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Sobre discursos e práticas acerca das manipulações irreversíveis ...

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<strong>Sobre</strong> <strong>discursos</strong> e práticas <strong>acerca</strong> <strong>das</strong> manipulações irreversíveis do corpo e atecnologia médica contemporânea: desafios para a psicanálise no hospitalAutora: Valéria de Araujo Elias 1Co-autor: Abílio da Costa-Rosa 2Palavras-chave: psicanálise – psicologia hospitalar – corpo – transexualismoPretendemos com este trabalho tecer algumas reflexões suscita<strong>das</strong> apartir de uma experiência em um hospital público e universitário e de umapesquisa de doutorado em andamento a respeito <strong>das</strong> manipulações irreversíveisno corpo realiza<strong>das</strong> pelos transexuais e legitima<strong>das</strong> pelo discurso médico, apartir de uma perspectiva psicanalítica.As ofertas científicas de modificação corporal têm produzido umacrescente busca de pessoas que procuram a medicina para operar no corpo o que,acreditam, terá consequências em seu psiquismo. Embora essas deman<strong>das</strong> demodificação corporal sejam mais frequentes nas clínicas particulares, muitas delastêm aparecido nos hospitais públicos sendo custea<strong>das</strong> pelo Sistema Único deSaúde (SUS). Dentre elas, a cirurgia bariátrica para os obesos e, maisrecentemente, a cirurgia de redesignação sexual que se insere em um processomais amplo de modificações corporais irreversíveis, regulamentado peloMinistério da Saúde, e que se chama Processo Transexualizador.1 Psicanalista. Psicóloga do Serviço de Psicologia do Hospital Universitário e do Ambulatório doHospital de Clínicas da Universidade Estadual de Londrina. Professora do Curso de Especializaçãoem Psicanálise de Freud a Lacan da Faculdade Pitágoras. Doutoranda em psicologia pela UNESP.Endereço: Rua Luciney Vasconcelos de Castilho, 920 Cond. Resid. Royal Golf CEP 86055-530Londrina, PR, Brasil. E-mail: valelias@sercomtel.com.br.2 Psicanalista e Analista Institucional. Professor Livre Docente do Departamento de PsicologiaClínica e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UNESP-Assis. Endereço: UNESP Dep.Psicologia Clínica. Avenida Dom Antonio, 2100, CEP 19806-900, Assis, SP, Brasil. E-mail:abiliocr@assis.unesp.br


Para que essas intervenções sejam possíveis o Conselho Federal deMedicina, no âmbito do Sistema Único de Saúde, determinou a criação de equipesmultiprofissionais que, a partir de protocolos, avaliem os candidatos e decidam seeles estão aptos ao processo ou não.Como a psicanálise pode, hoje, se posicionar sobre essas deman<strong>das</strong> <strong>das</strong>quais inclusive só temos a oportunidade de escutá-las no hospital por um pedidoque nos chega via determinação constante em uma resolução? Trata-se de umaoperatória que vai além do registro puramente biológico, mas que busca serobjetivada por um protocolo que visa avaliar se determinado sujeito está certo doque reivindica ao cirurgião. Mais que isso, a proposta atrelada a isso é que se façaum diagnóstico se a pessoa candidata ao processo é um “verdadeiro transexual”ou não, pois só aos “verdadeiros” é indicada a cirurgia.Aqui temos um impasse: o diagnóstico que define o que é transexualparte de uma construção da medicina e da psiquiatria e a psicanálise entende osujeito de modo diferente. A visão cartesiana pela qual o diagnóstico detransexualismo é forjado concebe uma divisão entre mente e corpo em que umapessoa em conflito entre estas duas instâncias no que tange ao seu sentimento deidentidade sexual deve “adequar” seus caracteres sexuais anatômicos a umaconformação corporal associada ao outro sexo para retorná-lo ao seu estado“normal” diante de uma “ideia patológica incurável” que o torna transtornado.Em oposição ao dualismo mente e corpo, a psicanálise concebe o corpoenquanto um organismo em articulação com o inconsciente e a linguagem. Apartir dos registros do Simbólico, Imaginário e Real, Lacan entende o corpo emsuas dimensões de marcado pelo significante, de imagem e de gozo, em que um


corpo só é apreendido por meio de uma incorporação de significantes que odeterminam.O discurso reducionista e biologizante da psiquiatria, pautado no binômioverdade científica e eficiência, prevalece na instituição na medida em queresponde aos anseios de uma cultura fundada no discurso capitalista, que procuraeliminar, a qualquer preço e no menor tempo possível, o sofrimento psíquicocomo marca do sujeito.“Transexualismo não tem cura, mas tem tratamento”. Sob a égide destediscurso e aliena<strong>das</strong> por esta prescrição médica, as pessoas que se identificam coma descrição do que é ser transexual veem esse processo como a salvação para osimpasses vividos diante de uma anatomia em não conformidade com seusentimento de identidade sexual.Presenciamos na contemporaneidade novas formas de ser e estar nomundo em que a biotecnologia, por meio <strong>das</strong> cirurgias plásticas estéticas, prometenovas saí<strong>das</strong> para o mal estar da sexualidade A demanda transexual, nesse sentido,se afirma e se amplia como um desses fenômenos de corporização de identidadedescaracterizando o que a ciência entendeu inicialmente como sendo umindivíduo transexual.Miller propõe uma distinção entre o ser e a existência, entre o corpo queexiste e aquele do semblante masculino ou feminino. O feminino ou masculino notransexual ultrapassa os limites definidos pelo significante e, como semblante, nãose define, manifestando-se como puro gozo. Há uma tendência a um gozodesmedido impelido pela ciência e pelo capitalismo. Espera-se com a cirurgia aextirpação de um corpo e o surgimento de outro em que, por meio da imagem, se


defina uma identidade, como tentativa de encontrar consistência e de habitar opróprio corpo.É possível escutar na clínica pessoas que diante do desconforto frente asua sexualidade ou se deparando com uma forma de ser e estar que não seconforma dentro dos moldes convencionais do que é masculino ou femininoentendem a transexualidade como um diagnóstico apaziguador para o seu malestar e um não querer saber sobre isso. O que observamos é que o discursonormativo a que essa tendência se apoia é uma tentativa de não apenas ter umcorpo, mas de ser a partir dele, como nos aponta Lacan (1979/2003).Para Lacan (1976/2007) o ser falante encontra sua consistência nosentimento de que é portador de um corpo, “esse corpo enraizado no imaginário, eo amor-próprio que lhe está associado, lhe escapa todo o tempo” (p.66). Para ele,é o fato de o homem “ter um corpo”, e não de “ser um corpo” que o caracteriza(LACAN, 1979/2003, p. 561).Ao apontar para a disjunção entre o ser e o ter um corpo, Lacan nosensina que o ser humano não se identifica com seu corpo, mas por ter um corposeus sintomas lhe aparecem como estrangeiros. A noção de ex-sistência foi criadapor ele para dizer de algo que, mesmo estando fora do sujeito, lhe permaneceligado. É exterior a ele mesmo, mas ao mesmo tempo em que é “êx-timo” é intimo.Esse corpo que para Lacan (1979/2003) deixa de ser estrangeiro, ao serbanhado pela linguagem adquire consistência por seus orifícios, principalmente oouvido, ao ser tocado por um discurso estabelecido e socialmente compartilhado“(...) porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que, nocorpo, responde o que chamei de voz” (p.563). Assim entendemos que o corpo é


moldado pela cultura e por isso a forma como lidamos com ele também dependerá(mas não só) da época e da civilização em que o sujeito se encontra.Miller (2004) utiliza-se do termo corporização em oposição ao termosignificantização em que neste último o sujeito se apropria de uma parte do corpopara elevá-la à qualidade de significante, conforme dito por Lacan (1972/2003) aose referir à construção do falo: “do discurso psicanalítico, um órgão faz-se osignificante” (p. 456). Para o autor, se na significantização temos uma certasublimação do órgão em face do significante que implica uma conservação dacoisa inicial, ao mesmo tempo em que a ultrapassa, dando-lhe um novo estatuto,na corporização tem-se o significante se materializando no corpo (MILLER, 2004,p. 65).Essas atuais possibilidades de identificação com o corpo dita<strong>das</strong> pelodiscurso da ciência e que se aproximam do que Miller definiu como fenômeno decorporização, não implicam em nenhuma tentativa de sublimação em que, nessecaso, envolveria processos idealizadores e imaginários. Dessa forma, se afastaradicalmente <strong>das</strong> práticas de corporização, nas quais o objeto é inseparável datendência para a qual se dirigem as elaborações culturais. As atuais formas decorporização se caracterizam por não fazerem laço social, uma vez que o sujeitoidentificado com seu corpo não precisa dispor de nenhum outro. (LUCERO,2009)Conforme Lucero (2009) não se busca o objeto capaz de satisfazer umafalta em outro corpo, ou mesmo em outros objetos, transformando o próprio corpono objeto de desejo, e a pulsão se insere no que Lacan denomina de “gozoautístico”, não compartilhado e fora do sentido. Por meio da sublimaçãoantigamente era possível se satisfazer imaginariamente com os objetos,


atualmente, a satisfação é buscada no objeto em si, em seu real. Nas cirurgiasplásticas, o que se busca é ser o seu próprio corpo, fazer dele mesmo umespetáculo.O significante manipulação advém da biociência e assinala a modificaçãoradical promovida no corpo pelas intervenções aqui referi<strong>das</strong>. Encontramos umcorpo que, ao ser tomado pela ciência pode ser retificado, fazendo emergir umsujeito a partir da evidência desse corpo transformado. Nessa lógica, ao consertarum corpo, um sujeito espera poder se inscrever no campo do outro.O efeito dessa operação do discurso científico sobre a relação damedicina com o corpo foi nomeada por Lacan (1966/2001) como falha epistemosomática.A construção do saber científico sobre o corpo apresenta uma lacuna,pois não consegue apreender uma dimensão do corpo que a clínica evidencia: adimensão do gozo. Este é o lugar que Lacan propõe que a psicanálise poderiaocupar junto aos médicos: tratar o que está excluído da relação epistemosomática.É justamente aquilo que o corpo, em seu registro purificado, irá proporà medicina, a dimensão do gozo.[...] o corpo que retorna de longe, isto é, do exílio a que o havia condenado a dicotomiacartesiana do pensamento e da extensão, a qual elimina completamente de suaapreensão tudo o que se refere não ao corpo que ela imagina, mas ao corpo verdadeiroem sua natureza (LACAN, 1966/2001, p. 8).Nesse mesmo texto, Lacan propõe que a verdadeira natureza do corpo é ade ser um objeto de gozo, um entre outros, porém um objeto privilegiado. Eledefine gozo como “algo que o corpo experimenta, é sempre da ordem da tensão,do forçamento, do gasto, até mesmo da proeza”. (p. 12) O gozo, então, é algo quese evidencia na experiência clínica, porém, é excluído da compreensão que odiscurso científico tem sobre o corpo.A cirurgia estética não é uma escritura, não faz um discurso, à medida


que não se endereça a ninguém e não espera uma interpretação. Trata-se de um atoque vem no lugar de uma falta de simbolização. Nesse sentido podemos pensar atransexualização como um ato em busca de palavras, de uma nomeação. Ela émesmo uma revolta contra a divisão do sujeito. É preciso fazer um trabalho naanálise que possibilite passar da passagem ao ato à enunciação; que o sujeitopossa falar do que fala nele, que ele possa se reconhecer como sujeito dividido.(HARTMANN, 2012)Em busca de livrar-se do mal estar e a serviço do gozo o sujeito é levadopela ciência e pelo capitalismo às infindáveis modificações corporais na vãtentativa de responder ao que não sabe o que é e nunca saberá. Torna-se umacompulsão à repetição em que o corpo se torna o palco dessas transformações quenão apaziguam o gozo nem a falta de saber sobre o sexo.Na ausência desse saber o que se busca é um S1 em resposta à alteridadedo corpo gozoso. Lacan parte da teoria dos registros RSI e do nó borromeanopropondo que a cirurgia é um modo próprio de enlaçamento dos três registros emque inscreve um S1 no Real do corpo, promovendo o surgimento de uma novaimagem corporal e um novo sujeito. Lacan chamou de sinthoma a essa matrizinaugural em ligação ao real do gozo.O ser está duplamente conectado ao sujeito e ao Outro e, para adisparidade entre o saber e o gozo, a ciência e o capitalismo, para além daimagem, oferecem a promessa de solução autenticando sua inscrição no gozo daimagem ao lançá-lo na busca de um novo território existencial. Mas pelo quesabemos, a questão transexual não se sustenta só pela questão estética e escópica,embora o que se espera com a transexualização seja um olhar que confirme aimagem que tem de si mesmos revelando aí o significante ‘imagem” como


promessa para o que não se sustentou no real nem no simbólico.Sabemos que esses sujeitos que buscam no hospital público amodificação corporal, submetendo-se ao processo transexualizador, realizarãoessa transformação de qualquer forma, afinal, para cada intenção de reparar ocorpo haverá um cirurgião disposto a isso, sem se valer de uma normainstitucional. Ao inserir a demanda transexual no rol <strong>das</strong> cirurgias estéticas, aquestão subjetiva envolvida aí perde sua complexidade à medida que é banalizadae o que assistimos é um aumento da demanda que em nome desse apelo ao corponão convida mais o sujeito a se implicar no seu dito, de se haver com o seu desejoe o não saber sobre isso.Lacan (1966/2001) nos disse que a ciência é capaz de saber o que pode,mas ela, não mais do que o sujeito que engendra, é incapaz de saber o que quer. Apsicologia nos hospitais tem sido cada vez mais convocada a opinar dentro dosprotocolos médicos justamente porque algo da ordem subjetiva sempre escapanesta tentativa de objetivação. Não basta, portanto fazer a indicação e com issovalidar o procedimento médico. O que parece ser fundamental é pensarmos comoo protocolo médico, nesse caso, pode desorientar o nosso lugar.A contribuição da psicanálise nesses casos é a de implicar o sujeito emsua demanda levando em conta o desejo e o gozo que a ciência excluiu. Se não forassim corremos o risco de reproduzir o discurso médico subjugado ao discursocapitalista e autenticar a ilusão de que ao atingirem esse objetivo alcançarão afelicidade.A saída para o que de início nos parece sem saída, encontramos emLacan (1974) em seu texto Televisão onde ele propõe que o psicanalista, com seudiscurso, pode fazer frente ao discurso do capitalista, na interlocução com os


outros <strong>discursos</strong>. Um psicanalista que se propõe ao trabalho em uma instituiçãomédica tem o dever ético de fazer valer o seu discurso, que não professa aabnegação, mas o desejo do analista, como única forma de reintroduzir adimensão do sujeito definido pela psicanálise e que ali se encontra foracluído.É preciso levar o sujeito a se desalienar da prescrição médica pautada emuma descrição diagnóstica para que ele possa construir seu próprio saber sobre si.Desse modo se retira o paciente da condição de objeto da medicina para a de umsujeito responsável pelo seu destino. E, mais ainda, para que o sujeito não aceitedesistir de seu desejo em prol de se adaptar ao que é o bem para a sociedade.Assim, ele poderá vir a encontrar no psicanalista – submetido a outro discurso –um sustento para se defender do saber da medicina que, cada vez mais, está aserviço da ascensão da ciência e do capitalismo.BIBLIOGRAFIABRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 457/SAS, de 19 de agosto de 2008.Regulamenta o Processo Transexualizador no SUS. Diário Oficial da União,Brasília, DF, 20 de agosto de 2008.ELIAS, V.A. A presença do dispositivo analítico no campo <strong>das</strong> avaliações decandidatos a procedimentos médicos. Moura, M.D (org.) Psicanálise e Hospital.(no prelo)FREUD, S. Mal estar na civilização (1930). In: Edição Standard Brasileira <strong>das</strong>Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI Rio de Janeiro,Imago,1976.HARTMANN, F. A cirurgia estética participa de uma nova modalidade de gozo?In: Association Lacanienne Internationale. Disponível em: http// www.lacanbrasil.com/lectura.php.Acessado em 20/06/2012.LACAN, J. Escritos. (1966) Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.________. O lugar da psicanálise na medicina. (1966) In: Opção Lacaniana, SãoPaulo, n. 32, 2001, p. 8-14._________. O Seminário, livro 20: mais, ainda. (1972-73) Rio de Janeiro, JorgeZahar, 1985.


______. Televisão. (1974) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993._________. O aturdito (1972) in Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,2003._________. Joyce, o Sinthoma, (1979) in Outros Escritos. Rio de Janeiro, JorgeZahar, 2003.. _________. O Seminário, livro 23: o sinthoma. (1975-76) Rio de Janeiro, JorgeZahar, 2007.LAURENT, E. Transformamos o corpo humano num novo Deus. Entrevista parao Jornal La Nación, exibida em 9 de julho de 2008 e divulgada por EBP-Vere<strong>das</strong>em 01/08/2008.LUCERO, A. Joyce, o corpo e a sublimação na contemporaneidade. Rev. Estud.Lacan., 2009, vol.2, no.3, p.1-12.MILLER, J.-A. A invenção psicótica, Opção Lacaniana, n. 36. São Paulo, 2003.pp. 6-15__________. Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo. Opção Lacaniana.São Paulo, n. 41, p. 7-67, dezembro 2004.

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