David Safier Maldito Karma - Planeta
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<strong>David</strong> Safi er<br />
<strong>Maldito</strong> <strong>Karma</strong><br />
Tradução<br />
Artur Costa e Emília Ferreira
Booket é uma chancela de<br />
<strong>Planeta</strong> Manuscrito<br />
Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito<br />
1200 -242 Lisboa • Portugal<br />
Reservados todos os direitos<br />
de acordo com a legislação em vigor<br />
© 2007, 7 <strong>David</strong> Safi er<br />
© 2007, 7 Rowohlt Verlag GmbH, Reinbek bei Hamburg<br />
© 2010, <strong>Planeta</strong> Manuscrito<br />
Título original: Mieses <strong>Karma</strong><br />
Revisão: Fernanda Fonseca<br />
Paginação: Guidesign<br />
1.ª edição Booket: Junho de 2012<br />
Depósito legal n.º 345 868/12<br />
Impressão e acabamento: Printer Portuguesa<br />
isbn: 978-989-657-314-0<br />
www.planeta.pt
CAPÍTULO 1<br />
O dia da minha morte não teve graça nenhuma. E não<br />
foi só porque morri. Para ser mais exacta, isso fi cou mais<br />
ou menos em sexto lugar no ranking g dos piores momentos<br />
do dia. No quinto lugar, fi cou o instante em que Lilly olhou<br />
para mim com olhos sonhadores e me perguntou:<br />
– Mamã, por que não fi cas em casa? Hoje é o dia dos<br />
meus anos!<br />
Ao ouvir isto, veio -me à cabeça a seguinte resposta: «Se há<br />
cinco anos eu soubesse que o teu aniversário havia de coincidir<br />
um dia com a entrega dos Prémios TV, tinha tentado<br />
que nascesses antes. E de cesariana!»<br />
Mas limitei -me a responder -lhe em voz baixa:<br />
– Oh, querida, tenho tanta pena.<br />
A Lilly mordiscou com tristeza a manga do pijama e,<br />
como já não conseguia aguentar mais o seu olhar, juntei<br />
lesta a frase mágica que volta a pôr um sorriso em qualquer<br />
cara infantil por mais triste que esteja:<br />
– Queres ver a tua prenda de anos?<br />
Eu também ainda não a tinha visto. Teve de ser o Alex<br />
a tratar disso, porque eu, com tanto trabalho, há meses que<br />
não fazia compras em lugar nenhum. Também não sentia<br />
falta nenhuma. Nada me punha mais nervosa do que perder<br />
tempo na bicha do supermercado. E as coisas boas da<br />
vida, da roupa aos sapatos e produtos de cosmética, eu não<br />
precisava de comprar. As melhores marcas eram -me amavelmente<br />
oferecidas, por ser Kim Lange, a apresentadora do<br />
mais importante programa de debates televisivos da Alema-<br />
7
nha. A revista Gala incluía -me entre as «trintonas mais bem<br />
vestidas», ainda que um outro grande título da imprensa<br />
cor -de -rosa me defi nisse de modo menos lisonjeiro como<br />
uma «chata gordalhufa com ancas adiposas». Indispus -me<br />
com a revista porque eu tinha proibido a publicação de fotografi<br />
as da minha família.<br />
– Temos aqui uma senhorita linda que quer a sua prenda –<br />
gritei de dentro de casa.<br />
E do jardim chegou o som de uma resposta:<br />
– Então essa senhorita linda terá de vir aqui buscá -la!<br />
Dei a mão à minha emocionada fi lha e disse -lhe:<br />
– Vá, calça as pantufas.<br />
– Não quero calçá -las! – protestou a Lilly.<br />
– Vais fi car constipada! – avisei.<br />
Mas ela limitou -se a responder:<br />
– Mas ontem não me constipei. E também não as calcei.<br />
E, antes que eu conseguisse encontrar um argumento<br />
razoável contra essa lógica infantil cerrada e obtusa, a Lilly<br />
já se tinha lançado em corrida, descalça pelo jardim, resplandecente<br />
de orvalho.<br />
Segui -a, sentindo -me derrotada e respirando fundo. Cheirava<br />
a «daqui a nada é Primavera» e senti -me feliz pela milionésima<br />
vez, com uma mistura de perplexidade e orgulho, de<br />
poder proporcionar à minha fi lha uma fantástica casa com<br />
um enorme jardim em Potsdam, quando eu tinha sido criada<br />
num prédio de apartamentos prefabricados da Alemanha de<br />
Leste. Nesse sítio, o nosso jardim eram três simples canteiros<br />
de gerânios, amores -perfeitos e pontas de cigarros.<br />
O Alex estava à espera da Lilly ao lado de uma coelheira<br />
que ele próprio tinha construído. Com os seus trinta e três<br />
anos continuava muitíssimo atraente, como uma versão<br />
jovem de Brad Pitt, mas, por felicidade, sem o seu sedutor<br />
olhar de aborrecimento. De certeza que o seu corpo ainda<br />
me deixaria louca se as coisas tivessem corrido bem entre<br />
nós. Mas, infelizmente, nesse momento a nossa relação<br />
8
estava tão estável como a União Soviética em 1989. E tinha<br />
o mesmo futuro.<br />
O Alex sentia -se mal por estar casado com uma mulher<br />
de sucesso; e eu por ter de privar com um dono de casa<br />
frustrado, cada dia mais farto de ouvir os comentários das<br />
outras mães no parque infantil: «É mesmo maravilhoooso<br />
que um homem trate dos fi lhos em vez de andar a correr<br />
atrás do sucesso.»<br />
Por isso, as nossas conversas começavam com frequência<br />
com «interessas -te mais pelo teu trabalho do que por nós»<br />
e acabavam ainda com maior frequência com um «tem cuidado,<br />
Kim, estás quase a fazer transbordar o copo».<br />
Dantes, pelo menos, reconciliávamo -nos com facilidade<br />
na cama. Agora já há três meses que isso não acontecia.<br />
E era pena, porque as nossas relações sexuais iam de boas<br />
a excelentes, tudo dependendo de estarmos em melhor ou<br />
pior forma nesse dia. E isso deve, com certeza, querer dizer<br />
alguma coisa porque com os homens que tive antes do Alex<br />
as relações sexuais não eram do tipo de deitar foguetes.<br />
– Aqui tens a tua prenda, boneca – disse o Alex sorrindo,<br />
e apontando para o porquinho -da -índia que mordiscava na<br />
sua toca.<br />
A Lilly gritou entusiasmada:<br />
– Um porquinho -da -índia!<br />
E eu pensei, horrorizada: Um raio de uma roedora grávida!<br />
Enquanto a Lilly olhava louca de alegria para a sua nova<br />
mascote, eu agarrei o Alex pelo braço e puxei -o de lado.<br />
– Esse animal está quase a parir – disse -lhe.<br />
– Não, Kim, só está um bocadinho gordo – acalmou -me<br />
ele.<br />
– Aonde o foste desencantar?<br />
– A uma protectora dos animais – respondeu com insolência.<br />
– E por que não o compraste antes numa loja de animais?<br />
9
– Porque nesses sítios os animais estão tão desesperados<br />
como os tipos que vão ao teu programa.<br />
Toma! Isso era para me afectar e afectou. Respirei fundo,<br />
olhei para o relógio e disse com voz trémula:<br />
– Nem trinta segundos.<br />
– «Nem trinta segundos» o quê? – perguntou o Alex descon<br />
certado.<br />
– Não estiveste nem trinta segundos a falar comigo sem<br />
que tivesses de me atirar à cara o facto de hoje ir à entrega<br />
dos prémios.<br />
– Não te atirei nada à cara, Kim. Apenas questiono as<br />
tuas prioridades – replicou.<br />
Tudo aquilo me exasperava, porque eu tinha querido que<br />
ele me acompanhasse à entrega dos Prémios TV. Ao fi m e ao<br />
cabo, devia ser o melhor momento da minha carreira profi ssional.<br />
E, caramba, o meu marido devia estar ao meu lado.<br />
Mas não podia questionar as suas prioridades porque estas<br />
consistiam em organizar a festa de aniversário da Lilly.<br />
Assim sendo, disse -lhe com azedume:<br />
– E o raio da roedora está prenha!<br />
– Faz -lhe um teste de gravidez – respondeu o Alex seco e<br />
girou nos calcanhares em direcção à gaiola.<br />
Fiquei a olhar para ele, fulminando -o com o olhar<br />
enquanto ele tirava o porquinho e o punha nos braços de<br />
uma Lilly supercontente. Os dois deram -lhe dentes -de -leão<br />
para comer. Eu fi quei de parte. De certo modo, fora de jogo,<br />
o que se estava a tornar, cada vez mais, o meu lugar habitual<br />
dentro da nossa pequena família. Um sítio nada agradável.<br />
E ali, fora de jogo, não pude deixar de pensar no meu<br />
próprio teste de gravidez. Não me aparecia o período e<br />
consegui ignorá -lo durante uns seis dias, com uma energia<br />
repressiva sobre -humana. Ao sétimo, fi z um sprint t até à far-<br />
mácia, logo ao princípio da manhã, com um «merda, merda,<br />
merda» nos lábios. Comprei um teste de gravidez, regressei<br />
a casa com novo sprint, o teste caiu -me na retrete, de tão<br />
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nervosa que estava, voltei a correr à farmácia, comprei outro<br />
teste, regressei outra vez a correr, mijei em cima do tubinho<br />
e tive de esperar um minuto.<br />
Foi o minuto mais longo da minha vida.<br />
Um minuto no dentista já é longo. Um minuto de música<br />
e danças tradicionais na televisão é ainda mais comprido.<br />
Mas o minuto de que um cabrão de um teste de gravidez<br />
precisa para decidir se vai ou não marcar uma segunda<br />
linha é a mais dura prova de paciência do mundo.<br />
Embora ainda tivesse sido mais difícil ver a segunda linha.<br />
Considerei a possibilidade de abortar, mas não podia<br />
suportar a ideia. A minha amiga Nina teve de o fazer aos<br />
dezanove anos, depois das nossas férias em Itália, e eu vi<br />
o quanto sofreu com isso. Para mim era muito claro que,<br />
apesar da dureza a que estava acostumada por ser apresentadora<br />
de um programa de debate, levaria os pesos de consciência<br />
muito mais a fundo do que a Nina.<br />
Assim sendo, seguiram -se nove meses que me desconcertaram<br />
profundamente: enquanto o pânico tomava conta de mim,<br />
o Alex tratava -me com o maior carinho e estava muitíssimo<br />
expectante em relação à criatura. De certo modo, isso deixava-<br />
-me furiosa, porque me fazia sentir ainda mais mãe desnaturada.<br />
Na verdade, o processo da gravidez foi muito abstracto<br />
para mim. Via as ecografi as e sentia pontapés na barriga. Mas<br />
só em pouquíssimos e breves momentos de felicidade fui capaz<br />
de compreender que dentro de mim crescia uma pessoinha.<br />
A maior parte do tempo estava ocupada a lutar contra os<br />
enjoos e as alterações hormonais. E a assistir a aulas de preparação<br />
para o parto, nas quais tinha de «me aperceber do útero».<br />
Seis semanas antes do parto, deixei de trabalhar e, afundada<br />
no sofá de casa, formei uma ideia de como devem sentir-<br />
-se as baleias encalhadas na praia. Os dias decorriam com<br />
lentidão e, quando as águas se romperam, podia ter -me sentido<br />
aliviada por ter enfi m chegado a hora; isto se não estivesse<br />
precisamente na fi la para a caixa de um supermercado.<br />
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Deitei -me logo no chão frio, como o médico me tinha<br />
indicado que fi zesse nessa situação. À minha volta, os clientes<br />
comentavam coisas como: «não é a Kim Lange, a apresentadora<br />
do costume?», «tanto me faz, desde que abram outra caixa!» e<br />
«ainda bem que não sou eu que tenho de limpar esta porcaria».<br />
A ambulância levou quarenta e três minutos a chegar,<br />
durante os quais dei alguns autógrafos e tive de esclarecer a caixeira<br />
que se tinha criado uma falsa imagem dos apresentadores<br />
masculinos dos noticiários («não, não são todos maricas»).<br />
Ao chegar à sala de partos, começou um parto de vinte<br />
e cinco horas. A parteira incentivava -me, continuamente,<br />
no meio de dores terríveis: «Seja positiva. Dê -lhe as boas-<br />
-vindas!» E eu, desarvorada pela dor, pensei: Se sobreviver a<br />
isto, mato -te, meu ganda estupor.<br />
Pensei que morria. Sem o Alex e os seus modos tranquilizadores,<br />
era certinho que não tinha aguentado. Não parava<br />
de me dizer, com voz fi rme: «Estou contigo! Sempre!» E eu<br />
apertava -lhe a mão; com tanta força que levou semanas sem<br />
a poder mexer em condições. (As enfermeiras confessaram-<br />
-me depois que davam sempre nota aos maridos de acordo<br />
com o carinho com que tratavam as mulheres nas horas<br />
stressantes do parto. O Alex conseguiu um sensacional 9,7.<br />
A nota média era de 2,73.)<br />
Quando, depois daquele tormento, os médicos me puseram<br />
a Lilly – espremida pelo parto – em cima da barriga,<br />
todas as dores foram esquecidas. Não podia vê -la porque os<br />
médicos ainda estavam a tratar de mim. Mas sentia a sua pele<br />
suave e enrugada. E esse foi o momento mais feliz da minha<br />
vida. Agora, cinco anos depois, a Lilly estava diante de mim,<br />
no jardim, e eu não podia festejar o seu aniversário com<br />
ela porque tinha de ir a Colónia à entrega dos Prémios TV.<br />
Engoli em seco e aproximei -me, de coração apertado, da<br />
minha pequenina, que estava a pensar num nome para dar<br />
ao seu porquinho -da -índia («vai chamar -se Pipi, Peidoca ou<br />
Bárbara»). Dei -lhe um beijo e prometi -lhe:<br />
12
– Amanhã passo o dia contigo.<br />
O Alex comentou com desdém:<br />
– Se ganhares o prémio, amanhã vais passar o dia inteiro<br />
a dar entrevistas.<br />
– Então, passo a segunda -feira com a Lilly – respondi, já<br />
com a mosca.<br />
– Tens de te reunir com a direcção – contra -atacou o Alex.<br />
– Então não vou.<br />
– Sim, tá bem – disse, com um sorriso sarcástico que despertou<br />
em mim um profundo desejo de lhe enfi ar uma barra<br />
de dinamite na boca. E concluiu: – Nunca tens tempo para<br />
a miúda.<br />
Mal ouviu isto, os olhos tristes da Lilly disseram: «O papá<br />
tem razão.» E isso tocou -me na alma. Tanto que me deixou<br />
a tremer.<br />
Desconcertada, fi z -lhe uma festa no cabelo e disse -lhe:<br />
– Juro -te por tudo o que é mais sagrado que muito em<br />
breve passaremos juntas um dia fantástico.<br />
A Lilly sorriu débil. O Alex ia dizer alguma coisa, mas<br />
fulminei -o com o olhar e ele, sabiamente, pensou duas<br />
vezes. De certeza que viu nos meus olhos um vislumbre das<br />
barras de dinamite. Dei mais um abraço à Lilly, saí para o<br />
terraço 1 , entrei em casa, respirei fundo e pedi um táxi para<br />
o aeroporto. Por estas horas, ainda não suspeitava como<br />
seria difícil cumprir a promessa que tinha feito à Lilly.<br />
1 Das memórias de Casanova: na minha vida número cento e treze como<br />
formiga, um dia dirigi -me à superfície com uma companhia. Por ordem da<br />
rainha, tínhamos de fazer o reconhecimento do terreno em redor do nosso<br />
domínio. Marchávamos sob um calor abrasador, sobre umas pedras ardentes,<br />
aquecidas pelo sol, quando de repente o Sol escureceu de um modo<br />
quase apocalíptico. Os meus olhos dirigiram -se para o alto e vi a sola de<br />
uma sandália de mulher descendo imparável na nossa direcção. Foi como<br />
se o céu caísse sobre as nossas cabeças. E então pensei: Mais uma vez tenho<br />
de morrer, porque um humano não presta atenção suficiente aos seus passos.<br />
13
14<br />
CAPÍTULO 2<br />
No quarto lugar dos momentos mais miseráveis do dia<br />
fi cou a visão do meu refl exo no espelho da casa de banho do<br />
aeroporto. Não foi por, uma vez mais, comprovar que, para<br />
uma mulher de trinta e dois anos, tinha demasiadas rugas<br />
à volta dos olhos que esse momento foi miserável. Nem tão-<br />
-pouco porque o meu cabelo de palha se negara a fi car de<br />
um modo razoável (para isso já eu tinha duas horas reservadas<br />
com a minha cabeleireira Lorelai, antes da entrega dos<br />
prémios). Foi um mau momento porque perguntei a mim<br />
mesma se seria atraente aos olhos do Daniel Kohn.<br />
Esse Daniel também tinha sido nomeado para a categoria<br />
de Melhor Apresentador de Programas de Informação e<br />
era conhecido por ser um tipo moreno e escandalosamente<br />
atraente que, ao contrário da maioria dos apresentadores do<br />
país, possuía um encanto natural. O Daniel tinha perfeita<br />
consciência do efeito que causava nas mulheres e gostava de<br />
tirar partido disso. E, sempre que nos encontrávamos numa<br />
festa dos meios de comunicação, olhava -me bem fundo nos<br />
olhos e dizia: «Se me ligasses alguma, eu renunciaria a todas<br />
estas mulheres.»<br />
Como é natural, havia tanta verdade nesta frase como<br />
na afi rmação: «No Pólo Sul existem elefantes cor -de -rosa.»<br />
No entanto, uma parte de mim desejava que fosse verdade.<br />
E outra parte sonhava ganhar o Prémio TV, passar<br />
depois mesmo à frente da mesa do Daniel, com garbo e<br />
dando uma gargalhada triunfal, e, nessa noite, ter sexo selvagem<br />
com ele no hotel. Durante horas. Até o director do
hotel quase deitar a porta abaixo porque um grupo de rock<br />
instalado no quarto ao lado se tinha queixado do barulho.<br />
Contudo, a maior parte de mim odiava -me pelos pensamentos<br />
que ocorriam às duas primeiras partes. Se acabasse<br />
na cama com o Daniel era certinho a aventura chegar aos<br />
ouvidos da imprensa, o Alex pediria o divórcio e eu, mãe<br />
desnaturada, partiria decididamente o coração da minha<br />
pequena Lilly. O meu desejo de ir para a cama com o Daniel<br />
provocou -me então um tal sentimento de culpa que pensei<br />
que não iria voltar a olhar para a minha cara no espelho nos<br />
próximos vinte anos.<br />
Lavei as mãos com rapidez, saí da casa de banho do aeroporto<br />
e dirigi -me à porta de embarque. O Benedikt Carstens<br />
saudou -me com um eufórico «Hoje será o nosso dia,<br />
miúda!» enquanto me dava um valente apertão na bochecha.<br />
O Carstens, sempre impecavelmente vestido, era o meu<br />
chefe de redacção e o meu mentor. Quase, quase, o meu mestre<br />
Yoda pessoal, embora com bastante maior domínio da sintaxe.<br />
Tinha -me descoberto na emissora de rádio de Berlim, para<br />
onde fui trabalhar quando acabei o curso. A princípio, era uma<br />
simples redactora. Porém, um domingo de manhã o apresentador<br />
não apareceu. Na noite anterior, tinha saído para tomar<br />
uns copos e tinha expressado a um porteiro turco a sua teoria<br />
de que a sua mãe não era mais do que uma cadela sarnenta.<br />
Tive de ir de modo espontâneo «para o ar» para substituir<br />
esse homem que estaria indisposto durante muito tempo e,<br />
pela primeira vez na minha vida, ouvi -me a dizer: «Bom dia.<br />
São seis da manhã.» A partir desse momento, fi quei viciada.<br />
Adorava a embriaguez da adrenalina, no momento em que a<br />
luz vermelha se acendia. Tinha encontrado o meu caminho!<br />
O Carstens observou o meu trabalho durante uns meses,<br />
até que por fi m me procurou e disse:<br />
– Você tem a melhor voz que eu já ouvi. – E ofereceu -me<br />
emprego na cadeia de televisão mais espectacular da Alemanha.<br />
Ensinou -me a apresentar -me diante das câmaras.<br />
15
E revelou -me o mais importante para uma pessoa se mexer<br />
nesse mundo: como fi car com o lugar dos colegas. Nesta última<br />
área, e graças aos seus ensinamentos, consegui amadurecer<br />
até me tornar especialista, tendo fi cado conhecida na redacção<br />
como a que «vai deixando o caminho pejado de cadáveres<br />
e ainda os espezinha». Mas, se esse era o preço a pagar para<br />
poder cumprir o meu destino, eu pagava -o de bom grado.<br />
– Sim, hoje será o nosso dia – disse ao Carstens, com um<br />
sorriso preocupado.<br />
Ele olhou -me e perguntou:<br />
– Passa -se alguma coisa, miúda?<br />
Como não podia responder «quero ir para a cama com<br />
o Daniel Kohn, da concorrência», limitei -me a dizer:<br />
– Não, está tudo bem.<br />
– Não vale a pena disfarçares. Sei muito bem o que se<br />
está a passar contigo – respondeu.<br />
O pânico tomou conta de mim. Sabia do Daniel Kohn?<br />
Tinha -o visto a meter -se comigo na recepção aos média que<br />
tinha sido dada na Chancelaria? E que eu fi cara toda corada<br />
como se o Robbie Williams me tivesse chamado ao palco em<br />
pleno concerto?<br />
O Carstens sorriu.<br />
– Eu, no teu lugar, também estaria nervoso. Não é todos<br />
os dias que uma pessoa é nomeada para os Prémios TV.<br />
Por breves segundos, senti -me aliviada: afi nal, não tinha<br />
nada a ver com o Kohn. No entanto, logo a seguir tive de<br />
engolir em seco. Estava mesmo com os nervos em frangalhos,<br />
mas a minha cons ciên cia pesada em relação à Lilly tinha conseguido<br />
reprimi -lo toda a manhã. Em contrapartida, agora, o<br />
nervosismo voltava a fazer -se presente com todas as suas forças.<br />
Iria ganhar o prémio dessa noite? Iriam as câmaras fi lmar<br />
o meu sorriso de vencedora? Ou sairia apenas no jornal de<br />
domingo como a «vencida gordalhufa com ancas adiposas»?<br />
Os meus dedos aproximaram -se, nervosos, da boca, mas,<br />
no último instante, consegui evitar roer as unhas.<br />
16
*<br />
Ao chegar a Colónia, registámo -nos no Hyatt, um hotel<br />
de luxo onde fi cavam todos os nomeados para os Prémios<br />
TV da Alemanha. Assim que cheguei ao quarto, deixei -me<br />
cair na cama macia, fi z zapping g ao ritmo de uma décima de<br />
segundo por canal, fui parar aos canais pagos e perguntei-<br />
-me quem raio é que desembolsaria vinte euros para ver um<br />
fi lme porno intitulado Danço por Esperma.<br />
Decidi não desperdiçar demasiados neurónios com semelhante<br />
pergunta e ir até ao bar tomar um desses chás chineses<br />
relaxantes, com um ligeiro sabor a sopa de peixe.<br />
No bar, um pianista tocava umas baladas de Richard<br />
Claydermann, tão enjoativas que imaginei estar num saloon<br />
do Oeste Selvagem: ele a tocar as suas melodias e eu a organizar<br />
um linchamento.<br />
E, de repente, mesmo quando já estava em casa do ferreiro<br />
de Dodge City a preparar o alcatrão e as penas com a<br />
rapaziada, vi… o Daniel Kohn.<br />
Estava a fazer o check in na recepção, e eu senti a minha<br />
pulsação aumentar de ritmo. Uma parte de mim esperava<br />
que ele me visse. A outra rezava para que até viesse sentar-<br />
-se ao meu lado. Mas a maior parte de mim perguntava -se<br />
como é que poderia fazer calar de vez as outras partes, estúpidas<br />
e irritantes, que me complicavam a vida.<br />
Com efeito, o Daniel olhou para mim e sorriu. A minha<br />
parte que o tinha desejado teve um momento de alegria<br />
incontida e gritou, ao velho estilo do Fred Flinstone: Yabba<br />
Dabba Doo!<br />
O Daniel aproximou -se de mim e sentou -se à minha<br />
mesa com um cordial «olá, Kim». A parte que tinha rezado<br />
por isso agarrou a parte um e cantou em coro com ela: Oh,<br />
happy days!<br />
Quando a parte três se predispunha a protestar, as outras<br />
duas agarraram -na, amordaçaram -na e resmungaram:<br />
«Cala -me esse bico de vez, ó desmancha -prazeres!»<br />
17
– Nervosa por causa desta noite? – perguntou -me ele.<br />
Tentei disfarçar o meu nervosismo e dar uma resposta<br />
o mais fi rme possível.<br />
– Não – respondi, ao fi m de uns intermináveis segundos,<br />
e tive de admitir que essa resposta deixava muito a desejar<br />
em termos de fi rmeza.<br />
Daniel estava calmo.<br />
– Também não tens razões para isso. Vais ganhar, de certeza.<br />
Disse -o de uma forma tão encantadora que quase acreditei<br />
na sua sinceridade. Mas, claro está, ele estava fi rmemente<br />
convencido de que quem ia ganhar era ele.<br />
– Depois de teres ganho, vamos celebrar – continuou.<br />
– Muito bem, está combinado – respondi.<br />
Essa também não foi uma resposta em particular brilhante,<br />
mas ao menos tinha pronunciado quatro palavras<br />
seguidas e com sentido. Era um pequeno progresso, em termos<br />
de desenvoltura.<br />
– Também podemos celebrar se for eu a ganhar? – perguntou<br />
ele.<br />
– Claro que sim – respondi, com uma ligeira tremura na<br />
voz.<br />
– Então, aconteça o que acontecer, vai ser uma bela noitada.<br />
Daniel levantou -se com um ar deveras satisfeito (tinha<br />
conseguido o que queria) e disse:<br />
– Desculpa, mas tenho de ir andando. Tenho de ir arranjar<br />
-me.<br />
Fiquei a vê -lo afastar -se, observei o seu rabo fantástico<br />
e imaginei como fi caria no duche, debaixo de água. Só de<br />
pensar nisso, roí as unhas.<br />
– O que aconteceu às tuas unhas? Nem mesmo se passasses<br />
fome… – observou a minha estilista Lorelei, enquanto<br />
me dava uns retoques no salão de cabeleireira do hotel.<br />
Ao meu lado estava formada uma concentração de fêmeas<br />
do sector: actrizes, apresentadoras, apêndices dos famosos.<br />
18
Nenhuma delas era candidata a qualquer prémio, o seu<br />
único interesse era suplantar a concorrência no que tocava a<br />
«ver e mostrar -se». Todas me desejaram muita sorte e, como<br />
é natural, faziam -no muito sérias. Eu também lhes respondia<br />
com ar sério, ao dizer -lhes: «Estás linda», ou «Estás com<br />
um óptimo aspecto!» ou «Que exagero, o teu nariz nunca<br />
serviria de heliporto».<br />
A conversa seguiu nesse tom hipócrita. Até ao momento<br />
em que a Sandra Kölling entrou na sala.<br />
Sandra fi caria, no máximo, em quarto lugar num concurso<br />
de duplos da conhecida apresentadora Sabine Christiansen<br />
e tinha sido a minha predecessora no programa de<br />
entrevistas do horário nocturno. Eu tinha fi cado com o seu<br />
lugar porque era melhor do que ela. E porque era mais trabalhadora.<br />
E porque tinha feito um aviso discreto à direcção<br />
quanto ao seu problema com a cocaína.<br />
Todas as presentes sabiam que, a partir de então, a Sandra<br />
e eu cultivávamos uma inimizade como as que só se vêem<br />
nas séries americanas. Por isso, todas se calaram e fi caram<br />
a olhar para nós. Ficaram à espera da discussão furiosa de<br />
duas hienas repletas de ódio. E regozijavam -se com isso.<br />
A Sandra bufou:<br />
– É o cúmulo.<br />
Eu não dei resposta. Limitei -me a olhá -la fi xamente nos<br />
olhos. Durante muito tempo. Com dureza. Com frieza.<br />
A temperatura da sala baixou pelo menos quinze graus.<br />
A Sandra começou a tiritar de frio. Eu continuei a cravar-<br />
-lhe o olhar. Até que ela não aguentou mais e saiu.<br />
As mulheres recomeçaram as conversas. A Lorelei voltou<br />
a ocupar -se do meu cabelo. E a minha imagem no espelho<br />
sorriu -me, satisfeita.<br />
Quando a Lorelei acabou o seu trabalho, o meu cabelo<br />
estava perfeito e apenas um arqueólogo seria capaz de encontrar<br />
rugas nos contornos dos meus olhos, sob a maquilha-<br />
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gem. Até conseguiu ocultar as minhas unhas roídas debaixo<br />
de umas artifi ciais. Já só faltava o vestido, que tinham de me<br />
levar ao quarto. Um Versace! Estava louca de alegria com os<br />
trapinhos, que valiam mais do que um carro pequeno, e que<br />
Versace tinha feito para mim, para a gala, e, como é natural,<br />
de borla. Já o tinha experimentado numa loja de Berlim<br />
e estava bastante convencida de que nessa noite iria usar o<br />
melhor vestido do mundo: era um vermelho lindo, caía suave<br />
sobre a pele, realçava -me o peito e disfarçava -me as coxas.<br />
Que mais é que uma mulher pode pedir a um vestido?<br />
Sentei -me esperançosa no meu quarto e pensei, com<br />
orgulho, no longo caminho percorrido: de miúda de um<br />
bairro de apartamentos prefabricados, onde as pessoas pensariam<br />
com certeza que Versace era um futebolista italiano,<br />
a apresentadora de famosos programas de tertúlia que, dentro<br />
de duas horas, iria ganhar o Prémio TV, envolta num<br />
fabuloso vestido Versace, que o Daniel Kohn iria arrancar<br />
à noite, para fazer amor, selvaticamente, com ela…<br />
Naquele mesmo instante, tocou o telemóvel. Era a Lilly.<br />
Um maremoto de má consciência tomou conta de mim:<br />
a Lilly chamava -me à terra. E eu a pensar em enganar o meu<br />
marido, seu pai!<br />
A festa de anos ia de vento em popa e a Lilly contava,<br />
toda contente:<br />
– Primeiro, fi zemos corridas de sacos, depois com ovos<br />
e depois uma guerra de bolos sem bolos.<br />
– Uma guerra de bolos sem bolos? – perguntei, confusa.<br />
– Salpicámo -nos com ketchup… e com maionese… e atirámos<br />
esparguete à bolonhesa umas às outras – explicou ela.<br />
Sorri ao imaginar o fraco entusiasmo das outras mães<br />
quando fossem buscar os fi lhos.<br />
– A avó ligou para me dar os parabéns – continuou a<br />
Lilly e o sor riso desapareceu da minha cara.<br />
Há anos que tentava, por todos os meios, manter longe da<br />
família o desastre que eram os meus pais.<br />
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O inútil do meu pai tinha -nos abandonado, por causa de<br />
uma das suas muitas conquistas, quando eu era da mesma<br />
idade que a Lilly. A partir de então, a minha mãe contribuiu<br />
para o aumento anual de doze por cento das vendas de<br />
álcool do bairro. Quando se armava na «avozinha querida»<br />
costumava ser para me sacar ainda mais dinheiro do que<br />
o que já lhe enviava por mês.<br />
– E como é que estava a avó? – perguntei com algum<br />
receio, porque temia que estivesse bêbeda quando telefonara<br />
à Lilly.<br />
– Estava a balbuciar – respondeu ela, com o tom calmo<br />
de uma miúda que nunca tinha conhecido a avó num estado<br />
diferente.<br />
Procurei as palavras mais adequadas para lhe explicar a<br />
questão do balbuciar. Mas, antes mesmo de ter tempo para<br />
encontrar uma única, a Lilly gritou:<br />
– Oh, não!<br />
Fiquei sobressaltada.<br />
– Que se passa? – perguntei, inquieta, enquanto pela<br />
minha cabeça passavam de imediato uns milhares de cenários<br />
catastrófi cos.<br />
– O palerma do Nils está a queimar formigas com uma<br />
lupa 1 !<br />
A Lilly desligou de repente e eu respirei fundo; não tinha<br />
acontecido nada de mal.<br />
Fiquei cheia de saudades a pensar na miúda, e fi cou clara<br />
uma coisa: nessa noite não haveria nenhum «Daniel Kohn<br />
arranca vestidos de Versace».<br />
1 Das memórias de Casanova: as formigas têm muitos inimigos naturais:<br />
aranhas, baratas, diabretes com lupas. Ardi, como acontecia aos cristãos na<br />
antiga Roma, e morri uma segunda vez nesse dia, em que a sorte simplesmente<br />
não me sorria. O último pensamento que consegui formular no meu<br />
espírito agonizante foi: «Se alguma vez conseguir reunir suficiente bom<br />
<strong>Karma</strong> para voltar ao mundo como homem, darei pessoalmente uma valente<br />
patada no rabo de cada pirralho que me salte ao caminho com uma lupa.»<br />
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Pensei se deveria chamar o Alex ao telefone para lhe<br />
agradecer o facto de ter organizado uma festa de anos tão<br />
divertida. Mas quanto mais pensava nisso mais fi cava claro<br />
que íamos acabar a discutir outra vez.<br />
Até custava a crer que alguma vez tivéssemos sido felizes<br />
juntos.<br />
O Alex e eu tínhamo -nos conhecido numa viagem pela<br />
Europa que eu fi z quando acabei o 12.º ano. Ele viajava de<br />
mochila, eu viajava de mochila. Ele gostava de viajar pelo<br />
mundo, eu fazia -o pela minha amiga Nina. Ele gostava de<br />
Veneza, e para mim era insuportável o siroco estival, o ar<br />
pestilento dos canais e a praga de mosquitos que chegava<br />
a atingir proporções francamente bíblicas.<br />
Na minha primeira noite em Veneza, a Nina fez, na<br />
praia, o que sabia fazer melhor: deixar os italianos loucos<br />
com os seus angelicais caracóis louros. Eu, pela minha<br />
parte, empenhei -me a matar mosquitos e a perguntar a<br />
mim mesma como é que se pode ser tão idiota para se decidir<br />
construir meia cidade em cima de água. Enquanto isso,<br />
mantinha à distância os italianos impregnados de hormonas<br />
que a Nina ia caçando para mim. Um deles chamava -se Salvatore.<br />
Só tinha abotoados os dois últimos botões de baixo<br />
da camisa branca, tresandava a aft er shave barato e encarava<br />
os meus No, no! ! como um convite para enfi ar a mão<br />
por baixo da minha blusa. Defendi -me com uma bofetada<br />
e um Stronzo! ! Não sabia o que a palavra queria dizer, mas<br />
já a tinha ouvido a um gondoleiro que rejeitara, e deixou o<br />
Salvatore deveras furioso. Ameaçou que me batia se não me<br />
calasse.<br />
Não disse mais nada.<br />
Enfi ou -me a mão debaixo da blusa. Senti subir uma onda<br />
de pânico e nojo. Mas não conseguia fazer nada. Estava<br />
paralisada de medo.<br />
No momento em que ia pôr -me a mão numa mama, o<br />
Alex parou -o. Apareceu vindo do nada. Como um cavaleiro<br />
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numa história de amor – nas quais eu não acreditava graças<br />
ao meu pai. O Salvatore virou -se a ele com uma faca. Disse<br />
um disparate qualquer em italiano e, embora eu não tivesse<br />
percebido uma única palavra, a cantilena era bastante clara:<br />
se o Alex não o largasse de imediato, acabaria por se tornar o<br />
protagonista da sua própria versão de Inverno de Sangue em<br />
Veneza. O Alex, que tinha praticado jiu -jitsu durante anos,<br />
tirou -lhe a faca da mão com uma simples palmada, com tal<br />
força que o Salvatore decidiu que o melhor era ir -se embora<br />
com o rabo entre as pernas, no sentido literal da expressão.<br />
Enquanto a Nina passava a noite a perder a sua virgindade,<br />
o Alex e eu fi cámos sentados nas margens da laguna,<br />
falando e falando. Gostávamos dos mesmos fi lmes (Quanto<br />
mais Quente Melhor, Aonde Pára a Polícia, A Guerra das<br />
Estrelas), gostávamos dos mesmos livros (O Senhor dos<br />
Anéis, Catch 22 1 e da banda desenhada de Calvin e Hobbes)<br />
e odiávamos a mesma coisa (professores).<br />
Quando o Sol voltou a nascer sobre Veneza, disse -lhe:<br />
«Acho que somos almas gémeas.» E o Alex respondeu -me:<br />
«Eu não acho; tenho a certeza.»<br />
Como estávamos enganados!<br />
Voltei a guardar o telemóvel no bolso e, de repente, senti-<br />
-me só, na cama macia do meu quarto num hotel de luxo.<br />
Terrivelmente só. Este era o meu grande dia e o Alex não ia<br />
partilhá -lo comigo. E eu não queria telefonar -lhe.<br />
Era muito claro para mim: já não gostávamos um do<br />
outro. Nem sequer um bocadinho.<br />
E esse momento ocupou o lugar número três dos piores<br />
momentos do dia.<br />
1 Livro de Joseph Heller, publicado nos anos de 1960, passado durante<br />
a Segunda Guerra, e do género da série televisiva M.A.S.H. Este livro deu<br />
origem a uma expressão idiomática em inglês que se refere às situações em<br />
que, apesar de haver várias opções, todas conduzem ao fracasso. (N. dos T.)<br />
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CAPÍTULO 3<br />
Cinco minutos depois, durante os quais fi quei para ali<br />
sentada e aturdida, bateram à porta: um paquete trazia -me<br />
o vestido do Versace. Tinha chegado o grande momento:<br />
tirei -o com cuidado do embrulho, com o fi rme propósito<br />
de dar saltos de alegria. Mas as minhas pernas continuaram<br />
presas com fi rmeza ao chão. Estava em estado de choque.<br />
O vestido era azul! Raios partam! Não era para ser azul!<br />
Nem era para ser caicai! Aqueles grandes idiotas tinham-<br />
-me mandado o vestido errado.<br />
Telefonei logo à empresa:<br />
– Sou a Kim Lange. Enviaram -me o vestido errado.<br />
– Como? – perguntou uma voz do outro lado da linha.<br />
– Isso mesmo pergunto eu! – respondi com uma voz<br />
situada, sem margem para dúvidas, na frequência mais alta.<br />
– Hum… – ouvi, e esperei que, a esse som, se seguissem<br />
algumas palavras. Mas não foi isso que aconteceu.<br />
– Talvez fosse melhor deitar uma vista de olhos aos seus<br />
papéis – propus com uma voz capaz de partir um copo de<br />
cristal.<br />
– Muito bem. Vou já fazer isso – ouvi a voz dizer, num<br />
tom aborrecido.<br />
O sujeito que me atendia estava mais interessado noutras<br />
coisas: a contabilidade, ver televisão, meter o dedo no nariz.<br />
– Daqui a uma hora tenho de estar na entrega dos Prémios<br />
TV – insisti.<br />
– Prémios TV? Nunca ouvi falar disso – respondeu.