas sulanas que passam lá o dia a atender...<br />

—— Atender o quê antão?! —— perguntava surpreso, o<br />

Das Fitas.<br />

—— Oh, o kota não sabe?!<br />

—— Saber o quê, antão?!<br />

—— Eu ando a pensar que o kota já sabe, afinal o<br />

kota anda mbora distraído! —— insistia o Pelargon<br />

aumentando ainda mais a ansiedade em Das Fitas. —— Olha,<br />

kota, naquele kubiko agora também já vendem kimbombo e<br />

kapuka...<br />

—— Afinare??!!! Kimbombo e kapuka??!!!<br />

—— E quem monta é mesmo a mbôa Bia, a dona da<br />

casa. As sulanas, porra, são duas jovens torradinhas!, só<br />

ficam lá o dia inteiro, para atender...<br />

—— Ai-é?! E fica memo cheio ndas criente?!<br />

49


—— Mais ou menos. Os clientes, acho que só vão lá<br />

mais por causa daquelas duas sulanas, kota. O kimbombo é<br />

muito fraco, o kapuka... mais ou menos. Mas as miúdas<br />

mesmo, kota, é que são um fogo, são bonitas, pele cor de<br />

mobília, bons rabos...<br />

—— Xê rapaz! Tás a ficar maluco ou quê?... ——<br />

interrompia um outro cliente.<br />

Encostado ao umbral de uma porta, Das Fitas ficou<br />

depois por algum tempo calado, como que a falar<br />

interiormente consigo mesmo. Não demorou a sair do seu<br />

solilóquio:<br />

—— Minhas manos, —— dirigindo-se aos poucos<br />

clientes que nessa hora da manhã encontravam-se a beber<br />

no quintal —— aqui no Luanda eu estou ver os pessoa té<br />

muito inveja nda outro. Antão ela me mintiu a fírio<br />

ingravidou, afinare é para sueu saire junto cu a mia<br />

famíria, e ela montare lá també negóxio ndera?!<br />

—— Não tem dica kota! —— tentava suavizar o<br />

Pelargon —— O kota é massongo, e aqui na banda o kimbombo<br />

dos massongo é que abana!...<br />

—— Por isso ando ver aqui as criente ndiminuiu,<br />

afinare é lá que estão ire?!...<br />

No final do dia, quando as duas mulheres<br />

encontravam-se já em casa, Das Fitas contou-lhes<br />

imediatamente o que se estava passando na antiga casa<br />

onde moravam. Ao contrário do que ele talvez esperasse,<br />

a reacção de ambas as mulheres foi de quase indiferença,<br />

porquanto comentando à sós tal assunto, no mesmo dia do<br />

aviso de retirada, as mulheres não tinham achado<br />

quaisquer motivos que tivessem levado a senhoria a tal<br />

decisão, e duvidavam mesmo que qualquer um dos filhos que<br />

ela tinha, sendo o que elas sabiam que eram, aceitasse em<br />

viver nas condições em que a casa se apresentava, e<br />

tinham mesmo chegado à conclusão que essa do filho ter<br />

engravidado uma miúda era tudo, menos a razão principal<br />

para a decisão tomada pela dona da casa.<br />

50


—— Pangare os renda, nojo estamojo pangare, ——<br />

dizia mana Maria —— quaré a male antão que agente fiz?<br />

—— Aqueres fírio ndela parece jimundele é que vai<br />

ceitar morare aqui?! —— interrogava-se a segunda mulher.<br />

Ante a indiferença das mulheres, Das Fitas ficou<br />

um tanto admirado, mas dissimulou tudo isso para mostrar<br />

que ele, sendo ainda um homem capaz, não estava<br />

susceptibilizado nem se importando pelo logro e pela<br />

desonestidade da dona Bia.<br />

Enquanto tivesse mãos e pernas e saúde, sabia por<br />

demais como fazer frente às intempéries do tempo e da<br />

vida. Nem elas se importaram ou se sentiram magoadas,<br />

porque razão havia de ser ele, um homem, a choramingar, a<br />

ter que rebaixar-se ao senhorio de uma cabana de latas<br />

―feto mbora tuto atoamente!‖ —— assim pensava ele.<br />

E como prova de tudo, estava ali a sua casa de<br />

dois quartos e uma sala, maiores que os da cabana da dona<br />

Bia.<br />

Todavia, com o passar dos dias, Das Fitas foi se<br />

apercebendo que a clientela, sobretudo durante o dia,<br />

tinha reduzido ainda mais. A preferência da clientela ia<br />

mais para o kaporroto, alegando que assim era, em virtude<br />

da estação de cacimbo que nessa altura estavam<br />

atravessando. Mas essa desculpa era travada pelo epiglote<br />

de Das Fitas, porquanto ele era da opinião, também<br />

endossada pelo kota Pelargon, pelo Lúmpen, e pelo<br />

Capriquito, embora considerasse que fossem talvez<br />

endossos característico de aduladores e de chulos, de que<br />

essa maré baixa de clientes, era devido ao golpe baixo de<br />

marketing, principalmente no que tocava ao tratamento da<br />

imagem e outros feitiços kamundongos, operados pela<br />

―mbruxa nda ndona Bia‖.<br />

—— Aquelas duas sulanas é que são as culpadas,<br />

kota! —— dizia o Pelargon —— Só as kinamas, só os pacote,<br />

kota, aquelas miúdas parece têm feitiço!...<br />

51


—— Se até aquele kota que gosta bué de finar o<br />

português e mais o kota Café, agora só param já lá... ——<br />

acrescentou o Capriquito.<br />

—— Aí-é?! —— exclamou Das Fitas, oferecendo um<br />

cálice mais de kapuka à cada um dos três.<br />

—— Até na mbôa Madó, esses dias também está fraco!<br />

—— disse o Lúmpen, bebendo um gole do copo que tinha na<br />

mão. —— Todos os clientes estão ir mbora na mbôa Bia...<br />

—— E tem mais, kota, —— dizia o Pelargon —— o que<br />

está a fazer muitos muadiês irem lá, é também a<br />

música!...<br />

Fitas.<br />

—— Ah!, també té lá mújica?! —— espantava-se Das<br />

—— E também já cimentaram o quintal! ——<br />

acrescentou o Lúmpen.<br />

—— Pôra, aquere invejosa va nganhare muito<br />

dinhero. Caté meteu lá jiputa pra chamar as criente... ——<br />

disse Das Fitas, desolado.<br />

Face à concorrência de dona Bia, Das Fitas<br />

planeava também comprar um gravador, mandar cimentar o<br />

quintal, já então levantado, e, —— levou tempo a se<br />

convencer, arranjar mesmo duas jovens ―també bonito, e<br />

cus rabo que mano Pelargon falou‖, de preferência<br />

massongos, para passarem a atender a bebida.<br />

Levando o dossiê de tal plano para a aprovação dos<br />

restantes membros do Conselho Consultivo, estes<br />

imediatamente reagiram:<br />

—— Quar quê??!! —— espantava-se a mana Maria ——<br />

meter no casa jibandida pra tender o bebidas?!! Vucê tás<br />

maruco ou antão mbembeste?<br />

—— Se ere ndona Mbia meteu lá jimulhere, antão<br />

nojo també sámojo jimulhere, nojo també pode tender<br />

jicriente! —— disse por sua vez a segunda mulher.<br />

52


Nunca até então ele tivera notado qualquer gesto<br />

por parte das suas duas mulheres, que fosse contrário às<br />

suas intenções, nem tão-pouco pensava que algum dia elas,<br />

tão respeitosas, humildes e submissas que eram, pudessem<br />

fazê-lo. Tal só acontecia, pensava ele, por estarem a<br />

viver na cidade capital, onde viam muitas mulheres a<br />

rebelarem-se contra os maridos, os filhos contra os<br />

pais,e os jovens contra os velhos. Mas o que estava<br />

oculto na reacção manifestada pelas duas mulheres, era,<br />

segundo ele, o ciúme.<br />

—— Esse que vucês está sentir sueu já sabe. ——<br />

retrucava ele —— Mas as criente está fugire muito mbora<br />

no ndona Mbia, aqui o kimbombo está xixilare bué, só o<br />

kapuka está andare assi assi...<br />

—— Ndexa astare! —— interrompeu a primeira mulher<br />

—– ningué va morere cu a fome!<br />

—— A nojo está tu judare. Um dia ndeujo vai judare<br />

també, vucê vai ranjar a emprego, nojo també nu vai<br />

parare... —— acrescentava a segunda mulher.<br />

Passadas algumas semanas, Kizua veio à sua casa<br />

visitá-lo, e tomando conhecimento da situação que ele<br />

atravessava, propôs-lhe trabalharem juntos no fabrico<br />

artesanal de cadeiras de fitas, ali à rua do Rei. A filha<br />

primeira, Jingongo, já então uma adolescente, foi nomeada<br />

para o lugar do pai, no atendimento da bebida, na<br />

sequência da impossibilidade de Das Fitas continuar no<br />

cargo, ou por ele querer talvez mostrar que um homem que<br />

se preze, deve, depois do tempo suficientemente<br />

necessário, deixar o lugar, o cargo e a cadeira aos<br />

outros, resistindo à esse gosto e prazer quase que<br />

instintivos que muitos estúpidos têm de perpetuar-se na<br />

ocupação e na posse de algo que os outros, muitos, às<br />

vezes bastante melhores, igualmente aspiram alcançar...<br />

E como há coisas, tantas, melhor vistas pelos<br />

olhos de estranhos, Jingongo afinal, tinha já muitos dos<br />

requisitos físicos, que segundo a opinião do kota<br />

Pelargon, eram indispensáveis como chamariz da clientela.<br />

Tendo ela muitas amigas já igualmente bem crescidinhas<br />

que iam passar parte do seu tempo em sua casa, muitos<br />

53


clientes foram aos poucos frequentando menos a casa<br />

―daquelas duas bailundas, bandidas e chuladoras‖, como<br />

depois veio a considerar o kota Pelargon, preferindo a<br />

casa de Jingongo onde ―aparecem lá umas catorzinhas bué<br />

fixes!‖<br />

——Não vale a pena só irem na mboa Bia! —— sugeria<br />

o Pelargon à alguns clientes que junto dele bebiam.<br />

—— Mas por quê então, kota Pelargon? —— perguntava<br />

um cliente.<br />

—— Aquelas damas que estão lá, aquelas BBC me<br />

deram cabo, elas me deram cabo!... —— lamentava Pelargon,<br />

já meio embriagado.<br />

E Jingongo foi segurando o negócio, enquanto mana<br />

Maria zungava peixe, mana Anita continuava a fritar bombó<br />

mesmo ali à berma da rua do Rei, não muito distante do<br />

pequeno largo onde Das Fitas tinha começado a trabalhar,<br />

como ajudante de enfitador.<br />

No seu primeiro dia de trabalho, veio à memória<br />

de Das fitas, a primeira vez em que havia chegado até<br />

ali, nesse mesmo ponto em que era já o seu mbongue, um<br />

terreno baldio aonde agora mulheres, crianças, rapazes,<br />

jovens e adultos, passavam o dia a trabalhar e à vender.<br />

Tudo ali ia desembocar essencialmente na produção<br />

artesanal e na venda de cadeiras de fitas e de material<br />

sobressalente. Duas serralharias de proprietários<br />

diferentes também aí localizadas eram as principais<br />

fornecedoras dos esqueletos das cadeiras, enquanto que as<br />

duas fábricas de produtos de plástico instaladas próximo<br />

do local, eram as fornecedoras das fitas e de outros<br />

acessórios que fossem necessários ao apetrechamento das<br />

cadeiras.<br />

Numa altura em que era escassa e cara a produção<br />

de mobiliário doméstico no país, muitos recorriam ali<br />

para encherem o vazio das suas casas com um jogo de<br />

quatro cadeiras de fitas. Era a mobília de sala mais<br />

barata e ao alcance da maior parte dos bolsos. Mas havia<br />

também muita gente que para lá se dirigia não para<br />

54


comprar ou visitar aquele local, mas para vender<br />

carcaças, esqueletos de cadeiras que tinham quiçá<br />

arrumado na arrecadação, em cima do tecto da casa, ou<br />

atirado num canto qualquer do quintal e mais tarde, ante<br />

a ameaça de uma greve de panelas, tivessem se sentido<br />

obrigadas a vender.<br />

Nos primeiros dias do seu novo emprego, Das Fitas<br />

tratou de comportar-se como qualquer recém-empregado<br />

ainda não cacimbado nem traquejado nas lides laborais se<br />

comporta. Era excessivamente zeloso no que tocasse a<br />

pontualidade e a disciplina, e não arredava obediência a<br />

tudo quanto lhe mandassem fazer.<br />

Era uma época em que o índice de vendas estava<br />

atingindo os maiores picos dos himalaias já atingidos<br />

pela sua produção. Mesmo trabalhando de segunda à<br />

segunda, era difícil cumprir com os prazos de entrega das<br />

encomendas, vindas de revendedores de Luanda e das<br />

províncias, principalmente das do interior, das do<br />

nordeste, e das do sul do país, o que seria evitado se em<br />

face da situação fosse admitido mais pessoal para a<br />

produção.<br />

Todavia, o mbongue não funcionava como se fosse<br />

uma empresa, com tudo o que lhe é característico. Era uma<br />

aglomeração de vários grupos de produção com uma certa<br />

inter-relação e colaboração entre si, mas independentes<br />

uns dos outros.<br />

Se estivessem atravessando um período de boas ou<br />

de más vendas, tal era logo visto, sentido e apalpado por<br />

todos, e cada grupo era livre de tomar as suas<br />

deliberações em função das circunstâncias que<br />

atravessavam, desde que tal não prejudicasse os demais.<br />

A admissão e a demissão do pessoal, era também da<br />

competência de cada grupo e nenhum bastardo estranho<br />

qualquer, podia um dia desses tendo acordado com a nádega<br />

destapada, descobrir que encontrava-se desempregado e<br />

fobado, e vir desde o seu subúrbio qualquer da cidade,<br />

para querer dar-se ao desplante, ao luxo de lá montar o<br />

seu posto de vendas de cadeiras. Era literalmente<br />

escorraçado.<br />

55


Embora o mbongue ter-se formado espontaneamente,<br />

depois que o negócio se tornou rentável e concorrido até<br />

ao ponto já então atingido, foram concomitante e<br />

livremente surgindo regras e regulamentos tidos e achados<br />

por consenso geral como necessários e indispensáveis<br />

tanto à boa convivência dos grupos quanto ao rendimento<br />

dos seus negócios.<br />

Entretanto, alguns dias depois de Das Fitas ter<br />

iniciado a trabalhar, Kizua caiu doente, pois havia já<br />

algum tempo que se vinha queixando de dores no tórax, e<br />

para o seu lugar deixou interinamente Das Fitas, quem<br />

embora novato, era todavia o elemento mais velho do<br />

grupo, logo a seguir ao man-Kizua, e o da maior confiança<br />

deste.<br />

Num desses dias em que Das Fitas era quase sempre<br />

o primeiro a chegar no mbongue, encontrou sentado e à sua<br />

espera um jovem que aparentava andar à volta dos dezoito<br />

ou vinte anos.<br />

A manhã era então ainda uma criança, embora a rua<br />

do Rei estivesse já bem movimentada com aquela azáfama de<br />

viaturas e de pessoas que já lhe era peculiar.<br />

Das Fitas ia aproximando-se da tenda de trabalho,<br />

e ao vê-lo o jovem pôs-se de pé, cumprimentando-o:<br />

—— Bom dia, mano Zé!<br />

Das Fitas chegou até ele e estendeu-lhe a mão<br />

direita, não obstante a sua perplexidade por não saber de<br />

quem se tratava, porquanto não era habitual àquela hora<br />

aparecerem já clientes lá no mbongue.<br />

saúde?<br />

—— Mbo ndia, mano! —— respondeu ele —— Antão o<br />

—— A minha saúde está mais ou menos —— respondeu o<br />

jovem já em songo, para maior espanto e alegria de Das<br />

Fitas ——- Apenas o mano Kizua é que ontem à noite tivemos<br />

de lhe levar ao hospital do Sanatório...<br />

56


—— Lhe levaram ao hospital?!!<br />

—— Sim, ontem à noite —— prosseguia o jovem,<br />

mostrando-se um pouco impaciente e ao mesmo tempo ansioso<br />

—— Assim ele me mandou vir no mano buscar duzentos<br />

dólares para entregar lá no hospital...<br />

—— Duzentos?! —— admirou-se Das Fitas —— e as<br />

mulheres dele, onde é que estão...<br />

—— A mana Joana dormiu lá no hospital e a mana<br />

Antonica é que veio dormir em casa, por causa das<br />

crianças, mas assim mesmo já deve estar à caminho do<br />

hospital, conforme combinamos.<br />

Ante a gravidade da situação, Das Fitas pensou em<br />

deslocar-se ao hospital para ver o seu primo, e ser ele<br />

próprio a levar o dinheiro, mas recordando-se pouco<br />

depois que nessa manhã haveria de fazer a entrega de uma<br />

encomenda de cem cadeiras que iriam nesse mesmo dia para<br />

o Cafunfo, não teve outra saída, senão a de ter que<br />

atender ao enviado do primo e a de ele mais tarde,<br />

fechado o negócio, dar um pulo até ao hospital tido como<br />

dos tuberculosos.<br />

—— E ere nu mandou ni escrita ni nada?!...<br />

O jovem, algo preocupado, esboçou um sorriso<br />

forçado e respondeu depois:<br />

—— Se ele está muito grave, mano, como é que havia<br />

então de escrever?!<br />

—— Mas está mesmo mal, mal?! —— perguntou Das<br />

Fitas, em songo.<br />

—— Não estão aceitar lhe internar por falta de<br />

dinheiro...<br />

—— Tem razão, tem razão —— dizia Das Fitas,<br />

batendo com a mão esquerda na cabeça, enquanto com a<br />

direita sacava a carteira enfiada num dos bolsos<br />

traseiros da calça.<br />

57


Nessa altura, alguns trabalhadores dos outros<br />

grupos, começavam já a chegar, e um ou outro mandava de<br />

longe um bom dia ao Das Fitas.<br />

—— Mas estes moços ndaqui hoje está chengare<br />

tarde, comoé antão? —— interrogava-se preocupado, o chefe<br />

interino —— podia te ndare ainda um combanhante...<br />

Tirou o dinheiro da carteira, e dum pequeno maço<br />

de notas verdes, sacou duas de cada cem dólares que<br />

entregou ao jovem, recomendando:<br />

—— Vai ndereto no spitare mano! É muito ndinhero<br />

que vucê está levare, sueu pudia te combanhare, maje vai<br />

vire jicriente levantare lá o encomenda, antão depoje vou<br />

ire lá no spitare, uviu? Exprica mbé no mano Kizua, e nos<br />

mana, uviu?<br />

—— Tá bem, tá bem. Respondeu o rapaz, guardando o<br />

dinheiro na sua carteira de documentos, e estendendo já a<br />

mão para despedir-se do Interino.<br />

—— E ere primo Kizua está no quaré salas?<br />

—— Ainda não tem sala, por falta do dinheiro! —–<br />

disse o jovem já mais alegre e mais apressado.<br />

—— Antão vai já memo cu depressa, uviu?<br />

E o rapaz, todo pernilongo, pôs-se logo a andar.<br />

Momentos depois do jovem ter desandado, um dos<br />

trabalhadores da tenda vinha se aproximando. Cumprimentou<br />

o Interino, e perguntou:<br />

—— Me cruzei aí com o vizinho do kota Kizua, será<br />

que veio aqui...<br />

—— Lhe viste?! —— perguntou Das Fitas, ansioso e a<br />

lançar o olhar lá para a direcção em que aqueleoutro se<br />

abalara. —— O primo Kizua está muito ngrave no spitare<br />

ndo Sanitório!<br />

—— O quê?!, o kota Kizua??!<br />

58


—— É!... Vucê chengaste só agora se não pundia ire<br />

lhe combanhare caté no spitare...<br />

Enquanto isso, os trabalhadores foram chegando, e<br />

o Interino foi repetindo a cada um deles o mesmo disco<br />

com a música única do internamento hospitalar do seu<br />

primo-como-irmão. Todos eles ficaram tristes pelo facto e<br />

foram fazendo já acertos para uma visita colectiva ao seu<br />

chefe.<br />

Das Fitas foi depois dando sequência ao seu<br />

trabalho, com o pensamento a rondar à volta de mil-e-uma<br />

nebulosas de coisas. Após ter enfitado, à muito custo,<br />

duas cadeiras, achou por bem suspender o que vinha<br />

fazendo. Ao seu lado os colegas iam conversando e<br />

trabalhando.<br />

—— O kota Kizua devia parar de pintar —— dizia o<br />

Perneta, o lixador .<br />

—— O problema é que a tinta exige muito leite. Um<br />

gajo tem de papar bem e tomar sempre leite todos os dias.<br />

—— disse o Dosolho, um dos enfitadores.<br />

—— E a lata de leite-em-pó que custa mais de dez<br />

dólares! Aí é que está a puíta! —— exclamou o man-Pinça,<br />

ajudante de pintor —— Daqui há pouco também sou eu a ir<br />

parar no Sanatório...<br />

—— Mas ere també mbembe muito kaproto! —— interviu<br />

o Interino —— e depoje fuma lá maje o tambaco!...<br />

Momentos depois apareceu o camião que trazia o<br />

cliente que havia encomendando os vinte-e-cinco jogos de<br />

cadeiras com destino à Lunda-Norte.<br />

Todo o mundo teve de suspender o trabalho para<br />

ajudar no transporte das cadeiras do armazém da<br />

serralharia do man-Pimas aí próximo, para o camião.<br />

Dentro da cabina, com a assistência de Desolho, Das Fitas<br />

ia fechando as contas com o cliente.<br />

59


Fechada a transacção, Das Fitas deu algumas<br />

instruções, deixou outras tantas recomendações e, na<br />

companhia de Dosolho pôs-se logo à caminho do bairro<br />

Palanca, onde ficava o Sanatório. Um táxi que saia do<br />

mercado dos Kwanzas, pô-los imediatamente em frente do<br />

portão do hospital.<br />

O capim alto ao redor do edifício de quatro pisos,<br />

e os charcos de água das primeiras chuvas desse ano,<br />

chamaram logo a atenção do Interino.<br />

——Antão aqui també tem lá nguera? —— perguntou ele<br />

em tom de zombaria.<br />

—— Por quê que faz essa pergunta, kota?<br />

—— Olha só o capinho mbé arto, as lagoa ndo água<br />

cu musquito, os sapo a ngritare...<br />

—— O que é que isso tem, kota?<br />

—— Um spitare onde tem lá jiduente fica ansi<br />

parece é mata?...<br />

—— Hã!... —— exclamou Dosolho, entendendo já o<br />

sentido das palavras do Interino —— Aqui, se você vem com<br />

tubú, kota, você sai com katolotolo!...<br />

Dirigiram-se à recepção, onde do outro lado do<br />

balcão duas jovens de batas brancas não responderam ao<br />

cumprimento deles, tão empolgadas estavam na conversa<br />

sobre a novela que a televisão passava à noite.<br />

—— E você pensa que a malaique é que vai ficar com<br />

o retratista? —— dizia uma, aproximando-se para atendêlos.<br />

—— Se ela não ficar com o retratista aquela besta<br />

também não vai ficar! —— dizia a outra, sentada com as<br />

pernas cruzadas num sofá cujas espumas dos braços<br />

carcomidas pelo uso, deixavam mostrar as madeiras do seu<br />

esqueleto.<br />

60


—— Informem-se, por favor! —— disse a que se<br />

aproximara, apoiando os cotovelos no balcão, enquanto com<br />

uma lima na mão esquerda, aparava as unhas da direita.<br />

O Interino reparando pela não destreza da<br />

catalogadora, pensou com os seus botões: ―o mano Kizua<br />

ndeve morer‖. Foi Dosolho quem começou a informar:<br />

—— Temos aqui um doente...<br />

—— O nome? Quando é que deu entrada? —— interrogou<br />

ela altiva e com ares desprezíveis.<br />

Sentada no sofá, a outra jovem continuou<br />

conversando, indiferente ao que se passava no balcão:<br />

—— E onde é que logo à noite vamos ver a novela,<br />

se aqui não há energia?<br />

—— Kizua! Mano Kizua! —— disse o Interino,<br />

emendando.<br />

—— O quê?! Mano Kizua?!... —— espantou-se a<br />

catalogadora —— Isso é nome de pessoa?! Ha! ha!, ha! ——<br />

pôs-se ela a rir. E respondendo à outra:<br />

—— Vamos ver no Kapolo, lá tem gerador.<br />

Depois, olhando mais atentamente para a dupla à<br />

sua frente:<br />

—— Kizua quê? Digam qual é o nome e qual é o<br />

apelido, senhores! —— gritou ela.<br />

—— Kizua Mateus, mana —— disse o Interino, como<br />

que a pedir esmolas.<br />

—— E quem é que vai ficar aqui? —— perguntou a que<br />

estava atendendo, enquanto com a ponta da lima procurava<br />

o nome numa lista aí ao lado.<br />

—— Ficare comoé? —— perguntou Das Fitas, perplexo.<br />

61


—— A pergunta não foi para o senhor! —— disse ela<br />

elevando a voz —— Não vê que estou a conversar com a<br />

minha colega?...<br />

outra.<br />

—— O ti João pode ficar aqui. —— respondeu a<br />

Algumas pessoas sentadas nos bancos encostados às<br />

paredes, acompanhavam a cena do balcão, mostrando com<br />

trejeitos, murmúrios e abanar de cabeças, o seu<br />

desapontamento.<br />

A catalogadora deu mais duas olhadas à lista e<br />

depois disse:<br />

—— Aqui neste hospital, não entrou nenhum mano<br />

Kizua Mateus! —— rematou ela, impaciente, regressando<br />

logo ao sofá.<br />

Uma senhora de estatura baixa envergando uma bata<br />

de cor azul e com um balde de limpeza à mão, fez um sinal<br />

de chamada para os dois homens.<br />

Indo ter com a senhora, Das Fitas teve então a<br />

intuição de que aquele não era o hospital onde se<br />

encontrava o seu primo-como-irmão. ―Mas ere ndisse<br />

Sanitório...‖ —— pensou o Interino. Quando chegaram junto<br />

da senhora, esta indicou-lhes uma porta, seguindo-os<br />

atrás.<br />

—— Os senhores estão à procura de quem? ——<br />

perguntou ela respeitosamente.<br />

—— Estamos a procura de Kizua Mateus. —— disse<br />

Dosolho —— Entrou aqui ontem à noite...<br />

—— E o nome dele não aparece nas listas?<br />

—— Não, nu parece. —— respondeu o Interino.<br />

A senhora fez um breve silêncio, reparou da cabeça<br />

aos sapatos aquelas duas figuras à sua frente e pousando<br />

o balde num canto, disse:<br />

62


—— Vamos! Essas moças da recepção só atendem bem<br />

com gasosa...<br />

E viajaram por quase tudo quanto era o hospital<br />

Sanatório de baixo à cima, da direita para a esquerda, do<br />

direito ao avesso de toda a sua insalubridade, e nada,<br />

nadinha de man-Kizua Mateus por lá tinha dado entrada,<br />

morrido, passeado ou saído.<br />

Ao despedirem-se da senhora, ela toda risos,<br />

perguntou:<br />

—— Então não me deixam só lá uma gasosinha?...<br />

Os dois, admirados, entreolharam-se e Das Fitas<br />

levando a mão ao bolso, tirou uma nota de dez mil novos<br />

kwanzas e entregou à senhora.<br />

—— Obrigada! —— disse ela sorrindo. —— Voltem<br />

sempre!...<br />

Depois de terem dado alguns passos calados,<br />

Dosolho rompeu com o silêncio:<br />

—— Se o kota Kizua não está aqui, onde é que ele<br />

pode estar?<br />

—— O rapage que foi mbuscare o ndinhero ndisse que<br />

ere mano Kizua está na spitare nda Sanitório, comoé<br />

agoras num está lá?<br />

—— O rapaz que... Qual rapaz que foi lá buscar<br />

dinheiro?! —— indagava Dosolho, admirado com a novidade.<br />

—— Quanto é??...<br />

—— Nduzento ndolare...<br />

——Du-ze-ntos??!! —— espantou-se o outro.<br />

—— Nu me ndisse comoé nome ndere, maje é rapage<br />

nosso lá ndo tera, é vizinho ndere ndo mano Kizua...<br />

—— Kota, sabe o que é... —— interrompia Dosolho ——<br />

isso de conterrâneo, é fita!<br />

63


—— Quaré, fitas??!<br />

—— É fita, é mentira! —— explicou Dosolho. —— Isto<br />

está a me cheirar burla!<br />

O Interino começou logo a suar, a transpirar<br />

vapores de sangue e raiva de querer esquartejar a cara<br />

daquele ―fíria nda putas‖, mas foi pondo uns freiozinhos<br />

nos poros já escancarados como bocas de jacarés em<br />

atalaia, pois podia dar-se o caso de ―ere mano Kizua<br />

estare mbora noutro Sanitório‖.<br />

Encontravam-se já dentro do táxi que ia para o<br />

Roque Santeiro, de onde caminhariam depois à pé até ao<br />

Nguanhá, onde morava o primo-como-irmão do Interino. O<br />

sol a aproximar-se do zénite parecia estar levando em<br />

digueza para lá também o calor dos corpos dos passageiros<br />

no interior do superlotado táxi.<br />

—— Maje ó mano Ndojiolho, antão num tem maje<br />

outro spitare Sanitório aqui no Luanda?<br />

Alguns dos passageiros atiraram os seus olhos para<br />

a fonte do que os seus ouvidos haviam captado. O Interino<br />

sentiu-se atingido, mas estava mais interessado em saber<br />

a resposta ao que perguntara e às tantas questões que<br />

efervesciam dentro de si.<br />

—— Que eu saiba, só há um Sanatório em Luanda. ——<br />

respondeu Dosolho.<br />

—— E quaré ? —— perguntou o Interino, com<br />

ansiedade.<br />

—— Então, não estamos a sair mesmo de lá?! «Esse<br />

kota parece que está a estagiar...»<br />

—— Ah! Afinare é só aquere...?!<br />

Dosolho não respondeu, antes optou por esclarecerlhe<br />

o que ia dentro do seu pensamento:<br />

64


—— Kota Zé, —— dizia ele, com muita calma —— é<br />

melhor pôr de lado isso de Sanatório, Sanatório. Só<br />

depois de nós chegarmos lá em casa do kota Kizua é que<br />

vamos saber toda a verdade.<br />

—— É nverdade memo! —— assentiu o Interino.<br />

O trajecto Sanatório-Roque Santeiro era longo e<br />

demorado pelos engarrafamentos já clássicos de muitos<br />

trechos das vias, pelos eternos buracos nas estradas,<br />

pelas paragens de fazer apear e de fazer desapear<br />

passageiros, e como se tal não bastasse, pelos agentes de<br />

trânsito que aqui, ali e acolá, muitos numa só viagem<br />

mandavam parar uma, duas, três, dez vezes e dez viaturas<br />

de uma só vez, para nelas descobrirem a falta dum pisca,<br />

duma taxa disto e daquilo e daquilo, duma licença de<br />

condução, duma identificação no tabellaire, de um anjo da<br />

guarda, de qualquer pretexto de fazer a viatura, o táxi<br />

ficar ali minutos, horas, anos estacionado, com os<br />

passageiros no seu interior a ficarem assados de tanto<br />

calor, ou a quererem já bazar embora, até que o figurão<br />

do vaidoso agente de trânsito abrisse o jogo da «gasosa»<br />

que ele próprio desavergonhadamente a sorrir punha no<br />

bolso ou se calhar já depois dumas birras no bucho,<br />

ebrirridente mandava o motorista pagar à um mocito<br />

abancado numa esquina lá mais adiante, para inglês ver...<br />

Poucas eram as vezes que Das Fitas, desde que se<br />

abalara com a família do mato para a capital, andava de<br />

táxi. Para ele essa viagem estava sendo mais longa e<br />

demorada que a maior viagem já feita em toda a sua<br />

existência. Se não fosse andar com o Dosolho, dava-lhe na<br />

gana de numa dessas longas paragens dum próximo<br />

engarrafamento, fugir do táxi e ir embora à correr até à<br />

casa do seu primo-como-irmão.<br />

—— «Pôras, —— chateava-se ele com os seus botões —<br />

— andare ndo caro aqui no Luanda é fodidos. É calore, é<br />

parare, é nhenque-nhoco ndesses nzairenses aqui, pessoa<br />

nu sabe quê que estão falare, é jipurícia pára aqui, pede<br />

ndinhero ari, pôras!... Jicandongueiro anda pára, anda<br />

pára, comoé pessoa ansi pode chegar kabucado cedo?»<br />

65


Já na área do Sambizanga, o funil de aproximação<br />

ao mercado do Roque era tão fechado que o motorista<br />

preferiu, tal como muitos outros, embrenhar-se pelas<br />

ruelas e becos do bairro. Aqui também, crianças e jovens,<br />

moradores, colocavam barricadas de pedras, tambores, e<br />

quem quisesse passar com a sua viatura, tinha de pagar<br />

portagem.<br />

Dentro do táxi alguns passageiros, já aborrecidos,<br />

murmuravam, tendo um deles explodido:<br />

—— Tirem lá essa merda dos tamborões do caminho! —<br />

— gritou ele da janela, para os jovens.<br />

—— Kota, —— dizia o motorista —— esses miúdos<br />

daqui são mbora frustrados, deixa só eu falar com eles...<br />

O motorista fez um sinal chamando os que se<br />

encontravam de pé junto à barricada. Dois deles,<br />

corporalmente bem constituídos e com franzidos nas<br />

testas, aproximaram-se da janela do motorista.<br />

—— É pá, agora ainda não tenho nada, mas quando eu<br />

voltar vos deixo uma fesada...<br />

—— Quando vortar, num dá kota, nós também estamo<br />

aqui bem fobado, ainda num pancamos nada... —— disse um<br />

deles.<br />

O motorista tirou do cinzeiro uma nota de cinco<br />

mil novos kwanzas e pô-la no bolso da camisa do rapaz.<br />

Este e o outro, já sorridentes, foram afastar os<br />

tambores, deixando a viatura passar. Um arzinho de ânimo<br />

foi respirado pelos ocupantes do táxi.<br />

—— Este é um país da porcaria! —— exclamou uma<br />

senhora com ares de ter queimado muita pestana à estudar.<br />

—— Miúdos que deveriam a esta hora estar sentados na<br />

cadeira da escola, ou nas bibliotecas a pesquisar, que<br />

deveriam estar em casa a ler um livro, estão aqui a<br />

pedintarem uns míseros dinheiros, para matarem a fome.<br />

Que país é este?<br />

66


—— E estão todos os dias a descobrir poços de<br />

petróleo! —— adicionou um outro passageiro.<br />

—— Mas também, de que vale teres tantos estudos se<br />

depois não és valorizado, se depois és atirado na<br />

sarjeta? —— interrogava-se ainda a senhora.<br />

Encontravam-se já em pleno mercado, e o cobrador<br />

do táxi, um miúdo com doze, catorze anos, na sua voz rija<br />

e rouca, gritou logo para as pessoas que se aproximavam<br />

do carro:<br />

—— Brigada! Congolenses-praça!<br />

Desceram do táxi e puseram-se à caminho. Das Fitas<br />

verificou se tinha a carteira de documentos no bolso de<br />

trás das calças, e contente por ter tudo em ordem,<br />

esticou ainda mais a passada. À medida que iam se<br />

aproximando da casa do primo-como-irmão do Interino, a<br />

ansiedade, a preocupação, a pulsação e a transpiração,<br />

iam também aumentando na pessoa de Das Fitas.<br />

De longe puderam ver algumas crianças brincando<br />

junto à porta do quintal de Kizua, e já próximos algumas<br />

vieram agarrar-se aos pés dos dois, cumprimentando-os.<br />

—— Quem está no dentro? —— indagou logo o<br />

Interino.<br />

—— Tá lá mamã Antonica. —— respondeu a mais<br />

crescidinha de todas, seguindo-os atrás. —— «Antão mano<br />

Kizua e mana Maria estão memo no spitare» —— pensou Das<br />

Fitas. —— Dá ricença! —— pediu ele, já no interior do<br />

quintal e com Dosolho atrás de si.<br />

Uma senhora com um bebé ao colo, surgiu à frente<br />

deles, vindo do interior da casa. Embora esboçando um<br />

sorriso ao ver o Interino, parecia entretanto não<br />

conseguir ocultar o semblante de tristeza que trazia no<br />

restante dela. Os gestos e o olhar traíam o seu sorriso.<br />

—— Quaré spitare que ere está? —— perguntou<br />

imediatamente o Interino, estendendo a mão para<br />

cumprimentar.<br />

67


—— Ere está no posto médico. —— respondeu a<br />

mulher, em songo. E em songo prosseguiu a conversa:<br />

—— Afinal está no posto médico e apareceu lá o<br />

vosso vizinho, nosso conterrâneo...<br />

—— Qual vizinho?! —— interrompeu a mulher —— Fazer<br />

o quê?!...<br />

—— Agora é que estou lixado! —— exclamou o<br />

Interino, pondo as mãos na cabeça.<br />

—— Hoje de manhã muito cedo apareceu lá no serviço<br />

um vizinho vosso a dizer que o kota Kizua estava<br />

internado no Sanatório —— explicava Dosolho, enquanto o<br />

Interino fora atirar-se num banco, como que a contorcerse<br />

das dores da intrujice —— ... E levou duzentos<br />

dólares...<br />

—— Nduzentos ndo-la-res!? - gritou a mulher —— E<br />

quaré a nome ndele, vucês lhe conhece?!<br />

Em poucos minutos, o quintal ficou imediatamente<br />

cheio de gente.<br />

——Antão... Ainda espera! —— disse a mulher, e foi<br />

para dentro da casa saindo pouco depois com um álbum de<br />

fotografias na mão.<br />

O Interino arrancou o seu corpo do banco e veio<br />

com todos os seus olhos também ver o que estava sendo<br />

mostrado.<br />

mesmo!<br />

—— É este? —— perguntou a mulher, ofegante.<br />

—— É ele! É ele! —— gritou o Interino —— é ele<br />

—— Vamojo no casa ndere! —— ordenou a mulher,<br />

seguido do Interino, Dosolho, de todos os que haviam<br />

enchido o quintal, com a raia miúda a fazer de cauda<br />

final.<br />

68


——Quem é mandou ere Layguimin ire mbuscare<br />

nduzento dolares, quem é?! —— ia a rabujar-se a mulher.<br />

—— Ele parece que tem feitiço. —— dizia Das Fitas,<br />

em songo —— O meu coração estava mesmo muito pesado, mas<br />

como ele estava a falar os nomes das pessoas aqui de casa<br />

e na nossa língua, aí eu criei confiança nele e lhe<br />

entreguei o dinheiro. Eu queria ir com ele mas não havia<br />

ninguém para ficar na oficina, e também tinha um negócio<br />

para fechar....<br />

—— É aqui casa ndere! —— disse a mulher, toda<br />

trombuda, empurrando uma porta de chapas.<br />

Ao ouvir o barulho de gente entrando no quintal,<br />

um jovem que aparentava ter dezoito ou vinte anos, saiu<br />

de dentro para o quintal com a cara trancada e assustada.<br />

Ao vê-lo, o Interino secundado por Dosolho, caiu logo em<br />

cima dele, agarrando-lhe nos braços. Atónito e pasmado, o<br />

jovem nem ofereceu qualquer resistência.<br />

—— É este mesmo! É este mesmo! —— gritaram eles.<br />

—— Mas o que é que se passa, mana Antonica? ——<br />

perguntou ele, acto-contínuo, sem compreender patavina do<br />

que se estava passando.<br />

—— Ondê está o Minguilay? —— perguntou-lhe em<br />

songo, a mulher de Kizua, ofegante e ansiosa, reparando<br />

bem nas feições do jovem.<br />

Nesse ponto, Interino e Dosolho entreolharam-se e<br />

deram-se logo conta de que estavam diante do irmão gémeo<br />

do outro que de manhã havia aparecido no mbongue.<br />

Desiludidos, largaram os braços do jovem, contando e<br />

ouvindo seguidamente toda a história.<br />

Em altas horas da noite anterior, as duas mulheres<br />

do primo-como-irmão do Interino haviam mandado chamar<br />

Layguimin, que era conterrâneo, vizinho e companheiro de<br />

copos de Kizua, a fim de ajudar a levar o seu «compadre»<br />

ao posto de socorros que ficava aí próximo, pois tinha a<br />

tensão muito alta e outras complicações cujos nomes<br />

ninguém sabia.<br />

69


Minguilay, o outro gémeo, um grande nómada que<br />

aparecia e desaparecia quando bem lhe dessem as pernas<br />

tão longas que possuía, era quem se encontrava em casa.<br />

Naquela azáfama de pega aqui, levanta ali, na quase<br />

escuridão da noite dum bairro negro e pobre,<br />

maioritariamente habitado por arremedo de pessoas, por<br />

indivíduos socialmente descartáveis, aturdidas pelo<br />

estado em que o marido se encontrava, nenhuma das duas<br />

mulheres do primo-como-irmão do Interino pôde então<br />

distinguir se ele era o trigo ou se era o joio, quando o<br />

mais importante era salvar o pão delas de cada dia ali a<br />

esvair-se de vida.<br />

——E agora? —— perguntou Dosolho, estupefacto com<br />

tudo o que lhe era dado ver e ouvir.<br />

Encontravam-se já à caminho do posto de socorros.<br />

Após um breve silêncio, Layguimin respondeu:<br />

—— Bom, aqui ele não tem praticamente nada de<br />

valor, eu também reparo mbora mos fogareiros à gás aqui<br />

no bairro...<br />

—— Ere Minguilay se nu vortare aqui cum dinhero,<br />

eu vou viajar no Malange! —— disse enfurecida mana<br />

Antonica.<br />

E polemizando nisto e naquilo acabaram por chegar<br />

ao posto de socorros, combinados entretanto a manter em<br />

secreto o assunto dos duzentos dólares burlados, até que<br />

o primo-como-irmão do Interino se desinterinasse da<br />

doença de uma vez por todas.<br />

Todavia, chegados no local, tudo indicava tudo<br />

menos raio algum de luz mostrando grandes esperanças de<br />

melhoria por parte do doente.<br />

O enfermeiro, um jovem com a dentição de leite<br />

ainda mal digerida, cercado de todos os meios<br />

insuficientes para salvar Kizua, a mexer aqui, coçar ali<br />

e a esfregar acolá, fez tudo o que estava ao seu alcance<br />

para não mandar evacuar o doente para um hospital grande<br />

70


e de verdade, até que o sorteado do homem resolveu dar<br />

mesmo o caldo...<br />

O Nguanhá era um bairro maioritariamente habitado<br />

por malanginos massongos, o que fazia com que em<br />

situações como as de morte, roubo, ou qualquer outro<br />

infortúnio que exigisse a solidariedade humana, todos se<br />

sentissem parentes do sorteado. O carácter sociável do<br />

falecido, fizera dele um indivíduo bem conhecido no seu<br />

meio, e tal fez-se reflectir no óbito, onde quase todo o<br />

bairro apareceu para dar os seus pêsames à família<br />

enlutada.<br />

Não havendo morte sem desculpas, alguns parentes<br />

muito inconformados com a desencarnação de Kizua,<br />

formaram uma cabala de espermatizar todo o seu kikoto no<br />

«bandido do enfermeiro», com um bouquet de bofetadas e<br />

pontapés, pelo sacrifício consentido em não enviar o<br />

doente para outras paragens melhores equipadas e<br />

autorizadas. Dali vieram ao óbito arrancar o Layguimin<br />

das lágrimas de crocodilo que vertia pelo seu «compadre»,<br />

para aumentar o volume delas apanhando um cabaz do mesmo<br />

bouquet, mas já em versão não-profissional, por ter sido<br />

ele quem muitas vezes vinha buscar o outro para irem<br />

incendiar-se de kaporroto.<br />

Para voarem mais depressa e mais alto, os<br />

bebedores de kapuka, dentre os quais a dupla Kizua-<br />

Layguimin, tinham no bairro uma casa especializada no<br />

fabrico de kaporroto feito à base de combustível de<br />

avião. Era conhecida por Porta do Céu, por ser dentre a<br />

maior parte das casas que vendiam bebidas, a que mais<br />

clientes mandava desta para a melhor. Ainda assim, a<br />

clientela nunca diminuía, como se a morte de um trouxesse<br />

à existência mais de dez.<br />

Guiada pelo Layguimin, a cabala foi finalmente<br />

despejar todo o seu kikoto, todo doce fel da sua raiva,<br />

na Porta do Céu, partindo todos os garrafões arquivados e<br />

também os que estavam sendo vendidos, para que os<br />

vendedores, se quisessem fossem depois queixar-se à<br />

polícia.<br />

71


O funeral duma pessoa, era nesses dias uma boa<br />

passarela para muita gente aproveitar mostrar como e quão<br />

caros eram as suas vestes e os seus calçados. No enterro<br />

do primo-como-irmão do Interino, apareceu gente vestida<br />

dos mais diversos modos, modas e modelos; desde as mais<br />

velhas de panos e quimonos, às raparigas e até senhoras<br />

já de certa idade a mostrarem partes íntimas dos seus<br />

corpos, capazes de porem teso e de pé o sexo de um morto<br />

com um olho zongolador ainda semiaberto.<br />

Era tanta a pressa que muitas pessoas pareciam ter<br />

em se desembaraçarem do morto, que as músicas do óbito já<br />

não eram cantadas a viva voz, já não saiam da alma das<br />

pessoas, como antigamente, mas tocadas por um reprodutor<br />

de cassetes que punha no ar músicas em várias línguas de<br />

uma religião que lhes era desconhecida. Algumas mais<br />

velhas mandavam parar o reprodutor para puderem cantar,<br />

tocar e dançar as dolentes canções da sua terra, mas<br />

volta e meia os mais jovens punham outra vez a tocar as<br />

cassetes com canções de Mpeve Yá Nlongo, que muito poucos<br />

massongos sabiam cantar.<br />

A marcha fúnebre para o cemitério da Mulemba Waxa-Ngola,<br />

foi mais rápida que a primeira corrida de<br />

automóveis do mundo. Foi mesmo pena não puderem<br />

ultrapassar o carro em que ia a urna, porque senão<br />

chegaria muitos séculos depois de todos os outros carros<br />

que lhe seguiam, trazendo muitos jovens a fazerem<br />

acrobacias, a berrarem impropérios bonitos e piropos<br />

românticos, a pularem, a gritarem de tanta alegria, que<br />

muitos transeuntes e muitos acompanhantes talvez<br />

pensassem mesmo em hibernar os seus corpos ainda vivos,<br />

ou já mortos, para que fossem descongelados apenas numa<br />

sociedade em que a moral, a ética e o civismo fossem<br />

estritamente observados, pelo menos nesses momentos<br />

sobremaneira tristes para quem perde um ente querido.<br />

Na maior parte dos actos do óbito, o Interino era<br />

o que mais protagonismo tinha, só em muito raros casos<br />

delegando o seu poder, mas não teve capacidade nem<br />

autoridade suficientes para manter as pessoas todas junto<br />

à cova, até que a urna contendo o corpo do seu primocomo-irmão<br />

fosse totalmente coberto de terra.<br />

72


A maior parte delas, sobretudo as mais jovens,<br />

tendo atirado um punhado de terra ao buraco, como que a<br />

dizer «tchau, tchau», punha-se logo a desandar dali, a<br />

fugirem em direcção às viaturas, como se tivessem medo<br />

que o morto ressuscitasse e fosse logo lhes inviabilizar<br />

a festança e a bebedeira subsequentes aos funerais dos<br />

dias modernos.<br />

Das Fitas sentiu o peso de sustentar e de chefiar<br />

praticamente quatro famílias, e resolveu que dali em<br />

diante, ele próprio já na qualidade de responsável-chefe<br />

da tenda, teria de dar tudo de si, para levar a empresa a<br />

bom porto.<br />

Pela experiência já então adquirida, pôde sem<br />

receio e sem tremelicar, virar o ―p‖ de patrão e de<br />

parlapatão, à ―d‖ de dono e de democrata, para que não só<br />

ele, mas todos os que ali trabalhavam, se sentissem donos<br />

da tenda, donos da mesma causa, donos dos lucros e dos<br />

prejuízos. O trabalho foi sendo mais eficiente, com menos<br />

desperdícios e maior rentabilidade.<br />

A vida pessoal de cada um dos membros da tenda foi<br />

mudando. Das Fitas promoveu a interacção entre os membros<br />

de todas as famílias de cada membro da tenda e<br />

paulatinamente todos foram se sentindo como irmãos,<br />

amigos, parentes, visitando-se mutuamente, indo cada um à<br />

festa do outro, ao óbito do outro, sem constrangimentos<br />

ou embaraço algum de motivação hierárquica ou por motivo<br />

de quaisquer outros preconceitos.<br />

Com o aumento da produção, Dosolho ficou<br />

encarregado por um posto de vendas aberto no mercado do<br />

Roque Santeiro. Man-Pinças foi substituído pelo filho<br />

primogénito do falecido man-Kizua, e promovido para<br />

acompanhante de carga e responsável de vendas no mercado<br />

da Xauânde, em Malange. Chiquito, o primogénito de Das<br />

Fitas, foi colocado no posto de enfitador e o pai<br />

acumulou o cargo que já tinha ao de cortador de fitas.<br />

A falta de fitas para cadeiras fez com que as<br />

mangueiras para rega, feitas de plástico e rasgadas em<br />

tiras, fosse a alternativa para prosseguirem com a<br />

produção de cadeiras.<br />

73


Dado o modo hábil e expedito de Das Fitas rasgar<br />

as mangueiras, a sua tenda podia fornecer fitas para as<br />

outras e inclusive para os clientes de fora. Passou então<br />

a ser cognominado de man-Zé das Fitas.<br />

Muito próximo do mbongue, o vale do Soroca não<br />

parava de receber os resíduos sólidos e líquidos vindo<br />

das residências e das fábricas contíguas ao seu percurso.<br />

Nesse tempo em que as águas das chuvas aumentavam o seu<br />

caudal, tornando perigosa a sua travessia, nos momentos<br />

de pausa no serviço, Das Fitas aproveitava para dar uma<br />

volta nas suas beiras, a fim de apreciar a força da<br />

correnteza das suas águas.<br />

Das Fitas ficava a pensar nas muitas histórias do<br />

vale do Soroca, as vidas levadas pelas águas, cujos<br />

corpos eram arrastados e depositados na baía de Luanda,<br />

quando não tivessem o azar de serem travados por algum<br />

dos muitos obstáculos estendidos ao longo dos seus<br />

meandros.<br />

Da baía, o seu pensamento ia para o alto mar.<br />

Tanta a imensidão do mar! Quem lhe dera fosse o seu corpo<br />

afundado nas longínquas entranhas do alto mar, quando<br />

morresse!<br />

Regressando do seu passeio, ficava também a pensar<br />

nessa lenta mas imparável chegada das cadeiras de<br />

plástico. Quanta coisa dava o petróleo, heim!... Um dia<br />

chegaria em que o fabrico artesanal de cadeiras de fitas<br />

seria suplantado e abafado pela invasão das de plástico.<br />

Quantas famílias, quantas bocas não seriam então<br />

afectadas por essa invasão? Como poderiam defender-se?<br />

Onde poderiam recorrer? Quem se importaria com o destino<br />

das suas vidas?...<br />

Das Fitas esboçava já mentalmente um quadro negro<br />

do que seriam os dias do futuro, em que as vendas<br />

baixariam sobremaneira, e se as vendas baixassem, a<br />

produção consequentemente baixaria também. Até que o<br />

petróleo acabasse, ninguém trocaria a sua cadeira de<br />

plástico por uma de fitas. Ninguém prescindiria da sua<br />

cadeira de petróleo mais rijo, mais consistente,<br />

74


perpétuo... Ninguém compraria mais sequer uma cadeira de<br />

fitas de petróleo menos rijo, menos consistente,<br />

mutável...<br />

Os sinais dos últimos dias deste «sistema iníquo<br />

de coisas» far-se-iam então sentir com mais acutilância<br />

em todas as casas de todos os trabalhadores do mbongue.<br />

Haveria fome, doenças, terramotos, maremotos,<br />

celestemotos, numa casa após outra e em todas ao mesmo<br />

tempo. Os filhos revoltar-se-iam contra os pais, as<br />

mulheres contra os maridos, irmãos contra irmãos, seria<br />

enfim, o fim da sociedade, seria o caos geral, seria... o<br />

fim do mundo...<br />

Com essa antevisão dos dias do futuro, decidiu que<br />

ainda estava a tempo de tomar outras precauções. Tinha de<br />

deixar o poder, a cadeira... De que lhe valeria manter-se<br />

obcecado com a posse de algo para o qual havia já<br />

evidências de que mais dias, menos dias o tempo se<br />

encarregaria de lhe desapossar?...<br />

... Era tempo para a Alternância do Poder...<br />

Escrito em Luanda, entre a Petrangol e o São Pedro da Barra, de 05 de Dezembro de 2004 a 05 de<br />

Janeiro de 2005<br />

75


Rangel, 20.06.84<br />

R<br />

O ECONOMISTA<br />

asgava o astro-rei, nos seus primeiros<br />

aios, as frestas da casa de madeira, onde<br />

no final de cada dia ia repousar os seus músculos, suas<br />

graças e desgraças.<br />

Tal como tantos outros, havia ocupado uma bela<br />

vivenda nas confusões do 25 de Abril, onde teria<br />

repousado, não fosse as suas acções estarem mormente<br />

submetidas à satisfação da sua ambição maior.<br />

Vendera tanto a vivenda quanto tudo o que lá havia: a<br />

mobília completa e alguma roupa, deixados pelos donos, e<br />

tudo isso sem piedade a truques de amortizações ou outros<br />

estorvos.<br />

Lá fora, os galos não paravam de cantar. Feito o<br />

asseio matinal, aprontou-se muito rapidamente e já cá na<br />

rua, levava mais uma vez e em largos passos, aquela sua<br />

bem vincada personalidade, antítese dos dois pares de<br />

parede da casa alugada no Catambor.<br />

Trabalhava ali na Auto-Reparadora Bom-Escape,<br />

radicalmente à esquerda do caminho que seguia, afinal à<br />

busca de um colega, companhia de todos os dias.<br />

O percurso que o levava à casa do colega, fazia-o<br />

sempre com as mais largas passadas, já o mesmo não<br />

acontecendo quando de lá saía. E, não fosse o muito à<br />

esquerda da sua casa, e a necessidade inevitável de lá<br />

sempre cedinho passar, nada mais faria levantar<br />

suspeitas, quiçá até dúvidas, sobre as suas boas<br />

intenções.<br />

Bateu a porta no instante sempre I de encontrar o<br />

colega ainda a lavar-se, e mais não esperou, para lhe<br />

dizer, zangado no rosto e na voz, mas hiperalegre no imo:<br />

---- Então, ainda não estás pronto, homem?<br />

77


E coisa que nem esperava que o mandassem, foi sentarse<br />

lá dentro ao pé da mesinha de ferro, que era o coração<br />

da sala, dir-se-ia, a capital da casa: um quarto de<br />

madeira, com mil-e-uma estrelas no zinco das chapas, e<br />

com um pequeno quintal.<br />

Enquanto aguardava, foi conversando com a esposa do<br />

colega, que do outro extremo do quarto, preparava o matabicho.<br />

Mas estava à quantas milhas do que falava!<br />

Era certo que todo o seu pensamento estava escoltando<br />

o que dali há pouco se haveria de anunciar. O colega já<br />

nem pasmava, ao vislumbrar nele o alívio que não sabia<br />

dissimular, quando o convidava a matambar.<br />

Conjugaram o gerúndio do estreito e insípido matabicho,<br />

e logo meteram-se à caminho do serviço.<br />

No Bom-Escape, o relacionamento entre Zito e os<br />

colegas, era óptimo, inverso do que havia entre ele e o<br />

patronato, por ser dentre os trabalhadores, quem mais<br />

apontava as dificuldades por que passavam. Tal, era o<br />

suficiente para a boa reputação junto dos seus colegas, e<br />

para a sua consequente colocação na antecâmara do olhoda-rua,<br />

pelo senhor patrão.<br />

Mas sabia tirar partido de todas as marés e nada lhe<br />

impedia que não aproveitasse para se afogar de dívidas<br />

sob a maré dos colegas. E quando metido no seu trabalho<br />

ou onde quer que estivesse, desse conta da aproximação de<br />

alguém à quem devesse, antecipava-se-lhe com alguma das<br />

tantas chaladices que tão rapidamente sabia inventar,<br />

levando a que o outro se esquecesse por completo de lhe<br />

chatear, e até ia-se embora às gargalhadas.<br />

Só mesmo quando Deus se lhe deparava é que o azar<br />

acontecia, e aí, tinha de inventar doenças e roubos e<br />

feitiços e óbitos que, coitado, só ele tinha sempre. Era<br />

só ver o seu rosto para se não desacreditar.<br />

Na manhã seguinte, ao passar pela casa do colega,<br />

encontrou-o doente. Ficou extremamente triste e<br />

aborrecido pelo facto. E rezou que o colega melhorasse o<br />

78


mais depressa possível. Se possível, naquele mesmo<br />

instante.<br />

----Faz lá coragem, rapaz! Uma febre de nada é que<br />

vai te fazer faltar, te fazer perder o teu pão de cada<br />

dia, juntamente com a tua mulher?<br />

----Nada. Estou mesmo mal, eu é que estou a me<br />

sentir.<br />

E teve de ir sozinho. Sem matabichar…<br />

Posto no local de serviço, todos os anjos do céu<br />

desceram ao seu corpo, e os colegas acreditaram que não<br />

era um simples colega de Juca, mas um verdadeiro irmão. E<br />

porque os momentos tristes fossem sempre longos, teve<br />

nesse dia, o dia de trabalho mais longo de toda a sua<br />

existência. Todavia, ao largar é que se lhe deparou o<br />

outro extremo das consequências que a falta de Juca<br />

reflectia sobre a sua pessoa.<br />

Onde jantar? …<br />

E lá estava ele, ele ante ele, ele ante o dilema de<br />

passar ou não passar pela casa do colega. Sim, tudo seria<br />

natural, e ele, uma pessoa acima de qualquer suspeita, se<br />

não fosse aquele muito à esquerda… Mas… ―quando está bom,<br />

vou sempre lhe acompanhar, agora que está doente não vou<br />

lhe visitar nem nada?‖<br />

Resolveu então passar por lá.<br />

Bem longe dos seus olhos, o mar ia já lentamente<br />

engolindo os últimos raios de sol, incendiando todo o<br />

horizonte. Na cidade, as luzes iam já acendendo, quiçá um<br />

pouco antes da hora habitual, e pensando ser já tarde, só<br />

pôde acelerar um pouquinho mais a passada, mas mesmo<br />

assim, quem lhe visse, não diria que estivesse a andar.<br />

―----Esses do mato, gostam mbora de campar cedo.‖---pensou.<br />

Pediu licença. Mais uma, dentre as… não sabia quantas<br />

já havia pedido ante aquela porta. Pediu mais uma, mais<br />

79


duas, antes de lhe abrirem a porta, com moléculas de um<br />

agradável cheiro logo lhe agredindo o olfacto. E de<br />

cheiros assim, quem não gostava?<br />

Reflectiu no tempo que passara a pedir uma, duas,<br />

muitas licenças, enquanto do lado de dentro saía um<br />

barulho de tampas e panelas e… zás! Não estando nem<br />

panela nem nada sobre o fogão, concluiu que ―essa<br />

malanginha de merda deve mazé esconder as panelas‖.<br />

Não se fez cadavérico ante aquilo, mas arcanjo ante o<br />

companheiro doente.<br />

----Pois é, Juca. Todos miza lá estão tristes…<br />

----Ai-é?!… Isso passa já. Amanhã vou já trabalhar…<br />

----Oxalá, Juca, oxalá. Pensa só no teu pão de cada<br />

dia, mô camba…<br />

Ená! Dir-se-ia estar mais doente que o colega! O<br />

coração torrenciava-lhe de lágrimas, e a voz só por pouco<br />

não desfalecia!<br />

Apesar de tudo, a mulher do colega não parava de<br />

flagelá-lo com olhadas cépticas e pejorativas, como se<br />

ele não se sentisse realmente consternado pela doença do<br />

marido!<br />

Porém, fazendo vista grossa à tudo aquilo, deliberou<br />

queimar a cadeira de fitas em que se sentava, derretendose<br />

a conversar com o convalescente colega. Mas este,<br />

aliando-se ao carácter e estado de espírito da mulher,<br />

acabou por escabecear, tal como ela. E Zito todo<br />

distraído ali a monologar…<br />

Quando apercebeu-se da situação, não mostrou nem<br />

sequer o mínimo indício de despeito. Antes pelo<br />

contrário, pôs-se igualmente a escabecear. Pareciam três<br />

grandes actores a viverem uma boa farsa.<br />

Mas Juca, não tardou a interromper o desenrolar da<br />

peça. Despertou, e muito delicadamente tocou de leve no<br />

braço do colega.<br />

80


----Então Zito, ainda não é tarde?<br />

O colega imerso no seu fingido escabecear, todoouvidos,<br />

não ouviu a pergunta do colega, mas, num ápice,<br />

a esposa pulou da soneca em que parecia encontrar-se, do<br />

lado de lá da cortina, e veio à capital da casa<br />

estremecer o nosso colega.<br />

----Te perguntaram se ainda num é tardiê?…<br />

----Ãh?…<br />

Era Zito. Era o fim da farsa e da visita. Despediu-se<br />

do casal, sem deixar de notar um grande alívio na pessoa<br />

da mulher e registar a desculpa de o colega não puder<br />

acompanhá-lo, por não ter ainda recuperado a força dos<br />

pés…<br />

―----Qual é lá força dos pés! Tás mazê fobô!‖----<br />

pensou Zito.<br />

Cá fora, já a noite rondava. Após afastar-se à uns<br />

tantos metros da casa de Juca, sem mais nem menos, Zito<br />

fez meia-volta, aproximando-se novamente da mesma, em<br />

passo de gato. Da porta do quintal, pôde captar o barulho<br />

de tampas e muxoxos de mulher, a evadir-se de dentro. E<br />

no impasse de bater ou não a porta, viu no ecrã da sua<br />

mente, a mulher junto ao fogão, Juca faminto da vida,<br />

estirado numa cadeira de fitas, com as águas da boca a<br />

lhe escorrerem pelo peito abaixo.<br />

Um barulho de talheres a vir de dentro, fez com que<br />

optasse por bater na porta, não sem antes reunir à sua<br />

volta, os ares do maior assustado do mundo. Três batidas<br />

bem fortes racharam a porta, indo amortalhar a alma do<br />

casal, mormente no seu lado feminino, não tendo sequer<br />

tempo algum para esconder as panelas.<br />

---- Mas, quem é que stá bater assim essa hora??!----<br />

era a voz rude da mulher.<br />

81


―----Abre lá mazê a porta, sua malanginha de merda!‖.<br />

Sou eu! Zito! Abre só a porta, comadre! Ai, meu Deus!…<br />

A mulher, vindo para abrir a porta, e estando já à<br />

meio do quintal, quando soube que era o seu ―compadre‖,<br />

rebentou uma tamanha fava repleta de muxoxos de<br />

estarrecer os ouvidos mais surdos do mundo, mas<br />

inofensivos aos de Zito.<br />

Muito chateada, deu meia-volta, voltando para junto<br />

do marido.<br />

----É outra vez o teu colega.---- queixou-se, não sem<br />

terminar com mais um muxoxo.<br />

À nova batida, veio o colega abrir.<br />

---- É pá Juca, já viram o meu azar???!----<br />

perguntava, quase empurrando o colega à sua frente.<br />

----Mas qual é então o teu azar, ainda há bocado que<br />

saíste daqui?<br />

---- O quêêê??! Vamos ainda lá dentro pra te contar<br />

como se passou. Iam matar-me nos bandidos! Aqui afinal é<br />

assim??!…<br />

---- Mas é verdade mesmo?!---- interrogava, Juca.<br />

----Juro mesmo sangue de Cristo! Até já nem tenho só<br />

força de andar, me arranjam só já um cantinho pra eu<br />

descansar. Afinal, aqui há bandidos?…<br />

No meio do silêncio da noite, apenas ouvia-se a<br />

conversa dos dois colegas, de pé no quintal, misturada<br />

com estalos de muxoxo de mulher megera, a emanarem-se da<br />

capital da casa. Lá dentro, de ouvidos bem grudados à<br />

conversa, a mulher era uma máquina de muxoxos.<br />

Acabaram os dois amigos por entrar, e ao se lhe<br />

deparar a mesa, mesa posta, comida, pratos, talheres e<br />

tudo, Zito fez tudo para não reparar nela. Mas tudo era<br />

em vão.<br />

82


Juca havia tacitamente confiado que, enquanto retesse<br />

o colega no quintal, à volta de juras e azares e o resto<br />

à parte, a mulher iria aproveitar o compasso de tempo,<br />

para voltar a esconder as panelas e desfazer rapidamente<br />

a mesa. Mas a realidade era outra, ou seja, a mesma, o<br />

que muito lhe surpreendeu.<br />

À mulher, toda a representação do azarado era já<br />

indiferente. Momice de macaco velho, com reflexo<br />

condicionado à distância. E, ao invés de preocupar-se,<br />

nem que fosse a fingir, com o azar do seu ―compadre‖,<br />

serviu um prato para si, e a peidar favas e muxoxos, foi<br />

enfiar-se para lá da cortina de mabela, fronteira entre a<br />

capital da casa e o quarto, não sem antes fulminar o<br />

compadre, com uma rancorosa olhada de estéril megera<br />

indomável.<br />

---- Vamos jantar?---- perguntou, quase sem vontade,<br />

o colega.<br />

Nisto, Zito fez tudo para fazer uma cara esquisita.<br />

----Hum!, até nem me dá só mais vontade de comer…<br />

---- Nem te dá mais vontade de comer… ---- arremedou<br />

friamente o marido, enquanto uma arrogante tosse do tipo<br />

tifóide, atravessava a cortina, vindo aterrar na mesa,<br />

aonde encontravam-se já sentados os dois colegas.<br />

Zito fez ouvido grosso à tosse da malangina, e<br />

começou a servir-se. E a servir-se de que maneira!<br />

---- Serve, Zito, serve mais!---- mandava Juca, vendo<br />

o outro a servir-se exageradamente ---- ―Eu como capim…‖-<br />

--- rematou, intimamente.<br />

Zito construiu um morro do Môco de comida no seu<br />

prato, antes de empurrar a maré-baixa restante ao dono da<br />

comida e da casa. O seu coração estava em festa.<br />

Nessa noite o colega melhorou, e na manhã seguinte,<br />

lá foram os dois companheiros, lado a lado, rumo ao<br />

serviço.<br />

83


A manhã estava já aberta ao sol. Depois de tanto<br />

andarem lado a lado calados, Zito rompeu o mutismo.<br />

---- Juca, a tua mulher não é como você…<br />

---- Não é como eu?! ---- interrogou Juca, pasmado<br />

pela súbita afirmação do colega.---- … Isso é normal!<br />

---- Neste mundo então, devemos nos ajudar uns aos<br />

outros. Os mais velhos já diziam: ku dibana, ku<br />

dibakessa… Hoje és tu, amanhã é o outro…<br />

---- Isso é!---- concordava Juca---- Mas, não deves<br />

ligar. As mulheres quando estão grávidas ficam sempre<br />

rabugentas… Mas ela gosta de ti…<br />

---- Ai é?!---- admirava-se Zito.---- Possa, nem<br />

parece, Juca. Verdade mesmo?!…<br />

---- É verdade!… Só que ela é de momentos. Fica<br />

parece tem kalundús. Eu só é que lhe entendo…<br />

Encontravam-se já em pleno fulcro da cidade.<br />

Gradualmente a agitação dos carros, das buzinas, da<br />

fumaça, e dos transeuntes, ia aumentando. À essa hora, já<br />

o sol se havia disposto melhor, pintando a manhã numa<br />

bonita cor-de-rosa.<br />

No serviço, alguns colegas foram saudar Juca e lhe<br />

confirmar que no dia anterior Zito estivera muito<br />

desanimado, o mesmo acontecendo com todos da sua secção.<br />

Era mais um ponto para Zito. E sem mais cantigas, para<br />

evitar que o negro do patrão aparecesse por lá a finar-se<br />

em branco, trazendo a espada de estar indulgentemente a<br />

pagar cinco mil escudos mensais à categoria de ajudante<br />

de mecânico, depressa puseram-se a trabalhar.<br />

Agora sim, podiam falar, molengar, gritar, pular,<br />

fazer tudo que não fosse diminuir a mais valia àquele<br />

84


pequeno-burguês, sorteado nas confusões que haviam dado<br />

fuga aos dono do que se gabava dono.<br />

À hora do almoço, Zito e Juca dirigiram-se ao<br />

Restaurante Portugália, ali mesmo no coração da baixa.<br />

Leram o menu, e seguidamente aproximaram-se da caixa,<br />

para adquirirem as senhas que davam direito às refeições<br />

e às bebidas.<br />

Já o colega havia comprado duas, quando Zito<br />

encontrava-se ainda à procura da carteira por tudo quanto<br />

era bolso, algibeira ou cafocolo. E nada. A carteira não<br />

apareceu.<br />

---- Deve ficar no bolso da outra camisa, lá no<br />

serviço. ---- disse ao colega.<br />

Não sendo a primeira a vez que tal acontecia, Juca<br />

pensou que apenas podia ser mais uma daquelas suas<br />

tácticas de lhe pedir dinheiro por empréstimo. E<br />

antecedendo-se ao que dali há pouco sairia da boca do<br />

colega, puxou pela carteira e comprou mais duas senhas.<br />

---- Vai fazendo as contas, heim?---- disse Juca,<br />

entregando as senhas a Zito.<br />

Com um abanar da cabeça, Zito concordou, não dizendo<br />

nada mais.<br />

Sentados num dos extremos do interior do restaurante,<br />

não demorou a serem atendidos. Zito comeu as duas<br />

refeições, e ainda mais um bocadão deixado por Juca, e<br />

mesmo assim, não mostrou ares de ter ficado repleto…<br />

Nessa tarde haviam de receber os salários. De<br />

regresso ao serviço, pelo caminho, após ter contado ao<br />

colega duas tremendas estórias de rebentar o baixoventre,<br />

Zito preveniu a Juca que não poderia ainda pagar<br />

todas as suas dívidas, por precisar de liquidar os três<br />

meses de renda, da casa em que residia, pois ―estão quase<br />

a me tundar‖…<br />

85


Juca compreendeu a situação do outro, e disse-lhe que<br />

a liquidação da dívida podia ficar para o mês seguinte…<br />

―Sem falta!‖<br />

À tarde, o clima de trabalho na oficina, estava no<br />

auge do agradável, porém, sem aquelas passeatas de uns à<br />

secção dos outros, porque… ai, se o pagador passasse!…<br />

Todo mundo recebeu o seu salário, e à hora da saída,<br />

quase todo ele foi ter com Zito. Zito, que no final de<br />

todos os meses tinha sempre óbitos, muitas rendas<br />

atrasadas por pagar, enfim… ―ku dibana, ku dibakessa, não<br />

se preocupem, sou um homem de palavra…‖<br />

Para a grande surpresa de Juca, Zito que morava no<br />

Catambor, mas que não havia dia que não passasse pela<br />

casa do colega, ali na Corimba, quer quando fosse ao<br />

serviço, como quando de lá voltasse, nessa tarde não quis<br />

saber nem de Juca, nem de companhias de Juca, nem de<br />

jantares, nem de nada! Resolveu despedir-se do colega à<br />

dado passo do caminho, e evaporou-se em direcção ao seu<br />

cubículo.<br />

---- Mas, como é?! Tens algum problema ou quê?----<br />

interrogou Juca, admirado pela súbita decisão do colega.<br />

---- Não há problema nenhum. Tenho de passar na<br />

Calemba, pagar as rendas! Então, não é lá que mora a<br />

bruxa da dona da casa?…<br />

Era a última vez que se despediam. À dona da casa,<br />

não precisava despedir-se…<br />

Chateado como tão constantemente era, tanto no bairro<br />

onde morava, pelas dívidas sem fim que contraía aos<br />

vizinhos, aos amigos de pouca ou nenhuma intimidade; os<br />

empréstimos sem devolução que suplicava à todos, tal como<br />

na oficina, onde os colegas confiavam-lhe algumas peças<br />

de auto para ele Zito, o mais habilidoso, vendê-las cá<br />

fora, sem disso receberem mais do que desculpas de não<br />

ter ainda podido despachar as peças por kapuete,<br />

kabolokosso e kamundanda, Zito só encontraria paz e<br />

sossego, num mundo bastante afastado daqueles e dos<br />

86


demais, por onde já tivesse deixado idênticas<br />

complicações.<br />

No Catambor, arrumou devidamente as suas imbambas sob<br />

um silêncio sepulcral tal, que ninguém deu-se ao azar de<br />

testemunhar.<br />

Na madrugada da manhã seguinte, já de combina com uma<br />

carrinha, mudou-se para o bairro da Mabor, onde semanas<br />

antes havia já feito contactos, levando consigo as<br />

escassas e antiquadas mobílias de que se prezava<br />

proprietário, isto é: o seu catre de molas aguadas, o<br />

papelão que fazia a vez de colchão, a raspadeira, o pau<br />

de dentes, o caducado armário pertencente à ―bruxa da<br />

dona da casa‖, e trazia como amortizador das muitas<br />

rendas que duas vezes lhe havia pago… a velha banheira de<br />

esmalte, o bacio de esmalte, a toalha, a velha toalha de<br />

rosto, mais que ruçada de tanto lhe limpar os gostos e<br />

desgostos da vida; os sapatos à perce, as sapatilhas, as<br />

calças, as camisolas, coisas todas meio-suas, meioalheias,<br />

mas totalmente suas na elegância da rua.<br />

Mudou com tudo isso e mais algo que constituía o<br />

zénite da sua personalidade: um garrafão, banco<br />

subterrâneo das suas economias…<br />

Catambor e Mabor, rimavam. Mas, talvez nem soubesse<br />

que rimassem, nem que houvera metempsicose entre os dois<br />

bairros…<br />

No início era tudo muito bonito. Passeou o bairro<br />

inteiro com o pente fino das suas pernas, fazendo um<br />

estudo minucioso do mesmo, até no mais insignificante dos<br />

pormenores. Após tê-lo dissecado, concluiu que o bairro<br />

era agradável para se residir. Era calmo e com gente<br />

muito simpática.<br />

Na nova casa, Zito encontrou alguns livros que soube<br />

depois terem pertencido ao anterior ocupante. Sempre que<br />

voltasse das suas procuras de emprego, pegava no mais<br />

volumoso dos livros e vinha postar-se no umbral da porta<br />

da rua, enterrando nele os olhos.<br />

87


Aqui, ficava a ler, a olhar, a ver, a ser visto e<br />

tido como um grande amante dos livros, e não só. Certo<br />

dia, passava por ele um trio de lindas moças, e ficou<br />

diametralmente siderado ao ouvir uma delas dizer ―nesta<br />

casa, só moram já grandes muadiés‖…<br />

Para amortizar o êxtase, resolveu vir para dentro<br />

arrumar-se na sumptuosidade do seu catre. E aqui ficou<br />

durante muito tempo a meditar sobre a sua vida. A partir<br />

desse dia, começou a dedicar-se mais à leitura e a<br />

transportar consigo o volumoso livro, para onde quer que<br />

fosse.<br />

E passou a sonhar muito. Às vezes sonhava que estava a<br />

voar, a voar sobre o livro. Mas, eram sonhos difíceis.<br />

Houve um, em que havia fantasmas de todas as cores e<br />

idades, armados com diabólicos garfos, a lhe impedirem a<br />

aterragem. Outras vezes, acontecia conseguir identificar<br />

muitos desses fantasmas: patrões brancos, de quem em<br />

tempos idos fora criado, caxico, hoje deste, amanhã<br />

daquele, sempre a furtar-lhes; gente de todos os bairros<br />

por onde já passara e lhes tivesse pago patavina de<br />

dívida, e até o Coelho, o Sô Coelho, a quem nunca tivera<br />

roubado ou furtado, por ser ele quem lhe havia ensinado<br />

tantas e tantas artes, e sobretudo a de como ser rico…<br />

todos apareciam nos sonhos, a empurrá-lo para os céus. E<br />

no meio daquele do sonho, interrogou-se:<br />

―---- Será que vou para o Céu, ou será que vou para o<br />

Inferno?… Será que estou morto?…‖<br />

E quando viu continuar a desfilar ante os seus olhos<br />

todo o seu passado de sacristão, engraxador,<br />

cadiengueiro, ardina, batoteiro, monangambé, ajudante de<br />

quimbanguleiro, e ajudante de mecânico, aí, concluiu que<br />

estava morto e à caminho do Inferno.<br />

Era o que lhe havia ensinado o Coelho, o Sô Coelho,<br />

um comerciante para quem havia trabalhado, no musseque<br />

Sambizanga, e dele apreendido grande parte da sua<br />

filosofia de vida.<br />

88


O ―Mestre Coelho‖, como ele lhe tratava, tinha vindo<br />

desterrado de Portugal ainda muito jovem, e aqui passara<br />

por muitas e profundas experiências, muitas e imensas<br />

dores, antes de estabelecer-se como comerciante e passar<br />

os derradeiros dias da sua vida numa onda mais ou menos<br />

cor-de-rosa.<br />

Com Zito, não tinha receios nenhuns de se abrir.<br />

Chamava-o de ―meu filho‖, e por incrível que pareça, até<br />

juntos bebiam vinho e fumavam liamba. Era um biaco<br />

cacimbado, que dizia ser perito em ―espertezas de negro‖,<br />

mas na verdade, em espertezas de branco é que era mil<br />

vezes Nobel.<br />

Contara a Zito como havia acumulado e economizado,<br />

para puder chegar até onde havia chegado, e não se<br />

cansava de lhe repetir: ―acumular, economizar sempre,<br />

rapaz!‖<br />

Quando despertou do sonho e se achou sozinho no<br />

quarto, chegou à conclusão que estivera a sonhar. E<br />

passou as noites seguintes a ler até altas horas, para<br />

evitar o sonhar aqueles sonhos do diabo. Mas isso às<br />

vezes lhe tornava o sono mais tranquilo, o que não<br />

impedia que lhe apertassem a garganta e lhe asfixiassem,<br />

por feiticeiros e bruxos vindos do Catambor, do Bom-<br />

Escape, e do resto à parte, para bungular no seu quintal.<br />

Em todo o lado, a sua alma estava sendo praguejada. O<br />

seu nome era levado às igrejas da Muxima, Santa Ana,<br />

Nazaré; entrava aos ouvidos de santos e de quimbandeiros,<br />

nos livros de Deus, e nos de Diabo.<br />

Porém, por mais absurdo que fosse, a vida sabia<br />

absolver os seus inocentes. Zito, não tinha pecados… E<br />

ali estava ele. Cheio de força e de vontade de viver. Os<br />

sonhos não constituíam obstáculos. Eram os efeitos da<br />

alma que se purga.<br />

Possuidor daquele seu ar de franqueza, a mímica<br />

cativante e arrebatadora, a personalidade no trajar, que<br />

obstáculos o intimidariam? Não via esse preconceito snobe<br />

que tantos incultos enxergavam, em dialogar, em<br />

cumprimentar ou fazer um adeus a quem quer que fosse,<br />

89


criança ou adulto, animal ou figura. Se estivesse andando<br />

pela rua e um carro bonito passasse por ele, não hesitava<br />

em levantar o braço para saudar um miserável qualquer que<br />

nele estivesse. Diariamente, fazia amizades com moças e<br />

moços do bairro e até com senhores de idade já avançada<br />

ou ainda atrasada, que viam nele, um rapaz de juízo, um<br />

literato, um poeta de se deixar tirar o cabaço da filha,<br />

por cheirar futuro de muata.<br />

Quanto mais não fosse por isso, como teria, ele Zito,<br />

dificuldades em emprestar fosse o que fosse a quem fosse,<br />

quanto, quando, onde, e como quisesse? Quem se atreveria<br />

a impedir-lhe a entrada em festas ou em combas? ―Então<br />

você não conhece o man-Zito, ou quê?! Deixa-me lá passar,<br />

oh gente!‖<br />

E deste modo, aumentava a sua fama. Evitando, se é<br />

que evitava, o ridículo, tinha uma forma muito<br />

característica de alegrar as festas, fazendo-se amigo de<br />

todos, a quem aproveitava para bajular no mais que<br />

pudesse, e até prontificavam-se a dar-lhe mais! E aí, com<br />

uma expressão algo esquisita, Zito dizia: ―obrigado p‘la<br />

gentileza!‖<br />

Inconscientemente, Zito foi se tornando um<br />

biscateiro, pois pouco ligava já ao book, e muito menos<br />

ao que as pessoas pensavam dele, quando se tratasse de<br />

algum meio de economizar e acumular.<br />

Quando algum vizinho tivesse um porco, um cabrito,<br />

para matar, um fogão ou um motor qualquer para reparação,<br />

―é só mandar me chamar!‖…<br />

O livro foi ganhando poeira, enquanto Zito ia se<br />

tornando um exímio na arte de reparar fogões e geleiras e<br />

arcas, que não tardou a colocar ele mesmo, uma tabuleta<br />

sobre a porta, com os dizeres:<br />

REPARAÇÕES<br />

DE<br />

GELEIRAS E<br />

FOGÕES<br />

ZITO<br />

90


Sobre frio, poucos conhecimentos tinha, mas nem de<br />

longe tal o preocupava. Era a arte de esfriar o quente da<br />

vida, e pronto. Porém, mais cedo do que pensava, viu a<br />

casa afogada de fogões e geleiras e arcas, em que se<br />

salvar daquela inundação de dinheiro, que rapidamente ia<br />

desaguando no seu garrafão.<br />

Apenas, depois de muita hesitação, arranjou dois<br />

ajudantes. O negócio foi prosperando, mas não sem<br />

dificuldades. Tirando peças de uma coisa para outra é que<br />

Zito conseguia despachar as obras. Mas, nesse andar, e<br />

porque teimasse em não gastar dinheiro a comprar<br />

sobressalentes, muitas coisas iam se transformando em<br />

simples carcaças. E estas iam aumentando, ao mesmo tempo<br />

que as mentiras e intrujices do proprietário da tabela.<br />

Aos fins de semana, Zito gostava de desanuviar,<br />

desembaraçar-se daquele cemitério de carcaças que ia<br />

sendo a sua casa, e perder-se pelas ruas e becos da<br />

Mabor.<br />

Ia certa tarde num desses passeios, mãos enfiadas nas<br />

algibeiras, andar arqueado, quando se achou ante um<br />

conhecido do Catambor, mesmo diante da fábrica que dá<br />

nome ao bairro.<br />

---- Oh, Zito! Pópilas, pensei que já tinhas morrido!<br />

Afinal mulundu ni mulundu ka di sangá, mutu ni mutu, sai<br />

kizua ha di sanga.<br />

----É verdade, Noé, aqui estamos!…<br />

---- Olha, já da outra vez, estava eu a acompanhar um<br />

funeral, e te vi lá mais adiante… e onde é mesmo que fica<br />

a tua casa?…<br />

---- ―Porra!‖… É pá, quer dizer…<br />

Mas já o outro conhecia, o que ele havia de dizer.<br />

---- E então, o meu dinheiro?…<br />

Ia a responder, mas o outro não estava para mais<br />

palavras. Queria factos.<br />

91


---- Vamos!, hoje tenho que conhecer a tua casa.<br />

Desde há tanto tempo, as sapatilhas não são estas que até<br />

estão já todas rotas?…<br />

Em crescendo ia a exaltação dos ânimos do outro, e<br />

para evitar a curiosidade das pessoas à volta dos dois,<br />

Zito decidiu levar o amigo a conhecer a sua casa.<br />

A tarde paulatinamente ia dando lugar à noite.<br />

Meteram-se pelo interior do bairro, e enquanto andavam,<br />

Zito afinal, ia equacionando o modo de safar-se daquele<br />

inoportuno amigo.<br />

Levava-o na mais sambila área de becos que conhecera<br />

logo que fora lá morar, e não demorou a se lhe deparar a<br />

incógnita. O dia, já então estava mais para o lado da<br />

noite que do da tarde. Chegaram num entroncamento de<br />

becos e… zás! Mais uma vítima acabava de ser<br />

electrocutada pela massa cinzenta de Zito.<br />

O amigo, estrangeiro naquelas bandas, preocupado com<br />

as horas, ia à frente de Zito, quem naquele momento<br />

emulava a passada de tartaruga. Contudo, para certificarse<br />

da presença deste, ia fazendo todo o tipo de perguntas<br />

que lhe apetecesse.<br />

----Ó Zito, tás a te lembrar do Gama?…<br />

Nessa altura, entretanto, já Zito se havia<br />

esguedelhado para um outro beco. Como não tivesse obtido<br />

resposta, o amigo virou-se imediatamente para trás. Mas<br />

toda a rapidez era nenhuma. Tentou ainda seguir as marcas<br />

das suas sapatilhas de Zito, mas feliz e infelizmente já<br />

por lá reinava a escuridão, e todos os esforços foram em<br />

vão. E pensando que ―monte e monte nunca se encontram,<br />

mas pessoa e pessoa, um dia encontrar-se-ão‖… voltou<br />

embora.<br />

Nessa noite, Zito meditou bastante. Não tinha razões<br />

de queixa quanto à vida. Quem estava constantemente a<br />

queixar-se eram os clientes, os ajudantes dele, o<br />

senhorio. Quem sempre chateava os outros, eram os outros<br />

nele. Não pedia nada a ninguém, porque pedindo, ele<br />

92


estava tão-somente a acumular, a guardar o que lhe davam,<br />

a guardar os outros. E meditando muito mais, concluiu que<br />

era um pobre diabo.<br />

Zito continuou a trabalhar, mas já sem aquela força<br />

de vontade e garra iniciais. Os clientes continuavam<br />

sempre a reclamar-se, a ameaçá-lo com contrafés e contrafactos.<br />

Zito argumentava. Que lhe entendessem e<br />

compreendessem a falta de sobressalentes reinante no<br />

mercado. Que ele não tinha culpa alguma que tivessem<br />

sabotado as lojas dos brancos que à entrada e à saída<br />

sabotaram. Que estes sim, é quem eram os verdadeiros<br />

sabotadores dos seus fogões, e geleiras e arcas, e não<br />

ele, pessoa insuspeita, a confirmar na vizinhança e quem<br />

mais em Luanda, na terra, no céu ou no inferno, o<br />

conhecesse.<br />

Mas ninguém ia confirmar. E isso provava que ele era<br />

ninguém. Que estava sendo alvo de uma conspiração não<br />

secreta. Tinha os factos à vista!<br />

E começou a sentir um medo horrível de viver sozinho,<br />

no meio daquele cemitério de geleiras, fogões e arcas, em<br />

que à noite feiticeiros guardavam o seu corpo, para<br />

depois, em orgia satã o assarem num monstruoso fogão. Que<br />

horror!<br />

Passado alguns dias, Zito deslocou-se ao musseque<br />

Mulemba-wa-xa Ngola, a procura de casa para residir,<br />

tendo conseguido encontrar um anexo, após gastar um bom<br />

cabedal.<br />

Ao constatar que o dono da casa era um velho e<br />

quimbandeiro, Zito torceu três vezes o nariz, mas já não<br />

podia retroceder. Ponderando bem sobre as circunstâncias<br />

que a sua vida atravessava, não tinha muito tempo a<br />

perder.<br />

Na madrugada seguinte, mudou-se para a nova<br />

residência com todas as suas imbambas, incluindo uma<br />

geleira, um fogão e uma arca, como troco das muitas<br />

geleiras e fogões e arcas, que pouco havia concertado.<br />

93


Somava e seguia. Mas, até aonde iria ele?… Para algum<br />

lado, evidentemente. E por isso, ia para qualquer lado…<br />

A Mulemba, terra de Ngola, era uma zona industrial<br />

com grandes fábricas a chamarem por ele. Mas as<br />

constantes insistências do velho Kaxika à volta da sua<br />

mão-de-obra, acabaram por convencê-lo.<br />

Na Mabor, o nome de Zito era guloseima na boca da<br />

vizinhança. O prestígio que vinha perdendo por parte<br />

daquela, acabou por consumar-se com a sua fuga. Muitos<br />

clientes que apareciam na antiga casa, transtornados pela<br />

sua fuga sem adeus nem recado, queriam retirar mais do<br />

que lá haviam colocado.<br />

Enquanto isso, a dona da casa, não menos lesada pelo<br />

facto, discutia com os ex-ajudantes de Zito, o destino da<br />

oficina. A senhora reclamava para si a propriedade da<br />

casa e consequentemente, tudo quanto lá estivesse, fosse<br />

de quem fosse, porque ―durante um ano, apenas me pagou a<br />

renda de um mês‖…<br />

No fundo, o que ela queria era lundular, herdar a<br />

tabuleta e o seu significado de Zito, que os ex-ajudantes<br />

reclamavam para si. Porém, ela, com filhos e afilhados<br />

uniformizados e com coldres nas cinturas, acabou por<br />

esmagar a rebeldia dos frangotes.<br />

Na Mulemba, Zito estava à-vontade. No velho Kaxika,<br />

quimbandeiro com monumento por erguer, apareciam pessoas<br />

e deuses de qualquer índole, linhagem, raça ou<br />

nacionalidade. Era difícil saber o que havia na base da<br />

sua personalidade, para fundamentar-se a versatilidade de<br />

Zito. Não se importava em nada com o que era, fora ou<br />

deveria ser. Se o povo ladrasse ou deixasse de ladrar,<br />

não era ele mesmo o povo, quem dizia que uma coisa não<br />

tinha nada a ver com outra? Parecia ser um esquizóide.<br />

Mas então, e o seu tipo atlético? E a sua musculatura?…<br />

Estremecia os postulados dos homens. Talvez fosse um<br />

deus…<br />

Mestre Coelho, lhe dissera certa vez, que para<br />

singrar na vida, um homem deve aprender tudo. Estavam a<br />

94


conversar, encostados ao balcão, e num papel de embrulho<br />

o branco escreveu: TUDO. Zito leu, e compreendeu TUDO…<br />

Como ajudante de quimbandeiro, não havia pormenor<br />

algum que não aproveitasse, detalhe algum que não<br />

apreendesse. Os gestos de Kaxika, a linguagem, a<br />

eloquência e tudo mais, Zito arquivava muito bem na sua<br />

cachimónia.<br />

De quando em quando, ele e o velho, viajavam às<br />

igrejas da Muxima, Santa Ana, e também à todas quanto<br />

havia em Luanda. Nelas depositavam moedas e bugigangas e<br />

bruxedos, e de lá traziam água e azeite bentos,<br />

imprescindíveis ao seu trabalho.<br />

Certa vez, noite no auge, foram ambos desenterrar<br />

ossos atrás do cemitério do 14. Na ida o velho informara<br />

a Zito que se tratava de um tipo de pedras, necessárias à<br />

alguns tratamentos que iria fazer, e que era norma ali<br />

aparecerem.<br />

Estavam mesmo próximos do muro que limitava o<br />

cemitério, banhado de uma ponta a outra, com lavras de<br />

mandioqueiras, que em número, levavam vantagem ao dos<br />

mortos que já haviam dado entrada no cemitério. Aqui,<br />

fantasmas de corpos que haviam sido mundanos, exercitavam<br />

marchas em ordem unida. Os túmulos vibravam, e desabavam<br />

os dos que em vida haviam sido pobres.<br />

Ali, havia não só túmulos de pobres, como também de<br />

ricos. Túmulos mil vezes melhor que muita casa de gente<br />

viva, gente do Rangel, gente do Sambizanga, gente do<br />

Catambor, gente da Lixeira. Na marcha, os seus fantasmas<br />

iam no pelotão dianteiro e tinham patentes altas.<br />

Enquanto os fantasmas marchavam, muitos corpos eram<br />

despejados dos seus túmulos, por seus familiares não<br />

terem pago por eles, a renda única de lá perpetuamente<br />

habitarem. Alguns coveiros aproveitavam os ossos, boas<br />

lenhas para aquecer um café, um feijão, um funje, no<br />

intervalo entre dois enterros, isto quando não fosse dia<br />

de dikomba, de que tanto adoravam, para não terem tempo<br />

algum de tomar sequer um café, comer um feijão, um funje,<br />

dada a grande probabilidade de gorjetas a chover.<br />

95


E rogavam que houvesse endemias, epidemias,<br />

poligamias, altas taxas de natalidade, nenhuma esperança<br />

de vida, altas taxas de mortalidade, e uma infinita bicha<br />

de funerais a dirigir-se para lá, para nunca mais tomarem<br />

um café, comerem um feijão, ou um funje, e apoderarem-se<br />

do mundo.<br />

Do lado de fora, Zito cavava. Quando sentiu a enxada<br />

bater em algo duro, achou que devia tratar-se das pedras.<br />

E pousando a enxada ao lado, debruçou-se sobre o buraco,<br />

para retirar o que lá pensava houver.<br />

Pânico! Crânios humanos!… Gritou bem alto, de medo,<br />

mas não ouviu o grito. Ao reparar à sua volta, não viu o<br />

velho. Tudo havia se tornado mais escuro. As<br />

mandioqueiras pareciam pessoas que haviam sido vendidas<br />

na maiombola, e trabalhavam perpetuamente naquelas<br />

lavras.<br />

Não muito acima daquilo, nuvens pretas passavam<br />

silenciosamente. Tudo ali, era silêncio. Apenas Zito<br />

continuava histericamente a gritar, a lutar para fugir<br />

dali o mais depressa e longe que pudesse.<br />

Porém, forças ocultas mantinham-lhe cativo.<br />

Gradualmente, foi ouvindo um barulho de vozes e<br />

passos uniformes, a vir do cemitério. Apurando melhor o<br />

ouvido, percebeu o barulho cada vez mais próximo, e no<br />

instante seguinte, o muro do cemitério rompeu-se.<br />

Três pelotões de esqueletos humanos, comandados pelo<br />

velho Kaxika, caminhavam na sua direcção. De repente,<br />

viu-se livre das forças que o prendiam, e com todos os<br />

pés que tinha, pôs-se a correr endiabradamente, até à sua<br />

casa.<br />

Atirou-se logo à cama, com a roupa, os calçados, e o<br />

cansaço. Para dormir um sono intranquilo e longo. Dos<br />

mais longos da sua vida. Quando acordou, já o velho tinha<br />

atendido um bom número de pacientes. Nesse dia, a casa<br />

estava mais cheia que nunca. Todas as raças e um albino<br />

96


cuja raça não sabia, estavam ali. Senhoras e moças com<br />

caras de santas e de prostitutas, senhores e moços com<br />

caras de cornos e de adúlteros, estavam todos ali. Um<br />

perfume vindo não sabia de que axila, penetrava docemente<br />

todos os orifícios do seu corpo cansado e inerte, no<br />

umbral da sua porta.<br />

E ficou durante algum tempo a olhar parvamente, as<br />

pessoas que estupidamente o olhavam. Mas o que estava<br />

vendo, não eram aquelas pessoas…<br />

Após se ter preparado, foi para junto do velho. Logo,<br />

pôs as mãos no que havia por se fazer, mas via-se que o<br />

seu pensamento não estava naquilo. O humor não era o<br />

habitual, o que não tardou a despertar a atenção das<br />

pessoas que não estavam ali pela primeira vez, e mormente<br />

a do velho.<br />

---- Não dormiste bem, mano Zito?… ---- perguntou em<br />

quimbundo o velho.<br />

---- Dormi---- respondeu Zito, secamente.<br />

O velho, cabisbaixo, engoliu em seco a resposta e não<br />

disse mais nada. Entendeu tudo. Estava derrotado. Zito<br />

era mais forte do que calculara…<br />

Até ao meio desse dia, continuaram a trabalhar<br />

normalmente, mas cada um aparentemente indiferente ao<br />

estado de espírito do outro. Fora das três dimensões, é<br />

que discutiam, se flagelavam, se xingavam…<br />

Zito jamais saberia o que se passara na noite<br />

anterior, junto ao cemitério, se não fosse<br />

‗kanzuela‘(pessoa que fala no momento em que vem ao<br />

mundo). O seu espírito era bastante forte, e em sonhos<br />

esclarecia-lhe todos quantos pretendessem roubar-lhe a<br />

vida.<br />

E nessa noite sonhara deveras imenso. Conhecia muito<br />

bem a gramática dos sonhos. A sua sintaxe e a sua<br />

morfologia. Não havia miragens: Kaxika queria a sua vida…<br />

97


Lhe havia dito certa vez o Coelho, o Mestre Coelho,<br />

no auge de uma puxada de liamba, que enterrara a mãe, no<br />

quintal da loja. Que não temia, nem a fantasmas, nem a<br />

infernos. Que a única coisa digna de ser temida neste<br />

mundo, era o medo. Zito temia o medo. Tinha dele até um<br />

reflexo condicionado muito apurado, a fim de não o fugir<br />

e puder enfrentá-lo de peito aberto. Porém, tinha por<br />

natureza não pôr em demasiado risco a sua vida.<br />

À tarde, feita a interrupção dos tratamentos para<br />

almoçarem, Zito, de chofre, declarou ao velho que não<br />

almoçava, e que iria embora dali no dia seguinte.<br />

Mostrando despeito na voz, nos gestos, e no olhar, Kaxika<br />

ainda queria saber a razão daquela tão abrupta decisão.<br />

Zito nada argumentou. O rosto do velho, mais que um<br />

facto, era um ícone. Não precisou de lê-lo.<br />

Saiu e apenas regressou à noite. De manhã muito cedo,<br />

pegou no garrafão, em todos os demais haveres, e sem<br />

precisar das pernas, mudou-se para o Bairro dos Ossos.<br />

O novo bairro não era muito diferente do musseque da<br />

Mulemba wa xa Ngola. As casas e os ambientes eram<br />

idênticos.<br />

Os quase doze meses passados junto do velho, poucos<br />

ingressos deram ao seu garrafão, mas em contrapartida,<br />

trouxera de lá alguns conhecimentos e muita experiência.<br />

E após uma semana de tanto pensar, ponderar, e alambicar,<br />

encontrou finalmente, o seu ganha-pão.<br />

Quimbandeiro… Então? Não era o mesmo Zito, quem na<br />

Mulemba ajudara o velho Kaxika?…<br />

Não havia tempo a perder. Comprou todas as bugigangas<br />

necessárias ao seu trabalho: espelhos, balaios, miçangas,<br />

panelas de barro, ocusso, pemba. Arranjou farrapos<br />

vermelhos, brancos, pretos, e cordas e paus e peles e<br />

unhas e penas. Comprou pregos, parafusos, porcas e<br />

anilhas e o resto à parte. Ossos, não precisava comprar.<br />

Era o que havia de mais, por aquelas bandas. E teria<br />

graça alguma, chamarem de Bairro dos Ossos, a um bairro<br />

que os não tivesse?…<br />

98


Zito estava completamente mudado. Ele ia para algum<br />

lado, e por isso tinha de mudar constantemente. De rosto,<br />

de voz, de trajo, de idade, e se não fosse estar num Cu<br />

da civilização, estaria até num seu inferno, com outra<br />

cor e outro sexo.<br />

Todavia, ninguém ali o conhecia como sendo<br />

quimbandeiro, apesar das miçangas e dos paus com que<br />

andava de um lado para o outro, pendurados ao pescoço.<br />

Mas isso de modo algum ameaçava o investimento feito.<br />

Sabia guardar, e também aguardar.<br />

E aguardou.<br />

Certa noite, ouviu a vizinha do lado disparatar a<br />

gatos que andavam por cima da casa, e na manhã seguinte,<br />

de pé na sua porta, ia aquela passando, quando Zito a<br />

deteve.<br />

---- Mana, chega inda aqui.<br />

A vizinha, meio à-vontade, meio desconfiada,<br />

aproximou-se a ele.<br />

---- A mana me discurpa. A mana stá com doença no<br />

corpo…<br />

---- Doença? No corpo?!---- interrogou ela, atónita.<br />

---- Sim mana. Tem pessoa que anda te perseguir. ----<br />

rematou Zito.<br />

A vizinha admirada e preocupada, queria de Zito muito<br />

mais. Entraram para o quintal, e do muito, o quimbandeiro<br />

deu-lhe apenas o aperitivo: far-lhe-ia o tratamento.<br />

E receitou-lhe a trazer, duas panelinhas de barro, uma<br />

cabirí, um litro de vinho tinto, e outro de branco.<br />

0s dados estavam lançados...<br />

E aos ouvidos desta, e daquela, e daqueloutra vizinha,<br />

a senhora foi rapidamente veiculando a notícia,<br />

informando-as de que realmente vinha se sentindo doente,<br />

99


havia algum tempo... --- Desde aquele dia que a minha<br />

enrival veio na minha casa---- informava ela.<br />

E antes de ela concluir o receitado, já pelo vizinho<br />

iam passando algumas vizinhas e pacientes de longe e de<br />

além-mar. Durante alguns tratamentos, Zito, do lado de<br />

dentro, escutava muito bem as conversas que os pacientes<br />

no quintal iam tecendo. Gravava muito bem as suas vozes,<br />

os seus problemas, e até os elogios que um ou outro lhe<br />

dedicava.<br />

Assim, antes de recebê-los, já Zito tinha um<br />

diagnóstico sobre a maior parte deles.<br />

Certa noite, apareceu para ser tratada, uma mocita a<br />

cheirar uns dezoito cacimbos ainda, acompanhada da mãe e<br />

de uma tia. Apesar de bastante doente e fisicamente<br />

apresentar-se bastante abatida, o seu rosto e o seu<br />

corpo, exalavam para Zito, beleza e pureza tais, que não<br />

fosse estar acompanhada…<br />

―---- Mas que peito, que chuchas, meu Deus!‖----<br />

pensava dentro de si.<br />

Deixou de lado esses maus pensamentos e pôs mais<br />

atenção no seu trabalho. Num prato esmaltado, raso,<br />

desfez um pouco de ocusso e um pouco de pemba, colocou aí<br />

duas moedas, tendo por último deitado nele algumas gotas<br />

de óleo e de água. Pegou num cabaço que estava ao seu<br />

lado e tirou dele um gole. Era vinho. Com o que restava<br />

na boca, borrifou violentamente a moça, na cara, no<br />

peito, e nas coxas.<br />

---- Esse teu tio, esse teu tio…---- começou por<br />

dizer, sem tirar os fugidios olhos do peito aonde estavam<br />

os seios da mocita.<br />

Nisto, a mãe e a tia entreolharam-se, como que<br />

chegando a um ponto tácito. O quimbandeiro misturou tudo<br />

o que estava no prato, tornando-se numa massa vermelha.<br />

Com esta, fez cruzes nas palmas, nas patas e na testa da<br />

paciente. Voltou a beber da cabaça, para borrifar os<br />

quatro cantos do quarto. Os espíritos, os calundus, já<br />

estavam na cabeça do quimbanda. Os seus movimentos e<br />

100


gestos e gritos, tornavam-se cada vez mais rápidos e<br />

imperceptíveis. Mexia aqui, remexia ali, e ninguém<br />

percebia nada.<br />

---- Esse teu tio, esse teu tio!… Qual é o mal então<br />

que vuçê lhe fizeste? Ele também não tem filhos, não tem<br />

filhas?…---- dizia o quimbandeiro.<br />

E no auge da sua febre de espíritos, como um<br />

possesso, desnudou a blusa da paciente, quase desmaiando<br />

ao tocar nos seios dela, e foi imperceptivelmente<br />

chupando aqui e ali, em diferentes partes do seu tronco,<br />

enquanto ia despejando parafusos, pregos, porcas, numa<br />

panela de barro que estava ao seu lado.<br />

Restabelecida a calma, o quimbandeiro pegou na<br />

panela, e despejou todo o seu conteúdo num prato.<br />

Os olhos da mãe e os da tia, caíram no prato.<br />

---- Eh! Eh! Já viram?! Estás a ver São? Estás a ver<br />

?! Quando te dizia não fica só nesse teu tio fiticeiro!<br />

Estás a ver as coisas que te tiraram?! ---- Era a mãe.<br />

A tia, com a boca aberta, mas muda, só pouco depois<br />

disse:<br />

---- Ias morrer, minha filha. Não querem ver o teu<br />

bem. Não querem te ver a estudar…<br />

O quimbandeiro, com a cabeça deitada para baixo, as<br />

mãos atiradas à qualquer sorte, escutava, imóvel e<br />

atento. Lá fora, a noite ia alta. No céu não havia luz,<br />

apenas a escuridão de grandes massas de nuvens em<br />

movimento. Ondas de vento, passavam e voltavam a passar.<br />

De manhã, Zito preparou um banho com folhas<br />

aromáticas. No quintal, a mãe e a tia ajudavam a paciente<br />

a lavar-se, enquanto no quarto, o quimbandeiro preparava<br />

alguns pós, volta e meia espreitando para o busto da<br />

mocita, completamente nu, colado nas frestas.<br />

Ao contrário do que fora a noite, a manhã apresentavase<br />

extremamente bonita, com um céu de safira claro-<br />

101


escuro, o sol radiante, e as ruas movimentadas. Senhoras<br />

de balaios à cabeça, filhos às costas, a catana numa mão,<br />

e na outra a cabaça de água, dirigiam-se às lavras.<br />

Adolescentes com sacos ou latas às mãos, vazios ou<br />

carregados com resíduos de rezes, cruzavam-se pelos<br />

caminhos que iam desaguar à lixeira dos matadouros.<br />

Depois de lavada a paciente, esta e as senhoras de<br />

que se fazia acompanhar, voltaram para o interior da<br />

casa. Aqui, Zito entregou à mãe, três embrulhos contendo<br />

pós, ditando as suas respectivas indicações. Amarrou um<br />

fio de mateba num dos dedos do pé direito da paciente, e<br />

uma tira de pano vermelho no pulso da sua mão direita.<br />

---- Se estas cordas rebentarem, não voltem a<br />

apanhar, ouviram?…<br />

As senhoras, impacientes pelo deferimento de uma<br />

preocupação que haviam exposto ao quimbanda, solicitaram<br />

na pessoa da tia:<br />

---- Então mano, não nos diz inda o nome desse<br />

cadiapemba que queria comer a nossa filha?...<br />

---- O tratamento ainda não acabou. Agora vão deixar<br />

só dois contos. Arranjam quatro litros de vinho: dois de<br />

tinto, dois de branco; duas galinhas de quimbundo, e uma<br />

panela de barro. Falta lhe tirar mais algumas coisas.<br />

Depois vos digo o nome desse tio dela feiticeiro. Podem<br />

ir!…<br />

Nessa manhã, apareceu a vizinha de Zito, de quem as<br />

chapas da casa eram todas as noites, palco de gatos que<br />

choramingavam como bebés.<br />

Trazia as duas panelinhas de barro, uma cabírí, um<br />

litro de vinho branco, e outro de tinto, conforme<br />

recomendação do quimbanda, e ainda alguns escudos.<br />

À essa altura, já o quintal encontrava-se preenchido<br />

de pacientes. Ao pé da porta, outras pessoas<br />

encontravam-se sentadas, aguardando a sua vez. Quando o<br />

quimbanda saiu ao quintal para saudar os pacientes, viu a<br />

vizinha sentada no meio de algumas senhoras, e pediu-a<br />

102


que se levantasse. Aproximou-se dela, e com um olhar<br />

edaz, leu o seu rosto .<br />

----A tua enrival quer te dar cabo !----disse de<br />

chofre, o quimbanda, imediatamente voltando para o<br />

quarto.<br />

O espanto na cara da vizinha, reflectiu-se na de todos<br />

quantos se encontravam no quintal, logo transbordando<br />

para as dos que lá fora aguardavam a sua vez. Todo o<br />

mundo pôs-se a comentar o facto.<br />

Zito tratou a vizinha, tendo tirado da sua testa uma<br />

ponta de agulha. No dia seguinte, foi à sua casa com uma<br />

vassoura de mateba e as duas panelinhas de barro.<br />

Pediu água da sanga, e com a vassoura, borrifou todas<br />

as portas e cantos da casa. Recomendou que guardasse uma<br />

panelinha debaixo da cama onde dormia com o marido, e que<br />

enterrasse a outra junto à entrada principal, para<br />

impedir que o mal entrasse naquela casa.<br />

O nome de Zito ia longe, além-mar, além-terra, alémuniverso.<br />

No garrafão, o dinheiro já não cabia. Precisou<br />

de arranjar outro.<br />

Quando Zito voltou da casa da vizinha, encontrou<br />

dentre as várias pessoas que o esperavam, uma senhora<br />

que se fazia acompanhar de um filho em avançado estado de<br />

giba.<br />

----Já andámos tanto, em todas igrejas, todos<br />

hospitais, em todo o lado, e nada!----lamentava-se a<br />

senhora.<br />

O quimbandeiro levantou a camisa do miúdo, apalpando a<br />

corcundinha a florescer nas suas costas.<br />

----Este caso é simples!---- afirmou Zito ----Vamos!<br />

Entrou no interior da casa, seguido pela senhora e<br />

pelo miúdo. Mandou à mãe, que deitasse o filho numa<br />

esteira estendida no chão, indo ele sentar-se ao bordo da<br />

sua cama.<br />

103


---- Quando é que lhe descobriu a giba?<br />

---- Há quase um ano, mano. Não sei à quantas<br />

senhoras já não lhe levei, mas o miúdo continua na<br />

mesma…<br />

---- Pois! Uma pessoa que trata esta doença, não pode<br />

ter marido ou mulher. Durante o tratamento, a mãe do<br />

filho não pode dormir com o marido, ou com qualquer outro<br />

homem. ---- dizia o quimbandeiro ---- O teu filho, não<br />

tem ninguém que está lhe perseguir. A primeira pessoa que<br />

estava a lhe tratar, é que estava a tratar mal e tinha<br />

mbora marido, se dormia mbora com o homem dela…<br />

----Já viram?!---- pasmava-se a senhora ---- Tanto<br />

dinheiro que aquela senhora não comeu!…<br />

---- A mana tem marido? ---- perguntou Zito.<br />

---- Tenho sim, mano.<br />

---- Eu vou começar a lhe tratar. Aparece aqui todos<br />

os dias de manhã muito cedo. Mora longe?<br />

---- Na Petrangol. Mas o meu marido tem carro.<br />

---- Ãh… Vão precisar ter muita paciência mesmo…<br />

---- Tá bem mano.<br />

---- Não podem dormir juntos, quer dizer, podem ficar<br />

na mesma cama, né, mas…<br />

---- Não faz mal. O que nós queremos só, é a saúde do<br />

nosso filho.----concluiu a mãe, subentendendo o que o<br />

quimbanda queria dizer.<br />

Zito fez algumas fricções às costas do miúdo, com uma<br />

mistura de óleo de palma, ocusso, jipepe, e pemba, e<br />

mandou-lhes logo embora.<br />

Uma semana depois de tratada, a vizinha do quimbanda<br />

foi à casa da rival, acusá-la.<br />

104


O bairro da Petrangol, era pouco populoso, mas nessa<br />

tarde ninguém quis perder aquele teatro de rua. As duas<br />

mulheres em forte contenda, pareciam disputar os aplausos<br />

do público. Senhoras que acarretavam água, pousavam os<br />

tambores ao chão, para de mãos à cintura, assistirem a<br />

peça.<br />

Aqui e além, uma panela ao fogão, um bebé a chorar,<br />

eram abandonados, para atender-se ao chamado dos assobios<br />

e aplausos vindos de fora.<br />

E as duas rivais continuavam a lutar, cada uma a<br />

reclamar a primazia na assistência, apontando-se os dedos<br />

à cara uma da outra, e a levantarem as suas próprias<br />

saias, para os assobios dos moços, ávidos em comerem ao<br />

menos com os olhos, as suas coxas nuas.<br />

Para um bairro, sem uma única sala de cinema ou de<br />

teatro, onde raramente aparecia o cinema volante, e onde<br />

as pessoas diziam ―vou em Luanda‖, para virem à cidade,<br />

do ponto de vista sociológico, era justo, a presença<br />

daquelas pessoas ali, e justificável a razão de tantas<br />

panelas queimadas, bebés caídos das camas, jantares em<br />

atraso; maridos batendo nas mulheres, arranjando outras<br />

companheiras, mais obedientes, mais submissas,<br />

insusceptíveis de atacarem as suas rivais, e sem aviso<br />

nem recado, provocarem aquela aglomeração de gente, com<br />

poucos escapes para os seus stresses.<br />

Quando o marido da vizinha do quimbanda tomou<br />

conhecimento do ocorrido, ficou extremamente chateado,<br />

deslocando-se logo para o Bairro dos Ossos, a fim de<br />

partir os ossos da primeira mulher, e projectá-la da casa<br />

para fora, com todas as suas imbambas, panelas, trouxas,<br />

e pentes e penicos…<br />

A mulher foi para a casa da mãe, na Mulemba wa xa<br />

Ngola, acompanhada dos seus dois filhos, tendo um dia<br />

depois reunido a família, expondo-a tudo quanto se<br />

passava em sua casa.<br />

105


Entretanto, todas as manhãs Zito continuava a receber<br />

a senhora cujo filho tinha giba. O quimbandeiro parecia<br />

satisfeito com o tratamento, pois quando friccionava o<br />

petiz, este até gemia e peidava, enquanto com palavras<br />

afáveis ia o quimbanda acariciando a mãe.<br />

---- Está a ver, mana? Nem uma semana ainda fez, e a<br />

coisa está já a desaparecer!…<br />

Mas a senhora também possuía olhos que viam. Havia<br />

quase uma semana que estava a ver, e a coisa sempre ali e<br />

a não desaparecer. Pelo contrário, a cifose do miúdo<br />

parecia ter crescido mais. Em casa do petiz, todos<br />

partilhavam dessa opinião.<br />

Sobre a cura do filho, já o marido tinha esgotado<br />

toda a sua sagrada esperança. Onde é que ainda não haviam<br />

ido? Quanto é que já não haviam gasto?…<br />

---- Tudo! Porra, tudo! E o miúdo continua na mesma,<br />

porra!---- dizia o marido exaltado.<br />

Porém, no fundo de todo o seu aborrecimento e<br />

exaltação, estava quiçá, outrossim, o facto do tratamento<br />

do filho já havia um bom tempo, o privar de incendiar-se<br />

no fogo de corpo que a mulher todos as noites, ia<br />

abusivamente juntar à gasolina do seu.<br />

E então, era impossível conter-se. Tentava imaginarse<br />

sozinho no oceano da cama, mas a imaginação ia sempre<br />

desaguar no fogo da mulher. Mexia-se, remexia-se, dizia<br />

haver percevejo na cama, mas o que ele queria mesmo, era<br />

mexer o percevejo grande que ao seu lado dormia.<br />

Havia dois dias que não levava a mulher e o filho ao<br />

tratamento. ―Já não me meto mais nisso.‖---- declarara.<br />

Todavia, num sábado à tarde, sem o conhecimento da<br />

mulher, resolveu ir ter com o quimbanda, no Bairro dos<br />

Ossos.<br />

Nesse dia, Zito havia acordado muito bem, apesar de<br />

ter tido um sono intranquilo, com pessoas dos arredores e<br />

do ultramar, a virem atacar a sua casa, cada uma<br />

empunhando um enorme osso.<br />

106


O sábado continuava a passar normalmente, sem grandes<br />

sobressaltos. Entretanto, lá para o meio da tarde, um<br />

grupo de pessoas, constituído pela vizinha do quimbanda,<br />

o marido desta, e alguns familiares de ambas as partes,<br />

irrompeu pela casa do quimbandeiro, no mesmo instante em<br />

que uma viatura acabava de estacionar junto à sua porta.<br />

Todos quantos se encontravam no quintal, ficaram<br />

estupefactos, ao verem aquele pelotão vir intrepidamente<br />

engravidar, sem apelo nem aviso, o quartito do<br />

quimbandeiro. E o barulho, tomou conta do lugar…<br />

---- Eh! Eh! Vucê também já é quimbanda?! Quimbanda<br />

da ondê??! ---- perguntava a mãe da vizinha ---- Vucê,<br />

não andava na Mulemba?! A ajudar o velho Kaxika?! Vucê,<br />

quer trazer azar na minha filha??! Vucê…<br />

O senhor que havia estacionado o carro lá fora,<br />

seguindo a caravana encabeçada pela velha que naquele<br />

momento estava falando, viu atrás de si todos quantos<br />

estavam no quintal, duplamente estupefactos com o<br />

estupefaciente que se fumava no quartito do quimbandeiro.<br />

Queria dizer algo, desabafar, disparatar, despregar todas<br />

as paredes alheias da casa do quimbandeiro, derramar todo<br />

o seu kikoto, todo o seu rancor orgástico nocturno, na<br />

boca de Zito.<br />

Mas, alguma coisa na expressão do quimbanda refreava<br />

o seu impulso…<br />

O quimbanda, reconhecendo de imediato a pessoa da mãe<br />

da vizinha, pela primeira vez em toda a sua existência,<br />

baixou a cara, de vergonha.<br />

Nos seus trinta anos, passara já por muita<br />

experiência, afrontara brancos e padres, negros e diabos,<br />

patroas adúlteras imaculadas, e patrões cornos e<br />

corneteiros, hetero e homossexuais, bandidos do sandokan,<br />

e pequenos e grandes burgueses, e nunca!… nunca baixara a<br />

sua cara, de medo ou de vergonha. Nunca!<br />

E ali estava ele, envergonhado em todas as moléculas de<br />

todas as células do seu corpo, qual um pobre diabo<br />

107


apanhado em flagrante delito, a defecar numa pia<br />

baptismal.<br />

A<br />

<br />

Boavista preparava-se para a<br />

passagem do ano. No ar, o fumo e<br />

o cheiro de churrascos e demais assados, ia desaguar na<br />

praia ali próximo, e no além-mar, apressando a chegada<br />

dos navios. Aqui e ali, um pé de música, uma roda de<br />

amigos, um riso, uma gargalhada, uma lágrima de mel,<br />

parida pela emoção de um cérebro inebriado.<br />

Era um bairro quase ao nível do mar. Tudo quanto<br />

está ao nível do mar, é imenso e azul. Sal para o mal,<br />

mel e doce para o bem e para o amor.<br />

---- Pois é, Jenito. Quantos anos lá vão?…<br />

---- Oh, primo, muitos, muitos anos. Desde que a<br />

mãe morreu…<br />

---- E assim, primo, que pensas fazer da tua vida?…<br />

Já tens um fogão, uma geleira e uma arca… pensas te<br />

casar tão cedo?<br />

---- Não. Casar ainda não. Agora tenho que arranjar<br />

um outro emprego, e continuar a estudar…<br />

---- Exactamente!---- interrompeu o primo---- Tens<br />

de estudar, sobretudo. Aqui, como vês, a casa é grande.<br />

Tens aí um quarto para ti, livros para te cultivares…<br />

Caso tenhas alguma dificuldade, podes colocá-la a mim,<br />

sem qualquer receio. O necessário é encarares tudo com<br />

responsabilidade. Os tempos mudam, tudo muda Jenito.<br />

TUDO!…<br />

Até parecia a encarnação do Mestre Coelho, morto de<br />

tuberculose, duas semanas antes do 25 de Abril… Porém,<br />

108


nunca o velho comerciante lhe tinha dito que tudo<br />

mudasse. Deveria o Coelho viver um pouquinho mais e<br />

logo saberia que afinal tudo muda. O primo, este não<br />

precisou de aguardar por muito tempo, para lembrar a<br />

Zito que tudo mudava…<br />

Na primeira sexta-feira que passou na Boavista,<br />

teve uma manhã metaforicamente calma, com banhos de<br />

praia e de sol, seguidos de uma tarde cheia de leitura<br />

e de música. A noite foi acontecendo calmamente.<br />

Serenamente. Sem miragens… A noite veio devagar,<br />

devagarinho, tal como viria a notícia.<br />

Encontravam-se à mesa, a esposa do primo, o primo,<br />

e Zito. Conjugavam o gerúndio do jantar. Do rádio vinha<br />

música suave. Entretidos na conversa, não deram pela<br />

introdução da notícia. Mas, pouco depois, a esposa do<br />

primo chamaria a atenção de todos.<br />

---- Escutem!<br />

E escutaram. Atentamente. Silenciosamente.<br />

---- Tudo muda, Jenito. ---- disse o primo, como<br />

que segredando.<br />

---- O quê?---- interrogou Zito.<br />

---- Isso que há dias te disse e agora podes<br />

confirmar…<br />

---- Não percebo. O que é que o primo quer dizer?<br />

No auge da alegria, o primo quase gritou.<br />

---- Que tudo muda, primo! Vamos trocar o dinheiro,<br />

nova Angola, novo ano, novo dinheiro!…<br />

Zito continuava sem perceber nada. A mulher do<br />

primo quis explicá-lo, mas de imediato Zito perguntou<br />

ao marido.<br />

---- Mas antigamente, também não trocavam o<br />

dinheiro, primo? Vinha sempre dinheiro novo?<br />

109


----Não é dinheiro novo, primo! Novo dinheiro! Com<br />

a nossa bandeira! Toda essa cambada de Silva Portos e<br />

Salazares Aeroportos, vai pro lixo! Pro lixô! Pro<br />

lixôôô!<br />

Zito estava caindo do Evereste. Do Morro do Môco,<br />

do Monte de Ícaro. E cada ―pro lixô!‖ do primo, era uma<br />

bala a cravejar-se no mais íntimo do seu coração.<br />

De facto, o último ―pro lixôôô!‖ do primo,<br />

atravessou como um míssil, o coração de Zito, indo em<br />

direcção aos dois garrafões grávidos de dinheiro,<br />

escondidos no forno do fogão, num dos cantos do seu<br />

quarto.<br />

Mas Zito, não atingido na cabeça, ainda pôde<br />

agarrar-se num fôlego de vida e regenerar o humor<br />

perdido, adiando a morte dos garrafões.<br />

Atento ao que continuavam a noticiar, o casal não<br />

se apercebeu da mudança de humor em Zito.<br />

---- Mas então, se vão trocar, como é que o<br />

dinheiro vai para o lixo? ---- interrogava Jenito,<br />

perceptivelmente despeitado na voz.<br />

---- É claro, Jenito! ---- explicava a esposa do<br />

primo ---- Para que havíamos de precisar do dinheiro do<br />

colono? Eles vão criar postos de troca…<br />

---- Ãah! V-ão criar pos-tos de tro-ca! ----<br />

exclamou alegremente Zito ---- Pensei que iam deitar<br />

fora todo o meu… todo o dinheiro! ---- exclamou,<br />

atabalhoadamente se corrigindo.<br />

Estava de volta ao espírito que o animava. Longe de<br />

pensar que haveria de oscilar…<br />

---- Não. ---- prosseguia a prima, sem no entanto<br />

ter reparado nas palavras de Jenito ---- Não se vai<br />

fazer isso. Os postos para a troca da moeda…<br />

110


---- Então só vão trocar as moedas ?!! ----<br />

interrompeu Zito.<br />

A emoção era demasiada. Mais. Era geral. Era<br />

nacional, universal… No Miramar ou no Cafunfo, no<br />

Lobito ou na Lixeira, no Rangel ou na Catepa, todos os<br />

rádios estavam até ao máximo dos seus volumes. Quiçá,<br />

até nas fronteiras do Maiombe, nas do Cunene, e nas de<br />

todas as frentes de combate, os soldados estivessem<br />

dançando, e os inimigos, mesmo sem troca de tiros,<br />

morrendo de amargura e de desânimo.<br />

E são tão tristes a amargura e o desânimo! E<br />

nessa noite, eles entraram com tanta delicadeza, aos<br />

ouvidos de kamanguistas e candongueiros. Suspenderam<br />

relações sexuais, a conjugação de milhares de verbos. Dos<br />

verbos urinar e defecar. Levaram à morte cardíaca,<br />

grandes corações que por este mundo vegetavam. Eram<br />

corações grandes, embrulhados em glicoses e gorduras,<br />

carros e dólares e diamantes e ouros, suados pelas mãos<br />

dos pobres. Corações tão sujos e enormes, absurdamente<br />

enormes; absurdamente mortos por uma tão inofensiva<br />

notícia…<br />

Demasiada, era a emoção. E entre o barulho que havia<br />

em todos os lares e cantos e becos, da terra de Ngola<br />

Kiluanje Kia Samba, irrompia a voz de Santos Júnior…<br />

«Etu tuandala ku mona ó kitadi kia Ngola, ni polo<br />

ya Agostinho Neto eeh!…»<br />

---- Não, Zito. ---- prosseguia a prima---- Quando<br />

se fala em troca da moeda, quer dizer troca de todo o<br />

dinheiro. Das moedas e das notas.<br />

---- Ãh… Pensei que eram só as moe-das! ---exclamou<br />

Zito.<br />

O primo que até ali permanecia com os ouvidos mais<br />

grudados ao rádio que ao que se passava à sua volta,<br />

interromperia passados instantes:<br />

111


---- Acho que todos vão trocar a mesma quantidade<br />

de dinheiro. Certamente que estabelecerão um tecto<br />

máximo por pessoa…<br />

---- E onde é que serão colocados os postos de<br />

troca?---- perguntava a esposa.<br />

Apesar de atento, Zito estava noutro estado de<br />

humor.<br />

---- Nas Comissões de Bairro, no Banco…----<br />

explicava o marido.<br />

Jenito pediu licença para retirar-se da mesa, e<br />

dirigiu-se para o seu quarto.<br />

---- Já tão cedo, primo? ---- perguntava o primo,<br />

notando alguma tristeza na aspecto do primo.<br />

---- Sim, primo. Estou cansado e com sono. ----<br />

explicou, indo em direcção à porta do seu quarto.<br />

---- Este rapaz, tem algum problema. ---- segredou<br />

o primo à esposa.<br />

Entretanto, após a transmissão daquela histórica<br />

notícia, muitos saíram à rua para lavarem os seus rostos<br />

com a brisa vinda do mar. E com este e aquele e<br />

aqueleoutro vizinho, formavam grupos de conversar e<br />

discutir o assunto da troca da moeda.<br />

Zito estava cansado. Realmente estava cansado, mas<br />

nem por isso o sono lhe acontecia. Todos os átomos do seu<br />

corpo e da sua alma, estavam acordados. Entre os olhos e<br />

as mãos, havia uma maçã-de-Adão, quente e dilatada.<br />

Cautelosamente, Zito abriu o forno do fogão retirando<br />

daí os dois garrafões que continham o dinheiro acumulado<br />

durante quase quatro anos, fruto de muito sacrifício,<br />

risco, fome, sede e calor e frio, sofridos por ele e por<br />

todos quantos lhe haviam dado a guardar, comida,<br />

calçados, peças de automóveis, dinheiro, fogões,<br />

geleiras, arcas, o catre e o armário hipotecados à dona<br />

112


da casa do Bairro dos Ossos, pelas rendas de dois meses,<br />

que Zito não se desafiara a pagar. Sofridos por ele por<br />

todos quanto ele tratou enquanto quimbanda.<br />

Zito, após ter-se certificado de que a porta do<br />

quarto encontrava-se realmente bem fechada, derramou na<br />

sua cama o conteúdo dos dois garrafões. E ficou até<br />

madrugada dentro, arrumando os seus escudos…<br />

Nunca havia sonhado com os pais, desde que estes<br />

haviam morrido, nem sequer com os irmãos, em<br />

Ndalatando. Nessa noite, sonhou com o Mestre Coelho…<br />

A manhã de sábado, estava bastante movimentada. Das<br />

ruelas e dos becos, vinham jovens e velhos desaguar na<br />

rua principal, em direcção à Comissão do Bairro, onde<br />

encontrava-se montado um posto de troca. Nesse dia<br />

ninguém iria trabalhar.<br />

Só depois de muito meditar, pensar, alambicar e<br />

repensar, é que Zito decidiu abrir-se ao primo. Chamou<br />

este ao seu quarto, e logo declarou:<br />

---- Tenho cá um grande problema, primo…<br />

---- Problema?!… ---- interrompeu o primo,<br />

espantado.<br />

---- Está aí, primo. ---- disse Zito, destapando o<br />

lençol sobre os montes de dinheiro espalhados na cama.<br />

---- O quê??!<br />

O berro do primo, arrancou a esposa que se<br />

encontrava no quarto de banho, aproximando-se da porta<br />

do quarto de Zito.<br />

---- O que é que se passa, ò Simões?! ----<br />

perguntava a mulher, entrando para o quarto. Ao reparar<br />

no que havia na cama, o coração quase que lhe saiu do<br />

lugar. Os três entreolhavam-se, como se intimamente se<br />

perguntassem ―e agora?‖…<br />

---- Agora, temos que contar, primo.<br />

113


---- Todo! ---- exclamou o primo, electrizado pela<br />

quantidade de escudos.<br />

---- Todo sim, mas podem tirar o cavalinho da chuva<br />

que nem tudo isso aí será trocado. ---- dizia a esposa,<br />

ainda estupefacta pelo que se lhe deparava.<br />

Entretanto, passados os dois dias previstos para a<br />

troca, conseguiu-se apenas trocar metade das centenas<br />

de milhares de escudos, que Zito havia acumulado. Tudo<br />

graças à perspicácia e à inteligência da mulher do<br />

primo. Foram, deveras, dois dias de uma tempestade<br />

nunca antes verificada no país, após a qual, e tal como<br />

após qualquer uma, começou-se a respirar um novo<br />

oxigénio, a viver-se sob uma brisa mais suave.<br />

Encontravam-se os dois primos à mesa, conversando.<br />

----…É preciso esquecer essas coisas, Jenito ----<br />

dizia o primo, vendo Zito muito pensativo ---- A vida é<br />

mesmo assim.<br />

----É verdade primo…<br />

----Por isso ----prosseguia o outro ---- doravante<br />

é preciso encarar as coisas como homem. Economizar sim<br />

mas no banco, primo. É melhor estar prevenido primo!<br />

Aqui ainda vão acontecer muitas coisas, muitas, primo!<br />

Muitas! Muitas!…<br />

« Esse muadié deve estar bêbado » ---- pensou Zito.<br />

E abrandando um pouco mais a voz, o primo<br />

prosseguiria:<br />

---- Uma revolução traz sempre outras revoluções<br />

atrás de si, primo. Por isso não se pode pensar que<br />

esta troca é a única. Já…<br />

Zito sobressaltou-se:<br />

---- Então, quer dizer…<br />

114


---- Calma, Jenito! Já houve mais trocas. Não<br />

trocas de moeda, Jenito. Parece que todo o teu<br />

pensamento só ronda à volta do dinheiro… Quer comer<br />

outra vez o suor…<br />

Com a atenção em crescendo, Zito interrompeu:<br />

---- Qual suor então, primo Simões?<br />

---- Não te zangues, Jenito. Se há uma pessoa<br />

realmente preocupada com a tua vida, com o teu futuro,<br />

essa pessoa sou eu, teu primo ---- dizia Simões.<br />

Enquanto os dois conversavam à mesa, a mulher na<br />

sala de visitas, lia. O receptor de rádio estava<br />

apagado. Através das persianas de uma janela que dava à<br />

baia, entravam pequenas lufadas de ar fresco.<br />

A aura reinante na casa do primo, os banhos de<br />

praia e sol, iam gradualmente influenciando o carácter<br />

e o temperamento da pessoa de Zito. As partidas de<br />

futebol no campo da Textang, as belas moças da<br />

Boavista, as suas festas e os seus óbitos, pareciam<br />

pouco interessá-lo. Mesmo depois que começou a<br />

trabalhar, esses atractivos estavam longe de suplantar<br />

a sua preferência pelo cinema, pela praia e pela<br />

leitura. Neste particular, vinha se interessando cada<br />

vez mais, pesasse o facto de a estante do casal<br />

albergar na sua maior parte, livros de Marxismo-<br />

Leninismo, Economia Política, Filosofia, História,<br />

Psicologia, Direito, e de mais políticas que nunca<br />

curvavam à esquerda, para lhe explicarem na linguagem<br />

da sua quarta classe, a essência do que lia.<br />

E ele lia. Na sala, no quarto, na varanda; de pé,<br />

sentado, deitado, de gatas, na tentativa de apanhar um<br />

raio de luz, em que viajar e chegar primeiro que todos,<br />

afinal, ao coração das lindas moças malanginas,<br />

santomenses, cabo-verdianas e de mais cabos que na<br />

Boavista amaduravam. Dir-se-ia que Zito estava se<br />

transfigurando.<br />

As pessoas daquele bairro podiam ir ao cinema, ás<br />

praias, às livrarias, aos hospitais, às bibliotecas,<br />

115


aonde quisessem, e jamais diriam «estou ir em Luanda».<br />

Luanda era ali. Ali era Luanda, apesar das barrocas de<br />

lixo do Miramar ameaçarem o bairro e a baía, com os<br />

três estados físicos dos detritos da Civilização<br />

Humana. Apesar da cegueira dialéctica das chuvas<br />

lentamente soterrarem as casas do bairro e a linha<br />

férrea que por ali passava, com as areias sujas do<br />

Sambizanga e das suas barrocas.<br />

Zito, de quando em vez, gostava de ir às barrocas<br />

do Miramar. Não, para ver o mar ou o céu. Da baía<br />

também podia ver-se o mar e o céu, casarem no<br />

horizonte. Gostava de lá ir, para ver o «motocross»,<br />

apesar de este não ser então o que já havia sido em<br />

tempos idos...<br />

Numa calma tarde de domingo, Zito deslocou-se até<br />

lá para assistir à uma corrida de desanuviar.<br />

Motorizadas de todas as cilindradas estavam lá, e de<br />

igual modo pessoas de todos os lados.<br />

Ia a corrida para lá do meio, quando sem aviso nem<br />

licença...<br />

---- ...Um gajo aparece à minha frente a me<br />

perguntar onde é que eu andava!---- contava Zito ao um<br />

colega, dentro do seu gabinete.<br />

---- E você?---- interrogou o outro.<br />

----Eu fiquei sempre nas minhas … «você não é o<br />

Zito?», perguntava ele. Zito? Eu?! O camarada deve estar<br />

enganado! «Você não é o Zito, que trabalhou no Bom-<br />

Escape? Não conheceste lá um Juca?»…<br />

---- Mas o muadiê não estava a ver bem, ou quê? ---<br />

- interrompia o colega.<br />

---- Se não estava a ver bem?... A ver bem demais<br />

ele estava. Eu é que não queria vê-lo ali à minha<br />

frente.<br />

---- Então lhe conhecias?<br />

116


---- Iá! O gajo tinha trabalhado comigo numa<br />

oficina...<br />

---- No Bom-Escape --- acrescentava o outro ----E<br />

porquê que não querias lhe ver?<br />

---- O gajo se fazia de amigo, mas afinal era um<br />

grande bufo ao serviço do dono.<br />

---- Ai-é!<br />

---- E o patife é quem fez para me tirarem da<br />

oficina. Soube isso depois...<br />

---- O que fazias nessa oficina?<br />

---- Fazia o controlo do pessoal e outros trabalhos<br />

administrativos.<br />

---- Então, já há bastante vens a trabalhar em<br />

Recursos Humanos?<br />

---- Iá.<br />

Ainda faltava muito para a hora do almoço. Do<br />

guiché, dois senhores aguardavam que qualquer um<br />

daqueles dois palradores, deixasse de olhá-los com<br />

indiferença e lhes viesse atender primeiro, e depois,<br />

sim, que continuassem a conversar até o fim do mundo.<br />

Só depois, e quiçá porque as nádegas lhes estivessem a<br />

doer de tanto sentar, foi o colega atendê-los:<br />

---- Os camaradas sabem que à esta hora já não<br />

atendemos.---- atirou de chofre. ---- Não temos<br />

transporte e precisamos largar cedo.<br />

---- Mas eu só queria saber de um documento…---- ia<br />

a dizer um dos senhores.<br />

---- Todos os documentos estão no gabinete do<br />

chefe, ainda não baixaram---- interrompeu o<br />

funcionário.<br />

117


Os senhores foram-se embora e os dois burocratas<br />

continuaram a palrar até ficarem afónicos e com as<br />

nádegas totalmente achatadas. Fecharam a repartição e<br />

dirigiram-se ao refeitório.<br />

Ao regressar à casa, Zito não encontrou ninguém.<br />

Com a sua chave, abriu as portas e entrou. Ao<br />

atravessar a sala rumo ao seu quatro, um bilhete por<br />

cima da mesa, chamou a sua atenção. A sogra do primo<br />

encontrava-se gravemente doente. Para não ficar<br />

sozinho em casa, depois de lavar-se, jantou e foi para<br />

o cinema.<br />

No Kipaka corria o «Mas, que tropa!» com Franco<br />

Franchi e Ciccio Ingraccia a explodirem o baixo-ventre<br />

de estátuas e deuses, com as parvoíces da civilização<br />

ocidental.<br />

Quando Zito chegou, já o filme tinha começado, e<br />

teve de perder algum tempo e fita, antes de encontrar o<br />

seu lugar.<br />

Pouco depois de sentar-se, e justamente quando ia<br />

lançando uma gargalhada, apareceram duas apetitosas<br />

moças que se acomodaram cada uma num dos dois lados,<br />

deste modo, ficando ele entre as duas.<br />

Pelo aspecto, tiques e vozes, Zito considerou-as<br />

«mininas finas», «mininas da Baixa». E se quisessem,<br />

podiam pedi-lo para trocar o lugar com uma delas e<br />

assim ficarem juntas. Mas tal não aconteceu.<br />

O filme prosseguia. Era uma amostra de quanto os<br />

macacos já haviam evoluído. E os outros macacos, estes<br />

a quem aqueloutros por incultura chamavam de macacos,<br />

berravam, gritavam, choravam; por entenderem a<br />

macaquice da sua linguagem.<br />

Zito não era macaco. Era um homem…<br />

O filme prosseguia e as duas moças conversavam<br />

entre si como se a separá-las nada estivesse; berravam,<br />

levantavam-se com cócegas no baixo-ventre; faziam<br />

118


escândalos dizendo a Zito que não eram nada «finas»,<br />

nem tão-pouco «da Baixa».<br />

Um homem não entende a linguagem das formigas, nem<br />

a dos macacos; nem tem por que se rir escandalosamente<br />

das suas brincadeiras.<br />

No auge da densidade cómica de uma sequência, as<br />

moças a rirem, a berrarem, vacilaram e …Tomas! Tomas! A<br />

quererem bater-se, bateram naquele rapaz fechado e<br />

mudo. Estaria cego ou doente?<br />

---- Oh, pá! Desculpe..--- disse uma delas.<br />

Para o espanto das moças, Zito respondeu às duas<br />

palmadas com uma grande gargalhada de lhes colocar dali<br />

por diante no mundo dos macacos. E foram conversando<br />

naturalmente ao longo do filme. Ao intervalo as moças<br />

convidaram-lhe a tomar um sumo. Aceitou. Estava feita a<br />

amizade.<br />

Quando o filme terminou, os três seguiram juntos<br />

até à saída. Antes de se despedirem, ele perguntou:<br />

---- Moram longe daqui?<br />

---- Nem tanto.--- disse uma.<br />

---- na Boavista.--- disse a outra.<br />

Amanhã estava linda. Da janela via-se passar bandos<br />

de cegonhas lá no céu. Não muito longe, era o mar, o<br />

imenso mar, de onde vinha aquela brisa suave, a<br />

envolver todos os corpos que ali trabalhavam, o bater<br />

de máquinas dactilógrafas, e o barulho de vozes<br />

humanas.<br />

---- Viemos todo o caminho a conversar sobre o<br />

filme, sobre nós; são simpáticas as tipas. ---- contava<br />

Zito ---- Mostraram-me a casa delas...<br />

119


---- O que é que elas são; irmãs? ---- perguntou o<br />

colega.<br />

---- São primas. Prometi ir à procura delas logo à<br />

noite.<br />

Indiscretamente, uma senhora deu entrada na<br />

repartição.<br />

---- Ó Simões, nunca mais assinam o meu cartão?<br />

A violência com que a pergunta entrou aos ouvidos<br />

de Zito foi reflectir-se no gesto com que abriu uma das<br />

gavetas da sua secretária.<br />

Ficou por lá a vasculhar, enquanto a colega<br />

encostada no parapeito da janela, meio voltada para o<br />

lado de fora; sacou da carteira a<br />

tiracolo, uma caixa de pó-de-arroz, passando batom<br />

sobre os lábios.<br />

---- O cartão rapaz, preciso de sair já!---- disse<br />

reparando para fora.<br />

---- Já?! ---- exclamou o outro colega ---- já<br />

trabalhaste as oito horas?<br />

A colega, já à frente de Zito, olhou de esguelha<br />

àquela e fez um muxoxo.<br />

---- Quem é que as trabalha? Meta-te na tua vida …-<br />

--- segurou o cartão que Zito lhe metia nas mãos, ao<br />

mesmo tempo que uma buzina vinda de fora lhe arrancava<br />

dali:<br />

---- Essa gaja é muito armadinha. ---- disse o<br />

colega descansando as mãos no tabulador da máquina ----<br />

sabes quem é que anda a lhe mexer?<br />

---- Não. Tu sabes? ---- perguntou Zito.<br />

---- O chefe Correia, um grande feio…<br />

---- Ai é?!<br />

120


A sogra do primo piorara. A prima ficaria junto<br />

dela o tempo necessário. Em casa, Zito fazia as<br />

arrumações e as refeições.<br />

As suas relações com Alice e Marisa foram se<br />

estreitando cada vez mais. Porém, com a última é que<br />

foi se afeiçoando mais. Não obstante a grande diferença<br />

nos seus níveis de cultura, tinham todavia muitos<br />

pontos de vista em comum. Zito estava totalmente<br />

transfigurado.<br />

O ambiente existente em sua casa agradava a Marisa,<br />

tornando muito frequentes as suas vindas para aqui. O<br />

primo, um tanto espantado, porquanto não via em Zito<br />

capacidade para tamanha conquista, simpatizou-se logo<br />

com a moça, tão logo Zito o apresentou.<br />

---- Agarra bem, rapaz! ---- segredou ele.<br />

E Zito agarrou bem… O corpo dela. Estavam sós. Era<br />

tarde. Ela estava livre. E ele faltara ao serviço para<br />

estar ali junto dela. Do corpo dela. Aos seus olhos o<br />

corpo de Marisa transbordava com todo o seu fogo lhe<br />

queimando o peito e lhe incendiando a libido.<br />

---- Que pensas de tudo isso, Jenito? ----<br />

perguntava ela.<br />

---- Tudo o que é de bom para mim e para ti,<br />

Marisa.<br />

---- Tenho medo sabe. ---- disse ela, tirando da<br />

sua coxa a mão de Zito.<br />

---- Também eu tenho medo.<br />

---- De quê?<br />

121


---- Do que tu temes, Marisa ---- respondia ele ---<br />

- sempre disseste que não tinhas medo de nada, que eras<br />

adulta e vacinada, que…<br />

---- Não te enerves! ---- exclamou ela,<br />

aconchegando-se mais ao colo dele.<br />

A passagem de um comboio foi marcado com um longo<br />

beijo.<br />

---- Sabes ---- dizia ela ---- sou virgem.<br />

Zito sorriu. Voltaram a beijar-se.<br />

---- Por que sorriste? ---- perguntou ela depois,<br />

com um pouco de despeito na voz.<br />

---- Por alegria, Marisa. Acho que todo homem<br />

sente-se feliz quando encontra uma mulher como tu.<br />

Ela permaneceu calada. Lentamente as mãos dele<br />

foram desnudando o corpo dela. Lentamente o sol ia<br />

morrendo no horizonte. No mar, a maré lentamente ia<br />

subindo. Não tardou a matar a sede da sua libido no<br />

oásis do sexo dela.<br />

Quando o primo chegou a casa, encontrou Zito a<br />

bater um funje.<br />

---- A mãe da Gabriela não aguentou mais …<br />

---- Morreu?!<br />

---- Morreu, Jenito ---- disse o primo dirigindose<br />

para o quarto.<br />

Ao ouvir um barulho que saía do quarto de banho,<br />

estacou.<br />

---- Quem está aí ? ---- perguntou .<br />

---- É a Marisa, primo. ---- respondeu Zito.<br />

122


---- A tomar banho ?<br />

---- Não, a lavar-se; sujaram-lhe de lama quando<br />

ia acompanhá-la.<br />

primo.<br />

---- Ai-é ? Foi algum carro?<br />

---- Sim, primo.<br />

«Esse rapaz pensa que me embrulha…» ---- pensou o<br />

Lá fora, a noite já estava mais próxima. Zito e<br />

Marisa encontravam-se sentados à mesa, quando o primo<br />

saiu do quarto.<br />

---- Então Marisa! ---- saudou ele.<br />

---- Tudo bem, obrigada.<br />

Após uma pausa:<br />

---- E assim, quando será o funeral? ----<br />

perguntou Zito.<br />

---- Talvez amanhã à tarde. Conheces a casa?<br />

---- Sim ---- respondeu Zito ---- De manhã vou ao<br />

serviço pedir uma dispensa e à tarde apareceremos lá, né<br />

Marisa?<br />

---- Sim ---- respondeu ela.<br />

O aspecto de Marisa pareceu um tanto estranho ao<br />

primo.<br />

---- Então, deram-te um banho de lama? ----<br />

perguntou aquele.<br />

---- Um tanto perplexa, respondeu a sorrir:<br />

---- É verdade!<br />

123


O primo não comeu. Despediu-se dos dois e saiu<br />

logo. Momentos depois, foi a vez deles também saírem.<br />

Zito ia acompanhá-la à casa. Pelo caminho, ao dobrarem<br />

uma esquina, apareceu à sua frente, Alice, a prima dela.<br />

---- São! --- exclamou ela de espanto. --- Só agora?<br />

O casal estacou.<br />

---- O velho já chegou? --- interrogou Marisa.<br />

---- Acaba de chegar mesmo há instantes! --- disse a<br />

outra, retomando a caminhada. --- Venho já aí.<br />

O casal, por sua vez, resolveu despedir-se aí<br />

mesmo. Beijaram-se, e cada qual foi para o seu lado.<br />

O corpo da mãe de Gabriela, seria enterrado no<br />

Alto das Cruzes. Ao contrário do que fora, quando se<br />

casara, desta feita ia no primeiro carro. Ia com vagar,<br />

indiferente a tudo e todos, com calma, e sem pressa<br />

alguma de cortar cedo o bolo da terra.<br />

Ao regressarem do cemitério, Marisa mostrou á<br />

Zito a casa do tio, na qual havia vivido durante algum<br />

tempo.<br />

---- Quanto tempo andaste aí?<br />

---- Uns dois anitos.<br />

---- Por que razão saíste de lá? O bairro até é bom…<br />

---- Adoecia sempre. Estava constantemente a sonhar<br />

com o meu tio, não havia noite que não me apertassem na<br />

garganta e então resolvi sair.<br />

---- Esses tios, esses tios…<br />

O cortejo agora voltava depressa, com variável<br />

distância entre os carros e já com alguns intermediários<br />

no meio. Ao longo das artérias, bandeiras vermelhas<br />

anunciavam aproximação de mais um 1º de Maio. Posta em<br />

124


casa, Marisa dirigiu-se imediatamente ao quarto de banho.<br />

Tinham chegado as regras.<br />

«----Meu Deus! Preciso me cuidar…» ---- pensou ela<br />

Entretanto, o relacionamento entre Marisa e Alice<br />

começara a deteriorar-se, pois esta pouco se simpatizava<br />

com o namorado da prima, ao contrário do que parecera na<br />

noite em que se conheceram.<br />

Para Zito, tal ia se evidenciando no facto de<br />

Alice virar a cara para o outro lado, quando por acaso se<br />

encontrassem na rua; nunca lhe dirigir a palavra quando<br />

os três estivessem juntos e responder-lhe quase com<br />

desdém nas vezes em que ia a procura de Marisa.<br />

---- Não sei quando é que hás de dar conta que esse<br />

rapaz não te fará feliz, São ---- dizia Alice.<br />

---- É uma questão de tempo, tá bem Alice? E ademais<br />

não é minha preocupação imediata saber se ele me fará<br />

feliz ou não. Já te perguntaste se também eu porventura<br />

lhe farei feliz?<br />

---- Não te armes em parva, é ele o homem:<br />

---- Pois! Nisso é que te enganas ----dizia a Marisa -<br />

--- Para já podes estar bem descansada comigo e com ele.<br />

Nós nos amamos, Alice. Por favor, tente compreender<br />

isso...<br />

Mas Alice dava poucas mostras de compreender<br />

aquilo. Talvez tenha compreendido alguma coisa, quando em<br />

casa deram pela gravidez de Marisa.<br />

O pai ficou fulo. Na samba, a mulher com quem já<br />

não vivia, declinou todas as culpas a ele. Em casa, o<br />

clima era de tensão.<br />

O facto, impossível de continuar ali fechado,<br />

resolveu dar uma volta pela vizinhança, tamanha era a<br />

secura das bocas ditas azuis.<br />

125


---- Evita, vem só, vou te contar umas!---- chamava<br />

uma bisbilhoteira.<br />

A outra, apreensiva, aproximava-se e saudavam-se<br />

batendo-se com as mãos, uma na da outra, enquanto<br />

trocavam um olhar como que de cúmplices.<br />

---- É o quê mesmo? ---- perguntava esta.<br />

---- A coisa então, a menina fina, que não dá<br />

confiança a ninguém, está grávida!<br />

---- Quem?! A São?!... Dessa já eu sei!...<br />

E era o mesmo diálogo nesta ou naquela casa. O assunto<br />

era o mesmo, neste ou naqueloutro grupo de rapazes ou de<br />

raparigas. Apesar de tudo, Marisa mantinha a cabeça<br />

erguida, dir-se-ia indiferente à todas as metedices. Nem<br />

à Alice deu vapores a ares de gracinhas, que presumia ela<br />

já possuir. Outrossim, ao contrário do que muitos<br />

igualmente esperavam, Marisa continuou a frequentar as<br />

aulas, a ir ao cinema, e a fazer quase tudo o que<br />

geralmente antes fazia.<br />

Entretanto, pressionado pelos familiares dela, Zito,<br />

acompanhado do primo e da esposa deste, compareceu logo<br />

em casa de Marisa.<br />

Na sala, Marisa e Zito sentados ante os seus<br />

familiares, assemelhavam-se a uma ré e um réu aguardando<br />

pela leitura das suas sentenças.<br />

---- Então vamos lá ao que nos trouxe aqui ---- dizia<br />

o pai de Marisa ---- Menina São, vai nos explicar como é<br />

que esse vosso namoro está, quem é o responsável por essa<br />

gravidez, enfim, explique-nos tudo. Hoje em dia vocês<br />

decidem tudo à vossa maneira. Os pais não sabem com quem<br />

andam metidas... ---- a voz do pai era de lágrimas ----<br />

Enfim, não sei mais o que dizer...<br />

Entretanto, desde que Zito havia se sentado naquela<br />

sala, uma das senhoras, que parecia ser a mãe de Marisa,<br />

não parava de lhe olhar. Na verdade, parecia haver algo<br />

de suspeitoso naquilo, pois não obstante a boa ventilação<br />

126


que havia na sala, Zito era o único que ali suava. E de<br />

que maneira!<br />

Após Marisa ter tomado a palavra e atribuído à Zito a<br />

responsabilidade pela sua gravidez, pediram ao rapaz que<br />

confirmasse o que a outra dissera.<br />

Como se com o peso do corpo duplicado, Zito levantouse,<br />

e limpando o suor no seu rosto, tomou da palavra:<br />

---- De facto, tudo quanto ela disse é verdade. Sou<br />

sim o autor da gravidez. Nunca nos havia passado pela<br />

cabeça essa intenção, mas aconteceu, que é que podemos<br />

fazer...<br />

Posto isso, e enquanto se sentava, Zito notou um certo<br />

alívio, um aspecto já bondoso, no rosto cujos olhos antes<br />

pareciam lhe querer fulminar.<br />

«A kota ficou desorientada, confusa. Deve ter se<br />

agarrado na possibilidade de eu ser apenas muito parecido<br />

com ele. O português é de Portugal, o aspecto, a<br />

personalidade, é outra. Está atandacanhada. Porra, o<br />

mundo é pequeno! É uma bola!. Não há dúvidas. Ela é a<br />

dama. Marisa, heim! Quem diria ser aquela garina! Porra,<br />

mas essa velha começa a olhar-me outra vez... A<br />

incógnita faz-lhe cócegas, cócegas, CÓCEGAS! Vou dar o<br />

fora. Que se lixe tudo! Não! Ela... ela me ama. O amor<br />

perdoa. Mas que mal fiz eu?!... Pára de me olhar, dona,<br />

pare!»...<br />

A atenção de Zito não se podia dicotomizar. Na<br />

verdade, era já indiferente a fosse o que fosse o que ali<br />

se estivesse a falar. Só quando viu a mãe de Marisa a<br />

tomar pela primeira vez a palavra, é que imediatamente<br />

voltou a sua atenção ao que se passava na sala.<br />

---- Bom, realmente vocês se escolheram, a minha filha<br />

está grávida, e a nós como famílias, resta-nos apenas vos<br />

unir. Se vão se dar bem ou não, o caso é convosco. Hoje<br />

em dia só temos de vos olhar... Agora, se não é<br />

indiscrição, quero pedir ao menino para me dizer só uma<br />

coisa...<br />

127


Aqui, de repente Zito começou novamente a suar.<br />

---- Onde é que morava antes de vir viver com o seu<br />

primo?<br />

«Eu sabia! Essa kota tem boa memória. Quer que eu<br />

caia, assim de favor, na sua ratoeira! Bem pudera,<br />

mãezinha, mas o destino assim o quis. O destino quer que<br />

eu seja o marido da sua filha...»<br />

---- Antes de vir parar na casa do meu primo, eu vivia<br />

na Vila Alice, mãezinha. ---- respondeu Zito, com<br />

firmeza.<br />

---- Ah, na Vila Alice... arremedava a mãe ---- É que<br />

o menino é bem parecido com um senhor que conheci nesses<br />

lados do Cacuaco.<br />

---- Cacuaco?! Não, nem sequer conheço Cacuaco. ----<br />

concluiu Zito.<br />

Ele não podia ser o que a senhora estava desconfiando<br />

que fosse. A prosápia e o trajo atrapalhavam toda e<br />

qualquer suspeita sobre ele.<br />

E passado algum tempo, a reunião terminou. Deveriam<br />

voltar a reunir dali há um mês, para a marcação da data<br />

de casamento. Quanto ao alembamento, decidiu a família<br />

dela que tinha nenhuma importância. Que se casassem e<br />

constituíssem também o seu próprio lar.<br />

Logo após a retirada de Zito e sua família, a mãe de<br />

Marisa, verteu para fora o que lhe vinha preocupando.<br />

---- Ó mana Laura ---- chamava ela à irmã ---- diz lá:<br />

o rapaz não é muito parecido com aquele mais velho do<br />

Bairro dos Ossos?<br />

---- Quem é?! O mais velho Zito?!... «Essa minha irmã<br />

tem cada uma!» ... Então a mana não vê mesmo que este é<br />

moço ainda, e depois...<br />

A irmã rebentou-se às gargalhadas, contagiando os<br />

demais ainda na sala.<br />

128


---- O moço até é de presença ---- comentava um dos<br />

tios ---- Tem personalidade, tem...<br />

---- Realmente, pelo aspecto, deve ser de boa<br />

família... ---- interrompia o pai.<br />

Posto em casa, Zito continuou a pensar na suspeita<br />

levantada pela mãe de Marisa. Será que desfeito o<br />

equívoco, poderia continuar sossegado? Até<br />

quando seria ocultado esse seu segredo? Sabia Marisa que<br />

ele era também conhecido por Zito?<br />

Entretanto, enquanto o casamento não chegava, a<br />

gravidez de Marisa ia sim chegando, aumentando, crescendo<br />

o relacionamento entre a sua família e a de Zito.<br />

Alice, aparentemente indiferente ao caso da prima,<br />

aguardava com ansiedade o seu desfecho final. Todavia,<br />

não deixava de se lhe gabar do namorado, do seu carro e<br />

da riqueza da família, na tentativa de despertar na prima<br />

sentimentos de inveja.<br />

---- Talvez este ano, se Deus nos ajudar, ele termine<br />

a faculdade. ---- gabava-se Alice.<br />

---- Oxalá Deus vos ajude. ---- rematava Marisa, sem<br />

qualquer despeito.<br />

<br />

Certo sábado à tarde, Zito deslocou-se à casa da<br />

noiva, e antes de chegar, viu à distância um automóvel<br />

estacionado junto à porta dela. Encostados ao automóvel<br />

encontravam-se Alice e o que supunha ser o namorado.<br />

Ao cumprimentá-los, reparou que a cara do suposto<br />

namorado não lhe era totalmente desconhecida. E entrou<br />

para dentro da casa a matutar sobre onde tinha conhecido<br />

o indivíduo.<br />

129


Cá fora, o namorado de Alice, por sua vez, ficou<br />

igualmente a tentar recordar-se de onde conhecera Zito.<br />

---- Esse rapaz trabalhou comigo, já há muitos anos --<br />

-- dizia ele a Alice.<br />

---- Onde é que trabalharam?<br />

---- Ele era mecânico na oficina de um tio meu. O nome<br />

é que me esquece...<br />

----Jenito, não?<br />

---- Jenito?!... Não! Não lhe conheci por esse nome.<br />

Mas daqui há bocado já me recordo...<br />

Passado algum tempo em silêncio, ele interrompeu:<br />

---- Vamos dar uma volta?<br />

Ela concordou. Meteram-se no carro e arrancaram.<br />

Paulatinamente o dia ia escurecendo. Na avenida Marginal,<br />

a pouca intensidade do trânsito se harmonizava com a<br />

suavidade das águas da baía.<br />

---- Eduardo... acho que estou grávida ---- disse<br />

Alice rompendo um longo silêncio.<br />

---- Grávida?!---- admirava-se ele, mudando<br />

imediatamente de humor. ---- Grávida desde quando?<br />

---- Este mês as regras ainda não apareceram. Amanhã é<br />

já 1.º de Maio ---- explicava ela.<br />

Após outro longo silêncio, ele atirou:<br />

---- Penso que é prematuro para nós termos já um<br />

filho. Que pensas tu? ---- perguntou ele, tomando cuidado<br />

para não susceptibilizá-la.<br />

---- Quanto a mim, Edu, um filho só iria nos unir<br />

ainda mais...<br />

130


Eduardo continuou calado e algo distante. Alice,<br />

igualmente calada e distante, parecia decidida a não<br />

voltar a tocar no assunto, por enquanto.<br />

No horizonte ainda podia ver-se o sol a se afogar no<br />

mar. Atrás de si, ficava a cidade, agora já iluminada e<br />

a encher-se outra vez daquela agitação característica das<br />

noites de fim de semana.<br />

Desceram do carro e abraçados foram sentar-se à beira<br />

da praia, onde instantes depois Eduardo lembrou-se do<br />

nome por que conhecera Zito, e ficaram a conversar sobre<br />

ele.<br />

A escuridão era agora quase total. Entraram em casa e<br />

verificaram que o casal saíra. Zito dirigiu-se ao seu<br />

quarto, seguido de Marisa que de imediato pôs-se a<br />

admirar as novidades do quarto: um guarda-fato, uma cama<br />

com duas mesas de cabeceira, uma cristaleira, e uma mesa<br />

com seis cadeiras, estes, pendurados sob o tecto da casa.<br />

Sem conseguirem trocar sequer uma palavra, olharam-se<br />

fixamente durante um instante e logo se beijaram e<br />

atiraram-se à cama...<br />

Quando Alice e o namorado chegaram à casa, encontraram<br />

Marisa e Zito a conversarem junto à porta.<br />

Cumprimentaram-se e aí Eduardo decidiu manifestar-se a<br />

Zito.<br />

---- Zito! Estás a te recordar de mim?...<br />

Zito, espantado e ao mesmo tempo admirado, ainda<br />

pensou que talvez se estivesse a tratar dum equívoco da<br />

outra parte.<br />

----Eu sou o Edu, trabalhei contigo no Bom-Escape! ---<br />

- atirou o outro ante os ares de dúvida de Zito.<br />

131


---- Edu... Edu... ----fingia rebuscá-lo mentalmente,<br />

mas teve de anuir ---- Ah, Edu! Possas, estás mais gordo!<br />

Estás muito modificado!<br />

E lá ficaram trocando recordações dos tempos idos.<br />

Entretanto, Marisa aparentemente indiferente ao que<br />

ouvira, entrou para casa um tanto apreensiva, sem que<br />

Zito denotasse esse pormenor.<br />

«----Zito!... O tal senhor que me havia tratado,<br />

chamava-se Mestre Zito! Sim, Mestre Zito, é mesmo assim<br />

que lhe chamavam. É tal e qual o Jenito! Será pura<br />

coincidência? Meu Deus, será que o Jenito era esse Mestre<br />

Zito? Será?!... Mas aquele, era já um velho...»...<br />

---- Não sabia que também te chamassem por Zito ----<br />

atirou-lhe ela mal deu entrada na sala.<br />

Indo sentar-se junto dela, calmamente perguntou:<br />

---- Que Zito?! Ele confundia-me sempre com um primo<br />

meu chamado Zito, aliás, trocava sempre os nossos nomes,<br />

e assim ficou.<br />

Após a retirada de Zito, Alice chamou Marisa para o<br />

quarto que ambas compartilhavam. Com uma seriedade que<br />

havia tempo não encontrava na prima, escutou<br />

silenciosamente tudo quanto ouvira de Eduardo, a respeito<br />

dos pretéritos perfeitos, imperfeitos, mais que perfeitos<br />

e mais que imperfeitos da pessoa de Zito.<br />

Marisa ficou simplesmente pálida e exangue.<br />

«----Quimbandeiro??! ... Meu Deus!!! Então ele é<br />

aquele velho que me havia tratado?! Estou criando dentro<br />

de mim o filho dele... desse... desse quimbandeiro??!<br />

Serei mulher desse indivíduo?!...»...<br />

Não pôde aguentar mais. As lágrimas que desde a sua<br />

alma começaram a correr, transbordaram para fora dos seus<br />

olhos. Olhos bonitos. Os mesmos olhos que havia cerca de<br />

três anos tinham visto aquele jovem, aquele jovem cujo<br />

primeiro rebento levava dentro de si. Quimbandeiro... Não<br />

era, não podia ser verdade...<br />

132


E passou a noite inteira a chorar, a chorar e a pensar<br />

na desgraça em que caíra. Tivesse ela dado ouvidos ao que<br />

a prima lhe vinha dizendo e talvez viesse a saber<br />

exactamente com quem estava metida. «----<br />

Quimbandeiro!...»...<br />

Não sendo já possível o aborto, decidiu nessa mesma<br />

noite terminar o seu noivado com Zito, e aguardar até ao<br />

parto, para atirar-lhe à cara o seu rebentozinho de exquimbandeiro.<br />

Porém, de manhã ao contar a sua decisão à prima, esta<br />

dissuadiu-a que seria melhor, para que não restasse<br />

alguma memória, desfazer-se da criança tão logo nascesse.<br />

---- Desfazer-se como? ---- perguntou Marisa.<br />

---- Épa, fazer o que as pessoas por lógica têm<br />

feito. Sei lá... Eu no teu lugar punha o lixo desse homem<br />

imediatamente num contentor de lixo.<br />

---- O quê? Num contentor?! ---- interrogou Marisa,<br />

admirada com a ousadia da outra ---- Meter o meu filho<br />

num contentor?<br />

Alice permanecia calada, agora bastante surpreendida<br />

com a súbita mudança na pessoa da prima.<br />

---- Num contentor eu não vou meter o meu filho,<br />

porque ele não é lixo. Ele não terá culpa nenhuma de<br />

nascer. ---- Marisa ia ganhando uma expressa algo<br />

tresloucada ---- Ele vai nascer e vai viver! Terá um pai<br />

e uma mãe. Ele foi o que foi. Mas agora é o que é. É a<br />

pessoa que eu amo e continuarei a amar. Digam o que<br />

disserem sobre ele, mas deixar de lhe amar eu não vou<br />

deixar...<br />

Tudo quanto soube sobre Zito, guardou hermeticamente<br />

no esquecimento da sua memória. O tempo foi passando e<br />

enquanto isso, soube continuar com a cabeça erguida sem<br />

133


qualquer rebaixamento com relação a prima, mesmo tendo<br />

ela prometido guardar segredo sobre o passado de Zito.<br />

Entretanto, havia já um tempo que Alice vinha<br />

apresentando notáveis mudanças no seu aspecto físico, o<br />

que não deixou de saltar á vista das pessoas, mormente<br />

das de Marisa, apesar do esforço que fazia para<br />

dissimular o facto. Mas até ali nunca houvera argumentos<br />

que tivessem ido contra factos. A barriga ia crescendo,<br />

aumentando na proporção inversa da das vindas do<br />

namorado.<br />

Uma semana antes de Alice ter tido o bebé, Eduardo<br />

apareceu na televisão. Havia já alguns meses que não<br />

aparecia em casa de Alice, mas nessa noite ele reapareceu<br />

em sinais de TV, a ser julgado em conjunto com uma dezena<br />

de indivíduos, por tráfico ilícito de diamantes.<br />

Com excepção dela e do seu recém-nascido, ninguém mais<br />

encontrava-se em casa. Era o desmoronar de todos os seus<br />

sonhos, das esperanças que ainda alimentava com relação a<br />

Eduardo. Com lágrimas nos olhos e um nó quente na<br />

garganta, desligou o televisor. No quarto pegou em dez<br />

comprimidos de Vallium-10 e despediu-se deste mundo...<br />

Quando Alice morreu, passavam já três meses que Marisa<br />

e Zito eram casados e viviam com o seu primogénito em<br />

casa própria. Um dia, Zito de nome completo: João Adérito<br />

Simões, filho de Constância Adérito e de João Simões,<br />

promovido a Chefe de Secção, no seu português de oito<br />

classes, feito com tanto, mas tanto sacrifício, botou<br />

algumas palavras num papel branco, constituiu missiva, e<br />

foi ele mesmo levá-la ao gabinete do director.<br />

Nesse tempo, mesmo almoçando quotidianamente o peixe<br />

frito com arroz, no refeitório da empresa, o salário não<br />

lhe servia sequer para ter uma alimentação condigna, como<br />

um ser humano de verdade, e isto sem falar dos calçados<br />

de calçar, das roupas de vestir, nem do pagamento da<br />

renda da casa onde morava.<br />

João Adérito dir-se-ia o único trabalhador que na<br />

empresa realmente trabalhava. Mal tocasse o despertador,<br />

134


punha-se logo de pé, e meia hora depois lá estava ele<br />

rumando ao serviço.<br />

Aqui, só se o relógio-marcador estivesse zangado, é<br />

que não picava o cartão mais picado de todos que a<br />

empresa ostentava. Respeitava tanto os seus chefes, como<br />

os seus subordinados, sendo que igual respeito lhe era<br />

retribuído.<br />

Isso e mais, era o que tinha de reputado.<br />

Consequentemente, foi sem hesitações nem cepticismos que<br />

a Comissão Sindical e a Célula do Partido na empresa,<br />

decidiram atribuí-lo o mérito de trabalhador mais<br />

destacado, por mais de uma vez.<br />

Mas isso ainda era insuficiente. O que tanto almejava<br />

era muito mais que essas ventoinhas e ventonhocas, que<br />

nem ―matando‖ dava para comprar o seu sonho de todos os<br />

tempos. Não queria, nem geleiras, nem televisores, nem<br />

televi nada. Queria era..<br />

Não precisava memorizar.<br />

Passados alguns dias, a missiva pejada de erudição<br />

erudita, incluso o último, dos mil-e-um elogios, em que<br />

deixava ao Camarada Director os seus protestos de mais<br />

Alta Estima e Consideração, voltou ás suas mãos, toda ela<br />

grávida de rubricas, deferida pelo Camarada Director<br />

Geral.<br />

Só se fosse sexta-feira e houvesse vinho no<br />

refeitório!...<br />

Mas em casa é que bastando ver a mulher, não pode<br />

conter a monumentalidade da sua satisfação:<br />

---- Marisa! Marisa!<br />

---- É o quê? Já estás bêbado, né? ---- respondia a<br />

mulher saindo do quarto.<br />

---- Marisa, realmente estou bêbado, filha! Desta vez<br />

é que podemos dizer de boca cheia: adeus miséria!<br />

135


---- Mas, explica-me então, ganhaste a sorte grande ou<br />

quê?<br />

Zito não explicou. Apenas quando foram para o quarto e<br />

João Adérito Simões, chefe da secção do pessoal da ENCI-<br />

UEE, leu sílaba por sílaba, o despacho do Director-Geral,<br />

é que Marisa sossegou.<br />

---- Ouviste? Ouviste bem? Temos o Isuzu! Agora é que<br />

nenhum viococo vai nos aguentar! ---- exaltava-se o<br />

marido.<br />

E logo que teve a autorização de retirar do parque da<br />

empresa o quase sepultado camião, João Adérito Simões,<br />

começou a parecer chanfrado...<br />

Tratou tudo quanto é documento de carro, entrou mil e<br />

uma vezes no Registo de Propriedade Automóvel, saiu não<br />

sei quantas vezes das Obras Públicas, assinou Deus sabe<br />

quantos papéis, e lá teve o raio do Isuzu nas suas tão<br />

arrojadas mãos.<br />

Enquanto os outros Isuzus da empresas andavam parados<br />

por falta de peças sobressalentes, aqui o do senhor<br />

Simões tinha até de sobra.<br />

Todo mundo ficou atandacanhado com a sorte de João<br />

Adérito. Mas, depois que passaram dois meses sem verem o<br />

homem a regressar das férias, é que a direcção da empresa<br />

começou a rogar azares e má-venturas ao bom do<br />

trabalhador.<br />

Mas, qual lá! João Adérito não quis saber de secção<br />

nenhuma. Agora, era o director-geral de si mesmo, da sua<br />

Isuzu. Não teria de prestar contas a ninguém, exceptuando<br />

a sua esposa. Nem ao Diabo, nem a Deus.<br />

E quando o Isuzu ficou pronto, pintado e artilhado e<br />

tudo, no dia seguinte, Zito, nem matabicho sequer quis<br />

matabichar e... para frente era o caminho...<br />

Fez algumas manobras, deixou todas as ruas do seu<br />

bairro para trás, apanhou a Hoje Ya Henda, e nem um<br />

quilómetro sequer andou...<br />

136


---- Éh! Éh! Candongueiro! Candongueiro!<br />

Não gostou tanto do apelido, mas do dinheiro é que não<br />

haveria de não gostar. Ora essa...<br />

---- Bom-dia, camarada! ---- cumprimentava uma<br />

senhora, aproximando-se do carro.<br />

---- Bom-dia mana! Vão para onde?<br />

---- Vamo na Corimba, mano, nos leva só!...<br />

E ele estava ali para quê?<br />

---- Subam! ---- ordenou o motorista.<br />

João Adérito mirou no retrovisor, mas não acreditando<br />

neste, pôs a cabeça fora para se certificar se<br />

efectivamente podia seguir ou não. Sim, podia. Largou<br />

devagar a embraiagem, e foi acelerando nas calmas. Mas, o<br />

que para ele era muito, para os outros motoristas nem<br />

pouco ainda era.<br />

---- Mano, então, anda inda codepressa! ---- suplicava<br />

uma das senhoras.<br />

---- É do trânsito, mana... Há radar.---- explicou o<br />

motorista.<br />

---- Ra... nhinhi? ---- indagou a outra.<br />

---- Radar, mana, radar!...<br />

---- Eme nge ijia o radare ionoio...<br />

---- É máquina que não deixa os carros andar depressa,<br />

senão o motorista paga multa. ---- explicou Zito.<br />

---- Euâ! Anda mbora ntão devagar. ---- sugeriu uma<br />

das senhoras.<br />

E lá estava o Isuzu azulinho de João Adérito Simões a<br />

descer a Clínica do Prenda. João Adérito queria mais um<br />

137


pé no meio dos dois que já possuía. Sim, para estar mais<br />

à-vontade e não precisar de estar com aquela confusão de<br />

se enganar nos pedais. Assim, cada pedal teria o seu pé.<br />

Mas, mesmo não sendo trípode, a vida já lhe ia correndo<br />

bem.<br />

Ai-ué!... A estrada da Corimba lhe recordava aqueles<br />

tempos-Juca, aqueles tempos-Catambor, Bom-Escape,<br />

Portugália. Ai-ué! Ai-ué mana Esperançaee! Aqueles vinte<br />

escudos mensais de lhe lavar e engomar a roupa. Ai-ué<br />

Gamaee, ai-ué dona Evitaee, aqueles peixes fritos que lhe<br />

fiava. Ai-ué...<br />

---- Mano então, aqui tem lá mais radare hanga nhinhi?<br />

---- indagava aflita, uma das senhoras.<br />

---- Tem. Tem radar, mana. Radar graande!... ----<br />

explicou o motorista.<br />

E passado algum tempo, lá chegaram ao local dos<br />

pescadores, que é aonde afinal as senhoras queriam<br />

chegar.<br />

---- Mano ntão, quanto é? ---- perguntava uma delas.<br />

---- Mana já sabe, é quinhentos kwanzas cada cabeça.<br />

Ou também querem pagar as caixas vazias?<br />

O motorista, afinal não era lá tão má pessoa...<br />

---- Pode nos esperar até comprarmos, mano? ----<br />

queria saber uma delas.<br />

---- Se não demorarem...<br />

Mas, qual lá! Logo que apareceu uma dikota a lhe<br />

suplicar transporte João Adérito disse ―aqui é quem chega<br />

primeiro‖. Pôs o Isuzu em funcionamento e...<br />

---- Para onde vão? ---- perguntou o motorista aos<br />

demais que haviam surgido.<br />

---- Ajuda Marido, mano. ---- explicaram os demais.<br />

138


---- Pois é, ajudem os maridos, que eu cá ajudo a<br />

mulher. ---- disse em jeito de brincadeira, o motorista.<br />

---- É verdade, mano... ---- as peixeiras puxavam<br />

conversa ---- ... da forma que a vida está, é preciso<br />

trabalhar muito, ter jeito, senão ufuá ni nzala!<br />

---- Eu cá, era chefe de secção. ---- explicava João<br />

Simões ---- Ganhava doze mil kwanzas por mês. Mas nem com<br />

isso. Só para comprar uma calça, é preciso ter jeito, é<br />

verdade, senão não comes...<br />

---- Não é bâ, mano! ---- apoiavam algumas peixeiras.<br />

Na carroçaria, algumas senhoras impacientavam-se com a<br />

moleza de João Simões:<br />

----Esse camarada começou guiar ntão qualé dia? ----<br />

perguntou uma.<br />

---- Parece lhe emprestaram o carro, ou o quê então? -<br />

--- quis saber uma outra.<br />

Porém, uma das senhoras, a transbordar de tanta<br />

impaciência, aproximou-se da janela da cabina, e batendo<br />

nela com raiva, expeliu toda a sua raiva.<br />

---- Anda ntão mais depressa, camarada! ---- gritou a<br />

senhora.<br />

---- Fica parece estamos ir de boleia ----<br />

acrescentava uma outra. ---- Mesmo hora de dikomba, é<br />

esta que está nos passar...<br />

O motorista, não podendo virar-se para trás, dada a<br />

sua inexperiência, limitou-se a perguntar a uma das<br />

peixeiras que com ele ia à cabina, o que queriam as da<br />

carroçaria.<br />

---- Estão a pedir para andar mais depressa, mano.<br />

Sabe como é, na praça, peixe é de manhã cedo.<br />

139


---- Ah... Só que se eu andar depressa, depois vocês é<br />

que vão pagar a multa do radar e depois ficarem presas no<br />

meu lugar. ---- ameaçava o motorista.<br />

Estava o sinal vermelho lá à frente. Mas o Isuzu tinha<br />

um defeito: estava sempre a peidar, a deitar gases<br />

intestinais. E ao subir a estrada da Clínica do Prenda, é<br />

que foi um problema. O Isuzu quis enguiçar! Sukuama!<br />

Subia muito devagar, devagarinho, parecia um bebé na<br />

fase de engatinhamento. Outras viaturas, maiores e mais<br />

carregadas que ele, ultrapassavam-no lhe deixando os mais<br />

bonitos elogios:<br />

---- Olá Isuzu! Isso está podre, pá!<br />

---- Éh, candongueiro, põe isso na siderurgia!<br />

A manhã estava fresca, mas na cabina João Simões<br />

suava. As senhoras que vinham na parte de trás, não se<br />

aguentavam mais de impaciência. Batiam no vidro ainda<br />

novo da cabina do Isuzão. Pulavam, berravam, choravam,<br />

mas lá o carro ia aos poucos comendo a íngreme subida,<br />

pesasse embora a fumaça que saía do seu escape, indo<br />

poluir a pureza daquela bela manhã.<br />

Coitado do João Simões! A subida parecia sem fim.<br />

---- Que desgraça, mana! Já viram então esse carro?<br />

Este não é azar? ---- continuava a explodir uma das<br />

peixeiras.<br />

Depois que terminou a subida, o Isuzu ganhou<br />

velocidade, e lá estavam as peixeiras na carroceria a<br />

dançar.<br />

---- Pois é! Assim é que é! ---- dizia uma.<br />

---- É verdade bâh! Estávamos só parece é no funeral<br />

que estamos ir! ---- dizia uma outra.<br />

―Puam-Puam‖! ---- buzinava um carro que vinha atrás.<br />

Zito acelerou ainda mais. Ia a curvar para a direita e<br />

140


nem sequer piscara. Ainda foi a tempo de ouvir o ―oh, que<br />

filho duma merda!‖.<br />

João Adérito engoliu bem. Quis lá saber! Passou o<br />

largo 1º de Maio, apanhou a Cónego Manuel das Neves,<br />

mercado do S.Paulo, e foi finalmente parar no mercado<br />

paralelo Ajuda Marido.<br />

---- Nunca mais vamos vir no teu carro. Olha só como é<br />

que a praça está já bem cheia! ---- reclamou-se uma das<br />

peixeiras.<br />

Zito nada respondeu. Recebeu o dinheiro e foi<br />

estacionar o Isuzu frente ao mercado do S. Paulo, para<br />

fazer a linha Luanda-Caxito, que diziam ser bastante<br />

―quente‖. E não tardou a ser aquecido pelos primeiros<br />

passageiros:<br />

---- Bom-dia, mano! ---- cumprimentava uma mais-velha<br />

----Não vai na Funda?<br />

---- Caxito! Caxito! ---- berrou João Simões.<br />

João Adérito Simões estava contente. E tinha motivos<br />

bastantes para tal. No seu íntimo porém, uma voz ---- não<br />

sabia se do coração ou da razão ---- lhe dizia que era<br />

arriscado nesse seu primeiro dia de trabalho, ir já tão<br />

longe, e ao demais, sem ajudante.<br />

Mas enquanto lutava com os seus pensamentos, o Isuzu<br />

afinal foi enchendo. Que culpa tinha ele?...<br />

Desceu do carro, para verificar se já podia arrancar.<br />

A carroceria estava completamente cheia, mas João Adérito<br />

Simões queria mais:<br />

---- Aí, esses cestos estão a ocupar lugar! Arrumá-los<br />

bem, senão as donas vão descer!<br />

E mais pessoas subiram para o Isuzu. Momentos depois,<br />

João Adérito Simões pôs a viatura em funcionamento,<br />

rumando para Caxito. Ao passarem pelo Campo da Revolução,<br />

foi contemplando de esguelha a paisagem marítima que se<br />

estendia à sua esquerda, e recordando-se da Boavista...<br />

141


―Ai-ué, Boavista! Ai-ué, primo Jojó, com as estantes dele<br />

cheias de filosofiaée! Ai-ué, Quipaka, aqueles filmes dos<br />

chalados italianos!...‖.<br />

Ao aproximar-se da 9ª esquadra da Polícia, já no<br />

interior do Sambizanga, João Adérito Simões reduziu a<br />

velocidade, que nem era muita, e quase ia fazendo um<br />

adeus à cara franzida da sentinela. Lá mais adiante,<br />

via-se já a Blackhood Wodge, que não tardou a ficar para<br />

trás. Ao fazerem a rotunda, mais abaixo, um kiburaco na<br />

estrada, foi o suficiente para colocar em instantânea<br />

suspensão, todas as nádegas que vinham sentadas na<br />

carroçaria. Alguns gostaram do incidente.<br />

---- Embrulha, sócio!<br />

---- Xinjiké kué nioco!<br />

Mas outros, sobretudo os mais idosos, não gostaram:<br />

---- Kamuanho dinge, papa-ué!<br />

Ao passarem pela ponte da Boavista, todo o mundo fechou<br />

o bico. Só se ouviam os peidos do Isuzu lá atrás. Um<br />

pouco mais adiante, ficava a ENCI-U.E.E., e lembrando-se<br />

disso, João Adérito Simões, filho de João Simões e de<br />

Constância Adérito, enfiou mais uma mudança. Qual não foi<br />

o seu espanto, quando um dos velhos pneus da frente,<br />

resolve furar mesmo ali, diante da empresa em que havia<br />

trabalhado!<br />

Parecia mentira, mas pela primeira vez na vida, Zito<br />

acreditou que um carro também tem sentimentos. Tem<br />

coração, tem aparelho digestivo, tem intestinos, tem<br />

ânus. Um carro, também raciocina...<br />

Ora, o Isuzu tivera simplesmente saudades da sua<br />

antiga residência, e resolveu apenas parar aí, para<br />

contempla-la por alguns momentos.<br />

Zito estava preocupado com os clientes. Não. Não tanto<br />

com eles, mas sobretudo com o dinheiro deles. E enquanto<br />

fazia a troca de pneus, Zito recordou-se da troca da<br />

moeda...<br />

142


Iria haver outra?...<br />

Rangel, 13 de Janeiro de 1990<br />

143


Tem escrito e por publicar:<br />

Sebastião António Ventura de<br />

Azevedo, Produtor-Realizador<br />

de Cinema e Televisão,<br />

nasceu no Rangel aos 31 de<br />

Dezembro de 1963. Escreve<br />

poesia e prosa desde 1980.<br />

o SEBASTIANA– Prosa<br />

o A MORTE E OS DOIS ENTERROS DE NGA MBAXI– Prosa<br />

o TURMA 6ªF – Prosa<br />

o TETÉTE – Prosa<br />

o O DIÁRIO DE UM RECLUSO – Prosa<br />

o PAISAGENS – Prosa<br />

o O CORPO DE ALEXANDRA – Poesia<br />

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