O amor na perversão: uma análise de “A professora de piano”
O amor na perversão: uma análise de “A professora de piano”
O amor na perversão: uma análise de “A professora de piano”
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O <strong>amor</strong> <strong>na</strong> <strong>perversão</strong>: <strong>uma</strong> <strong>análise</strong> <strong>de</strong> <strong>“A</strong> <strong>professora</strong> <strong>de</strong> <strong>piano”</strong><br />
Ligia Gama e Silva Furtado <strong>de</strong> Mendonça<br />
Mestranda em Pesquisa e Clínica em Psic<strong>análise</strong> da UERJ<br />
No livro Uma viagem pessoal pelo cinema Americano, Scorsese e Wilson (2004)<br />
afirmam que a sexualida<strong>de</strong> é a última fronteira a ser conquistada pelos cineastas. A<br />
perturbadora e fasci<strong>na</strong>nte perso<strong>na</strong>gem <strong>de</strong> Isabelle Huppert, em A Professora <strong>de</strong> Piano,<br />
oferece <strong>uma</strong> contribuição importante para romper esta barreira ao investigar <strong>uma</strong> das áreas<br />
mais sombrias da sexualida<strong>de</strong> h<strong>uma</strong><strong>na</strong>: o abuso da <strong>perversão</strong>, já que toda a fundamentação da<br />
sexualida<strong>de</strong> é perversa, como apontou Freud em 1905. A questão tem um pano <strong>de</strong> fundo: há<br />
mulher <strong>na</strong> estrutura perversa?<br />
Erika Kohut, <strong>de</strong> 40 anos, é <strong>uma</strong> <strong>professora</strong> especialista em Schubert do aclamado<br />
Conservatório <strong>de</strong> Vie<strong>na</strong>. Sua vida se restringe entre suas aulas e o convívio sufocante com<br />
sua mãe extremamente castradora (Annie Girardot). Erika é austera, sisuda, orgulhosa, <strong>na</strong>da<br />
afetiva (exceto com a mãe) e ríspida em seus comentários, principalmente quando os dirige<br />
aos seus alunos talentosos e esforçados. Tem um prazer genuíno em maltratá-los e <strong>de</strong>preciá-<br />
los. Sua vida social se resume a fugir da vigilância mater<strong>na</strong> para freqüentar lojas <strong>de</strong> artigos<br />
pornográficos (on<strong>de</strong> assiste a ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> sexo explícito e esfrega no rosto o esperma dos<br />
freqüentadores que lá estiveram antes <strong>de</strong>la) ou em espiar (sem pudor ou constrangimento)<br />
outros casais tendo relações sexuais. Erika não tem amigos nem n<strong>amor</strong>ado, e não parece ter<br />
interesse em vir a tê-los. No entanto, quando conhece Walter (Benoît Magimel), um jovem e<br />
sedutor rapaz, inicia-se um jogo <strong>de</strong> sedução um tanto perverso. Walter <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ter aulas com<br />
Érika, mas <strong>de</strong>ixando claro quanto às suas intenções com a <strong>professora</strong>, que se mantém<br />
inexpressiva perante as suas investidas. Ela não suporta qualquer coisa que fuja ao seu<br />
controle, por isso, a condição para se relacio<strong>na</strong>r com Walter é que ele leia <strong>uma</strong> carta on<strong>de</strong><br />
expõe por escrito os seus <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> forma minuciosa e fria, e que, <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> forma, sua mãe<br />
tem <strong>uma</strong> participação <strong>na</strong>s suas fantasias masoquistas, entrando como a “salvadora” do<br />
espancamento ao qual estaria sujeita <strong>na</strong>s mãos do rapaz.<br />
A partir <strong>de</strong>sta exposição sobre a estória que Michael Haneke propôs-se a contar, inicio<br />
a <strong>análise</strong> <strong>de</strong>ste filme com a perturbadora relação entre mãe e filha. Com Freud, apren<strong>de</strong>mos<br />
que a primeira escolha <strong>de</strong> objeto <strong>amor</strong>oso feita pela criança é a mãe. É um <strong>amor</strong> sem limites<br />
até o encontro com o pai, um outro com o qual tem que dividi-la, motivo que leva a meni<strong>na</strong> a<br />
se <strong>de</strong>svincular <strong>de</strong> sua mãe e a introduz no Complexo <strong>de</strong> Édipo propriamente dito.<br />
Todavia, não é isso que acontece <strong>na</strong> família Kohut. Erika vive um conflito com sua<br />
mãe; ao mesmo tempo em que se irrita com as suas constantes intromissões, termi<strong>na</strong> sempre
por permiti-las e perdoá-la por isso, <strong>de</strong>itando-se, ao fim <strong>de</strong> cada dia, <strong>na</strong> mesma cama que ela.<br />
Existem momentos que temos a impressão que a fase pré-edipia<strong>na</strong> não foi superada, em que<br />
mãe e filha ainda não se <strong>de</strong>scolaram, já que não houve um terceiro barrando a simbiose entre<br />
elas. Se admitirmos que a passagem pelo Édipo – mais precisamente pelo horror da castração<br />
- é <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>nte para a estruturação do sujeito, constata-se que no caso <strong>de</strong> Erika ela <strong>de</strong>ixou<br />
marcas profundas e permanentes, levando-nos a crer que seu caso se trata <strong>de</strong> algo além <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> mera <strong>perversão</strong>-polimorfa. No entanto, po<strong>de</strong>ria ser impru<strong>de</strong>nte afirmar que Erika é um<br />
raro exemplo <strong>de</strong> mulher perversa, estruturalmente falando. Não é <strong>de</strong> hoje que esbarramos<br />
com a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> isolar a <strong>perversão</strong> como <strong>uma</strong> estrutura específica, distinguindo-a da<br />
psicose e da neurose a partir do ponto <strong>de</strong> vista fenomenológico. Essa dificulda<strong>de</strong> é <strong>de</strong>vido à<br />
manifestação polimorfa-perversa da sexualida<strong>de</strong> h<strong>uma</strong><strong>na</strong>.<br />
A principal característica da <strong>perversão</strong> polimorfa é <strong>de</strong> ser um regime <strong>de</strong> gozo. Mas<br />
Freud também se refere a ela como <strong>uma</strong> predisposição a todas as perversões, como um traço<br />
universal e origi<strong>na</strong>l do ser h<strong>uma</strong>no. A <strong>perversão</strong> como estrutura clínica, só se constitui através<br />
<strong>de</strong> <strong>uma</strong> ‘tomada <strong>de</strong> posição’ frente à castração, on<strong>de</strong> ela também atua como <strong>uma</strong> <strong>de</strong>fesa; o<br />
sujeito perverso busca o não encontro com a castração, com o que falta. Freud <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>smentido ou renegação (Verleugnung) o mecanismo utilizado pelos perversos perante o<br />
horror da castração, on<strong>de</strong> a percepção da castração mater<strong>na</strong> é negada. De acordo com Alberti<br />
(2005), o perverso recusa reconhecer “que falta alg<strong>uma</strong> coisa ao Outro, por mais que no<br />
fundo saiba perfeitamente que falta alg<strong>uma</strong> coisa ao Outro” (p.27). Porém, <strong>de</strong>parar-se com<br />
esta falta é <strong>uma</strong> vivência que horroriza o sujeito e é através da fantasia que ele tenta recuperar<br />
aquilo que outrora foi perdido.<br />
Coutinho Jorge (2006) coloca a fantasia como a articulação entre o inconsciente ($) e<br />
a pulsão (objeto a), entre o simbólico e o real. No primeiro pólo, po<strong>de</strong>-se situar o <strong>amor</strong>,<br />
enquanto que do outro lado, situa-se o gozo. A hipótese do autor é que a fantasia do perverso<br />
é pelo viés do gozo, pois sua relação com a polarida<strong>de</strong> <strong>amor</strong>osa é precária, o que lhe impe<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> fazer laço com o outro enquanto sujeito, mas ape<strong>na</strong>s enquanto objeto. Indo além, o gozo<br />
fica como <strong>uma</strong> <strong>de</strong>fesa em relação ao vínculo <strong>amor</strong>oso, pois este alu<strong>de</strong> a certa castração do<br />
gozo.<br />
Retor<strong>na</strong>ndo ao filme, po<strong>de</strong>mos observar que, para Érika, os outros são meros objetos e<br />
sua relação com eles é <strong>de</strong> puro gozo. Ela trata sadicamente seus alunos. Ela busca o mesmo<br />
tipo <strong>de</strong> relação com Walter: após um primeiro beijo, Érika mecanicamente abre o zíper da<br />
calça do rapaz e toca ape<strong>na</strong>s em seu pênis, impedindo-o <strong>de</strong> acariciá-la ou mesmo reagir aos<br />
seus toques. Ainda, há <strong>uma</strong> inversão <strong>de</strong> papéis quando ela propõe seu jogo masoquista,
colocando-se como mero instrumento <strong>de</strong> gozo para Walter, se <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificando, assim, do<br />
lugar <strong>de</strong> sujeito e, por conseguinte, <strong>de</strong>smentindo a castração, pois não há sujeito que não sofra<br />
o efeito da castração. Este exemplo ilustra o que Freud (1905/1996) nos ensinou: sadismo e o<br />
masoquismo são vertentes <strong>de</strong> <strong>uma</strong> mesma <strong>perversão</strong>, cuja forma ativa e passiva tem<br />
proporções variáveis no mesmo indivíduo: um sádico é também sempre um masoquista.<br />
Porém, há algo no rapaz que a cativa, e ela não suporta que ele lhe rejeite. Tenta se<br />
relacio<strong>na</strong>r com ele <strong>de</strong> maneira que agra<strong>de</strong> ao jovem, mas não suporta um envolvimento com o<br />
outro enquanto sujeito pelo viés <strong>amor</strong>oso; ela se <strong>de</strong>sespera e até mesmo vomita. Em outro<br />
momento, cruza com um aluno <strong>na</strong> loja <strong>de</strong> artigos pornôs e, neste instante, não se abala<br />
minimamente. Mas, <strong>na</strong> aula seguinte, ela o chama <strong>de</strong> porco, nojento e <strong>de</strong> alguém incapaz <strong>de</strong><br />
se concentrar no piano <strong>de</strong>vido as suas fantasias sujas. É evi<strong>de</strong>nte que ela está falando <strong>de</strong> si<br />
mesma. Nesses dois momentos particulares, Erika <strong>de</strong>monstra não ser tão impassível assim.<br />
De alg<strong>uma</strong> forma, compreen<strong>de</strong> que seus atos fogem às transgressões perversas das “pessoas<br />
sadias” e se incomoda com isso. Mas, ao enunciar um sentimento <strong>de</strong> culpa ou constatarmos<br />
<strong>uma</strong> ação do recalque, não estamos excluindo Erika do mundo das perversões, pelo contrário.<br />
Inicialmente acreditava-se que o neurótico recalcava no inconsciente suas fantasias perversas<br />
enquanto que os perversos as colocariam em atos, don<strong>de</strong> se concluía que <strong>na</strong> <strong>perversão</strong> a<br />
pulsão se <strong>de</strong>clararia em sua nu<strong>de</strong>z. No entanto, não importa qual for a formação perversa, a<br />
estrutura <strong>de</strong> compromisso, <strong>de</strong> dialética do recalcado e do retorno do recalcado é a mesma que<br />
há <strong>na</strong> neurose. Tanto <strong>na</strong> neurose quanto <strong>na</strong> <strong>perversão</strong> “há a ação do Nome-do-Pai, há recalque<br />
originário e, por conseguinte, a instauração da matriz psíquica chamada fantasia inconsciente<br />
fundamental” (JORGE, 2006:32). Ou seja, ambas as estruturas estão inscritas no simbólico.<br />
O filme termi<strong>na</strong> com Erika esperando ansiosamente por Walter no recital do<br />
Conservatório on<strong>de</strong> ela vai tocar. Esse dia proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> noite conturbada, em que Walter<br />
a<strong>de</strong>ntra a casa <strong>de</strong> Érika e, violentamente, tenta realizar as suas fantasias. Todavia, elas não<br />
ocorrem como a <strong>professora</strong> imagi<strong>na</strong>va e a situação sai um pouco <strong>de</strong> controle. No dia do<br />
recital, Erika leva <strong>uma</strong> faca consigo, e quando vê que Walter passa por ela e o máximo que<br />
ele lhe diz é “bom concerto, mal posso esperar para ouvi-la”, ela enfia a faca no seu próprio<br />
peito, e sai porta afora. Como num último lance <strong>de</strong> se negar a ser objeto <strong>de</strong> gozo para o outro,<br />
que mal podia esperar para “gozar”, Érika sai <strong>de</strong> ce<strong>na</strong>, por pura malda<strong>de</strong>, gozando <strong>de</strong> sua<br />
inveja da juventu<strong>de</strong> e falicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Walter. Encerro <strong>de</strong>sejando ter suscitado o interesse por<br />
este tema: a relação da <strong>perversão</strong> com a mulher.
Referências Bibliográficas:<br />
ALBERTI, Sonia. A <strong>perversão</strong>, o <strong>de</strong>sejo e a pulsão. Mal-estar e subjetivida<strong>de</strong> [online]. Set.<br />
2005, no. 2, v. V, [citado em 15 <strong>de</strong> Junho 2009], p.341-360. Disponível em<br />
http://www.unifor.br/notitia/file/980.pdf.<br />
FREUD, Sigmund. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualida<strong>de</strong>. Em: Edição standard<br />
brasileira das obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud. Vol. VII. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Imago, 1996, p.119-231.<br />
FREUD, Sigmund. (1931) Sexualida<strong>de</strong> Femini<strong>na</strong>. Em: Edição standard brasileira das<br />
obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996,<br />
p. 231-251.<br />
JORGE, Marco Antonio Coutinho. A travessia da fantasia <strong>na</strong> neurose e <strong>na</strong> <strong>perversão</strong>.<br />
Estud. Psica<strong>na</strong>l. [online]. Set. 2006, no. 29 [citado 15 Junho 2009], p.29-37. Disponível em<br />
http://pepsic.bvspsi.org.br/scielo.php?<br />
script=sci_arttext&pid=S010034372006000100006&lng=pt&nrm=iso<br />
SCORSESE, Martin; WILSON, Michael Henry. Uma viagem pessoal pelo cinema<br />
Americano. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.<br />
Referencial <strong>de</strong> Imagem:<br />
HANEKE, Michael. La pianiste. Áustria/França, 2001, 131 minutos.