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Edição 39 - Memorial da América Latina

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Nossa<br />

COLOMBO<br />

E O FUTEBOL<br />

Revista do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> N°<strong>39</strong> - Ano 2010 | 4º trimestre - R$8,00<br />

Presidente<br />

<strong>da</strong> Colômbia<br />

visita o<br />

<strong>Memorial</strong><br />

TEATRO<br />

COLÓN<br />

LATINOS NA<br />

29 a BIENAL<br />

Juan Manuel Santos<br />

FESTIVAL DE<br />

CINEMA<br />

PLACAS<br />

TECTÔNICAS<br />

JOSÉ ROBERTO TORERO • CELSO DE SOUZA MACHADO • PAULO RYDLEWSKI • FRANCISCO ALAMBERT<br />

ANA MARIA CICCACIO • UMBERTO G. CORDANI • MATILDE MARÍN • PAULO ROBERTO FELDMANN • PILAR ATILIO


Nossa Revista do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> N°<strong>39</strong> - Ano 2010 | 4º trimestre - R$8,00<br />

GOVERNADOR<br />

ALBERTO GOLDMAN<br />

SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS<br />

ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />

FUNDAÇÃO MEMORIAL<br />

DA AMÉRICA LATINA<br />

CONSELHO CURADOR<br />

PRESIDENTE<br />

ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />

SECRETÁRIO DA CULTURA<br />

ANDREA MATARAZZO<br />

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO<br />

LUCIANO SANTOS TAVARES DE ALMEIDA<br />

REITOR DA USP<br />

JOãO GRANDINO RODAS<br />

REITOR DA UNICAMP<br />

FERNANDO FERREIRA COSTA<br />

REITOR DA UNESP<br />

HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD<br />

PRESIDENTE DA FAPESP<br />

CELSO LAFER<br />

JOSÉ VICENTE<br />

JORGE CALDEIRA<br />

DIRETORIA EXECUTIVA<br />

DIRETOR PRESIDENTE<br />

FERNANDO LEÇA<br />

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO<br />

DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA<br />

ADOLPHO JOSÉ MELFI<br />

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS<br />

FERNANDO CALVOZO<br />

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO<br />

SÉRGIO JACOMINI<br />

CHEFE DE GABINETE<br />

JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO<br />

DIRETOR PRESIDENTE<br />

HUBERT ALQUÉRES<br />

DIRETOR INDUSTRIAL<br />

TEIJI TOMIOKA<br />

DIRETOR FINANCEIRO<br />

FLÁVIO CAPELLO<br />

DIRETOR DE GESTãO DE NEGÓCIOS<br />

LUCIA MARIA DAL MEDICO<br />

REVISTA NOSSA AMÉRICA<br />

DIRETOR<br />

FERNANDO LEÇA<br />

EDITORA EXECUTIVA / DIREÇãO DE ARTE<br />

LEONOR AMARANTE<br />

COLABORADORA DE EDIÇãO<br />

ANA CANDIDA VESPUCCI<br />

ASSISTENTE DE REDAÇãO<br />

MÁRCIA FERRAZ<br />

TRADUÇãO<br />

CLAUDIA SCHILLING<br />

PRODUÇãO<br />

HENRIQUE DE ARAUJO<br />

DIAGRAMAÇãO E ARTE<br />

EVERTON SANTANA<br />

PAULO JAMES WOODWARD<br />

REVISãO - ESTAGIÁRIO<br />

ADRIANO TAKESHI MIYASATO<br />

EDITORIAL 04<br />

Fernando Leça<br />

ALIANÇA 06<br />

Daniel Pereira<br />

ALIANÇA 09<br />

Jorge Salmón Jordán<br />

ESPORTE 11<br />

José R. Torero<br />

DEBATE 14<br />

Celso de S. Machado<br />

CULTURA 18<br />

Paulo Rydlewski<br />

ARTE 24<br />

Francisco Alambert<br />

CINEMA 29<br />

Ana C. Vespucci<br />

COLABORARAM NESTE NÚMERO<br />

Ana Maria Ciccacio, Celso de Souza Machado, Daniel Pereira, Franscisco Alambert,<br />

Jorge Salmón Jordán, José Roberto Torero, Matilde Marin, Paulo Roberto Feldmann,<br />

Paulo Rydlewski, Pillar Atilio, Umberto G. Cor<strong>da</strong>ni e Wingston González.<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Galeano,<br />

Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo,<br />

Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano,<br />

Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes.<br />

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Re<strong>da</strong>ção: Aveni<strong>da</strong> Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil.<br />

Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.<br />

Internet: http://www.memorial.sp.gov.br<br />

Email: publicacao@fmal.com.br.<br />

Os textos são de inteira responsabili<strong>da</strong>de dos autores, não refletindo o pensamento <strong>da</strong> revista.<br />

É expressamente proibi<strong>da</strong> a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo <strong>da</strong> revista.<br />

FOTO CAPA - WANDER MALAGRINE<br />

Número <strong>39</strong><br />

ISSN 0103-6777<br />

LITERATURA 35<br />

Ana M. Ciccacio<br />

PLANETA 38<br />

Umberto G. Cor<strong>da</strong>ni<br />

OLHAR 44<br />

Matilde Marín<br />

ECONOMIA 50<br />

Paulo R. Feldmann<br />

HISTÓRIA 54<br />

Pillar Atilio<br />

FLIP 59<br />

Leonor Amarante<br />

CURTAS 62<br />

Da re<strong>da</strong>ção<br />

AGENDA 64<br />

Da re<strong>da</strong>ção<br />

POESIA 66<br />

Wingston González


Edito<br />

O <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

está comemorando seus vinte e um anos<br />

e, juntamente com as representações<br />

diplomáticas dos países que celebram<br />

seu bicentenário de independência, tem<br />

sediado e participado de numerosos<br />

atos alusivos à efeméride. A Colômbia é<br />

um desses países e seu presidente, Juan<br />

Manuel Santos, há pouco empossado,<br />

esteve no <strong>Memorial</strong> por ocasião de sua<br />

visita ao Brasil, no início de setembro,<br />

circunstância muito honrosa para todos<br />

nós e para São Paulo, que merece um<br />

óbvio registro neste número de Nossa<br />

<strong>América</strong>. Em novembro, coroando um<br />

período de muito trabalho pela integração<br />

latino-americana – afinal, o grande<br />

objetivo para o qual o <strong>Memorial</strong> foi<br />

criado –, cumprimos a honra de receber<br />

o presidente peruano Alan García, em<br />

meio à realização de um megaevento<br />

significativamente denominado Expo<br />

Peru 2010, também focalizado em Nossa<br />

<strong>América</strong>.<br />

A Copa do Mundo acabou, mas<br />

a paixão dos brasileiros pelo futebol<br />

continua viva e forte. O surpreendente<br />

é que o interesse pelo esporte se arrasta<br />

por mais de 500 anos, desde a chega<strong>da</strong><br />

de Cristóvão Colombo às <strong>América</strong>s. Roberto<br />

Torero, um dos analistas esportivos<br />

que melhor tem refletido sobre a<br />

questão, apresenta um documento fictício<br />

curioso para os apaixonados, ou não,<br />

por uma boa “pela<strong>da</strong>”. Trata-se de uma<br />

carta “escrita” por um dos tripulantes,<br />

Hernán Hernandes, ironizando a exportação<br />

de nossos craques.<br />

Dentro do cenário político do continente,<br />

o Fórum Social Mundial e o Fórum<br />

Econômico Mundial têm defendido<br />

o fortalecimento ou a revitalização <strong>da</strong><br />

Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, assim<br />

como a globalização <strong>da</strong> democracia. Celso<br />

de Souza Machado, cientista político,<br />

traça um panorama do papel que a ONU<br />

poderia estar desempenhando nesse processo<br />

de equilíbrio <strong>da</strong>s relações mundiais.<br />

Finalmente o Teatro Colón reabriu<br />

suas portas. Depois de um processo de<br />

restauração que durou quase dez anos e<br />

ultrapassou uma série de dificul<strong>da</strong>des, ele<br />

já está com uma programação ampla e<br />

diversifica<strong>da</strong>. O maestro brasileiro Paulo<br />

Rydlewski comenta tecnicamente a acústica<br />

do teatro, considera<strong>da</strong> a quinta melhor<br />

do mundo, e onde ele já teve a grata<br />

oportuni<strong>da</strong>de de reger. Da Argentina,<br />

Hernán Lombardi, secretário de Turismo<br />

de Buenos Aires, fala sobre a importância<br />

<strong>da</strong> reabertura do Colón durante os<br />

festejos do bicentenário.<br />

A Bienal de Arte de São Paulo<br />

foi inaugura<strong>da</strong> em setembro com a promessa<br />

de recuperar seu papel na história<br />

<strong>da</strong>s artes plásticas. Além disso, inova ao<br />

reunir um razoável contingente de artistas<br />

latino-americanos, contrariando um<br />

passado com poucos nomes <strong>da</strong> região.<br />

O crítico Francisco Alambert analisa a<br />

instituição e comenta as obras de alguns<br />

artistas que marcam presença.<br />

Assunto atual, que aterroriza pela<br />

alta incidência nos últimos anos, os terremotos<br />

são o tema do geólogo Umberto<br />

Cor<strong>da</strong>ni. Ele explica como e porque os


ial<br />

movimentos <strong>da</strong>s placas tectônicas, que<br />

são cama<strong>da</strong>s existentes no interior <strong>da</strong><br />

terra, provocam o tão temível fenômeno<br />

em várias partes do mundo.<br />

A mesma Terra, mas vista sob outro<br />

aspecto, agora pelas lentes sensíveis<br />

<strong>da</strong> fotógrafa argentina Matilde Marín,<br />

também pode ser de uma beleza ímpar,<br />

se disseca<strong>da</strong> e reduzi<strong>da</strong> as suas linhas<br />

mais puras.<br />

A falta que um grande escritor<br />

faz. José Saramago, único prêmio Nobel<br />

de Literatura em língua portuguesa,<br />

que morreu este ano, ganha uma homenagem<br />

de Ana Maria Ciccacio. No<br />

artigo, a jornalista celebra a firmeza e a<br />

coerência do autor nascido em Portugal<br />

e residente na Espanha, em autoexílio<br />

por razões políticas.<br />

O Festival de Cinema Latino-<br />

Americano, promovido anualmente<br />

pelo <strong>Memorial</strong> chegou a sua quinta edição<br />

reunindo pelo menos os 20 melhores<br />

diretores do Continente. A jornalista<br />

Ana Candi<strong>da</strong> Vespucci traça um painel<br />

<strong>da</strong> importância que o evento conquistou,<br />

enquanto Leonor Amarante, editora<br />

de Nossa <strong>América</strong>, publica uma entrevista<br />

que fez com o cineasta argentino<br />

Marcelo Piñeyro, um dos homenageados<br />

deste ano, ao lado do brasileiro João<br />

Batista de Andrade.<br />

As empresas latino-americanas precisam<br />

saber li<strong>da</strong>r com suas idiossincrasias,<br />

na opinião de Paulo Roberto Feldmann,<br />

engenheiro. O especialista comenta como<br />

os aspectos culturais mol<strong>da</strong>m as gestões<br />

empresariais e aponta oportuni<strong>da</strong>des e<br />

ameaças no mundo globalizado.<br />

O <strong>Memorial</strong> continua atento às<br />

comemorações dos bicentenários de<br />

independência de alguns países latinoamericanos.<br />

Nesta edição, Nossa <strong>América</strong><br />

focaliza as festivi<strong>da</strong>des na Argentina<br />

com um artigo <strong>da</strong> historiadora portenha<br />

Pilar Atilio.<br />

Este ano, a editora de Nossa <strong>América</strong><br />

voltou à Festa Literária Internacional<br />

de Paraty (Flip) para conferir a<br />

quantas an<strong>da</strong> a feira de literatura que<br />

tanto sucesso faz e para entrevistar a<br />

escritora chilena Isabel Allende, que<br />

acaba de lançar seu mais recente romance,<br />

A Ilha Sob o Mar.<br />

Como estão as relações entre Venezuela<br />

e Colômbia e a tecnologia na<br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> são algumas <strong>da</strong>s notícias<br />

que a seção Curtas destacou para esta<br />

edição. Ela também revela aspectos <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> do escritor português Eça de Queiroz<br />

quando embaixador em Havana, e<br />

as novi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Casa <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s em<br />

Portugal. A seção Agen<strong>da</strong>, por sua vez,<br />

lembra alguns dos melhores eventos<br />

promovidos pelo <strong>Memorial</strong>, como El<br />

Día Del Español que inundou a instituição<br />

de gente atraí<strong>da</strong> por uma programação<br />

diversifica<strong>da</strong>.<br />

Para fechar a edição, o poema Overtura<br />

Fatal, de Wingston González, um jovem<br />

e promissor poeta guatemalteco.<br />

Boa Leitura!<br />

Fernando Leça<br />

Presidente do <strong>Memorial</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>


ALIANÇA<br />

NO MEMORIAL,<br />

Presidente <strong>da</strong> colômbia<br />

PREGA UNIãO<br />

Daniel Pereira<br />

Se a última impressão é a que fica, deve ter sido<br />

com esta sensação que o recém-empossado<br />

presidente <strong>da</strong> Colômbia, Juan Manuel Santos,<br />

voltou ao seu país depois de quase três<br />

horas de visita ao <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

último compromisso de sua agen<strong>da</strong> de<br />

dois dias no Brasil, no início de setembro. Essa também foi<br />

a leitura do presidente Fernando Leça, ao despedir-se do<br />

mais novo protagonista do cenário geopolítico <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong>. “A visita do presidente Juan Manuel Santos tem<br />

vários significados, mas o principal é que ela coloca em relevo<br />

a missão integradora do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>”.<br />

A última vez que o <strong>Memorial</strong> recebeu a visita de um presidente<br />

latino-americano foi em 1999, quando aqui esteve Hugo<br />

Chávez. Por coincidência, também recém-empossado como<br />

6


FOTOs: Wander Malagrine<br />

Juan Manuel Santos, presidente <strong>da</strong><br />

Colômbia, discursa no <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, onde foi recebido por<br />

Fernando Leça, presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção.<br />

presidente <strong>da</strong> Venezuela, escolheu o<br />

Brasil para sua primeira viagem internacional.<br />

Não por acaso, integração e<br />

união foram os termos mais recorrentes<br />

usados por Santos em seu discurso<br />

no Pavilhão <strong>da</strong> Criativi<strong>da</strong>de, em que<br />

extravasou claramente sua satisfação<br />

por ter vindo ao <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong>. “Que bom estar aqui neste<br />

momento, na minha primeira viagem<br />

como presidente <strong>da</strong> República. Que<br />

bom terminar essa visita aqui no <strong>Memorial</strong>!<br />

Não creio que tenha sido mera<br />

coincidência, porque o Todo-Poderoso<br />

faz a coisa certa. Este <strong>Memorial</strong><br />

está destinado a promover a integração<br />

latino-americana. E eu vim nesta<br />

primeira visita também para promover<br />

a integração latino-americana”.<br />

Juan Manuel Santos foi diplomático<br />

quando evitou aprofun<strong>da</strong>r comen-<br />

tários a respeito de questões internas<br />

<strong>da</strong> Colômbia (“eu era cadete na Escola<br />

Naval, há 40 anos, e já ouvia falar do<br />

narcotráfico”, disse) ou <strong>da</strong>s tratativas<br />

para solucionar o impasse com as Farc<br />

– temas explorados pela imprensa no<br />

encontro <strong>da</strong> véspera com o presidente<br />

Lula. Em vez disso, fez questão de<br />

deixar transparecer a sua disposição<br />

de ser visto não apenas como um dirigente<br />

“linha dura”, mas como o novo<br />

player importante no mapa políticoeconômico<br />

latino-americano.<br />

Dois parágrafos pinçados de sua<br />

fala são reveladores dessa pretensa<br />

postura. Um deles, quando reinterpretou<br />

a epígrafe do busto de Simón Bolívar,<br />

que havia visitado minutos antes.<br />

“A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> será a grande potência<br />

sonha<strong>da</strong> por ele (Bolívar) quando<br />

ca<strong>da</strong> um de nós souber respeitar<br />

7


Alunos <strong>da</strong> Escola<br />

Estadual República<br />

<strong>da</strong> Colômbia<br />

recepcionam Juan<br />

Manuel Santos.<br />

Ao lado, ele<br />

se despede de<br />

representantes<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />

colombiana em<br />

São Paulo.<br />

as diferenças com o outro”. E foi por<br />

isso – pontuou – que ofereceu a mão<br />

para Hugo Chávez e Rafael Correa.<br />

Outro sinal de sua disposição<br />

em mostrar que a Colômbia tem mais<br />

afini<strong>da</strong>des do que divergências com<br />

seus vizinhos foi quando exaltou o<br />

imenso potencial de biodiversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. “Tudo o que o mundo<br />

discute e precisa hoje, nós temos. Temos<br />

água e alimentos, principalmente<br />

Brasil e Colômbia, e podemos trabalhar<br />

juntos para abrir outras frentes de<br />

sinergia e progresso no Continente”.<br />

8<br />

Fernando Leça e Juan Manuel Santos caminham<br />

sobre a maquete <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, no Pavilhão<br />

<strong>da</strong> Criativi<strong>da</strong>de.<br />

O rito oficial <strong>da</strong> visita terminou<br />

com o descerramento <strong>da</strong> placa que fica<br />

nos anais do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

À saí<strong>da</strong>, Santos foi cercado pela<br />

comuni<strong>da</strong>de colombiana, conversou e<br />

beijou crianças de uma escola estadual<br />

que tem apoio do seu governo. Foi<br />

embora feliz, mas sem conseguir disfarçar<br />

certa tensão. Parecia esperar por<br />

notícias ruins. E estava certo. As Farc<br />

haviam atacado novamente.<br />

Daniel Pereira é jornalista.<br />

FOTOs: Wander Malagrine


ALIANÇA<br />

VOzES DA<br />

inteGraÇÃo<br />

Brasil e Peru<br />

Jorge Salmón Jordán<br />

Vozes de Integração é o nome com que<br />

se batizou o esforço de difusão que o<br />

Peru realizará em novembro no impressionante<br />

<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

em São Paulo. É um maravilhoso espaço<br />

de 80 mil metros quadrados destinado<br />

à divulgação <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> integração dos povos latinos.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, uma generosi<strong>da</strong>de do governo do presidente Luiz<br />

Inácio Lula <strong>da</strong> Silva ter facilitado o acesso a este cenário espetacular<br />

projetado por um ícone <strong>da</strong> arquitetura mundial, Oscar<br />

Niemeyer, de quem se diz não haver seguidores nem discípulos.<br />

Os setores privados brasileiro e peruano, honrando sua condição<br />

de parceiros (sócios estratégicos), vêm preparando uma série<br />

9


Os presidentes Alan<br />

García, do Peru,<br />

e Luiz Inácio Lula<br />

<strong>da</strong> Silva, do Brasil.<br />

FOTO: rePrOdUÇÃO<br />

de manifestações relaciona<strong>da</strong>s com aspectos<br />

culturais e econômicos para que<br />

o povo paulista, em primeira instância,<br />

tome consciência do significado do desenvolvimento<br />

deste vínculo que está<br />

refletindo em importantes investimentos<br />

em mineração, fosfatos, estra<strong>da</strong>s,<br />

petroquímica e outras ativi<strong>da</strong>des produtivas<br />

geradoras de emprego e progresso.<br />

Nesta nova relação que se abre<br />

com o gigante continental, a Amazônia<br />

não será somente o pulmão do mundo,<br />

mas o espaço que unirá, graças a um dos<br />

eixos <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s bioceânicas, os sólidos<br />

vínculos que podem desenvolver o<br />

Peru e o Brasil no futuro.<br />

Esses e outros aspectos de importância<br />

vital foram discutidos em<br />

Brasília, a moderna capital brasileira,<br />

onde a embaixa<strong>da</strong> do Peru convocou<br />

as empresas priva<strong>da</strong>s e públicas mais<br />

destaca<strong>da</strong>s para conhecer o que será<br />

Vozes de Integração, uma proposta<br />

conjunta com nosso aliado estratégico<br />

orienta<strong>da</strong> ao maior desenvolvimento<br />

de ambas as nações.<br />

Tudo está pronto para esta convocação<br />

singular. Espera-se que os<br />

presidentes Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva e<br />

Alan García deem destaque ao evento<br />

e que os setores público e privado de<br />

10<br />

ambos os países expressem ao mundo<br />

o que pode alcançar a integração em<br />

benefício de seus povos.<br />

A presença cultural do Peru, de<br />

suas regiões e <strong>da</strong>s múltiplas expressões<br />

gastronômicas, turísticas e comerciais<br />

será a mostra do que se vislumbra à<br />

luz dessa transcendente aliança binacional.<br />

É certo que Brasil e o Peru<br />

estiveram de costas por muitos anos.<br />

Felizmente, os dois países descobriram<br />

sua complementari<strong>da</strong>de e, por ela,<br />

a partir desta convocatória em Brasília,<br />

se estabeleça um marco para uma<br />

agen<strong>da</strong> para o futuro.<br />

É importante considerar o que<br />

afirma Carlos Faggin, arquiteto, urbanista<br />

e catedrático <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

São Paulo: “Até finais do século XIX,<br />

o Brasil possuía 1.550 ci<strong>da</strong>des, cem<br />

anos mais tarde, são 6.000. O resultado<br />

desta conta demonstra que os brasileiros<br />

construíram quase quatro ci<strong>da</strong>des<br />

por mês. Uma delas foi Brasília,<br />

que em três anos saiu do discurso do<br />

candi<strong>da</strong>to a presidência Juscelino Kubitschek.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, o Brasil, mais<br />

que um país, é um continente e tem<br />

no Peru um sócio importante, especialmente<br />

na perspectiva dos estados<br />

do Acre e de Rondônia, próximos à<br />

fronteira <strong>da</strong> aliança.<br />

Primeiramente, os povos <strong>da</strong><br />

Amazônia e aqueles por onde passa o<br />

eixo interoceânico serão os principais<br />

beneficiados com esta aliança para o<br />

desenvolvimento. É uma oportuni<strong>da</strong>de<br />

que não se pode desperdiçar.<br />

Jorge Salmón Jordán é peruano e comunicador social.


FOTO: rePrOdUÇÃO<br />

ESPORTE<br />

CRISTÓVãO COLOMBO<br />

e o FUtebol<br />

A pouco inspiradora história<br />

de Caycos e Lucayo<br />

José Roberto Torero<br />

Um importante documento recentemente encontrado<br />

no Archivo Real del Descobrimento<br />

trouxe uma nova luz sobre a história do<br />

futebol, a colonização <strong>da</strong> <strong>América</strong> e o papel<br />

do nosso continente no mundo. Trata-se<br />

<strong>da</strong> carta de um integrante <strong>da</strong> tripulação de<br />

Cristóvão Colombo, mais especificamente o cozinheiro Hernán<br />

Hernandes. Deixo-vos cá com esta joia recém-descoberta:<br />

11


Ilhéu de Guanahani, 19 de outubro do ano 1492 de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

Carmencita queri<strong>da</strong>,<br />

finalmente chegamos a algum lugar. Já não aguentava mais o balanço do navio. Vomitei<br />

feito uma mulher peja<strong>da</strong> por to<strong>da</strong> a viagem. Quando deixamos Palos de la Frontera, no dia 3 de<br />

agosto, não pensei que ficaria mais de dois meses sem pisar em terra.<br />

Pensamos até em fazer um motim contra Colombo. Mas, quando estávamos às vésperas<br />

<strong>da</strong> revolução, chegamos às Índias (se bem que há marinheiros que dizem que este é um novo continente).<br />

A beleza dessa ilha, com seus montes e suas serras, suas águas e seus vales regados por rios<br />

cau<strong>da</strong>losos, é um espetáculo tal que em nenhuma outra terra sob o sol pode haver mais magnífica.<br />

Mas o mais curioso destas paragens não é sua natureza, e sim seus naturais.<br />

Vou contar-lhe como os encontramos:<br />

Quando demos à praia não vimos ninguém, mas, olhando ao longe, percebemos uma poeira<br />

que levantava e, pé ante pé, nos dirigimos até lá.<br />

Qual não foi nosso espanto quando chegamos a um enorme terreno muito limpo, onde havia<br />

uma grama cerradinha e mais de vinte selvagens correndo nus pelo campo. Curiosamente, metade<br />

dos silvestres tinha o corpo totalmente pintado de branco e os outros, de vermelho.<br />

Estavam jogando futebol. E bem. Conseguiam passar a bola de um pé a outro de tantas<br />

e várias formas que eu só podia crer no que via porque meus olhos não mentem como minha boca.<br />

Aos poucos fomos nos enturmando com os torcedores e descobrimos que estávamos vendo o<br />

clássico <strong>da</strong> ilha, algo como o nosso Real Madrid x Barcelona.<br />

Depois <strong>da</strong> parti<strong>da</strong>, que terminou em 3 a 3, Colombo chamou os capitães <strong>da</strong>s equipes e<br />

disse que tomava possessão <strong>da</strong> dita Ilha pelo Rei e pela Rainha, seus senhores. Os selvagens em<br />

na<strong>da</strong> se opuseram, talvez por reconhecerem nossa superiori<strong>da</strong>de, talvez por não entenderem patavinas<br />

de nossa língua.<br />

Demos-lhes alguns gorros vermelhos e contas de vidro que colocaram no pescoço, e outras<br />

coisas muitas de pouco valor, com o que tiveram grande prazer e ficaram tão nossos que era maravilha.<br />

Depois na<strong>da</strong>ram até às barcas, e nos trouxeram fios de algodão em novelos e outras coisas<br />

muitas.<br />

Meus companheiros de navio levarão alguns papagaios para vender na Espanha. Já eu<br />

levarei Caycos e Lucayo. O primeiro é um ágil ponta de lança e o segundo, um respeitável centroavante<br />

trombador. Deixarei de ser cozinheiro e me tornarei empresário de futebol, Carmencita<br />

queri<strong>da</strong>, com o que penso que finalmente poderei pedir sua mão em casamento.<br />

Receba esta carta como um beijo nas palmas de sua mão, <strong>da</strong>do por aquele que a ama com<br />

desespero e esperança,<br />

12<br />

Hernán Hernandes.


FOTO: rePrOdUÇÃO<br />

Pois bem, a história não registra<br />

se Hernán realmente se casou com Carmencita,<br />

mas sabemos que o Atlético<br />

de Madri foi tetracampeão de 1493 a 96<br />

graças à dupla Caycos e Lucayo, que depois<br />

foi jogar no Liverpool.<br />

O interessante é ver que continuamos<br />

com esta tradição, com esta vocação,<br />

com este triste destino de exportar<br />

matéria-prima.<br />

Se há algo que une o futebol<br />

sul-americano, é o fato de que nossos<br />

melhores jogadores vão embora para a<br />

Europa e para a Ásia mal lhe crescem<br />

pelos na cara. Alguns até antes, como é<br />

o caso de Messi, que foi para a Espanha<br />

aos 11 anos.<br />

No Brasil, este número é assustador.<br />

Jogador de futebol já é um dos<br />

principais produtos de exportação do<br />

país, ultrapassando produtos como banana,<br />

maçã e uva. Desde 1993, as exportações<br />

já somam dois bilhões de dólares.<br />

Em 2008, 1.776 futebolistas saíram<br />

do Brasil. Isso <strong>da</strong>ria para formar 80<br />

equipes, com 22 atletas ca<strong>da</strong>. Ou seja, a<br />

primeira divisão do Campeonato Brasileiro<br />

é, na ver<strong>da</strong>de, a quinta.<br />

Essa per<strong>da</strong> dos nossos jogadores<br />

é também uma per<strong>da</strong> de alegria. Vemos<br />

jogos piores, menos gols, menos dribles.<br />

E, nos fins <strong>da</strong>s contas, perdemos até dinheiro,<br />

pois vendemos os jogadores mas<br />

pagamos para ver os jogos dos campeonatos<br />

<strong>da</strong> Europa. Como diz Sócrates<br />

(o jogador, não o filósofo), é como se<br />

vendêssemos Michelângelo em vez de<br />

vender suas obras.<br />

É claro que a culpa não é dos jogadores,<br />

que têm todo o direito de ir<br />

atrás de melhores salários. A culpa é dos<br />

nossos dirigentes, dos clubes e <strong>da</strong> Confederação<br />

Brasileira de Futebol (CBF),<br />

que não souberam se modernizar, que<br />

não souberam, ou não quiseram, industrializar<br />

nossa matéria-prima.<br />

Caycos e Lucayo foram os primeiros<br />

de milhares. Éramos uma colônia. E,<br />

no futebol, ain<strong>da</strong> não deixamos de ser.<br />

José Roberto Torero é jornalista, escritor e comentarista<br />

de futebol<br />

13


14<br />

DEBATE<br />

comUm?<br />

Há UM PONTO<br />

Fórum Social Mundial e<br />

Fórum Econômico Mundial<br />

Celso de Souza Machado<br />

em praticamente todos os encontros do Fórum<br />

Social Mundial e do Fórum Econômico<br />

Mundial têm havido intervenções defendendo<br />

o fortalecimento <strong>da</strong> Organização <strong>da</strong>s<br />

Nações Uni<strong>da</strong>s (ONU). Já no Fórum Econômico<br />

Mundial de 1995, a Comissão sobre<br />

o Governo Global apresentou um relatório propondo “globalizar<br />

também a democracia, por uma revolução nas estruturas<br />

<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s” – proposta encampa<strong>da</strong> pelo então secretário-geral<br />

<strong>da</strong> ONU, Boutros Ghali, no discurso de inauguração<br />

do Fórum. No Fórum Social Mundial de 2003, um conjunto<br />

de intervenções foi dedicado à “necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> construção de<br />

um sistema de governança democrático global”. Discutiu-se<br />

“como refun<strong>da</strong>r e revitalizar a ONU”, a necessi<strong>da</strong>de de “estu<strong>da</strong>r<br />

um sistema de financiamento independente” para ela (imposto<br />

sobre as transações financeiras internacionais, loteria internacional<br />

etc.) e colocou-se que a “democratização <strong>da</strong> ONU deve


FOTO: divUlgaÇÃO<br />

ser um tema central para discussões<br />

nas próximas edições do Fórum Social<br />

Mundial”.<br />

A necessi<strong>da</strong>de de a ONU se converter<br />

em um Estado mundial e democrático,<br />

um Estado escolhido pelo eleitorado<br />

mundial (ain<strong>da</strong> que inicialmente de<br />

forma indireta) com partidos de âmbito<br />

mundial e um Estado com poderes efetivos<br />

(Executivo, Legislativo e Judiciário)<br />

para executar políticas econômicas e sociais<br />

de caráter global – não será esse um<br />

ponto para o qual convergem os debates<br />

do Fórum Social Mundial e do Fórum<br />

Econômico Mundial? Não será esse um<br />

ponto potencialmente em comum entre<br />

os dois Fóruns?<br />

Embora a necessi<strong>da</strong>de de um Estado<br />

mundial democrático não tenha<br />

ain<strong>da</strong> sido proposta com to<strong>da</strong>s as letras<br />

nesses fóruns, ela está de certa forma<br />

presente o tempo todo em todos os<br />

debates. Sem um Estado democrático<br />

mundial – com instrumentos efetivos<br />

para executar políticas globais –, as conclusões<br />

correm o risco de não sair do<br />

papel. Elas dependerão – para serem leva<strong>da</strong>s<br />

à prática – <strong>da</strong> “boa vontade” <strong>da</strong><br />

potência hegemônica de ca<strong>da</strong> momento<br />

(hoje os EUA, amanhã talvez a Comuni<strong>da</strong>de<br />

Europeia ou a Comuni<strong>da</strong>de Asiática).<br />

Só um Estado democrático mundial<br />

terá to<strong>da</strong> a estrutura dos instrumentos<br />

públicos, os poderes institucionais e a<br />

representativi<strong>da</strong>de internacional para<br />

executar as políticas globais debati<strong>da</strong>s e<br />

eleitas pela socie<strong>da</strong>de mundial – políticas<br />

globais que abrangem desde as macroeconômicas<br />

até o combate à fome,<br />

a pacificação <strong>da</strong> relação entre países, a<br />

repressão ao narcotráfico, o aumento <strong>da</strong><br />

eficiência econômica, o aprimoramento<br />

do processo democrático etc. Assim,<br />

não se trata obviamente de um Estado<br />

“nosferatu” ou “bicho-papão” – já tão<br />

criticado tanto pela esquer<strong>da</strong> quanto<br />

pela direita – , mas sim <strong>da</strong> construção de<br />

um Estado democrático, comprometido<br />

com o desenvolvimento permanente de<br />

formas de representação e de participação<br />

ca<strong>da</strong> vez mais democráticas. Hoje,<br />

quase to<strong>da</strong>s as correntes políticas concor<strong>da</strong>m<br />

com a importância de os Estados<br />

se pautarem por esses valores.<br />

Está claro que, como o Fórum<br />

Social e o Fórum Econômico representam<br />

interesses e projetos contrários<br />

para o planeta, seus objetivos para uma<br />

ONU-Estado mundial e democrático<br />

serão objetivos igualmente contrários.<br />

Contudo, é exatamente por isso que<br />

um eventual ponto em comum entre os<br />

dois Fóruns só poderá se <strong>da</strong>r em torno<br />

de uma questão organizacional (a forma<br />

de organização política que se pretende<br />

<strong>da</strong>r ao planeta): a necessi<strong>da</strong>de de um<br />

governo institucional mundial – um governo<br />

que seja democrático (isto é, que<br />

possa ser ocupado por correntes mais<br />

conservadoras e por correntes mais<br />

progressistas) e um governo que seja<br />

um Estado (isto é, que tenha poderes<br />

efetivos para executar políticas globais<br />

mais conservadoras e mais progressistas).<br />

Conteúdos concretos, como a luta<br />

contra a fome, a luta pela eficiência<br />

15<br />

Crianças Caiapó<br />

no Fórum Social<br />

Mundial.


econômica, o combate às desigual<strong>da</strong>des<br />

internacionais etc., poderiam talvez<br />

contar com a concordância de ambos<br />

os Fóruns, mas seria uma concordância<br />

apenas aparente: o Fórum Social e<br />

o Fórum Econômico defendem lógicas<br />

diferentes para o funcionamento <strong>da</strong><br />

economia internacional e <strong>da</strong>s economias<br />

nacionais, e condicionariam a consecução<br />

<strong>da</strong>queles objetivos ao tipo de<br />

lógica que defendem. Já a construção<br />

de um Estado mundial democrático diz<br />

respeito a uma questão formal: a forma<br />

ou formato que se pretende <strong>da</strong>r à organização<br />

política do planeta.<br />

No dia seguinte à constituição de<br />

um eventual Estado democrático mundial,<br />

as forças representa<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong><br />

Fórum estarão senta<strong>da</strong>s em trincheiras<br />

contrárias na disputa eleitoral e – como<br />

ocorre no interior dos Estados nacionais<br />

(países) – as forças com maior poder<br />

econômico tenderão obviamente a ter<br />

mais chances de vitória. No entanto –<br />

havendo uma democracia formal – o dinamismo<br />

<strong>da</strong>s disputas eleitorais (os pontos<br />

fortes e fracos <strong>da</strong>s candi<strong>da</strong>turas, os<br />

rachas, as coalizões), as movimentações<br />

<strong>da</strong>s bases sociais dos partidos, as avaliações<br />

do eleitorado sobre as políticas desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

pelos partidos no governo<br />

etc., tudo isso irá abrindo espaço para<br />

que as diversas forças políticas tenham,<br />

num momento ou noutro, possibili<strong>da</strong>des<br />

de vitória eleitoral.<br />

É importante observar que não se<br />

trata de ser a favor ou contra um governo<br />

mundial. Esse governo de certa<br />

forma já existe, mas, como já se observou<br />

num dos Fóruns Sociais, “a atual<br />

governança mundial não é legítima, nem<br />

democrática nem eficaz” (referindo-se a<br />

FMI, Banco Mundial e OMC). A questão<br />

é se o governo mundial continuará a<br />

ser feito dessa forma, ou se será adotado<br />

o caminho que todos os países adotam<br />

internamente – o caminho de uma<br />

instituição pública (um Estado).<br />

16<br />

Não seria utópico ou irrealista pretender<br />

uma revolução como essa na forma<br />

de organização política do planeta?<br />

Com quase 200 países em extrema<br />

dependência econômica e tecnológica<br />

entre si, tendo de competir intensamente<br />

num salve-se-quem-puder e tendo conquistado<br />

o direito de lutar abertamente<br />

pelos seus interesses, a ideia de um governo<br />

mundial e democrático deixou de<br />

ser utópica ou irrealista – para se tornar,<br />

ao contrário, uma necessi<strong>da</strong>de objetiva e<br />

inadiável, pelo nível de desenvolvimento<br />

atingido pela economia mundial. Os dois<br />

pontos que, embora iniciais, já permitiriam<br />

dizer que temos um governo institucional<br />

mundial – um imposto internacional<br />

(que liberte a ONU de sua dependência<br />

econômica em relação ao pequeno grupo<br />

de países ricos, principalmente os EUA)<br />

e uma moe<strong>da</strong> institucional internacional<br />

(cuja emissão seja monopólio <strong>da</strong> ONU e<br />

que seja obrigatória nas transações econômicas<br />

internacionais, inicialmente, e<br />

depois também nas nacionais) – seriam<br />

hoje vistas provavelmente com simpatia<br />

pela grande maioria dos países, <strong>da</strong>s organizações<br />

sociais e políticas (partidos,<br />

sindicatos socie<strong>da</strong>des científicas, igrejas,<br />

associações artísticas etc.) e do eleitorado<br />

mundial. A inexistência de uma moe<strong>da</strong><br />

institucional internacional, aliás, sugere<br />

um contrassenso: quase duas centenas de<br />

países competindo economicamente entre<br />

si e o dinheiro que intermedeia essa<br />

competição ter o monopólio <strong>da</strong> sua emissão<br />

não mãos de um dos competidores?!<br />

É mais ou menos como um jogo em que<br />

a bola pertencesse a um dos times...<br />

Por que caberia ao Fórum Social e<br />

ao Fórum Econômico a tarefa de tomar<br />

a iniciativa e propor um amplo debate internacional<br />

sobre a necessi<strong>da</strong>de de um governo<br />

institucional democrático mundial?<br />

O Fórum Social e o Fórum Econômico<br />

constituem hoje o centro do debate<br />

mundial sobre as alternativas para<br />

o planeta. São hoje as únicas instâncias


internacionais com respeitabili<strong>da</strong>de e<br />

representativi<strong>da</strong>de suficientes para <strong>da</strong>r<br />

início a um amplo e democrático debate<br />

mundial sobre a necessi<strong>da</strong>de e a urgência<br />

de uma mu<strong>da</strong>nça radical na forma de organização<br />

política do planeta – sobre os<br />

perigos de o mundo continuar sem um<br />

governo institucional. Se o Fórum Social<br />

e o Fórum Econômico, ou quaisquer<br />

outras instâncias de debate mundial que<br />

venham a ser cria<strong>da</strong>s, se limitarem a debater<br />

fins e não debaterem pra valer os<br />

meios, as propostas, e não se concentrarem<br />

em debater a fundo as ferramentas<br />

para implementá-las, tenderão a se reduzir<br />

a uma feira ou festival de propostas<br />

programáticas, e a desempenhar no sistema<br />

internacional a função de válvula de<br />

escape (o Fórum Social) e decorativa (o<br />

Fórum Econômico).<br />

É a própria reali<strong>da</strong>de econômica e<br />

política do mundo de hoje que está colocando<br />

a questão <strong>da</strong> governança mundial<br />

(como exatamente o planeta deve ser<br />

governado?) como tema nº1 do debate<br />

internacional. Um Estado democrático<br />

mundial é a peça que está faltando no tabuleiro<br />

de xadrez. O planeta todo respiraria<br />

aliviado se saíssemos <strong>da</strong> atual forma<br />

de governo (ou desgoverno) mundial e a<br />

ONU assumisse as funções e os poderes<br />

de um Estado mundial democraticamente<br />

eleito – o que mu<strong>da</strong>ria a natureza <strong>da</strong><br />

relação entre os países, abrindo espaço<br />

para a construção de uma ver<strong>da</strong>deira<br />

comuni<strong>da</strong>de internacional: os países começariam<br />

a deixar de ser países para se<br />

tornarem estados (subdivisões) de um<br />

grande e único país mundial. Os países<br />

não perderiam soberania – mas, pelo<br />

contrário, ganhariam soberania (sobre<br />

todo o planeta): haveria um Estado “acima”<br />

dos países – mas um Estado eleito<br />

pelos próprios países!<br />

O Fórum Social e o Fórum Econômico<br />

têm em suas mãos a oportuni<strong>da</strong>de<br />

e a responsabili<strong>da</strong>de histórica de<br />

abrirem um amplo debate mundial sobre<br />

o perigo de o mundo continuar sem um<br />

governo institucional. É possível hoje<br />

alguém acompanhar os noticiários <strong>da</strong>s<br />

TVs, dos jornais, e não perceber que o<br />

mundo está grávido de um governo institucional?<br />

Os horrores <strong>da</strong> 1 a Guerra Mundial<br />

(com quase 10 milhões de mortos e<br />

20 milhões de mutilados) traumatizaram<br />

o mundo e levaram à criação <strong>da</strong> Liga <strong>da</strong>s<br />

Nações (1919), que tinha poucos poderes<br />

e logo foi se enfraquecendo. Os horrores<br />

<strong>da</strong> 2 a Guerra Mundial (com mais<br />

de 60 milhões de mortos e 30 milhões<br />

de mutilados) traumatizaram o mundo e<br />

levaram à criação <strong>da</strong> ONU (1945), que<br />

tem mais força do que tinha a Liga <strong>da</strong>s<br />

Nações, mas ain<strong>da</strong> está longe de ter os<br />

poderes efetivos de um Estado para coman<strong>da</strong>r<br />

políticas econômicas e sociais de<br />

âmbito mundial. Hoje, com quase 200<br />

países numa competição econômica desenfrea<strong>da</strong><br />

entre si e vários desses países<br />

já possuindo ou em vias de possuir armamentos<br />

de extermínio em massa (armas<br />

nucleares, químicas e biológicas),<br />

ou vamos para uma ONU-Estado democrático<br />

mundial através do caminho<br />

civilizado de um amplo e responsável<br />

movimento internacional – ou através<br />

do caminho de horrores de uma devastadora<br />

3ª Guerra Mundial.<br />

Celso de Souza Machado é cientista político.<br />

17<br />

Crianças no<br />

Fórum Social<br />

Mundial.


18<br />

CULTURA<br />

TEATRO COLÓN,<br />

corPo e alma<br />

A essência de um espaço<br />

consagrado mundialmente<br />

Paulo Rydlewski<br />

Qualquer partitura musical não é na<strong>da</strong> além<br />

de uma representação imprecisa <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

sonora que o compositor tentou expressar.<br />

Imprecisa? Sim, pois nos permite<br />

recriá-la à medi<strong>da</strong> que o nosso conhecimento<br />

musical avança e, nesse processo,<br />

acrescentamos a quanti<strong>da</strong>de de arte e sensibili<strong>da</strong>de<br />

que podemos oferecer. Assim<br />

como o objeto partitura, um teatro pode transcender a essa<br />

condição, tornar-se um símbolo. Dia 24 de maio passado, foi<br />

reinaugurado o Teatro Colón de Buenos Aires, um dos patrimônios<br />

culturais de nosso continente, um símbolo internacional<br />

<strong>da</strong> imensa capaci<strong>da</strong>de artística do povo argentino.<br />

Cerca de 3.000 pessoas compareceram à sua primeira noite<br />

de gala e uma projeção em 3D, na lateral do teatro, transmitiu<br />

o concerto para milhares de pessoas que se aglomeravam<br />

na charmosa Aveni<strong>da</strong> Nove de Julio. Na programação do


concerto de reinauguração, a abertura<br />

Huemac, de Pascual de Hogatis, excertos<br />

do balé O lago dos Cisnes de P. I. Tschaikovsky<br />

e <strong>da</strong> ópera La Bohème de Giacomo<br />

Puccini, com a participação do balé,<br />

do coro e <strong>da</strong> Orquestra Filarmônica de<br />

Buenos Aires.<br />

O teatro Colón, ou Colombo, foi<br />

inaugurado em 25 de maio de 1908. Construído<br />

em um estilo próximo ao nosso<br />

Theatro Municipal de São Paulo, mesclando<br />

um pouco dos clássicos italiano e<br />

francês, tem capaci<strong>da</strong>de para 3.000 pessoas<br />

acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s em luxuosas cadeiras de<br />

veludo vermelho escuro. Com um fosso<br />

capaz de acomo<strong>da</strong>r 120 músicos, vitrais<br />

e uma decoração suntuosa, o teatro ain<strong>da</strong><br />

oferece oficinas de máquinas, cenários,<br />

adereços, figurinos, escultura, maquiagem<br />

e cabeleireiro, além de salas de apoio, oficinas,<br />

salas para ensaio: uma pequena ci<strong>da</strong>de<br />

em seus subterrâneos. Após nove anos de<br />

reformas e uma série de dificul<strong>da</strong>des para<br />

se cumprir prazos e metas, confrontos políticos<br />

infindáveis, a luta para se manter a<br />

essência arquitetônica do projeto original<br />

teve sucesso. Seu “disco giratório”, um<br />

surpreendente mecanismo antigo, mas<br />

ain<strong>da</strong> eficiente, para a mu<strong>da</strong>nça rápi<strong>da</strong> de<br />

cenários, foi mantido juntamente com to<strong>da</strong>s<br />

suas características técnicas e arquitetônicas<br />

originais. O “disco giratório”, os<br />

candelabros, as pinturas, fazem parte <strong>da</strong><br />

alma de qualquer teatro. Não posso me esquecer<br />

a primeira vez que vi a antiga “máquina<br />

de vento” do Theatro Municipal de<br />

São Paulo ser liga<strong>da</strong>. Foi como se estivéssemos<br />

assistindo à estreia de Turandot no<br />

Teatro alla Scala, de Milão. A conexão com<br />

o passado se estabeleceu imediatamente e<br />

o sentimento que a arte “assim é, se lhe<br />

parece” ressurge com to<strong>da</strong> sua força. Não<br />

se trata de manter uma ambiência e sim<br />

de, como já dito antes, manter sua alma,<br />

que se expressa principalmente no amor<br />

do povo de Buenos Aires pelo Colón.<br />

19<br />

Depois de nove anos<br />

de restauros e muitas<br />

dificul<strong>da</strong>des, Buenos<br />

Aires recebe de volta seu<br />

teatro maior.


FOTO: ClaUdiO Zeiger<br />

Patrimônio<br />

cultural do<br />

continente e<br />

símbolo <strong>da</strong><br />

capaci<strong>da</strong>de<br />

artística do<br />

povo argentino.<br />

21


Um fato à parte, mas que merece comentários<br />

– a acústica do teatro. Uma “boa<br />

acústica” é capaz de, tanto para o público<br />

como para os artistas, oferecer um perfeito<br />

equilíbrio sonoro, a manutenção dos timbres,<br />

<strong>da</strong> coloração sonora dos instrumentos<br />

e permitir a percepção dos mínimos<br />

detalhes <strong>da</strong> execução em todo o teatro.<br />

“Gracias a Dios!” o projeto acústico original<br />

foi preservado e uma <strong>da</strong>s cinco melhores<br />

acústicas do mundo, segundo o Instituto<br />

Tanetaka do Japão (e todos os músicos<br />

que já se apresentaram lá), foi manti<strong>da</strong>!<br />

Mantendo suas tradições de grandes<br />

tempora<strong>da</strong>s, agora sob a direção geral<br />

e artística de Pedro Pablo Garcia Caffi<br />

e a direção musical de Reinaldo Censabella,<br />

o Colón promete ótimas novi<strong>da</strong>des<br />

como a participação de Daniel Barenboim,<br />

Zubin Mehta, Yo Yo Ma e Paloma<br />

Herrara já nesta tempora<strong>da</strong>.<br />

Outra novi<strong>da</strong>de é que o Teatro Colón<br />

se transformou, a partir de 11 de setembro<br />

de 2008, em uma autarquia, com<br />

personali<strong>da</strong>de jurídica própria, autonomia<br />

funcional e autossuficiência financeira. O<br />

objetivo dessa medi<strong>da</strong> é colaborar na resolução<br />

de antigos problemas administrativos,<br />

na criação de uma administração mais<br />

moderna, eficiente e transparente.<br />

Desde meados dos anos 70 na<br />

Argentina, com a toma<strong>da</strong> do poder por<br />

uma ditadura militar, houve um ver<strong>da</strong>deiro<br />

êxodo de profissionais, artistas e<br />

intelectuais e até hoje sua cultura ain<strong>da</strong><br />

não conseguiu se recuperar plenamente,<br />

em um processo muito parecido com o<br />

que vivemos no Brasil. Uma prova disso,<br />

a despeito de todo o talento existente,<br />

é o momento que passa hoje a nossa<br />

queri<strong>da</strong> música popular, acoberta<strong>da</strong> na<br />

mídia pelos “rebolations” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Será<br />

que não existe espaço para a convivência<br />

do comercial com a quali<strong>da</strong>de? Sau<strong>da</strong>de<br />

dos tempos que eu ligava o rádio e ouvia<br />

Chico Buarque, Ivan Lins e Tom Jobim.<br />

Mas, voltando à Argentina, a sucessão de<br />

crises econômicas locais e mundiais e a<br />

22<br />

situação nos últimos tempos, fez com<br />

que essa reforma durasse quase dez anos.<br />

Contudo, a reconstrução do Colón<br />

parece correr em paralelo à retoma<strong>da</strong> dos<br />

caminhos <strong>da</strong> cultura argentina, em to<strong>da</strong><br />

sua extensão. O tango passou por uma<br />

ver<strong>da</strong>deira renovação, porém sem perder<br />

sua identi<strong>da</strong>de. Novas orquestras e grupos<br />

mais moderninhos surgem estabelecendo<br />

novas fronteiras para o tango em meio às<br />

ruas colori<strong>da</strong>s de “La Boca”. O cinema<br />

obteve um Oscar de filme estrangeiro e<br />

surgem diversos festivais por todo o país.<br />

Surge uma nova luz no fim do túnel, talvez<br />

um candelabro do Teatro Colón, que apesar<br />

de remodelado, mantém sua beleza e<br />

tradição, como um tango de Piazzolla.<br />

Paulo Rydlewski é maestro e atuou em centenas<br />

de concertos.<br />

O GRANDE TEATRO REABRE<br />

SUAS PORTAS<br />

Com uma programação de luxo, o<br />

Teatro Colón reabriu suas portas. A <strong>da</strong>ta<br />

de sua reinauguração foi ain<strong>da</strong> mais importante:<br />

coincidiu com o aniversário dos 200<br />

anos de independência (1810), o que deixa<br />

este acontecimento duplamente inscrito na<br />

história argentina.<br />

A beleza de sua arquitetura se destaca<br />

na mansão que está entre as ruas<br />

Cerrito, Viamonte, Tucumán e Libertad,<br />

em pleno centro portenho. Sua acústica<br />

é reconheci<strong>da</strong> internacionalmente como<br />

uma <strong>da</strong>s melhores. Em seu palco, viu-se<br />

o mais virtuoso <strong>da</strong> ópera, <strong>da</strong> música e do<br />

ballet do mundo. Toscanini, Stravinsky,<br />

Pavarotti, Domingo, Callas, Rubinstein,<br />

Nijinsky, Nureyev e Plissetskaia, citando<br />

alguns inesquecíveis para aqueles que tiveram<br />

o privilégio de experimentar a arte<br />

em maiúsculas. Os mais afortunados, no<br />

palco rebaixado, os demais, fixos no ‘paraíso’,<br />

o que vulgarmente se conhece entre


os portenhos como o ‘galinheiro’. Sua sala<br />

principal, com balcões até o terceiro piso,<br />

comporta até 2.600 espectadores.<br />

Sua primeira apresentação se realizou<br />

em 25 de maio de 1908 a cargo <strong>da</strong><br />

Grande Companhia Lírica Italiana, com a<br />

ópera Aí<strong>da</strong> de Giuseppe Verdi. Foi na déca<strong>da</strong><br />

de 70 que o renomado artista argentino,<br />

Raúl Soldi, pintou sua cúpula, com mais<br />

de 300 metros quadrados. Desde sempre e<br />

até nossos dias, o Colón é o símbolo mais<br />

bem-acabado do que significa a cultura em<br />

uma ci<strong>da</strong>de como Buenos Aires.<br />

Sua construção levou em torno de<br />

20 anos. O mármore foi enviado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

italiana de Verona, o mosaico trazido<br />

de Veneza e os vitrais de Paris. O projeto<br />

inicial ficou a cargo do arquiteto Francesco<br />

Tamburini, e do seu sócio Víctor Meano.<br />

Mas foi um belga, Jules Dormal, quem finalmente<br />

conclui a obra e lhe deu o último<br />

retoque do estilo francês.<br />

Depois de seu fechamento, há quase<br />

quatro anos, por falta de investimento<br />

em manutenção e pela deterioração natural<br />

produzi<strong>da</strong> com o passar do tempo, o atual<br />

governo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Buenos Aires decidiu<br />

reformular o plano de obras para acelerar<br />

o atraso que já sofria sua reabertura,<br />

pensa<strong>da</strong> originalmente para 2008.<br />

“O turismo do mundo inteiro chega<br />

a nossa capital buscando a expressão<br />

artística em to<strong>da</strong>s as suas manifestações.<br />

Esse teatro é um imã, e presenciar uma<br />

apresentação em sua sala é uma experiência<br />

única”, afirma o presidente <strong>da</strong> pasta de<br />

Turismo de Buenos Aires e ministro <strong>da</strong><br />

Cultura portenho, Hernán Lombardi, cuja<br />

gestão impulsionou a reformulação e pôs<br />

em marcha as obras que permitiram a reabertura<br />

do teatro para as festivi<strong>da</strong>des do<br />

bicentenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de. O projeto de turismo<br />

cultural <strong>da</strong> pasta tem como objetivo<br />

promover a inclusão <strong>da</strong> oferta do teatro –<br />

tanto a visita como a programação de 2010<br />

– nos pacotes turísticos.<br />

A valorização do Colón lhe devolve<br />

a hierarquia de grande teatro lírico que<br />

sempre foi, à altura do Ópera de Paris ou<br />

do Scala de Milão, e, ademais, o renova<br />

tecnologicamente, atualizando-o com o<br />

século XXI, num investimento em torno<br />

de 100 milhões de dólares. Sua acústica<br />

guar<strong>da</strong> a magia que, segundo os entendidos,<br />

supera a <strong>da</strong> Ópera de Viena e atinge<br />

o que os italianos denominam “niente”,<br />

quando o som perdura ain<strong>da</strong> que concluí<strong>da</strong><br />

sua execução.<br />

“Para os portenhos é um orgulho<br />

e para os visitantes um lugar obrigatório<br />

em sua passagem por Buenos Aires. Conta<br />

com uma programação de excelência que<br />

inclui a Orquestra Filarmônica de Munique<br />

e a do Teatro Alla Scala de Milão até a<br />

apresentação de ballet Manon e o Corsário”,<br />

assegura Lombardi.<br />

Durante sua reabertura, centenas<br />

de pessoas presenciaram um espetáculo<br />

de luzes e música que recriou as figuras<br />

e os momentos mais importantes na história<br />

do Colón. Sua apresentação de gala<br />

abriu com La Bohême. Aqueles que foram<br />

protagonistas de sua história, como o renomado<br />

bailarino argentino Julio Bocca,<br />

se emocionaram ao ver novamente as<br />

portas abertas do grande teatro, que conjuga<br />

os melhores artistas do mundo com<br />

a majestade de sua arquitetura.<br />

23<br />

Características<br />

técnicas e<br />

o projeto<br />

arquitetônico<br />

oficial foram<br />

mantidos.


24<br />

ARTE<br />

DEPOIS DO VAzIO<br />

bienal se recomPõe<br />

Latino-americanos<br />

na 29 a edição<br />

Francisco Alambert<br />

tudo soa instigante nesta proposta de Bienal.<br />

Tudo agora se reveste de promessas para desfazer<br />

o mal-estar causado pela Bienal anterior,<br />

que ficará para a história como a Bienal<br />

do Vazio. Promessas que poderiam até remeter<br />

ao pior do discurso político tradicional.<br />

E é justamente a relação entre arte e política o tema agora<br />

proposto: novas promessas para se estabelecer, em um evento<br />

do porte <strong>da</strong> Bienal, uma discussão contemporânea e digna.<br />

A Bienal anterior, aliás, antes de ser “vazia” (ou “diet”, como<br />

ironizou o crítico Paulo Sérgio Duarte), também prometeu<br />

pôr a mão na política, escancarar o vazio, a crise constante<br />

dessa mostra sempre turbulenta, que há um bom tempo vem<br />

se afogando em denúncias de corrupção, brigas de ricos,<br />

disputas por público de massa, e quase nenhuma relevância


cultural. Mas a proposta dos curadores<br />

não ultrapassou o cenário vazio que<br />

poderia ter encarado. Ela restará como<br />

promessa não cumpri<strong>da</strong>, como é comum<br />

na vi<strong>da</strong> pública.<br />

Por tudo isso, o que se deseja hoje<br />

é que a nova Bienal nos ofereça o que<br />

a anterior não conseguiu: uma reflexão<br />

consistente sobre o lugar <strong>da</strong> arte na nova<br />

configuração mundial e, ao mesmo tempo,<br />

sobre a própria instituição Fun<strong>da</strong>ção<br />

Bienal, palco político de suas tantas crises.<br />

Os curadores, Moacir dos Anjos e Agnaldo<br />

Farias, dois dos mais importantes pensadores<br />

brasileiros <strong>da</strong>s artes, são pessoas<br />

muito bem prepara<strong>da</strong>s para a tarefa. É de<br />

se louvar o fato, talvez inédito, de que to<strong>da</strong>s<br />

as instituições culturais de São Paulo<br />

tenham sido convi<strong>da</strong><strong>da</strong>s para participar<br />

<strong>da</strong> mostra paralela à Bienal, inclusive o<br />

<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Dentre os vizinhos latino-americanos<br />

escolhidos para a Bienal, é curioso<br />

antes de tudo notar que muitos deles<br />

vivem fora do continente. A maioria<br />

nos Estados Unidos (a começar pela<br />

curadora adjunta Rina Carvajal), outros<br />

na Europa (especialmente na Alemanha<br />

e na Espanha). Há algo aqui que já fala<br />

<strong>da</strong> política contemporânea <strong>da</strong>s artes, de<br />

seus deslocamentos e desterros, sejam<br />

eles propriamente políticos ou especialmente<br />

econômicos.<br />

É o caso de Alessandra Sanguinetti,<br />

que vive entre a Argentina e os Estados<br />

Unidos, trabalhando também como fotógrafa<br />

<strong>da</strong> agência Magnun. Seus trabalhos<br />

se destacam por uma elaboração original,<br />

que vai do universo dos sonhos <strong>da</strong> infância<br />

e <strong>da</strong> adolescência até um olhar estranhado<br />

(e entranhado) na vi<strong>da</strong> do campo,<br />

sobretudo na sua violência latente. Ou<br />

<strong>da</strong> peruana radica<strong>da</strong> na Espanha, Sandra<br />

Gamarra, que, anos atrás, apresentou um<br />

trabalho provocativo baseado em cópias<br />

de obras de artistas brasileiros contemporâneos,<br />

criando uma interessante discussão<br />

não apenas sobre autentici<strong>da</strong>de,<br />

mas também sobre patrimônio cultural e<br />

autoconhecimento em nações periféricas.<br />

Já o jovem artista cubano Wilfredo<br />

Prieto, que atualmente também vive<br />

na Espanha, é uma <strong>da</strong>s promessas do<br />

circuito mundial. Curiosamente, um de<br />

25


seus trabalhos mais conhecidos chamase<br />

justamente Apolítico, uma instalação<br />

feita com sessenta bandeiras de diversos<br />

países, cujo desenho é mantido, mas<br />

cujas cores são retira<strong>da</strong>s, substituí<strong>da</strong>s<br />

por tons de cinza, criando uma estranha<br />

uniformi<strong>da</strong>de. Nesta obra, a política<br />

tradicional e suas cores fortes são<br />

esvazia<strong>da</strong>s para se criar em seu lugar um<br />

espaço tanto crítico quanto reflexivo<br />

em relação à função <strong>da</strong>s cores (<strong>da</strong> arte,<br />

portanto), ao sentido <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de,<br />

à uniformi<strong>da</strong>de de um mundo sem utopias<br />

identificáveis.<br />

Mas certamente a grande “estrela”<br />

latino-americana dessa Bienal deverá<br />

ser a veterana argentina Marta Minujín<br />

que, desde os anos 60, elabora divertidos<br />

e provocantes projetos performáticos<br />

e efêmeros. Ações, mais do que<br />

26<br />

“obras” que podiam questionar a mídia<br />

(Leyendo las Noticias en el Río de la Plata, de<br />

1961, no qual jornais eram “afogados”<br />

no rio) ou a ditadura militar argentina,<br />

nos anos 70, como o inusitado Partenón<br />

de Libros, que reconstruía uma estrutura<br />

nas dimensões do Partenon grego, só<br />

que recoberta de livros proibidos pela<br />

ditadura (a documentação dessa obra foi<br />

apresenta<strong>da</strong> na 7ª Bienal do Mercosul).<br />

Nos anos 80, a artista inclusive “pagou”<br />

a dívi<strong>da</strong> externa <strong>da</strong> argentina oferecendo<br />

espigas de milho a Andy Warhol, típica<br />

performance pop à qual é afeita, ato<br />

revelador de sua concepção de política,<br />

ironia, arte e espetáculo.<br />

Francisco Alambert é professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

de São Paulo, historiador e pesquisador<br />

de arte.


Uma <strong>da</strong>s estrelas <strong>da</strong> 29 a<br />

Bienal, a argentina Marta<br />

Minujin já fez performance<br />

com Andy Warhol na déca<strong>da</strong><br />

de 1970.<br />

27


Acima, grafismo de<br />

Edith Derdyk e as<br />

camisetas de clubes de<br />

futebol de várzea de<br />

Júlio Leite. Ao lado,<br />

obra eletrônica de<br />

Diana Domingues.<br />

28<br />

MEMORIAL NO CIRCUITO<br />

<strong>da</strong> 29 a bienal de sÃo PaUlo<br />

O <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> fez parte do Polo de Arte Contemporânea<br />

idealizado pela 29ª Bienal Internacional de São Paulo de 2010. A Galeria Marta Traba<br />

exibiu a produção de brasileiros e artistas de cinco países que, neste ano, estão<br />

comemorando o Bicentenário de sua Independência: Argentina, Chile, Colômbia,<br />

México e Venezuela.<br />

A coletiva reuniu diferentes linguagens, hibridismos formais e interações para<br />

compor alguns dos atuais procedimentos <strong>da</strong> arte contemporânea. Com o título<br />

TRANSfronteiras, a mostra refletiu sobre a ideia <strong>da</strong>s passagens geográficas, culturais,<br />

linguísticas, mediáticas e artísticas interliga<strong>da</strong>s ao contexto do mundo informatizado.


CINEMA<br />

marco na ci<strong>da</strong>de<br />

O 5 o Festival de Cinema<br />

Latino-Americano<br />

Ana Candi<strong>da</strong> Vespucci<br />

o<br />

sucesso do 5o Festival de Cinema Latino-Americano,<br />

promovido pelo <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong>, confirmou mais uma vez que o evento<br />

se tornou o mais importante do gênero, ao<br />

exibir a maioria <strong>da</strong>s melhores produções regionais<br />

realiza<strong>da</strong>s no período de 2000 a 2009. A festa, além<br />

<strong>da</strong>s homenagens de praxe a cineastas – este ano ao brasileiro<br />

João Batista de Andrade e ao argentino Marcelo Piñeyro -,<br />

também teve outra celebração: comemorou o bicentenário de<br />

29<br />

Cena do filme<br />

Memórias do<br />

Desenvolvimento,<br />

do cubano<br />

Miguel Coyula,<br />

inspirado no livro<br />

de Edmundo<br />

Desnoes.


Cena do filme A Água Fria do Mar, <strong>da</strong> costa-riquenha Paz Fábrega.<br />

independência de Argentina, Chile,<br />

Colômbia, México e Venezuela, com a<br />

apresentação de curta-metragens, todos<br />

realizados nos países aniversariantes.<br />

A primeira edição do festival<br />

foi em 2006, uma iniciativa inédita<br />

no país, que revelou a vitali<strong>da</strong>de de<br />

um cinema dono de estética singular,<br />

mas, ain<strong>da</strong> assim, ligado à linguagem<br />

cinematográfica universal. O cinema<br />

latino-americano foi ganhando fôlego<br />

ao longo do tempo e mostrou, nas edições<br />

subsequentes, que seus cineastas<br />

caminhavam, de fato, em direção ao<br />

público e vice-versa.<br />

Com parceria do Governo do<br />

Estado de São Paulo (Secretaria de<br />

Estado de Cultura e Secretaria de Relações<br />

Institucionais) e organização <strong>da</strong><br />

Associação do Audiovisual, a edição<br />

deste ano foi movimenta<strong>da</strong>. A crítica<br />

especializa<strong>da</strong> afirmou que o festival<br />

exibiu, no mínimo, 20 dos melhores filmes<br />

já produzidos na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

A relação é vasta: de Viúvas <strong>da</strong>s Quintasfeiras,<br />

do homenageado e renomado<br />

Marcelo Piñeyro, um dos principais<br />

diretores latino-americanos, a A Água<br />

Fria do Mar, filme que lança Paz Fábre-<br />

30<br />

ga, uma cineasta costa-riquenha, estreante<br />

em um país sem qualquer tradição<br />

cinematográfica.<br />

As sessões lotaram a plateia do<br />

Teatro Simón Bolívar, assim como <strong>da</strong>s<br />

demais instituições que receberam o<br />

evento: o Cinesesc, o Cinusp, o Museu<br />

<strong>da</strong> Imagem e do Som, e a Sala Cinemateca<br />

BNDES. Muita gente compareceu,<br />

desde a noite de abertura com a apresentação<br />

<strong>da</strong> obra de Paz Fábrega, escolhi<strong>da</strong><br />

pelas proprie<strong>da</strong>des muito particulares<br />

e pelo ineditismo em seu país de<br />

origem. A afluência de público também<br />

comprovou o interesse pelas oficinas<br />

e pelos debates, cujas discussões correram<br />

em torno <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de que<br />

é fazer cinema na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Paz<br />

Fábrega contou que sofreu para “tirar<br />

do papel” o seu A Água Fria do Mar. Explicou<br />

que, em seu país, as pessoas não<br />

vão ao cinema, apenas assistem à televisão<br />

e, além disso, ninguém vê o cinema<br />

como uma vertente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cultural. Por<br />

isso, demorou a obter o financiamento.<br />

Quando os recursos foram liberados, o<br />

filme – longamente amadurecido por<br />

conta <strong>da</strong> espera – teve de ser ro<strong>da</strong>do às<br />

pressas, “havia uma pequena janela de


oportuni<strong>da</strong>de para fazê-lo”. Ocorre que<br />

o clima <strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de escolhi<strong>da</strong>, uma<br />

praia praticamente deserta, entraria na<br />

tempora<strong>da</strong> de chuvas fortes, o que inviabilizaria<br />

a produção durante meses.<br />

“Trabalho com o que tenho, fazendo<br />

um intercâmbio com o que ocorre.”<br />

Ain<strong>da</strong> na opinião dos cineastas,<br />

tanta demora também gera outro tipo<br />

de problema. Quem comentou foi<br />

Marcelo Gomes, autor de Cinema, Aspirinas<br />

e Urubus, um veterano, que já está<br />

em fase de produção de seu terceiro<br />

longa. Ele levou cinco anos para fazer<br />

seu primeiro filme e mais quatro para o<br />

segundo; um período, em que, de acordo<br />

com sua experiência, o cineasta tem<br />

de se repreparar para as mu<strong>da</strong>nças tecnológicas,<br />

embora essa evolução esteja<br />

barateando as produções. Nem assim<br />

tem sido fácil. Ele, em particular, en-<br />

controu produtores criativos, que entendem<br />

suas propostas. “São parceiros<br />

dos meus projetos, pessoas interessa<strong>da</strong>s<br />

em filmes autorais.” Como Cinema,<br />

Aspirinas e Urubus teve excelente repercussão,<br />

todos achavam que captar<br />

recursos para o segundo longa Viajo<br />

Porque Preciso, Volto Porque Te Amo não<br />

seria tão difícil. Porém, inicialmente o<br />

tema não agradou eventuais patrocinadores.<br />

Agora que está em sua terceira<br />

produção, cuja história se desenrola no<br />

Recife, conseguiu, por enquanto, os recursos<br />

para a pré-produção: “Não dá<br />

para inventar, por exemplo, que se trata<br />

de um filme de ação.”<br />

O fato é que para a maioria dos<br />

cineastas, sobretudo jovens, a grande<br />

dificul<strong>da</strong>de é financiamento. O próprio<br />

Marcelo Gomes já foi questionado<br />

quanto ao título Cinema, Aspirinas e Uru-<br />

Um público cativo de cinema<br />

lotou to<strong>da</strong>s as sessões.<br />

31


us. Perguntaram-lhe como ele pretendia<br />

que assistissem a um filme “com um<br />

título desses?” Ele acrescentou que faz<br />

filmes “para instigar a imaginação”, que<br />

faz mesmo apenas o que lhe interessa,<br />

sem se preocupar com rentabili<strong>da</strong>de.<br />

Felipe Bragança também. Premiado por<br />

A Fuga <strong>da</strong> Mulher Gorila, o cineasta conta<br />

que se preocupa com o imaginário audiovisual,<br />

“não saberia construir uma<br />

equação estratégica para alcançar um<br />

público X,Y ou Z.”<br />

Em outro debate, o tom descontraiu-se<br />

com a intervenção do cineasta<br />

e professor de roteiro Flavio González<br />

Mello, mexicano autor de narrativas<br />

para cinema, televisão e teatro: “A<br />

pessoa mais importante em um filme é<br />

o fotógrafo. Alguém com uma câmara<br />

na mão pode prescindir <strong>da</strong> montagem<br />

e a figura do diretor não tem a menor<br />

32<br />

As duas grandes premia<strong>da</strong>s deste ano:<br />

acima, a argentina Natalia Smirnoff e<br />

cena de seu filme Quebra-Cabeças; ao<br />

lado, a brasileira Marilia Rocha e seu<br />

filme A Falta Que Me Faz. Abaixo,<br />

João Batista de Andrade, homenageado<br />

brasileiro <strong>da</strong> edição deste ano.<br />

importância.” O cubano Miguel Coyula,<br />

jovem cineasta que mora nos Estados<br />

Unidos por conta de uma bolsa <strong>da</strong><br />

Fun<strong>da</strong>ção Guggenheim, autor do filme<br />

Memórias do Desenvolvimento, arrematou<br />

que “alguém com um computador pode<br />

prescindir de um fotógrafo”. Peremptório<br />

foi o brasileiro Kiko Goifman, autor<br />

do documentário 33, sobre a busca por<br />

sua mãe biológica, que começou aos 33<br />

anos de i<strong>da</strong>de, com um diário online que<br />

se transformou em filme. Ele acha que<br />

se produz muito no Brasil, mas se exibe<br />

pouco, frase que pode ser um paradigma<br />

<strong>da</strong> atual situação do cinema latinoamericano,<br />

permanentemente encarando<br />

o poder do cinema norte-americano.<br />

Ana Candi<strong>da</strong> Vespucci é jornalista especializa<strong>da</strong><br />

em cultura.


MARCELO PIÑEyRO<br />

ícone do cinema arGentino<br />

REVISTA NOSSA AMÉRICA – O<br />

que faz com que o cinema argentino tenha uma narrativa<br />

mais centra<strong>da</strong> na classe média, sem cair na técnica<br />

de telenovela? Até que ponto vocês são influenciados<br />

pela literatura?<br />

MARCELO PIÑEYRO – Como<br />

não poderia deixar de ser, a cultura argentina<br />

tem o aporte <strong>da</strong> literatura, que é bastante<br />

expressiva. Temos excelentes escritores,<br />

ótimos contistas como Jorge Luis Borges,<br />

Julio Cortázar, Bioy Casares, Manuel Puig<br />

e tantos outros. Recebemos uma influência<br />

natural <strong>da</strong> literatura.<br />

R.N.A. – Na Argentina os diretores contam<br />

com o Instituto de Cinema. Uma vez que no país<br />

O cineasta argentino<br />

que, ao lado de João<br />

Batista de Andrade,<br />

foi o homenageado<br />

do festival deste ano,<br />

concedeu entrevista à<br />

Nossa <strong>América</strong>.<br />

não há leis de incentivo fiscal, como vocês conseguem<br />

fazer 50 filmes por ano? Há muitas estratégias para<br />

se realizar as coproduções?<br />

M.P. – Eu tenho a sorte de fazer parte<br />

do reduzido grupo que não necessita de<br />

apoio governamental, não faço parte de<br />

suas instituições, na ver<strong>da</strong>de eu trabalho<br />

à margem e, por isso mesmo, às vezes tenho<br />

problemas com o Instituto de Cinema.<br />

Tenho muita liber<strong>da</strong>de para dizer o que eu<br />

quero porque não dependo <strong>da</strong> verba do<br />

governo. Mas já aconteceu de eu ser convi<strong>da</strong>do<br />

para um festival internacional e o<br />

Instituto de Cinema enviar uma carta à organização<br />

dizendo que meu filme não representa<br />

a Argentina.<br />

33


Os dois polos <strong>da</strong> carreira de Piñeyro: seu<br />

último filme As Viúvas <strong>da</strong>s Quintas-feiras e o<br />

inaugural Tango Feroz, de 1973.<br />

R.N.A. – Você hoje, praticamente, só participa<br />

de coproduções. Isso não limita sua criativi<strong>da</strong>de?<br />

Até que ponto os parceiros estrangeiros interferem em<br />

seu cinema, que tem fortes características de seus país?<br />

M.P. – Hoje, recorremos muito às parcerias<br />

internacionais, assim os filmes não são<br />

mais decididos só na Argentina. Temos que<br />

nos conciliar com os coprodutores, Não tem<br />

jeito, mas posso dizer que tenho liber<strong>da</strong>de.<br />

Até o ano 2000 ain<strong>da</strong> se podia fazer filmes<br />

como Patagônia Rebelde, hoje não mais. Nem<br />

mesmo A História Oficial ou O Beijo <strong>da</strong> Mulher<br />

Aranha, por exemplo. De certa forma, sempre<br />

há interferência <strong>da</strong> coprodução.<br />

R.N.A. – Até que ponto você acha importante<br />

festivais de cinema ? Quanto ao do <strong>Memorial</strong>,<br />

o que você tem a comentar?<br />

M.P. – Primeiro eu acho importante<br />

que existam festivais para conhecermos<br />

outras produções, diretores mais jovens,<br />

depois, o importante também são as trocas<br />

de ideias, que muitas vezes podem surgir de<br />

um encontro como este. O <strong>Memorial</strong> está<br />

organizando um bom festival, bem diversificado<br />

e organizado.<br />

R.N.A. – Em uma <strong>da</strong>s mesas deste festival<br />

alguns diretores desconstruíram a forma de se fazer<br />

cinema. Primeiro questionaram as tradicionais duas<br />

horas de duração e depois a presença de um diretor, de<br />

um fotógrafo e de roteristas. Qual sua opinião sobre o<br />

modelo de como se fazer cinema depois de mais de cem<br />

anos que ele foi inventado?<br />

M.P. – Faço cinema <strong>da</strong> forma tradicional,<br />

mantenho todos esses profissionais des-<br />

34<br />

cartados acima e às vezes tenho uma equipe<br />

mais numerosa do que gostaria de ter. Filmo<br />

o suficiente para ter uma projeção de duas<br />

horas, em sala particular. Não posso imaginar<br />

meus filmes projetados fora de uma sala<br />

tradicional.<br />

R.N.A. – Como você escolhe o roteiro? Você<br />

planeja e desenvolve uma ideia antes ou acontece ao<br />

acaso?<br />

M.P. – Na reali<strong>da</strong>de, não tenho um plano<br />

específico, meus filmes são resultados de<br />

histórias que me dão vontade de contar. Só<br />

isso.<br />

R.N.A. – Qual a sua opinião sobre a cinematografia<br />

brasileira?<br />

M.P. – O cinema brasileiro é muito<br />

potente. Vocês têm uma reali<strong>da</strong>de diferente<br />

<strong>da</strong> nossa, o que inspira também<br />

um cinema diferente. Considero Ci<strong>da</strong>de de<br />

Deus e Lavoura Arcaica dois grandes filmes.<br />

Leonor Amarante é editora <strong>da</strong> Revista<br />

Nossa <strong>América</strong>.


LITERATURA<br />

ExPANDINDO<br />

CONSTELAÇõES<br />

QUe vimos imPressas<br />

Saramago, único prêmio Nobel<br />

<strong>da</strong> língua portuguesa<br />

Ana Maria Ciccacio<br />

a<br />

língua portuguesa enlutou em junho<br />

com a morte de José Saramago, no dia<br />

18, aos 87 anos. O mundo perdeu o ator<br />

de algumas <strong>da</strong>s páginas mais pungentes<br />

contra a cegueira que leva os homens a<br />

digladiarem-se e enganarem-se cruelmente,<br />

as mulheres a serem estupra<strong>da</strong>s em nome de partilhas<br />

torpes, a comi<strong>da</strong> a ser inflaciona<strong>da</strong> a ponto de valer mais<br />

que a vi<strong>da</strong>. Certamente continuarão surgindo escritores dispostos<br />

a brandir contra a omissão, mas, talvez, não com a<br />

mesma sinceri<strong>da</strong>de e a franqueza desse português de Azinhaga<br />

(aldeia ao sul de Portugal), comunista convicto, polemista,<br />

único Prêmio Nobel <strong>da</strong> língua portuguesa (em 1998).<br />

35


Por que Saramago caiu tanto no<br />

gosto dos brasileiros enquanto em seu<br />

próprio país vivia às turras por causa<br />

de seus escritos? Em 1992 – ponto<br />

culminante dos entreveros com seus<br />

compatriotas –, O Evangelho Segundo Jesus<br />

Cristo foi excluído <strong>da</strong> lista de concorrentes<br />

ao Prêmio Literário Europeu<br />

pelo subsecretário de Estado <strong>da</strong> Cultura<br />

de Portugal, Sousa Lara. De Portugal<br />

à Itália, passando por Espanha, França<br />

e Alemanha, os jornais manifestaram<br />

perplexi<strong>da</strong>de com o descabimento do<br />

veto que, segundo eles, reeditava a Inquisição<br />

e comprometia as liber<strong>da</strong>des<br />

conquista<strong>da</strong>s pela Revolução dos Cravos,<br />

em 1974. Lara, contudo, mostravase<br />

inflexível: “O livro de Saramago não<br />

representa Portugal”.<br />

Há uma teoria: os brasileiros são<br />

leitores cativos desse expoente <strong>da</strong> moderna<br />

prosa portuguesa, ain<strong>da</strong> que com<br />

traços de um barroquismo ao gosto espanhol,<br />

pelo simples fato de Saramago<br />

ter coragem de expor-se com dúvi<strong>da</strong>s<br />

que costumam consumir todo ser humano<br />

pensante, mas na maioria <strong>da</strong>s<br />

vezes com medo de se expressar. Portugal,<br />

evidentemente, reconciliou-se<br />

com Saramago, e felizmente três anos<br />

36<br />

Saramago passeia ao lado de<br />

alguns amigos escritores.<br />

antes do Nobel de Estocolmo. Prova é<br />

que a mais alta condecoração <strong>da</strong> língua<br />

portuguesa, o Prêmio Camões, lhe foi<br />

concedido em 1995.<br />

Em setembro de 1983, como<br />

jornalista de O Estado de S. Paulo, eu<br />

tive o privilégio de entrevistá-lo sobre<br />

o lançamento do romance <strong>Memorial</strong> do<br />

Convento, no Brasil. E ele se referiu ao<br />

legado que nos acompanha, mas foi<br />

além. “Ao tomarmos consciência do<br />

que somos, ao tentarmos apreender<br />

melhor e definir o tempo em que vivemos,<br />

sentimos uma espécie de on<strong>da</strong><br />

que vem de trás. Quando um homem<br />

se sente tão plural, embora ain<strong>da</strong> confuso,<br />

tenta clarear suas ideias por meio<br />

do que escreve; como eu. E quer dizer<br />

tudo e quer encontrar respostas. E está<br />

perplexo”, ele disse e se definiu.<br />

Saramago praticou essa perplexi<strong>da</strong>de<br />

por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, levando suas in<strong>da</strong>gações<br />

ao paroxismo de questionar a<br />

tradição, inclusive a religiosa católica, ao<br />

escrever sobre Jesus Cristo, sobre Caim,<br />

sobre o que pode ser feito em nome de<br />

Deus. Por que não in<strong>da</strong>gar?, perguntam<br />

os leitores brasileiros e, certamente, os<br />

de todo o mundo que passaram a respeitar<br />

o autor de Janga<strong>da</strong> de Pedra. Na en-


FOTOs: rePrOdUÇÃO<br />

trevista que me concedeu sobre a obra<br />

<strong>Memorial</strong> do Convento, à questão sobre se<br />

não poderíamos recor<strong>da</strong>r Memórias de<br />

Adriano ou A Obra em Negro, de Marguerite<br />

Yourcenar, escritora que comparece<br />

na epígrafe de seu “<strong>Memorial</strong>”, ele respondeu:<br />

“Talvez, neste momento, estejamos<br />

procurando emen<strong>da</strong>r a História,<br />

apesar do atrevimento. Não se trata de<br />

emen<strong>da</strong>r erros, mas fazer História de<br />

outra maneira. É como se alguém me<br />

tivesse feito uma narrativa erra<strong>da</strong>, e eu,<br />

sem saber qual a ver<strong>da</strong>deira, tentasse<br />

recontá-la pelos meus próprios meios,<br />

desconhecendo ain<strong>da</strong> se é a ver<strong>da</strong>deira.<br />

Mas é outra, e é necessária.”<br />

O Convento de Mafra, tema do<br />

<strong>Memorial</strong> do Convento, foi erguido entre<br />

1717 e 1735 por cerca de 40 mil<br />

homens a 40 quilômetros ao norte de<br />

Lisboa por determinação de D. João V,<br />

sem que jamais se apurasse exatamente<br />

a fortuna que consumiu para alimentar<br />

a Inquisição. E isto em um contexto<br />

no qual o brasileiro Bartolomeu<br />

de Gusmão sonhava voar e o músico<br />

italiano Domenico Scarlatti edificava<br />

sua magnífica obra. Portugal, segundo<br />

Saramago, ain<strong>da</strong> vivia em trevas, “com<br />

grande luxo, grande corrupção, ignorância<br />

e superstição”.<br />

Em todos os seus livros, José Saramago<br />

perscrutou o passado com a<br />

intenção de que seus textos transcendessem<br />

o tempo memorialístico para<br />

ganhar a dimensão <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de<br />

do leitor, terreno pleno de liber<strong>da</strong>de<br />

se não assombrado por preconceitos e<br />

medos. “Não é ilusão do escritor que,<br />

ao concluir sua leitura, alguém alce voo<br />

e continue a expandir a constelação<br />

que viu impressa”, disse ele na rápi<strong>da</strong><br />

entrevista de tanta ver<strong>da</strong>de. Saramago<br />

se foi, mas em seus livros ele permanece<br />

íntegro e inquietante, buscando<br />

respostas que nem sempre obteve, levando-nos<br />

a expandir as constelações<br />

que vimos impressas.<br />

O ranking dO nObel<br />

nO mundO ibéricO<br />

Por enquanto, Saramago é o único escritor<br />

de língua portuguesa laureado com o<br />

Nobel de Literatura. Porém, <strong>da</strong> Península<br />

Ibérica foram vários autores espanhóis<br />

já agraciados com o prêmio, como, por<br />

exemplo, José Echevaray Y Eizaguirre, em<br />

1904, Jacinto Benavente Y Martinez (1922)<br />

e Vicente Aleixandre, em 1977.<br />

Entre os iberos e latino-americanos,<br />

foi uma escritora a primeira<br />

a levar o prêmio que já era considerado<br />

o mais respeitado do<br />

mundo <strong>da</strong>s letras: a chilena Gabriela<br />

Mistral (1945). Na sequência,<br />

ganharam o guatemalteco<br />

Miguel Ángel Asturias, em 1967,<br />

o chileno Pablo Neru<strong>da</strong> (1971), o<br />

colombiano Gabriel García Márquez<br />

(1982) e o mexicano Octavio<br />

Paz, em 1990.<br />

A obra de Saramago não se limita<br />

aos grandes romances que circulam<br />

pelo mundo em várias línguas, como<br />

Levantado do Chão, de 1980, seu primeiro<br />

best-seller internacional, ou Janga<strong>da</strong> de Pedra<br />

(1986) ou História do Cerco de Lisboa<br />

(1989). O escritor transitava em todos<br />

os segmentos em que a palavra escrita<br />

lhe permitisse se expressar. Dos contos,<br />

a exemplo de Objeto Quase (1978), aos<br />

ensaios, nove livros deles, listagem em<br />

que se inserem Deste Mundo e de Outro<br />

(1971) e Democracia e Universi<strong>da</strong>de (2010),<br />

Saramago também incursionou pela<br />

poesia (O Ano de 1993, de 1975) e pela<br />

dramaturgia: são suas, entre outras peças,<br />

A Noite (1979) e Dom Giovanni ou O<br />

Dissoluto Absolvido (2005).<br />

Ana Maria Ciccacio é jornalista <strong>da</strong> área<br />

cultural.<br />

37


38<br />

PLANETA<br />

NAS PROFUNDEzAS DA<br />

terra<br />

A força incontrolável<br />

<strong>da</strong> natureza<br />

Umberto G. Cor<strong>da</strong>ni<br />

o<br />

homem pode conhecer bem o que<br />

acontece a milhares de quilômetros acima<br />

de sua cabeça, mas não consegue saber<br />

direito o que acontece a algumas centenas<br />

de quilômetros abaixo de seus pés. As<br />

perfurações mais profun<strong>da</strong>s efetua<strong>da</strong>s na<br />

Terra atingem no máximo uma dezena de quilômetros de<br />

profundi<strong>da</strong>de, de modo que têm que ser utiliza<strong>da</strong>s outras armas<br />

para a investigação <strong>da</strong> composição e condições físico-químicas<br />

dos materiais existentes no interior do planeta. Tudo o que<br />

sabemos é estabelecido com base em evidências indiretas,<br />

tais como estudos de meteoritos, planetologia compara<strong>da</strong>,<br />

estudos de petrologia experimental, bem como evidências<br />

geofísicas oriun<strong>da</strong>s de pesquisas sobre magnetismo terrestre,<br />

comportamento de on<strong>da</strong>s sísmicas e fluxo térmico do planeta.


ilUsTraÇões: insTiTUTO de geOCiênCias - UsP<br />

A Terra formou-se há 4,57 bilhões de anos atrás, ao mesmo tempo do que o<br />

Sol e os demais planetas do Sistema Solar, através <strong>da</strong> condensação do gás e <strong>da</strong> poeira<br />

cósmica que constituíam a nebulosa solar. Portanto ela, nos primórdios de sua formação,<br />

consistia de uma mistura caótica de materiais que foi manti<strong>da</strong> coesa pela atração<br />

gravitacional. A evolução do planeta resultou <strong>da</strong> transformação dessa mistura caótica<br />

em um corpo estruturado em cama<strong>da</strong>s concêntricas diferentes entre si. O material<br />

mais denso afundou e concentrou-se no interior do planeta ao passo que o material<br />

menos denso constitui a parte mais superficial. Nesse contexto formaram-se dois<br />

sistemas fun<strong>da</strong>mentais: um núcleo interno formado por Ferro e Níquel e um manto<br />

envolvente rochoso. A crosta terrestre, a cama<strong>da</strong> mais externa do planeta onde estamos<br />

situados, originou-se mais tarde, por modificações do material do manto.<br />

A FIGURA 1 mostra um perfil genérico<br />

mostrando as cama<strong>da</strong>s superficiais<br />

<strong>da</strong> Terra, com as denominações pertinentes.<br />

Há dois tipos de crosta terrestre: a<br />

crosta continental, de natureza granítica e<br />

espessura média maior, e a crosta oceânica,<br />

de natureza basáltica e espessura média<br />

menor. Esta última situa-se nas extensas<br />

regiões de domínio oceânico, e seu topo<br />

corresponde ao assoalho marinho. A litosfera<br />

inclui inteiramente os dois tipos<br />

de crosta, e mais parte do assim chamado<br />

manto superior. Em consequência,<br />

também há duas denominações para a<br />

litosfera, continental e oceânica, correspondendo<br />

à natureza <strong>da</strong> crosta nela inclu-<br />

í<strong>da</strong>. Ambos os tipos de litosfera possuem<br />

comportamento rígido e sobrepõem-se a<br />

uma zona com características físicas mais<br />

plásticas, denomina<strong>da</strong> astenosfera. O seu<br />

topo situa-se de aproxima<strong>da</strong>mente 100 a<br />

200 km de profundi<strong>da</strong>de, sempre dentro<br />

do manto, e nela ocorre pequena percentagem<br />

de material líquido (magma).<br />

A dinâmica interna do planeta tem<br />

suas origens na mobili<strong>da</strong>de do material do<br />

manto, apesar deste ser quase que totalmente<br />

no estado sólido. A temperatura no<br />

seu interior aumenta na direção ao centro<br />

<strong>da</strong> Terra, atingindo no limite manto/núcleo<br />

cerca de 4000ºC. Nas proximi<strong>da</strong>des<br />

do centro <strong>da</strong> Terra, no núcleo constituído<br />

<strong>39</strong><br />

Figura 1 – Perfil<br />

esquemático dos primeiros<br />

300 km a partir <strong>da</strong><br />

superfície <strong>da</strong> Terra,<br />

mostrando duas placas<br />

tectônicas com limite<br />

divergente. São indica<strong>da</strong>s<br />

as principais feições <strong>da</strong><br />

litosfera, e a denominação<br />

<strong>da</strong>s uni<strong>da</strong>des maiores <strong>da</strong><br />

crosta e <strong>da</strong> litosfera.


Figura 2 - Configuração<br />

<strong>da</strong> superfície <strong>da</strong> Terra<br />

com a denominação<br />

e a delimitação <strong>da</strong>s<br />

placas tectônicas mais<br />

importantes.<br />

por Ferro e Níquel, a temperatura atinge<br />

por volta de 5500ºC. O calor interno, produzido<br />

principalmente através <strong>da</strong> desintegração<br />

dos elementos radioativos de meiavi<strong>da</strong><br />

longa existentes no manto, tais como<br />

Urânio, Tório, Potássio e outros, é transportado<br />

para a superfície, para em segui<strong>da</strong><br />

ser dissipado para fora do planeta. Consequentemente,<br />

com a diminuição progressiva<br />

e inexorável dos elementos radioativos,<br />

o planeta vai lentamente resfriando.<br />

O transporte do calor interno pode ser<br />

por condução ou por convecção, e este<br />

último modo consiste <strong>da</strong> movimentação<br />

de massa <strong>da</strong>s zonas mais quentes para as<br />

mais frias. No entender de muitos geofísicos,<br />

as principais fontes de energia interna<br />

<strong>da</strong> Terra localizam-se na zona limite entre<br />

o manto e o núcleo, onde existe uma cama<strong>da</strong><br />

de alta temperatura, cerca de 1000ºC<br />

mais eleva<strong>da</strong> do que as rochas mantélicas<br />

adjacentes. As correntes de convecção no<br />

manto, embora muito lentas, são o motor<br />

<strong>da</strong> dinâmica interna do planeta, responsáveis<br />

pelo fluxo térmico observado na<br />

superfície e pelos movimentos <strong>da</strong>s placas<br />

tectônicas, que serão descritos a seguir.<br />

FIGURA 2. A litosfera é dividi<strong>da</strong><br />

em cerca de uma dúzia de placas tectônicas<br />

grandes e muitas placas menores. Essas<br />

placas se movimentam tangencialmente<br />

à superfície do planeta, com veloci<strong>da</strong>des<br />

distintas que podem variar de menos de<br />

40<br />

um centímetro por ano a uma dezena de<br />

centímetros por ano. Esse movimento depende<br />

<strong>da</strong>s correntes de convecção mantélicas<br />

subjacentes, que originam-se nas<br />

zonas mais quentes do manto, onde o material<br />

inicia uma ascensão para níveis superiores.<br />

Ao mesmo tempo, para compensar<br />

essa ascensão, rochas mais frias e por isso<br />

mesmo mais densas descem e preenchem<br />

o espaço deixado pelo material que subiu,<br />

completando o movimento circular <strong>da</strong>s<br />

células de convecção. As placas tectônicas,<br />

constituí<strong>da</strong>s de porções <strong>da</strong> litosfera rígi<strong>da</strong>,<br />

se movimentam sobre o material mais<br />

plástico <strong>da</strong> astenosfera, e os limites entre<br />

elas constituem o sítio ideal para a ocorrência<br />

<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des que caracterizam a<br />

dinâmica interna <strong>da</strong> Terra. As figuras 2 e 3<br />

mostram que esses limites não correspondem<br />

àqueles entre continentes e oceanos.<br />

Nos limites entre placas tectônicas<br />

contíguas concentram-se, praticamente,<br />

todos os terremotos de grande intensi<strong>da</strong>de<br />

e a grande maioria dos vulcões ativos<br />

do planeta. Eles podem ser convergentes,<br />

divergentes, ou conservativos.<br />

Nos limites convergentes ocorre<br />

o choque entre duas placas que se aproximam.<br />

As feições geológicas cria<strong>da</strong>s e as<br />

modificações produzi<strong>da</strong>s na crosta irão<br />

depender <strong>da</strong> natureza de sua litosfera.<br />

No caso de choque de uma placa oceânica<br />

com outra <strong>da</strong> mesma natureza, uma<br />

delas mergulhará por debaixo <strong>da</strong> outra,<br />

voltando para o manto, e criando o que<br />

se denomina “zona de subducção”. Se<br />

as duas placas tiverem litosfera continental,<br />

haverá um processo colisional, com<br />

a geração de cordilheiras de montanhas,<br />

como os Alpes e os Himalaias. Por fim,<br />

se o limite convergente envolver uma placa<br />

continental e uma placa oceânica, esta<br />

mergulhará em subducção, e na placa vizinha<br />

haverá magmatismo intenso, como<br />

ocorre na Cordilheira Andina. No caso de<br />

limites divergentes entre placas tectônicas<br />

aparecem aberturas na crosta, ao longo de<br />

grandes sistemas de fraturamento, associa-<br />

ilUsTraÇões: insTiTUTO de geOCiênCias - UsP


dos com vulcanismo intenso. É o caso <strong>da</strong>s<br />

chama<strong>da</strong>s dorsais meso-oceânicas, as cordilheiras<br />

submersas que atravessam todos<br />

os oceanos, as quais representam os locais<br />

de geração de crosta oceânica nova, pela<br />

subi<strong>da</strong> de magmas basálticos provenientes<br />

do manto. Se o movimento divergente<br />

durar muitos milhões de anos, o que é comum,<br />

fundos oceânicos inteiros poderão<br />

ser formados. A título de exemplo, pode<br />

ser menciona<strong>da</strong> a Dorsal Meso-Atlântica,<br />

que divide o Atlântico em duas partes simétricas.<br />

Nela situa-se a Islândia, sítio de<br />

grandes fraturamentos e muitos vulcões,<br />

um deles bastante ativo neste ano de 2010,<br />

lançando cinzas e gases na atmosfera. Por<br />

sua vez, os limites de placas conservativos<br />

apresentam grandes sistemas de falhamento,<br />

em que as placas contíguas deslizam<br />

horizontalmente, uma em relação à outra,<br />

com movimentação oposta. O exemplo<br />

mais conhecido e mais característico é o<br />

sistema de falhas de San Andréas, na costa<br />

ocidental <strong>da</strong> <strong>América</strong> do Norte.<br />

Pelo exposto decorre que se situa<br />

no manto o motor dos processos <strong>da</strong> dinâmica<br />

interna do planeta, que produzem as<br />

maiores modificações na fisiografia, estrutura<br />

e natureza do material <strong>da</strong> crosta terrestre.<br />

Esse motor interno é responsável<br />

pela existência do relevo, ou seja, <strong>da</strong>s terras<br />

emersas no planeta, os continentes. Com<br />

efeito, o relevo é continuamente atacado e<br />

desbastado pelos agentes <strong>da</strong> dinâmica externa,<br />

e se não houvesse um mecanismo<br />

adequado para a sua contínua reposição,<br />

não haveria continentes, e o fundo do único<br />

oceano global estaria situado por volta<br />

de 2.500 metros de profundi<strong>da</strong>de.<br />

A FIGURA 3 mostra a situação <strong>da</strong>s<br />

placas tectônicas na região do planeta em<br />

que situam-se os países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

As placas maiores são a Norte-Americana<br />

e a Sul-Americana, que incluem as<br />

respectivas litosferas continentais, mais as<br />

porções de litosfera oceânica relativas às<br />

regiões do Oceano Atlântico que lhe são<br />

contíguas. A placa do Caribe, que inclui<br />

Figura 3 – Denominação e delimitação <strong>da</strong>s placas tectônicas maiores na<br />

região que inclui os países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Nela estão indicados os<br />

sentidos dos movimentos atuais no limites entre as placas, e sua veloci<strong>da</strong>de<br />

aproxima<strong>da</strong>, em cm/ano. A localização de alguns vulcões ativos e de locais em<br />

que ocorreram alguns grandes terremotos também foi mostra<strong>da</strong>.<br />

• Círculos: vulcões ativos. 1 – Islândia; 2 – Tristão <strong>da</strong> Cunha; 3 – Saint Helens;<br />

– 4 Saint Pierre; 5 – Nevado Ruiz; 6 – Galapagos; 7 – Arenal; 8 – Cerro<br />

Hudson; 9 – Ilha de Páscoa.<br />

• Triângulos: Epicentros de grandes sismos. 10 – Ci<strong>da</strong>de do México; 11 – Porto<br />

Príncipe; 12 – Valdívia; 13 – Concepción; 14 – San Francisco.<br />

numerosas ilhas vulcânicas, e as placas de<br />

Nazca, de Cocos, do Pacífico e <strong>da</strong> Antártica,<br />

nas margens do Oceano Pacífico, são<br />

to<strong>da</strong>s forma<strong>da</strong>s por litosfera oceânica.<br />

Na figura 3, limites divergentes<br />

ocorrem apenas ao longo <strong>da</strong>s dorsais do<br />

Atlântico e do Pacífico Oriental, onde<br />

as ilhas vulcânicas <strong>da</strong> Islândia, Tristão <strong>da</strong><br />

Cunha, de Páscoa e Galápagos são testemunho<br />

dos grandes fraturamentos e do<br />

seu vulcanismo associado. Com exceção<br />

do limite conservativo entre a placa do<br />

Pacífico e <strong>da</strong> <strong>América</strong> do Norte, sítio do<br />

grande Falhamento de San Andréas, os<br />

demais limites são convergentes, indicando<br />

aproximação entre placas tectônicas.<br />

Este é o caso <strong>da</strong>s placas de Nazca e de<br />

Cocos em relação às placas <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s<br />

do Norte e do Sul, em que a convergência<br />

41


O globo terrestre, e<br />

as variações térmicas.<br />

No caso, a linha<br />

grifa<strong>da</strong> delimita a<br />

placa do pácifico.<br />

se dá entre uma placa com litosfera continental<br />

e outra com litosfera oceânica.<br />

Na parte oriental <strong>da</strong> placa do Caribe e <strong>da</strong><br />

placa de Scotia, a convergência se dá entre<br />

duas porções de litosfera oceânica.<br />

Nos limites convergentes ou conservativos<br />

é que ocorrem os maiores<br />

riscos sísmicos e vulcânicos. No caso<br />

dos terremotos, a <strong>da</strong>ta e hora do evento,<br />

mesmo que aproxima<strong>da</strong>s, não podem<br />

ser previstas. A dificul<strong>da</strong>de para esta previsão<br />

é a seguinte: os movimentos direcionais<br />

continuados de material, com o<br />

tempo, pressionam gra<strong>da</strong>tivamente a<br />

litosfera rígi<strong>da</strong>, acumulando energia justamente<br />

nos limites <strong>da</strong>s placas. Quando<br />

as pressões ultrapassam o que a litosfera<br />

pode suportar, a energia acumula<strong>da</strong><br />

é libera<strong>da</strong> em curto espaço de tempo, o<br />

que provoca um grande terremoto, com<br />

o seu séquito de tremores associados.<br />

Para ca<strong>da</strong> região sísmica, os seus registros<br />

históricos indicam a frequência e a<br />

intensi<strong>da</strong>de aproxima<strong>da</strong> dos terremotos,<br />

medi<strong>da</strong> pela sua magnitude. No caso dos<br />

vulcões, a previsão de erupções é possível<br />

em certa medi<strong>da</strong>. De início, o local<br />

dos centros eruptivos é conhecido, de<br />

modo que os assentamentos e demais<br />

ativi<strong>da</strong>des humanas não precisam localizar-se<br />

nas proximi<strong>da</strong>des dos centros de<br />

perigo. Além disso, com o monitoramento<br />

dos vulcões, através de sismógrafos, a<br />

42<br />

subi<strong>da</strong> do magma pode ser senti<strong>da</strong> com<br />

alguma antecedência, dias ou semanas, o<br />

que permite operações de evacuação <strong>da</strong>s<br />

populações em áreas perigosas. O caso<br />

mais emblemático aconteceu em 1991,<br />

quando uma <strong>da</strong>s maiores manifestações<br />

vulcânicas do século XX foi prevista<br />

com o tempo apenas necessário para salvar<br />

cerca de 80 mil vi<strong>da</strong>s nas proximi<strong>da</strong>des<br />

do vulcão Pinatubo, nas Filipinas. A<br />

erupção foi tão grande que cinzas vulcânicas<br />

e aerosóis foram lançados para a estratosfera,<br />

e seus produtos ain<strong>da</strong> podem<br />

ser encontrados a mais de 2.000 quilômetros<br />

de distância do vulcão.<br />

Na figura 3 são indicados alguns<br />

locais escolhidos onde ocorreram grandes<br />

eventos sísmicos ou vulcânicos que devastaram<br />

regiões <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, comentados<br />

a seguir, todos relacionados com<br />

limites entre placas.<br />

Os sismos de Valdívia (1960 –<br />

magnitude 9,5), e de Concepción (2010<br />

– magnitude 8,8), cujos epicentros estão<br />

relativamente próximos entre si, no Chile,<br />

ilustram muito bem a recorrência dos<br />

grandes terremotos que afetam regiões<br />

sismicamente muito ativas. No caso trata-se<br />

do avanço <strong>da</strong> placa Sul-Americana<br />

sobre a placa de Nazca, na medi<strong>da</strong> de<br />

onze centímetros por ano (Figura 3). Na<br />

região ocorre pelo menos um terremoto<br />

importante em ca<strong>da</strong> déca<strong>da</strong>, e os dois<br />

indicados estão entre os maiores eventos<br />

mundiais dos últimos tempos, em termos<br />

de magnitude sísmica.<br />

Quanto aos riscos que as zonas sísmicas<br />

apresentam para a humani<strong>da</strong>de, os<br />

grandes terremotos sempre causam <strong>da</strong>nos<br />

materiais substanciais. Entretanto, com<br />

relação à per<strong>da</strong> de vi<strong>da</strong>s, a relação maior é<br />

com a vulnerabili<strong>da</strong>de dos assentamentos<br />

locais. Na figura 3 estão indicados, além<br />

dos dois exemplos chilenos, os locais dos<br />

grandes terremotos de São Francisco,<br />

EUA (1987 – magnitude 7,1), Ci<strong>da</strong>de do<br />

México (1985 – magnitude 8,1 ) e Porto<br />

Príncipe, Haiti (2009 – magnitude 7,0 ).


Sabe-se que nos EUA as construções civis<br />

são antissísmicas, feitas levando em conta<br />

as possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> ocorrência de grandes<br />

sismos, e portanto seguindo regulamentos<br />

e controles muito rigorosos. Isto seguramente<br />

impediu que no sismo de São Francisco<br />

os edifícios <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de colapsassem,<br />

e fez com que o número de vítimas fosse<br />

pequeno, menos de vinte pessoas. Em<br />

contraste, no terremoto de Porto Príncipe,<br />

cuja magnitude foi similar, a ci<strong>da</strong>de inteira<br />

foi destruí<strong>da</strong>, pela fraqueza estrutural<br />

de suas construções civis. Nesse evento o<br />

número de vítimas foi descomunal, mais<br />

de 200 mil pessoas pereceram. No Chile<br />

os códigos para construção civil também<br />

são rigorosos. Entretanto a magnitude<br />

dos terremotos de Valdívia e Concepción<br />

foi tão eleva<strong>da</strong> que a destruição foi grande,<br />

e o custo em vi<strong>da</strong>s também foi muito<br />

alto, cerca de 6 mil pessoas no primeiro<br />

caso, e mil no segundo. De qualquer<br />

forma, muito menos vítimas do que em<br />

Porto Príncipe. Caso intermediário foi o<br />

<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do México, situa<strong>da</strong> em terreno<br />

pouco consoli<strong>da</strong>do, de sedimentos lacustres.<br />

Esse material amplificou as vibrações<br />

do solo durante o terremoto de 1985, a<br />

destruição foi considerável, e cerca de 10<br />

mil pessoas foram vitima<strong>da</strong>s.<br />

Com relação aos vulcões ativos, o<br />

seu monitoramento possibilita evitar grandes<br />

per<strong>da</strong>s de vi<strong>da</strong>s, embora a devastação<br />

provoca<strong>da</strong> por erupções de lavas e outros<br />

materiais vulcânicos não possa ser impedi<strong>da</strong>.<br />

Vulcões recentemente ativos, como<br />

o Cerro Hudson no Chile ou o Arenal na<br />

Costa Rica, estão relativamente afastados<br />

de assentamentos urbanos para provocar<br />

vítimas fatais. Entretanto, isto pode ocorrer<br />

em condições particulares, em que a ativi<strong>da</strong>de<br />

vulcânica se associa a circunstâncias<br />

adicionais que podem em muito aumentar<br />

a sua capaci<strong>da</strong>de destrutiva. Três exemplos<br />

são <strong>da</strong>dos a seguir.<br />

Pelo acúmulo de pressão em sua<br />

câmara magmática, o vulcão Saint Helens,<br />

nos EUA, explodiu em 1980, lançando aos<br />

ares grande parte de seu edifício vulcânico,<br />

o que reduziu de 400 metros a sua elevação,<br />

e devastou uma enorme área em seus<br />

arredores. Como a região tem ocupação<br />

humana pouco relevante, apenas cerca de<br />

60 vítimas foram contabiliza<strong>da</strong>s. Em 1985,<br />

o Nevado Ruiz, na Colômbia, teve uma<br />

erupção modera<strong>da</strong> em termos vulcânicos,<br />

mas que aqueceu e fundiu grande quanti<strong>da</strong>de<br />

de material de suas geleiras, provocando<br />

a formação de grandes massas de<br />

lama e fragmentos de rocha, que desceram<br />

vales abaixo com grande veloci<strong>da</strong>de e grande<br />

força destrutiva. A ci<strong>da</strong>de de Armero,<br />

situa<strong>da</strong> num dos vales que se originam no<br />

vulcão, contabilizou cerca de 25 mil vítimas.<br />

Finalmente, características insólitas<br />

teve a erupção do Mt. Pelée que destruiu<br />

completamente a ci<strong>da</strong>de de Saint Pierre,<br />

na Martinica, em 1902. Na ocasião, além<br />

de materiais vulcânicos normais, o vulcão<br />

emitiu uma grande quanti<strong>da</strong>de de vapor<br />

superaquecido a mais de 1000 graus centígrados,<br />

misturado com outros gases e cinza<br />

vulcânica, que desceu as encostas a atingiu<br />

Saint Pierre, incendiando-a completamente<br />

em poucos minutos.<br />

Os poucos exemplos aqui descritos<br />

servem para ilustrar que os movimentos<br />

inerentes à tectônica de placas, embora a<br />

veloci<strong>da</strong>de destas seja muito pequena para<br />

ser observa<strong>da</strong> no dia a dia, pode ter consequências<br />

trágicas nas regiões que situam-se<br />

no limite entre placas contíguas. Nesse aspecto<br />

o Brasil pode considerar-se beneficiado<br />

pela sua situação geográfica. Apesar<br />

de ser um país de grande dimensão, está ele<br />

localizado na região central <strong>da</strong> Placa Sulamericana,<br />

onde não há vulcões ativos, e as<br />

ativi<strong>da</strong>des sísmicas assinala<strong>da</strong>s em seu território<br />

são de baixa intensi<strong>da</strong>de, sem grandes<br />

riscos para os assentamentos humanos.<br />

Umberto G. Cor<strong>da</strong>ni é diretor do Instituto<br />

de Estudos Avançados <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

São Paulo e professor do Instituto de Geociências<br />

<strong>da</strong> USP.<br />

43


44<br />

OLHAR<br />

MATILDE MARíN<br />

itinerÁrio


matilde Marín, artista argentina, mergulhou<br />

no vasto território <strong>da</strong> Patagônia<br />

para compor um poema visual impregnado<br />

de mistério, magnetismo e sedução,<br />

ingredientes contidos na imensidão dos<br />

horizontes infinitos. A paisagem que seduz<br />

e repele não é dura, ao contrário, romantiza uma <strong>da</strong>s regiões<br />

mais enigmáticas do planeta. Um dos desafios propostos<br />

por Matilde, tanto em fotos como em vídeos, é o de revisar a<br />

relação <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> natureza. Ela vai muito além disso.<br />

45


50<br />

ECONOMIA<br />

COMPORTAMENTO<br />

aFeta resUltados<br />

Como a cultura mol<strong>da</strong><br />

a forma de gerir empresas<br />

Paulo Roberto Feldmann<br />

a<br />

História de uma nação define valores que se<br />

perpetuam por gerações e que acabam por<br />

determinar o comportamento dos seus ci<strong>da</strong>dãos.<br />

Ou seja, é por conta desses valores<br />

que os indivíduos estão dispostos a assumir<br />

mais ou menos riscos, serão mais ou menos<br />

patriotas, estarão dispostos ou não a repartir lucros e assim por<br />

diante. Ela acaba por afetar costumes e hábitos e, consequentemente,<br />

interferir nos fatores culturais, influindo também na forma<br />

como as empresas de uma região ou país são administra<strong>da</strong>s.<br />

Max Weber (1930) já dizia que a cultura pesa, determina, inclina<br />

e acaba por decidir que nações prosperam e quais estão<br />

condena<strong>da</strong>s à pobreza, enquanto seus povos não mu<strong>da</strong>rem<br />

de hábitos, crenças e valores. Weber dizia que a ética


FOTO: rePrOdUÇÃO<br />

protestante era a responsável pelo fato<br />

<strong>da</strong> Alemanha e <strong>da</strong> Suíça serem mais<br />

bem-sucedi<strong>da</strong>s economicamente no<br />

século XIX que os países católicos<br />

como Espanha e Portugal. As empresas<br />

latino-americanas decorrem de<br />

uma socie<strong>da</strong>de de formação aristocrática<br />

e oligárquica. Essa socie<strong>da</strong>de sempre<br />

foi centra<strong>da</strong> nas classes mais abasta<strong>da</strong>s,<br />

cujas famílias fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s na<br />

forma patriarcal foram responsáveis<br />

pelo surgimento <strong>da</strong>s primeiras empresas<br />

importantes <strong>da</strong> região. É natural<br />

que a forma <strong>da</strong>s empresas se organizarem<br />

fosse muito pareci<strong>da</strong> com a forma<br />

como as pessoas dentro <strong>da</strong>s famílias se<br />

relacionavam. Por outro lado, durante<br />

muitos séculos, a ativi<strong>da</strong>de agrícola era<br />

praticamente a única ativi<strong>da</strong>de econômica,<br />

o que acabou por fazer com<br />

que o sistema feu<strong>da</strong>l predominante<br />

no campo acabasse tendo raízes fun<strong>da</strong>s<br />

na cultura latino-americana e até<br />

na forma como as empresas <strong>da</strong> região<br />

são administra<strong>da</strong>s.<br />

Um dos exemplos mais típicos<br />

dessa influência <strong>da</strong> cultura nos negócios<br />

no caso latino-americano está no tema<br />

<strong>da</strong>s amizades. Misturar negócios com<br />

amizade é comum na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. O<br />

contrato às vezes não é tão importante<br />

quanto à palavra empenha<strong>da</strong>. Enquanto<br />

nos Estados Unidos existe o culto<br />

ao advogado, sendo tudo enfocado<br />

nos contratos, na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> existe<br />

o culto à “personali<strong>da</strong>de”, ou seja,<br />

tudo depende de com quem você estiver<br />

negociando.<br />

Vários autores que estu<strong>da</strong>ram o<br />

tema realçam que a principal caracte-<br />

51


ística de comportamento dos latinos,<br />

que afeta a forma como as empresas<br />

<strong>da</strong> região são geri<strong>da</strong>s, são as extensas<br />

redes de relacionamento pessoal. Ao<br />

contrário dos norte-americanos os<br />

latino-americanos têm uma visão negativa<br />

<strong>da</strong> competição individual, mas<br />

dão uma enorme importância aos<br />

grupos sociais de que fazem parte.<br />

Há uma frase corrente que diz que os<br />

americanos fazem negócios e depois,<br />

se possível, amigos; enquanto os latinos<br />

primeiro verificam se são amigos<br />

para depois irem aos negócios.<br />

Outro traço cultural muito característico<br />

e também problemático é<br />

o fato <strong>da</strong> quase totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> grande<br />

empresa latino-americana possuir seu<br />

controle acionário nas mãos de um indivíduo<br />

ou, quando muito, nas mãos<br />

de uma ou duas famílias. Isto leva a<br />

um afrouxamento dos controles sobre<br />

os resultados e a ausência de profissionalização<br />

<strong>da</strong> gestão, ou seja, os<br />

acionistas muitas vezes não cobram<br />

resultados porque eles mesmos são<br />

os executivos. É comum os donos <strong>da</strong>s<br />

empresas não conseguirem separar<br />

claramente os limites <strong>da</strong> empresa dos<br />

limites <strong>da</strong> família.<br />

O contrário ocorre nos EUA,<br />

onde o capital <strong>da</strong> grande empresa é<br />

muito mais pulverizado e os acionistas<br />

minoritários pressionam muito<br />

mais por resultados consistentes. Nas<br />

empresas latino-americanas dificilmente<br />

se encontra a separação entre<br />

o Conselho de Administração e a Diretoria<br />

Executiva. Enquanto em boa<br />

parte <strong>da</strong>s empresas norte-americanas<br />

é muito difícil descobrir-se quem é o<br />

dono <strong>da</strong>s mesmas, tamanha a pulverização<br />

<strong>da</strong>s ações, nas empresas latinoamericanas<br />

praticamente sempre se<br />

sabe quem é o dono.<br />

Por outro lado, quando ocorrem<br />

problemas ou fracassos nas suas empresas,<br />

o primeiro culpado a ser apon-<br />

52<br />

tado pelos empresários é sempre o<br />

governo. Os empresários de nossa região<br />

estão sempre na defensiva, nunca<br />

admitindo suas próprias falhas ou de<br />

suas empresas. Se houver problemas,<br />

prejuízos ou fracassos, o primeiro culpado<br />

é o governo. Mas se não deste,<br />

então a culpa pelos fracassos é do fornecedor,<br />

ou dos sindicatos de trabalhadores,<br />

ou dos distribuidores ou até<br />

mesmo do cliente, quando não <strong>da</strong> natureza;<br />

mas nunca <strong>da</strong> própria empresa<br />

e de seus acionistas ou executivos.<br />

Mas, ao mesmo tempo que critica,<br />

o empresariado latino-americano<br />

está permanentemente buscando<br />

apoio governamental para suas ativi<strong>da</strong>des.<br />

Basear o crescimento de suas<br />

empresas em favores governamentais<br />

é algo muito frágil, pois esses favores<br />

são efêmeros e acabam por não proporcionar<br />

vantagens competitivas efetivas<br />

e perenes para as empresas.<br />

Aliás, se existe um traço cultural<br />

latino-americano marcante é a sempre<br />

presente necessi<strong>da</strong>de de que haja uma<br />

liderança superior para tomar decisões<br />

importantes. A busca de uma resposta<br />

para tudo através de um líder caudilhesco<br />

é algo que perpassou a história<br />

de praticamente todos os países deste<br />

continente. Provavelmente por isso<br />

é que as decisões gerenciais são frequentemente<br />

toma<strong>da</strong>s por uma única<br />

pessoa de uma maneira central e decisiva<br />

e, por sua vez, os proprietários<br />

<strong>da</strong>s empresas comumente contam<br />

com algum alto governante para tomar<br />

decisões que lhes favoreçam.<br />

Em suma, gestão familiar, pouco<br />

profissionalismo, paternalismo,<br />

manipulação de políticos, atitudes defensivas<br />

e não éticas são alguns dos<br />

principais ingredientes que fomentaram<br />

as empresas originárias <strong>da</strong> região,<br />

com raríssimas exceções. Esse estilo<br />

de administração não condiz com as<br />

exigências atuais de competição global


FOTO: rePrOdUÇÃO<br />

do século XXI. As grandes empresas<br />

globais que dominam o cenário<br />

competitivo mundial são profissionais,<br />

transparentes, não dependem<br />

de favores governamentais e em<br />

muitos casos seus acionistas não são<br />

conhecidos, ou seja, não possuem a<br />

figura do “dono”. Talvez seja por<br />

isso que tenhamos um número tão<br />

pequeno de empresas <strong>da</strong> nossa região<br />

nos rankings <strong>da</strong>s maiores empresas<br />

do mundo . Na última delas,<br />

publica<strong>da</strong> pela Revista Forbes, entre<br />

as 2.000 maiores apenas 54 tinham<br />

sede no nosso continente.<br />

De qualquer forma o que é<br />

importante é estarmos conscientes<br />

de que os fatores culturais exercem<br />

uma forte influência sobre como as<br />

empresas são geri<strong>da</strong>s. A cultura está<br />

aí para ficar. Precisamos apreender a<br />

tirar proveito dela.<br />

Precisamos olhar para outras<br />

nações que conseguiram transformar<br />

aquilo que aparentemente eram<br />

deficiências <strong>da</strong> sua cultura em fatores<br />

alavancadores de sucesso. Há inúmeros<br />

exemplos nessa linha. A Itália é<br />

apenas um deles, com a sua vocação<br />

para a microempresa familiar basea<strong>da</strong><br />

no forte apego que os italianos<br />

têm pela família. A Itália soube aproveitar<br />

muito bem essa sua característica<br />

e desenvolveu uma forte competência<br />

em promover associações<br />

de pequenas empresas. Uni<strong>da</strong>s elas<br />

passam a ser fortes, e por isso conseguem<br />

exportar ou pesquisar inovações<br />

tecnológicas. Esse pode ser<br />

um caminho para a pequena empresa<br />

latino-americana, pois uma outra<br />

característica importante <strong>da</strong>s empresas<br />

de nossa região é que as mesmas<br />

raramente se unem para atingir um<br />

objetivo comum, a não ser que este<br />

seja pressionar o governo.<br />

Paulo Roberto Feldmann é engenheiro de produção.<br />

53


HISTÓRIA<br />

BI, CENTENáRIO<br />

e oUtros bis<br />

54<br />

Pilar Atilio<br />

existe atualmente na Argentina um acordo tácito<br />

muito fácil de ser comprovado através <strong>da</strong> mídia:<br />

considera-se importante o bicentenário, suas<br />

celebrações, sua realização, as discussões que<br />

ele suscita e o múltiplo acordo entre setores de<br />

todo tipo e a segmentação regional ou políticoideológica.<br />

Em suma, em to<strong>da</strong> a república celebra-se este Bicentenário<br />

com renovado fervor pátrio repleto de bandeiras argentinas.<br />

A disponibili<strong>da</strong>de de uma palavra como esta, respeita<strong>da</strong> por<br />

consenso, e minha condição de cinquentenária, induziram-me<br />

a permanecer atenta e a comprar, ler, escutar e comentar to<strong>da</strong>s<br />

as edições especiais de jornais, revistas, canais de televisão –<br />

especializados ou não – sobre história. Por outro lado, to<strong>da</strong>s<br />

as esferas do governo – municipais, estaduais e nacional – trabalharam<br />

em silêncio e com um bom ritmo para os grandes


FOTOs: rePrOdUÇÃO<br />

Atos do Bicentenário, celebrado durante<br />

uma semana, de 17 a 25 de maio. Pois<br />

bem, naqueles dias de maio de 1810,<br />

as inquietações começaram no dia 17,<br />

transformaram-se em pedido formal no<br />

dia 24, entregue à comissão que deliberava<br />

no Cabildo de Buenos Aires, com<br />

o povo na praça pressionando e esperando<br />

novi<strong>da</strong>des. Finalmente, o acordo<br />

é aprovado por pressão e com várias<br />

negociações em 25 de maio. Elege-se<br />

a Primeira Junta de Governo com a vitória<br />

<strong>da</strong>s ideias dos revolucionários de<br />

maio, levando em consideração o <strong>da</strong>do<br />

que não pode ser deixado de lado <strong>da</strong> prisão<br />

do rei espanhol Fernando VII, efetua<strong>da</strong><br />

por Napoleão.<br />

Embora essa primeira junta tenha<br />

sido fruto de uma escolha aprova<strong>da</strong>, foi<br />

preciso superar numerosos obstáculos,<br />

valas, restrições e incômodos, entre eles<br />

os de armar um exército e combater os<br />

espanhóis, obrigando-os progressivamente<br />

a abandonar o território. Um dos<br />

historiadores argentinos mais respeitados,<br />

Tulio Halperín Donghi – que mora nos<br />

Estados Unidos desde os anos 70 e leciona<br />

universi<strong>da</strong>de de Berkeley –, afirma que<br />

as condições dessa revolução não provinham<br />

apenas <strong>da</strong>s ideias dos combativos<br />

Mariano Moreno e Manuel Belgrano, mas<br />

tinham também um antecedente claro na<br />

resistência do povo na época <strong>da</strong>s Invasões<br />

Inglesas de 1806 e 1807. A organização<br />

doméstica tinha acabado com as pretensões<br />

de um conquistador tão poderoso<br />

quanto a frota inglesa dos primeiros anos<br />

do século XIX e evidenciou a fraqueza do<br />

vice-rei Cisneros e seus homens.<br />

Analisaremos juntos algumas palavras-chave<br />

presentes neste Bicentenário,<br />

com a intenção de aprofun<strong>da</strong>r uma<br />

55<br />

A Calle Flori<strong>da</strong> no<br />

auge de seu glamour.


análise <strong>da</strong> nossa condição atual, tanto<br />

no âmbito político quanto no cultural.<br />

A primeira palavra que merece<br />

destaque é Revolução; este termo teve<br />

várias interpretações ao longo dos anos<br />

deste bicentenário, mas sempre aludiu<br />

a um aspecto de reconstrução alentadora,<br />

um regresso às bases. A Revolução<br />

de Maio tem sido interpreta<strong>da</strong> a<br />

partir de diferentes abor<strong>da</strong>gens: como<br />

uma revolução patrícia sem conteúdo<br />

democrático ou – como afirma Roberto<br />

Marfany – “feitos realizados por um<br />

exército em linha com seus comandos<br />

naturais, cuja missão histórica continuava<br />

sendo no presente guiar os avanços<br />

<strong>da</strong> nação surgi<strong>da</strong> de sua ação nessas<br />

jorna<strong>da</strong>s”. Houve outros historiadores,<br />

sociólogos e militantes na déca<strong>da</strong><br />

de 60 e 70, que viram no antecedente<br />

local, o <strong>da</strong> Grande Revolução Socialista<br />

de Outubro, destino histórico de to<strong>da</strong><br />

a humani<strong>da</strong>de. Também é consensual<br />

o reconhecimento do gradualismo <strong>da</strong>s<br />

ações ou momentos críticos que levaram<br />

à formação de um estado como<br />

o que somos atualmente. Os outros<br />

passos seriam: a Assembleia do ano<br />

13, que legislou sobre questões como a<br />

escravidão ou a tortura; o trabalho nas<br />

regiões, cujo resultado foi a possibili<strong>da</strong>de<br />

concreta de formar uma Confederação<br />

soberana do trono <strong>da</strong> Espanha,<br />

em 1816, em San Miguel de Tucumán.<br />

Tudo isso até chegar ao estado atual de<br />

uma democracia representativa e federal,<br />

que marca o início <strong>da</strong> República<br />

Argentina em 1853.<br />

A segun<strong>da</strong> palavra à qual pretendo<br />

prestar a máxima atenção é Imprensa,<br />

o poder que tem a palavra difundi<strong>da</strong><br />

por meios impressos. Na ver<strong>da</strong>de, pela<br />

imprensa foram difundi<strong>da</strong>s ideias e palavras<br />

de ordem que despertaram no<br />

povo sentimentos libertários e acordos<br />

conjuntos. Para corroborar este fato é<br />

suficiente relatar dois acontecimentos:<br />

em 3 de março de 1810 – meses antes<br />

56<br />

<strong>da</strong> Revolução de Maio –, é fun<strong>da</strong>do o<br />

Correo de Comercio, editado por Manuel<br />

Belgrano, jovem membro proeminente<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de portenha e estimulador de<br />

diversos projetos, junto com Hipólito<br />

Vieytes. Embora os conceitos a serem<br />

difundidos estivessem restritos aos aspectos<br />

comerciais de um porto muito<br />

importante como o de Buenos Aires,<br />

outras ideias estavam presentes. E logo<br />

depois <strong>da</strong> posse <strong>da</strong> Primeira Junta, em<br />

maio de 1810, esta decreta a criação de<br />

um órgão de imprensa oficial, a Gazeta<br />

de Buenos Aires, dirigi<strong>da</strong> por Mariano<br />

Moreno, uma pluma agu<strong>da</strong> e bem<br />

forma<strong>da</strong>, junto com outros integrantes<br />

desse corpo colegiado: Gregorio Funes,<br />

Juan José Agrelo e Bernardo de<br />

Monteagudo.<br />

“Tempos de felici<strong>da</strong>de, aqueles<br />

nos quais se pode sentir o que se deseja<br />

e é lícito dizê-lo”. A frase corresponde<br />

ao historiador romano Cornélio Tácito<br />

e foi repeti<strong>da</strong> em to<strong>da</strong>s as edições, junto<br />

com um esclarecimento no qual se explicitava<br />

que as ideias e opiniões contrárias<br />

à causa não seriam publica<strong>da</strong>s.<br />

A terceira palavra que atravessa<br />

nosso Bicentenário e é uma característica<br />

constante <strong>da</strong> nossa história, é Fúria.<br />

Segundo o historiador argentino Miguel<br />

Wizñaki: “O poder, uma forma de administrar<br />

a fúria” ou aquilo que se experimenta<br />

ao transformar o temor em<br />

fúria. Fúria e também sanha para o que<br />

pode ser lido como “decidir em situação<br />

de poder a quem é conveniente odiar”,<br />

fustigar, usar golpes baixos ou man<strong>da</strong>r à<br />

morte. Essa fúria de base tem características<br />

especiais, é patrícia, conservadora<br />

e militarista, sempre segundo Wizñaky.<br />

No trecho do livro Facundo, civilización o<br />

barbarie, de Domingo Faustino Sarmiento,<br />

narra-se a história que levou à criação<br />

do apelido “Tigre <strong>da</strong>s planícies” do<br />

caudilho de La Rioja, morto em 1835.<br />

Temos a quarta palavra-chave:<br />

Crise. Defini<strong>da</strong> como um sistema de


mu<strong>da</strong>nças em qualquer aspecto de uma<br />

reali<strong>da</strong>de organiza<strong>da</strong>, porém instável e<br />

sujeita a evolução; este sistema contou<br />

com notáveis intervenções de homens<br />

e mulheres, políticos e intelectuais que<br />

desempenharam o papel de pares antagônicos<br />

em diferentes momentos. Juan<br />

Lavalle (1797-1841) unitário, mandou<br />

fuzilar Manuel Dorrego depois de derrubá-lo;<br />

por sua vez, foi inimigo cabal<br />

de Juan Manuel de Rosas (1793-1877),<br />

que em 1835 consegue fazer com que<br />

a Legislatura o eleja Governador com<br />

a soma do poder público, mas que tinha<br />

sido vencido pelo general Urquiza<br />

na batalha de Caseros. Rosas, exilado e<br />

morto anos depois longe de sua pátria,<br />

teve de esperar a mitigação do ódio para<br />

regressar ao país muito tempo mais tarde.<br />

O Pai <strong>da</strong> Pátria, José de San Martín,<br />

também teve de partir para o exílio para<br />

“não derramar sangue de irmãos” e ser<br />

repatriado em outros tempos para ocupar<br />

o lugar que lhe corresponde como<br />

Libertador de <strong>América</strong>. E que podemos<br />

dizer sobre a fúria exerci<strong>da</strong> sobre<br />

o corpo mumificado de Eva Perón, que<br />

passou por um itinerário digno de um<br />

romance para retornar ao país depois<br />

de muitos desvelos e desocultamentos.<br />

Crises políticas associa<strong>da</strong>s a revoluções,<br />

com personagens antagônicos agindo<br />

com fúria com as pessoas ou com os<br />

corpos ou com a memória.<br />

Em 1880, já constituídos como<br />

Nação Argentina com Carta Magna e<br />

reconhecimento internacional, começa<br />

uma enorme produção de escritores,<br />

intelectuais e cientistas que mu<strong>da</strong>rão a<br />

agen<strong>da</strong> dos temas e mo<strong>da</strong>s que atravessam<br />

os discursos até 1910, ano do Centenário,<br />

que depois analisaremos. No<br />

grupo de seletos positivistas estavam<br />

José Ramos Mejía e José Ingenieros. E<br />

entre os modernistas, influenciados pela<br />

poesia do nicaraguense Rubén Darío,<br />

potencializava-se a pergunta referente à<br />

identi<strong>da</strong>de nacional. Esta questão com-<br />

põe outro forte par de opostos antagônicos<br />

que estão presentes na história:<br />

identi<strong>da</strong>de nacional versus influências<br />

europeizantes, como as apoia<strong>da</strong>s por<br />

Domingo Faustino Sarmiento.<br />

No entanto, <strong>da</strong>s crises saíram bons<br />

projetos que se materializaram muito antes<br />

que no resto <strong>da</strong> <strong>América</strong>. A Lei <strong>da</strong><br />

Educação Comum, ensino primário gratuito,<br />

gradual e obrigatório para crianças<br />

de 6 a 14 anos, foi concebi<strong>da</strong> em 1884<br />

para integrar os imigrantes e, embora<br />

tenha sofrido a resistência <strong>da</strong> educação<br />

religiosa, representou uma <strong>da</strong>s bases do<br />

nosso capital de progresso. Em 1918 foi<br />

realiza<strong>da</strong> a Reforma Universitária promovi<strong>da</strong><br />

por alunos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Córdoba,<br />

que dirimia o novo papel <strong>da</strong> Igreja<br />

na educação, a renovação dos programas<br />

de estudo e mu<strong>da</strong>nças no governo <strong>da</strong>s<br />

facul<strong>da</strong>des, com maior participação dos<br />

alunos na toma<strong>da</strong> de decisões.<br />

A To<strong>da</strong> Orquestra II,<br />

obra do artista plástico<br />

argentino Carlos<br />

Gallardo.<br />

57


A imigração revolucionou o campo<br />

do trabalho, introduzindo as palavras<br />

de ordem de salário digno nos<br />

sindicatos, e deu origem a algumas <strong>da</strong>s<br />

mais sangrentas repressões, como a<br />

<strong>da</strong> Semana Trágica, na qual morreram<br />

muitos trabalhadores dos Talleres Metalúrgicos<br />

Vasena. A de 1921, quando<br />

os operários de Santa Cruz protestavam<br />

pelas condições de trabalho e as demissões<br />

<strong>da</strong> indústria <strong>da</strong> lã, terminou com<br />

mil e quinhentos trabalhadores assassinados,<br />

no episódio que ficou conhecido<br />

como Patagônia Trágica, imortaliza<strong>da</strong><br />

pela pena do escritor Osvaldo Bayer e<br />

base do filme dirigido por Héctor Olivera<br />

em 1974. Esta situação de morte,<br />

supressão, invisibili<strong>da</strong>de, que afetou<br />

desde os povos originários até a entrega<br />

para o sacrifício de mulheres, crianças,<br />

trabalhadores e estu<strong>da</strong>ntes, apoia<strong>da</strong><br />

por grupos que pretendiam mol<strong>da</strong>r a<br />

república às suas ideias, avassalando o<br />

poder político e usando a força <strong>da</strong>s armas<br />

e os militares, constata-se nos primeiros<br />

cem anos e repete-se a seguir.<br />

Fuzilamentos, desaparecimentos, ódios<br />

e perseguições várias desgarram as entranhas<br />

argentinas do século XX desde<br />

aqueles acontecimentos até os presos<br />

desaparecidos dos anos 70 e primeiros<br />

anos dos 80. Assim como golpes de estado,<br />

revoluções que derrocam governos,<br />

bombardeios de civis e proscrição<br />

de peronistas, ain<strong>da</strong> há gente nas ruas<br />

manifestando sua posição com cartazes<br />

que explicitam suas ideias. Isto também<br />

nos distingue: continuamos mobilizados<br />

e usando as ruas como bandeira de<br />

várias palavras de ordem.<br />

Há algum tempo, um dos consensos<br />

que capitalizamos dessas penas,<br />

tal como afirmam lúcidos intelectuais<br />

como Beatriz Sarlo e Horacio González,<br />

é o seguinte: não há consenso para um<br />

regresso <strong>da</strong>s forças arma<strong>da</strong>s ao poder,<br />

há uma opção pelo sistema democrático<br />

representativo, embora sejam conheci-<br />

58<br />

<strong>da</strong>s suas fissuras e más práticas. O percurso<br />

pelas nossas crises, e sobretudo<br />

o efeito <strong>da</strong> última, de 2001, nos fazem<br />

lembrar que queremos que ocorram<br />

dentro do sistema democrático, com os<br />

mecanismos próprios do sistema e com<br />

o cumprimento <strong>da</strong> lei.<br />

Mas vamos incluir uma nova palavra<br />

nessa descrição breve e sucinta<br />

que estamos tentando fazer. Vamos falar<br />

de celebrações, pois sem dúvi<strong>da</strong> um<br />

Bicentenário traz consigo a ideia de festa,<br />

os faustos de uma <strong>da</strong>ta importante<br />

para a Nação.<br />

O Teatro Colón viveu sua reabertura<br />

(ver página 18). A ci<strong>da</strong>de também<br />

montou, perto do teatro na Plaza Lavalle,<br />

uma instalação de Carlos Gallardo,<br />

para homenagear o artista falecido<br />

em 2008. A obra, denomina<strong>da</strong> A To<strong>da</strong><br />

Orquesta II, é uma orquestra virtual, simbólica,<br />

com 36 atris metálicos em cujas<br />

bandejas há retângulos de diferentes<br />

tipos de gramas em vez de partituras.<br />

Mas não faltaram no país problemas no<br />

tocante a quais seriam os personagens<br />

<strong>da</strong> história. Em um ato escolar, uma<br />

professora primária de uma ci<strong>da</strong>de do<br />

interior considerou personagens importantes<br />

do Bicentenário tanto Mirtha Legrand<br />

(atriz de televisão), como Leopoldo<br />

Fortunato Galtieri, um dos ditadores<br />

que declarou a Guerra <strong>da</strong>s Malvinas e<br />

levou as forças arma<strong>da</strong>s à sua pior derrota,<br />

junto com milhares de inocentes.<br />

Das celebrações em todo o país, as que<br />

passarão à história foram as que ocorreram<br />

nos locais históricos de Buenos<br />

Aires: o desfile temático de 25 de maio,<br />

um espetáculo sobre a Argentina, com<br />

os povos originários unidos por uma orquestra<br />

multiétnica, a representação <strong>da</strong><br />

imigração, o tango, o folclore e outros<br />

símbolos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de argentina.<br />

Pilar Atilio é argentina, historiadora, professora<br />

e pesquisadora de arte.


FOTO: divUlgaÇÃO - FliP<br />

FLIP<br />

LITERATURA<br />

PUlsa em Paraty<br />

Leonor Amarante<br />

com personagens tão díspares quanto o resultado<br />

do encontro, a 8ª Festa Literária<br />

Internacional de Paraty tomou como<br />

ponto de parti<strong>da</strong> um Brasil multifacetado<br />

para promover os debates sobre Gilberto<br />

Freyre, o homenageado <strong>da</strong> edição. Coube<br />

a Fernando Henrique Cardoso <strong>da</strong>r início às reflexões,<br />

com o apoio do também sociólogo Luiz Felipe Alencastro.<br />

Em sua primeira edição, em 2003, a Flip convidou mais escritores<br />

que personali<strong>da</strong>des de outras áreas. Era de fato uma<br />

feira literária. Hoje, tornou-se também palco de outros interesses,<br />

em que todos segmentos convergem. O evento<br />

59


O indiano Salman<br />

Rushdie, o alemão<br />

Berthold Zilly; os<br />

americanos Gilbert<br />

Shelton e Robert<br />

Crumb; os irlandeses<br />

William Kennedy, à<br />

esquer<strong>da</strong>, e Colum<br />

McCann.<br />

aposta na diversi<strong>da</strong>de de culturas e de<br />

interesses para manter a chama do mais<br />

ba<strong>da</strong>lado encontro literário do País.<br />

Foram colocados no mesmo caldeirão<br />

a combativa iraniana Azar Nafisi<br />

e a frágil irlandesa Pauline Melville, o<br />

sério teórico marxista Terry Eagleton e<br />

a patricinha cubana Wendy Guerra. O<br />

irriquieto iraniano Salman Rushdie, que<br />

voltou à Paraty para lançar seu último<br />

Luka e o Fogo <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>, teve de conviver<br />

com Terry Eagleton, crítico inglês, que<br />

o chamou de direitista. “Ele é um covarde”,<br />

resmungou Rushdie.<br />

Mas, entre todos os contrários,<br />

quem roubou a cena foram mesmo a<br />

chilena Isabel Allende, que arrastou uma<br />

legião de fãs, além do desbocado e irreverente<br />

Robert Crumb. O norte-americano<br />

autor do famoso gato Fritz se destaca<br />

dos demais. Ele debochou de tudo<br />

e de todos, xingou as ruas de Paraty pavimenta<strong>da</strong>s<br />

com pedras enormes, irregulares,<br />

<strong>da</strong>ta<strong>da</strong>s do período colonial. Aos<br />

67 anos, mas com aparência de quase 80,<br />

o mito <strong>da</strong> geração beatnik, símbolo <strong>da</strong><br />

contracultura nos anos 1960, continua<br />

autêntico. Segue um ferrenho agnóstico<br />

que verteu, com um viés cortante, o<br />

Gênesis 2009, a<strong>da</strong>ptação para quadrinhos<br />

60<br />

do mais antigo livro <strong>da</strong> Bíblia. Ele foi<br />

a azeitona no pastel <strong>da</strong> Flip, animou a<br />

festa com suas tira<strong>da</strong>s diverti<strong>da</strong>s sobre<br />

governos, bares, porres e trabalho. Ele<br />

reinventou Kafka, Charles Bukowski em<br />

situações perturbadoras e lançou na Flip<br />

Meus Problemas com as Mulheres.<br />

O destino de Sakineh Moahammadie<br />

Ashtiani, iraniana condena<strong>da</strong> a<br />

morrer apedreja<strong>da</strong> por suposto adultério,<br />

também foi tema de discussão em algumas<br />

mesas. Salman Rusdie acha que é importante<br />

outras nações aju<strong>da</strong>rem o Irã a<br />

colocar em prática os direitos humanos,<br />

e não condenou diretamente a participação<br />

de Lula nesse aspecto. No entanto,<br />

Azar Safisi levantou o tom, foi mais áci<strong>da</strong>,<br />

e sugeriu que o presidente brasileiro<br />

desse asilo ao presidente iraniano Mahmoud<br />

Ahmadimejad.<br />

O advento do livro eletrônico também<br />

foi discutido. O historiador Peter<br />

Burke disse não acreditar que no futuro<br />

as pessoas leiam Guerra e Paz impresso<br />

em papel, ao que John Makinson, executivo<br />

<strong>da</strong> editora Penguin, rebateu e afirmou<br />

que é absurdo dizer que os livros<br />

estão morrendo. “Nos próximos anos<br />

serão publicados mais de milhão de novos<br />

títulos impressos em todo o mundo.”<br />

FOTOs: divUlgaÇÃO - FliP


FOTO: divUlgaÇÃO - FliP<br />

isabel allende<br />

POLêMICA E FRANCA<br />

“...Em meus quarenta anos,<br />

eu, Zarité Sedella, tive mais sorte que<br />

outras escravas. Vou viver muito e<br />

minha velhice será boa porque minha<br />

estrela - minha z´etoile - brilha até em<br />

noites nubla<strong>da</strong>s. Conheço a satisfação<br />

com o homem escolhido por meu coração<br />

quando suas mãos grandes despertam<br />

minha pele...”<br />

Acima, fragmento do livro A Ilha<br />

Sob o Mar de Isabel Allende,<br />

lançado na 8 a Flip.<br />

REVISTA NOSSA AMÉRICA – Você iniciou<br />

sua vi<strong>da</strong> na literatura por meio do jornalismo.<br />

O que fez com que abandonasse as re<strong>da</strong>ções para se<br />

dedicar somente à literatura?<br />

ISABEL ALLENDE – Deixei o jornalismo<br />

porque eu era péssima profissional, inventava<br />

muita coisa para melhorar a matéria.<br />

R.N.A. – Quando você decidiu escrever para valer?<br />

I.A. – Com a ditadura de Augusto Pinochet,<br />

por uma questão de sobrevivência,<br />

eu saí do Chile. Esse período marcou fortemente<br />

minha vi<strong>da</strong> pessoal e profissional.<br />

Interferiu na minha forma de pensar, de ver<br />

o mundo e, é claro, de escrever. Não é por<br />

acaso que o binômio “poder e justiça” é recorrente<br />

em meus livros.<br />

R.N.A. – Você é uma <strong>da</strong>s raras escritoras latinoamericanas<br />

best-sellers, com 18 livros publicados<br />

em mais de 30 idiomas e uma legião de fãs de fazer<br />

inveja a qualquer escritor. Por que ain<strong>da</strong> há preconceitos<br />

no Chile contra sua obra?<br />

I.A. – Os chilenos não gostam de quem vende<br />

livro, preferem os que ficam à margem.<br />

Depois há o fato de eu ser mulher.<br />

R.N.A. – Quer dizer que autores como Fernando<br />

Bolaños não gostam de seus livros?<br />

I.A. – Não só não gostam como odeiam.<br />

Todos os escritores chilenos odeiam meus livros.<br />

Nos Estados Unidos e na Europa não é<br />

pecado vender livros. No Chile, sim. Se você<br />

vende livros, seus colegas vão execrá-lo.<br />

R.N.A. – Você veio ao Brasil para lançar a versão<br />

em português de seu último livro, A Ilha Sob<br />

o Mar. Como você chegou à personagem central,<br />

uma escrava negra?<br />

I.A. – O livro tem a ver com o deslocamento<br />

de minha família para os Estados<br />

Unidos. É uma história ambienta<strong>da</strong> em<br />

Santo Domingo, no século XVIII, e conta<br />

a história de Zarité, escrava mulata em sua<br />

luta para conquistar a liber<strong>da</strong>de.<br />

R.N.A. – Você veio ao festival acompanha<strong>da</strong> de seu<br />

marido, o escritor americano William Gordon. Como<br />

é conviver com um parceiro que também escreve?<br />

I.A. – Ele veio à Flip para lançar The Ugly<br />

Dwarf, um romance de intrigas policiais.<br />

Na hora em que estamos trabalhando,<br />

quando um emperra o outro aju<strong>da</strong>.<br />

61


CURTAS<br />

CResCe investimento em teCnologia<br />

na améRiCa latina<br />

2<br />

Em 2010, o mercado de<br />

tecnologia deve investir na<br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> 5,1% a mais<br />

que no ano passado, segundo<br />

estudo divulgado pela International<br />

Data Corporation (IDC).<br />

O crescimento, no entanto,<br />

ocorre em um cenário de que<strong>da</strong><br />

provoca<strong>da</strong> pelos reflexos <strong>da</strong><br />

crise mundial, que retraiu os<br />

gastos <strong>da</strong>s empresas em 7,5%.<br />

O estudo trimestral realizado pela IDC – Worldwide Black<br />

Book – aponta também que na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> a que<strong>da</strong> dos<br />

gastos na área de tecnologia foi ain<strong>da</strong> maior no ano passado,<br />

chegando a 9%. Segundo o levantamento, “o principal motivo<br />

foi a diminuição dos investimentos feitos por México e<br />

Brasil, que em conjunto representam pouco mais de 65% do<br />

total empregado na região”. O aumento dos investimentos na<br />

região, aponta a IDC, deve vir <strong>da</strong> reativação de projetos de TI<br />

– Tecnologia de Informação –, que ficaram parados em 2009,<br />

e <strong>da</strong>s boas expectativas de consumo em massa em 2010.<br />

62<br />

Relações Reata<strong>da</strong>s.<br />

até quando?<br />

Colômbia e Venezuela reataram relações, depois de uma<br />

reunião a portas fecha<strong>da</strong>s que durou quase quatro horas.<br />

Chegaram a um acordo. E Juan Manuel Santos, presidente<br />

colombiano recém-empossado, retirou do Tribunal Penal<br />

Internacional a solicitação, feita por seu antecessor Álvaro<br />

Uribe, para investigar a presença na Venezuela de acampamentos<br />

e terroristas <strong>da</strong>s Forças Arma<strong>da</strong>s Revolucionárias<br />

<strong>da</strong> Colômbia. Por declarações anteriores do próprio Santos,<br />

uma aproximação assim seria bastante improvável. Com o<br />

desfecho, um, ou o outro, ou os dois recuaram. O que já era<br />

esperado, já que os prejuízos econômicos com o rompimento<br />

eram grandes. Os negócios bilaterais entre os dois<br />

países despencaram: 7 bilhões de dólares em 2009, para 1<br />

bilhão no início de 2010.<br />

ResistênCia louva<strong>da</strong>:<br />

mujiCa ganha PRêmio<br />

1<br />

3<br />

Mónica González Mujica,<br />

jornalista chilena que foi<br />

presa e tortura<strong>da</strong> durante<br />

a ditadura de Augusto<br />

Pinochet (1973-1990),<br />

ganhou o Prêmio Mundial<br />

Guillermo Cano de<br />

Liber<strong>da</strong>de de Imprensa,<br />

outorgado pela Unesco.<br />

“Ao longo de to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> profissional, ela deu provas de<br />

valor e mostrou o lado obscuro do Chile”, comentou em um<br />

comunicado <strong>da</strong> Unesco Joe Thloloe, presidente do júri e ombudsman<br />

do Conselho de Imprensa <strong>da</strong> África do Sul. “Tratase<br />

de uma mulher forte. Presa, tortura<strong>da</strong> e processa<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong><br />

assim continuou firme”, disse. Irina Bokova, diretora geral <strong>da</strong><br />

Unesco, fez a entrega do prêmio no Dia Mundial <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de<br />

de Imprensa, no início de maio, em uma conferência<br />

realiza<strong>da</strong> em Brisbane, na Austrália, informou a Organização<br />

<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para a Educação, a Ciência e a Cultura.<br />

Nasci<strong>da</strong> em 1949, González ficou quatro anos exila<strong>da</strong> depois<br />

do golpe militar de 1973.<br />

FOTOs: rePrOdUÇÃO


FOTOs: rePrOdUÇÃO<br />

4<br />

Casa <strong>da</strong> améRiCa latina<br />

A Casa <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

cria<strong>da</strong> em 1998 em<br />

Portugal, acaba de inaugurar<br />

a Aleph, uma emissora<br />

de rádio com conteúdo<br />

dedicado à atuali<strong>da</strong>de<br />

latino-americana, com<br />

relatos de experiências<br />

e projetos de relevo envolvendo<br />

o eixo. Com gravações abertas e feitas na própria<br />

CAL, os programas são transmitidos a ca<strong>da</strong> quinze dias, aos<br />

domingos, sempre entre 10 e 11h na Rádio CSB – Comunicação<br />

Sem Barreiras(105.4 Mhz). A Casa <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

é uma associação sem fins lucrativos e de direito privado,<br />

constituí<strong>da</strong> pelo Município de Lisboa, pelo Ministério dos<br />

Negócios Estrangeiros e pelas embaixa<strong>da</strong>s dos países latinoamericanos,<br />

além de um conjunto de empresas.<br />

6 7<br />

PoRtuguês PaRa estRangeiRos FeiRa de FRankFuRt<br />

A crescente exposição do Brasil na mídia internacional está<br />

gerando o crescimento do contingente de estrangeiros que<br />

estu<strong>da</strong>m o português do Brasil. O interesse que antes era<br />

gerado apenas pela música e pelo esporte, ganhou força com<br />

a presença relevante do Brasil entre os chamados Bric’s –<br />

Brasil, Rússia, Índia e China –, países com taxas de crescimento<br />

econômico acima <strong>da</strong> média mundial, com modelos de<br />

gestão macroeconômica.<br />

eça de queiRoz,<br />

um diPlomata<br />

em havana<br />

5<br />

Nem todos sabem, mas o célebre romancista português<br />

Eça de Queiroz viveu um tempo em Cuba. Chegou em<br />

dezembro de 1872; era o novo Cônsul. Segundo consta,<br />

ele se assustou não só com o clima dos trópicos, mas com<br />

a socie<strong>da</strong>de escravagista decadente que encontrou. Lopes<br />

de Oliveira em seu relato “Eça de Queiroz, a sua vi<strong>da</strong> e<br />

a sua obra”, explica que “em Cuba existiam mais de cem<br />

mil colonos asiáticos, que, tendo emigrado pelo porto de<br />

Macau, encontravam-se, como os portugueses”, sob proteção<br />

de seu consulado. Porém, as condições legais eram<br />

ignora<strong>da</strong>s e todos viviam como ver<strong>da</strong>deiros escravos. Eça<br />

decidiu então lutar: em nome do prestígio de Portugal e<br />

<strong>da</strong> própria causa humanitária. Encontrou oposição dos<br />

fazendeiros e do próprio governo. Porém não desistiu. A<br />

batalha foi difícil, mas bem-sucedi<strong>da</strong>.<br />

A Feira do Livro de<br />

Frankfurt vai abrir,<br />

provavelmente ain<strong>da</strong><br />

em 2010, um escritório<br />

no Brasil, para<br />

intermediar as relações<br />

com editores e<br />

escritores do Brasil<br />

e <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Realiza<strong>da</strong> desde<br />

1949, em Frankfurt<br />

AM Maim, na Alemanha, a Frankfurter Buchmesse, é o<br />

maior encontro mundial do setor editorial. Promovi<strong>da</strong> pela<br />

Börsenverein des Deutschen Buchhandels (Associação do<br />

Comércio de Livro Alemão), atrai anualmente mais de 7.000<br />

expositores e 280.000 visitantes.<br />

A internacionalização <strong>da</strong> feira começou já na edição de<br />

1950 quando reuniu em torno de cem editoras estrangeiras.<br />

Três anos mais tarde, já eram exatos 534, maior do que o de<br />

editoras alemãs – 524. Uma <strong>da</strong>s iniciativas que contribuiu<br />

para atrair o setor do mundo todo foi instituir uma homenagem<br />

a um país ou a uma região, como a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, a<br />

primeira a ganhar destaque, em 1976.<br />

63


DA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AG<br />

AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGEND<br />

memorial exPõe braUn-veGa<br />

Na pintura contemporânea há um lugar<br />

garantido para Braun-Vega, peruano residente<br />

em Paris. Seu discurso visual propõe<br />

a intervenção em obras de artistas<br />

consagrados ao introduzir-lhes novos<br />

personagens. Em Déjeuner sur I’Herbe, de<br />

Manet, impressionista francês, colocou<br />

Picasso acompanhado de Velásquez.<br />

Em a Lição de Anatomia, de Rembrandt,<br />

optou por uma inusita<strong>da</strong> cena política.<br />

Retrata um grupo de “notáveis” junto ao<br />

cadáver de um mendigo, assassinado por<br />

64<br />

ter roubado um casaco, naquele rigoroso<br />

inverno de 1631. A intenção desses supostos<br />

“homens de bem” era perpetuar<br />

em pintura o castigo, para que servisse de<br />

lição aos futuros ladrões <strong>da</strong> aldeia. Este<br />

e dezenas de outros trabalhos estarão na<br />

mostra que faz parte do projeto <strong>da</strong> 29ª<br />

Bienal e <strong>da</strong> Expo Peru 2010 e ocorrerá<br />

na Galeria Marta Traba, do <strong>Memorial</strong>,<br />

com abertura no dia 28 de outubro às<br />

19h30, seguido de bate-papo com o artista.<br />

A mostra vai até 28 de novembro.<br />

a Festa arGentina<br />

Como parte <strong>da</strong>s comemorações do bicentenário<br />

<strong>da</strong> independência argentina, o<br />

Consulado Geral <strong>da</strong> Argentina trouxe a<br />

São Paulo o show de tango <strong>da</strong> casa Esquina<br />

Carlos Gardel. O espetáculo que<br />

atraiu os paulistanos ao Auditório Simón<br />

Bolívar é considerado uma <strong>da</strong>s mais tradicionais<br />

atrações portenhas, conheci<strong>da</strong><br />

internacionalmente por seu corpo de<br />

<strong>da</strong>nça e pela casa de shows que mantém<br />

um restaurante de comi<strong>da</strong>s típicas.


ENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA<br />

A AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGEN<br />

FOTOs: rePrOdUÇÃO<br />

el día del s-Pñol<br />

Setenta e três ci<strong>da</strong>des de 56 países comemoram<br />

o Dia do Espanhol, que festeja<br />

uma <strong>da</strong>s línguas mais fala<strong>da</strong>s no mundo.<br />

São Paulo entrou no circuito. Pela segun<strong>da</strong><br />

vez realiza a festa, cujas dimensões<br />

crescem, já que de um evento pequeno,<br />

promovido pelo Instituto Cervantes em<br />

suas dependências, transforma-se em<br />

uma grande celebração no <strong>Memorial</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Das 10h <strong>da</strong> manhã<br />

à meia-noite, as apresentações de música,<br />

de folclore, teatro, debates, oficinas e<br />

feira gastronômica atraiu o público estimado<br />

em milhares de pessoas dispostas<br />

a apreciar a riqueza <strong>da</strong> cultura espanhola.<br />

Várias instituições e empresas, como o<br />

Centro Cultural Espanhol, os consulados<br />

do México, Uruguai e Peru, o Banco Santander<br />

e a Telefônica apoiaram o evento,<br />

que promete fazer parte do calendário<br />

cultural de São Paulo.<br />

Padre vieira 400 anos<br />

Escritor, sacerdote, educador e político,<br />

ca<strong>da</strong> faceta de Padre Antonio Vieira<br />

foi analisa<strong>da</strong> por especialistas durante<br />

o colóquio realizado no <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e desenvolvido pelo<br />

Centro de Estudos Fernando Pessoa. A<br />

presença de dezenas de escritores e professores<br />

interessados no estudo <strong>da</strong> obra<br />

e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Vieira atesta a importância<br />

que o autor dos Sermões e <strong>da</strong>s Cartas tem<br />

para a cultura luso-brasileira. O encontro,<br />

como sempre ocorre com eventos<br />

do gênero realizados pelo <strong>Memorial</strong>,<br />

foi condensado no livro, já lançado, 400<br />

Anos do Padre Vieira – “Imperador <strong>da</strong> Língua<br />

Portugues”, sob coordenação do jornalista<br />

e também escritor João Alves <strong>da</strong>s<br />

Neves. Um elenco de historiadores, do<br />

Brasil e de Portugal, focaliza os vários<br />

aspectos <strong>da</strong> produção<br />

de Vieira, que é considerado<br />

um grande<br />

prosador e chamado<br />

de “O Imperador <strong>da</strong><br />

Língua Portuguesa”.<br />

Entre eles estão Hernanni<br />

Donato, Tereza<br />

Rita Lopes, Carlos<br />

Francisco Moura,<br />

Eduardo Navarro,<br />

Maria Beatriz Rosário<br />

Alcântara e Raul<br />

Francisco Moura,<br />

que abor<strong>da</strong>m temas<br />

como “A Inconstância <strong>da</strong> Alma Selvagem<br />

do Sermão do Espírito Santo” e<br />

“Padre Antonio Vieira, Defensor dos<br />

Índios e dos Escravos Africanos”.<br />

65


66<br />

OVERTURA FATAL<br />

POESIA<br />

Iniciación en brujería y versión latina del milagro<br />

(bienvenidos al show aplau<strong>da</strong>n más fuerte)<br />

/mi quimera Fabiola negra la pauta gaita<br />

melódica serpiente de fuego a secas<br />

en su cuerpo entra<strong>da</strong>/<br />

:se fue al varón y no foreció<br />

mi quimera quiera Fabiola mar de cantos de paganos<br />

y ojos a porro y ventana a puertas<br />

a las jaulas que aprisionan su sangre<br />

de la sombra el hombro fera libertad el sacrilegio<br />

pero no torno<br />

que comienza el amor en el mar juraba<br />

que la lluvia lesbia no es más lángui<strong>da</strong><br />

que el agua<br />

es la lejanía<br />

entre la tiniebla y su sombra<br />

a los alientos de tu noche en vela a los baladros<br />

Tan civilizados estos tipos<br />

me dijiste<br />

de la ciénaga del mundo duros hermanos<br />

de Asia furiosos lobos incendiarios<br />

contra Corinto el verbo confrma trémulo por Cristo<br />

que de la traición Eva sola se salva<br />

y soñar con piernas que se quiebran en los dientes<br />

Wingston González é um jovem poeta guatemalteco de apenas 24 anos, com uma trajetória<br />

ain<strong>da</strong> curta, mas internacional. Participou, entre outros, do I Festival de Poemas “Arquimedes<br />

Cruz”, em El Salvador em 2006 e no IV Encontro Internacional de Poesia “El Turno del<br />

Ofendido”, também, em El Salvador, em 2007.

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