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Issa Leal Damous, A diferenciação eu-ambiente

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A DIFERENCIAÇÃO EU-AMBIENTE:<br />

UMA PERSPECTIVA WINNICOTTIANA PARA OS CASOS-LIMITE<br />

Os casos-limite<br />

<strong>Issa</strong> <strong>Leal</strong> <strong>Damous</strong><br />

Depressões, psicossomatoses, transtornos alimentares, adições e outras<br />

compulsões têm sido quadros clínicos bastante comuns na clínica contemporânea.<br />

Diferentemente de uma problemática n<strong>eu</strong>rótica que resulta de conflitos intrapsíquicos<br />

atrelados à angústia de castração, esses quadros sugerem mais uma problemática<br />

limítrofe que se evidencia nas dificuldades de estruturação e manutenção tanto das<br />

fronteiras psíquicas quanto das fronteiras entre si e os objetos, demarcando uma<br />

experiência atrelada sobretudo às angústias de intrusão e/ou abandono. R<strong>eu</strong>nidos aqui<br />

sob a denominação casos-limite, os pacientes submersos nessa problemática<br />

vivenciam sobretudo intensa instabilidade mental, problemas sérios de vinculação e<br />

desvinculação, forte sensação de irrealidade e repetidas atuações auto-destrutivas.<br />

O estudo dos casos-limite evoca toda uma tradição clínica que está atenta às<br />

experiências psíquicas mais precoces e inclui autores como Ferenczi, Melanie Klein,<br />

Balint, Winnicott e s<strong>eu</strong>s seguidores. As contribuições que daí vieram facilitaram o<br />

desenvolvimento no campo psicanalítico de uma leitura clínica cujos processos<br />

defensivos não são tão elaborados quanto o processo de recalcamento, mecanismo<br />

central que opera nas n<strong>eu</strong>roses, mas nem por isso constituindo um diagnóstico de<br />

psicose ou perversão. Com isso, verifica-se uma problemática limítrofe que permeia o<br />

campo psicanalítico como um todo, seja ao demarcar que algumas subjetividades estão<br />

nas bordas dos grandes grupos diagnósticos (os casos-limite não constituem exatamente<br />

uma n<strong>eu</strong>rose, psicose ou perversão, muito embora possam ter traços dos três), seja no<br />

que diz respeito às próprias subjetividades limítrofes, em função das dificuldades nas<br />

relações com os objetos que enfrentam a partir da instabilidade das suas fronteiras<br />

psíquicas.


A partir do referencial teórico-clínico winnicottiano, pode-se dizer que os limites<br />

ou fronteiras psíquicas não estão constituídos desde os primórdios da vida mental e que<br />

há processos específicos para que se constituam de modo saudável, envolvendo<br />

primordialmente o <strong>ambiente</strong> enquanto os cuidados maternos que envolvem o bebê desde<br />

o início mais precoce de sua existência. Winnicott enfatiza, na verdade, o papel do<br />

<strong>ambiente</strong> como um componente bastante relevante para assegurar a constituição<br />

saudável das fronteiras psíquicas e, portanto, da saúde mental do ser humano.<br />

Mas de que modo o <strong>ambiente</strong> está envolvido com a constituição das fronteiras<br />

psíquicas? E de que modo essas fronteiras se constituem? O que os casos-limite têm a<br />

ver com isso? Segundo Winnicott (1945), antes que uma criança se perceba como um<br />

indivíduo em relação a outros indivíduos, um longo caminho é percorrido anteriormente<br />

em termos de desenvolvimento emocional primitivo, e é justamente nesse período mais<br />

arcaico onde estão as chaves para a compreensão de patologias como a psicose ou os<br />

casos-limite.<br />

A formulação winnicottiana básica diz respeito à emergência e desenvolvimento<br />

do self a partir de uma matriz relacional constituída pelo bebê e sua mãe. A temática<br />

central destas formulações é a delicada dialética entre contato e <strong>diferenciação</strong> que se<br />

localiza em torno da contínua e arriscada luta do self “por uma existência individuada<br />

que ao mesmo tempo permita contato íntimo com outros” (Greenberg e Mitchell,<br />

1994:39). Nesse sentido, importa sobremaneira a Winnicott a interação da criança com<br />

as provisões ambientais, pois será esse o contexto que irá favorecer ou inibir um<br />

desenvolvimento verdadeiro de si mesmo (self) e, portanto, de uma psique saudável.<br />

Winnicott considera o psiquismo precoce do bebê como indiferenciado do<br />

<strong>ambiente</strong>, de modo que o cuidado materno envolve o bebê desde o início de sua vida,<br />

assumindo a função primordial de efetivar o s<strong>eu</strong> processo de desenvolvimento. O<br />

<strong>ambiente</strong> funciona como uma provisão facilitadora dos processos de maturação do bebê,<br />

isto é, das tendências hereditárias que o impulsionam para a vida e para o crescimento e<br />

será necessário percorrer todo um caminho para que se estabeleça uma <strong>diferenciação</strong> do<br />

<strong>ambiente</strong> cada vez mais definida. Sendo assim, a provisão ambiental se entrecruza à


jornada do lactente de uma dependência absoluta para uma dependência relativa e então<br />

para uma independência, e deve ser por isso mesmo suficientemente bom para<br />

reconhecer cada uma destas etapas e portar-se de modo adaptado às necessidades e<br />

angústias do bebê pertinentes a elas. Além disso, para Winnicott, é necessário situar<br />

também a transicionalidade que o bebê experimenta nessa jornada, e, sobretudo, a<br />

instauração do espaço potencial enquanto possibilidade de sustentação de uma distância<br />

suficiente <strong>eu</strong>-outro.<br />

Portanto, é a partir do percurso de um momento de in<strong>diferenciação</strong> para um<br />

momento de <strong>diferenciação</strong>, no contexto winnicottiano, que se pretende neste trabalho<br />

circunscrever os casos-limite.<br />

A <strong>diferenciação</strong> <strong>eu</strong>-<strong>ambiente</strong><br />

A atenção de Winnicott se concentra, sobretudo, na relação mãe-bebê e no modo<br />

gradual como o bebê se torna capaz de viver sem a dependência direta e absoluta dos<br />

cuidados maternos, podendo de fato perceber a mãe como uma pessoa diferente dele.<br />

No momento inicial de in<strong>diferenciação</strong>, momento da vida em que não se pode distinguir<br />

um bebê a menos que se inclua também o <strong>ambiente</strong> que o segura, o bebê passa pela<br />

experiência onipotente de criar os objetos que satisfazem a sua necessidade. Isto só é<br />

possível pela experiência de ilusão proporcionada pelo holding da mãe suficientemente<br />

boa na qual a mãe oferece ao bebê de modo consistente e empático exatamente o objeto<br />

de que ele necessita, objeto que, do ponto de vista do bebê, foi ele quem mágica e<br />

onipotentemente criou. Trata-se do objeto subjetivo, o primeiro passo para a expressão<br />

espontânea do verdadeiro self. A sensibilidade adaptativa da mãe suficientemente boa<br />

faz com que a onipotência do bebê seja aceita e complementada repetidas vezes. Com<br />

isso, o bebê começa a acreditar na realidade externa como algo que surge e se comporta<br />

magicamente. O s<strong>eu</strong> verdadeiro self se expressa espontaneamente e isto coincide com os<br />

acontecimentos que ele experimenta. Ele goza então da ilusão onipotente de que cria e<br />

controla o mundo. Essa etapa consiste na dependência absoluta, etapa em que o bebê<br />

está assegurado pela mãe que experimenta a preocupação materna primária, um estado


psicológico muito especial que ela desenvolve, uma devoção cuidadosa que assume ares<br />

de uma doença normal acompanhada de total possibilidade de recuperação e que se<br />

caracteriza pela adaptação sensível e delicada às necessidades do bebê já nos s<strong>eu</strong>s<br />

primeiros momentos de vida (Winnicott, 1956, 1963).<br />

Assim, no período precoce da vida do bebê, a mãe está totalmente identificada<br />

com ele que, por sua vez, depende absolutamente dela numa época em que ele mal<br />

começa a existir como indivíduo. Trata-se de um estágio muito primitivo, porém dotado<br />

de extrema sofisticação.<br />

A preocupação materna primária ajuda a mãe a adaptar-se em alto grau às<br />

necessidades do lactente, uma adaptação viva que não se dirige às necessidades<br />

pulsionais dele, por mais importantes que sejam. Ela se dirige às necessidades que são<br />

próprias ao ego de um bebê: “Eu lhes lembraria a temperatura da água do banho, testada<br />

pelo cotovelo da mãe; a criança não sabe que a água podia estar ou muito quente ou<br />

muito fria, mas vê de modo natural a temperatura corporal” (Winnicott, 1963:82).<br />

Verifica-se então uma relação muito primitiva, repleta de fusão e empatia, em nada<br />

mecânica. Por isso, o bebê não percebe o cuidado materno, não controla o que é bem ou<br />

mal feito, apenas se beneficia ou sofre distúrbios.<br />

A devoção natural e suficiente da mãe protege o processo do bebê de vir a ser,<br />

pois promove a sua continuidade do ser. A continuidade do ser estabelece por sua vez<br />

uma base para a constituição de um ego forte e integrado (inicialmente, o ego está num<br />

estado não-integrado e, durante a fase de dependência absoluta, vai assumindo uma<br />

integração estruturada) e também estabelece uma base para o verdadeiro self, a<br />

expressão do potencial herdado “que está experimentando a continuidade da existência,<br />

e adquirindo à sua maneira e em s<strong>eu</strong> passo uma realidade psíquica pessoal e o esquema<br />

corporal pessoal” (Winnicott, 1960a:46).<br />

Quando o apoio materno vai bem, a mãe é capaz de prover quase exatamente o<br />

que o bebê necessita e, assim, dificilmente esse apoio é percebido pelo bebê, pois ele<br />

promove silenciosamente uma base de vital importância ao ego (Winnicott, 1960a).<br />

Diferentemente, quando essa provisão ambiental falha, o lactente se torna perceptivo,


mas não exatamente das falhas do cuidado materno. O que ele percebe são as medidas<br />

reativas que ele terá que tomar a partir daí. Falhas na adaptação ambiental causam<br />

irritações e uma conseqüente necessidade de reagir. Isto interrompe a continuidade do<br />

ser e leva à vivência de uma angústia de aniquilamento, sentida pelo bebê como uma<br />

ameaça de desintegração [1] .<br />

Sob condições ambientais favoráveis, ou seja, sob um cuidado materno contínuo<br />

e consistente, o lactente estabelece uma continuidade da existência e assim começa a<br />

desenvolver a sofisticação que torna possível as irritações serem absorvidas pelo<br />

sentimento de onipotência que predomina no psiquismo primitivo. Isto preservará<br />

especialmente o verdadeiro self. Caso contrário, há um caminho aberto para as<br />

psicopatologias ou predisposições a elas. O <strong>ambiente</strong> tem por isso como principal<br />

função a redução ao mínimo de irritações a que o lactente deva reagir. Somente assim,<br />

segundo Winnicott, estarão lançadas as bases para uma saúde mental futura.<br />

O momento de in<strong>diferenciação</strong> caracterizado então pela dependência absoluta<br />

estabelece uma base narcísica fundamental que favorecerá a integração do ego num<br />

estado unitário, numa individualidade com uma existência psicossomática. Com isso,<br />

poderão ter início outros processos, como a personalização, isto é, o desenvolvimento<br />

do sentimento de estar dentro do próprio corpo, e a apreciação do tempo e do espaço e<br />

de outros aspectos da realidade (Winnicott, 1945). Além do mais, ocorre também o<br />

despertar da inteligência, e, com isso, o processo psíquico secundário, a função<br />

simbólica e a capacidade para as relações objetais (Winnicott, 1960a).<br />

Um relacionamento realmente verdadeiro e autêntico com o mundo externo é um<br />

patamar altamente complexo para o desenvolvimento emocional. O ponto de partida<br />

para esta complexidade repousa justamente no momento de ilusão que o bebê vivencia<br />

junto com sua mãe quando está indiferenciado com ela na dependência absoluta. E é<br />

porque a mãe prossegue fornecendo ao bebê a experiência de ilusão que ele passa a<br />

conhecer pedacinhos simplificados do mundo. De acordo com Winnicott, é<br />

especialmente importante para o desenvolvimento o quanto de ilusão foi experimentada<br />

e o quanto a psique primitiva foi capaz de usar como matéria-prima os objetos do


mundo externo propiciado pelo <strong>ambiente</strong>, pois, segundo ele, a ilusão onipotente que o<br />

bebê experimenta “é a base do símbolo que de início é, ao mesmo tempo,<br />

espontaneidade e alucinação, e também, o objeto externo criado e<br />

finalmente catexizado” (Ibid:133; grifos do autor).<br />

O <strong>ambiente</strong> opera portanto como facilitador para o desenvolvimento e<br />

concretização dos processos maturacionais do bebê favorecendo desse modo<br />

a potencialização do verdadeiro self, a fonte do gesto espontâneo (Winnicott, 1960b).<br />

Todavia, a continuidade do desenvolvimento emocional da criança corresponde<br />

estreitamente à retomada da mãe de sua própria independência. É necessário que ela<br />

possa se recuperar da preocupação materna primária e que possa falhar gradualmente na<br />

adaptação às necessidades do bebê. Isto significa que a mãe precisa começar a ser<br />

malsucedida nessa adaptação, até porque, para uma criança, “seria muito aborrecido<br />

continuar vivenciando uma situação de onipotência quando ela já dispõe dos<br />

mecanismos que lhe permitem conviver com as frustrações e as dificuldades de s<strong>eu</strong><br />

meio <strong>ambiente</strong>” (Winnicott, 1987:5-6).<br />

A desadaptação gradativa da mãe também é processual e envolve, é claro, o<br />

próprio desenvolvimento maturacional do bebê, como o começo da capacidade para a<br />

compreensão intelectual. Nesse contexto, o bebê adentra ao estágio de dependência<br />

relativa e já tem, entre outros aspectos, a capacidade para tomar consciência de sua<br />

dependência da provisão materna.<br />

A desadaptação por parte do <strong>ambiente</strong> deve estar orientada pelo rápido<br />

desenvolvimento que o bebê revela, ainda que, com certas variações, ele seja mais<br />

rápido ou mais lento do que ela. A mãe torna-se mais uma vez interessada em outros<br />

aspectos de sua vida e deixa de responder em tão fina sincronia às solicitudes do ego do<br />

bebê. O fato é que o bebê já emite sinais e gestuais e por isso ela não mais<br />

precisa materializar as alucinações dele, ela já pode responder às necessidades que ele<br />

exprime.<br />

O primeiro sinal para o bebê de que a mãe lhe é necessária é a angústia que ele<br />

experimenta em decorrência de “quando a mãe está longe por um tempo superior ao da


sua capacidade de crer em sua sobrevivência” (Winnicott, 1963:84). A compreensão<br />

intelectual pode ser usada para cooperar nesse sentido já que a mãe pode dizer ao filho<br />

que irá sair para comprar pão e isto pode funcionar por um determinado tempo, ainda<br />

que ele venha a sentir raiva, desilusão, medo e impotência. Esta etapa corresponde<br />

ao desmame e é absolutamente necessária para capacitar a criança a distinguir cada vez<br />

mais claramente entre o <strong>eu</strong> e o não-<strong>eu</strong>.<br />

O efeito do desmame é a criança começar a permitir que os acontecimentos<br />

ocorram fora de s<strong>eu</strong> controle e, por isso, ela pode colocar de lado parte de sua raiva pelo<br />

que desafia sua onipotência. Além disso, desenvolve-se também a tendência à<br />

integração do bebê em uma unidade: “uma pessoa completa, com um interior e um<br />

exterior, e uma pessoa vivendo dentro de um corpo, e mais ou menos limitada pela<br />

pele” (Ibid). Trata-se da idéia de um <strong>eu</strong> interior, o que significa a existência de um lugar<br />

no qual as coisas podem ser estocadas e que assim as identificações podem se<br />

complexificar e ser mais abrangentes. Sendo assim, o desenvolvimento emocional do<br />

bebê “toma a forma de um intercâmbio contínuo entre a realidade interna e a externa,<br />

cada uma sendo enriquecida pela outra” (Ibid).<br />

Num processo crescente, a criança estabelece círculos cada vez mais amplos da<br />

vida social e torna-se gradativamente capaz de se defrontar com o mundo e suas<br />

complexidades. Ela desenvolve a socialização e adentra na fase que Winnicott<br />

denomina rumo à independência. Nesse momento, a criança já tem meios próprios para<br />

viver segundo uma vida interna própria, ou seja, sem a necessidade de cuidados reais<br />

por parte do <strong>ambiente</strong>:<br />

“Isto é conseguido através do acúmulo de recordações do cuidado, da projeção de<br />

necessidades pessoais e da introjeção de detalhes do cuidado, com o desenvolvimento<br />

da confiança no meio. Deve-se acrescentar aqui o elemento de compreensão intelectual,<br />

com suas tremendas implicações” (Winnicott, 1960a:46).


Aqui, Winnicott (1963) descreve sobretudo os esforços da criança pré-escolar e<br />

da criança na puberdade, e aponta para a expectativa de que, quando adultas, possam<br />

continuar o processo de crescer e amadurecer. Para ele, o início da vida adulta é<br />

delineado pelo encontro de um lugar na sociedade através do trabalho, e talvez também<br />

através do casamento. Ademais, deve ter sido estabelecido especialmente algum padrão<br />

que signifique “uma conciliação entre imitar os pais e desafiadoramente estabelecer<br />

uma identidade pessoal” (Ibid:87).<br />

A perspectiva de Winnicott sobre a jornada do bebê da dependência para a<br />

autonomia é fundamentalmente enriquecida com os aspectos transicionais (Winnicott,<br />

1951a, 1951b) e com as idéias de espaço potencial e do brincar (Winnicott, 1971a,<br />

1971b). Segundo ele, conforme prossigam os processos maturacionais do bebê, os<br />

objetos e fenômenos transicionais devem dar forma à área da ilusão e estabelecer o<br />

espaço potencial entre a mãe e o bebê.<br />

O espaço potencial é uma terceira área de experimentação que mantém<br />

paradoxalmente separadas e unidas tanto a área subjetiva quanto objetiva, sendo,<br />

portanto, fundamentalmente a área do brincar e do viver criativo. Winnicott também<br />

chama esse espaço de playground intermediário, a área exatamente onde a magia se<br />

origina, onde a brincadeira começa, o espaço no qual o bebê experimenta a sua<br />

onipotência e pode, aos poucos, ir percebendo objetivamente o objeto.<br />

O espaço potencial comporta em si o paradoxo poderoso de ser um espaço que<br />

tanto separa quanto une o bebê a sua mãe, e torna claro como que, para Winnicott<br />

(1971b), não há uma separação entre ambos, há apenas a ameaça de uma separação, que<br />

pode ser muito ou pouco traumática. Trata-se de um “espaço que pode tornar-se uma<br />

área infinita de separação, e o bebê, a criança, o adolescente e o adulto podem preenchê-<br />

la criativamente com o brincar, que, com o tempo, se transforma na fruição da herança<br />

cultural” (Ibid:150).<br />

No espaço potencial estão os objetos e fenômenos transicionais, norteadores<br />

para a transição do bebê de um estado no qual ele está indiferenciado da mãe para um<br />

estado no qual se relaciona com ela como alguém externo e diferenciado dele.


Os objetos e fenômenos transicionais são a primeira possessão original não-<strong>eu</strong>. Eles já<br />

não fazem parte do corpo do bebê, mas ainda não são plenamente reconhecidos como<br />

pertencentes à realidade externa. Eles trazem, além disso, a enorme vantagem de serem<br />

utilizados pelo bebê para que ele possa superar a dependência materna e tornar<br />

suportável a ausência de sua mãe por um determinado período de tempo. E, o que é<br />

ainda melhor, o bebê experimenta a transicionalidade através da manipulação dos<br />

objetos em vez do controle mágico e onipotente que exercia sobre o objeto percebido<br />

subjetivamente.<br />

Os conceitos de objetos e fenômenos transicionais, bem como o espaço potencial<br />

e toda a teoria winnicottiana sobre o brincar e a criatividade são especialmente<br />

trabalhados para que se possa pensar a emergência do bebê de s<strong>eu</strong> estado subjetivo para<br />

a objetividade e para a capacidade de pensar simbolicamente (Abram, 1996). A proposta<br />

de Winnicott nesse sentido é de que não apenas uma área interna e externa ao ser<br />

humano deve ser enunciada, mas que uma terceira área deve ser considerada e para a<br />

qual contribuem ambas as realidades, a interna e a externa:<br />

“Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em<br />

s<strong>eu</strong> nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na<br />

perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que<br />

inter-relacionadas” (Winnicott, 1951b:15).<br />

Para Winnicott, a principal função dos objetos e fenômenos transicionais é dar<br />

forma nítida ao que correspondia à área de ilusão, e é isso que inicia todos os seres<br />

humanos numa área n<strong>eu</strong>tra de experiência que jamais será contestada em ter uma<br />

resposta para o paradoxo de ser concebida subjetivamente ou ser apresentada a partir do<br />

exterior. De fato, a total aceitação da realidade nunca é completada e sempre vai haver<br />

uma tensão para o ser humano no relacionamento entre a realidade interna e externa.<br />

Contudo, o alívio dessa tensão é justamente encontrado na área intermediária de<br />

experiência iniciada pelos objetos e fenômenos transicionais. Por isso eles são


inicialmente utilizados pelo bebê para manejar a superação de sua dependência materna,<br />

tornando suportável a <strong>diferenciação</strong> do <strong>ambiente</strong>.<br />

Vale notar que, no início da transicionalidade, se o tempo que o bebê pode<br />

suportar de distância da mãe se excede, “os fenômenos transicionais se tornam<br />

gradativamente sem sentido e o bebê não pode experimentá-los” (Ibid:31). À medida<br />

que isso ocorre, do ponto de vista do bebê, a mãe está morta e, portanto, não há mais a<br />

realidade da coisa que os objetos e fenômenos transicionais representavam (o apoio<br />

externo no qual se sustentavam tornou-se extremamente precário). Não obstante, é<br />

verdade que num desenvolvimento saudável, conforme o passar do tempo, o objeto<br />

transicional vai sendo relegado ao limbo, sem que seja recalcado e tampouco esquecido<br />

ou pranteado. Ele apenas perde o significado, principalmente porque os fenômenos<br />

transicionais ficaram difusos e se espalharam, alargando-se por todo o território<br />

intermediário entre a realidade psíquica e a realidade compartilhada, território que<br />

Winnicott chama de “campo cultural” e que inclui o brincar, a criatividade, as<br />

apreciações artísticas, o sentimento religioso, o sonhar, o fetichismo, o mentir e o furtar,<br />

a origem e a perda do sentimento afetuoso, o vício em drogas, o talismã dos rituais<br />

obsessivos, etc.<br />

Considerações finais<br />

O referencial winnicottiano permite verificar não apenas a importância do<br />

<strong>ambiente</strong> nas experiências psíquicas primárias, como ir além e compreender que o<br />

processo de <strong>diferenciação</strong> <strong>eu</strong>-<strong>ambiente</strong> também é extremamente relevante nestas<br />

experiências e essencial para a constituição de fronteiras psíquicas saudáveis. Pode-se<br />

dizer que o ponto alto desse processo está em que se constitua o espaço potencial, área<br />

de um terceiro território entre o território subjetivo e o território objetivo, que<br />

emerge da própria união entre dois seres, e que, ao mesmo tempo em que os separa,<br />

também os une, podendo mais tarde alargar-se e abranger todo o mundo.


Portanto, é na relação primordial mãe-bebê que está a facilitação do <strong>ambiente</strong><br />

para o desenvolvimento dos processos de maturação de todo ser humano, ou seja, é<br />

nesta relação que está a base tanto do processo de integração do ego, quanto a<br />

conseqüente capacidade para a <strong>diferenciação</strong> do <strong>ambiente</strong> e, é claro, a capacidade para o<br />

viver criativo. A função do <strong>ambiente</strong>, nesse sentido, é oferecer fundamentalmente a<br />

segurança de que o bebê precisa para integrar-se numa unidade, ou seja, para que tenha<br />

minimamente a noção de um <strong>eu</strong> integrado numa vida psicossomática. Uma vez que esta<br />

noção esteja solidificada, estabelece-se, em contrapartida, a noção de que todo o<br />

restante será não-<strong>eu</strong> (Winnicott, 1962).<br />

O problema é quando o <strong>ambiente</strong> falha, isto é, quando o holding materno não é<br />

suficientemente bom, quer seja na in<strong>diferenciação</strong>, quer seja na <strong>diferenciação</strong>. Isto pode<br />

ser representado pela mãe que se cola muito à criança fazendo com que o ego nascente<br />

seja sufocado e invadido e, por outro lado, pela mãe distante e mecânica fazendo com<br />

que o ego fique sem consistência, ou mesmo por uma alternância brusca entre um<br />

posicionamento e outro.<br />

Falhas desse tipo deixam marcas profundas, pois estão referidas a uma época em<br />

que o psiquismo infantil era ainda muito arcaico e dependia totalmente da provisão do<br />

<strong>ambiente</strong>. Por isso, tanto uma presença intrusiva ou distante dos cuidados maternos, ou<br />

mesmo uma alternância brusca entre um e outro, achata a possibilidade de que o terceiro<br />

território se constitua entre o bebê e o <strong>ambiente</strong>, ou seja, o espaço potencial. Isto<br />

prejudica diretamente a in<strong>diferenciação</strong> mãe-bebê, a transicionalidade, o brincar, e,<br />

portanto, o próprio processo de simbolização que daí deriva. Sem esse espaço, a<br />

<strong>diferenciação</strong> <strong>eu</strong>-<strong>ambiente</strong> torna-se uma experiência ruim e, conseqüentemente, a<br />

própria saúde mental estará fadada à prejuízos.<br />

Nesse contexto, os casos-limite, que tanto tem comparecido na cultura e na<br />

clínica contemporânea através de determinados casos de depressão, compulsões,<br />

transtornos alimentares e psicossomatoses, são a expressão das dificuldades<br />

experimentadas nas relações primárias com o <strong>ambiente</strong>. Mesmo que sejam diversas as<br />

contribuições sobre a temática limítrofe no campo psicanalítico, e amplas as opções


terminológicas para fazer referência a eles, pode-se dizer que, em geral, os indivíduos<br />

com estas formas de subjetivação não tiveram um bem-estar de base suficientemente<br />

bom que os assegurasse o narcisismo fundamental. Por isso, eles experimentam<br />

principalmente intensa instabilidade mental, oscilando entre angústia de intrusão e de<br />

abandono, bem como dificuldades para vincular e desvincular-se, e sensação de<br />

irrealidade nas experiências cotidianas.<br />

Na verdade, essas subjetividades sinalizam que estão às voltas com o objeto<br />

primário sentido como presente o tempo todo, seja porque é invasivo, seja porque é<br />

indiferente ou porque não tem empatia e interesse narcísico. É isto que dificulta a<br />

constituição de um espaço intermediário de experimentação e que traz prejuízos para os<br />

processos de simbolização e para as regulações dos relacionamentos das pessoas<br />

consigo próprias e com o mundo.<br />

Referências bibliográficas<br />

ABRAM, J. (1996) A linguagem de Winnicott. Dicionário das palavras e expressões<br />

utilizadas por Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.<br />

GREENBERG, J. e MITCHELL, S. Relações objetais na clínica<br />

psicanalítica. Trad. Eimilia de Oliveira Diehl. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.<br />

WINNICOTT, D. (1945) Desenvolvimento emocional primitivo. In: Da pediatria à<br />

psicanálise. Obras escolhidas. Trad. Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.<br />

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psicanálise. Obras escolhidas. Trad. Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.<br />

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Obras escolhidas. Trad. Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.


______ (1960a) Teoria do relacionamento paterno-infantil. In: O <strong>ambiente</strong> e os<br />

processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento<br />

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______ (1960b) Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro “self”. In: O<br />

<strong>ambiente</strong> e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento<br />

emocional. Trad. Irineo C. Schuch Ortiz.Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.<br />

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os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento<br />

emocional. Trad. Irineo C. Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.<br />

______ (1963) Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo.<br />

In: O <strong>ambiente</strong> e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento<br />

emocional. Trad. Irineo C. Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.<br />

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Janeiro: Imago, 1975.<br />

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Imago, 1975.<br />

______ (1987) Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2002.<br />

[1] A desintegração não é simetricamente oposta à não-integração. Esta se refere a um estado primário do<br />

ego anterior a uma unificação de si mesmo numa individualidade e numa existência psicossomática. E a<br />

desintegração, por sua vez, é um fenômeno psiquiátrico cujo exame psicopatológico em análise mostra<br />

que tem um sentido apenas quando o atraso ou falha na integração primária predispõe à desintegração<br />

quando ocorre regressão, ou quando fracassa algum tipo de defesa (Winnicott, 1945). Nesse sentido, a<br />

não-integração não é nem um pouco assustadora como o pode ser a desintegração. Muito pelo contrário,<br />

ela faz parte do desenvolvimento emocional dos seres humanos.

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