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Álvaro de Campos, Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro ...

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"Lembro-me perfeitamente <strong>de</strong> como escrevi esse poema. O Padre B... tinha esta<strong>do</strong> lá em casa a falar com a<br />

minha tia e esteve a dizer tantas coisas que me irritaram que eu escrevi o poema <strong>para</strong> respirar. Por isso é que ele<br />

está fora da minha respiração vulgar. Mas o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> irritação é um esta<strong>do</strong> falso em mim; por isso o poema não<br />

está inteiramente certo comigo, mas só com a minha irritação e com a pessoa a mais que a irritação é quan<strong>do</strong> a<br />

gente a tem.<br />

"Hoje, se estivesse irrita<strong>do</strong> – o que já é muito difícil <strong>de</strong> acontecer – eu não escreveria coisa nenhuma.<br />

Deixava a irritação irritar-se. Depois, quan<strong>do</strong> sentisse vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever, escrevia. Deixava o escrever escrever-se.<br />

"Ainda hoje, <strong>de</strong> vez em quan<strong>do</strong>, escrevo um ou outro poema com que não concor<strong>do</strong>; mas escrevo-o. Assim<br />

como acho interessante toda a gente por não ser eu, acho às vezes interessante um ou outro momento em que não<br />

sou eu. Em to<strong>do</strong> o caso, já hoje me não é possível afastar-me tanto <strong>do</strong> que quero como no poema sobre o Menino<br />

Jesus. Posso afastar-me <strong>de</strong> mim, mas já não me afasto da Realida<strong>de</strong>."<br />

Durante uns momentos, <strong>Caeiro</strong> esteve silencioso. Depois acrescentou:<br />

"O poema <strong>de</strong> agora em que me afastei mais <strong>de</strong> mim é aquele que escrevi o mês passa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>pois daquela<br />

conversa entre o Ricar<strong>do</strong> Reis e o António Mora sobre o paganismo e os <strong>de</strong>uses." (Referia-se ao poema [“Também<br />

sei fazer conjecturas”] <strong>do</strong>s "Inconjuntos".)<br />

"Ouvi-os, e pus-me a imaginar como é que se imaginava uma religião. E lembrou-me que <strong>de</strong>veria ser assim.<br />

Por isso escrevi o poema, não como acto poético mas como acto <strong>de</strong> imaginação... Sim, como se estivesse contan<strong>do</strong><br />

um conto a uma criança. Tinha que pôr lá o Príncipe... Eu também posso fazer contos <strong>de</strong> fadas – mas só uma vez, é<br />

claro ... "<br />

"Há um outro poema seu", disse eu, "que está um pouco nessas condições". E, como <strong>Caeiro</strong> olhasse a<br />

pergunta, "É aquele em que v., falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um homem numa casa iluminada, à distância, diz, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ver o<br />

homem, que ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser real". (Trata-se, como é <strong>de</strong> ver, <strong>do</strong> poema "É noite. A noite é muito escura" <strong>do</strong>s<br />

"Inconjuntos".)<br />

"Eu não digo que ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser real: digo que ele <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser real <strong>para</strong> mim. Não quero dizer que ele<br />

<strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> ser visível <strong>para</strong> quem esteja on<strong>de</strong> o veja. Deixou <strong>de</strong> ser visível <strong>para</strong> mim. Po<strong>de</strong> até ter morri<strong>do</strong>."<br />

"V. admite, então, duas formas <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>?"<br />

"Muito mais <strong>do</strong> que duas", respon<strong>de</strong>u inesperadamente o <strong>meu</strong> mestre <strong>Caeiro</strong>. "v. bem vê... Aquela ca<strong>de</strong>ira é<br />

ca<strong>de</strong>ira e aquela ca<strong>de</strong>ira é ma<strong>de</strong>ira, e aquela ca<strong>de</strong>ira é a substância <strong>de</strong> que a ma<strong>de</strong>ira é feita, e que não sei o que é<br />

na química, e aquela ca<strong>de</strong>ira é talvez – é com certeza – muitas outras coisas mais. Mas é-as todas. Se a vejo é<br />

principalmente ca<strong>de</strong>ira; se a toco é principalmente ma<strong>de</strong>ira; se a mor<strong>de</strong>sse e tomasse o sabor da ma<strong>de</strong>ira, ela seria<br />

principalmente a composição da ma<strong>de</strong>ira. São como o la<strong>do</strong> direito e o esquer<strong>do</strong>, e a frente e as costas <strong>de</strong> qualquer<br />

coisa. To<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s são reais, cada um <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong>. O homem que eu <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> ver seria real, mas era <strong>de</strong> outro<br />

la<strong>do</strong>; como eu não estava <strong>de</strong>sse la<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser real <strong>para</strong> mim.<br />

21<br />

Se as crianças não percebem os adultos – que, aliás, nada têm que perceber porque são to<strong>do</strong>s iguais, e o que<br />

é igual a outra coisa não existe –, mais certo é que os adultos não percebam as crianças. Ser adulto é esquecer-se <strong>de</strong><br />

que se foi criança. Por isso os pais castigam os filhos por aquilo mesmo que fizeram na mesma ida<strong>de</strong>. Quan<strong>do</strong> um pai

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