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Josiane Thethê Andrade - Uesb

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IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA<br />

HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.<br />

29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.<br />

Vitória da Conquista - BA.<br />

VOZES DO TABULEIRO: UM PORTAL PARA A MEMÓRIA<br />

<strong>Josiane</strong> <strong>Thethê</strong> Andra de<br />

Mestranda em História Regional e Local pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB)<br />

E-mail: jothethe@hotmail.com<br />

Palavras-chave: Vendas. Memória. Sociabilização. C ultura.<br />

O artigo aqui apresentado busca discuti r como um povoado rural do município de<br />

Mutuípe, Estado da Bahia, esteve intrinsecamente ligado as suas “vendas”. Estabelecimentos<br />

comerciais, que participaram efetivamente entre os anos 60 e 80 na dinâmica sócio -econômica<br />

e cultural do local. Bem como, esse s espaços eram praticados por sua população e como as<br />

vendas constituem um verdadeiro observatório popular revelador de comportamentos próprios<br />

dos homens do campo.<br />

Para realização da pesquisa foram utilizadas, sobretudo, narrativas de moradores<br />

locais, pessoas ditas comuns, cujas memórias expressas através da oralidade abriram<br />

perspectivas variadas não só para reconstruir uma história do povoado e de suas vendas como<br />

também para refletir sobre o processo de ressignificação da memória, em diferentes situações<br />

e temporalidades.<br />

Lugares de memória, assim se refere Nora (1993) aos lugares onde a memória se<br />

cristaliza e se refugia. Vestígios do passado presentes no espaço, no gesto, na imagem, no<br />

objeto. E seguindo estes restos de memória encontram -se evidências de um passado que o<br />

historiador com seu olhar perscrutor, mesmo carregado de signos do presente, pode usar para<br />

recompor a história de um lugar.<br />

No caso do povoado do Tabuleiro, os lugares de memória se apresentam nos cam inhos<br />

abertos pelos trabalhadores rurais que, diariamente, se dirigiam para suas roças ou de seus<br />

patrões para trabalhar. Numa casa velha, evidenciando antigos costumes. No balcão das<br />

vendas, onde muitos indivíduos se recostavam para conversar, beber, joga r, comprar ou<br />

vender produtos. Nas fotografias antigas que congelaram no papel momentos de alegrias e<br />

tristezas. Enfim, lugares de memória que trazem marcas concretas de um passado recente<br />

construído socialmente por aqueles que lá conviveram e convivem.<br />

Dentre estes lugares de memória, as vendas certamente marcaram a história do<br />

povoado e as lembranças daqueles que lá conviveram. A própria dinâmica econômica e social<br />

do local estava associada às suas vendas, pois eram elas que, geralmente, atraiam moradores<br />

povoados vizinhos. Aqueles que queriam conversar, comprar, vender, se divertir quase<br />

sempre procuravam as vendas do povoado, constituindo um importante local, não só de trocas


econômicas como de diversão, “um reduto de lazer popular” e conflitos (CHALHOUB,1986,<br />

p. 206). Segundo Chalhoub (1986, p. 231) a venda é um:<br />

[...] centro aglutinador e difusor de informações entre populares. E mais do<br />

que isto, a referência a venda como um “observatório popular”, sugere que<br />

este é um ponto privilegiado uma espécie de janela aberta para o estudo de<br />

padrões de comportamento dos homens pobres [...]. E, com efeito, a venda<br />

ou o botequim é cenário para o surgimento e desenrolar de rixas e conflitos<br />

pelos mais variados motivos, desde os problemas ligados ao trabalho e<br />

habitação, passando pelas questões de amor e relações entre vizinhos, e<br />

chegando até as contendas por motivos mais especificamente ligados ao<br />

lazer, como os jogos [...] ou a bebida.<br />

Muitos depoentes trouxeram em suas falas estes vários aspectos que envolve m a vida<br />

cotidiana nas vendas, explícitos por Chalhoub, ao relembrarem das brigas e assassinatos, das<br />

conversas animadas, dos dias que ficavam até altas horas da noite cantando, tocando, jogando<br />

e bebendo. Demonstrando que as vendas não são apenas lugares de trocas comerciais e de<br />

“bebedeira”, mas importantes espaços de sociabilização e conflitos.<br />

Aqueles que entram por um de suas diversas portas, vêem naquele ambiente imagens<br />

que lhes eram e continuam, em parte, sendo próprias. As vendas, naquela época, en tre os anos<br />

60 e 80, geralmente, tinham um balcão separando o espaço do vendedor e do freguês. Sobre o<br />

qual, eram colocados fardos de carne do sol e do sertão conhecida em outras regiões do Brasil<br />

como carne seca ou charque, peixes salgados, toucinhos de p orco, rolos de fumo, que os<br />

fregueses costumavam tirar algumas lascas moer e fazer cigarros enrolados em finas palhas de<br />

milho ou em papel apropriado sem pagar nada. Até mesmo costumavam provar as carnes<br />

salgadas e cruas como “tira -gostos”, acompanhados qu ase sempre por um copo de “pinga” ou<br />

um punhado de farinha de mandioca que estava à venda.<br />

Nas paredes uma profusão de mercadorias expostas nas prateleiras ou penduradas em<br />

ganchos, outras se espalhavam em cima de tábuas pelo chão. Havia também, uma mesa o u<br />

escrivaninha onde o vendeiro colocava o dinheiro ganho, seus cadernos de anotações e outros<br />

instrumentos de trabalho. Do lado do freguês, a parte externa do balcão, havia alguns bancos,<br />

cadeiras ou toras de madeira colocadas em posição vertical servindo como assentos. Algumas<br />

vendas possuíam mesas que serviam para o jogo de cartas ou simplesmente para servir os<br />

clientes e sinucas. Pelo chão, também se espalhavam mercadorias, sacos de farinha, caixas,<br />

rolos de corda, etc.<br />

2


.<br />

Figura 2 – Fotografia da venda Santa Ana.<br />

Fonte: autoria própria , setembro de 2003 .<br />

Neste espaço meio confuso como se percebe na fotografia (figura 1) recente da venda<br />

do Sr. Juvenal, hoje, falecido e cuja venda não está mais em funcionamento. As vendas<br />

conservam sua estrutura física e organizacional, permanecendo as carnes sobre o balcão; as<br />

mais variadas mercadorias distribuídas pelas prateleiras, em ganchos ou sobre tábuas pelo<br />

chão, o balcão separan do o espaço do vendeiro e dos clientes, etc. Contudo, é perceptível na<br />

foto, a introdução de elementos da modernidade como: frízeres, televisão e balança digital,<br />

entre outros, evidenciando melhoramentos técnicos dos instrumentos de trabalho do vendeiro,<br />

possibilitados, em parte pela chegada da luz elétrica no povoado em 1979 1 .<br />

As vendas que surgiram no tempo aqui abordado, funcionavam também como<br />

armazéns, não se limitando a venda de bebidas e mercadorias, elas absorviam grande parte da<br />

produção agrícola d a região, como se observa no depoimento Sr. Carmerino <strong>Thethê</strong>:<br />

O povo leva mercadoria pra vender, levava coisa pra vender na venda e<br />

trazer mercadoria da venda. Vendia e comprava, que tinha armazém. A<br />

mesma venda servia de armazém, comprava a farinha, comp rava o café,<br />

comprava o cacau, comprava fumo, nesse tempo tinha fumo! Comprava<br />

fumo e, comprava mercadoria na venda. Isto tudo eu arcancei; às vezes ia e<br />

não. Levava o dinheiro, levava as mercadoria nos animá. Vendia e comprava<br />

mercadoria 2 .<br />

1 A luz elétrica chegou ao Tabuleiro em 1979, a partir da iniciativa de alguns moradores que recorreram aos<br />

serviços da Companhia Baiana de Ele trificação Rural (COBER). Informações retiradas do contrato do<br />

proprietário da venda Santa Ana. Contrato n º 1623/79.<br />

2 Carmerino de Souza <strong>Thethê</strong> , depoimento citado.<br />

3


Com estas palavras, o Sr. Carmerino <strong>Thethê</strong>, traduz bem o papel da venda como<br />

“instrumento elementar da troca”. Termo usado por Fernand Braudel, para se referir às trocas<br />

comerciais que escapam ao grande mercado, que as estatísticas não controlam, uma espécie de<br />

“civilização material”, como define Braudel (1997, p. 12) “esta infra-economia, esta outra<br />

metade informal da atividade, a da auto -suficiência, da troca dos produtos e dos serviços num<br />

raio muito curto”.<br />

Isto é percebível numa pesquisa encomendada pelo Serviço d e Apoio às Micro e<br />

Pequenas Empresas da Bahia (SEBRAE-BA) em 1995. Na qual a micro -região do Vale do<br />

Jiquiriçá 3 , onde o município de Mutuípe se localiza, é apontada como uma região de produção<br />

predominantemente agrícola, em que “os sistemas de comercializa ção adotados na Região<br />

diferem em se tratando de pequenos ou médios/grandes produtores” (SEBRAE, 1995, p. 51).<br />

Os maiores produtores realizam a comercialização da sua produção com<br />

intermediários tradicionais ou, em condições adversas de preços, levam o<br />

produto diretamente ao mercado. Já os pequenos, por falta de maior poder e<br />

barganha, entregam o resultado da sua atividade aos “bodegueiros” 4 ou<br />

“caminhoneiros” sempre presentes às feiras municipais ( SEBRAE, 1995, p.<br />

51).<br />

Os vendeiros, assim, exerciam a f unção de intermediários das trocas, limitando -se a<br />

comprar e vender sem fabricar com as mãos a maior parte daquilo que ofereciam. Os<br />

trabalhadores rurais, a maioria de seus clientes, pelo contrário, vendiam nas vendas seus<br />

gêneros agrícolas e compravam ime diatamente as mercadorias que necessitavam nas vendas<br />

ou em outros locais, como já foi relatado pelo Sr. Carmerino que “levava as mercadoria no<br />

animá, vendia e comprava mercadoria”, ou seja, era uma relação direta. Os camponeses com<br />

pouco poder aquisitivo não tinham como segurar os produtos e esperar a elevação dos preços.<br />

Não obstante, naquela época, pelo menos até o final dos anos sessenta, era difícil o acesso a<br />

cidade, visto as dificuldades de locomoção dada à precariedade das estradas. As vendas<br />

acabavam surgindo como opções mais “confortáveis” para venderem seus produtos, porém é<br />

preciso salientar que isto não era regra geral, muitos encontravam outras formas de<br />

comercializar seus produtos.<br />

A diversidade de produtos de certa forma pode ter contribuído para que os moradores<br />

e trabalhadores rurais procurassem com mais freqüência as vendas do Tabuleiro, e não as<br />

3 O Vale do Jiquiriçá ë composto por seis municípios: Laje, Mutuípe, Jiquiriçá, Ubaíra, Sa nta Inês e Cravolândia.<br />

Os quais estão enquadrados nas Ras 13 a Jequié e 29 a Amargosa, segundo a mais recente classificação regional do<br />

Estado da Bahia.Ver: (SEBRAE, 1995).<br />

4 Outra denominação dada aos donos de vendas da região.<br />

4


lojas comerciais da cidade. Durante as entrevistas com vendeiros ou ex -vendeiros do<br />

povoado, quase todos demonstraram a preocupação em fornecer “d e tudo” para a população<br />

local, atendendo as necessidades dos consumidores vendendo desde alimentos, agulhas,<br />

aviamentos, ferraduras, querosene, pregos, facões, cordas, veneno para eliminar formigas e<br />

cupins a remédios. Para o Sr. José Gonçalves, hoje com mais de 80 anos, e vendeiro por cerca<br />

de 40 anos no Tabuleiro, a venda deveria estar sempre sortida:<br />

Era carne, era sabão, era açúcar, era feijão, era arroz; e mais alguns cereais.<br />

De tudo a gente botava, viu: manteiga, cachaça, fumo de corda, cigarro, is so<br />

é as coisas da venda. Comprimido ali para febre, dor de cabeça, essas coisa,<br />

gripe. Tudo a gente botava, retalho sabe.... 5<br />

Outro trecho da entrevista do Sr. José Gonçalves comparado com os de mais dois ex -<br />

vendeiros do Tabuleiro, Pedro <strong>Andrade</strong> e Manoel Amado, revela a diversidade não só de<br />

produtos como de funções das vendas. Pois como já foi dito, elas exerciam a função de<br />

armazéns e nos depoimentos abaixo, as mesmas também podiam servir como açougue e casa<br />

de jogos alguns dias da semana, fornecendo a p opulação local de alimentos à diversão. “Eu<br />

vendia secos e molhados e comprava cereais. Matava boi, matava porco. Tinha casa de jogo,<br />

tudo que participava da diversão eu também tinha e supria o povo ”. 6<br />

A variedade de funções e de produtos comercializados p or estas lojas da roça, como as<br />

trata Rosa (1969, p. 107) traz a tona alguns questionamentos. Como as mercadorias eram<br />

adquiridas? De que formam chegavam ao povoado? A resposta para tais questionamentos<br />

remete a reflexão sobre o acesso que os vendeiros tin ham aos meios de transporte, a<br />

localização do povoado e a própria rota percorrida pelos produtos até chegarem ao Tabuleiro e<br />

conseqüentemente a sua população. Além do que, como o tempo de estudo se limita às<br />

décadas de 60, 70 e 80 é preciso observar as mud anças de infra -estrutura ocorridas no<br />

povoado, reflexo de transformações de nível nacional que interferiram no acesso às<br />

mercadorias e em antigos costumes e tradições.<br />

Na década de 60 as mercadorias chegavam ao Tabuleiro, transportadas por mulas,<br />

cavalos ou jumentos que os vendeiros possuíam. Eles mesmos iam até a cidade montados nos<br />

animais, carregando -os de mercadorias nos armazéns, que por sua vez adquiriam as<br />

mercadorias na já decadente Estrada de Ferro de Nazaré, que cortava o município de Mutuípe,<br />

ou nas mãos dos tropeiros que trabalhavam para os donos dos armazéns trazendo os produtos<br />

de regiões vizinhas. Acontecimentos que ganham vida novamente nas memórias dos Srs.<br />

5 José Gonçalves de Oliveir a, depoimento citado.<br />

6 Pedro <strong>Andrade</strong> de Sousa , depoimento citado<br />

5


Pedro e José ao descreverem estas viagens que tantas vezes fizeram, tirando da própri a<br />

experiência o que narraram.<br />

[as mercadorias] vinha daqui de Mutuípe, nesse tempo não tinha nem estrada<br />

diretamente, a gente andava era no lombo dos animá, tanto eu quanto<br />

Maninho. A gente muntava no meio da cangalha botava panacum e tudo, aí<br />

ia buscar as coisas. 7<br />

As relações econômicas estabelecidas entre o vendeiro e seus clientes, na maioria<br />

trabalhadores rurais, eram permeadas por costumes e valores que muitas vezes dispensavam a<br />

assinatura de qualquer documento comprovante das dívidas, ou da compra e venda de<br />

qualquer produto. Bastava a “palavra”, a confiança selada num aperto de mão, num olhar ou<br />

numa simples promessa de quitação da dívida, constituindo uma espécie de “ética rural”,<br />

sustentada numa longa tradição rural.<br />

Mas como o vendeiro é um “comerciante, numa situação de pequeno capitalista, vive<br />

entre os que lhe devem dinheiro e aqueles a quem ele deve. É um equilíbrio precário, sempre<br />

à beira da derrocada” (BRAUDEL, 1998, p. 57), obrigando-o a cobrar as dívidas, uma tarefa<br />

difícil, dado os cos tumes que envolviam as relações entre ele e seus fregueses. Muitos<br />

comerciantes ficavam constrangidos em cobrar, outros temiam que os fregueses ficassem<br />

ofendidos e abandonassem seus estabelecimentos comerciais, até mesmo sem pagar a conta,<br />

como deixou claro os vendeiros, se referirem as cobranças como “uma tarefa muito difícil”,<br />

“tinha gente que queria até bater na gente,” “eu tinha vergonha de cobrar”. Situações<br />

expressas nos depoimentos abaixo:<br />

7 José Gonçalves, depoimento citado.<br />

8 Aurineide <strong>Thethê</strong> <strong>Andrade</strong> , depoimento citado.<br />

9 José Gonçalves de Oliveira , depoimento citado.<br />

Pra mim é uma tarefa muito difícil chegar pra uma pessoa e cobrar um<br />

débito, porque a gente negocia assim, na confiança. Na confiança tanto é que<br />

ninguém assina nada, ninguém faz nada disso, negocia mais e de boca, por<br />

causa da confiança que se tem nas pessoas é difícil assinar alguma coisa,<br />

difícil assinar alguma promissória, a não ser quando faz esses negócios em<br />

cacau, mas mesmo assim é difícil assinar uma promissória. 8<br />

Cobrava, uns dava pra valente, queria até bater na gente, mas a gente ia<br />

atravessando. Teve um dia que aquele Paulo Correia, me, [...] escorou na<br />

porta da venda porque eu fui cobrar uma conta, ele escorou com uma<br />

espingarda veia, que se eu saísse fora tinha ele me atirado. 9<br />

6


As palavras, “difícil”, “vergonha”, “ninguém”, repetidas várias vezes expressam como<br />

os vendeiros se sentiam constrangidos muitas vezes em cobrar as dívidas, já que poderiam<br />

estar ferindo com a tradição. O que ajuda a entender a reação violenta do cliente na última<br />

fala do senhor José Gonçalves, ao se sentir ofendido com a cobrança. Isto lembra as relações<br />

comerciais permeadas por antigos costumes na Inglaterra do século XVIII, definida por<br />

Thompson (1998, p. 13-25) como “economia moral da plebe” ao se referir às rebeliões ou<br />

ações violentas dos camponeses, na defesa de suas tradições contra as influências externas em<br />

relação aos novos controles impostos pelos “governos patrícios” e pelas transformações do<br />

mundo industrial moderno.<br />

Os próprios vendeiros esperavam do cliente uma atitude honesta saldando as dívidas,<br />

não se pode entender suas atitudes fora do processo histórico, já que também faziam parte<br />

daquele grupo e compartilhavam seus costumes e práticas sociais. Muitos vendeiros nem<br />

chegavam a cobrar as contas, que envelheciam junto com o papel onde tinham sido<br />

registradas, talvez esperando o pagamento e o cumprimento da pala vra dada, ou por temerem<br />

perder o cliente, que poderia se ofender com a cobrança e conseqüente questionamento da sua<br />

honestidade.<br />

Os laços de familiaridade que marcavam as relações entre os vendeiros e fregueses<br />

caracterizam um costume proporcionado po r práticas anteriores de convívio naquele espaço.<br />

Ou seja, os freqüentadores das vendas em sua interação com lugar criaram práticas que<br />

identificaram o espaço da venda como um ambiente propício as relações de solidariedade<br />

entre os indivíduos que o freqüen tam. Segundo Certeau (1994, p. 202) “o espaço é um lugar<br />

praticado” e são estas práticas cotidianas que dão a um lugar destinado as relações comerciais<br />

o calor da convivência humana.<br />

O vendeiro conhece os gostos de cada um, chama os fregueses pelo primeir o nome ou<br />

por apelidos, conhece as suas famílias e as crianças do lugar. A ele se recorre num momento<br />

de emergência, quando é necessário um remédio para dor de cabeça ou febre a qualquer hora<br />

do dia ou da noite. Na iminência de um problema de saúde ou fina nceiro apelava-se a um<br />

empréstimo de urgência. O vendeiro também é o confidente, àquele a quem se pede um<br />

conselho ou um favor. Muitos o chamavam num canto para pedir dinheiro emprestado ou<br />

comprar algo fiado para evitar constrangimentos. Algumas mulheres pediam para serem<br />

atendidas nos fundos da venda quando queriam comprar uma “meota” 10 de cachaça ou algum<br />

10 O termo “meota” é usado pelos freqüentadores da venda para designar uma garrafa reaproveitada que serve<br />

para conter cachaça comprada a granel.<br />

7


artigo de higiene pessoal, por exemplo, já que não se sentiam à vontade para compartilhar o<br />

mesmo ambiente dos homens.<br />

As vendas exerciam, assim, uma importante influência na vida da população local.<br />

Estes espaços de circulação de pessoas, abertos da manhã à noite, todos os dias da semana,<br />

sem fechar para o almoço significavam para os seus freqüentadores um momento de lazer e<br />

diversão. Lá contavam os “cau sos”, bebiam cachaça e discutiam os mais diversos temas<br />

“possíveis do universo cultural das roças” (SANTANA, 1998, p. 82-83) e fora delas. As<br />

notícias que ouviam no rádio ou viam na televisão, posteriormente, como acontecimentos<br />

políticos nacionais e regio nais, esportivos, sociais etc. Contavam piadas, faziam adivinhações,<br />

falavam sobre a vida pessoal e alheia, criando “significados, valores e práticas” (SANTANA,<br />

1998, p. 82) para suas vidas. Situações traduzidas por Sra. Aurineide <strong>Thethê</strong>, 43 anos, mais de<br />

vinte e cinco anos dedicados ao trabalho na venda da seguinte forma:<br />

Aí, de tarde, como não tinha a violência que tem hoje, de tarde o povo vinha<br />

tudo pra porta da venda, que chovesse ou que fizesse sol. A boca da noite a<br />

venda era cheia de gente, uns vin ha comprar, outros fazer a feira. Trabalhava<br />

o dia inteiro, aí quando era de noite, às vezes, tinha alguma coisa pra vender<br />

ou farinha ou cacau, trazia pra vender, outros vinha fazia a feira, outros<br />

vinha comprar alguma coisa que tava faltando em casa, out ros vinha mesmo<br />

beber, tomar uma cachacinha e contar piada. Outros vinha bestando mesmo,<br />

pra vê o povo, pra ver todo mundo que tava e conversar a boca da noite. E,<br />

às vezes, de dia, quando chegava assim... Antigamente vinha os<br />

cavaiadeiros 11 pra aqui. Na época de 60, 70 e 80 ainda vinha cavaiadeiros<br />

aqui. Ai o povo passava aqui, chegava por aqui pra vender animal,<br />

barganhar, trocava, fazia barganha, um animal pelo outro, por burro, por<br />

cavalo, por boi. Outra ora vendia por dinheiro, fazia esse tipo de negóci o,<br />

barganha. E, ai de noite os meninos mais novo ia jogar sinuca, outros vinha<br />

jogar. 12<br />

As lembranças da Sra. Aurineide <strong>Thethê</strong> trazem à tona outros dois aspectos inerentes<br />

ao cotidiano das vendas. Primeiro, sua função social, pois como ponto de encontro<br />

privilegiado, muitos se dirigiam para lá especificamente para fechar um contrato como de<br />

meação, por exemplo, recrutar trabalhadores para capinar um terreno, podar uma roça de<br />

cacau, consertar uma cerca, ou procurar o trabalho de um pedreiro. Outros iam perm utar<br />

animais e objetos, tratar da compra e venda de terras, ou até mesmo deixar um recado. As<br />

vendas acabavam se tornando um ponto de referência de qualquer vilarejo, não só do<br />

Tabuleiro.<br />

11 Negociantes de gado bovino, eqüino e asinino.<br />

12 Aurineide <strong>Thethê</strong> <strong>Andrade</strong> , depoimento citado.<br />

8


Outro ponto seria a presença do jogo nas vendas, fosse do bicho ou d e cartas, a maior<br />

parte delas oferecia esse tipo de divertimento, mesmo proibido o jogo de azar em algumas<br />

épocas. No decreto lei no. 9 215 de 30 de abril de 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra<br />

proibiu a prática e a exploração de jogos de azar em todo o território nacional reafirmando a<br />

lei de Contraversões Penais de 1941, que já proibia os jogos de azar 13 . O fato é que estas leis<br />

nunca foram plenamente respeitadas, os jogos de bicho e de cartas eram constantes no Brasil.<br />

Vários depoentes narraram episódi os envolvendo as tentativas da policia de coibir o jogo,<br />

quase sempre sem sucesso, já que muitos fugiam às batidas policiais ou jogavam escondido<br />

para evitar possíveis multas e prisões:<br />

Jogo era centivo, foi o lugar que o povo mais jogou foi o Tabuleiro. O<br />

baralho ali não faltava. A polícia dava em cima, Biloca escondia o baralho,<br />

pintava o diacho, quando a polícia saía, Biloca botava o baralho e jogava<br />

sozinho em cima do balcão, botando as cartas e apontando a dele, botando as<br />

cartas e apontando a dele. A polícia vinha, lutava, lutava, mas não acabava. 14<br />

Os jogos a dinheiro nas vendas podiam resultar em certos casos em brigas. Havia<br />

jogadores que não suportavam perder, surgiam acusações de trapaças ou estas aconteciam por<br />

existir antecedentes que levassem ao ajuste violento da rixa. O Sr. Pedro <strong>Andrade</strong>, como bom<br />

narrador, trazendo em suas falas sempre um ensinamento moral, no trecho de seu depoimento<br />

transcrito abaixo, expõe suas impressões a respeito das brigas nas vendas:<br />

Botava bebida, cachaça, era jog o, coisas que não prestava. Mas nunca<br />

registrou uma briga, pois quando começava uma briga, uma confusão, eu<br />

falava:<br />

- Isso aqui nem começa nem termina. Aqui não começa briga nem termina,<br />

porque quem tiver sua rixa é onde começou, não é na minha casa, por isso<br />

aqui é um ponto de prosa não de briga 15 .<br />

“Ponto de prosa”, assim definiu o Sr . Pedro <strong>Andrade</strong> às vendas, reafirmando a imagem<br />

que as vendas passam de um espaço de sociabilidade e diversão . E, mesmo com o processo de<br />

decadência das vendas do Tabuleiro a partir do fim dos anos noventa. As memórias referentes<br />

a elas se expressaram de forma significativa nas narrativas dos depoentes, pois esses<br />

estabelecimentos comerciais exerciam uma forte influência sobre vida cotidiana das pessoas<br />

do lugar. Desta forma, as práticas e vivências dentro deste espaço fisicamente limitado<br />

13 Dados retirados do site oficial do Senado Federal , disponível em: . Acesso em:<br />

jul. 2003.<br />

14 Carmerino de Souza <strong>Thethê</strong> , depoimento citado.<br />

15 Pedro <strong>Andrade</strong> de Souza , depoimento citado.<br />

9


expressam atitudes e valores que se estendem as relações sociais, ao trabalho, a vida familiar e<br />

as relações de poder. O que vem abonar a idéia de Certeau (1994, p. 203) de que os espaços<br />

sociais podem ser ressignificados quebrando com tradições, e ganhando novas formas de<br />

acordo com as experiências e práticas dos indivíduos com o lugar. E, as relações de<br />

convivência com estes lugares de memória, “transparece um trabalho que incessantemente,<br />

transforma lugares em espaços ou espaços em lugares” .<br />

Fontes Orais:<br />

1. José Gonçalves de Oliveira, 84 anos de idade, exerceu a função de vendeiro desde a<br />

segunda metade da década de 40 permanecendo até os anos 80 no povoado do Tabuleiro.<br />

Reside na sede do município de Mutuípe. Entrevista em 19/01/2003, 30 minutos.<br />

2. Pedro <strong>Andrade</strong> de Souza, 72 anos de idade, pequeno proprietário rural, exerceu a atividade<br />

de vendeiro tanto no Tabuleiro, quanto em outros povoados e cidades. Reside no povoado do<br />

Tabuleiro, município de Mutuípe. Entrevista em 06/07/2003, 45 minutos.<br />

3. Carmerino de Souza <strong>Thethê</strong>, 82 anos de idade na época da entrevista, pequeno proprietário<br />

rural aposentado. Reside na localidade do Beija -Flor, município de Mutuípe. Entrevista em<br />

16/03/2003, 35 minutos.<br />

4. Aurineide <strong>Thethê</strong> <strong>Andrade</strong>, 47 anos de idade, trabalhava na venda Santa Ana. Reside na<br />

sede do município. Entrevistas em 30/07/2003, 20 minutos 14/04/2007, 8 minutos.<br />

5. Manoel Amado da Silva, 72 anos de idade na ocasião da entrevista, exerceu a função de<br />

vendeiro no Tabuleiro nas décadas de 40, 50 e 60. Reside na sede do município de Mutuípe.<br />

Entrevista em 16/07/2003, 15 minutos.<br />

Referências<br />

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII: as<br />

estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, 1997. v. 1.<br />

. Os jogos das trocas . São Paulo: Martins Fontes, 1998. v. 2.<br />

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano : artes de fazer. Petrópolis : Vozes, 1994. v. 1.<br />

CHALHOUB Sidney. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986.<br />

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares . Projeto História, São<br />

Paulo: Educ, n. 10, dez. 1993.<br />

ROSA, Guimarães. Estas histórias. Rio de Janeiro: Editora José Olímpio, 1969.<br />

SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e ventura camponesa: trabalho, cotidiano e<br />

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