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Toxicomania: usos e abusos do corpo

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2própria noção de indivíduo, assim como a temas, prioridades e paradigmas culturaisexistentes.Dentro dessa perspectiva, considera-se que, ao se analisar o uso/abuso de drogaspsicoativas pelo ser humano, o contexto sociocultural é um fator determinante.Araújo (1999) diz que na modernidade o prazer anteriormente simboliza<strong>do</strong> pode sercompra<strong>do</strong> e consumi<strong>do</strong> (p. 34). Assim, também Grossi (2000) assinala que “mediante oimpacto <strong>do</strong> avanço da sociedade científica e <strong>do</strong> consumismo, trilha-se um retorno à cruelrealidade de competição simultânea entre os sujeitos como mo<strong>do</strong> de se encontrar um lugar navida em sociedade “(p. 20).Segun<strong>do</strong> Senett (1999), é possível dizer que o consumo surge como meio deconstrução de identidades, em que tanto mais poder os objetos adquirem, quanto mais ointerior está esvazia<strong>do</strong> e exterioriza<strong>do</strong> (p. 25).Desse mo<strong>do</strong>, o consumismo se caracteriza como uma forma de compensar a vivênciade um excluí<strong>do</strong> ou marginaliza<strong>do</strong> <strong>do</strong> acesso ao status e à participação política.As propagandas ao igualarem produtos e consumi<strong>do</strong>res, colocam estes últimos sempreem desvantagem frente aos superpoderes <strong>do</strong>s quais estão investi<strong>do</strong>s os objetos, indican<strong>do</strong> quala decisão que se deve tomar para alcançar a felicidade (Senett, 1999, p. 87).Entende-se que a propaganda provoca a demanda de objetos (feita para a satisfação),<strong>do</strong> la<strong>do</strong> de um gozo ilimita<strong>do</strong>, supostamente vin<strong>do</strong> a apagar um desejo que não é elimina<strong>do</strong>com o consumo, mas apenas relança<strong>do</strong> para outros objetos. Essa instrumentalização <strong>do</strong> desejoatravés <strong>do</strong>s objetos pode, frequentemente, fixar-se no objeto droga, configuran<strong>do</strong>-se emmodelo de consumo e de relação social (Idem,p. 88).Percebe-se, atualmente, que a droga tornou-se um objeto de consumo como tantosoutros, um produto a ser consumi<strong>do</strong>. A nossa sociedade de consumo organiza-se de acor<strong>do</strong>com as leis <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, onde o importante é ter coisas, e assim, o sujeito é reduzi<strong>do</strong> aconsumi<strong>do</strong>r, sua subjetividade não tem mais valor.As toxicomanias, com ou sem drogas (compras, jogos entre outras), são figuras <strong>do</strong>stempos atuais, expressan<strong>do</strong> uma saída pela fascinação em relação aos objetos de consumo.Para o toxicômano é o encontro, a escolha de um objeto adequa<strong>do</strong> que tem a vantagem deestar ao alcance da mão, e pode ser entendi<strong>do</strong> como um atalho para a felicidade (Melman,2003, p. 94).Nessas circunstâncias, Melman (2003) diz que a ideia de felicidade vinculada a umimperativo de gozo torna-se um dever e efeito da globalização (p. 95).


3O consumo coloca-se como uma forma de reconhecimento, de mobilidade, de inclusãosocial, de aparentar uma igualdade e de parecer cidadão, mesmo que de forma ilegítima.O potencial de consumo determina o grau de inclusão ou de exclusão social, desucesso ou de insucesso, de felicidade ou de infelicidade.O estabelecimento de uma sociedade de consumo, organizada de acor<strong>do</strong> com as leis <strong>do</strong>merca<strong>do</strong>, onde o importante é possuir objetos, ao mesmo tempo em que os universaliza, apagaas singularidades subjetivas (Grossi, 2000, p. 22).Em relação a isso, Cruz e Ferreira (2001) afirmam que “a frustrante busca peloconsumo ilimita<strong>do</strong> prometi<strong>do</strong> pelo merca<strong>do</strong> (legal ou ilegal) produz insatisfação e a sensaçãode ser falho ou incapaz” (p. 99). Acrescentam, também, que tal sensação de incompletudeprovoca a busca de satisfação no consumo exagera<strong>do</strong> de bens e de drogas e, desse mo<strong>do</strong>, osobjetos de consumo superam os ideais, instalan<strong>do</strong> uma crise de identidade econômica ecultural. Dessa forma, o uso abusivo de drogas pode ser considera<strong>do</strong> como resultante de umasociedade consumista.Para Inem (2001), o sujeito moderno é um sujeito dividi<strong>do</strong>, habita<strong>do</strong> pela falta e que seencontra diretamente confronta<strong>do</strong> com os objetos que prometem restaurar essa falta (p. 30).Para Freud, o consumo abusivo de drogas pode ser entendi<strong>do</strong> como uma saídaencontrada para a tristeza e os sentimentos de perda que toda sociedade vive, ou seja, atoxicomania como sintoma social.Devemos a tais veículos não só a produção imediata <strong>do</strong> prazer, mas também umgrau altamente deseja<strong>do</strong> de independência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo, pois sabe-se que, como auxílio desse “amortece<strong>do</strong>r de preocupações”, é possível, em qualquer ocasião,afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mun<strong>do</strong> próprio, commelhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essapropriedade <strong>do</strong>s intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade decausar danos (1930,p. 86).O alívio proporciona<strong>do</strong> pelas drogas traz consigo a esperança de que a divisãosubjetiva, a incompletude <strong>do</strong> sujeito diante de sua falta de ser feliz (que move o ser humano),seja eliminada (Grossi, 2000, p. 40).Olivieri (1998) assinala que, na realidade, a toxicomania aponta para algo além deuma simples fuga da realidade, sen<strong>do</strong> mais exatamente uma solução para vedar a castração.“O fenômeno das toxicomanias se apresenta como uma promessa de encontro com o objetoperdi<strong>do</strong>, promessa tanto radical quanto enganosa na qual o sujeito <strong>do</strong> inconsciente se apaga”(p. 174).Na opinião de Lorencini (1998), quanto mais se recorre ao consumo de drogas pordificuldades de auto regulação, maior é o prejuízo de que o consumo se interiorize como parteindispensável da vida <strong>do</strong> sujeito (p. 31).


4Desse mo<strong>do</strong>, o sujeito se aproxima das drogas buscan<strong>do</strong> o prazer imediato,automático, diferente <strong>do</strong>s outros prazeres. E quanto mais experimenta esse prazer imediato,mais difícil é viver os outros, já que o prazer da droga tende a substituir os outros prazeres,colocan<strong>do</strong> o usuário cada vez mais centra<strong>do</strong> na sua relação com as drogas e diminuin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>sos outros interesses e prazeres. É um prazer excludente (Idem, p. 40).O toxicômano estabelece com a droga uma relação que se baseia na repetição, na quala droga ocupa um lugar central na economia psíquica <strong>do</strong> sujeito.Batista e Vasconcelos (2001) em “O mal estar na espontaneidade”, enfatizam oinvestimento libidinal significativo <strong>do</strong> sujeito na droga, ressaltan<strong>do</strong> que “sua vida se desenrolaem torno desse objeto, há to<strong>do</strong> um empenho para obtê-lo e o interesse <strong>do</strong> sujeito ficatotalmente localiza<strong>do</strong> na droga. Ela lhe proporciona prazer e nela o sujeito encontra umaforma particular de extrair um gozo” (p. 29).O toxicômano não suporta qualquer coisa que barre seu gozo, não tolera a frustração,suprimin<strong>do</strong>-a pelo objeto droga e, a partir de então, encontran<strong>do</strong> uma solução para suaangústia diante <strong>do</strong> desejo <strong>do</strong> Outro. O gozo <strong>do</strong> toxicômano não recorre à fantasia, não temmediação, ou seja, não passa pelo Outro – o gozo não é barra<strong>do</strong>. Será para além deste gozoque a intervenção <strong>do</strong> analista possibilitará o aparecimento <strong>do</strong> sintoma inerente ao sujeito <strong>do</strong>inconsciente, em sua dimensão de enigma, para assim ocorrer o esvaziamento <strong>do</strong> significantedroga com o qual se nomeia (Olivieri, 1998, p. 175).Especifican<strong>do</strong> o gozo <strong>do</strong> toxicômano, Lecoeur (1982) diz que a satisfação <strong>do</strong> sujeitocom a droga se apresenta na forma de um gozo fabrica<strong>do</strong>, sem adiamento, monótono. Umgozo que tenta romper com o gozo fálico, promoven<strong>do</strong> o seu retorno sobre o próprio <strong>corpo</strong> <strong>do</strong>sujeito. O que o sujeito tenta não é encontrar algo que substitua o objeto sexual a partir dasdrogas, mas sim provocar um curto circuito nesse gozo, dito fálico, por não ser capaz de lidarcom a sua angústia estrutural.Ao fazer o curto circuito <strong>do</strong> simbólico pelo uso da droga, o sujeito na verdade não abremão <strong>do</strong> Outro, não se responsabiliza, não responde por sua vida. “O sujeito aloja-se nosignificante que o Outro social lhe fornece e atribui ao Outro <strong>do</strong> acaso a responsabilidade dedecidir a partida” (Ribeiro, 1998, p. 124).Batista e Vasconcelos (2001) observam que a toxicomania não faz enigma, não fazsintoma para o sujeito e sim o esconde dele, tamponan<strong>do</strong> a angústia de castração. “Entretantoeste mecanismo tampona<strong>do</strong>r começa a falhar e o toxicômano é captura<strong>do</strong> por esse objetodroga” (p. 29).


5Freda (1999) assinala que o toxicômano coloca a satisfação sobre um objeto,tornan<strong>do</strong>-o vivo, tratan<strong>do</strong>-o como se ele fosse uma pessoa.Lecoeur (1992) acrescenta que o toxicômano, através de sua dependência radical <strong>do</strong>objeto droga, ao fazer uso dela não é um sujeito, ocorren<strong>do</strong> uma neutralização de qualquertroca simbólica.Assim, segun<strong>do</strong> os autores acima cita<strong>do</strong>s, o sujeito primeiramente tem posição ativasobre a droga, posteriormente, tornan<strong>do</strong>-se incapaz de controlar sua disposição para o uso,passan<strong>do</strong> de uma atividade para uma passividade frente à droga.Olivestein (1997) ressalta que a drogadição resulta <strong>do</strong> encontro de três fatores: adroga, a pessoa e o contexto sociocultural. O que determinará a dependência ou não <strong>do</strong> sujeitoem relação às drogas é o seu contato subjetivo com ela, dentro <strong>do</strong> seu percurso de vidaestritamente pessoal.Para Bucher (1992) começar a usar drogas significa estar à procura de algo diferente,algo que seja competente o suficiente para preencher uma falta. Essa falta a que ele se referepode estar relacionada ao <strong>corpo</strong>, à economia psíquica, à família; pode ser por carência afetiva,ausência de trocas, de lei e de projetos. A sensação é de vazio, provocan<strong>do</strong> uma procura depreenchimento. Assim, entende-se que a relação <strong>do</strong> indivíduo com a droga é singular, dizrespeito ao mo<strong>do</strong> como cada um vai estabelecen<strong>do</strong> seus vínculos ao longo da vida.Da mesma forma, Cruz (2001) sinaliza que para entender porque algumas pessoasusam drogas e outras não, ou porque umas usam e se tornam dependentes e outras não, énecessário “um olhar” mais deti<strong>do</strong> sobre as diferenças mais profundas entre os indivíduos (p.70).Enfim, na temática das drogas deve-se enfatizar as formas de interação que osindivíduos assumem com “elas”, fazen<strong>do</strong>-se necessário uma análise <strong>do</strong>s processos dedegradação de suas relações sociais, da perda de seus laços afetivos e familiares e das suasdificuldades de interação social.


6REFERÊNCIASARAÚJO, Maria Elizabeth da C (1999). Drogas e dependência: Um desafio. In: GOUVEIA,Patrícia; THEML, Neyde; SILVA, Cristiane (org.). Drogas: Qualidade de vida e cidadania.Rio de Janeiro: gestão comunitária: Instituto de Investigação e Ação SocialBATISTA, Fabiana. C e VASCONCELOS, Maurício. PALHANO de J. (2001). O Mal estarna espontaneidade. In: A clínica da toxicomania no campo da saúde mental. XIV Jornada <strong>do</strong>Centro Mineiro de <strong>Toxicomania</strong> – FHEMIG. Belo Horizonte. MG.BUCHER, Richard (1992). Drogas e drogadição no Brasil. Porto Alegre: Artes Médicas.CRUZ, Marcelo (2001) Práticas médicas e modelos conceituais na abordagem dastoxicomanias. In: Caderno de textos da XV Jornada <strong>do</strong> Centro Mineiro de <strong>Toxicomania</strong>. BeloHorizonte: CMT/Secretaria de Esta<strong>do</strong> de Saúde.CRUZ, Marcelo; FERREIRA, Salete M. B (2001) Determinantes socioculturais <strong>do</strong> usoabusivo de álcool e outras drogas: Uma visão panorâmica. In: CRUZ, Marcelo; FERREIRA,Salete M. B (org.). Álcool e drogas – <strong>usos</strong>, dependência e tratamentos. Rio de Janeiro: IPUB.FREUD, S. O Mal estar na civilização (1930/1980). Edição Standard Brasileira das ObrasPsicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora volume XXI.GROSSI, Fernan<strong>do</strong> Teixeira (2000) As drogas e a contemporaneidade. In: GROSSI, Fernan<strong>do</strong>T; BAHIA, Idálio V; CIRINO, Oscar (org.). Psicóticos e a<strong>do</strong>lescentes: pó que se drogamtanto? Belo Horizonte: centro Mineiro de <strong>Toxicomania</strong>/Secretaria de Esta<strong>do</strong> de Saúde.HAYEK, Friedrich A (1987) O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e cultura.Instituto liberal.INEM, Clara L (2001) A<strong>do</strong>lescência e suas vicissitudes: impasses <strong>do</strong> desejo. In: CRUZ,Marcelo; FERREIRA, Salette M. B (org.). Álcool e drogas – <strong>usos</strong>, dependência e tratamentos.Rio de Janeiro: IPUB.LECOEUR, Bernard (1992) O homem embriaga<strong>do</strong> – Estu<strong>do</strong>s psicanalíticos sobretoxicomania e alcoolismo. Belo Horizonte: Centro Mineiro de <strong>Toxicomania</strong>.LORENCINI, JÚNIOR. Álvaro (1998) Enfoque estrutural das drogas: Aspectos biológicos,culturais e educacionais. In: Groppa, Júlio A (org.). Drogas na escola – alternativas teóricas epráticas. São Paulo: Summus.MELMAN, Charles (1992) Alcoolismo, delinquência, toxicomania: Uma outra forma degozar. São Paulo: Escuta.


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