16.04.2013 Views

projeto leitura e didatização - Editora Saraiva

projeto leitura e didatização - Editora Saraiva

projeto leitura e didatização - Editora Saraiva

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Por Cid Vale Ferreira<br />

PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO<br />

AS TREVAS E OUTROS POEMAS<br />

LORD BYRON<br />

Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto:<br />

1. Ecos da recusa (Leitura 1)<br />

2. O abade do crânio (Leitura 2)<br />

3. Os monges negros (Leitura 3)<br />

LEITURA 1<br />

ECOS DA RECUSA<br />

TEXTO 1<br />

A INÊS<br />

Não te sorrias, não, para o meu carregado aspecto. Ai!<br />

já me não posso sorrir! Todavia, não permita o céu que jamais<br />

chores, e talvez que chores em vão.<br />

E tu inquires do oculto mal que me oprime e me corrói<br />

a alegria e a mocidade? E quererás em vão procurar conhecer<br />

uma dor que tu própria não poderias mitigar?<br />

Não é amor nem ódio, não são as honras perdidas de<br />

uma baixa ambição, que me fazem aborrecer o meu presente<br />

estado e fugir de tudo o que mais prezei:<br />

É esse tédio que ressalta de quantas cousas topo, ouço<br />

ou vejo: a beleza nenhum prazer me dá; os teus olhos mal<br />

têm encanto para mim.<br />

É essa tenaz e incessante tristeza do fabulado judeu errante,<br />

que nada veria além do túmulo, mas aquém dele não<br />

espera ter descanso.<br />

Que desterrado pode fugir de si próprio? Em quaisquer<br />

zonas que me ache, por mais remotas que sejam, per-<br />

1


segue-me sempre, sempre a maldição da vida – o demônio<br />

Pensamento.<br />

Outros, contudo, parecem-me engolfados no prazer, saboreando<br />

quanto eu deixei. Oxalá que sonhem sempre com<br />

transportes e que nunca despertem, ao menos, como eu!<br />

É-me destino perlustrar muitos climas com bastas recordações<br />

amaldiçoadas; e toda a minha consolação é saber<br />

que; suceda o que suceder, já conheci o pior.<br />

O que seja esse pior não o perguntes – por piedade,<br />

foge de o indagar: continua a sorrir – e não te aventures a<br />

desvendar o coração do homem e o inferno que existe lá.<br />

LORD BYRON. Peregrinação de Childe Harold. Tradução de Alberto Telles.<br />

Lisboa: Ferreira, 1881. p. 56-57.<br />

1. Os tradutores dos poemas mais extensos de Byron muitas<br />

vezes preferiram a prosa aos versos, tendência exemplificada<br />

pela tradução de Childe Harold’s Pilgrimage (1812-1818)<br />

publicada em 1881 pelo açoreano Alberto Telles. Leia-a atentamente<br />

e, em seguida, compare-a à versão de Fagundes Varela<br />

(página 30). Ciente de que ambos buscaram transpor ao<br />

português a mesma canção, prossiga às questões:<br />

a) Às nove estrofes de Fagundes Varela correspondem nove<br />

parágrafos de Alberto Telles. Aponte na versão poética duas<br />

estrofes cujo sentido você considere particularmente diferente<br />

do sentido de seus parágrafos correspondentes. Que semelhanças<br />

e diferenças você nota no “conteúdo” expresso pelos<br />

trechos escolhidos?<br />

b) No século XIX, versões como a de Fagundes Varela não<br />

eram consideradas ou denominadas traduções, mas sim<br />

imitações, por apresentarem soluções poéticas que não seguiam<br />

à risca as obras originais. A versão de Alberto Telles,<br />

por sua vez, é um ótimo exemplo daquilo que recebia a<br />

alcunha de tradução, reconstituindo fielmente os aspectos<br />

semânticos da canção original (neste caso, à custa de sua<br />

forma de apresentação). Pois bem, sabendo que os versos<br />

de “To Inez” (1812) compõem paralelismo métrico, e que<br />

suas estrofes seguem o mesmo esquema de rimas, seria<br />

possível considerar a imitação do brasileiro mais fiel ao original<br />

em qual(is) aspecto(s)?<br />

TEXTO 2<br />

A INÊS<br />

I<br />

Forma de apresentação: A fragilidade conceitual da “oposição”<br />

entre forma e conteúdo na literatura levou alguns críticos<br />

a propor a substituição desses termos por “forma de apresentação”<br />

(no lugar de forma) e “forma interna” (no lugar de conteúdo).<br />

Com isso, reforça-se a afirmação de que – ao menos<br />

em literatura – essas duas faces de uma mesma moeda não<br />

estabelecem oposição entre si.<br />

Não mais sorrias a esta fronte turva.<br />

Ai! – não posso pagar-te o teu sorriso;<br />

Praza no entanto ao céu vedar-te as lágrimas!<br />

Praza ao céu, que jamais debalde as vertas!<br />

II<br />

Conhecer queres que desgraça oculta<br />

Juventude e prazeres me envenena?<br />

Por que buscas saber que dor me punge,<br />

Se mesmo tu não podes mitigá-la?<br />

III<br />

Não me obriga o amor, nem mesmo o ódio,<br />

Nem da baixa ambição perdidas honras<br />

A praguejar meu fado, abandonando<br />

Tudo o que eu mais prezava sobre a terra.<br />

IV<br />

É este horrível tédio que me inspira<br />

Tudo o que vejo e ouço. A formosura<br />

Cessou de me agradar; teus próprios olhos<br />

Conservam para mim encanto apenas.<br />

2


V<br />

É a sombria dor que acompanhava<br />

O fabulado Hebreu no mundo errante:<br />

Temo os olhos lançar além da campa;<br />

E entanto nela só repouso aguardo.<br />

VI<br />

Que exilado evitar pode a si próprio?<br />

Inda mesmo nos mais remotos climas,<br />

Persegue-me o flagelo da existência,<br />

E o terrível Demônio – o Pensamento.<br />

VII<br />

Gozem outros arroubos de delícias,<br />

E em paz desfrutem tudo o que abandono!<br />

Oxalá que aos seus sonhos de ventura<br />

Mais feliz despertar os céus lhe fadem!<br />

VIII<br />

Sou condenado a errar por mil países,<br />

C’o anátema horroroso das lembranças:<br />

Meu consolo ao sofrer desgraças novas,<br />

É que a maior de todas já feriu-me.<br />

IX<br />

Que desgraça esta é. – Ah! não me inquiras;<br />

Por piedade; sim, não me interrogues:<br />

Continua a sorrir; rasgar não busques<br />

O véu de um coração que oculta o inferno.<br />

LORD BYRON. A Ignez. Tradução de João Cardoso de Meneses e Sousa<br />

Júnior. Ensaios Litterarios, São Paulo: Typographia do Governo. p. 18-19. 1848.<br />

2. Nenhum outro poema de Byron foi tão traduzido no Brasil<br />

quanto “To Inez”, e o confronto de suas diferentes versões<br />

tem se mostrado no mínimo revelador. Segundo nossos levantamentos,<br />

a primeira tradução brasileira da canção foi<br />

publicada no ano de 1848. Confronte-a com a imitação de Fagundes<br />

Varela, “Childe Harold” (página 30), publicada mais<br />

de 15 anos depois, e atente ao estilo de ambas as versões. A<br />

seguir, responda:<br />

a) Em qual versão é possível perceber uma maior carga de<br />

elementos que evocam a morte, os mortos ou o aparato sepulcral?<br />

Justique sua resposta com elementos do próprio texto.<br />

b) Que temas de “To Inez” podem ser identificados na tradução<br />

de João Cardoso?<br />

c) Os temas que você identificou se mantiveram intactos na<br />

imitação de Fagundes Varela?<br />

TEXTO 3<br />

FOGE DE MIM<br />

Estilo: Na criação literária, é a escolha de recursos expressivos da<br />

língua que refletem as intenções e a natureza de quem escreve.<br />

Foge de mim, qual foge o passarinho<br />

Do tronco estéril sem raiz na terra,<br />

Sem sombra nem folhagem;<br />

Foge, – não queiras perscrutar desta alma<br />

A lúgubre voragem.<br />

Não vás crestar nas chamas de meu peito<br />

Do cálix teu a mádida frescura,<br />

Gentil, cândido lírio;<br />

Foge, – não queiras esgotar comigo<br />

A taça do martírio.<br />

Sorris?… oh! quanto é belo o teu sorriso;<br />

Mas em minha alma derramar não podem<br />

3


Nem sombra de ventura;<br />

São como os raios da manhã fulgindo<br />

Em feia sepultura.<br />

Ah! tu choras; – e as lágrimas que vertes,<br />

Na aridez de meu peito vêm secar-se,<br />

Bem como almo rocio,<br />

Que o céu derrama em vão na ardente areia<br />

De páramo bravio.<br />

Dizem que os dias meus correm serenos!…<br />

Não creias, não; – a paz que me rodeia<br />

É lúgubre ironia;<br />

É como essa que os túmulos povoa,<br />

Paz gélida e sombria.<br />

Quem me dera chorar! – o pranto é sangue<br />

Que nos escorre das feridas d’alma,<br />

E o gérmen peçonhento<br />

Delas lavando, um pouco a dor acalma,<br />

E adoça o sofrimento.<br />

Não vertem sangue as úlceras desta alma,<br />

E nem ressoa fora de meu peito<br />

De minha dor o grito.<br />

Em suspiros não sai; – tenaz se agarra<br />

Ao coração aflito.<br />

Eu bem quisera amar-te; – mas como hei de<br />

Guiar-te pelas sendas em que piso,<br />

Em que só vejo espinhos?…<br />

Como?!… se para mim estão fechados<br />

Do porvir os caminhos?…<br />

Fica-te pois em teu puro horizonte,<br />

Belo astro de amor, e não pretendas<br />

Perder tua luz pura,<br />

Nesta, que a triste vida me escurece,<br />

Medonha noite escura.<br />

Hera mimosa e tenra, oh! não te abraces<br />

Ao tronco estéril sem raiz na terra,<br />

Sem folhagem no céu;<br />

Melhor seria te envolvesse a fronte<br />

O mortuário véu.<br />

GUIMARÃES, Bernardo Joaquim da Silva. Poesias de B. J. da Silva Guimarães.<br />

Rio de Janeiro: B.-L. Garnier, 1865. p. 295-297.<br />

3. Entre os principais motivos literários que nortearam a poesia<br />

byroniana brasileira, o da recusa amorosa, de notável disseminação,<br />

pode ser exemplificado por obras como “Versos<br />

escritos sobre um álbum” (1849), do Barão de Paranapiacaba,<br />

“Foge de mim” (1865), de Bernardo Guimarães, “Amargura”<br />

(1873), de Aureliano Lessa, e “Descrença” (poema anônimo<br />

publicado pelo periódico carioca A Luz em 1872). Além do<br />

tema, os poemas supracitados compartilham o mesmo modelo<br />

estético e formal: a canção “To Inez” (da qual você pôde<br />

ler duas traduções e uma imitação em português). Reflita<br />

sobre essas afirmações e responda:<br />

Motivo: Tema que, recorrente em determinado autor ou tradição,<br />

serve como o desencadeador de uma ou mais ações. O motivo da mulher<br />

idealizada que esvaece, sumindo nas ondas ou evaporando, por<br />

exemplo, pode servir de ponto de partida para o tratamento da decadência<br />

de determinado modelo de feminilidade.<br />

a) Que elementos do poema de Bernardo Guimarães podem<br />

confirmar ou refutar a afirmação do enunciado de que “Foge<br />

de mim” também se modela em “To Inez”?<br />

b) Aponte as três passagens do poema brasileiro em que há<br />

intertextualidade com a canção inglesa. Os trechos selecionados<br />

citam Byron repercutindo ou subvertendo o sentido<br />

geral de seus versos?<br />

Intertextualidade: Aspecto da transtextualidade que consiste na presença<br />

de aspectos de um texto em outro por meio de citações, alusões,<br />

plágios etc.<br />

4


c) Em “Foge de mim”, Bernardo Guimarães lança mão de várias<br />

imagens poéticas. Algumas delas são elaboradas como<br />

símiles, figuras de pensamento que se diferenciam das metáforas<br />

por relacionarem seres de natureza diversa por meio<br />

de conectivos comparativos (“um sentimento é como uma<br />

paisagem”, “um ser vivo é como um fenômeno natural” etc.).<br />

Identifique os quatro símiles presentes no poema e responda:<br />

como eles caracterizam o enunciador?<br />

LEITURA 2<br />

O ABADE DO CRÂNIO<br />

TEXTO 4<br />

Foi encontrado pelo jardineiro, durante uma escavação, um<br />

crânio que provavelmente pertenceu a algum venturoso frei ou<br />

monge da Abadia nos tempos em que ela foi “desmonasterizada”.<br />

(…)<br />

Ao observar-lhe o tamanho gigante e o perfeito estado de<br />

preservação, vi-me tomado pelo estranho capricho de adaptá-lo e<br />

montá-lo como uma taça. Conseqüentemente, enviei-o à cidade,<br />

e ele retornou perfeitamente polido, em cores matizadas como<br />

as dos cascos de tartaruga (o Coronel Wildman é seu dono agora).<br />

Lembro-me de ter escrito alguns versos a respeito, mas isso<br />

não foi tudo: posteriormente, estabeleci na Abadia uma nova<br />

ordem. Seus membros somavam doze, e eu me autodeclarei<br />

grão-mestre, ou Abade do Crânio, um imponente título heráldico.<br />

Um conjunto de hábitos negros, o meu diferenciado dos<br />

demais, foi encomendado, e de tempos em tempos, quando um<br />

dia particularmente revolto era esperado, um capítulo era convocado;<br />

o crânio era então preenchido com vinho tinto e, numa<br />

imitação dos antigos godos, circulado pelos deuses do Consistório,<br />

enquanto várias piadas sinistras eram feitas a sua custa.<br />

Tradução do organizador.<br />

MEDWIN, Thomas. Conversations of Lord Byron: noted during<br />

a residence with his lordship at Pisa, in the years 1821 and 1822.<br />

London: Henry Colburn. 1824. p. 70-71.<br />

1. Poucos trechos da longa seqüência de entrevistas entre Byron<br />

e Medwin foram tão reproduzidos quanto o que acabamos de<br />

destacar. Ao confirmar rumores a respeito de seu crânio-taça, a<br />

declaração do poeta serviu de base não apenas a ensaios críticos<br />

e biográficos, mas também a uma longa lista de textos acidentais<br />

que ajudaram a exportá-lo como um semideus do imaginário<br />

frenético. A surpreendente acolhida desse trecho fez com<br />

que ele se tornasse a maior referência sobre a vida estudantil<br />

de Byron, com desdobramentos literários fundamentais ao desenvolvimento<br />

da ficção byroniana brasileira. Voltemos a ele,<br />

portanto, como ponto de partida de outras reflexões:<br />

a) O local de residência de Byron (uma abadia medieval), a<br />

suposição de que o crânio desenterrado tenha pertencido a<br />

um frei ou monge, o estabelecimento de uma “nova ordem”<br />

monástica e o abuso de jargão eclesiástico católico (“capítulo”,<br />

“consistório” etc.), entre outros elementos, impregnam<br />

o relato de elementos próprios à esfera religiosa. De que maneira<br />

o Catolicismo é tratado no texto?<br />

b) Ao qualificar Abade do Crânio como “um imponente título<br />

heráldico” e descrever seus companheiros de orgia como<br />

“deuses do Consistório”, Byron emprega uma linguagem hiperbólica<br />

(propositalmente exagerada) ou irônica (contrária<br />

ao que realmente deseja expressar)? Justifique sua resposta<br />

com elementos do contexto do qual as expressões constam.<br />

c) O poema de Byron traduzido por Castro Alves como “A uma<br />

taça feita de um crânio humano” (página 26) foi fielmente vertido<br />

ao português por Péricles Eugênio da Silva Ramos. O título<br />

de sua versão publicada em 1989, “Versos inscritos numa taça<br />

feita de um crânio”, reforça o tom de profanação observável no<br />

original ao sugerir que as convidativas estrofes lidas na caixa<br />

óssea teriam sido gravadas por um terceiro. Ciente dessa sutileza<br />

do título original, relacione o poema ao relato de Byron para<br />

tecer argumentos a favor de apenas uma das seguintes proposições:<br />

1) “os versos que lemos são manifestações debochadas<br />

do espírito da caveira, que procura atenuar seu presente estado<br />

e encorajar seu portador a beber nela”; 2) “os versos que<br />

lemos são o toque final de abuso por parte daquele que, além<br />

5


de não devolver o crânio ao túmulo, transformou-o em taça<br />

por capricho e, por meio das inscrições, fez dele uma espécie<br />

de fantoche a ironizar a própria profanação”.<br />

TEXTO 5<br />

UMA ORGIA DE LORD BYRON EM VENEZA<br />

“Tratávamos, amigos, da imortalidade da alma. É uma<br />

verdade de sentimento? É uma verdade de razão? É mister<br />

entendermo-nos; e, para isso, bebamos!<br />

– É uma verdade de sentimento.<br />

– Peters! destapa o champanhe, e dize-nos se sentes a<br />

tua alma em algum lugar.<br />

– Com o respeito que vos devo, Senhor, certo que não.<br />

– Bem! chamem o meu cocheiro, o meu moço da estrebaria,<br />

os meus criados todos, e perguntem-lhes se têm o<br />

sentimento da sua alma.<br />

– É inútil, Byron. Será, se o quiserdes, uma verdade de<br />

razão.<br />

– De razão? – Por São Jorge! estou louco, eu, que não<br />

creio nela! – Ouvi, amigos, é uma disputa frívola. Acreditamos<br />

em uma alma, como acreditamos na Providência<br />

quando não temos nem um real. Possuindo mil guinéus, sou<br />

ateu, bebo; tendo apenas quinhentos, sou pirrônico, discuto<br />

e duvido; quando tenho cem, sou deísta, creio; enfim quando<br />

nada tenho, sou religioso, oro e – amo. Porque é preciso<br />

ter uma alma profundamente religiosa para amar. No amor<br />

– tudo é religião. O gérmen é o mesmo. Amai uma espanhola<br />

e ouvi uma missa de finados; vede seus olhos negros<br />

a vos seguirem por entre as pilastras de uma catedral e contemplai<br />

os pálidos brandões esmorecidos pelo incenso – que<br />

banham com sua luz mortiça a imagem da Virgem; tomai<br />

da mão acetinada da castelhana ou mergulhai vossos dedos<br />

na pia de pórfido; casai-a ao vosso peito – a ela com suas<br />

lágrimas, seus gritos e sua mantilha enrugada ou embebeivos<br />

no êxtase ao levantar o sacerdote a Hóstia no momento<br />

da consagração; e depois – perguntai ao coração a diferença<br />

que sente nessas duas emoções. Amigos – nenhuma. Assim,<br />

pois, orar é amar; beber, – ainda é amar. O amor e a religião<br />

existem em toda parte. A propósito disso convido-vos a todos<br />

se me quereis bem, para beber por esta taça.<br />

Homero vos diria: “Agathos a possuía de Osmindas;<br />

Osmindas a ganhara a Triptolemo nos jogos do Disco; Triptolemo<br />

a recebera de Júpiter”. Mas eu digo-vos: “Está cheia<br />

de vinho das Canárias”. Bebei!<br />

– É extraordinário, Byron. Que louca idéia a de fazer engastar<br />

em ouro esta taça de marfim, assentá-la sobre um pé a<br />

semelhar um esqueleto cujos olhos ocos de nós escarnecem,<br />

cuja boca parece beber conosco! Byron, sois egípcio e quereis<br />

que vossos amigos alegres vos paguem a quota da tristeza?…<br />

Vamos, ei-lo no delírio da melancolia. Peters, leva esta taça!…<br />

– Deixai-a… Vou contar-vos. Era uma mulher que encontrei<br />

em uma casa de jogo; sua sociedade era de dissolutos,<br />

banqueiros, membros do parlamento, filhos de lords, duques<br />

e condes. Em sua casa, Sardanapalo corara; mas ali, viva São<br />

Jorge, estávamos mais à vontade do que em um palácio,<br />

Senhores; nos entregávamos sem reserva ao vinho, à licença,<br />

ao prazer; eram mulheres que nos embriagavam, a nós<br />

aristocratas, com todo o descaro. Se tivésseis visto a minha;<br />

tomava rapé como Southey, o poeta, e cigarrava como um<br />

andaluz. Pobre mulher! amei-a…<br />

“Oh! peregrinei o mundo, bem o sabeis, Senhores; respirei<br />

o perfume das rosas de Madri, das pálidas anêmonas de<br />

Portugal, dos lírios da França. Falemos sem figuras; – amei<br />

as mulheres belas de todas as nações; conheci algumas que<br />

para me verem, a mim, Byron, saltaram de noite os muros<br />

do convento; outras que por paixão se afogaram no mar; outras<br />

que se finaram sem revelar o segredo de suas dores.<br />

Ri-me delas como um louco: porque após uma – outra: o Sol<br />

faz o mesmo: elas e as flores: num dia as cora, as desabotoa;<br />

no dia seguinte as mirra.<br />

“Porém ela, com seu vício e suas cartas e seus dedos<br />

carregados de diamantes e sua conversação cínica e sua<br />

ebriedade e seu brutal marido, ei-la sempre diante de mim.<br />

Dir-vos-ei por que a amei tanto.<br />

“Porque tinha um marido que envenenou por amor de<br />

mim: um homem belo, timbaleiro do Royal Cumberland.<br />

“Seu crime a conduziu ao cadafalso. Sou a causa da<br />

sua morte, bem o vedes; ah! deixai-me prantear a mulher<br />

do timbaleiro!”<br />

6


– Mas por quê, Byron, a propósito da história da taça<br />

vêm as recordações de uma libertina que hoje é apenas um<br />

pouco de pó?<br />

– Um pouco de pó? Em presença da morte, ao lembrar-me<br />

de tamanha perda, nada de materialismo, Senhores.<br />

Creio na imortalidade da alma, na ressurreição da carne, na<br />

remissão dos pecados, na vida eterna.<br />

– Amém! Byron, mas não choreis com tanta paixão um<br />

dia de embriaguez.<br />

– Que eu não chore?! Pois não sabeis que na noite da<br />

sua execução, procurei por ela, cortei-lhe a cabeça e mandei<br />

ferver essa cabeça? Não a comi, acreditai-o! Tirei-lhe os cabelos<br />

e a carne, e quando a mão do artista a poliu, um joalheiro<br />

de Milão ma afeiçoou em taça!<br />

– Grande Deus! Byron, fizeste-nos beber no crânio da<br />

vossa querida!<br />

E Byron caiu, completamente ébrio, debaixo da mesa.<br />

GOZLAN, Léon. Uma orgia de Lord Byron em Veneza. Trad. A. Ensaios<br />

Litterarios, São Paulo: Typographia do Governo. p. 19-21. 1848.<br />

2. Traduzido e publicado no Brasil sete anos após sua publicação,<br />

o conto do francês Léon Gozlan figurou entre<br />

os principais alicerces da nossa produção byroniana. Suas<br />

características – a estrutura dramática (na qual o diálogo<br />

predomina sobre a narração e a descrição), a ambientação<br />

simposíaca (focada nas conversas de orgias e festins), a<br />

tematização de discussões filosóficas enviesadas pela embriaguez<br />

e o rememorar de histórias fatais protagonizadas<br />

pelo próprio simposiarca – serviram de modelo a trechos<br />

de obras de vulto como “Folhas de minha carteira – fatalidade”<br />

(1850), de Andrada e Silva, e Noite na taverna (1855),<br />

de Álvares de Azevedo. Tenha em mente tais elementos ao<br />

prosseguir às questões.<br />

a) Contraste o relato do Byron real às lembranças do Byron<br />

fictício e responda: qual dos dois textos trata a aquisição<br />

do crânio de maneira “trágica”? Justifique sua resposta.<br />

b) Leia o seguinte trecho sobre a fase estudantil de Byron:<br />

“Formava uma espécie de associação monástica com os seus<br />

amigos e bebiam num crânio montado e cinzelado em prata;<br />

o que originou a infundada crença vulgar de que bebiam<br />

pelo crânio de uma fantástica amante que imaginavam morta<br />

violentamente” 1 . Confronte mentalmente o poema “A uma<br />

taça feita de um crânio humano” (página 25), o relato sobre a<br />

“nova ordem” colhido por Thomas Medwin e esse fragmento<br />

biográfico por Emilio Castelar. De acordo com esses textos,<br />

seria mais adequado descrever o conto de Gozlan como<br />

um tratamento literário de “elementos contidos no poema de<br />

Byron”, de “um de seus mais notórios episódios biográficos”<br />

ou de “uma das várias lendas circuladas a seu respeito”?<br />

TEXTO 6<br />

BERTRAM (EXCERTO)<br />

(…)<br />

– Por que empalideces, Solfieri? a vida é assim. Tu o<br />

sabes como eu o sei. O que é o homem? é a escuma que<br />

ferve hoje na torrente e amanhã desmaia: alguma coisa de<br />

louco e movediço como a vaga, de fatal como o sepulcro!<br />

O que é a existência? Na mocidade é o caleidoscópio das<br />

ilusões: vive-se então da seiva do futuro. Depois envelhecemos:<br />

quando chegamos aos trinta anos e o suor das agonias<br />

nos grisalhou os cabelos antes do tempo, e murcharam<br />

como nossas faces as nossas esperanças, oscilamos entre o<br />

passado visionário, e este amanhã do velho, gelado e ermo<br />

– despido como um cadáver que se banha antes de dar à<br />

sepultura! Miséria! loucura!<br />

– Muito bem! miséria e loucura! interrompeu uma voz.<br />

O homem que falara era um velho. A fronte se lhe descalvara,<br />

e longas e fundas rugas a sulcavam – eram ondas<br />

que o vento da velhice lhe cavava no mar da vida… Sob espessas<br />

sobrancelhas grisalhas lampejavam-lhe os olhos pardos<br />

e um espesso bigode lhe cobria parte dos lábios. Trazia um<br />

gibão negro e roto, e um manto desbotado, da mesma cor<br />

lhe caía dos ombros.<br />

CASTELAR, Emilio. A vida de Lord Byron. Tradução de M. Fernandez Reis. Porto: Typographia<br />

do Jornal do Porto, 1876. p. 41.<br />

7


– Quem és, velho? perguntou o narrador.<br />

– Passava lá fora: a chuva caía a cântaros: a tempestade era<br />

medonha: entrei. Boa noite, senhores! se houver mais uma taça<br />

na vossa mesa, enchei-a até às bordas e beberei convosco.<br />

– Quem és?<br />

– Quem eu sou? na verdade fora difícil dizê-lo: corri<br />

muito mundo, a cada instante mudando de nome e de vida.<br />

– Fui poeta – e como poeta cantei. Fui soldado e banhei<br />

minha fronte juvenil nos últimos raios de sol da águia de<br />

Waterloo. – Apertei ao fogo da batalha a mão do homem<br />

do século. Bebi numa taverna com Bocage – o Português,<br />

ajoelhei-me na Itália sobre o túmulo de Dante – e fui à Grécia<br />

para sonhar como Byron naquele túmulo das glórias<br />

do passado. – Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos,<br />

um libertino aos trinta – sou um vagabundo sem pátria e<br />

sem crenças aos quarenta. Sentei-me à sombra de todos os<br />

sóis – beijei lábios de mulheres de todos os países – e de<br />

todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças – um amor<br />

de mulher que morreu nos meus braços na primeira noite<br />

de embriaguez e de febre – e uma agonia de poeta… Dela,<br />

tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos.<br />

– Dele – olhai…<br />

O velho tirou do bolso um embrulho: era um lenço vermelho<br />

o invólucro: desataram-no: dentro estava uma caveira.<br />

– Uma caveira! gritaram em torno: és um profanador<br />

de sepulturas?<br />

– Olha, moço, se entendes a ciência de Gall e Spurzheim,<br />

dize-me pela protuberância dessa fronte, e pelas bossas dessa<br />

cabeça quem podia ser esse homem?<br />

– Talvez um poeta – talvez um louco.<br />

– Muito bem! adivinhaste. Só erraste não dizendo que<br />

talvez ambas as coisas a um tempo. Sêneca o disse – a poesia<br />

é a insânia. Talvez o gênio seja uma alucinação, e o entusiasmo<br />

precise da embriaguez para escrever o hino sanguinário<br />

e fervoroso de Rouget de l’Isle, ou para, na criação<br />

do painel medonho do Cristo morto de Holbein, estudar<br />

a corrupção no cadáver. Na vida misteriosa de Dante, nas<br />

orgias de Marlowe, no peregrinar de Byron havia uma sombra<br />

da doença de Hamlet: quem sabe?<br />

– Mas a que vem tudo isso?<br />

– Não bradastes – miséria e loucura! – vós, almas onde<br />

talvez borbulhava o sopro de Deus, cérebros que a luz divina<br />

do gênio esclarecia, e que o vinho enchia de vapores e a saciedade<br />

de escárnios? Enchei as taças ate à borda! enchei-as e<br />

bebei; bebei à lembrança do cérebro que ardeu nesse crânio,<br />

da alma que aí habitou, do poeta-louco – Werner! e eu bradarei<br />

ainda uma vez: – miséria e loucura!<br />

(…)<br />

AZEVEDO, Alvares de. Noite na taverna. In: PIRES, Homero (org.). Obras<br />

completas de Alvares de Azevedo. São Paulo/Rio de Janeiro/Recife/Porto Alegre:<br />

Companhia <strong>Editora</strong> Nacional. 1942. v. 2. p. 112-115.<br />

3. Publicação póstuma de Álvares de Azevedo, Noite na taverna<br />

(1855) é uma das obras mais lidas do Romantismo brasileiro.<br />

Conhecê-la bem é familiarizar-se com alguns dos principais<br />

motivos de nossa produção byroniana, e entender seu<br />

diálogo com a tradição literária européia é o primeiro passo<br />

para a compreensão do papel exercido pela transtextualidade<br />

em nosso byronismo. Leia atentamente o trecho selecionado<br />

e estabeleça mentalmente alguns paralelos entre o excerto<br />

de Álvares de Azevedo e o conto de Léon Gozlan. Em seguida,<br />

prossiga às questões a seguir.<br />

a) Assim como no conto francês, em determinado momento<br />

os convivas reunidos no texto brasileiro voltam suas atenções<br />

a um crânio humano. Em relação ao uso que se faz<br />

delas, o que diferencia as duas caveiras dessas obras? E em<br />

relação ao relato de Byron? O sentimento que leva os portadores<br />

fictícios de ambas as “relíquias” a mantê-las é o mesmo<br />

demonstrado pelo poeta inglês?<br />

b) Atente às seguintes passagens: “um poeta aos vinte anos,<br />

um libertino aos trinta – sou um vagabundo sem pátria e<br />

sem crenças aos quarenta”, “beijei lábios de mulheres de<br />

todos os países” e “um amor de mulher que morreu nos<br />

meus braços”. Relacione esses trechos ao conto de Gozlan<br />

e responda: já que Álvares de Azevedo figurava entre os colaboradores<br />

do periódico Ensaios Litterarios, no qual a tradução<br />

desse conto foi publicada, é bastante provável que ele<br />

8


a tenha lido; assim, caso as passagens assinaladas tenham<br />

sido cunhadas visando à intertextualidade, quais seriam as<br />

prováveis passagens da obra francesa que nosso poeta teria<br />

implicado em seu texto?<br />

c) Assuma que o “velho” do trecho lido tenha sido efetivamente<br />

calcado em Byron. Em sua opinião, com “qual Byron” esse<br />

homem compartilha mais traços comuns: o poeta de “carne e<br />

osso” ou a personagem de Gozlan? Justifique sua resposta.<br />

LEITURA 3<br />

OS MONGES NEGROS<br />

TEXTO 7<br />

É algo de curioso e místico o fato de, no período ao qual<br />

aludo – e pouquíssimo tempo, apenas um mês, antes de ele<br />

pedir com êxito a mão da senhorita Milbanke –, estando em<br />

Newstead, ele cogitar ter visto o fantasma do monge que supostamente<br />

assombra a abadia e faz sua aparição ominosa<br />

quando desventura ou morte iminente ameaçam o mestre da<br />

mansão. – A história da aparição no décimo sexto canto de<br />

Don Juan deriva dessa lenda familiar, e a Abadia Normanda,<br />

no décimo terceiro canto do mesmo poema, é uma descrição<br />

rica e elaborada de Newstead.<br />

Tradução do organizador. GALT, John. The Life of Lord Byron.<br />

New York: J & J. Harper, 1830. p. 185.<br />

1. Em 1830, o poeta inglês Thomas Moore, amigo íntimo de<br />

Byron durante boa parte de sua vida, publicou o indispensável<br />

Letters and journals of Lord Byron. Exaustivamente citadas pelas<br />

biografias do poeta, as notas de rodapé do livro freqüentemente<br />

ressurgiam transplantadas em outros textos. Uma delas, a<br />

que relata o encontro de Byron com o lendário “monge negro”<br />

da abadia de Newstead, por exemplo, serviu de base para<br />

um trecho da biografia The life of Lord Byron (1830), de John<br />

Galt, que a expandiu relacionando-a ao casamento de Byron e<br />

a passagens de Don Juan. Baseado na <strong>leitura</strong> desse trecho e da<br />

canção “O monge negro” (página 59), responda:<br />

a) Segundo Galt, o “fantasma do monge” faz sua “aparição<br />

ominosa [ou seja, de mau agouro] quando desventura ou<br />

morte iminente ameaçam o mestre da mansão”. Além dessas<br />

duas circunstâncias (desventura e morte), quais são as<br />

duas outras ocasiões em que, de acordo com o poema, é comum<br />

que o espectro se manifeste?<br />

b) Em outra curiosa passagem da biografia publicada por<br />

Galt, o autor conjectura que o crânio encontrado pelo jardineiro<br />

de Byron “deve ter sido o do monge que assombrava a<br />

casa, ou de um de seus ancestrais, ou de alguma vítima da<br />

sisuda raça”. É possível apontar, em “O monge negro”, passagens<br />

que confirmem essa suposta relação entre o espectro<br />

e o crânio-taça de Byron?<br />

TEXTO 8<br />

O MONGE DO HORROR; OU, O CONCLAVE DE CADÁVERES<br />

Há cerca de trezentos anos, nos dias de glória do convento<br />

de Kreutzberg, um dos monges ali confinados, desejoso de averiguar<br />

algo acerca da posteridade daqueles cujos corpos jazem<br />

incorruptos no cemitério, visitou-o desacompanhado na calada<br />

da noite a fim de esclarecer suas dúvidas a respeito daquele temeroso<br />

assunto. Tão logo abriu o alçapão da câmara, uma luz<br />

irrompeu de baixo; supondo, porém, tratar-se da lamparina do<br />

sacristão, o monge recuou e aguardou sua passagem escondido<br />

atrás do elevado altar. O sacristão, porém, não saiu pela abertura<br />

e, cansado de esperar, o monge aproximou-se e finalmente<br />

desceu os degraus tortuosos rumo à lúgubre profundeza.<br />

Assim que seus pés palmilharam o último lance de escadas,<br />

o cenário bem conhecido por ele havia sofrido uma completa<br />

transformação ante seus olhos. Há tempos ele se acostumara a<br />

visitar a câmara, e, cada vez que o sacristão para lá se dirigia, era<br />

quase certo que ele o acompanhasse. Dessa forma, conhecia<br />

cada uma de suas partes tão bem como o interior de sua estreita<br />

cela; além disso, a disposição de seu conteúdo era perfeitamen-<br />

9


te familiar ao seu olhar. Destarte, qual não foi seu horror ao<br />

perceber que esse arranjo, que até aquela manhã pareceu-lhe<br />

normal, apresentava-se inteiramente alterado, tendo sido substituído<br />

por uma nova e insólita arrumação?<br />

Permeou o breu da desolada câmara uma luz crepitante<br />

e débil, quase incapaz de vislumbrar-lhe aquele panorama<br />

da mais singular descrição.<br />

Por todos os lados, os corpos mumificados dos confrades<br />

inumados há tempos estavam sentados em seus caixões destampados;<br />

seus gélidos e faiscantes olhos encaravam-no com<br />

mortuosa rigidez, seus definhados dedos cobriam-lhes os peitos,<br />

seus membros enrijecidos permaneciam silenciosamente<br />

estáticos. Era uma visão de petrificar os mais intrépidos corações,<br />

e o monge horripilou-se ante ela, apesar de ser um filósofo<br />

e, além disso, cético. Na porção mais elevada ao fim da<br />

câmara, numa mesa rústica formada por um esquife deteriorado,<br />

ou algo que servira ao mesmo propósito, sentaram-se três<br />

monges. Eram os cadáveres mais antigos do ossário, pois o irmão<br />

inquisitivo conhecia bem seus rostos; e o matiz cadavérico<br />

de suas faces parecia ainda mais cadavérico na penumbra sobre<br />

elas projetada, enquanto as ocas órbitas de seus olhos exalavam<br />

algo como centelhas fumegantes. Um grande livro jazia aberto<br />

ante um deles, e os outros se debruçaram sobre a mesa apodrecida<br />

contorcendo-se como se padecessem de intensa dor, ou<br />

com profunda e absorta atenção. Palavra alguma foi dita; som<br />

algum foi ouvido; a câmara estava quieta como um túmulo;<br />

seus funestos inquilinos, estáticos como estátuas.<br />

O curioso monge daria tudo para retirar-se deste lugar<br />

horrível, daria tudo para descobrir o caminho de volta e procurar<br />

novamente sua cela, daria tudo para fechar seus olhos ante a<br />

cena aterradora; mas ele não conseguia afastar-se daquele local,<br />

sentia-se enraizado ali. Apesar de antes ter conseguido volver seu<br />

olhar à entrada da câmara, para sua infinita surpresa e desolação<br />

ele não era mais capaz de apontá-la, nem de perceber quaisquer<br />

meios de escapar. Assim permaneceu por alguns instantes até<br />

que, finalmente, o velho monge à mesa acenou para que se aproximasse.<br />

Com passos lentos e hesitantes ele avançou ao grupo,<br />

parando a seguir diante da mesa, enquanto os demais monges<br />

levantaram suas cabeças e o encararam fixamente com olhares<br />

vítreos que congelaram seu sangue nas veias. Ele não sabia o que<br />

fazer; suas faculdades rapidamente o abandonavam; o Céu parecia<br />

tê-lo deserdado por sua incredulidade. Nesse momento de<br />

dúvida e temor, lembrou-se de orar e, à medida que prosseguia,<br />

sentiu-se possuído por uma confiança que até então desconhecia.<br />

Ele olhou o livro à sua frente. Era um grande tomo, de encadernação<br />

preta reforçada por tiras de ouro, com um fecho do mesmo<br />

metal. No cabeçalho de cada página lia-se Liber Obedientiae .<br />

Nada mais pôde ler. Então olhou, primeiro nos olhos<br />

daquele ante quem o livro se abria, depois nos de seus pares.<br />

Finalmente, viu ao redor da cripta os cadáveres que ocupavam<br />

cada esquife visível nesse negro e vasto útero. A fala se<br />

lhe apresentou, assim como a iniciativa de usá-la. Dirigiu-se<br />

aos seres hediondos em cuja presença se encontrava, com<br />

termos próprios de alguém com autoridade sobre eles.<br />

– Pax vobis – destarte se pronunciou.<br />

– Hic nulla pax – respondeu-lhe um velho monge num<br />

timbre trêmulo e solene, enquanto descobria seu peito.<br />

Ele apontou o próprio tórax enquanto falava – e o monge,<br />

deitando ali o seu olhar, entreviu sob suas costelas um<br />

coração cercado por chamas que dele pareciam alimentar-se<br />

sem, porém, consumi-lo. Virou-se num transporte de horror,<br />

mas não encerrou sua interpelação.<br />

– Pax vobis in nomine Domini – ele tornou a dizer.<br />

– Hic non pax – os tons abismais e pungentes do vetusto<br />

monge sentado à direita na mesa ressoaram como resposta.<br />

Após essas palavras, o ente a quem elas se endereçavam<br />

levantou sua cabeça, aproximou sua mão e, fechando o<br />

livro com forte estampido, disse:<br />

– Fala. Cabe a ti perguntar e a mim responder.<br />

O monge sentiu-se assegurado e, com isso, sua coragem<br />

reergueu-se.<br />

– Quem sois vós? – ele interpela; – quem podeis ser?<br />

– Não sabemos! – foi a resposta, – lástima! Não sabemos!<br />

– Não sabemos, não sabemos! – ecoaram em tons merencórios<br />

os habitantes da câmara.<br />

“Livro da Obediência.”<br />

“Que a paz esteja convosco.”<br />

“Não há paz alguma aqui.”<br />

“Que a paz esteja convosco, em nome do Senhor.”<br />

“Não há paz aqui.”<br />

10


– O que fazeis aqui? – prosseguiu o inquiridor.<br />

– Aguardamos o derradeiro dia, o dia do Juízo Final!<br />

Quão desafortunados! Ai de nós!<br />

– Ai de nós! – reverberaram todos os lados.<br />

O monge estava consternado, mas mesmo assim<br />

prosseguiu.<br />

– Que fizestes para merecer tal fadário? Qual crime<br />

vosso seria merecedor de tal pesar e angústia?<br />

Ao levantar a questão, o solo sob ele tremeu, e uma turba<br />

de esqueletos empilhou-se de um sem-número de covas<br />

repentinamente escancaradas aos seus pés.<br />

– Aí estão nossas vítimas – respondeu o velho monge.<br />

– Elas sofreram em nossas mãos. Sofremos agora, enquanto<br />

estão em paz; e continuaremos a sofrer.<br />

– Por quanto tempo? – perguntou o monge.<br />

– Para todo o sempre! – foi a resposta.<br />

– Para todo o sempre, para todo o sempre! – o som dissipou-se<br />

ao longo da câmara.<br />

– Que Deus tenha piedade de nós! – foi tudo o que o<br />

monge pôde exclamar. Os esqueletos sumiram, os túmulos<br />

lacrando-se sobre eles. Os anciãos desapareceram de sua vista,<br />

os cadáveres tombaram de volta aos seus esquifes, o lume<br />

extinguiu-se e o covil de morte foi mais uma vez recoberto<br />

por seu negrume usual.<br />

Em seu despertar, o monge se viu estendido ao pé do altar.<br />

A aurora plúmbea de uma manhã primaveril se fez visível<br />

e ele ansiava por retirar-se tão secretamente quanto lhe fosse<br />

possível, temeroso da possibilidade de ali flagrarem-no.<br />

Daí em diante, diz a lenda, ele evitou a vã filosofia e<br />

– devotando seu tempo à busca do verdadeiro conhecimento<br />

e à extensão do poder, da grandeza e da glória da Igreja<br />

– morreu no odor da santidade e foi enterrado naquela cripta<br />

sagrada, onde seu corpo ainda pode ser visto.<br />

Tradução do organizador.<br />

THE monk of horror. In: HAINING, Peter (ed.). Great british tales of terror.<br />

Harmondsworth: Penguin, 1974. p. 133-137.<br />

2. Publicado originalmente na coletânea Tales of the Crypt<br />

(1798), o conto anônimo “The monk of horror, or The con-<br />

clave of corpses” teve sua sobrevida garantida por antologias<br />

que, ao traçar a história da literatura terrífica, o utilizaram<br />

como exemplo dos títulos baratos que diluíram os lugarescomuns<br />

do romance gótico inglês entre a população de baixa<br />

renda. Seu clímax alude ao final de Vathek (1786), de William<br />

Beckford, no qual é revelada a punição do arquidemônio<br />

Eblis àqueles que alimentam paixões irrefreáveis: a “perda<br />

da esperança”, acompanhada de chamas inextinguíveis que<br />

lhes devorarão o coração. Ao lê-lo, tenha em mente o poema<br />

“O monge negro” e, após sua <strong>leitura</strong>, prossiga às questões:<br />

Romance gótico: Escola do romance inglês iniciada pela publicação do influente<br />

O Castelo de Otranto (18 ), de Horace Walpole. Seus enredos, geralmente ambientados<br />

na Idade Média, eram pontuados pelas atrocidades de vilões marcantes<br />

que ameaçavam uniões amorosas. Entre seus principais recursos, destaca-se<br />

o uso ora requintado, ora sensacionalista de referências do imaginário sobrenatural,<br />

geralmente pinçadas de antigas lendas e superstições. A estética gótica na<br />

literatura predominou na ficção e no drama ingleses até a década de 18 0, mas<br />

inúmeras obras românticas e vitorianas também beberam de seu legado.<br />

a) No aparato fantasmagórico da literatura gótica, freiras,<br />

padres e monges mortos-vivos geralmente desempenham<br />

papéis secundários, e romances como O monge (1796),<br />

Manuscrito encontrado em Saragoça (1805) e Melmoth, o<br />

viandante (1820) o comprovam. Porém, nos contos góticos<br />

publicados nos panfletos baratos conhecidos como gothic<br />

bluebooks, a brevidade das narrativas não permitia a existência<br />

de algo como um “enredo secundário”, o que fazia<br />

com que o episódio sobrenatural apresentado se tornasse<br />

o cerne do texto, implicando assim todos os traços de sua<br />

carga ideológica. Observe a caracterização dos monges mumificados,<br />

compare-a com a do “monge negro” e responda…<br />

Em qual caso a “morte em vida” é um meio de o(s)<br />

monge(s) se vingar(em)? Em qual caso ela é um castigo<br />

para ele(s)?<br />

b) O conto exala um acentuado anticatolicismo, algo muito<br />

comum na literatura da Inglaterra, um país anglicano.<br />

Aliás, o fato de essa história publicada no século XVIII ter<br />

sido ambientada na Alemanha de “trezentos anos atrás”<br />

(ou seja, antes da Reforma de Martinho Lutero), deixa claro<br />

11


que o convento de Kreutzberg abriga uma ordem católica.<br />

Da mesma maneira, o “monge negro” de Byron também<br />

já assombrava sua abadia antes da dissolução da Igreja<br />

Católica na Inglaterra: há até mesmo uma passagem que<br />

evoca as ordens do rei Henrique VIII, o criador do Anglicanismo,<br />

no sentido de que inúmeras construções católicas<br />

fossem desapropriadas e vendidas aos nobres. Ciente<br />

desses dados, responda: em sua opinião, é possível que<br />

– nos dois textos – essa caracterização terrível do passado<br />

católico coexista com elementos de valorização do Cristianismo?<br />

Justifique sua resposta com passagens das obras.<br />

TEXTO 9<br />

A GUARIDA DE PEDRA (EXCERTO)<br />

(…)<br />

O soldado levantou-se um pouco sobre o cotovelo, passou<br />

a mão pela testa, e falou desta maneira:<br />

– Eu estava encostado à guarida com minha espingarda<br />

ao lado, e assobiava para distrair-me do medo que<br />

se tinha apoderado de mim. Sem uma estrela acordada, o<br />

céu era negro como uma furna, o vento corria desesperado,<br />

e o mar empolado batia com tal fúria sobre as pedras<br />

que até fazia a escuma entrar pelas janelinhas da guarida.<br />

De repente, o relógio principiou a tocar; contei até onze<br />

pancadas, quando chegou a doze, ouvi uma gargalhada tão<br />

estridente, tão medonha, que os cabelos se me arrepiaram<br />

na cabeça, e a espingarda caiu de minhas mãos trêmulas;<br />

a gargalhada tinha soado perto, bem perto, a quatro passos<br />

de mim!… Nossa Senhora, agora mesmo parece-me que<br />

ainda a tenho nos ouvidos!…<br />

André interrompeu-se, os camaradas benzeram-se, e o<br />

comandante disse com interesse:<br />

– Continua, meu rapaz, continua.<br />

O rapaz prosseguiu nestes termos:<br />

– Inda bem a gargalhada não tinha acabado de soar,<br />

quando eu escutei o som lúgubre e funerário de uma sineta,<br />

era toque lento e compassado como o que anuncia um<br />

enterro. O suor corria-me em bagas pela testa, meus dentes<br />

rangiam com força e minhas pernas tremiam como varas<br />

verdes. Voltei o rosto para o lado… Oh! meu Deus! era horrível<br />

o que eu!…<br />

– Então calaste?… gritou o comandante já um pouco<br />

impressionado.<br />

– Eu vi, continuou André lentamente, eu vi uma figura<br />

sombria e medonha! era um frade; o capuz cobria-lhe<br />

a cabeça, e lá dentro, à luz amarelenta de um círio que<br />

trazia na mão, divisei um rosto lívido e esverdeado como<br />

o de um cadáver, e dois olhos que ardentes inflamados<br />

me faziam correr calefrios nas veias. Atrás dele vinham<br />

quatro vultos todos mais alvos do que a neve, e seguravam<br />

com uma mão um chicote fumarento, enquanto a outra<br />

sustinha um caixão mortuário. Eles caminhavam lentos<br />

que parecia gastar uma hora para mover um pé; e cantavam<br />

com voz trêmula e cavernosa a encomendação dos<br />

defuntos. Um vento gelado e furioso corria por todos os<br />

lados, as aves da morte piavam desoladamente, as ondas<br />

exalavam soluços frenéticos, batendo-se umas contra as<br />

outras. Entretanto a diabólica procissão caminhava sempre.<br />

O frade que ia na frente estava já perto, e estendia seu<br />

braço de esqueleto para me agarrar.<br />

– Valha-me, Nossa Senhora! gritei eu, então tudo sumiuse,<br />

frade, espectros, caixão mortuário, e eu caí sem sentidos<br />

no chão!<br />

(…)<br />

VARELA, Fagundes. Crenças populares: A guarida de pedra. In:<br />

CAVALHEIRO, Edgard. Fagundes Varela. São Paulo: Martins, 1953. p. 295-296.<br />

3. Os exemplares do jornal Correio Paulistano nos quais<br />

Fagundes Varela publicou vários de seus contos são hoje<br />

quase impossíveis de localizar. Dessas narrativas, apenas<br />

algumas foram reeditadas em biografias e coletâneas,<br />

sendo que várias delas ainda não estamparam páginas de<br />

livros. Nesse contexto, “A guarida de pedra” (1861) é uma<br />

das exceções, estando hoje acessível graças ao trabalho de<br />

Edgard Cavalheiro. Transcrevê-lo aqui seria, por razões de<br />

espaço, inviável, mas o breve trecho que selecionamos já<br />

vai ao encontro dos nossos objetivos. Tome-o, portanto,<br />

como base para as seguintes questões:<br />

12


a) Levando em conta a forma como André evita as aparições,<br />

responda: em sua opinião, a personagem do monge<br />

esquelético implica alguma forma de crítica aos crimes<br />

passados da Igreja Católica ou, segundo o uso que Fagundes<br />

Varela faz dele, trata-se simplesmente de uma retomada<br />

não-ideológica de um ícone tradicional da literatura<br />

de horror?<br />

b) Ciente de que o poema “O monge negro” é cantado por<br />

Lady Adeline como forma de precaver Don Juan, e de que a<br />

evocação a Nossa Senhora foi colocada na boca do soldado<br />

André, responda: tais trechos podem ser considerados provas<br />

definitivas da orientação religiosa de seus autores?<br />

13

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!