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Literatura, trabalho e reificação em A enxada, de Bernardo - Unicamp

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A impressionante <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> Piano não é motivada exclusivamente<br />

pelas ameaças do patrão. A forma <strong>de</strong> composição do personag<strong>em</strong>, a ação enca<strong>de</strong>ada das<br />

peripécias à procura da <strong>enxada</strong>, os obstáculos sobre-humanos interpostos à saga <strong>de</strong><br />

Piano, envolvidos <strong>em</strong> clima <strong>de</strong> fantasmagoria, e a narrativa que adota um andamento<br />

t<strong>em</strong>poral in media res confer<strong>em</strong> uma tonalida<strong>de</strong> heróica e épica ao caráter do<br />

personag<strong>em</strong>. Não se trata <strong>de</strong> elevar o hom<strong>em</strong> pobre do campo à categoria <strong>de</strong> herói, mas<br />

do fato <strong>de</strong> que o <strong>trabalho</strong> narrativo entalha resíduos épicos à condição rústica e<br />

<strong>de</strong>gradante do camponês s<strong>em</strong> <strong>enxada</strong>. Os restos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za épica, misturados aos<br />

el<strong>em</strong>entos regionais, produz<strong>em</strong> uma estrutura peculiar para dar forma ao dil<strong>em</strong>a da<br />

literatura e da nação, entre local e cosmopolita. Po<strong>de</strong>-se pensar que as fórmulas épicas<br />

que ecoam na estrutura do conto pretend<strong>em</strong> evi<strong>de</strong>nciar a gran<strong>de</strong>za da vida tosca e ru<strong>de</strong><br />

dos homens explorados e da própria literatura produzida <strong>em</strong> região periférica, ambas<br />

integrantes, mas não integradas, do sist<strong>em</strong>a-mundo e da literatura-mundo. Por outro<br />

lado, as formas da matriz cultural do oci<strong>de</strong>nte, da alta literatura estão engastadas na<br />

narrativa como “hábito velho”, como ruína e arcaísmo, resíduos s<strong>em</strong> vida, incapazes <strong>de</strong><br />

cumprir o seu efeito anterior, original. Como eco distante <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po impossível a<br />

Piano, ao narrador, ao escritor e ao leitor, o fantasma do vigor épico volta<br />

metamorfoseado “num xixixi” <strong>de</strong> “chuva fina na saroba que afogava o rancho” ou um<br />

fogo “que morria nas brasas que pipiricavam, muito vermelhas, tudo alumiando pelas<br />

meta<strong>de</strong>s”. A fórmula épica da alta literatura se mostra na sua feição negativa,<br />

inconclusa, diabólica e perversa: a <strong>enxada</strong> é um instrumento impossível, fetichizado.<br />

Como objeto inacessível, está investida da fantasmagoria da mercadoria, toma vida e<br />

consome o hom<strong>em</strong>. Como parte privilegiada da história da produção humana as formas<br />

literárias forjadas pela matriz cultural oci<strong>de</strong>ntal narram a história <strong>de</strong> uma perversão da<br />

qual elas faz<strong>em</strong> parte: a história das trocas <strong>de</strong>siguais do sist<strong>em</strong>a-mundo, a história da<br />

divisão também <strong>de</strong>sigual no mundo do <strong>trabalho</strong>. No conto <strong>de</strong> <strong>Bernardo</strong> Élis, quando os<br />

restos da épica se entr<strong>em</strong>eiam à tradição regionalista, pelo gesto criativo do autor, a<br />

história que se conta é a <strong>de</strong> que a mão que ara a terra (s<strong>em</strong> <strong>enxada</strong>) é a mesma mão <strong>de</strong><br />

qu<strong>em</strong> tocaria piano se pu<strong>de</strong>sse. O nosso Piano não toca, “o silêncio é <strong>de</strong> chumbo”, ele se<br />

metamorfoseia ao longo do conto <strong>em</strong> instrumento <strong>de</strong> <strong>trabalho</strong> reificado, <strong>em</strong> mercadoria.<br />

Pela metamorfose o conto narra a história da produção humana como <strong>reificação</strong><br />

e extrapola os limites da configuração localista e regional, on<strong>de</strong> a <strong>reificação</strong> se realiza<br />

<strong>de</strong> forma mais grotesca, e alcança a universalida<strong>de</strong> da super-região na estrutura literária<br />

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