Mulheres, homens e usos do tempo - Instituto Nacional de Estatística
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A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> externalizar (pelo menos em parte) as tarefas <strong>do</strong>mésticas para uma empregada<br />
<strong>do</strong>méstica ou mulher-a-dias po<strong>de</strong> constituir-se como uma importante estratégia para reduzir o peso<br />
<strong>de</strong> tais tarefas tanto para os <strong>homens</strong> como, em particular, para as mulheres. Esta é uma estratégia<br />
relativamente frequente entre as famílias <strong>do</strong>s/as cientistas abrangidas por este estu<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>,<br />
pagar para ter apoio <strong>do</strong>méstico não resolve questões fundamentais na construção <strong>do</strong> género (ou <strong>de</strong><br />
‘<strong>do</strong>ing gen<strong>de</strong>r’, nas palavras <strong>de</strong> Crompton e Lyonette, 2009a). A ‘mercantilização’ <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> (Daly e<br />
Lewis, 2000) <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ‘comprar <strong>tempo</strong>’ (Lister, 1990), isto é, da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
mulheres mais ricas aliviarem a sua própria pobreza <strong>de</strong> <strong>tempo</strong> (‘time poverty’) em maior ou menor<br />
medida compran<strong>do</strong> o <strong>tempo</strong> <strong>de</strong> outras mulheres (Lister, 1997).<br />
A existência <strong>de</strong> apoios externos, pagos ou não pagos, formais ou informais, é crucial para a<br />
organização <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> cuidar. Mas a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer a apoio externo informal <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vários factores. Dificulda<strong>de</strong>s acrescidas colocam-se quan<strong>do</strong>, na sequência <strong>de</strong> processos <strong>de</strong><br />
mobilida<strong>de</strong>, se criam gran<strong>de</strong>s distâncias geográficas em relação a familiares e pessoas amigas às<br />
quais se po<strong>de</strong>ria eventualmente recorrer. A diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agrega<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos coberta por este<br />
estu<strong>do</strong> qualitativo confirma que a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> combinar, em maior ou menor grau, suportes<br />
externos ao trabalho <strong>de</strong> cuidar, pagos e não pagos, formais e informais, é geralmente limitada, ou<br />
aos/às cientistas que, após um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> permanência no estrangeiro, regressaram entretanto a<br />
Portugal, ou a casais com uma dupla nacionalida<strong>de</strong>, nos quais um <strong>do</strong>s membros – normalmente a<br />
mulher – tem nacionalida<strong>de</strong> portuguesa.<br />
A investigação neste <strong>do</strong>mínio, e os estu<strong>do</strong>s feministas em particular, têm evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> que cuidar é<br />
trabalho, frequentemente trabalho árduo e que envolve longas horas (Lister, 2000), e que nem os<br />
recursos financeiros nem a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços esgotam a panóplia <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s<br />
associadas ao trabalho <strong>de</strong> cuidar; o <strong>tempo</strong> (para cuidar) é igualmente crucial (Daly, 2002). Por outro<br />
la<strong>do</strong>, as tensões e contradições entre trabalho e vida familiar estão hoje exacerbadas em muitos<br />
países oci<strong>de</strong>ntais (Brannen, 2005).<br />
Aprofundan<strong>do</strong> esta linha <strong>de</strong> discussão, o estu<strong>do</strong> a que tenho vin<strong>do</strong> a fazer referência mostra que<br />
prosseguir uma carreira científica e ter filhos/as gera, em muitos casos, sentimentos <strong>de</strong> ambivalência<br />
e <strong>de</strong> culpa (Craig, 2007) entre cientistas que são pais ou, <strong>de</strong> forma particularmente aguda, entre as<br />
cientistas que são mães. Mães que, como ilustra<strong>do</strong> nas entrevistas, se sentem constantemente<br />
divididas entre estas duas esferas das suas vidas, o <strong>tempo</strong> nunca sen<strong>do</strong> suficiente nem para o<br />
trabalho pago, em termos <strong>do</strong> <strong>tempo</strong> que são capazes <strong>de</strong> lhe afectar ou das responsabilida<strong>de</strong>s que<br />
conseguem assumir, nem para a família, à qual não se po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>dicar tanto quanto gostariam,<br />
especialmente em relação às crianças. Tais sentimentos <strong>de</strong> ambivalência e <strong>de</strong> culpa expressos por<br />
muitas mães (mais <strong>do</strong> que por pais) que trabalham em activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> investigação científica po<strong>de</strong>m<br />
ser encara<strong>do</strong>s como uma manifestação <strong>do</strong>s diferentes direitos (ou ‘entitlements’, como diria Daly,<br />
2004) que mulheres e <strong>homens</strong>, em geral, reconhecem como seus para usar o <strong>tempo</strong>, para si próprias/<br />
os ou para outrem.<br />
A falta <strong>de</strong> <strong>tempo</strong> tem leva<strong>do</strong> diferentes autoras/es a falar <strong>de</strong> pobreza <strong>de</strong> <strong>tempo</strong> (ou ‘time poverty’, cf.<br />
Lister, 1990, 1997), escassez <strong>de</strong> <strong>tempo</strong> (ou ‘time famine’, cf. Davies, 1990), stress <strong>de</strong> <strong>tempo</strong> (ou<br />
‘time stress’, cf. Holtz, 2002), pressão <strong>de</strong> <strong>tempo</strong> (ou ‘time pressure’, cf. Ylijeki and Mäntylä, 2003) ou<br />
compressão <strong>de</strong> <strong>tempo</strong> (ou ‘time squeeze’, cf. Southerton, 2003). E to<strong>do</strong>s estes termos se referem<br />
em particular às mulheres e ao mo<strong>do</strong> como estas vivem o <strong>tempo</strong>. Algumas/uns argumentam que as<br />
mulheres são mais susceptíveis à pobreza <strong>de</strong> <strong>tempo</strong> (Lister, 1990; 1997), na medida em que, quan<strong>do</strong><br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s conjuntamente o trabalho pago e não pago, as mulheres apresentam um <strong>tempo</strong> <strong>de</strong><br />
trabalho superior ao <strong>do</strong>s <strong>homens</strong>. Outras/os acrescentam a esta dimensões tais como as da<br />
intensida<strong>de</strong> e da pressa (ou ‘harriedness’, como diriam Southerton, 2003 ou Bryson, 2007) que<br />
caracterizam a experiência feminina <strong>do</strong> <strong>tempo</strong>, uma vez que as mulheres se confrontam muitas<br />
vezes com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comprimir várias activida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> diferente natureza, num mesmo<br />
perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>tempo</strong>.<br />
Revista <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Demográficos, nº 47