17.04.2013 Views

O Infinito - Departamento de Matemática da Universidade do Minho

O Infinito - Departamento de Matemática da Universidade do Minho

O Infinito - Departamento de Matemática da Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

TRABALHO<br />

DE<br />

PROJECTO<br />

O INFINITO<br />

[O INFINITO] Introdução<br />

Maio <strong>de</strong> 2008<br />

Popularização <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong> | Núcleo <strong>de</strong> estágio <strong>da</strong> EB 2,3 <strong>de</strong> Vila Ver<strong>de</strong>


“O infinito? Diz-lhe que entre.<br />

Faz bem ao infinito estar entre gente.”<br />

Alexandre O’neill


Índice<br />

Introdução .......................................................................................................................... 1<br />

1. O <strong>Infinito</strong> potencial e o <strong>Infinito</strong> actual .............................................................................. 3<br />

2. Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> .................................................................... 5<br />

2.1. Na Grécia Antiga ................................................................................................................. 6<br />

2.2. Na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média .................................................................................................................. 8<br />

2.3. No século XVII ..................................................................................................................... 9<br />

2.4. No século XVIII .................................................................................................................. 11<br />

2.5. No século XIX .................................................................................................................... 12<br />

2.6. No século XX ..................................................................................................................... 21<br />

3. Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> ................................................................................. 23<br />

3.1. Para<strong>do</strong>xos <strong>de</strong> Zenão ......................................................................................................... 24<br />

3.2. Para<strong>do</strong>xos <strong>de</strong> Galileu ........................................................................................................ 28<br />

4. O paraíso que Cantor criou ............................................................................................. 34<br />

5. Os Infinitésimos e a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd ...................................................................... 45<br />

6. A Biblioteca <strong>de</strong> Babel ...................................................................................................... 50<br />

7. Escher e o <strong>Infinito</strong> .......................................................................................................... 56<br />

7.1. Vi<strong>da</strong> ................................................................................................................................... 56<br />

7.2. Obra .................................................................................................................................. 60<br />

7.3. Escher e a <strong>Matemática</strong> ..................................................................................................... 63<br />

7.4. Escher e a busca <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> .............................................................................................. 65<br />

8. Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> ........................................................................... 72<br />

Conclusão .......................................................................................................................... 79<br />

Bibliografia ........................................................................................................................ 82<br />

Anexos .............................................................................................................................. 84


Introdução<br />

Introdução<br />

Na matemática, infinito é o nome <strong>da</strong><strong>do</strong> a qualquer coisa que seja maior <strong>do</strong> que a<br />

nossa mente po<strong>de</strong> imaginar. Por esta razão, o conceito <strong>de</strong> infinito foi alvo <strong>de</strong> uma<br />

discussão ar<strong>de</strong>nte. Demócrito, Zenão, Aristóteles, Arquime<strong>de</strong>s, Galileu, Bolzano,<br />

De<strong>de</strong>kind, Cantor, Weierstrass, Poincaré, Hilbert, Borel, Russel, Robinson… são apenas<br />

alguns <strong>do</strong>s matemáticos que se <strong>de</strong>dicaram a este assunto.<br />

Ao longo <strong>do</strong> tempo, sempre houve matemáticos que se negaram a consi<strong>de</strong>rar o<br />

infinito como um conceito completo e <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. Em vez disso, preferem consi<strong>de</strong>rá-lo<br />

como uma progressão interminável <strong>de</strong> objectos bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, que somos capazes <strong>de</strong><br />

imaginar, tal como a sucessão <strong>do</strong>s números naturais, 1, 2, 3, etc.<br />

A história <strong>do</strong> infinito como enti<strong>da</strong><strong>de</strong> matemática é controversa e longa. Des<strong>de</strong><br />

sempre que o infinito está associa<strong>do</strong> a diversos para<strong>do</strong>xos. Aos poucos, alguns <strong>do</strong>s<br />

para<strong>do</strong>xos foram sen<strong>do</strong> elimina<strong>do</strong>s, mas ain<strong>da</strong> assim, não se trata <strong>de</strong> um assunto sem<br />

controvérsia. Muito pelo contrário, é complexo, subjectivo e conflituoso.<br />

Actualmente o conceito <strong>de</strong> infinito engloba vários conceitos afins que solicitam<br />

processos cognitivos muito diversifica<strong>do</strong>s. Assim, falamos, por exemplo, <strong>de</strong> infinito<br />

potencial e <strong>de</strong> infinito actual, <strong>de</strong> infinitamente gran<strong>de</strong>s e infinitésimos, <strong>de</strong> números<br />

transfinitos, <strong>de</strong> infinito geométrico e <strong>de</strong> infinito algébrico.<br />

O conceito <strong>de</strong> infinito está presente no currículo <strong>de</strong> <strong>Matemática</strong> e sofre uma<br />

progressiva evolução com o avançar <strong>da</strong> escolari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>do</strong> conceito matemático <strong>de</strong> infinito é reconheci<strong>da</strong>mente<br />

um tópico difícil. De facto, a noção <strong>de</strong> infinito em acto, e em particular, a visão<br />

cantoriana, parece contraditória com a intuição e as experiências <strong>do</strong> quotidiano.<br />

Consequentemente as concepções intuitivas revelam-se muito resistentes às tentativas<br />

<strong>de</strong> alteração. Por vezes, a própria prática escolar acaba por reforçar concepções<br />

incoerentes e fragmentárias.<br />

O presente trabalho procurou fazer, através dum questionário com itens sobre o<br />

assunto, um levantamento <strong>da</strong>s concepções acerca <strong>do</strong> infinito, entre alunos <strong>de</strong> uma turma<br />

<strong>do</strong> 8.º ano <strong>de</strong> escolari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Escola Básica 2 e 3 <strong>de</strong> Vila Ver<strong>de</strong>.<br />

1


Introdução<br />

Para além <strong>de</strong>sta breve introdução, duas partes integram este trabalho: a primeira <strong>de</strong><br />

revisão <strong>de</strong> literatura e a segun<strong>da</strong> <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> ao trabalho <strong>de</strong> campo. A primeira é<br />

constituí<strong>da</strong> pelos sete primeiros capítulos e a segun<strong>da</strong> pelo último.<br />

No primeiro capítulo intitula<strong>do</strong> O <strong>Infinito</strong> potencial e o <strong>Infinito</strong> actual é explica<strong>do</strong><br />

ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s conceitos.<br />

No segun<strong>do</strong> capítulo <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong>,<br />

abor<strong>da</strong>-se a noção <strong>de</strong> infinito ao longo <strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>, percorren<strong>do</strong> a Grécia<br />

Antiga, I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média e segui<strong>da</strong>mente os séculos XVII, XVIII, XIX e XX.<br />

O terceiro capítulo, Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong>, <strong>de</strong>screve os quatro<br />

principais para<strong>do</strong>xos <strong>de</strong> Zenão <strong>de</strong> Eléia, Dicotomia, Aquiles, Seta e o Estádio, e <strong>do</strong>is<br />

para<strong>do</strong>xos <strong>de</strong> Galileu.<br />

No capítulo quatro, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> O paraíso que Cantor criou, abor<strong>da</strong>m-se os<br />

contributos <strong>de</strong> Cantor para a aceitação <strong>do</strong> infinito actual.<br />

O capítulo cinco é <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Infinitésimos e faz uma breve introdução à<br />

Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd.<br />

Os capítulos seis e sete, <strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s A Biblioteca <strong>de</strong> Babel e Escher e o <strong>Infinito</strong>,<br />

respectivamente, são <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s à revisão <strong>da</strong> relação entre a <strong>Matemática</strong> e a Arte,<br />

nomea<strong>da</strong>mente, no primeiro <strong>de</strong>les a relação <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> com a Literatura e no segun<strong>do</strong><br />

com as artes plásticas. Para tal analisa-se no capítulo seis a obra literária Ficções, <strong>de</strong><br />

Jorge Luís Borges, nomea<strong>da</strong>mente o conto A Biblioteca <strong>de</strong> Babel. Já no capítulo sete<br />

faz-se uma análise <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Escher.<br />

Relativamente ao capítulo oito, Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong>, apresentam-<br />

se os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s pelo questionário aplica<strong>do</strong> aos alunos.<br />

2


O <strong>Infinito</strong> potencial e o <strong>Infinito</strong> actual Capítulo 1<br />

1. O <strong>Infinito</strong> potencial e o <strong>Infinito</strong> actual<br />

Segue-se um excerto <strong>da</strong> autobiografia <strong>de</strong> César Zavattini, (Parliamo tanto di me,<br />

capítulo XVI), on<strong>de</strong> se retrata o infinito potencial:<br />

Meu pai e eu chegamos à Aca<strong>de</strong>mia quan<strong>do</strong> o presi<strong>de</strong>nte Maust iniciava a chama<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>s participantes na prova mundial <strong>de</strong> matemática (…). “Um, <strong>do</strong>is, três,…”.<br />

Na sala ouvia-se apenas a voz <strong>do</strong>s concorrentes. Por volta <strong>da</strong>s <strong>de</strong>zassete, tinham<br />

ultrapassa<strong>do</strong> o vigésimo milhar (…). Às vinte, os sobreviventes eram sete “…, 36747,<br />

36748, 36749, 36750, …”. Às vinte e uma, Pombo acen<strong>de</strong>u os can<strong>de</strong>eiros “…40719,<br />

40720, 40721,…”.<br />

Às vinte e duas exactas, registou-se o primeiro golpe <strong>de</strong> teatro: o algebrista Pull<br />

concluiu: “Um bilião”. Um oh <strong>de</strong> assombro coroou a saí<strong>da</strong> inespera<strong>da</strong>; ficaram com o<br />

alento suspenso. Um italiano Binacchi, acudiu com prontidão: “Um bilião <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong><br />

biliões”.<br />

Explodiram aplausos na sala, imediatamente secun<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo presi<strong>de</strong>nte. Meu pai<br />

olhou em volta com superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> (…) e principiou: “Um bilião <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong><br />

biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong><br />

biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões…”. A multidão <strong>de</strong>lirava:<br />

“Viva, viva…”. “… <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões…”. O<br />

presi<strong>de</strong>nte Maust, muito páli<strong>do</strong>, murmurava a meu pai, puxan<strong>do</strong>-o pelas abas <strong>do</strong><br />

Gabão: “Basta, vai fazer-lhe mal”. Mas meu pai prosseguia febrilmente: “…<strong>de</strong> biliões<br />

<strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões!” A sua voz atenuou-se a pouco e pouco e o último sopro<br />

<strong>de</strong> biliões brotou-lhe <strong>do</strong>s lábios como um suspiro, após o qual se <strong>de</strong>ixou cair na<br />

ca<strong>de</strong>ira, exausto. O príncipe Otão aproximou-se, e preparava-se para lhe colocar a<br />

me<strong>da</strong>lha no peito, quan<strong>do</strong> Gianni Binacchi bra<strong>do</strong>u: “Mais um!”.<br />

A multidão precipitou-se no hemiciclo e ergueu este último em triunfo. Quan<strong>do</strong><br />

regressámos a casa, minha mãe aguar<strong>da</strong>va-nos, ansiosa, à entra<strong>da</strong>. Chovia. Meu pai,<br />

mal <strong>de</strong>sceu a carruagem, lançou-se-lhe nos braços, soluçan<strong>do</strong>: “Se tivesse dito mais<br />

<strong>do</strong>is, ganhava eu”. (Cita<strong>do</strong> em Radice, 1981)<br />

3


O <strong>Infinito</strong> potencial e o <strong>Infinito</strong> actual Capítulo 1<br />

Esta competição, como a <strong>de</strong>screve o escritor italiano, é ganha por quem pronunciar<br />

“o número mais eleva<strong>do</strong>”. Mesmo que o pai <strong>do</strong> excerto, tivesse dito “mais <strong>do</strong>is”, não<br />

ganharia a prova mundial <strong>de</strong> matemática. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ninguém a venceria jamais e<br />

ninguém po<strong>de</strong>rá jamais vencê-la. Não existe “um número mais eleva<strong>do</strong>”, porque não há<br />

um número maior que to<strong>do</strong>s os outros. Um número mesmo que vertiginosamente<br />

gran<strong>de</strong>, nunca será maior que os outros, porque será sempre possível proferir um<br />

número maior ain<strong>da</strong>, será sempre possível exclamar “mais um”.<br />

A sucessão <strong>do</strong>s números naturais não tem fim, é infinita, fixan<strong>do</strong> um número natural<br />

é sempre possível fixar outro número natural maior que esse. E é esta a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />

infinito potencial, é a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ir sempre mais longe, não há um elemento que<br />

seja o último.<br />

Consi<strong>de</strong>remos então, a sucessão potencial infinita <strong>de</strong> números naturais e a sucessão<br />

<strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> uma recta. Em ambos os casos, a sucessão é composta por número<br />

in<strong>de</strong>terminável <strong>de</strong> elementos.<br />

No caso <strong>da</strong> sucessão <strong>do</strong>s números naturais, po<strong>de</strong> prosseguir-se sempre, sem fim, pois<br />

po<strong>de</strong> acrescentar-se sempre mais um número. É claro qual <strong>de</strong>ve ser o próximo elemento,<br />

e também que entre <strong>do</strong>is elementos existe um intervalo, o vazio, por isso, dizemos que<br />

se trata <strong>de</strong> uma sucessão infinita discreta.<br />

Já no caso <strong>da</strong> sucessão <strong>de</strong> pontos <strong>da</strong> recta, trata-se obviamente <strong>de</strong> uma sucessão<br />

infinita contínua. Não faz senti<strong>do</strong> falar <strong>do</strong> ponto imediatamente a seguir a outro. Entre<br />

um ponto e o que o segue há uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pontos que formam também um<br />

segmento contínuo, infinitamente divisível em partes contínuas que, por sua vez,<br />

também são infinitamente divisíveis e assim sucessivamente num processo que não tem<br />

fim. Para além <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir em frente até ao infinito, ou seja, um infinito<br />

potencial, temos também um infinito em acto. Pois ao passar <strong>de</strong> um ponto P para um<br />

ponto Q, seguinte a ele, parece que se passa através <strong>de</strong> pontos infinitos, que ca<strong>da</strong> vez se<br />

esgota uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> elementos. Ou seja, temos uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> realizável e não<br />

apenas não completável, um infinito actual.<br />

4


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

2. Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong><br />

“É <strong>de</strong>finir o infinito através <strong>da</strong>quilo que ele não é? Se a sucessão <strong>do</strong>s números naturais<br />

é inesgotável, on<strong>de</strong> os posicionamos? Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar que a divisão em <strong>do</strong>is <strong>de</strong><br />

um segmento <strong>de</strong> recta não tem fim?<br />

E o céu, on<strong>de</strong> acaba?<br />

O matemático trabalha com o infinito mas o que nos ensina sobre ele? Eu acabei por<br />

compreen<strong>de</strong>r: na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não nos ensina na<strong>da</strong>. Com uma espantosa humil<strong>da</strong><strong>de</strong> o<br />

matemático <strong>de</strong> hoje renuncia a interrogar-se sobre o estatuto <strong>do</strong> infinito para continuar<br />

a matematizá-lo. É aqui que resi<strong>de</strong> a limitação, mas também a força <strong>do</strong> discurso<br />

matemático.”<br />

(Levi, 1987)<br />

5


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

Para alguns autores a história <strong>do</strong> infinito é quase a história <strong>da</strong> matemática.<br />

O conceito <strong>do</strong> infinito, que tem motiva<strong>do</strong> filósofos, teólogos, poetas e matemáticos,<br />

foi alvo <strong>de</strong> discussão e <strong>de</strong> reformulações ao longo <strong>do</strong>s séculos. Não é uma questão <strong>de</strong><br />

lógica mas sim <strong>de</strong> imaginação!<br />

Aristóteles fez a distinção entre infinito potencial e infinito actual e esta distinção foi<br />

retoma<strong>da</strong>, no século XIX, por Cantor com a teoria <strong>de</strong> conjuntos infinitos, que são por<br />

ele apresenta<strong>do</strong>s como infinitos actuais.<br />

Ao longo <strong>do</strong>s séculos, o infinito foi tema <strong>de</strong> vários para<strong>do</strong>xos, entre os mais<br />

conheci<strong>do</strong>s estão os <strong>de</strong> Zenão <strong>de</strong> Eleia. O infinito actual só foi aceite como objecto <strong>de</strong><br />

estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong> quan<strong>do</strong> se conseguiu explicar racionalmente os para<strong>do</strong>xos que o<br />

envolviam.<br />

Segun<strong>do</strong> Hilbert (1921), “a clarificação <strong>de</strong>finitiva <strong>da</strong> natureza <strong>do</strong> infinito tornou-se<br />

necessária, não apenas por interesse especial <strong>da</strong>s diversas ciências particulares, mas<br />

antes para a honra <strong>do</strong> próprio conhecimento humano”. E acrescenta que “o infinito<br />

atormentou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s homens; mais <strong>do</strong> que qualquer outra<br />

i<strong>de</strong>ia, a <strong>de</strong> infinito solicitou e fecun<strong>do</strong>u a sua inteligência; mais <strong>do</strong> que nenhum, o<br />

conceito <strong>de</strong> infinito tem que ser eluci<strong>da</strong><strong>do</strong>.”<br />

2.1. Na Grécia Antiga<br />

Na Grécia antiga, surgiram as primeiras preocupações em <strong>de</strong>finir e interpretar o<br />

infinito.<br />

Demócrito não consi<strong>de</strong>rava apenas a matéria, mas também o tempo e o espaço<br />

conduzin<strong>do</strong>-se assim à noção <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> infinitesimal: um número maior que zero,<br />

mas infinitamente pequeno, tão pequeno que não importa quantas vezes é adiciona<strong>do</strong> a<br />

si próprio, permanecen<strong>do</strong> igual.<br />

6


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

No entanto, Zenão, no século IV a.C., com os seus argumentos, mostrou que não<br />

fazia senti<strong>do</strong> falar numa recta como uma sequência <strong>de</strong> segmentos <strong>de</strong> comprimento<br />

infinitamente pequeno, nem no tempo como uma sucessão <strong>de</strong> instantes infinitesimais<br />

(os argumentos <strong>de</strong> Zenão serão explora<strong>do</strong>s numa fase posterior <strong>de</strong>ste trabalho).<br />

Assim, Aristóteles (séc. IV a.C.) acaba por banir o infinitamente pequeno ou gran<strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> geometria. Para ele não existia gran<strong>de</strong>za infinita em conceitos abstractos nem sequer<br />

em qualquer dimensão física. O que está para além <strong>da</strong> compreensão, só po<strong>de</strong> existir<br />

potencialmente porque está para além <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ele admitiu o infinito potencial e<br />

negou qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tratar racionalmente o infinito actual. O infinito só<br />

existiria em potência e por <strong>de</strong>dução.<br />

A palavra infinito aparecia na Grécia antiga, essencialmente liga<strong>da</strong> à mitologia, à<br />

teologia e à metafísica (como substantivo) ou para qualificar mentalmente acções que<br />

podiam ser continua<strong>da</strong>s in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente (como advérbio). Para Aristóteles, em<br />

matemática, o infinito só existia como advérbio.<br />

Aristóteles <strong>de</strong>fendia que o infinito é potencial, nunca actual:<br />

“Por conseguinte, o número é infinito em potência, mas não em acto (…), este nosso<br />

discurso <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> algum preten<strong>de</strong> suprimir as investigações <strong>do</strong>s matemáticos pelo facto<br />

<strong>de</strong> excluir que o infinito por acréscimo seja <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m que se possa percorrer em<br />

acto. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, eles próprios (os matemáticos), no esta<strong>do</strong> actual, não sentem a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> infinito (e, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não o utilizam), mas apenas <strong>de</strong> uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

tão gran<strong>de</strong> quanto quiserem, embora sempre finita (…)”.<br />

Igualmente a Aristóteles, Arquime<strong>de</strong>s (séc. III a.C.) usou os infinitésimos na<br />

resolução <strong>de</strong> problemas sobre parábolas, fornecen<strong>do</strong> sempre uma prova alternativa para<br />

os seus resulta<strong>do</strong>s basea<strong>da</strong> no méto<strong>do</strong> <strong>da</strong> exaustão (que assenta apenas em construções<br />

finitas). Este méto<strong>do</strong> permite encontrar aproximações sucessivas <strong>de</strong> uma área por<br />

comparação com áreas conheci<strong>da</strong>s e foi usa<strong>do</strong>, por Arquime<strong>de</strong>s, para <strong>de</strong>terminar um<br />

valor aproxima<strong>do</strong> para a área <strong>do</strong> círculo. No tempo <strong>de</strong> Arquime<strong>de</strong>s, não se<br />

consi<strong>de</strong>ravam somas infinitas <strong>de</strong> parcelas, mas apesar <strong>do</strong>s gregos não assumirem o<br />

7


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

infinito, este foi um <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s que mais contribuiu para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

conceitos como o <strong>de</strong> limite. Arquime<strong>de</strong>s não teve coragem <strong>de</strong> <strong>da</strong>r o salto filosófico que<br />

<strong>da</strong>ria, ousa<strong>da</strong>mente, quase <strong>do</strong>is mil anos mais tar<strong>de</strong>, Galileu.<br />

Numa carta-ensaio a Eratóstenes, Arquime<strong>de</strong>s não pô<strong>de</strong> negar o infinito actual no seu<br />

trabalho, quanto mais não seja para fazer uma i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> para o qual ten<strong>de</strong>, e<br />

salienta:<br />

“Estou convenci<strong>do</strong> <strong>de</strong> que proporcionará não pequena utili<strong>da</strong><strong>de</strong> à matemática. Na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, confio que alguns <strong>do</strong>s matemáticos actuais ou futuros, aos quais se apresente<br />

este méto<strong>do</strong>, encontrarão outros teoremas que nós ain<strong>da</strong> não <strong>de</strong>scobrimos. ”<br />

O que veio a acontecer, no século XVII, com o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong>s indivisíveis <strong>de</strong> Cavalieri<br />

e Torricelli, basea<strong>do</strong> no méto<strong>do</strong> mecânico <strong>de</strong> Arquime<strong>de</strong>s.<br />

2.2. Na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média<br />

Até ao século XII na<strong>da</strong> parecia haver a acrescentar, ou seja, o infinito actual<br />

continuava a ser nega<strong>do</strong> e representava, para os cristãos <strong>de</strong>ste século, “um <strong>de</strong>safio à<br />

única e absolutamente infinita natureza <strong>de</strong> Deus”. To<strong>da</strong>via, havia uma excepção: Santo<br />

Agostinho (séc. IV), que aceitava o infinito actual na mente divina:<br />

“Dizer que nem a ciência <strong>de</strong> Deus é capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r as coisas infinitas é o<br />

que lhes falta ao atrevimento, para precipitar-se na voragem <strong>de</strong> profun<strong>da</strong> impie<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

que afirma não conhecer Deus to<strong>do</strong>s os números. E muito certo que são infinitos. Com<br />

efeito, seja qual for o número que preten<strong>da</strong>s formar, não apenas po<strong>de</strong> aumentar pela<br />

adição <strong>de</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas também, por maior que seja e por mais prodigiosa que<br />

seja a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> que encerra em si a razão e ciência <strong>do</strong>s números, não somente po<strong>de</strong><br />

8


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

ser duplica<strong>da</strong>, mas também duplica<strong>da</strong> ao infinito. (…) Tal infini<strong>da</strong><strong>de</strong> conjunta <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s<br />

os números é que escapa à ciência <strong>de</strong> Deus, que compreen<strong>de</strong> certa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

números e ignora os <strong>de</strong>mais? Quem o dirá, por mais louco que esteja? ”<br />

A obra <strong>de</strong> Santo Agostinho apresenta-se como o expoente máximo <strong>de</strong>sta época e irá<br />

influenciar a filosofia medieval <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século IX até o século XII. Entre os séculos V e<br />

IX (chama<strong>do</strong>s séculos em branco) não surgiram novas i<strong>de</strong>ias nem discussões sobre o<br />

infinito.<br />

No século XIII, São Tomás <strong>de</strong> Aquino <strong>de</strong>scobre que as traduções <strong>de</strong> Aristóteles não<br />

correspondiam às <strong>do</strong>utrinas originais e conseguiu mostrar que as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras teorias <strong>de</strong><br />

Aristóteles eram compatíveis com as <strong>do</strong>utrinas cristãs e até as podiam sustentar <strong>do</strong><br />

ponto <strong>de</strong> vista filosófico. Assim, a noção <strong>de</strong> infinito continuava meramente potencial,<br />

com excepção <strong>do</strong> infinito absoluto representa<strong>do</strong> por Deus.<br />

2.3. No século XVII<br />

Foi já no século XVII, apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecerem o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> Arquime<strong>de</strong>s, que<br />

Cavalieri, Torricelli e Galileu fizeram renascer a i<strong>de</strong>ia <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> divisão <strong>de</strong> um<br />

contínuo num conjunto infinito <strong>de</strong> partes indivisíveis.<br />

Cavalieri fun<strong>do</strong>u e Torricelli <strong>de</strong>senvolveu a “geometria <strong>do</strong>s indivisíveis”, sobre a<br />

qual viria mais tar<strong>de</strong> a fun<strong>da</strong>mentar o cálculo infinitesimal. Galileu, por razões<br />

filosóficas e físicas, afirmou, <strong>de</strong> uma maneira mais clara e ousa<strong>da</strong> que os seus discípulos<br />

Cavalieri e Torricelli, que era possível reduzir um contínuo limita<strong>do</strong> em elementos<br />

“primeiros” infinitos indivisíveis.<br />

Galileu foi o primeiro a perceber que este facto poria em evidência certos para<strong>do</strong>xos<br />

e por isso teve alguma prudência em termos matemáticos. Preocupou-se mesmo com a<br />

comparação <strong>de</strong> dimensões <strong>de</strong> conjuntos infinitos pelo processo que ain<strong>da</strong> hoje usamos:<br />

a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> correspondências.<br />

9


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

Nos Diálogos Relativos a Duas Novas Ciências consi<strong>de</strong>ra que os infinitos<br />

transcen<strong>de</strong>m o entendimento finito (este será um assunto que abor<strong>da</strong>remos novamente<br />

mais à frente). Fazen<strong>do</strong> a correspondência, <strong>de</strong> um para um, entre to<strong>do</strong>s os números<br />

naturais e os quadra<strong>do</strong>s perfeitos, <strong>de</strong>parou-se com a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> um<br />

conjunto infinito: uma parte po<strong>de</strong> ser equipotente ao to<strong>do</strong>. Embora Galileu afirmasse<br />

que o número <strong>de</strong> quadra<strong>do</strong>s perfeitos não é menor que o <strong>do</strong>s números naturais, não<br />

conseguiu concluir que são iguais, argumentan<strong>do</strong> antes que os atributos “igual a”,<br />

“maior que” e “menor que” não <strong>de</strong>veriam ser utiliza<strong>do</strong>s para comparar quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

infinitas. Assim, Galileu <strong>de</strong>fendia que não se po<strong>de</strong>ria dizer que um conjunto infinito era<br />

maior, menor ou igual a outro conjunto infinito. Como refere Boyer (1984), Galileu, à<br />

semelhança <strong>de</strong> Moisés, chegou à terra prometi<strong>da</strong> mas não conseguiu lá entrar.<br />

Cavalieri, professor na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Bolonha, <strong>de</strong>senvolveu as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Kepler<br />

no livro Geometria indivisibilius continuorum, que permitiu um maior entusiasmo <strong>do</strong>s<br />

matemáticos relativamente a problemas relaciona<strong>do</strong>s com os infinitesimais. Mais tar<strong>de</strong>,<br />

1<br />

Jonh Wallis escreveu pela primeira vez ∞, para representar , utilizou expoentes<br />

0<br />

negativos, fraccionários e imaginários, introduziu séries infinitas. Este estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> séries<br />

infinitas apoiou Isac Newton na teoria <strong>de</strong> fluxões, on<strong>de</strong> Newton <strong>de</strong>nominou os<br />

infinitesimais <strong>de</strong> momentos <strong>de</strong> fluxões e introduziu a noção <strong>de</strong> limite embora <strong>de</strong> uma<br />

forma muito confusa.<br />

Assim como Newton, também Leibniz encontrou o novo cálculo, mas este tinha uma<br />

abor<strong>da</strong>gem mais geométrica, ao contrário <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> Newton que era<br />

essencialmente cinemática. Devemos a Leibniz a notação matemática que usamos no<br />

cálculo <strong>de</strong> hoje, bem como os nomes calculus differentialis e calculus integralis.<br />

Leibniz, numa <strong>da</strong>s suas cartas a Foucher, elogia Grégoire <strong>de</strong> Saint Vicent por ter<br />

<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> o local exacto on<strong>de</strong> Aquiles iria encontrar-se com a tartaruga, ten<strong>do</strong><br />

resolvi<strong>do</strong> este para<strong>do</strong>xo <strong>de</strong> Zenão, aceitan<strong>do</strong> assim o infinito actual. No entanto, há que<br />

salientar que Leibniz só concebia o infinito/infinitesimal como facilita<strong>do</strong>r <strong>do</strong> cálculo e<br />

cujo resulta<strong>do</strong> se exprimia sempre em função <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s finitas.<br />

10


2.4. No século XVIII<br />

Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

Os trabalhos Newton e <strong>de</strong> Leibniz foram continua<strong>do</strong>s e cultiva<strong>do</strong>s por Euler e<br />

Lagrange que <strong>de</strong>senvolveram o mo<strong>de</strong>rno cálculo diferencial, contribuin<strong>do</strong> para o<br />

<strong>de</strong>sembaraçar <strong>da</strong>s questões metafísicas <strong>do</strong>s infinitamente pequenos e <strong>do</strong> infinito em<br />

acto, passan<strong>do</strong> à formalização <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> limite.<br />

Leonard Euler, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s mais produtivos matemáticos <strong>de</strong> sempre,<br />

escreveu praticamente a notação e linguagem que hoje usamos, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> responsável,<br />

em gran<strong>de</strong> parte, por exemplo, pela utilização <strong>do</strong>s símbolos π , e , i , … bem como a<br />

notação f (x)<br />

para representar funções <strong>de</strong> x . Assim, a notação matemática,<br />

comummente aceite, provém <strong>de</strong> Euler. Euler escreveu Introdutio in analysin<br />

infinitorium e o primeiro volume <strong>de</strong>sta obra abor<strong>da</strong> essencialmente processos infinitos.<br />

Euler mantinha uma correspondência frequente com o matemático parisiense Jean Le<br />

Rond d’Alembert.<br />

A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> d’Alembert, <strong>de</strong> que o cálculo <strong>de</strong>veria assentar fun<strong>da</strong>mentalmente na i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> limite, não foi aceite pelos seus contemporâneos, ten<strong>do</strong>-se continua<strong>do</strong> a usar a<br />

linguagem <strong>de</strong> Euler e Leibniz. Por pensar em gran<strong>de</strong>zas geométricas, d’Alembert nunca<br />

aceitou a existência <strong>de</strong> um infinito actual, pensan<strong>do</strong> sempre na sua forma potencial,<br />

opon<strong>do</strong>-se aos pontos <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>stes matemáticos e afirman<strong>do</strong> que uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> ou<br />

representa algo ou então não é na<strong>da</strong>.<br />

Joseph-Louis Lagrange viveu durante a Revolução francesa, rejeitan<strong>do</strong><br />

completamente a teoria <strong>do</strong>s limites <strong>de</strong> Newton e <strong>de</strong> d’Alembert, <strong>de</strong>dicou-se à<br />

fun<strong>da</strong>mentação <strong>do</strong> cálculo pela álgebra. A ele <strong>de</strong>vemos a notação f '( x)<br />

, f '' ( x)<br />

, … ,<br />

( )<br />

f n<br />

( x)<br />

, …, para representar <strong>de</strong>riva<strong>da</strong>s <strong>de</strong> várias or<strong>de</strong>ns.<br />

Lagrange pensava que podia eliminar a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> uso <strong>do</strong>s limites ou<br />

infinitésimos, mas acabou por se <strong>de</strong>parar com algumas falhas nos seus argumentos.<br />

11


2.5. No século XIX<br />

Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

Neste século surgiu uma nova geração <strong>de</strong> matemáticos, com mentes mais abertas e<br />

com novas perspectivas que iriam revolucionar vários campos <strong>da</strong> ciência, em parte,<br />

fruto <strong>de</strong> revolução francesa. Assim, a matemática passa a ser vista não apenas como<br />

uma ciência importante para a Mecânica e para a Astronomia, mas antes, como uma<br />

ciência autónoma. Deu-se uma separação <strong>do</strong>s matemáticos puros <strong>do</strong>s aplica<strong>do</strong>s. Era<br />

uma época <strong>de</strong> reflexão sobre os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>, já não bastava obter<br />

resulta<strong>do</strong>s, era necessário reflectir sobre o seu significa<strong>do</strong>, o que trouxe novamente a<br />

discussão <strong>do</strong> infinito actual.<br />

Através <strong>do</strong> cálculo, Augustin Cauchy tentou <strong>da</strong>r resposta a uma série <strong>de</strong> para<strong>do</strong>xos<br />

existentes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo <strong>de</strong> Zenão e tornou fun<strong>da</strong>mental o conceito <strong>de</strong> limite <strong>de</strong><br />

d’Alembert, <strong>de</strong> função, <strong>de</strong> integral como limite <strong>de</strong> uma soma, …<br />

Karl Weierstrass fornece fun<strong>da</strong>mentos sóli<strong>do</strong>s para a Análise, eliminan<strong>do</strong> os <strong>de</strong>feitos<br />

remanescentes <strong>do</strong> Cálculo. A importância <strong>do</strong> seu trabalho baseia-se no <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> raciocínios que assentam no conceito <strong>de</strong> limite em geral, na clarificação <strong>da</strong>s noções<br />

<strong>de</strong> mínimo <strong>de</strong> uma função, <strong>de</strong> convergência uniforme.<br />

Os esforços <strong>de</strong> Cauchy, Bernhard Bolzano e Weierstrass em fun<strong>da</strong>mentar<br />

rigorosamente os méto<strong>do</strong>s <strong>do</strong> cálculo infinitesimal levaram a uma formalização rigorosa<br />

com base na noção <strong>de</strong> limite, que permitiu um novo tratamento matemático <strong>do</strong> infinito.<br />

Esta procura <strong>do</strong> rigor foi <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> por Leopold Kronecker. Para ele a <strong>Matemática</strong><br />

<strong>de</strong>veria basear-se no número e to<strong>do</strong> o número nos números naturais, afirman<strong>do</strong> que<br />

“Deus fez os números inteiros e os homens fizeram o resto”, rejeitan<strong>do</strong> assim o infinito<br />

actual.<br />

Foi só no final <strong>do</strong> século XIX, que a questão levanta<strong>da</strong>, no século XVII, por Galileu,<br />

renasceu com o livro Os para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> <strong>de</strong> Bolzano, embora as análises não<br />

tenham i<strong>do</strong> suficientemente longe.<br />

Bolzano sentiu necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um novo conceito <strong>de</strong> infinito e justificou a existência<br />

<strong>de</strong> tantos para<strong>do</strong>xos relativos a esta i<strong>de</strong>ia pela falta <strong>de</strong> precisão <strong>do</strong> termo. Para tal,<br />

12


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

a<strong>do</strong>ptou uma concepção sintética <strong>de</strong> conjunto, on<strong>de</strong> um conjunto é concebi<strong>do</strong> como um<br />

to<strong>do</strong>, sem ser necessário pensar isola<strong>da</strong>mente em ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s seus elementos:<br />

“Posso pensar o conjunto, o agrega<strong>do</strong> ou, se preferirem, a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> habitantes <strong>de</strong><br />

Praga ou <strong>de</strong> Pequim, sem formar uma representação, em separa<strong>do</strong>, <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>stes<br />

habitantes toma<strong>do</strong> singularmente, isto é, uma representação que lhe diga<br />

exclusivamente respeito”. (Cita<strong>do</strong> em Meschkowski, 1990)<br />

Assim, introduziu o conceito, cuja existência até aí era nega<strong>da</strong>, <strong>de</strong> infinito actual. Ele<br />

entendia por multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> infinita, uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> que é maior <strong>do</strong> que qualquer<br />

multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> finita e provou que o conjunto <strong>da</strong>s proposições e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s em si tem<br />

multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> infinita: se A for uma proposição ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, a proposição B (“A é<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira”) é outra proposição que pertence também ao conjunto; <strong>de</strong>sta proposição B<br />

po<strong>de</strong>-se obter, pelo mesmo processo, a proposição C (“B é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira”), diferente <strong>da</strong>s<br />

anteriores, e assim por diante. Conclui então:<br />

“O agrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s estas proposições, ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s quais está liga<strong>da</strong> à que a<br />

prece<strong>de</strong> (…) por ter como sujeito essa mesma proposição prece<strong>de</strong>nte e como conteú<strong>do</strong><br />

a afirmação <strong>de</strong> que tal proposição é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, compreen<strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> elementos<br />

(proposições) que é maior <strong>do</strong> que qualquer conjunto finito. (…) po<strong>de</strong>mos sempre<br />

continuar a construção <strong>de</strong> novas proposições, ou, para melhor nos exprimirmos, (…)<br />

elas existem por si, quer nós as construamos quer não. Segue <strong>da</strong>í que o agrega<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong>s estas proposições possui uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> que é maior <strong>do</strong> que qualquer<br />

número, e que é portanto infinita”. (Cita<strong>do</strong> em Meschkowski, 1990)<br />

Bolzano dá outros exemplos <strong>de</strong> outros conjuntos infinitos para continuar a explicar<br />

as suas concepções:<br />

13


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

• O conjunto <strong>do</strong>s números inteiros, e por maioria <strong>de</strong> razão, o conjunto <strong>da</strong>s<br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s:<br />

“Se o conjunto <strong>do</strong>s números (e precisamente <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s números inteiros) é infinito<br />

então, por maioria <strong>de</strong> razão, o conjunto <strong>da</strong>s quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s (…) é um conjunto infinito.<br />

(…) não só to<strong>do</strong>s os números são igualmente quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mas existem também muito<br />

1 1 2 1<br />

mais quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>do</strong> que números, porque também as fracções , , , , … como<br />

2 3 3 4<br />

ain<strong>da</strong> as chama<strong>da</strong>s expressões irracionais 2, 2,...,<br />

, ,<br />

3 π e … indicam quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s”.<br />

(Cita<strong>do</strong> em Meschkowski, 1990)<br />

• O conjunto <strong>do</strong>s pontos <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço:<br />

“(…) tanto no tempo como no espaço, o conjunto <strong>da</strong>s partes elementares, ou pontos,<br />

<strong>da</strong>s quais um e outro são constituí<strong>do</strong>s, é infinito. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, não só é infinitamente<br />

gran<strong>de</strong> o conjunto <strong>da</strong>s partes elementares <strong>de</strong> que a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> tempo e a totali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> espaço são constituí<strong>da</strong>s, (…), mas é infinito também o conjunto <strong>da</strong>queles pontos <strong>do</strong><br />

tempo situa<strong>do</strong>s entre <strong>do</strong>is pontos temporais α e β tão próximos um <strong>do</strong> outro quanto se<br />

queira, como ain<strong>da</strong> o conjunto <strong>da</strong>queles pontos <strong>do</strong> espaço situa<strong>do</strong>s entre <strong>do</strong>is pontos<br />

espaciais a e b tão próximos um <strong>do</strong> outro quanto se queira”. (Cita<strong>do</strong> em<br />

Meschkowski, 1990)<br />

A fim <strong>de</strong> comparar conjuntos infinitos, era necessário saber quan<strong>do</strong> é que <strong>do</strong>is<br />

conjuntos infinitos eram iguais ou diferentes quanto à sua multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Para tal<br />

Bolzano tentou estabelecer um critério.<br />

14


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

“Já <strong>do</strong>s exemplos até agora consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s não nos terá escapa<strong>do</strong> que nem to<strong>do</strong>s os<br />

conjuntos infinitos <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s iguais entre si no que respeita à sua<br />

multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>; mas que, pelo contrário, algum <strong>de</strong>les po<strong>de</strong> ser maior (ou menor) <strong>do</strong> que<br />

um outro, quer dizer, po<strong>de</strong> incluir em si o outro como uma parte (ou, pelo contrário, ser<br />

ele próprio uma mera parte <strong>do</strong> outro). Também esta afirmação parece para<strong>do</strong>xal a<br />

muita gente. E sem dúvi<strong>da</strong> que to<strong>do</strong>s os que <strong>de</strong>finem o infinito como algo que não<br />

admite nenhum acrescentamento <strong>de</strong>vem achar não só para<strong>do</strong>xal mas até contraditório<br />

que um infinito seja maior <strong>do</strong> que um outro. Mas (…) esta opinião assenta num<br />

conceito <strong>de</strong> infinito que não está <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o uso linguístico <strong>da</strong> palavra. De<br />

acor<strong>do</strong> com a nossa <strong>de</strong>finição, que é conforme não só com o uso linguístico mas<br />

também com o objectivo <strong>da</strong> ciência, ninguém po<strong>de</strong>rá encontrar algo contraditório, nem<br />

mesmo surpreen<strong>de</strong>nte, na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que um infinito seja maior <strong>do</strong> que um outro. Para<br />

quem po<strong>de</strong>rá não ser claro, por exemplo, que o comprimento <strong>da</strong> recta prolonga<strong>da</strong><br />

S<br />

b<br />

ilimita<strong>da</strong>mente no senti<strong>do</strong> aR é infinito? Mas que a recta bR, percorri<strong>da</strong> no mesmo<br />

senti<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> ponto b, ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>ve ser dita maior <strong>do</strong> que aR, pela porção ba? E<br />

que a recta prolonga<strong>da</strong> ilimita<strong>da</strong>mente em ambos os senti<strong>do</strong>s aR e aS <strong>de</strong>ve ser dita<br />

maior, por uma gran<strong>de</strong>za que é ela própria ain<strong>da</strong> infinita?” (Cita<strong>do</strong> em Meschkowski,<br />

1990)<br />

Assim, o critério que Bolzano usava, para comparar cardinais <strong>de</strong> conjuntos infinitos,<br />

era a inclusão <strong>de</strong> conjuntos. Mas a existência <strong>de</strong> correspondências bijectivas entre<br />

conjuntos infinitos, que pelo critério que usava eram <strong>de</strong> diferentes multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s, não<br />

lhe passaram <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>s, aperceben<strong>do</strong>-se também <strong>de</strong>, os conjuntos infinitos,<br />

po<strong>de</strong>rem ser postos em correspondência bijectiva com uma sua parte própria. No livro<br />

Os para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> infinito po<strong>de</strong> ler-se:<br />

a<br />

R<br />

15


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

“Passemos agora à consi<strong>de</strong>ração duma particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> altamente notável que po<strong>de</strong><br />

ocorrer na relação entre <strong>do</strong>is conjuntos quan<strong>do</strong> ambos são infinitos, e que na ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ocorre sempre, mas que até agora tem si<strong>do</strong> <strong>de</strong>scura<strong>da</strong>, com prejuízo <strong>do</strong> reconhecimento<br />

<strong>de</strong> algumas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s importantes tanto na Metafísica como <strong>da</strong> Física e <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>,<br />

e que certamente também agora, quan<strong>do</strong> eu a proferir, será em tal grau ti<strong>da</strong> como<br />

para<strong>do</strong>xal que seria bem necessário <strong>de</strong>morar um pouco mais na sua consi<strong>de</strong>ração. É<br />

que eu afirmo: <strong>do</strong>is conjuntos, que sejam ambos infinitos, po<strong>de</strong>m estar em tal relação<br />

entre si que, por um la<strong>do</strong> é possível ligar num par ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s coisas pertencentes a<br />

um <strong>do</strong>s conjuntos com uma <strong>do</strong> outro, <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> que nenhuma <strong>da</strong>s coisas em ambos os<br />

conjuntos fique sem ligação num par e também que nenhuma ocorra em <strong>do</strong>is ou mais<br />

pares; e por outro la<strong>do</strong> é ao mesmo tempo possível que um <strong>de</strong>stes conjuntos contenha o<br />

outro como uma mera parte, <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> que as multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s que [os conjuntos]<br />

representam, quan<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ramos to<strong>da</strong>s as suas coisas como iguais, isto é, como<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, têm entre si relações mais varia<strong>da</strong>s”. (Cita<strong>do</strong> em Meschkowski, 1990)<br />

Segui<strong>da</strong>mente, para esclarecer as suas afirmações, Bolzano exemplifica com o caso<br />

<strong>do</strong> conjunto <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>zas compreendi<strong>da</strong>s entre 0 e 5 e o conjunto <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>zas<br />

compreendi<strong>da</strong>s entre 0 e 12, explican<strong>do</strong> a existência <strong>de</strong> uma bijecção entre eles, embora,<br />

com o seu critério, o conjunto <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>zas entre 0 e 5 seja menor <strong>do</strong> que o outro<br />

conjunto.<br />

“Se tomarmos duas gran<strong>de</strong>zas (abstractas) arbitrárias, por exemplo 5 e 12, é claro<br />

que o conjunto <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>zas compreendi<strong>da</strong>s entre 0 e 5 (ou que são menores <strong>do</strong> que<br />

5), tal como o conjunto <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>zas que são menores <strong>do</strong> que 12, é infinito; e é<br />

igualmente certo que o último <strong>de</strong>stes conjuntos se <strong>de</strong>ve dizer maior <strong>do</strong> que o primeiro,<br />

pois este é incontestavelmente apenas uma parte <strong>da</strong>quele. (…) Mas não menos ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> isto é o que se segue: se x <strong>de</strong>signar uma qualquer gran<strong>de</strong>za compreendi<strong>da</strong><br />

entre zero e 5 e <strong>de</strong>terminarmos a relação entre x e y através <strong>da</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong> 5y=12x,<br />

então também y será uma gran<strong>de</strong>za situa<strong>da</strong> entre zero e 12;e reciprocamente, sempre<br />

que y estiver compreendi<strong>da</strong> entre zero e 12, x estará compreendi<strong>da</strong> entre 0 e 5. Também<br />

<strong>de</strong>corre <strong>da</strong>quela igual<strong>da</strong><strong>de</strong> que a ca<strong>da</strong> valor <strong>de</strong> x apenas correspon<strong>de</strong> um valor <strong>de</strong> y e<br />

reciprocamente. Mas <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is [factos] fica claro que, para ca<strong>da</strong> uma = x no<br />

16


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

conjunto <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>zas compreendi<strong>da</strong>s entre 0 e 5, há uma = y no conjunto <strong>da</strong>s<br />

gran<strong>de</strong>zas compreendi<strong>da</strong>s entre 0 e 12 que se po<strong>de</strong> ligar àquela num par, <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong><br />

que nenhuma <strong>da</strong>s coisas que constituem estes <strong>do</strong>is conjuntos fica sem ligação num par e<br />

também que nenhuma ocorre em <strong>do</strong>is ou mais pares”. (Cita<strong>do</strong> em Meschkowski, 1990)<br />

Contu<strong>do</strong>, a existência <strong>de</strong> tal bijecção não bastava para justificar que os cardinais<br />

eram iguais, para Bolzano seria necessário acrescentar, por exemplo, que os <strong>do</strong>is<br />

conjuntos estivessem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> idêntico.<br />

“Ora, meramente pela razão <strong>de</strong> que <strong>do</strong>is conjuntos A e B estão em tal relação entre<br />

si que nós, para ca<strong>da</strong> parte a ocorrente num <strong>de</strong>les, A, proce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com uma<br />

certa regra, possamos escolher uma parte b ocorrente em B, <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os<br />

pares (a + b) que assim construamos contenham ca<strong>da</strong> coisa encontrável em A ou em B<br />

e contenham ca<strong>da</strong> uma apenas uma vez, - meramente por esta circunstância ain<strong>da</strong> não<br />

é – como vemos – <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> nenhum lícito concluir que estes <strong>do</strong>is conjuntos, se forem<br />

infinitos, são iguais entre si com respeito à multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s suas partes (isto é,<br />

quan<strong>do</strong> se abstrai <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as diferenças <strong>da</strong>s mesmas); pelo contrário, apesar <strong>da</strong>quela<br />

relação entre eles, e por si só é certamente simétrica, po<strong>de</strong>m ter uma relação <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> na sua multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que um <strong>de</strong>les se possa evi<strong>de</strong>nciar como<br />

um to<strong>do</strong> e o outro como uma parte <strong>de</strong>le. Só se po<strong>de</strong> concluir uma igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>stas<br />

multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s quan<strong>do</strong> alguma outra razão se acrescentar a isso, como que ambos os<br />

conjuntos sejam <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> idêntico, por exemplo mediante idêntica lei <strong>de</strong><br />

formação”. (Cita<strong>do</strong> em Meschkowski, 1990)<br />

Ora, <strong>da</strong>í em diante, os matemáticos a<strong>do</strong>ptaram uma concepção sobre o infinito muito<br />

próxima <strong>da</strong> <strong>de</strong> Bolzano. Embora Bolzano não tenha posto <strong>de</strong> parte fun<strong>da</strong>mentações em<br />

argumentos teológicos e tenha usa<strong>do</strong> um critério <strong>de</strong> comparação <strong>de</strong> cardinais infinitos<br />

ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para muitas situações, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que Bolzano foi precursor <strong>de</strong><br />

Cantor.<br />

Por seu la<strong>do</strong>, Cantor, elogiou os contributos <strong>de</strong> Bolzano para a matemática e para a<br />

filosofia, embora o tenha critica<strong>do</strong> em alguns aspectos: pouca clareza na noção <strong>de</strong><br />

infinito actual e falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> potência <strong>de</strong> um conjunto infinito.<br />

17


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

Para Cantor estes eram <strong>do</strong>is conceitos essenciais, sem os quais seria impossível<br />

estabelecer uma teoria completa sobre o infinito actual. Mesmo assim, é inegável a<br />

admiração que Cantor sentia por Bolzano, quer na sua tentativa <strong>de</strong> mostrar que os<br />

para<strong>do</strong>xos podiam ser explica<strong>do</strong>s, quer pela sua ousadia em <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a introdução <strong>do</strong><br />

infinito actual em matemática.<br />

Duas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> anos mais tar<strong>de</strong>, Cantor e De<strong>de</strong>kind introduziram novamente a<br />

questão <strong>do</strong> infinito em acto, mas <strong>de</strong>sta vez sem ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong>s, obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong>, misticismo.<br />

De<strong>de</strong>kind, foi professor na Techishe Hochschule <strong>de</strong> Brunswick, elaborou uma teoria<br />

rigorosa sobre irracionais, ten<strong>do</strong> como fonte <strong>de</strong> inspiração a teoria <strong>da</strong>s proporções <strong>de</strong><br />

Eu<strong>do</strong>xo <strong>de</strong> Cni<strong>do</strong>. De<strong>de</strong>kind criou os números reais e estabeleceu uma correspondência<br />

biunívoca entre pontos <strong>da</strong> recta e os números reais.<br />

Como já foi referi<strong>do</strong>, Galileu consi<strong>de</strong>rava para<strong>do</strong>xal a existência <strong>de</strong> uma bijecção<br />

entre um conjunto infinito e um subconjunto nele estritamente conti<strong>do</strong>. Bolzano<br />

afirmou, embora vagamente, que esse caso “ocorre sempre” em conjuntos infinitos, mas<br />

não concluiu na<strong>da</strong> mais.<br />

Ora, De<strong>de</strong>kind encontrou neste para<strong>do</strong>xo a melhor maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir um conjunto<br />

infinito e expõe as suas i<strong>de</strong>ias no livro Was sind und was sollen die Zahlen? (O que são<br />

e para que servem os números?). Deste mo<strong>do</strong>, “diz-se que um sistema [conjunto] S é<br />

infinito quan<strong>do</strong> é semelhante a uma parte própria <strong>de</strong>le mesmo, caso contrário S diz-se<br />

finito” (cita<strong>do</strong> em Boyer, 1998 [1968]), ou seja, um conjunto S é infinito se e só se é<br />

equipotente a uma parte própria e esta é a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> conjunto infinito mais<br />

correntemente utiliza<strong>da</strong> até hoje. Note-se que sempre se <strong>de</strong>finiu uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> infinita<br />

pela negativa, isto é, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> infinita aquela que não é finita. Daí que esta<br />

<strong>de</strong>finição tenha si<strong>do</strong>, também neste senti<strong>do</strong>, uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Mas foi Cantor quem fez com que os conjuntos infinitos se convertessem<br />

<strong>de</strong>finitivamente em objecto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> matemático.<br />

Relembremos então o para<strong>do</strong>xo que tanto atormentou Galileu: uma parte não po<strong>de</strong><br />

ser igual ao to<strong>do</strong>. Consi<strong>de</strong>remos o conjunto <strong>do</strong>s números naturais e o conjunto A,<br />

constituí<strong>do</strong> pelos seus quadra<strong>do</strong>s. Apesar <strong>de</strong> ser claro que nem to<strong>do</strong>s os números são<br />

quadra<strong>do</strong>s, também não é difícil compreen<strong>de</strong>r que se po<strong>de</strong> estabelecer uma bijecção<br />

18


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

entre os <strong>do</strong>is conjuntos. Daí o para<strong>do</strong>xo: os <strong>do</strong>is conjuntos são equicardinais, mas um<br />

contem o outro – o to<strong>do</strong> é igual a uma parte.<br />

Segun<strong>do</strong> Radice (1981), foi com gran<strong>de</strong> simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> que Cantor clarificou que, no<br />

caso <strong>de</strong> um conjunto infinito, po<strong>de</strong> acontecer que o conjunto e a sua parte, embora não<br />

idênticos, sejam equipotentes, tenham a mesma potência, o mesmo cardinal. E aqui está<br />

a gran<strong>de</strong> diferença entre Cantor e Bolzano. De acor<strong>do</strong> com Wal<strong>de</strong>gg (1991), a teoria <strong>de</strong><br />

Cantor representa um ponto <strong>de</strong> viragem <strong>do</strong> infinito actual em matemática. É a partir<br />

<strong>de</strong>ste momento que o infinito atinge uma posição permanente como objecto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong><br />

com operativi<strong>da</strong><strong>de</strong> própria.<br />

Cantor <strong>de</strong>senvolveu uma teoria que explicava os diferentes conjuntos infinitos, a<br />

teoria <strong>do</strong>s números cardinais transfinitos, basea<strong>da</strong> num tratamento matemático ao<br />

infinito actual. Criou então, um novo tipo <strong>de</strong> número: o transfinito; <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos números<br />

1, 2, 3, 4 … não permitirem a contagem <strong>do</strong>s elementos <strong>do</strong>s conjuntos infinitos,<br />

existin<strong>do</strong> <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> finito, um transfinito que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma precisa. Ao<br />

conjunto numerável atribui o menor cardinal transfinito ℵ 0 e ao continuo um número<br />

transfinito maior.<br />

Para <strong>de</strong>senvolver os seus trabalhos em Análise foi necessário fazer uma construção<br />

rigorosa <strong>do</strong>s números reais que assentasse apenas na aritmética. Para isso era necessário<br />

utilizar certos conjuntos <strong>de</strong> pontos, efectuar operações sobre esses conjuntos, consi<strong>de</strong>rar<br />

sucessões <strong>do</strong>s mesmos. Tal como Cantor, De<strong>de</strong>kind e Weirstrass sentiram essa<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém este foi mais longe.<br />

No século XIX, estava mais ou menos aceite que a existência <strong>de</strong> uma bijecção entre<br />

<strong>do</strong>is conjuntos permitia concluir a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s seus elementos. Mas<br />

será que po<strong>de</strong>mos estabelecer uma bijecção entre <strong>do</strong>is conjuntos infinitos? Em caso<br />

afirmativo, os conjuntos têm o mesmo cardinal, caso contrário po<strong>de</strong>mos concluir que<br />

existem infinitos <strong>de</strong> tamanhos diferentes.<br />

Cantor mostrou que, <strong>de</strong> facto, existem infinitos <strong>de</strong> tamanhos iguais e diferentes e foi<br />

mais além que De<strong>de</strong>kind, ao afirmar que os conjuntos infinitos não eram to<strong>do</strong>s iguais<br />

em tamanho. Numa <strong>da</strong>s cartas que escreveu a De<strong>de</strong>kind, facto que era habitual, afirmou<br />

que os conjuntos <strong>do</strong>s números naturais e <strong>do</strong>s números reais não podiam ser postos em<br />

bijecção. Fican<strong>do</strong> então prova<strong>do</strong> que os subconjuntos infinitos <strong>de</strong> têm o mesmo<br />

19


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

cardinal, que o conjunto <strong>do</strong>s números racionais é numerável, que o conjunto <strong>do</strong>s<br />

números reais não é numerável e que o conjunto <strong>do</strong>s pontos <strong>de</strong> um quadra<strong>do</strong> é<br />

equivalente ao conjunto <strong>do</strong>s pontos <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong>. Assim como, que o conjunto tem<br />

menor cardinal que o conjunto , pois é uma parte <strong>de</strong> e uma parte <strong>de</strong> qualquer<br />

conjunto não po<strong>de</strong> exce<strong>de</strong>r essa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> em elementos.<br />

Nesta fase, Cantor <strong>de</strong>cidiu procurar os infinitos que estivessem entre e e maiores<br />

que . Uma conjectura natural para encontrar infinitos maiores seria consi<strong>de</strong>rar<br />

conjuntos contínuos a duas ou mais dimensões e assim, noutra carta a De<strong>de</strong>kind, Cantor<br />

mostrou uma prova que contradizia a sua própria intuição. Ele consegui estabelecer uma<br />

bijecção entre [ 0 , 1]<br />

e [ ] n<br />

, 1<br />

0 (para n ∈)<br />

mostran<strong>do</strong> assim que n e m têm a mesma<br />

dimensão, quaisquer n, m ∈.<br />

A prova <strong>de</strong> que existem conjuntos com maior cardinal<br />

que o <strong>do</strong> veio <strong>de</strong> uma proposição mais abrangente. O conjunto <strong>do</strong>s subconjuntos <strong>de</strong><br />

um conjunto tem sempre mais elementos que o próprio conjunto, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> se pô<strong>de</strong><br />

concluir existem infinitos maiores que . Já a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> infinitos intermédios entre e ,<br />

não foi <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> ou refuta<strong>da</strong> por Cantor. Ele próprio nunca conseguiu <strong>de</strong>monstrar<br />

que não existe um infinito entre o numerável e o contínuo, isto é, simbolicamente que<br />

ℵ0<br />

ℵ 1 = 2 , esta sua i<strong>de</strong>ia ficou conheci<strong>da</strong> pela Hipótese <strong>do</strong> contínuo.<br />

Cantor foi o principal responsável pela criação <strong>da</strong> Deutshe Mathematiker-<br />

Vereinigung (União Alemã <strong>de</strong> <strong>Matemática</strong>) e em 1891, no primeiro encontro <strong>da</strong><br />

associação, em Halle, leu um artigo sobre o seu argumento diagonal em que procurava<br />

exactamente que, <strong>da</strong><strong>do</strong> um conjunto, o conjunto <strong>da</strong>s suas partes tem potência maior que<br />

esse conjunto.<br />

As suas teorias para a Teoria <strong>de</strong> Conjuntos revolucionaram então a <strong>Matemática</strong>. O<br />

infinito actual finalmente tinha si<strong>do</strong> incorpora<strong>do</strong> na <strong>Matemática</strong>. Note-se que um<br />

infinito actual é aquele que po<strong>de</strong> ser concebi<strong>do</strong> como uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> completa, ou seja,<br />

to<strong>do</strong>s os seus elementos po<strong>de</strong>m ser pensa<strong>do</strong>s num acto único.<br />

De acor<strong>do</strong> com Radice (1981), apesar <strong>da</strong>s <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> Cantor <strong>de</strong>struírem i<strong>de</strong>ias<br />

formula<strong>da</strong>s por célebres filósofos, como por exemplo Kant (para o qual “infinito é uma<br />

gran<strong>de</strong>za acima <strong>da</strong> qual não é possível nenhuma maior”), <strong>de</strong>ram, pela sua simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

origem a novas antinomias e a novos para<strong>do</strong>xos que no entanto, extravasam já o âmbito<br />

<strong>de</strong>ste trabalho. O próprio Cantor, em 1895, <strong>de</strong>scobriu que não podia haver o conjunto <strong>de</strong><br />

20


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

to<strong>do</strong>s os conjuntos, mas vários <strong>do</strong>s seus problemas foram posteriormente soluciona<strong>do</strong>s<br />

no século XX.<br />

2.6. No século XX<br />

No inicio <strong>de</strong>ste século ocorreu, em Paris, o segun<strong>do</strong> Congresso Internacional <strong>de</strong><br />

<strong>Matemática</strong>, on<strong>de</strong> David Hilbert apresentou uma conferencia on<strong>de</strong> formulou uma lista<br />

com 23 problemas matemáticos que precisavam <strong>de</strong> resposta. O primeiro <strong>do</strong>s problemas<br />

referia-se à estrutura <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s números reais e mais explicitamente à<br />

Hipótese <strong>do</strong> contínuo. Hilbert questionou a existência <strong>de</strong> um cardinal entre o contínuo e<br />

o numerável e se o contínuo po<strong>de</strong> ser bem or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>.<br />

Do problema <strong>do</strong> contínuo <strong>de</strong> Cantor sobre a potência ou cardinali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> contínuo<br />

ς , Hilbert questionou se é ou não a primeira a seguir à potência numerável, ℵ 0 .<br />

“I – Problema <strong>do</strong> Senhor Cantor relativo à potência <strong>do</strong> contínuo.<br />

To<strong>do</strong> o sistema infinito <strong>de</strong> números reais, isto é, to<strong>do</strong> o conjunto <strong>de</strong> números (ou<br />

pontos), ou é equivalente ao conjunto <strong>do</strong>s números naturais 1, 2, 3, …, ou ao conjunto<br />

<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os números reais, e por consequência ao conjunto, isto é, aos pontos <strong>de</strong> um<br />

segmento; <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista equivalente, não há mais que <strong>do</strong>is conjuntos <strong>de</strong><br />

números: os numeráveis e o contínuo.<br />

A partir <strong>de</strong>ste teorema po<strong>de</strong>mos concluir igualmente que o contínuo apresenta o<br />

número cardinal imediatamente a seguir ao <strong>do</strong> conjunto numerável.<br />

(…) O conjunto <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os números não po<strong>de</strong>rá ser or<strong>de</strong>na<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma outra forma<br />

tal que to<strong>do</strong>s os conjuntos parciais tenham um primeiro elemento? Dito <strong>de</strong> outra forma,<br />

será que o contínuo po<strong>de</strong>rá ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um conjunto bem or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>?” (Hilbert,<br />

1990 [1902])<br />

Em 1908, Ernst Zermelo propôs a primeira axiomatização <strong>da</strong> teoria <strong>de</strong> conjuntos<br />

evitan<strong>do</strong> assim as contradições existentes. Para um matemático, uma <strong>de</strong>monstração só é<br />

váli<strong>da</strong> se for verificável e assim surge um novo problema, ou seja, a subjectivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

inerente ao acto a verificar.<br />

21


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

Hilbert na conferência <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1925, no congresso organiza<strong>do</strong> pela<br />

Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>Matemática</strong> <strong>de</strong> Westfália, em Münster, afirmou que “ninguém nos expulsará<br />

<strong>do</strong> paraíso que Cantor criou para nós”.<br />

“A Análise matemática constitui, por si mesma, uma sinfonia <strong>do</strong> infinito. (…) Mas a<br />

Análise, por si só, não nos dá ain<strong>da</strong> a visão mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong> natureza <strong>do</strong> infinito.<br />

Para obtê-la servimo-nos <strong>de</strong> uma disciplina que se aproxima <strong>de</strong> especulação filosófica<br />

geral e que estava <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a <strong>da</strong>r nova luz a to<strong>do</strong>s os complexos problemas que se<br />

referem ao infinito. Esta disciplina é a teoria <strong>do</strong>s conjuntos que foi cria<strong>da</strong> por Georg<br />

Cantor. (…) Esta parece-me a mais maravilhosa florescência <strong>do</strong> espírito matemático e,<br />

sem dúvi<strong>da</strong>, uma <strong>da</strong>s mais altas realizações <strong>da</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong> racional humana pura”.<br />

(Hilbert, 1926)<br />

Através <strong>da</strong> verificação mecânica, tentou mostrar a consistência <strong>de</strong> tal paraíso, mas o<br />

trabalho Teoremas <strong>de</strong> incompletu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gö<strong>de</strong>l-Russel marcou um ponto <strong>de</strong> inflexão nos<br />

fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>. Note-se que um sistema axiomático <strong>de</strong>ve satisfazer três<br />

condições: ser consistente, ser completo e ca<strong>da</strong> postula<strong>do</strong> ser <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>s outros.<br />

Em 1931, Kürt Gö<strong>de</strong>l <strong>de</strong>monstrou que o méto<strong>do</strong> axiomático apresenta limitações, ou<br />

seja, mostrou que existem ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s matemáticas impossíveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar por via<br />

lógica e qualquer outro sistema lógico não <strong>de</strong>monstra a sua consistência lógica,<br />

surpreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> assim os matemáticos <strong>de</strong> então.<br />

Tal <strong>de</strong>scoberta “implica que a consistência <strong>de</strong> um sistema matemático não po<strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> excepto utilizan<strong>do</strong> méto<strong>do</strong>s mais po<strong>de</strong>rosos <strong>do</strong> que os méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>monstração <strong>do</strong> próprio sistema”. (Cohen, 1966)<br />

Os trabalhos <strong>de</strong> Gö<strong>de</strong>l, em 1936, mostraram que a Hipótese <strong>do</strong> contínuo é compatível<br />

com a teoria <strong>de</strong> conjuntos <strong>de</strong> Zermelo-Fraenkel e em 1963 Cohen mostrou que a<br />

negação <strong>da</strong> Hipótese <strong>do</strong> contínuo também é compatível com os axiomas <strong>da</strong> teoria <strong>de</strong><br />

Zermelo-Fraenkel. Assim, estes trabalhos mostraram que esta formulação não po<strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> ou refuta<strong>da</strong> ten<strong>do</strong> em conta apenas os axiomas habituais <strong>da</strong> teoria <strong>de</strong><br />

conjuntos.<br />

22


Perspectiva histórica <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 2<br />

Foi necessário esperar pela Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd em 1961, para os infinitésimos<br />

serem reconheci<strong>do</strong>s como enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s bem <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s e assim justificar os cálculos físicos<br />

que se faziam com eles, visto Cantor não reconhecer a existência <strong>de</strong> infinitamente<br />

pequenos.<br />

23


Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

3. Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong><br />

“Estas são dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>quelas que <strong>de</strong>rivam <strong>do</strong> discorrer que fazemos <strong>do</strong> nosso intelecto<br />

infinito em torno <strong>do</strong>s infinitos, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong>-os com os atributos que <strong>da</strong>mos às coisas finitas e<br />

termina<strong>da</strong>s; o que penso é inconveniente.”<br />

Galileu Galilei<br />

“Po<strong>de</strong> parecer (que um facto, que se verifica para os conjuntos finitos) <strong>de</strong>va acontecer<br />

mesmo quan<strong>do</strong> os conjuntos, em vez <strong>de</strong> finitos, são infinitos. Po<strong>de</strong> parecer, disse; mas um<br />

estu<strong>do</strong> mais aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong> revela que essa necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> não existe, porque a razão pela qual<br />

(aquele facto) acontece em to<strong>do</strong>s os conjuntos finitos resi<strong>de</strong> exactamente na sua limitação<br />

e, portanto, não tem lugar nos infinitos.”<br />

Bernhard Bolzano<br />

23


3.1. Para<strong>do</strong>xos <strong>de</strong> Zenão<br />

Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

Zenão <strong>de</strong> Eléia (cerca <strong>de</strong> 450 a.C.) nasceu em Eléia, hoje Vélia, Itália. Filho <strong>de</strong><br />

Teleutágoras, Zenão foi a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> por Parméni<strong>de</strong>s na Escola <strong>de</strong> Eléia. Tornou-se um<br />

professor muito respeita<strong>do</strong> na sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, e <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a isso, envolveu-se bastante com a<br />

política local. Juntamente com outros companheiros e conspira<strong>do</strong>res, Zenão tentou<br />

<strong>de</strong>rrubar o tirano que governava a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Foi preso e tortura<strong>do</strong> até a morte. A partir <strong>da</strong><br />

sua morte, tornou-se um herói, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> uma marca na lembrança <strong>do</strong>s seus<br />

compatriotas contemporâneos.<br />

Zenão <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> apaixona<strong>do</strong> a filosofia <strong>do</strong> seu mestre Parméni<strong>de</strong>s, para isso<br />

usou um méto<strong>do</strong> que consistia na elaboração <strong>de</strong> para<strong>do</strong>xos. Deste mo<strong>do</strong>, não pretendia<br />

refutar directamente as teses que combatia, mas sim mostrar os seus absur<strong>do</strong>s (e,<br />

portanto, a sua falsi<strong>da</strong><strong>de</strong>). Acredita-se que Zenão tenha cria<strong>do</strong> cerca <strong>de</strong> quarenta<br />

para<strong>do</strong>xos, to<strong>do</strong>s contra a multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, a divisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e o movimento (que na<strong>da</strong><br />

mais são que ilusões, segun<strong>do</strong> a escola eleática).<br />

Os seus para<strong>do</strong>xos entravam em conflito com algumas concepções antigas e<br />

intuitivas sobre o infinitamente pequeno e o infinitamente gran<strong>de</strong>, pelo que trouxeram o<br />

horror ao infinito! Nessa altura, acreditava-se que a adição <strong>de</strong> uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s se podia tornar infinitamente gran<strong>de</strong> tanto quanto se <strong>de</strong>sejasse, mesmo que<br />

ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ssas quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s fosse extremamente pequena, ou seja, simbolicamente<br />

obteríamos ∀ ε > 0, ∞ × ε = ∞ . Também se acreditava que a adição <strong>de</strong> um número finito<br />

ou infinito <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> dimensão zero era zero, o que neste caso se traduziria<br />

simbolicamente por n× 0 = 0, ∞ × 0 = 0 .<br />

Zenão <strong>de</strong>safiou estas concepções e enunciou argumentos para tentar provar a<br />

inconsistência <strong>do</strong>s conceitos <strong>de</strong> multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> e divisibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, crian<strong>do</strong> quatro<br />

para<strong>do</strong>xos, relativos ao movimento e ao tempo, que foram retoma<strong>do</strong>s por Aristóteles e<br />

que são conheci<strong>do</strong>s pelos nomes <strong>de</strong> Dicotomia, Aquiles, a Seta e o Estádio.<br />

25


Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

Dicotomia: Um objecto que quer percorrer <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> distância tem primeiro que<br />

percorrer meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa distância, mas antes disso, tem <strong>de</strong> percorrer um quarto. Isto<br />

continua in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente, até uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> subdivisões. Segue-se, então, que o<br />

movimento não po<strong>de</strong> chegar sequer a começar.<br />

Aquiles: Aquiles e uma tartaruga movem-se na mesma direcção ao longo <strong>de</strong> uma<br />

linha recta. Se Aquiles <strong>de</strong>r algum adianto à tartaruga, nunca conseguirá alcança-la, já<br />

que quan<strong>do</strong> ele atingir a posição inicial <strong>da</strong> tartaruga, ela já terá avança<strong>do</strong> e se encontrará<br />

noutro local adiante <strong>de</strong>le, e quan<strong>do</strong> ele chegar a essa nova posição, já a tartaruga terá<br />

realiza<strong>do</strong> novo avanço; e assim sucessivamente.<br />

A Seta: Uma seta lança<strong>da</strong> para o alvo está, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, para<strong>da</strong>. Com efeito, em ca<strong>da</strong><br />

instante, a seta ocupa uma posição fixa, ou seja, em ca<strong>da</strong> instante a seta está para<strong>da</strong>.<br />

Segue-se então, que a seta jamais se move.<br />

O Estádio: Sejam três filas paralelas <strong>de</strong> atletas num estádio, uma imóvel e as outras<br />

corren<strong>do</strong> em senti<strong>do</strong>s opostos. Se passa<strong>do</strong> um único instante <strong>de</strong> tempo, ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s<br />

atletas em corri<strong>da</strong> passar por um <strong>do</strong>s atletas em repouso, então um corre<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma fila<br />

terá <strong>de</strong> ter passa<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is corre<strong>do</strong>res <strong>da</strong> outra fila em movimento. Ou seja, um<br />

corre<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma fila passa por um corre<strong>do</strong>r <strong>da</strong> outra fila em meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse tempo.<br />

Portanto, o instante <strong>de</strong> tempo é igual ao seu <strong>do</strong>bro.<br />

Os <strong>do</strong>is primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>de</strong> Zenão mostravam que um segmento finito po<strong>de</strong> ser<br />

dividi<strong>do</strong> num número infinito <strong>de</strong> pequenos segmentos, ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les com comprimento<br />

finito. Esta questão seria hoje <strong>de</strong>scrita como a convergência <strong>de</strong> uma série real.<br />

Na Dicotomia, a trajectória <strong>do</strong> objecto po<strong>de</strong> ser representa<strong>da</strong> pelo segmento <strong>de</strong> recta<br />

[AB ] , C o ponto médio <strong>de</strong> [AB ] , D o ponto médio <strong>de</strong> [AC ] , E o ponto médio <strong>de</strong><br />

[AD ] , e assim por diante.<br />

26


Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

A E D C<br />

B<br />

Pela perspectiva <strong>de</strong> Zenão, teríamos<br />

[ AB]<br />

[ AB]<br />

[ AB]<br />

[ AB]<br />

[ AB]<br />

[ AB ] = + + + + ... + + ... n<br />

2 4 8 16 2<br />

Mais sucintamente,<br />

[ AB]<br />

[ AB ] = n<br />

1 2<br />

∑ ∞<br />

n=<br />

Em Aquiles, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> subdivisão infinita é a mesma, apenas com a diferença <strong>de</strong> ser<br />

agora progressiva em vez <strong>de</strong> regressiva.<br />

Se consi<strong>de</strong>rarmos 0 X a posição inicial <strong>de</strong> Aquiles, X n (com n natural) a posição<br />

on<strong>de</strong> se encontra a tartaruga no instante em que Aquiles se encontra na posição X n−<br />

1 , e<br />

Y a posição em que Aquiles alcança a tartaruga.<br />

X 0<br />

X 1<br />

O segun<strong>do</strong> argumento <strong>de</strong> Zenão chama a atenção para que<br />

X<br />

Y = X X + X X + X X<br />

1<br />

1<br />

2<br />

2<br />

3<br />

3<br />

4<br />

X 2<br />

+ ...<br />

X 3<br />

Y<br />

27


Ou seja,<br />

X<br />

∞<br />

1 Y = ∑ X n X n+<br />

1<br />

n=<br />

1<br />

Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

Segun<strong>do</strong> Boyer (1984), “a Dicotomia e Aquiles argumentam que o movimento é<br />

impossível sob a hipótese <strong>de</strong> subdivisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong> <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo”. Zenão<br />

mostrou que se os conceitos <strong>de</strong> contínuo e infinita divisão forem aplica<strong>do</strong>s ao<br />

movimento <strong>de</strong> um corpo, então este torna-se impossível. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a essência <strong>do</strong><br />

movimento é tal que, quan<strong>do</strong> vamos a querer fixar a posição <strong>de</strong> um objecto, em<br />

<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> instante, num ponto <strong>da</strong> sua trajectória, já ele aí não se encontra – entre <strong>do</strong>is<br />

instantes, por mais próximos que sejam um <strong>do</strong> outro, o objecto percorreu um segmento,<br />

com uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pontos. Deste fenómeno se po<strong>de</strong> dizer, como Leonar<strong>do</strong> <strong>da</strong> Vinci<br />

disse <strong>da</strong> chama: “olha para a chama e consi<strong>de</strong>ra a sua beleza; fecha os olhos e torna a<br />

olhar: o que vês não estava lá e o que lá estava já não o encontras”.<br />

O para<strong>do</strong>xo <strong>da</strong> Seta reflecte a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento se o espaço e o tempo<br />

forem compostos <strong>de</strong> partes indivisíveis. No Estádio, Zenão mostra que o intervalo <strong>de</strong><br />

tempo que se consi<strong>de</strong>ra não po<strong>de</strong> ser mínimo. Segun<strong>do</strong> Boyer (1984), “a Flecha (Seta)<br />

e o Estádio, <strong>de</strong> outro la<strong>do</strong>, argumentam que também é impossível, sob a hipótese<br />

contrária – <strong>de</strong> que a subdivisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço termina em indivisíveis”.<br />

Zenão apresentou para<strong>do</strong>xos que mostravam as contradições existentes em<br />

consi<strong>de</strong>rar gran<strong>de</strong>zas divisíveis infinitamente e em consi<strong>de</strong>rar gran<strong>de</strong>zas indivisíveis. Os<br />

problemas que conduziram aos seus para<strong>do</strong>xos diziam respeito à relação entre o infinito<br />

actual e o infinito potencial. A solução <strong>de</strong>stes para<strong>do</strong>xos exige uma teoria, como a<br />

cantoriana, que combine a nossa noção intuitiva <strong>de</strong> pontos e acontecimentos individuais<br />

com uma teoria sistemática <strong>de</strong> conjuntos infinitos.<br />

28


3.2. Para<strong>do</strong>xos <strong>de</strong> Galileu<br />

Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

Galileu nasceu em Pisa em 1564. Filho <strong>de</strong> um compositor e músico, ingressou, aos<br />

<strong>de</strong>zassete anos, na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pisa no curso <strong>de</strong> Medicina, on<strong>de</strong> aproveitou para<br />

aprofun<strong>da</strong>r a observação <strong>do</strong>s fenómenos <strong>da</strong> natureza e estu<strong>da</strong>r textos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s autores<br />

clássicos como Arquime<strong>de</strong>s. No segun<strong>do</strong> ano <strong>do</strong> curso, que acabou por não concluir<br />

<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao gosto que tinha pela Ciência e pela <strong>Matemática</strong>, <strong>de</strong>scobriu que um pêndulo<br />

oscila com uma frequência constante (lei <strong>do</strong> isocronismo <strong>da</strong>s pequenas oscilações).<br />

Aos vinte e cinco anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> foi indica<strong>do</strong> professor <strong>de</strong> <strong>Matemática</strong> <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pisa, ten<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> experiências públicas sobre a que<strong>da</strong> <strong>do</strong>s corpos,<br />

enquanto exerceu essa função, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> as primeiras i<strong>de</strong>ias sobre o princípio <strong>da</strong><br />

inércia.<br />

Em 1592 torna-se professor na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pádua, por quase <strong>de</strong>zoito anos, on<strong>de</strong><br />

continuou as suas experiências e aulas, ganhan<strong>do</strong> um amplo prestígio.<br />

Galileu <strong>de</strong>senvolveu vários instrumentos como a balança hidrostática, um tipo <strong>de</strong><br />

compasso geométrico que permitia medir ângulos e áreas, o termómetro <strong>de</strong> Galileu e o<br />

precursor <strong>do</strong> relógio <strong>de</strong> pêndulo.<br />

No início <strong>do</strong> século XVII surgiram os primeiros telescópios. Galileu <strong>de</strong>senvolveu o<br />

seu próprio telescópio e foi o primeiro a observar quatro satélites luminosos <strong>de</strong> Júpiter,<br />

confirman<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira notável a teoria <strong>de</strong> Copérnico <strong>do</strong>s corpos pequenos giran<strong>do</strong> em<br />

torno <strong>de</strong> outros maiores. Com o telescópio, Galileu observou as manchas <strong>do</strong> Sol, as<br />

montanhas <strong>da</strong> Lua, as fases <strong>de</strong> Vénus e os anéis <strong>de</strong> Saturno. Mas tais <strong>de</strong>scobertas<br />

provocaram uma oposição fanática por parte <strong>de</strong> muitos homens <strong>da</strong> Igreja, que aceitavam<br />

a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Aristóteles; Aristóteles garantia que o Sol não tem manchas e que a<br />

Terra, e, portanto o homem, é o centro <strong>do</strong> Universo. Houve até quem acusasse Galileu<br />

<strong>de</strong> colocar os quatro satélites <strong>de</strong> Júpiter <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> telescópio.<br />

Por fim, em 1633, um ano <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> publicação <strong>de</strong> um livro em que sustentava a<br />

teoria <strong>de</strong> Copérnico, Galileu foi cita<strong>do</strong> a comparecer perante a Inquisição, quan<strong>do</strong> já<br />

<strong>do</strong>ente e envelheci<strong>do</strong>, foi força<strong>do</strong>, sob ameaça <strong>de</strong> tortura. O seu livro foi coloca<strong>do</strong> no<br />

ín<strong>de</strong>x, on<strong>de</strong> ficou por <strong>do</strong>is séculos e apenas lhe permitiram continuar um trabalho<br />

29


Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

científico inócuo, mas acabou por cegar e morrer em 1642, ain<strong>da</strong> sob a vigilância <strong>da</strong><br />

Inquisição.<br />

Um <strong>do</strong>s para<strong>do</strong>xos mais famosos acerca <strong>do</strong> infinito é o que é apresenta<strong>do</strong> por<br />

Galileu, o para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong>s naturais e <strong>do</strong>s quadra<strong>do</strong>s, no livro Discorsi e dimostrazioni<br />

matematiche a due nuove scienze. Galileu encena uma conversa entre três personagens,<br />

Salviati, Simplício e Sagre<strong>do</strong>, que representam respectivamente, ele próprio, um sábio<br />

convenci<strong>do</strong> <strong>da</strong> justeza <strong>da</strong>s concepções <strong>de</strong> Aristóteles e um homem honesto para quem a<br />

<strong>de</strong>monstração e a experiência se sobrepõem ao conhecimento livresco.<br />

Salviati leva Simplício a concor<strong>da</strong>r que os números que são quadra<strong>do</strong>s perfeitos são<br />

tantos quantos os próprios números naturais, mostran<strong>do</strong>-lhe a correspondência, a que<br />

hoje chamamos bijectiva, entre os <strong>do</strong>is conjuntos <strong>de</strong> números, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o ter feito<br />

reconhecer que os inteiros são mais <strong>do</strong> que os quadra<strong>do</strong>s perfeitos sozinhos:<br />

“Salviati. (…). Por consciência, se eu disser que os números toma<strong>do</strong>s na sua<br />

totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, incluin<strong>do</strong> os quadra<strong>do</strong>s e os não quadra<strong>do</strong>s, são mais numerosos <strong>do</strong> que os<br />

quadra<strong>do</strong>s sozinhos, enunciarei uma proposição ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira não é?<br />

Simplicío. Certamente.<br />

Salviati. Se eu perguntar agora quantos quadra<strong>do</strong>s há, po<strong>de</strong>mos respon<strong>de</strong>r, em nos<br />

enganarmos, que há tantos quantas raízes quadra<strong>da</strong>s correspon<strong>de</strong>ntes, aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a que<br />

to<strong>do</strong> o quadra<strong>do</strong> tem a sua raiz e to<strong>da</strong> a raiz o seu quadra<strong>do</strong>, que um quadra<strong>do</strong> não tem<br />

mais que uma raiz, nem uma raiz mais que um quadra<strong>do</strong>.<br />

Simplicío. Exactamente.<br />

Salviati. Mas se eu perguntar quantas raízes há, não se po<strong>de</strong> negar que há tantas<br />

quantos os números, porque to<strong>do</strong> o número é a raiz <strong>de</strong> algum quadra<strong>do</strong>; assim sen<strong>do</strong>,<br />

será portanto preciso dizer que há tantos números quadra<strong>do</strong>s como números, uma vez<br />

que eles são tantos como as raízes e que as raízes representam o conjunto <strong>do</strong>s números;<br />

e no entanto dizíamos <strong>de</strong> princípio que há mais números <strong>do</strong> que quadra<strong>do</strong>s, já que a<br />

maior parte <strong>do</strong>s números são quadra<strong>do</strong>s.<br />

30


Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

Sagre<strong>do</strong>. Então, qual a conclusão a tirar nestas condições?<br />

Salviati. Aos meus olhos, a única conclusão possível é dizer que o conjunto <strong>do</strong>s<br />

números, <strong>do</strong>s quadra<strong>do</strong>s, <strong>da</strong>s raízes é infinito; que o total <strong>do</strong>s números quadra<strong>do</strong>s não é<br />

inferior ao conjunto <strong>do</strong>s números, nem este superior àquele. E finalmente, que os<br />

atributos igual, maior e menor não têm senti<strong>do</strong> para quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s infinitas, mas somente<br />

para quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s finitas”. (Cita<strong>do</strong> em Radice, 1981)<br />

Galileu chegou à conclusão que para contar os quadra<strong>do</strong>s perfeitos, podia estabelecer<br />

uma bijecção entre o conjunto <strong>do</strong>s números naturais e o conjunto <strong>do</strong>s quadra<strong>do</strong>s<br />

perfeitos, concluin<strong>do</strong> assim que os quadra<strong>do</strong>s perfeitos não eram menos <strong>do</strong> que os<br />

números naturais. A i<strong>de</strong>ia, proveniente <strong>da</strong> famosa noção <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s – “o to<strong>do</strong> é maior<br />

que a parte” – <strong>de</strong> que os números naturais eram mais <strong>do</strong> que os quadra<strong>do</strong>s perfeitos,<br />

impediu-o <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar a igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cardinais.<br />

Outro para<strong>do</strong>xo galileano é o <strong>da</strong>s ro<strong>da</strong>s, que consiste em duas ro<strong>da</strong>s concêntricas,<br />

uma maior que a outra, que tocam com os seus pontos em <strong>do</strong>is segmentos <strong>de</strong><br />

comprimentos iguais.<br />

“Salviati. Mas diz-me se em torno <strong>de</strong> um centro, (…) este ponto A, <strong>de</strong>screvermos<br />

<strong>do</strong>is círculos e <strong>do</strong>s pontos C e B <strong>do</strong>s seus semi-diâmetros se traçarem as tangentes CE,<br />

BF e <strong>de</strong>les, pelo centro A, a paralela AD, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que o círculo maior gira sobre<br />

a linha BF (igual à <strong>da</strong> sua circunferência, assim como as outras duas CE, AD) e<br />

admitin<strong>do</strong> que há uma revolução, que terá feito o círculo menor e o centro? Este terá,<br />

sem dúvi<strong>da</strong>, percorri<strong>do</strong> a linha AD, e a circunferência <strong>da</strong>quele terá, com os seus<br />

contactos, medi<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a CE (…). Portanto, como po<strong>de</strong>, sem saltos o círculo menor<br />

percorrer uma linha tão maior <strong>de</strong> que a sua circunferência (…). (Cita<strong>do</strong> em Radice,<br />

1981)<br />

31


Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

A situação po<strong>de</strong> ser representa<strong>da</strong> <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

A<br />

C<br />

B<br />

Mais uma vez se trata <strong>de</strong> uma bijecção entre <strong>do</strong>is conjuntos, o segun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s quais<br />

po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> uma parte <strong>do</strong> outro. A circunferência mais pequena é, como<br />

comprimento, meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> maior. Assim, é possível estabelecer uma correspondência <strong>do</strong>s<br />

seus pontos com os <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> circunferência <strong>de</strong> raio [AB ] . Mas também po<strong>de</strong>mos<br />

estabelecer uma correspondência entre os pontos <strong>da</strong> mais pequena na <strong>da</strong> maior, ten<strong>do</strong><br />

portanto uma correspondência biunívoca entre as circunferências.<br />

O para<strong>do</strong>xo resi<strong>de</strong> na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> correspondência biunívoca entre um segmento<br />

contínuo e uma sua parte própria. Bernhard Bolzano falou <strong>de</strong>ste assunto nos Para<strong>do</strong>xos<br />

<strong>do</strong> <strong>Infinito</strong>.<br />

Vejamos então a solução proposta por Galileu e <strong>de</strong> segui<strong>da</strong> a solução proposta por<br />

Bolzano. A solução que Galileu apresenta é negativa: não é possível com a nossa<br />

compreensão finita apurar o infinito. Ou seja, quan<strong>do</strong> falamos em infinitos e em<br />

indivisíveis, os primeiros são incompreensíveis pela sua dimensão e os segun<strong>do</strong>s pela<br />

sua pequenez.<br />

Galileu enquanto matemático nega a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> raciocinar com argumentos<br />

necessariamente convincentes sobre o infinito. Mas, pelo contrário, enquanto filósofo,<br />

admite a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer conjecturas, arbitrárias e não necessárias, sobre a<br />

natureza <strong>do</strong> infinito. Assim, como matemático afirma:<br />

D<br />

E<br />

F<br />

32


Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

“Não vejo a que outra <strong>de</strong>cisão possa chegar <strong>do</strong> que dizer que infinitos são to<strong>do</strong>s os<br />

números, infinitos os quadra<strong>do</strong>s, infinitas as suas raízes, nem que a multidão <strong>do</strong>s<br />

quadra<strong>do</strong>s é menor que a <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os números, nem esta maior que aquela, e, como<br />

última conclusão, os atributos <strong>de</strong> igual, maior e menor não terem lugar nos infinitos,<br />

mas apenas nas quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s termina<strong>da</strong>s.”<br />

Totalmente diferente <strong>da</strong> opinião <strong>de</strong> Galileu é a opinião <strong>de</strong> Bolzano perante o infinito<br />

e em particular <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> to<strong>do</strong> e <strong>da</strong> parte.<br />

Bernahrd Bolzano, nasci<strong>do</strong> em Praga, actual República Checa, era filósofo,<br />

matemático e teólogo e <strong>de</strong>u importantes contributos tanto para a <strong>Matemática</strong> como para<br />

a Teoria <strong>do</strong> Conhecimento. Ele tentou, no seu trabalho, libertar o Cálculo <strong>da</strong> sua<br />

concepção infinitesimal. Para além <strong>de</strong> problemas liga<strong>do</strong>s à <strong>Matemática</strong>, estu<strong>do</strong>u<br />

problemas liga<strong>do</strong>s ao espaço, à força e à propagação <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s.<br />

Filho <strong>de</strong> um comerciante <strong>de</strong> artes, frequentou a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Praga, on<strong>de</strong> estu<strong>do</strong>u<br />

Teologia, <strong>Matemática</strong> e Filosofia. Foi or<strong>de</strong>na<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te <strong>da</strong> Igreja Católica e foi<br />

<strong>de</strong>signa<strong>do</strong> para leccionar religião, na universi<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> estu<strong>do</strong>u.<br />

Os estu<strong>do</strong>s científicos <strong>de</strong> Bolzano foram muito avança<strong>do</strong>s para o seu tempo, nos<br />

fun<strong>da</strong>mentos <strong>de</strong> vários ramos <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>, como a teoria <strong>da</strong>s funções, a lógica e a<br />

noção <strong>de</strong> cardinal. Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar o teorema <strong>do</strong> valor intermédio, <strong>de</strong>u o primeiro<br />

exemplo <strong>de</strong> uma função contínua não <strong>de</strong>rivável em nenhum ponto <strong>do</strong> conjunto <strong>do</strong>s<br />

números reais. No campo <strong>da</strong> lógica, estu<strong>do</strong>u a tabela <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma proposição e<br />

introduziu a primeira <strong>de</strong>finição operativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>dutibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Para ele bastava caracterizar um conjunto pelas suas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e não ter <strong>de</strong><br />

enumerar to<strong>do</strong>s os elementos <strong>de</strong>sse conjunto, ou seja, um conjunto é um to<strong>do</strong>.<br />

Bolzano tentou estabelecer um critério <strong>de</strong> comparação entre conjuntos infinitos.<br />

Analisou o para<strong>do</strong>xo <strong>de</strong> Galileu relativo à correspondência, um a um, entre os números<br />

naturais e os quadra<strong>do</strong>s perfeitos e mostrou, embora vagamente, que as<br />

33


Os primeiros para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 3<br />

correspondências entre um conjunto infinito e um seu subconjunto próprio são comuns<br />

a to<strong>do</strong>s os conjuntos infinitos. No entanto, consi<strong>de</strong>rava que não era suficiente, para<br />

concluir que tais conjuntos tinham o mesmo cardinal, a existência <strong>de</strong> uma bijecção entre<br />

os conjuntos, para que pu<strong>de</strong>ssem ter o mesmo cardinal, era necessário estar, por<br />

exemplo, <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> idêntico:<br />

“Quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is conjuntos são infinitos, po<strong>de</strong> haver uma relação tal que, por um la<strong>do</strong><br />

é possível associar ca<strong>da</strong> elemento <strong>do</strong> primeiro conjunto com algum elemento <strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> <strong>de</strong> tal forma que nenhum elemento <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is conjuntos fique sem associação, e<br />

por outro la<strong>do</strong> é possível que um conjunto possa conter o outro como uma parte <strong>de</strong> si.<br />

É insuficiente que se possam equiparar os elementos <strong>de</strong> <strong>do</strong>is conjuntos (infinitos)…<br />

Só se po<strong>de</strong> concluir uma igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>stas multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s se ambos os conjuntos forem<br />

<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> idêntico.”<br />

34


4. O paraíso que Cantor criou<br />

O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

George Ferdinand Ludwig Philip Cantor, cujos pais eram dinamarqueses, nasceu em<br />

1845, em S. Petersburgo, Rússia, mas passou a maior parte <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> na Alemanha. O<br />

seu pai era ju<strong>de</strong>u converti<strong>do</strong> ao protestantismo e a sua mãe católica <strong>de</strong> nascimento.<br />

Cantor interessou-se fortemente pela teologia medieval sobre a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> e o<br />

infinito. Como consequência, não seguiu uma carreira em engenharia como lhe sugeria<br />

o seu pai, a fim <strong>de</strong> se concentrar em Filosofia, Física e <strong>Matemática</strong>.<br />

Estu<strong>do</strong>u em Zurique, Göttingen e Berlim, on<strong>de</strong> ensinavam, além <strong>de</strong> Kummer,<br />

Leopold Kronecker e Karl Weierstrass. Talvez por influência <strong>de</strong> Kummer e Kronecker,<br />

Cantor interessou-se particularmente por teoria <strong>de</strong> números, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> este assunto<br />

tanto <strong>da</strong> sua tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utoramento como <strong>do</strong> trabalho que apresentou para ser admiti<strong>do</strong><br />

como <strong>do</strong>cente na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Halle (uma universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> província consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong><br />

pouco importante), on<strong>de</strong> leccionou entre 1869 e 1905.<br />

Faleceu em 1918 no hospital <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças mentais <strong>de</strong> Halle.<br />

As <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> Cantor sobre a teoria <strong>de</strong> conjuntos assentam sobre uma i<strong>de</strong>ia muito<br />

simples. Como comparar conjuntos se não se conseguir contar os seus elementos?<br />

Qualquer criança, muito antes <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a contar, sabe que a mão direita tem tantos<br />

<strong>de</strong><strong>do</strong>s quantos <strong>da</strong> mão esquer<strong>da</strong>. Ora, “tantos…quantos” é a maneira pela qual não só as<br />

crianças, mas também, em geral, as pessoas normais, exprimem o conceito <strong>de</strong><br />

correspondência biunívoca. Pois bem, basta colocar ca<strong>da</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> uma mão em frente ao<br />

correspon<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> outra mão para concluir que ambas têm o mesmo número <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong><strong>do</strong>s.<br />

De uma forma intuitiva, a correspondência, um a um, entre <strong>do</strong>is conjuntos A e B<br />

trata-se <strong>do</strong> emparelhamento <strong>do</strong>s elementos <strong>de</strong> um conjunto com os <strong>do</strong> outro, <strong>de</strong> tal<br />

mo<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os elementos <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> conjunto têm exactamente um correspon<strong>de</strong>nte no<br />

outro conjunto.<br />

34


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

“Se eu pu<strong>de</strong>r correspon<strong>de</strong>r, elemento por elemento, <strong>do</strong>is conjuntos bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s M<br />

e N por uma operação unívoca (e, quan<strong>do</strong> se po<strong>de</strong> fazê-lo duma maneira, po<strong>de</strong>-se fazê-<br />

lo também <strong>de</strong> muitas outras) (…) digo que estes conjuntos têm a mesma potência, ou<br />

ain<strong>da</strong> que eles são equivalentes”. (Cantor, 1883 [1887])<br />

Segun<strong>do</strong> esta <strong>de</strong>finição, po<strong>de</strong> procurar-se a equivalência <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s conjuntos, como<br />

o <strong>do</strong>s lugares <strong>de</strong> um estádio e o <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res que os ocupam para assistir a qualquer<br />

acontecimento: se houver especta<strong>do</strong>res sem lugar, ou se sobrarem lugares não ocupa<strong>do</strong>s,<br />

os <strong>do</strong>is conjuntos não são equivalentes; caso contrário, são.<br />

A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Cantor não exige que contemos, ou mesmo que conheçamos, as<br />

populações <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is conjuntos para <strong>de</strong>terminar se são ou não equivalentes.<br />

Como diz Radice (1981), Cantor teve a ousadia intelectual, que duzentos e cinquenta<br />

anos antes faltou a Galileu Galilei, <strong>de</strong> aplicar a <strong>de</strong>finição infantil <strong>de</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

número cardinal <strong>de</strong> <strong>do</strong>is conjuntos ao caso <strong>de</strong> conjuntos infinitos, afirman<strong>do</strong> que uma<br />

parte po<strong>de</strong> ser equivalente ao to<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se trata <strong>de</strong> conjuntos infinitos.<br />

Na obra <strong>de</strong> Galileu Diálogos <strong>de</strong> Duas Novas Ciências, escrita <strong>do</strong>is séculos e meio<br />

antes <strong>de</strong> Cantor, o gran<strong>de</strong> cientista italiano chamou a atenção para a correspondência, <strong>de</strong><br />

um para um, entre o conjunto <strong>do</strong>s números naturais e os seus quadra<strong>do</strong>s, embora<br />

intuitivamente parecesse haver muito menos quadra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que números naturais.<br />

A contradição que se <strong>de</strong>parou a Galileu resolve-se com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> apenas em<br />

atenção que o mesmo adjectivo, igual, po<strong>de</strong> ser empregue com <strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s<br />

diferentes.<br />

Um <strong>de</strong>les, com origem em Aristóteles, baseia-se no facto <strong>de</strong> a parte não po<strong>de</strong>r ser<br />

igual ao to<strong>do</strong>, na medi<strong>da</strong> em que no to<strong>do</strong> existe pelo menos um elemento que não está<br />

na parte.<br />

O outro, cantoriano, consi<strong>de</strong>ra que a parte po<strong>de</strong> ser igual em número ao to<strong>do</strong>.<br />

Assim, Cantor não só afirmou que a correspondência, <strong>de</strong> um para um, entre o<br />

conjunto <strong>do</strong>s números naturais e os seus quadra<strong>do</strong>s <strong>de</strong>veria ser literalmente aceite, como<br />

também provou que o conjunto <strong>do</strong>s números pares, <strong>do</strong>s ímpares, <strong>do</strong>s números<br />

36


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

triangulares, …, po<strong>de</strong>m estar em correspondência, um a um, com o conjunto <strong>do</strong>s<br />

números naturais, ou seja, têm to<strong>do</strong>s a mesma potência, o mesmo cardinal.<br />

Cantor mostrou então que qualquer subconjunto infinito <strong>do</strong>s números naturais é<br />

equipotente a .<br />

Quan<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ramos ao mesmo tempo conjuntos finitos e infinitos, a equipotência<br />

<strong>de</strong> um conjunto com uma sua parte própria torna-se uma característica específica <strong>do</strong>s<br />

conjuntos infinitos.<br />

Assim, em 1888, Richard De<strong>de</strong>kind <strong>de</strong>finiu um conjunto infinito como aquele em<br />

que se po<strong>de</strong> estabelecer uma bijecção com um seu subconjunto próprio. Com esta<br />

<strong>de</strong>finição, De<strong>de</strong>kind revolucionou uma maneira <strong>de</strong> pensar milenária. Agora já não se<br />

necessita <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir um conjunto infinito com a negação <strong>do</strong> que é finito, po<strong>de</strong>mos, pelo<br />

contrário, <strong>de</strong>finir o finito como negação <strong>do</strong> que é infinito, ou seja, um conjunto é finito<br />

se não estiver em bijecção com nenhuma parte própria.<br />

O conjunto infinito mais pequeno é o conjunto <strong>do</strong>s números naturais, cujo cardinal é<br />

<strong>de</strong>nota<strong>do</strong> pelo símbolo ℵ 0 (álefe-zero), <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a primeira letra <strong>do</strong> alfabeto<br />

hebraico. Este número é o número infinito mais pequeno.<br />

Cantor ficou seduzi<strong>do</strong> pela estranha aritmética <strong>do</strong> aléfe-zero:<br />

0 1 ℵ0<br />

= + ℵ e ℵ 0 + ℵ0<br />

= ℵ0<br />

Ou seja, quan<strong>do</strong> somamos 1 ao infinito continuamos a ter infinito, assim como,<br />

quan<strong>do</strong> duplicamos o infinito continuamos a ter infinito.<br />

Estas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s estavam no centro <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> Hotel <strong>de</strong> Hilbert, assim<br />

chama<strong>do</strong> em honra ao lendário matemático alemão David Hilbert.<br />

Hilbert <strong>de</strong>screveu um hotel com um número infinito <strong>de</strong> quartos, numera<strong>do</strong>s 1, 2, 3,...<br />

Uma noite, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os quartos estavam ocupa<strong>do</strong>s, um hóspe<strong>de</strong> solitário chega à<br />

procura <strong>de</strong> quarto. O recepcionista <strong>do</strong> hotel fez ca<strong>da</strong> hóspe<strong>de</strong> avançar um quarto, <strong>de</strong><br />

maneira que o ocupante <strong>do</strong> quarto 1 fosse transferi<strong>do</strong> para o quarto 2, o ocupante <strong>do</strong><br />

quarto 2 para o quarto 3, e assim sucessivamente. Assim, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as mu<strong>da</strong>nças<br />

feitas, o quarto 1 fica então livre para o novo hóspe<strong>de</strong>! Na noite seguinte chegou um<br />

autocarro, com um número infinito <strong>de</strong> novos hóspe<strong>de</strong>s, e nenhum <strong>do</strong>s antigos hóspe<strong>de</strong>s<br />

37


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

tinha saí<strong>do</strong>. “Não há problema”, anunciou o recepcionista. Desta vez, transferiu o<br />

ocupante <strong>do</strong> quarto 1 para o quarto 2, o <strong>do</strong> quarto 2 para o 4, o <strong>do</strong> 3 para o 6 e, em geral,<br />

o ocupante <strong>do</strong> quarto n para o quarto 2n. Isto <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>socupa<strong>do</strong> um número infinito <strong>de</strong><br />

quartos ímpares para os infinitamente muitos recém-chega<strong>do</strong>s. Portanto, o passageiro<br />

número 1 <strong>do</strong> autocarro po<strong>de</strong> ir para o quarto 1, o número 2 para o quarto 3, o número 3<br />

para o quarto 5, e em geral, o número n para o quarto 2n −1.<br />

Mesmo que chegue uma<br />

infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> autocarros infinitos <strong>de</strong> turistas, to<strong>da</strong> a gente po<strong>de</strong> ser acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

O hotel <strong>de</strong> Hilbert mostra que certos tipos <strong>de</strong> argumentos estão disponíveis no caso<br />

finito, mas não po<strong>de</strong>m ser usa<strong>do</strong>s em qualquer outro caso: por exemplo, o “princípio <strong>da</strong><br />

gaiola <strong>de</strong> pombos”, que afirma ser impossível colocar n + 1 objectos em n caixas<br />

colocan<strong>do</strong> no máximo um em ca<strong>da</strong> uma, é falso para qualquer n infinito, e em particular<br />

ℵ = n .<br />

para 0<br />

Cantor chamou numerável ao conjunto <strong>do</strong>s números naturais e consi<strong>de</strong>rou que<br />

qualquer conjunto que estivesse em correspondência, um a um, com o conjunto <strong>do</strong>s<br />

números naturais também era numerável.<br />

O próximo passo era respon<strong>de</strong>r à questão: Terão to<strong>do</strong>s os conjuntos infinitos o<br />

mesmo cardinal?<br />

Assim, surgiu a tentativa, bem sucedi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> estabelecer uma bijecção entre os<br />

números inteiros e os números naturais.<br />

f : →<br />

⎩ ⎨⎧<br />

2n<br />

n a<br />

− 2n<br />

+ 1<br />

se<br />

se<br />

n > 0<br />

n ≤ 0<br />

Cantor mostrou que, <strong>de</strong> facto, também o conjunto <strong>do</strong>s números inteiros tem tamanho<br />

álefe-zero e perguntou-se então se o conjunto <strong>do</strong>s números racionais teria também o<br />

tamanho álefe-zero (o que à primeira vista parece falso).<br />

38


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

Estamos habitua<strong>do</strong>s à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que há muito mais racionais <strong>do</strong> que naturais, porque<br />

os naturais têm gran<strong>de</strong>s espaços entre si, enquanto os racionais estão <strong>de</strong>nsamente<br />

distribuí<strong>do</strong>s. Por exemplo, se olharmos para o bor<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma régua gradua<strong>da</strong> vemos que,<br />

entre <strong>do</strong>is números naturais quaisquer, há espaço para uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fracções, o que<br />

nos levaria a concluir que as fracções são infinitamente mais numerosas <strong>do</strong> que os<br />

naturais.<br />

Mas, não obstante a aparências, Cantor provou que é possível emparceirar qualquer<br />

fracção com um número natural, apresentan<strong>do</strong> uma <strong>de</strong>monstração engenhosa que<br />

mostra que existem também ℵ 0 racionais.<br />

p<br />

Cantor começou a <strong>de</strong>monstração por dispor to<strong>da</strong>s as fracções <strong>do</strong> tipo , com p,<br />

q<br />

q∈ e q ≠ 0 , numa matriz. A primeira linha contém, por or<strong>de</strong>m crescente, to<strong>da</strong>s as<br />

fracções <strong>de</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>r 1, a segun<strong>da</strong> linha to<strong>da</strong>s as fracções cujo <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>r é 2, e<br />

assim por diante.<br />

Assim, usan<strong>do</strong> o seu engenhoso “argumento diagonal”, Cantor mostrou que se<br />

fizéssemos um percurso diagonal era possível pôr em correspondência, <strong>de</strong> um para um,<br />

os números racionais e os números naturais.<br />

M<br />

Cantor sabia, naturalmente, que algumas fracções se repetiriam e incitava que,<br />

quan<strong>do</strong> se encontrassem representações alternativas, essas <strong>de</strong>veriam ser ignora<strong>da</strong>s.<br />

39


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

O próprio Cantor ficou surpreendi<strong>do</strong> com a sua <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> que o conjunto <strong>do</strong>s<br />

números racionais era numerável. “Vejo que é assim”, diz ele, “mas não acredito”.<br />

(Cita<strong>do</strong> por Radice, 1981)<br />

Depois <strong>de</strong> algumas coisas como estas, começamos a pensar se não são numeráveis<br />

to<strong>do</strong>s os conjuntos infinitos. Talvez Salviati estivesse correcto e ℵ 0 seja apenas um<br />

símbolo rebusca<strong>do</strong> para ∞ . Cantor mostrou que isto não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Há uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

maior <strong>do</strong> que a infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s números naturais: a infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s números reais.<br />

Cantor começou por imaginar to<strong>do</strong>s os números reais numa lista simples, sem<br />

qualquer or<strong>de</strong>nação especial.<br />

a , b<br />

M<br />

M<br />

1<br />

2<br />

n<br />

10<br />

a , b<br />

20<br />

a , b<br />

b<br />

n0<br />

b<br />

11<br />

b<br />

21<br />

b<br />

12<br />

b<br />

b<br />

... b<br />

22<br />

n1<br />

n2<br />

Em segui<strong>da</strong> numerou as linhas <strong>de</strong>ssa lista, ou seja, associou a ca<strong>da</strong> número real um<br />

número natural.<br />

1<br />

2<br />

M<br />

n<br />

M<br />

a , b<br />

1<br />

2<br />

10<br />

a , b<br />

20<br />

a , b<br />

n<br />

b<br />

n0<br />

11<br />

21<br />

1n<br />

... b<br />

... b<br />

12<br />

...<br />

2n<br />

nn<br />

... b<br />

22<br />

n1<br />

n2<br />

Po<strong>de</strong>ria parecer que existiriam números naturais suficientes para associar a to<strong>do</strong> o<br />

número real. Cantor procurou então <strong>de</strong>terminar se as duas listas, <strong>de</strong> números naturais e<br />

números reais, se esgotariam igualmente. Em caso afirmativo, concluir-se-ia que os<br />

reais, como os naturais, eram ℵ 0 , em número. No entanto, Cantor mostrou que a<br />

b<br />

b<br />

b<br />

b<br />

b<br />

...<br />

...<br />

1n<br />

... b<br />

... b<br />

...<br />

2n<br />

nn<br />

...<br />

...<br />

40


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

resposta era negativa, <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> que pelo menos um número real será sempre<br />

excluí<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa listagem, e portanto, não será emparceira<strong>do</strong> com um número natural.<br />

Para encontrar esse número real, formemos um novo número cuja primeira casa<br />

<strong>de</strong>cimal seja diferente <strong>da</strong> primeira casa <strong>de</strong>cimal <strong>do</strong> primeiro número <strong>da</strong> lista; cuja<br />

segun<strong>da</strong> casa <strong>de</strong>cimal seja diferente <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> casa <strong>de</strong>cimal <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> número <strong>da</strong><br />

lista; e em geral, cuja n-ésima casa <strong>de</strong>cimal difira <strong>da</strong> n-ésima casa <strong>de</strong>cimal <strong>do</strong> n-ésimo<br />

número <strong>da</strong> lista. Aí está!! Trata-se <strong>de</strong> um real que é diferente <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os que figuram na<br />

lista e estão emparceira<strong>do</strong>s com os números naturais, assim se provan<strong>do</strong> que há mais<br />

números reais <strong>do</strong> que naturais.<br />

Cantor, usan<strong>do</strong> mais uma vez o seu “argumento diagonal”, tinha encontra<strong>do</strong> um<br />

infinito maior, ao qual chamou álefe-um ( ℵ 1 ).<br />

Também com isto se prova que, enquanto po<strong>de</strong>mos, em princípio, contar, um a um, a<br />

infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s números naturais, nunca po<strong>de</strong>remos fazer o mesmo com os números<br />

reais. Cantor, reconhecen<strong>do</strong> este facto como consequência <strong>da</strong> sua <strong>de</strong>monstração, passou<br />

a referir-se aos números naturais como uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> numerável e aos reais como uma<br />

infini<strong>da</strong><strong>de</strong> contínua (ou não numerável).<br />

Além <strong>de</strong> aplicar as noções <strong>de</strong> conjunto e equivalência aos números aritméticos,<br />

Cantor também as aplicou aos pontos geométricos, com resulta<strong>do</strong>s que a ele próprio<br />

surpreen<strong>de</strong>ram e que contradiziam a sua própria intuição.<br />

Em 20 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1877, Cantor mostra a De<strong>de</strong>kind a prova <strong>de</strong> que é possível<br />

estabelecer uma bijecção entre [ 0 , 1]<br />

e [ ] n<br />

, 1<br />

0 , provan<strong>do</strong> assim que n e m têm a mesma<br />

dimensão, quaisquer que sejam n, m∈, ou seja, que existe a mesma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

pontos em to<strong>do</strong> e qualquer espaço in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>da</strong> sua dimensão.<br />

“Po<strong>de</strong>-se fazer correspon<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma maneira completa e unívoca um conjunto<br />

contínuo a n dimensões a um conjunto contínuo <strong>de</strong> uma só dimensão; <strong>do</strong>is conjuntos,<br />

um <strong>de</strong> n e outro <strong>de</strong> m dimensões, sen<strong>do</strong> n > m,<br />

n < m ou n = m,<br />

têm a mesma<br />

potência”. (Cantor, 1883 [1887]).<br />

41


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

Através <strong>de</strong>sta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> comparação <strong>de</strong> conjuntos infinitos pela correspondência, um a<br />

um, entre os seus elementos, Cantor conseguiu distinguir vários tipos <strong>de</strong> conjuntos: os<br />

<strong>de</strong> menor potência como , e , <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s numeráveis, e os com a potência <strong>do</strong><br />

contínuo, como o intervalo [ , 1]<br />

0 ou .<br />

A <strong>de</strong>monstração que permitiu Cantor concluir que a potência <strong>do</strong> contínuo é superior<br />

à <strong>do</strong> numerável, po<strong>de</strong> ser generaliza<strong>da</strong> originan<strong>do</strong> aquilo que ficou conheci<strong>do</strong> como o<br />

teorema <strong>de</strong> Cantor: O cardinal <strong>de</strong> um conjunto X é estritamente menor que o cardinal <strong>do</strong><br />

conjunto P(X) <strong>da</strong>s partes <strong>de</strong> X. Desta forma, através <strong>de</strong> conjuntos infinitos, Cantor<br />

conseguiu <strong>de</strong>finir novos conjuntos infinitos.<br />

“Esta <strong>de</strong>monstração parece digna <strong>de</strong> nota, não só em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> sua gran<strong>de</strong><br />

simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas também, especificamente, porque o princípio nela segui<strong>do</strong> se torna<br />

igualmente extensivo ao teorema geral <strong>de</strong> que as potências <strong>de</strong> conjuntos bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s<br />

não têm máximo algum, ou seja, o que vem a <strong>da</strong>r no mesmo, que para ca<strong>da</strong> conjunto<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong> L po<strong>de</strong> ser coloca<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> outro conjunto M <strong>de</strong> potência superior a L”.<br />

(Cantor, 1883 [1887])<br />

Pois bem, a existência <strong>de</strong> um conjunto infinito implica a existência <strong>de</strong> um conjunto<br />

infinito maior, que por sua vez, implica a existência <strong>de</strong> outro ain<strong>da</strong> maior e assim<br />

sucessivamente. Don<strong>de</strong> <strong>de</strong>corre a existência <strong>de</strong> uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> infinitos distintos.<br />

Encontrámos, pois, um méto<strong>do</strong> para construir conjuntos transfinitos <strong>de</strong> potência<br />

continuamente crescente, até ao infinito. Consiste em repetir a operação <strong>de</strong> passagem <strong>de</strong><br />

um conjunto ao conjunto <strong>da</strong>s suas partes. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> um transfinito mínimo, que é o<br />

numerável, potência <strong>do</strong> conjunto <strong>do</strong>s naturais , po<strong>de</strong>mos construir a escala:<br />

, P(), P(P()), …<br />

Representan<strong>do</strong> por |L| a potência, ou cardinali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um conjunto L, Cantor<br />

mostrou que se for k o cardinal <strong>de</strong> um conjunto X, então |P(X)| = 2 k , e que, em<br />

particular, || = 2 || , o que lhe permitiu construir a seguinte extensão transfinita <strong>do</strong>s<br />

cardinais<br />

42


que <strong>de</strong>signou por<br />

O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

||, |P()|, |P(P())|, …<br />

ℵ ℵ , ℵ , …<br />

0 , 1 2<br />

Assim, segun<strong>do</strong> Guillen (1983), os números transfinitos ( ℵ ℵ , ℵ , …) aparecem a<br />

0 , 1 2<br />

Cantor e a outros como sen<strong>do</strong> tão sem limites como o cosmos <strong>de</strong>scrito por Emmanuel<br />

Kant:<br />

“É natural olhar [as nebulosas <strong>de</strong>] estrelas como sen<strong>do</strong> […] sistemas <strong>de</strong> muitas<br />

estrelas. [Elas] são exactamente universos. Po<strong>de</strong>-se, além disso, conjecturar que [to<strong>da</strong>s<br />

juntas] […] constituem, por sua vez, um sistema ain<strong>da</strong> mais imenso […] o qual, talvez,<br />

e tal como o primeiro, na<strong>da</strong> mais é <strong>do</strong> que um membro numa nova combinação <strong>de</strong><br />

membros! Nós [na Terra] vemos [só] os primeiros membros <strong>de</strong> uma relação<br />

progressiva <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s e sistemas, e a primeira parte <strong>de</strong>sta infinita progressão habilita-<br />

nos a reconhecer o que se <strong>de</strong>ve conjecturar sobre o to<strong>do</strong>. Não há qualquer fim…”<br />

Cantor supôs que álefe-um seria o cardinal <strong>de</strong> , mas <strong>de</strong>ixou a seguinte questão por<br />

resolver: há alguma coisa entre || e ||? Este problema tornou-se conheci<strong>do</strong> como a<br />

Hipótese <strong>do</strong> contínuo. Qualquer tentativa <strong>de</strong> a provar falhou tristemente; mas o mesmo<br />

aconteceu a to<strong>da</strong>s as tentativas <strong>de</strong> construir um conjunto com mais elementos que os<br />

naturais, mas menos que os reais. Só em 1963, Paul Cohen provou que a resposta<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> nossa versão <strong>de</strong> teoria <strong>de</strong> conjuntos: teorias <strong>de</strong> conjuntos cantorianas ou<br />

teoria <strong>de</strong> conjuntos não cantorianas. Assim, Cantor, como não conseguiu então obter a<br />

resposta à questão, manteve a <strong>de</strong>signação ς para o cardinal <strong>do</strong> conjunto .<br />

Em 1874, Cantor publicou o seu trabalho, que o levara <strong>do</strong>s conjuntos finitos aos<br />

conjuntos infinitos e mais longe ain<strong>da</strong>. Cantor afirmava “não alimento qualquer dúvi<strong>da</strong><br />

em relação à veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s números transfinitos, os quais i<strong>de</strong>ntifiquei com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Deus”. (Cita<strong>do</strong> por Hoffman, 1998)<br />

43


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

Segun<strong>do</strong> Guillen (1983), muitos matemáticos chamaram Cantor à pedra,<br />

<strong>de</strong>sclassifican<strong>do</strong> sumariamente os resulta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> sua teoria, porque discor<strong>da</strong>vam <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia<br />

platónica <strong>de</strong> tratar o infinito como se ele fosse um substantivo. Outros entendiam que<br />

Cantor não prosseguira a argumentação até às suas conclusões lógicas. Para eles, Cantor<br />

<strong>de</strong>veria tratar a sequência <strong>de</strong> números transfinitos como fizera com a <strong>do</strong>s números<br />

naturais – admitin<strong>do</strong> a existência dum conjunto álefe-infinito. Este novo conjunto<br />

conduziria a uma sucessão inteiramente nova maior <strong>do</strong> que ℵ ∞ . Ou seja, iríamos chegar<br />

a conjuntos transtransfinitos, que seriam representa<strong>do</strong>s pela segun<strong>da</strong> letra <strong>do</strong> alfabeto<br />

hebraico, ], originan<strong>do</strong> a sucessão ] 0 , ] 1,<br />

] 2 ,... Mas esta nova sucessão implicaria a<br />

existência <strong>do</strong> conjunto bete-infinito ( ] ∞ ), voltan<strong>do</strong>-se a repetir to<strong>do</strong> o processo mais<br />

uma vez, e outra, e outra,…<br />

Cantor nunca se <strong>de</strong>ixou persuadir por estas críticas.<br />

Alguns matemáticos falam dum “infinito absoluto”, representa<strong>do</strong> pela última letra <strong>do</strong><br />

alfabeto hebraico, ω , que consi<strong>de</strong>ram ser o maior infinito concebível, um infinito que<br />

nunca po<strong>de</strong>remos visualizar.<br />

O ω <strong>do</strong>s matemáticos é qualquer coisa que nunca contemplaremos em pleno e, a<br />

esse respeito, não muito diferente <strong>do</strong> Deus <strong>de</strong>scrito por São Gregório:<br />

“In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong> progresso feito pela nossa mente na contemplação <strong>de</strong> Deus, ela<br />

não atinge o que Ele é, mas sim o que lhe está abaixo”.<br />

Leoplod Kronecker, um pilar <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> matemática alemã, foi talvez o maior<br />

opositor <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> Cantor, atacan<strong>do</strong>-o publicamente <strong>de</strong> forma feroz durante uma<br />

déca<strong>da</strong>. Kronecker rejeitou o transfinito, emitin<strong>do</strong> a sua frequentemente cita<strong>da</strong><br />

reprimen<strong>da</strong>: “ Deus criou os inteiros e tu<strong>do</strong> o resto é obra <strong>do</strong> Homem”. Para<br />

Kronecker, apenas os inteiros tinham existência real, to<strong>do</strong>s os outros tipos <strong>de</strong> números<br />

eram apenas ilusões <strong>da</strong>s imaginações hiperactivas <strong>do</strong>s matemáticos.<br />

Segun<strong>do</strong> Edwards (1987), Cantor era, para Kronecker, “simplesmente mais um jovem<br />

que tinha segui<strong>do</strong> Weirstrass pelo caminho erra<strong>do</strong> e cujas formulações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias<br />

matemáticas eram <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente mal guia<strong>da</strong>s”.<br />

44


O paraíso que Cantor criou Capítulo 4<br />

Henri Poincaré, o gran<strong>de</strong> geómetra francês, repetiu Kronecker e disse que as<br />

gerações futuras <strong>de</strong> matemáticos viram o trabalho <strong>de</strong> Cantor como “uma <strong>do</strong>ença <strong>da</strong><br />

qual conseguimos recuperar”.<br />

Herman Weyl observou que a infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> infinitos <strong>de</strong> Cantor era “névoa no<br />

nevoeiro”.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, A<strong>do</strong>lf Hurwitz e Ha<strong>da</strong>mard <strong>de</strong>scobriram importantes aplicações <strong>da</strong><br />

teoria <strong>de</strong> conjuntos em Análise e falaram sobre elas em prestigia<strong>da</strong>s conferências<br />

internacionais.<br />

Também um <strong>do</strong>s maiores matemáticos <strong>do</strong> começo <strong>do</strong> século vinte, David Hilbert,<br />

elogiou Cantor, <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> a nova aritmética transfinita como “o produto mais<br />

extraordinário <strong>do</strong> pensamento matemático, uma <strong>da</strong>s mais belas realizações <strong>da</strong><br />

activi<strong>da</strong><strong>de</strong> humana no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> puramente inteligível”. Segun<strong>do</strong> Boyer, on<strong>de</strong> almas<br />

tími<strong>da</strong>s tinham hesita<strong>do</strong>, Hilbert exclamava “ninguém nos expulsará <strong>do</strong> paraíso que<br />

Cantor criou para nós”.<br />

Analogamente, o matemático-filófoso inglês B. Russell aplaudiu os talentos <strong>de</strong><br />

Cantor como “provavelmente os maiores <strong>de</strong> que a época podia orgulhar-se”.<br />

Enfim, como aconteceu com outras i<strong>de</strong>ias incrivelmente originais, só aqueles que<br />

estavam prepara<strong>do</strong>s para fazer um esforço para as enten<strong>de</strong>r e usar no seu trabalho as<br />

apreciaram. Os críticos <strong>do</strong>s aspectos marginais, presunçosamente negativos, <strong>de</strong>ixaram o<br />

seu senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> auto-importância esmagar a sua imaginação e bom gosto. Hoje, os frutos<br />

<strong>do</strong>s esforços <strong>de</strong> Cantor formam a base <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a <strong>Matemática</strong>.<br />

45


O Infinitésimos e a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd Capítulo 5<br />

5. Os Infinitésimos e a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd<br />

“It is that objects to − 1 as involving any contradiction, nor, since Cantor, are<br />

infinitely great quantities objected to, but still the antique prejudice against infinitely<br />

small quantities remains.”<br />

C. S. Peirce in “The New Elements of Mathematics”<br />

O uso <strong>de</strong> números infinitos e infinitesimais em <strong>Matemática</strong> tem uma longa história: a<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> infinitésimo é conheci<strong>da</strong> há pelo menos 23 séculos.<br />

Bani<strong>do</strong>s pela tradição Aristotélica, estes números acabaram por ser reintroduzi<strong>do</strong>s no<br />

séc. XVII, nos primórdios <strong>da</strong> Análise, e os raciocínios basea<strong>do</strong>s neles foram sempre, até<br />

ao aparecimento <strong>da</strong> Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd, fonte <strong>de</strong> controvérsia e <strong>de</strong>sconfiança. Este<br />

facto levou a que os infinitésimos tenham ti<strong>do</strong> uma existência quase sempre polémica,<br />

embora o seu uso nunca tenha <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> constituir uma ferramenta utiliza<strong>da</strong> na prática,<br />

por exemplo, por físicos e engenheiros.<br />

No início <strong>do</strong> séc. XX foi encontra<strong>do</strong> o trata<strong>do</strong> “ O Méto<strong>do</strong>”, cuja existência era<br />

<strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong> até então, no qual Arquime<strong>de</strong>s afirmava que também usava os<br />

infinitésimos nos seus trabalhos, “não para <strong>de</strong>monstrar resulta<strong>do</strong>s, mas sim para<br />

<strong>de</strong>scobri-los”. Este livro permite-nos compreen<strong>de</strong>r a forma como Arquime<strong>de</strong>s obtinha<br />

as suas i<strong>de</strong>ias. Como a maior parte <strong>do</strong>s matemáticos, ele começava por obter resulta<strong>do</strong>s<br />

através <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>s na<strong>da</strong> rigorosos e <strong>de</strong>pois polia-os até encontrar uma <strong>de</strong>monstração<br />

<strong>de</strong>cente.<br />

Arquime<strong>de</strong>s cortava sóli<strong>do</strong>s numa infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> espessura infinitesimal e<br />

pendurava-os numa balança abstracta, on<strong>de</strong> comparava a sua soma com um objecto<br />

conheci<strong>do</strong>. Descobriu, usan<strong>do</strong> este méto<strong>do</strong>, o volume <strong>da</strong> esfera.<br />

Outros matemáticos fizeram um uso semelhante <strong>de</strong> argumentos infinitesimais, por<br />

exemplo, Nicolau <strong>de</strong> Cusa <strong>de</strong>scobriu a área <strong>do</strong> círculo cortan<strong>do</strong>-o como uma tarte.<br />

45


O Infinitésimos e a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd Capítulo 5<br />

Nicolau <strong>de</strong> Cusa argumentava que o infinito era “a fonte, o meio e, ao mesmo tempo, o<br />

objectivo inalcançável <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o conhecimento” (cita<strong>do</strong> por Davis e Hersh, 1990).<br />

Também Demócrito encontrou o volume <strong>de</strong> um cone empilhan<strong>do</strong> fatias circulares.<br />

Na literatura, é frequentemente referi<strong>do</strong> o facto <strong>da</strong>s <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> Arquime<strong>de</strong>s se<br />

basearem no chama<strong>do</strong> méto<strong>do</strong> <strong>da</strong> exaustão.<br />

Os infinitésimos atormentaram a Análise <strong>do</strong>s séculos XVII e XVIII, embora os<br />

argumentos filosóficos acerca <strong>de</strong>les não tenham impedi<strong>do</strong> que muito bom trabalho tenha<br />

si<strong>do</strong> feito.<br />

Infelizmente, a história <strong>do</strong> Cálculo Infinitesimal ficou marca<strong>da</strong> por uma aze<strong>da</strong><br />

disputa entre Newton e Leibniz acerca <strong>da</strong> priori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> invenção. Acredita-se que foi<br />

Newton quem <strong>de</strong>scobriu primeiro e Leibniz quem publicou os primeiros resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

Cálculo Infinitesimal, mas que, no entanto, qualquer um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is criou o seu Cálculo<br />

sem conhecer o <strong>do</strong> outro.<br />

O Cálculo Infinitesimal não foi aceite por to<strong>do</strong>s. Vários cientistas e filósofos<br />

levantaram objecções <strong>de</strong> peso aos procedimentos propostos por Newton e por Leibniz.<br />

O conceito <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> infinitamente pequena permanecia excessivamente vago e as<br />

regras operatórias a que essas quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s eram sujeitas pareciam contraditórias.<br />

O crítico-mor <strong>do</strong> cálculo, o bispo George Berkeley, publicou em 1734 O analista, ou<br />

um Discurso Destina<strong>do</strong> a Um Matemático Infiel. On<strong>de</strong> Se Examina Se o Objecto,<br />

Príncipios e Implicação <strong>da</strong> Análise Mo<strong>de</strong>rna São mais Distintamente Concebi<strong>do</strong>s, ou<br />

Claramente Deduzi<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> Que os Mistérios Religiosos e os Pontos <strong>da</strong> Fé. «Primeiro<br />

Tira a Trave <strong>do</strong> Teu Próprio Olho; e <strong>de</strong>pois verás claramente para Tirar o Argueiro <strong>do</strong><br />

Olho <strong>do</strong> Teu Irmão.». Berkeley argumentou que no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> uma mesma<br />

<strong>de</strong>monstração não se po<strong>de</strong> dividir uma expressão por uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> infinitesimal e,<br />

alguns passos adiante, consi<strong>de</strong>rar nulos to<strong>do</strong>s os termos que admitissem essa mesma<br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> infinitesimal como factor.<br />

Contu<strong>do</strong>, a utilização <strong>de</strong> números infinitos e infinitesimais persistiu durante to<strong>do</strong> o<br />

século XVIII e parte <strong>do</strong> seguinte.<br />

47


O Infinitésimos e a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd Capítulo 5<br />

Euler, os Bernoulli, Lagrange, d’Alembert, Bolzano e Cauchy, por exemplo, não só<br />

obtiveram excelentes resulta<strong>do</strong>s usan<strong>do</strong> números infinitos e infinitesimais, como ain<strong>da</strong><br />

se empenharam, sem contu<strong>do</strong> o conseguir, na sua fun<strong>da</strong>mentação lógica.<br />

Apesar <strong>do</strong>s sucessos obti<strong>do</strong>s, a noção <strong>de</strong> infinitésimo nunca foi <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente<br />

clarifica<strong>da</strong> e o seu uso imo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> conduziu o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> Cálculo a sérias<br />

inconsistências e dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que não pu<strong>de</strong>ram então ser ultrapassa<strong>da</strong>s.<br />

No século XIX, Karl Weierstrass conseguiu finalmente obter uma formulação<br />

completa e rigorosa para os fun<strong>da</strong>mentos <strong>do</strong> Cálculo, removen<strong>do</strong> qualquer referência a<br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s não finitas, re<strong>de</strong>finin<strong>do</strong> os conceitos base em termos <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> limite. É<br />

o retorno a Aristóteles. Davis e Hersh (1990) comparam o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong>s limites com o<br />

méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> exaustão – ambos processos <strong>de</strong> tornear a utilização <strong>do</strong> infinito na<br />

argumentação matemática.<br />

Des<strong>de</strong> então, to<strong>do</strong>s os elementos estranhos ao conjunto foram bani<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />

generali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> Análise <strong>Matemática</strong>, embora a referência a infinitésimos<br />

tenha persisti<strong>do</strong> até aos dias <strong>de</strong> hoje em textos <strong>de</strong> outras disciplinas científicas que<br />

fazem largo apelo ao Cálculo, como é o caso <strong>da</strong> Física.<br />

Já na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX, por volta <strong>de</strong> 1961, o matemático Abraham<br />

Robinson <strong>de</strong>scobriu a Análise Não-San<strong>da</strong>rd (ANS), com origem na Lógica, que veio<br />

repor a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento formal <strong>do</strong>s infinitésimos. O seu aparecimento po<strong>de</strong><br />

talvez situar-se, oficialmente, na <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> publicação <strong>do</strong> artigo<br />

Nonstan<strong>da</strong>rd Analysis,<br />

Proc. Roy. Acad, Sci., Amester<strong>da</strong>m (A), 64 (1961), pp437-440<br />

on<strong>de</strong> A. Robinson, usou pela primeira vez um mo<strong>de</strong>lo Não-Stan<strong>da</strong>rd <strong>da</strong> recta numérica<br />

para elaborar um <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> Cálculo Infinitesimal, que segue muito <strong>de</strong> perto o<br />

estilo <strong>do</strong>s seus cria<strong>do</strong>res no século XVII, particularmente o <strong>de</strong> Leibniz. Posteriormente,<br />

no livro<br />

Nonstan<strong>da</strong>rd Analysis,<br />

North Holand, 1966<br />

48


O Infinitésimos e a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd Capítulo 5<br />

A. Robinson mostrou como se po<strong>de</strong>m aplicar, com vantagem, os méto<strong>do</strong>s <strong>da</strong> Análise<br />

Não-Stan<strong>da</strong>rd a muitas áreas distintas <strong>da</strong> matemática.<br />

Quantas vezes foi, anteriormente, o sistema <strong>de</strong> “números” estendi<strong>do</strong> para adquirir<br />

uma proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>seja<strong>da</strong>? Dos racionais para os reais para admitir 2 ; <strong>do</strong>s reais para<br />

os complexos para admitir − 1 . Portanto, porque não <strong>do</strong>s reais para os hiper-reais para<br />

admitir infinitésimos?<br />

Assim, na Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd existem números naturais ordinários = { 1,<br />

2,<br />

3,...<br />

} ,<br />

mas existe também um sistema maior <strong>de</strong> números “não naturais”, aquilo a que se chama<br />

<strong>de</strong> “naturais Não-Stan<strong>da</strong>rd”, *. Existem os inteiros, , e os inteiros Não Stan<strong>da</strong>rd, *.<br />

E ain<strong>da</strong> os reais Stan<strong>da</strong>rd, , mais os reais Não-Stan<strong>da</strong>rd, *. E ca<strong>da</strong> par não se<br />

distingue em termos <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m, pelo que é possível provar as<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> trabalhan<strong>do</strong> com *, se quisermos; mas *<br />

contém agora um conjunto <strong>de</strong> novos números como infinitésimos e infinitos, que<br />

po<strong>de</strong>mos explorar <strong>de</strong> novas formas.<br />

Assim, num universo Não-Stan<strong>da</strong>rd, os reais coexistem com outros objectos, em<br />

particular com um número c que tem a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser menor que qualquer número<br />

1<br />

<strong>da</strong> forma . Este número c é <strong>de</strong> facto um infinitésimo.<br />

n<br />

A análise Não-Stan<strong>da</strong>rd não conduz, em princípio, a conclusões acerca <strong>de</strong> <br />

diferentes <strong>da</strong>s obti<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> Análise Stan<strong>da</strong>rd. É o méto<strong>do</strong> e o campo em que actua<br />

que são Não-Stan<strong>da</strong>rd; mas os resulta<strong>do</strong>s são ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros teoremas <strong>da</strong> nossa velha<br />

conheci<strong>da</strong> Análise, e portanto, qualquer teorema <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> por méto<strong>do</strong>s Não-<br />

Stan<strong>da</strong>rd é um teorema ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>da</strong> Análise Stan<strong>da</strong>rd (logo, admite uma <strong>de</strong>monstração<br />

Stan<strong>da</strong>rd).<br />

Também Newton mostrou, no seu Principia, que tu<strong>do</strong> o que po<strong>de</strong> ser prova<strong>do</strong> com o<br />

Cálculo, também po<strong>de</strong> ser prova<strong>do</strong> com a Geometria Clássica e <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> algum isto<br />

implica que o Cálculo não tenha qualquer valor.<br />

Assim, a questão que se coloca agora é se a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd é uma ferramenta<br />

mais po<strong>de</strong>rosa ou não. Esta questão só po<strong>de</strong> ser resolvi<strong>da</strong> através <strong>da</strong> experiência, e a<br />

49


O Infinitésimos e a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd Capítulo 5<br />

experiência sugere que, maioritariamente, <strong>de</strong>monstrações usan<strong>do</strong> Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd<br />

ten<strong>de</strong>m a ser mais curtas e directas. No entanto, a Análise Não-Stan<strong>da</strong>rd requer um<br />

background muito diferente <strong>do</strong> <strong>da</strong> Análise Clássica, o que se torna numa clara<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois neste novo universo tem que se investir muito esforço inicial antes <strong>de</strong><br />

se começar a ter lucro.<br />

Desta forma, o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong>s infinitésimos foi, pela primeira vez, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma<br />

fun<strong>da</strong>mentação formal precisa. E o infinito actual voltou a emergir na Análise,<br />

povoan<strong>do</strong> agora um universo que é maior <strong>do</strong> que o <strong>da</strong> Aritmética Real, ao qual po<strong>de</strong>mos<br />

recorrer para resolver os nossos problemas em .<br />

50


6. A Biblioteca <strong>de</strong> Babel<br />

A Biblioteca <strong>de</strong> Babel Capítulo 6<br />

Nasci<strong>do</strong> em Buenos Aires, no ano <strong>de</strong> 1899, Jorge Luís Borges teve uma educação <strong>de</strong><br />

carácter anglófono. Após uma estadia em Madrid, on<strong>de</strong> entrou em contacto com<br />

movimentos vanguardistas, regressou a Buenos Aires e fun<strong>do</strong>u as revistas Prisma e<br />

Proa, on<strong>de</strong> começou a publicar os seus poemas (que mais tar<strong>de</strong> foram reuni<strong>do</strong>s em<br />

volumes como Fervor <strong>de</strong> Buenos Aires (1923) e Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> San Martín (1929).<br />

Da obra <strong>de</strong> Jorge Luís Borges <strong>de</strong>stacamos obras como Ficções (1944), História<br />

Universal <strong>da</strong> Infância (1935), O Aleph (1949) e O Relatório <strong>de</strong> Brodie (1970). De entre<br />

as suas melhores criações estão Outras Inquirições (1952) e História <strong>da</strong> Eterni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

(1936).<br />

Borges, eterno candi<strong>da</strong>to ao Nobel, foi um autor inclassificável que não se encaixou<br />

nos paradigmas estilísticos e i<strong>de</strong>ológicos marca<strong>do</strong>s pelos escritores incluí<strong>do</strong>s no<br />

chama<strong>do</strong> boom latino-americano.<br />

Morreu em Genebra em 1986.<br />

Ficções foi unanimemente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>s monumentos literários <strong>do</strong><br />

século XX. Num diálogo constante entre a ficção e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o leitor é obriga<strong>do</strong> a<br />

tomar um papel activo, <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> que nessas “ficções”, há algo além <strong>da</strong> diversão<br />

retórica ou <strong>de</strong> um passatempo mental, começa a vislumbrar a trama complexa <strong>de</strong> uma<br />

metafísica inquietante.<br />

Ficções é composto por <strong>do</strong>is livros O Jardim <strong>do</strong>s Caminhos Que Se Bifurcam e<br />

Artifícios, que giram à volta <strong>da</strong>s mesmas imagens e <strong>do</strong>s mesmos temas: o infinito, os<br />

jogos <strong>de</strong> espelhos, a cabala, os enigmas <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives, o <strong>de</strong>stino, o tempo, o fascínio<br />

pela palavra… Em to<strong>do</strong>s os contos se respira um espírito atemporal, <strong>de</strong> universali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

no qual se po<strong>de</strong> encontrar uma biblioteca com to<strong>do</strong>s os livros possíveis, um homem <strong>de</strong><br />

memória infinita e outro capaz <strong>de</strong> <strong>da</strong>r a vi<strong>da</strong> a uma personagem sonha<strong>da</strong>.<br />

De segui<strong>da</strong> analisar-se-á o conto A Biblioteca <strong>de</strong> Babel, <strong>do</strong> livro O Jardim <strong>do</strong>s<br />

Caminhos Que Se Bifurcam.<br />

50


A Biblioteca <strong>de</strong> Babel Capítulo 6<br />

“(…) que a Biblioteca é total e que as suas estantes registam to<strong>da</strong>s as possíveis<br />

combinações <strong>do</strong>s vinte e tal símbolos ortográficos (número embora vastíssimo, não<br />

infinito) ou seja, tu<strong>do</strong> o que nos é <strong>da</strong><strong>do</strong> exprimir: em to<strong>do</strong>s os idiomas. Tu<strong>do</strong>: a história<br />

minuciosa <strong>do</strong> futuro, as autobiografias <strong>do</strong>s arcanjos, o catálogo fiel <strong>da</strong> Biblioteca,<br />

milhares e milhares <strong>de</strong> catálogos falsos, a <strong>de</strong>monstração <strong>da</strong> falácia <strong>de</strong>sses catálogos, a<br />

<strong>de</strong>monstração <strong>da</strong> falácia <strong>do</strong> catálogo ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, o evangelho gnóstico <strong>de</strong> Basili<strong>de</strong>s, o<br />

comentário <strong>de</strong>sse evangelho, o comentário <strong>do</strong> comentário <strong>de</strong>sse evangelho, o relato<br />

verídico <strong>da</strong> tua morte, a versão <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> livro em to<strong>da</strong>s as línguas, as interpolações <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> livro em to<strong>do</strong>s os livros”. (Borges, 1941)<br />

A ficção <strong>de</strong> Borges resi<strong>de</strong> em “o universo (a que outros chamam a Biblioteca)<br />

compõe-se <strong>de</strong> um número in<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, e talvez infinito, <strong>de</strong> galerias hexagonais”(Borges,<br />

1941), que contêm em quatro <strong>da</strong>s suas pare<strong>de</strong>s um total <strong>de</strong> vinte estantes. “A ca<strong>da</strong> uma<br />

<strong>da</strong>s suas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> hexágono correspon<strong>de</strong>m cinco prateleiras; ca<strong>da</strong> prateleira<br />

contém trinta e <strong>do</strong>is livros <strong>de</strong> formato uniforme; ca<strong>da</strong> livro é <strong>de</strong> quatrocentas e <strong>de</strong>z<br />

páginas; ca<strong>da</strong> página, <strong>de</strong> quarenta linhas; ca<strong>da</strong> linha <strong>de</strong> umas oitenta letras <strong>de</strong> cor<br />

negra”. (Borges, 1941)<br />

Na Biblioteca <strong>de</strong> Babel nenhum livro é igual a outro, alguns po<strong>de</strong>m apenas diferir<br />

num ponto ou numa vírgula. Tu<strong>do</strong> o que foi dito, tu<strong>do</strong> o que se dirá e tu<strong>do</strong> o que é dito<br />

encontra-se escrito nos livros <strong>da</strong> Biblioteca <strong>de</strong> Babel e um <strong>de</strong>les contém a explicação <strong>de</strong><br />

to<strong>do</strong>s os outros.<br />

Na história começa-se por afirmar que “o universo (a que outros chamam <strong>de</strong><br />

Biblioteca)”, ou seja, a Biblioteca <strong>de</strong> Babel proposta por Borges é o próprio universo. O<br />

universo é forma<strong>do</strong> por galerias hexagonais idênticas, que se interligam por vestíbulos e<br />

esca<strong>da</strong>s, não haven<strong>do</strong> mais na<strong>da</strong> para além disso. O universo está nas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

infinitas, capazes inclusive <strong>de</strong> predizer o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> qualquer pessoa.<br />

Uma <strong>da</strong>s teorias, cria<strong>da</strong>s aqui por Borges, traz à tona a importância <strong>de</strong> se saber o que<br />

se procura e on<strong>de</strong>, evitan<strong>do</strong> tempo perdi<strong>do</strong>. A eterna busca <strong>do</strong> catálogo <strong>do</strong>s catálogos –<br />

sugeri<strong>da</strong> através <strong>de</strong> um méto<strong>do</strong> regressivo: “para localizar o livro A, consultar<br />

previamente um livro B que indique o sítio <strong>de</strong> A; para localizar o livro B, consultar<br />

52


A Biblioteca <strong>de</strong> Babel Capítulo 6<br />

previamente um livro C, e assim por diante até ao infinito… ” – e também por sua<br />

própria vindicação, mostra a importância <strong>do</strong>s bibliotecários neste universo.<br />

Os livros <strong>da</strong> biblioteca estão or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> criação, e o catálogo <strong>do</strong>s<br />

catálogos, caso seja encontra<strong>do</strong>, revelará o exacto para<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. A partir <strong>do</strong><br />

momento que existe um en<strong>de</strong>reço para um hexágono, existirá um en<strong>de</strong>reço para to<strong>do</strong>s os<br />

outros hexágonos e por consequência também para ca<strong>da</strong> livro. O arranjo <strong>do</strong>s livros nas<br />

prateleiras em pouco preocupa os bibliotecários, pois to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong><br />

localização que um livro possa sofrer já está prevista no catálogo <strong>do</strong>s catálogos.<br />

Note-se que a razão <strong>de</strong> Borges para a escolha <strong>da</strong>s formas hexagonais para<br />

preencherem o espaço <strong>do</strong> universo se pren<strong>de</strong> com o facto <strong>de</strong> os hexágonos serem formas<br />

necessárias <strong>de</strong> espaço absoluto. Os hexágonos <strong>da</strong> Biblioteca <strong>de</strong> Babel, que <strong>de</strong>vem ser<br />

regulares pois são idênticos uns aos outros e tal só é possível se forem regulares,<br />

constituem uma economia <strong>de</strong> tempo e espaço (tal espaço lembra inevitavelmente as<br />

colmeias <strong>da</strong>s abelhas). Repare-se que, geometricamente falan<strong>do</strong>, só alguns polígonos<br />

como o triângulo equilátero, o quadra<strong>do</strong> e o hexágono preenchem totalmente o plano,<br />

sem <strong>de</strong>ixar lacunas ou espaços vazios entre eles. Como refere Cláudio Salpeter, <strong>do</strong>cente<br />

<strong>de</strong> Análise <strong>Matemática</strong> na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Buenos Aires, a soma <strong>do</strong>s ângulos internos<br />

<strong>de</strong> um hexágono é 720º, pelo que ca<strong>da</strong> ângulo terá amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> 120º. E pensan<strong>do</strong> que<br />

em ca<strong>da</strong> vértice <strong>de</strong> um hexágono po<strong>de</strong>mos contar três hexágonos, temos três ângulos <strong>de</strong><br />

120º que perfazem 360º, o que não <strong>de</strong>ixa espaço para lacunas entre eles, ou seja o<br />

espaço fica totalmente preenchi<strong>do</strong>.<br />

Nas palavras <strong>de</strong> Borges, até agora referi<strong>da</strong>s há um ponto que po<strong>de</strong> resultar em<br />

equívoco. Os livros, diferentes entre si, <strong>da</strong> Biblioteca <strong>de</strong> Babel são em número<br />

<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> e finito, ao contrário <strong>de</strong> infinito e in<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> tal como Borges refere.<br />

Um livro <strong>da</strong> Biblioteca <strong>de</strong> Babel, escrito numa única frase, é uma frase com um<br />

número “não infinito embora muito vasto” <strong>de</strong> letras, número esse que se po<strong>de</strong> calcular<br />

se recor<strong>da</strong>rmos que as páginas <strong>de</strong> um livro são 410, as linhas <strong>de</strong> uma página são 40, 80<br />

são as letras <strong>de</strong> uma linha e o alfabeto são 25 letras. Note-se que Borges refere: “o<br />

número <strong>de</strong> símbolos ortográficos é 25” e na nota <strong>do</strong> editor consta: “o manuscrito<br />

original não contém algarismos nem maiúsculas. A pontuação foi limita<strong>da</strong> à vírgula e<br />

53


A Biblioteca <strong>de</strong> Babel Capítulo 6<br />

ao ponto. Estes <strong>do</strong>is sinais, o espaço e as vinte e duas letras <strong>do</strong> alfabeto são os vinte e<br />

cinco símbolos suficientes…”<br />

Por ca<strong>da</strong> letra temos 25 possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, pelo que as frases <strong>de</strong> n letras são 25 n . Assim,<br />

uma página po<strong>de</strong> ser escrita como uma única frase <strong>de</strong> 40 × 80 = 3200 letras, temos<br />

então 25 3200 páginas possíveis. E como um livro po<strong>de</strong> ser escrito com uma única frase<br />

<strong>de</strong> 3200 410 = 1312000<br />

× letras, então existem, ao to<strong>do</strong>, 25 1312000 livros diferentes.<br />

O narra<strong>do</strong>r refere os “Purifica<strong>do</strong>res” e acrescenta que a <strong>de</strong>vastação causa<strong>da</strong> por estes<br />

é inútil, uma vez que a biblioteca é tão gran<strong>de</strong> que qualquer redução <strong>de</strong> origem humana<br />

é infinitesimal: “Um: a Biblioteca é tão enorme que to<strong>da</strong> a redução <strong>de</strong> origem humana<br />

se torna infinitésima. Outro: ca<strong>da</strong> exemplar é único, insubstituível, mas (como a<br />

Biblioteca é total) há sempre várias centenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> fac-símiles imperfeitos: <strong>de</strong><br />

obras que só diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-<br />

me a supor que as consequências <strong>da</strong>s <strong>de</strong>pre<strong>da</strong>ções cometi<strong>da</strong>s pelos purifica<strong>do</strong>res foram<br />

exagera<strong>da</strong>s pelo terror que esses fanáticos provocaram”. (Borges, 1941)<br />

O “bibliotecário <strong>de</strong> Babel” procura o catálogo <strong>do</strong>s catálogos, mas tal livro não<br />

po<strong>de</strong>rá existir, é um para<strong>do</strong>xo <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>. Suponhamos que o conjunto A é o<br />

catálogo <strong>do</strong>s catálogos e A1, A2 e A3 os catálogos existentes na Biblioteca.<br />

Simbolicamente temos A = {A1, A2, A3}. Então, <strong>de</strong>paramo-nos com um catálogo que<br />

não está cataloga<strong>do</strong> – o catálogo A. Devemos então construir um catálogo B, que<br />

incluísse A. Mas agora é o catálogo B que também não está cataloga<strong>do</strong>… e assim<br />

in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente. O narra<strong>do</strong>r suplica, <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente, que este livro total exista.<br />

A história termina com a solução <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r: “Atrevo-me a insinuar esta solução <strong>do</strong><br />

antigo problema: A biblioteca é ilimita<strong>da</strong> e periódica. Se um eterno viajante a<br />

atravessasse em qualquer direcção, verificaria ao cabo <strong>do</strong>s séculos que os mesmos<br />

volumes se repetem na mesma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m (que, repeti<strong>da</strong>, seria uma or<strong>de</strong>m: a Or<strong>de</strong>m). A<br />

minha solidão alegra-se com esta elegante esperança”. (Borges, 1941)<br />

Portanto, o número <strong>de</strong> volumes é finito e o <strong>da</strong> galeria hexagonal não, porque os<br />

próprios volumes se repetem na mesma or<strong>de</strong>m periodicamente. Esta periorici<strong>da</strong><strong>de</strong> que o<br />

“bibliotecário <strong>de</strong> Babel” caracteriza como or<strong>de</strong>m, indica uma lei a seguir, uma regra.<br />

Na Biblioteca <strong>de</strong> Babel, há uma limitação <strong>do</strong> número <strong>de</strong> páginas, <strong>da</strong>s linhas por<br />

página e <strong>da</strong>s letras por ca<strong>da</strong> linha <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> livro. Questionemo-nos então sobre quantos<br />

54


A Biblioteca <strong>de</strong> Babel Capítulo 6<br />

serão livros possíveis, na hipótese <strong>de</strong> que um possa conter um número n <strong>de</strong> letras, tão<br />

gran<strong>de</strong> quanto se queira. Po<strong>de</strong>mos concluir que o conjunto <strong>do</strong>s livros, <strong>de</strong> comprimento<br />

arbitrário, é numerável e será naturalmente constituí<strong>do</strong> por livros sem qualquer senti<strong>do</strong>.<br />

Mas suponhamos que to<strong>do</strong>s os livros possíveis, isto é, to<strong>da</strong>s as palavras (ou frases, ou<br />

seja, os cordões <strong>de</strong> letras) possíveis têm um senti<strong>do</strong>. Deduzimos que to<strong>do</strong>s os<br />

significa<strong>do</strong>s possíveis são infinitos, mas numeráveis, ou seja, só é possível uma<br />

infini<strong>da</strong><strong>de</strong> numerável <strong>de</strong> pensamentos com um senti<strong>do</strong> preciso.<br />

É esta a premissa ao “para<strong>do</strong>xo <strong>de</strong> Richard”, que passamos a expor nas palavras <strong>de</strong><br />

Emile Borel, que parte <strong>da</strong> língua francesa, mas po<strong>de</strong> elaborar-se o mesmo raciocínio<br />

para qualquer outro idioma:<br />

“O número <strong>da</strong>s palavras <strong>da</strong> língua francesa é limita<strong>do</strong>, pelo que o número <strong>de</strong> frases<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>z palavras também. Entre to<strong>da</strong>s as frases possíveis obti<strong>da</strong>s, combinan<strong>do</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />

as maneiras possíveis <strong>de</strong>z palavras francesas, a maioria não tem qualquer senti<strong>do</strong>;<br />

entre as que o têm, apenas uma pequena parte <strong>de</strong>fine um número inteiro <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>.<br />

Há, portanto, um número limita<strong>do</strong> <strong>de</strong> números inteiros assim <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, entre os quais<br />

existirá <strong>de</strong>certo um máximo”. (Cita<strong>do</strong> em Radice, 1981)<br />

Borges tem razão ao afirmar que “as combinações possíveis <strong>de</strong> vinte e cinco<br />

símbolos ortográficos” são em “número, embora muito vasto, não infinito”. Mas não<br />

tem razão, quan<strong>do</strong> afirma que essas combinações “oferem tu<strong>do</strong> o que é <strong>da</strong><strong>do</strong> exprimir,<br />

em to<strong>da</strong>s as línguas”. Para que esta segun<strong>da</strong> afirmação se tornasse ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira,<br />

necessitaríamos <strong>de</strong> uma Biblioteca bem maior que a Biblioteca <strong>de</strong> Babel, mesmo que<br />

admitíssemos nela livros <strong>de</strong> extensão arbitrária. Esta nova Biblioteca conteria a<br />

Biblioteca <strong>de</strong> Babel numa sua parte infinitesimal. Chamemos às duas bibliotecas,<br />

Biblioteca <strong>de</strong> Babel e Biblioteca <strong>de</strong> Cantor. Na segun<strong>da</strong>, B = B0 constitui uma<br />

pequeníssima secção. No ex-líbris <strong>de</strong> B0 apôs-se o símbolo L0, porque os seus volumes<br />

são li<strong>do</strong>s aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> rigorosamente aos significa<strong>do</strong>s que as palavras têm em L0,<br />

linguagem inicial para a qual é suficiente o alfabeto inicial <strong>de</strong> 25 letras. Segue-se a<br />

secção B1, cujos volumes são interpreta<strong>do</strong>s na linguagem L1 e exibem na capa <strong>da</strong><br />

estampilha L1. Vêm <strong>de</strong>pois as secções B2, B3, …, Ba, … transfinitamente. Se faltarem<br />

55


A Biblioteca <strong>de</strong> Babel Capítulo 6<br />

nos volumes as estampilhas indicativas <strong>da</strong> linguagem em que estão escritos, a bem<br />

or<strong>de</strong>na<strong>da</strong> Biblioteca <strong>de</strong> Cantor converte-se na caótica e cíclica Biblioteca <strong>de</strong> Babel.<br />

Na última página Borges refere, em nota <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>pé, que Letizia Álvarez <strong>de</strong> Tole<strong>do</strong><br />

teria observa<strong>do</strong> que esta Biblioteca seria inútil. Bastaria um único livro, <strong>de</strong> formato<br />

comum, impresso em corpo nove, ou em corpo <strong>de</strong>z, que tivesse um número infinito <strong>de</strong><br />

folhas infinitamente finas. Acrescentan<strong>do</strong> em parênteses que, no século XVII, Cavalieri<br />

disse que to<strong>do</strong> o corpo sóli<strong>do</strong> é a sobreposição <strong>de</strong> um número infinito <strong>de</strong> planos. E ain<strong>da</strong><br />

que o manejo <strong>de</strong> tal livro não seria cómo<strong>do</strong>: ca<strong>da</strong> folha <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar-se-ia noutras análogas<br />

e a inconcebível folha central não teria reverso.<br />

56


7. Escher e o <strong>Infinito</strong><br />

7.1. A vi<strong>da</strong><br />

Maurits Cornelius Escher nasceu a 17 <strong>de</strong><br />

Junho <strong>de</strong> 1898, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong><br />

Leeuwar<strong>de</strong>n, sen<strong>do</strong> o filho mais novo <strong>do</strong><br />

Engenheiro G. A. Escher.<br />

Aos 13 anos começou a frequentar uma<br />

Escola Secundária em Arnheim, para on<strong>de</strong> os<br />

seus pais se haviam mu<strong>da</strong><strong>do</strong>. Ele não era, <strong>de</strong><br />

to<strong>do</strong>, um aluno brilhante. Para ele, a escola<br />

era um pesa<strong>de</strong>lo. Foi duas vezes reprova<strong>do</strong> e<br />

Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

também não conseguiu obter o diploma final, pois nem sequer em Arte teve bons<br />

resulta<strong>do</strong>s.<br />

A obra que resta <strong>do</strong> seu tempo <strong>de</strong> escola mostra um gran<strong>de</strong> talento, mas o trabalho<br />

prescrito para o exame: Pássaro numa gaiola não obteve aprovação <strong>do</strong> júri. Nessa<br />

altura já fazia lineo-gravuras juntamente com um amigo.<br />

Acaba<strong>do</strong> o Ensino Secundário, e por insistência <strong>da</strong> família, foi para Haarlem estu<strong>da</strong>r<br />

Arquitectura na Escola <strong>de</strong> Arquitectura e Artes Decorativas. Mais uma vez, os<br />

resulta<strong>do</strong>s académicos eram fracos, e portanto, <strong>de</strong>cidiu mu<strong>da</strong>r para o curso <strong>de</strong> Artes<br />

Decorativas, on<strong>de</strong> conheceu o professor Samuel Jesserun <strong>de</strong> Mesquita que ensinava<br />

técnicas <strong>de</strong> gravura artística. Este professor, ju<strong>de</strong>u <strong>de</strong> origem portuguesa, tornou-se<br />

fun<strong>da</strong>mental no <strong>de</strong>senvolvimento artístico <strong>de</strong> Escher. Para além <strong>de</strong> lhe ensinar to<strong>do</strong>s os<br />

pormenores na arte <strong>da</strong> gravura, incentivava-o a experimentar e a <strong>de</strong>senvolver to<strong>da</strong>s as<br />

suas capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s nessa arte.<br />

Figura 7.1. Retrato <strong>de</strong> Maurits Escher (1963)<br />

Trabalhos <strong>de</strong>sta época mostram que Escher <strong>de</strong>pressa começou a <strong>do</strong>minar a técnica <strong>de</strong><br />

xilogravura, mas mesmo neste curso não teve muito sucesso. Num relatório oficial <strong>da</strong><br />

57


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

escola, assina<strong>do</strong> pelo director lia-se: “… ele é <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> pertinaz, <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> literato-<br />

filosófico; a este jovem falta fantasia e i<strong>de</strong>ias espontâneas, é <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> pouco artista.”<br />

Assim, Escher acabou por não concluir este curso e foi para Itália à procura <strong>de</strong> novas<br />

fontes <strong>de</strong> inspiração. O próprio Mesquita o aconselhou a seguir o seu caminho, pois<br />

Escher tinha adquiri<strong>do</strong> uma boa base em <strong>de</strong>senho e <strong>do</strong>minava a xilogravura. No entanto,<br />

mantiveram-se em contacto até 1944, altura em que o professor, juntamente com a sua<br />

mulher e o filho, foi preso e assassina<strong>do</strong> pelos alemães.<br />

Em 1922, Escher viajou durante duas semanas com <strong>do</strong>is amigos holan<strong>de</strong>ses pela<br />

Itália. O interesse que o país lhe <strong>de</strong>spertou foi tal que fixou lá residência. Neste país<br />

muitos eram os elementos que o entusiasmavam, entre outros, apreciou as 17 torres em<br />

San Gimignamo e em Siena ficava impressiona<strong>do</strong> com as paisagens. Foi em Siena que<br />

tiveram origem as primeiras xilogravuras <strong>de</strong> paisagens italianas.<br />

Ain<strong>da</strong> em 1922 viaja por Espanha, visitan<strong>do</strong> pela primeira vez a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Grana<strong>da</strong> e<br />

o seu emblemático palácio, o Alhambra. Escher ficou <strong>de</strong>licia<strong>do</strong> com a <strong>de</strong>coração<br />

interior <strong>de</strong>ste palácio, <strong>de</strong> influência persa e muçulmana, e tornou-se fonte <strong>de</strong> inspiração<br />

para obras futuras, especialmente as que versam sobre o tema <strong>da</strong>s pavimentações <strong>do</strong><br />

plano.<br />

Depois <strong>de</strong> uma curta estadia em Espanha, regressou a Itália, instalan<strong>do</strong>-se numa<br />

pensão em Siena, on<strong>de</strong> conheceu Jetta Umiker, com quem casou em 1924. Ela passou a<br />

acompanhar o artista nas suas viagens e na elaboração <strong>do</strong>s registos <strong>do</strong>s pontos <strong>de</strong><br />

interesse. Para suportar a <strong>de</strong>spesa <strong>de</strong>stas viagens, vendia alguns <strong>do</strong>s seus trabalhos.<br />

Foi nesta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> que realizou a sua primeira exposição individual, em 1923. No ano<br />

seguinte realizou a sua primeira exposição em Holan<strong>da</strong>.<br />

O pai <strong>de</strong> Jetta era suíço e até à eclosão <strong>da</strong> revolução russa foi director <strong>de</strong> uma fábrica,<br />

nas proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Moscovo. Jetta, tal como a mãe, <strong>de</strong>senhava e pintava, embora<br />

nenhuma <strong>de</strong>las tivesse qualquer preparação para isso.<br />

Os pais <strong>de</strong> Jetta fixaram-se em Roma e o casal foi viver com eles.<br />

Em 1932 e 1933 foram publica<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is livros com ilustrações <strong>de</strong> Escher,<br />

respectivamente, XXIV Emblemata e De Vreeslijke avonturen van Scholastica.<br />

58


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

Em 1934, Escher concorre com a litografia Nonza numa exposição em Chicago e<br />

recebe o terceiro prémio.<br />

O casal viveu em Itália até 1935 e durante esse perío<strong>do</strong> tiveram <strong>do</strong>is filhos, George e<br />

Arthur, mas nesse ano, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às políticas fascistas, mu<strong>da</strong>m-se para Chateaux-d’Oex na<br />

Suíça. A estadia foi curta, pois a paisagem monótona <strong>da</strong> Suíça não o inspirava. E<br />

portanto, <strong>de</strong>cidiu viajar durante três meses com a sua esposa por Itália, França e<br />

Espanha. Nesta viagem, visita pela segun<strong>da</strong> vez Alhambra e esta visita altera o seu<br />

trabalho profun<strong>da</strong>mente. Ele copiava muitos motivos juntamente com a sua mulher.<br />

Aqui foi lança<strong>do</strong> o fun<strong>da</strong>mento para a sua obra revolucionária no âmbito <strong>da</strong> divisão<br />

regular <strong>da</strong> superfície.<br />

Entretanto, em 1937, Escher e sua família mu<strong>da</strong>m-se para a Bélgica, instalan<strong>do</strong>-se<br />

em Ukkel, perto <strong>de</strong> Bruxelas, on<strong>de</strong> nasceu o seu terceiro filho, Jan.<br />

Em 1939 faleceu o seu pai e no ano seguinte a sua mãe.<br />

Como a guerra estava prestes a rebentar na Bélgica, Escher queria estar perto <strong>da</strong> sua<br />

pátria. Quan<strong>do</strong> começou, viver na Bélgica tornou-se psicologicamente muito difícil para<br />

um holandês, e portanto, em 1941, regressa ao seu país natal, após a invasão <strong>da</strong> Bélgica<br />

pelos alemães e hospe<strong>da</strong>-se com a sua família em Baarn. Escolheram Baarn, porque a<br />

Escola Secundária local tinha um bom nome.<br />

Em 1954 realiza-se uma importante exposição no museu Ste<strong>de</strong>lijk em Amesterdão e<br />

expõe igualmente em Washington.<br />

Em 1958 publica um texto sobre a divisão regular <strong>do</strong> plano - Regelmatig<br />

Vlakver<strong>de</strong>ling.<br />

Em 1959 surge um outro, produto sobre a sua obra gráfica, Gragick en Tekeningen<br />

M. C. Escher.<br />

Em 1962 a<strong>do</strong>eceu e foi submeti<strong>do</strong> a uma grave operação. O seu trabalho ficou para<strong>do</strong><br />

por um tempo, pois a sua recuperação foi <strong>de</strong>mora<strong>da</strong>. Em 1964 foi submeti<strong>do</strong> a outra<br />

cirurgia.<br />

Em 1968 realiza-se, para celebrar o seu septagésimo aniversário, uma exposição<br />

retrospectiva <strong>da</strong> sua obra em The Hague.<br />

59


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

Em 1969, Escher realizou a sua última obra, Serpentes, que mostrava que a sua<br />

perícia na<strong>da</strong> havia diminuí<strong>do</strong>.<br />

Figura 7.2. Serpentes (Escher, 1969)<br />

Em 1970 mu<strong>do</strong>u-se para a Casa-<strong>de</strong>-Rosa-Spier em Laren, no norte <strong>de</strong> Holan<strong>da</strong> – uma<br />

casa on<strong>de</strong> os artistas i<strong>do</strong>sos podiam ter os seus próprios estúdios e serem cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />

Faleceu a 27 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1972 no hospital em Hilversun com 73 anos.<br />

Escher trabalhou sempre sozinho, sem colegas nem escolas. Porém, manteve<br />

amiza<strong>de</strong>s durante to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>, com quem trocava visitas e correspondência<br />

regularmente. Ele, apesar <strong>de</strong> acreditar que alguns artistas não passavam <strong>de</strong> impostores,<br />

tinha muito prazer em cultivar a tertúlia e a conversa.<br />

Escher não se consi<strong>de</strong>rava um artista plástico nem um matemático, mas o interesse<br />

com que os matemáticos e cientistas recebiam a sua obra <strong>da</strong>vam-lhe uma gran<strong>de</strong><br />

satisfação. Ele sentia-se compreendi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> falava e sentia que as suas gravuras eram<br />

percebi<strong>da</strong>s. Contu<strong>do</strong>, Escher não terá chega<strong>do</strong> a aperceber-se que muitos matemáticos<br />

trabalhavam e combatiam com os mesmos conceitos que o preocupavam.<br />

60


7.2. A obra<br />

Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

De acor<strong>do</strong> com Ernst (1978), a obra <strong>de</strong> Escher po<strong>de</strong> ser dividi<strong>da</strong> em quatro perío<strong>do</strong>s<br />

diferentes, distingui<strong>do</strong>s por uma cronologia, que se po<strong>de</strong>m conjugar em duas fases,<br />

antes e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1937 (ano em que se fixou em Ukkel).De acor<strong>do</strong> com as palavras <strong>de</strong><br />

Escher (1959):<br />

“A razão porque, a partir <strong>de</strong> 1938, me concentrei ca<strong>da</strong> vez mais intensamente com a<br />

transmissão <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias pessoais, foi o resulta<strong>do</strong>, em primeira linha, <strong>da</strong> minha parti<strong>da</strong> em<br />

Itália. Na suíça, na Bélgica e na Holan<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> sucessivamente me <strong>de</strong>tive, o aspecto<br />

exterior <strong>da</strong> paisagem e <strong>da</strong> arquitectura sensibilizaram-me menos <strong>do</strong> que havia si<strong>do</strong> o<br />

caso, sobretu<strong>do</strong> no sul <strong>de</strong> Itália. Força<strong>do</strong> pelas circunstâncias, tive <strong>de</strong> me afastar duma<br />

reprodução mais ou menos directa e exacta <strong>do</strong> ambiente à minha volta. Esta<br />

circunstância estimulou, sem dúvi<strong>da</strong>, em gran<strong>de</strong> medi<strong>da</strong>, a criação <strong>de</strong> imagens<br />

interiores”.<br />

A primeira fase é <strong>do</strong>mina<strong>da</strong> pela representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> visível. A maioria <strong>da</strong>s<br />

suas gravuras eram paisagens e ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>do</strong> sul <strong>de</strong> Itália. Retratou ain<strong>da</strong> alguns animais,<br />

plantas, pessoas, …<br />

Figura 7.3. Castrovalva (Escher, 1930)<br />

Nesta fase evi<strong>de</strong>ncia-se um realismo agu<strong>do</strong> que é<br />

bem visível na importância que <strong>da</strong>va a vários<br />

<strong>de</strong>talhes, mas ao mesmo tempo uma visão muito<br />

própria e <strong>de</strong>talha<strong>da</strong> para captar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Os seus trabalhos apresentam, muitas vezes,<br />

diferentes sensações <strong>do</strong> espaço, pois Escher tinha<br />

uma obsessão pela escolha <strong>de</strong> ângulos <strong>de</strong> visão.<br />

Escher fez também, nesta altura, produtos <strong>da</strong> sua<br />

própria imaginação, por exemplo, Castelo no ar e Torre <strong>de</strong> Babel.<br />

61


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

A partir <strong>de</strong> 1937, o real <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser o centro <strong>da</strong> sua obra para passar a ser um<br />

ornamento, fixan<strong>do</strong>-se nas construções <strong>da</strong> sua imaginação. Pretendia <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> aos<br />

padrões que encontrava nos mosaicos islâmicos e nas formações cristalinas,<br />

substituin<strong>do</strong> formas abstractas por elementos reais (pessoas, animais, plantas). Escher<br />

combinava esses elementos <strong>de</strong> várias formas, sugerin<strong>do</strong> processos que se po<strong>de</strong>riam<br />

repercutir até ao infinito. A animação <strong>de</strong>stes padrões, em que as estruturas adquirem<br />

individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e se transformam sucessivamente umas nas outras, leva à série<br />

Metamorfoses.<br />

Em 1946, Escher interessa-se novamente por construções<br />

espaciais. Aqui não era tanto a própria representação que<br />

interessava, mas, pelo contrário, a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

perspectiva. A este perío<strong>do</strong> Ernst (1991) <strong>de</strong>signou por<br />

subordinação à perspectiva. Neste perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> experimentação<br />

leva-o a imagens bidimensionais que representavam figuras<br />

tridimensionais, mas que não se po<strong>de</strong>riam construir em tal<br />

dimensão, chama<strong>da</strong>s figuras impossíveis.<br />

Figura 7.4. Dia e noite (Escher, 1938)<br />

Figura 7.5. Em cima e em baixo (Escher, 1947)<br />

62


Figura 7.6. Limite Circular III (Escher, 1959)<br />

Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

O último perío<strong>do</strong>, que se iniciou em 1956, foi<br />

<strong>de</strong>signa<strong>do</strong> por aproximação ao infinito. Neste<br />

perío<strong>do</strong>, Escher tinha uma gran<strong>de</strong> obsessão em<br />

representar o infinito numa superfície limita<strong>da</strong>.<br />

Esta preocupação esteve presente em to<strong>da</strong> a sua<br />

obra, mas é <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1937 que essa preocupação<br />

se torna mais niti<strong>da</strong>mente objectivo <strong>de</strong> uma<br />

procura sistemática.<br />

De segui<strong>da</strong>, é apresenta<strong>do</strong> um quadro síntese com a classificação <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Escher<br />

segun<strong>do</strong> Ernst:<br />

Fase Data Perío<strong>do</strong> Exemplo<br />

1.ª fase 1922-1937 Paisagens Castrovalva (1930)<br />

2.ª fase<br />

1937-1945 Metamorfoses Dia e noite (1938)<br />

1946-1956 Gravuras subordina<strong>da</strong>s à perspectiva Em cima e em baixo (1947)<br />

1956-1970 Aproximação ao infinito Limite circular III (1959)<br />

Na sua obra está presente um conceito <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> plural em movimento como o<br />

cubismo, o construtivismo ou o surrealismo. A linguagem visual <strong>de</strong> Escher era realista e<br />

acessível a to<strong>do</strong>s. Por outro la<strong>do</strong>, a obra <strong>de</strong> Escher po<strong>de</strong> ser classifica<strong>da</strong> como<br />

estruturalista, pois a estrutura era toma<strong>da</strong> como mo<strong>de</strong>lo para o potencial <strong>de</strong> realizações<br />

que sugere.<br />

As obras <strong>de</strong> Escher primeiramente eram aprecia<strong>da</strong>s por matemáticos, cristalógrafos e<br />

físicos e só <strong>de</strong>pois começou a interessar o público em geral.<br />

63


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

Os seus objectivos eram muito diferentes <strong>do</strong>s seus contemporâneos, e portanto, era<br />

difícil enquadrar a sua obra no panorama <strong>da</strong>s artes plásticas contemporâneas. Ele<br />

próprio ficava confuso quanto ao lugar que ocupavam nesse mun<strong>do</strong>, afirman<strong>do</strong>: “Acho<br />

que aquilo que faço é umas vezes muito bonito, outras vezes muito feio”. (Cita<strong>do</strong> por<br />

Ernst, 1991)<br />

7.3. Escher e a <strong>Matemática</strong><br />

Escher esteve em contacto próximo com matemáticos (por exemplos R. Penrose e H.<br />

Coxeter) e cientistas (por exemplo, Loeb e C. MacGillavry) e este contacto teve gran<strong>de</strong><br />

importância na sua obra.<br />

Des<strong>de</strong> a Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> que a <strong>Matemática</strong> e a Arte surgem associa<strong>da</strong>s. O mun<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Matemática</strong> e o mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> Arte estão intrinsecamente relaciona<strong>do</strong>s e Escher <strong>de</strong>scobriu<br />

essa relação:<br />

“To<strong>da</strong>s as reproduções foram produzi<strong>da</strong>s com a intenção <strong>de</strong> esclarecer uma<br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> linha <strong>de</strong> pensamento. As i<strong>de</strong>ias que lhe estão por base testemunham, na<br />

maior parte, o meu espanto e admiração em face <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong> natureza que operam no<br />

mun<strong>do</strong> à nossa volta. Aquele que se maravilha com alguma coisa tem ele mesmo a<br />

consciência <strong>da</strong> maravilha. Olhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> olhos abertos os enigmas que nos ro<strong>de</strong>iam e<br />

pon<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> e analisan<strong>do</strong> as minhas observações entro em contacto com o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong><br />

<strong>Matemática</strong>. Embora não tenha qualquer formação e conhecimento <strong>da</strong>s ciências<br />

exactas, sinto-me frequentemente mais liga<strong>do</strong> aos matemáticos <strong>do</strong> que aos meus<br />

próprios colegas <strong>de</strong> profissão”. (Escher, 1959)<br />

Um <strong>do</strong>s principais elementos matemáticos presentes na obra <strong>de</strong> Escher é a<br />

representação <strong>do</strong> espaço. Ele conseguia misturar vários tipos <strong>de</strong> espaço numa mesma<br />

imagem. Em algumas imagens po<strong>de</strong>-se verificar uma representação tridimensional se<br />

64


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

nos centrarmos em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s parcelas, mas por outro la<strong>do</strong> se nos centrarmos noutras<br />

evi<strong>de</strong>ncia-se uma figura bidimensional.<br />

Escher <strong>de</strong>cidiu explorar em profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> as leis <strong>da</strong> perspectiva. Ele representava a<br />

duas dimensões figuras tridimensionais que não eram possíveis <strong>de</strong> construir a três<br />

dimensões, são as chama<strong>da</strong>s figuras impossíveis.<br />

Outro elemento matemático presente na sua obra é a representação <strong>de</strong> sóli<strong>do</strong>s<br />

platónicos (tetraedro, cubo, octaedro, <strong>do</strong><strong>de</strong>caedro e icosaedro). Escher fez em ma<strong>de</strong>ira e<br />

acrílico alguns <strong>de</strong>stes sóli<strong>do</strong>s regulares.<br />

Como foi <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> pela <strong>Matemática</strong>, os triângulos equiláteros, os quadra<strong>do</strong>s e os<br />

hexágonos são as únicas formas usa<strong>da</strong>s como padrão, pois só com estes três polígonos é<br />

possível realizar divisões regulares no plano. Mas ao observar as imagens <strong>de</strong> Escher,<br />

aparentemente parece que ele não usava qualquer um <strong>de</strong>stes polígonos. Se estu<strong>da</strong>rmos<br />

as suas imagens reparamos que Escher pega num quadra<strong>do</strong>, num triângulo equilátero ou<br />

num hexágono e transforma-os em objectos com a mesma área. Desta forma, consegue<br />

transformar as suas imagens mais apelativas <strong>do</strong> que se usasse simplesmente um <strong>do</strong>s três<br />

polígonos.<br />

Outra importante ligação, entre a obra <strong>de</strong> Escher e a <strong>Matemática</strong>, surge nos estu<strong>do</strong>s<br />

<strong>da</strong>s pavimentações bidimensionais, on<strong>de</strong> a sua obra representa uma antecipação <strong>de</strong> uma<br />

teoria matemática complexa.<br />

Figura 7.7. Estrelas (Escher, 1948)<br />

65


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

Escher realizou pavimentações com <strong>do</strong>is, três e quatro pares distintos <strong>de</strong> figuras<br />

congruentes. No início começou por utilizar simetrias simples. Mais tar<strong>de</strong>, utiliza duas<br />

classes <strong>de</strong> figuras nas pavimentações, em que to<strong>da</strong>s as figuras <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> classe são<br />

mutuamente equivalentes por simetrias <strong>da</strong> pavimentação. Por fim, substitui o plano<br />

euclidiano pela esfera e pelo plano hiperbólico, sen<strong>do</strong> estas pavimentações o melhor<br />

exemplo <strong>da</strong> relação, na obra <strong>de</strong> Escher, entre a Arte e a <strong>Matemática</strong>.<br />

7.4. Escher e a busca <strong>do</strong> <strong>Infinito</strong><br />

Segun<strong>do</strong> Ernst, o último perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Escher po<strong>de</strong> ser caracteriza<strong>do</strong> como uma<br />

aproximação ao infinito. Mas não <strong>de</strong>scuremos que o infinito é um tema recorrente na<br />

sua obra.<br />

Figura 7.8. Trabalho <strong>de</strong> simetria n.º 123 (Escher, 1964)<br />

Em 1959, Escher expressou o que o moveu a representar o infinito:<br />

“Não po<strong>de</strong>mos imaginar que algures por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong> estrela mais longínqua <strong>do</strong> céu<br />

nocturno, o espaço possa ter um fim, um limite para além <strong>do</strong> qual na<strong>da</strong> mais existe. O<br />

conceito <strong>de</strong> vácuo diz-nos ain<strong>da</strong> alguma coisa, pois um espaço po<strong>de</strong> estar vazio, <strong>de</strong><br />

66


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

qualquer maneira na nossa fantasia, mas a nossa força <strong>de</strong> imaginação é incapaz <strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r o conceito <strong>de</strong> na<strong>da</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> espaço. Por isso nos agarramos<br />

a uma quimera, a um além, a um purgatório, a um céu e a um inferno, a uma<br />

ressurreição ou uma nirvana que <strong>de</strong> novo têm <strong>de</strong> ser eternos no tempo e infinitos no<br />

espaço, e isto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o homem na Terra se <strong>de</strong>ita, senta ou levanta, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nela<br />

se arrasta e corre; navega, cavalga e voa (e <strong>da</strong> Terra para fora se projecta)”.<br />

De acor<strong>do</strong> com Maor (1991), o trabalho realiza<strong>do</strong> por Escher sobre o infinito po<strong>de</strong><br />

ser dividi<strong>do</strong> em três tipos: ciclos sem fim, preenchimento <strong>de</strong> superfícies e limites.<br />

Por um ciclo enten<strong>de</strong>-se um fenómeno que, por <strong>de</strong>slocações para cima ou para baixo<br />

através <strong>do</strong>s níveis <strong>de</strong> um sistema hierárquico qualquer, voltamos sempre ao ponto <strong>de</strong><br />

parti<strong>da</strong>. Po<strong>de</strong>-se então verificar que implícito a este conceito <strong>de</strong> ciclo está a noção <strong>de</strong><br />

infinito potencial, pois um ciclo representa um processo que não termina.<br />

As gravuras que melhor ilustram os ciclos sem fim são as que representam figuras<br />

impossíveis. Como exemplos típicos temos as gravuras: Que<strong>da</strong> <strong>de</strong> água (1961) e<br />

Subin<strong>do</strong> e <strong>de</strong>scen<strong>do</strong> (1960).<br />

Segun<strong>do</strong> Escher na gravura “Que<strong>da</strong> <strong>de</strong> água: a água<br />

duma cascata põe em movimento a ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> um moinho e<br />

corre <strong>de</strong>pois para baixo, numa calha inclina<strong>da</strong> entre duas<br />

torres, <strong>de</strong>vagar, em ziguezague, até ao ponto em que a<br />

que<strong>da</strong> d’ água <strong>de</strong> novo começa” (Escher, 1959). Nesta<br />

gravura, a água sobe ou <strong>de</strong>sce sempre e sem per<strong>de</strong>r a força.<br />

Na gravura Subin<strong>do</strong> e <strong>de</strong>scen<strong>do</strong>, alguns monges estão sempre a <strong>de</strong>scer enquanto<br />

outros continuam a subir. Se ao tentarmos percorrer estas figuras, sentimos a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> continuar sem parar in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente.<br />

Figura 7.9. Que<strong>da</strong> <strong>de</strong> Água (Escher, 1961)<br />

67


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

Para além <strong>da</strong>s figuras impossíveis, po<strong>de</strong>mos encontrar outro tipo <strong>de</strong> ciclos que são os<br />

relaciona<strong>do</strong>s com estruturas <strong>de</strong> superfície, ocorren<strong>do</strong> um conflito entre duas e três<br />

dimensões, por exemplo, as gravuras Mãos <strong>de</strong>senhan<strong>do</strong>-se (1948) e Répteis (1943).<br />

Na primeira gravura, o ciclo é forma<strong>do</strong> pelas mãos,<br />

em que parte <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> mão está representa<strong>da</strong> a três<br />

dimensões e o resto faz parte <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senho numa<br />

folha <strong>de</strong> papel, que, por sua vez, se encontra<br />

representa<strong>do</strong> a três dimensões com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma<br />

<strong>do</strong>bra num <strong>do</strong>s cantos.<br />

Figura 7.12. Répteis (Escher, 1943)<br />

Figura 7.10. Subin<strong>do</strong> e <strong>de</strong>scen<strong>do</strong> (Escher, 1960)<br />

Na gravura Répteis, os répteis, a certa altura,<br />

entram numa folha <strong>de</strong> um ca<strong>de</strong>rno, que, através<br />

<strong>de</strong> translações e rotações, a preenchem<br />

completamente, voltan<strong>do</strong> a sair e a recomeçar<br />

<strong>de</strong> novo to<strong>do</strong> o percurso.<br />

Figura 7.11. Mãos Desenhan<strong>do</strong>-se (Escher, 1948)<br />

68


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

O segun<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> representação <strong>do</strong> infinito é o preenchimento <strong>de</strong> superfícies que<br />

pelo seu carácter sistemático sugere um processo ilimita<strong>do</strong>. Esta representação <strong>do</strong><br />

infinito surge nas suas experiências <strong>de</strong> divisão regular <strong>do</strong> plano. Para Escher a divisão<br />

regular <strong>da</strong> superfície “é a fonte mais rica <strong>de</strong> inspiração, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu alguma vez bebi”.<br />

(Escher, 1959)<br />

Nos seus trabalhos referentes ao preenchimento <strong>de</strong> superfícies, ele baseava-se nas<br />

pavimentações <strong>do</strong> plano, alargan<strong>do</strong>-as ao espaço. Algumas <strong>de</strong>stas pavimentações foram<br />

concretiza<strong>da</strong>s fisicamente na forma <strong>de</strong> esferas, em materiais como a ma<strong>de</strong>ira ou o<br />

marfim, mostran<strong>do</strong> o ilimita<strong>do</strong> num espaço finito (exemplo, Esfera com peixes, 1940).<br />

No entanto, a divisão regular <strong>do</strong> plano não preenchia completamente a sua<br />

aproximação ao infinito. De acor<strong>do</strong> com Escher, “um plano, que po<strong>de</strong>mos imaginar<br />

esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se sem fronteiras em to<strong>da</strong>s as direcções, po<strong>de</strong> ser preenchi<strong>do</strong> ou dividi<strong>do</strong><br />

até ao infinito, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com um número limita<strong>do</strong> <strong>de</strong> sistemas, em figuras geométricas<br />

similares, contíguas, sem <strong>de</strong>ixar qualquer espaço livre”. (Escher, 1958)<br />

Mais tar<strong>de</strong>, acaba por reconhecer que a divisão regular <strong>da</strong> superfície é apenas um<br />

pequeno fragmento <strong>do</strong> infinito, pois apenas somos capazes <strong>de</strong> imaginar uma superfície<br />

plana que se esten<strong>da</strong> ao infinito, <strong>da</strong>í não se tratar <strong>de</strong> um processo acaba<strong>do</strong>, mas ao invés,<br />

que não termina, associa<strong>do</strong> ao infinito potencial. Segun<strong>do</strong> Escher: “o mesmo formato<br />

em to<strong>da</strong>s as componentes não permite mais <strong>do</strong> que a representação dum fragmento<br />

duma divisão regular <strong>da</strong> superfície. Quem quiser representar um número infinito, tem<br />

<strong>de</strong> reduzir gradualmente o tamanho <strong>da</strong>s figuras até ao alcance, pelo menos<br />

teoricamente, o limite <strong>do</strong> infinitamente pequeno”. (Escher, 1959)<br />

Relativamente aos limites, Escher começa por consi<strong>de</strong>rar para além <strong>da</strong>s translações<br />

isométricas, as semelhanças, utilizan<strong>do</strong> motivos idênticos, sucessivamente mais<br />

pequenos, para preencher o plano até ao limite permiti<strong>do</strong> pela sua visão auxilia<strong>da</strong> por<br />

uma lupa. Para isso, Escher segue uma progressão geométrica.<br />

Um bom exemplo <strong>da</strong> utilização <strong>de</strong> uma progressão geométrica é a gravura Ca<strong>da</strong> vez<br />

mais pequeno (1956). Esta gravura surgiu na tentativa <strong>de</strong> representar o infinito como<br />

uma totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, em que as figuras são reduzi<strong>da</strong>s radialmente <strong>da</strong>s margens para o centro,<br />

69


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

mas esta configuração ain<strong>da</strong> permanece fragmentária, porque po<strong>de</strong> ser expandi<strong>da</strong> pela<br />

junção <strong>de</strong> figuras maiores.<br />

Escher escreveu: “Ca<strong>da</strong> vez mais pequeno é uma primeira tentativa nessa direcção.<br />

As figuras com as quais esta gravura é construí<strong>da</strong> reduzem a área <strong>da</strong> sua superfície<br />

para meta<strong>de</strong> constantemente e radialmente <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s para o centro, on<strong>de</strong> o limite <strong>do</strong><br />

infinitamente muito e <strong>do</strong> infinitamente pequeno é obti<strong>do</strong> num único ponto. Mas esta<br />

configuração também permanece fragmentária, porque a sua fronteira po<strong>de</strong> ser<br />

expandi<strong>da</strong> tão longe quanto se queira pela junção <strong>de</strong> figuras ca<strong>da</strong> vez maiores”.<br />

(Escher, 1959)<br />

Mais tar<strong>de</strong>, criou quatro xilogravuras e a essa série chamou Limites Circulares. A<br />

primeira <strong>de</strong>stas obras, Limite Circular I,<br />

concretiza<strong>da</strong> em 1958, não o satisfez plenamente.<br />

Para Escher a melhor realização <strong>do</strong> seu objectivo<br />

foi a xilogravura Limite Circular III, realiza<strong>da</strong> em<br />

1959.<br />

Recorren<strong>do</strong> às palavras <strong>de</strong> Escher:<br />

Figura 7.13. Ca<strong>da</strong> vez mais pequeno (Escher, 1956)<br />

Figura 7.14. Limite Circular I (Escher, 1958)<br />

“A única forma <strong>de</strong> (…) estabelecer em infinito na sua inteireza <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />

fronteira lógica é usar a aproximação inversa à a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong> em Ca<strong>da</strong> vez mais pequeno.<br />

70


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

A primeira, ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>sajeita<strong>da</strong>, aplicação <strong>de</strong>ste méto<strong>do</strong> é ilustra<strong>da</strong> em Limite Circular I<br />

(1958). As figuras <strong>de</strong> animais maiores estão coloca<strong>da</strong>s no centro e o limite <strong>do</strong><br />

infinitamente muito e infinitamente pequeno é encontra<strong>do</strong> no limite circular. O<br />

esqueleto <strong>de</strong>sta configuração, à parte <strong>da</strong>s três linhas rectas que passam pelo centro,<br />

consiste inteiramente em arcos com raio ca<strong>da</strong> vez mais pequeno à medi<strong>da</strong> que se<br />

aproximam <strong>da</strong> fronteira. Adicionalmente to<strong>do</strong>s eles se intersectam em ângulos rectos.<br />

A gravura Limite Circular I, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> a primeira, exibe muitas <strong>de</strong>ficiências. Quer a<br />

forma peixe, ain<strong>da</strong> muito próxima <strong>da</strong>s abstracções lineares, quer o seu arranjo e<br />

atitu<strong>de</strong> a respeito uns <strong>do</strong>s outros, <strong>de</strong>ixam muito a <strong>de</strong>sejar.<br />

Acentua<strong>da</strong>s pelas suas espinhas centrais, séries <strong>de</strong> peixes po<strong>de</strong>m ser reconheci<strong>da</strong>s<br />

em pares alterna<strong>do</strong>s: brancas on<strong>de</strong> as cabeças se encontram, pretas on<strong>de</strong> se cruzam as<br />

cau<strong>da</strong>s. Não existe continui<strong>da</strong><strong>de</strong>, direcção única, uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cor em ca<strong>da</strong> fila.<br />

Na gravura colori<strong>da</strong> Limite Circular III (1959) a maior parte <strong>de</strong>stas <strong>de</strong>ficiências<br />

foram elimina<strong>da</strong>s. Agora existem apenas séries <strong>de</strong> peixes que se movem na mesma<br />

direcção: to<strong>do</strong>s os peixes <strong>da</strong> mesma série têm a mesma côr e ro<strong>da</strong>m uns após os outros,<br />

cabeça com cau<strong>da</strong>, ao longo <strong>de</strong> um curso circular <strong>de</strong> fronteira a fronteira. Quanto mais<br />

se aproximam <strong>do</strong> centro maiores se tornam. Quatro cores foram necessárias <strong>de</strong> forma<br />

que ca<strong>da</strong> série completa contratasse com as que o ro<strong>de</strong>iam”. (Escher, 1959)<br />

Posteriormente, numa tentativa <strong>de</strong> aperfeiçoar o seu trabalho, realiza a xilogravura<br />

Limite Quadra<strong>do</strong>, em 1964, a propósito <strong>da</strong> qual escreveu:<br />

“Depois <strong>da</strong> satisfação relativa <strong>do</strong> meu anseio por um<br />

símbolo perfeito <strong>do</strong> infinito (no melhor realiza<strong>do</strong> em<br />

Limite Circular III) tentei compor uma forma quadra<strong>da</strong><br />

em vez <strong>de</strong> círculo (…) Um tanto orgulhoso pela minha<br />

<strong>de</strong>scoberta enviei uma prova ao professor Coxeter”.<br />

(Cita<strong>do</strong> por Ernst, 1991)<br />

Figura 7.15. Limite Quadra<strong>do</strong> (Escher, 1964)<br />

71


Escher e o <strong>Infinito</strong> Capítulo 7<br />

Mas, numa carta escrita a Coxeter apercebe-se que a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> concepção <strong>de</strong><br />

suas gravuras, sugerin<strong>do</strong> um infinito actual está niti<strong>da</strong>mente presente nas suas<br />

pavimentações não euclidianas, isto é, nos Limites Circulares e não num Limite<br />

Quadra<strong>do</strong>, já euclidiano.<br />

72


Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 8<br />

8. Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong><br />

Neste estu<strong>do</strong> preten<strong>de</strong>-se analisar as concepções que os alunos possuem sobre o<br />

infinito. Para tal, elaborou-se um questionário que foi aplica<strong>do</strong> a uma turma <strong>do</strong> 8º ano<br />

(com 25 alunos) <strong>da</strong> escola on<strong>de</strong> estamos a estagiar (Escola Básica 2 e 3 <strong>de</strong> Vila Ver<strong>de</strong>).<br />

Questionário<br />

Com o intuito <strong>de</strong> analisar as concepções que os alunos possuem sobre o infinito<br />

proce<strong>de</strong>u-se à elaboração <strong>de</strong> um questionário sobre o tema, que se encontra em anexo.<br />

O questionário é composto por quatro questões abor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> diversos temas<br />

relaciona<strong>do</strong>s com o infinito.<br />

A primeira questão é <strong>de</strong> resposta aberta, exigin<strong>do</strong> a interpretação <strong>de</strong> um excerto <strong>do</strong><br />

texto Parliamo tanto di me (Cap. XVI) <strong>de</strong> César Zavattini sobre uma competição<br />

<strong>Matemática</strong>.<br />

A segun<strong>da</strong> pergunta preten<strong>de</strong> analisar as i<strong>de</strong>ias que os alunos têm sobre o infinito e<br />

como tal é uma questão aberta. Já a terceira é <strong>de</strong> carácter dicotómico, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser<br />

atribuí<strong>do</strong>s os valores ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro ou falso.<br />

Por fim, na última questão os alunos apenas tinham <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r quantos elementos<br />

possuía ca<strong>da</strong> conjunto, logo também é fecha<strong>da</strong>.<br />

73


Questão 1<br />

Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 8<br />

Relativamente às duas primeiras perguntas <strong>da</strong> questão 1, a maioria <strong>do</strong>s alunos (64%)<br />

respon<strong>de</strong>u acerta<strong>da</strong>mente, ou seja, conseguiu perceber que o pai não tinha razão, isto é,<br />

para ganhar não bastaria ter dito mais <strong>do</strong>is.<br />

Quanto à outra parte <strong>da</strong> questão 1, sobre quem po<strong>de</strong>ria ganhar o concurso, obteve<br />

56% <strong>de</strong> respostas “ninguém” e “quem disser o número maior”, apresentan<strong>do</strong> a primeira<br />

uma percentagem superior (32%). Alguns alunos (24%) respon<strong>de</strong>ram que quem<br />

ganharia o concurso era o Gianni Binacchi e houve ain<strong>da</strong> alunos (8%) que respon<strong>de</strong>ram<br />

que ganharia o pai, isto é, para ganhar o concurso bastaria ter dito mais <strong>do</strong>is, o que<br />

traduz uma ausência <strong>de</strong> noção <strong>de</strong> infinito.<br />

É <strong>de</strong> salientar também que um aluno respon<strong>de</strong>u que “ganha o concurso quem disser<br />

um número infinito”.<br />

Por fim, é necessário referir que 8% <strong>do</strong>s alunos não respon<strong>de</strong>ram a esta parte <strong>da</strong><br />

questão 1.<br />

36%<br />

Percentagem <strong>de</strong> respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s à primeira parte <strong>da</strong> questão 1<br />

O gráfico resume os <strong>da</strong><strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s nesta questão, categorizan<strong>do</strong> as respostas em<br />

cinco hipóteses: “ninguém”, “quem disser o número maior”, “Gianni Binacchi”, “o pai”<br />

e “quem disser infinito”.<br />

64%<br />

O pai não tem razão<br />

O pai tem razão<br />

74


24%<br />

8%<br />

Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 8<br />

Para quem respon<strong>de</strong>u acerta<strong>da</strong>mente que ninguém po<strong>de</strong>ria ganhar o concurso,<br />

ocorreram vários tipos <strong>de</strong> respostas, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser categoriza<strong>da</strong>s pela sua justificação:<br />

• Os números são infinitos<br />

“Não ganharia ninguém, porque existe um número infinito <strong>de</strong> números.”<br />

“Não, porque podia vir outra pessoa e dizia mais três e assim sucessivamente e como<br />

os números são infinitos nunca ninguém iria ganhar.”<br />

• O concurso é infinito<br />

Percentagem <strong>de</strong> respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s à segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> questão 1<br />

4%<br />

8%<br />

“Ninguém po<strong>de</strong>ria ganhar, porque este concurso não tem fim, é infinito.”<br />

Para quem consi<strong>de</strong>rou que o concurso era váli<strong>do</strong> e que o ganharia quem dissesse o<br />

número maior (24%), há que salientar que, <strong>de</strong>stes, cerca <strong>de</strong> 33% respon<strong>de</strong>ram que<br />

ganharia o último a respon<strong>de</strong>r.<br />

24%<br />

32%<br />

Ninguém<br />

Quem disser o número maior<br />

Gianni Binacchi<br />

O pai<br />

Quem disser um número infinito<br />

Não respon<strong>de</strong>u<br />

75


Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 8<br />

Vejamos alguns exemplos <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> resposta:<br />

• Ganha quem disser o número maior<br />

“Quem po<strong>de</strong>rá ganhar este concurso é o que disser o número maior <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s.”<br />

• Ganha o último a pronunciar-se<br />

“Na minha opinião ganha o que respon<strong>de</strong>sse em último.”<br />

Questão 2<br />

O leque <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias que os alunos associam ao infinito é muito varia<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong><br />

contabiliza<strong>da</strong>s nove <strong>de</strong>signações diferentes. A mais referi<strong>da</strong> é “sem fim”, representan<strong>do</strong><br />

64% <strong>do</strong> total <strong>de</strong> respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />

Pela análise <strong>da</strong> lista <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias associa<strong>da</strong>s ao infinito, há algumas que iremos analisar<br />

com mais pormenor. Por exemplo, os alunos associam “os números” ao infinito, o que é<br />

facilmente compreensível, já que no 8.º ano <strong>de</strong> escolari<strong>da</strong><strong>de</strong>, eles sabem que os<br />

conjuntos , , e são infinitos. Também o termo “incontável” se associa a esta<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> contagem que não termina, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser associa<strong>da</strong> à noção que os conjuntos<br />

numéricos já menciona<strong>do</strong>s são infinitos.<br />

Seguin<strong>do</strong> esta linha <strong>de</strong> pensamento, a expressão “algo que não tem limites” está<br />

associa<strong>da</strong> a algo que não termina.<br />

O gráfico resume os <strong>da</strong><strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s nesta questão:<br />

76


4%<br />

4%<br />

Questão 3<br />

Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 8<br />

Relativamente a esta questão, <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral, os alunos respon<strong>de</strong>ram<br />

acerta<strong>da</strong>mente.<br />

O gráfico apresenta as percentagens <strong>de</strong> respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s pelos alunos às questões 3.1,<br />

3.2, 3.3, 3.4, 3.5 e 3.6.<br />

100%<br />

90%<br />

80%<br />

70%<br />

60%<br />

50%<br />

40%<br />

30%<br />

20%<br />

10%<br />

0%<br />

12%<br />

4%<br />

Percentagem <strong>de</strong> respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s à questão 2<br />

4%<br />

36%<br />

4% 4% Sem fim<br />

Algo que nunca acaba<br />

To<strong>do</strong>s os números que existem<br />

28%<br />

Percentagem <strong>de</strong> respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s à questão 3<br />

3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6<br />

Pela análise <strong>do</strong> gráfico, verifica-se que em to<strong>da</strong>s as alíneas <strong>de</strong>sta questão a<br />

percentagem <strong>de</strong> respostas correctas é superior a 50%.<br />

Algo incontável<br />

Algo que não tem limites<br />

É o maior número<br />

Número muito extenso<br />

Não tem valor exacto<br />

Conjunto <strong>do</strong>s números naturais<br />

Respon<strong>de</strong>u correctamente<br />

Respon<strong>de</strong>u erra<strong>da</strong>mente<br />

77


Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 8<br />

A única questão em que a percentagem <strong>de</strong> respostas correctas foi muito próxima <strong>da</strong><br />

percentagem <strong>de</strong> respostas erra<strong>da</strong>s foi a 3.3, que se referia às dízimas infinitas periódicas.<br />

To<strong>da</strong>s as outras obtiveram valores consi<strong>de</strong>ravelmente altos.<br />

Questão 4<br />

A questão 4 é constituí<strong>da</strong> por três alíneas e refere-se ao número <strong>de</strong> elementos que um<br />

conjunto possui.<br />

A percentagem <strong>de</strong> respostas correctas é a mesma (96%) nas duas primeiras questões<br />

que se referem a conjuntos finitos.<br />

Quanto à última questão há um pequeno <strong>de</strong>créscimo, no entanto, a percentagem <strong>de</strong><br />

respostas correctas contínua muito eleva<strong>da</strong> (88%).<br />

O gráfico apresenta as percentagens <strong>de</strong> respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s pelos alunos às questões 4.1,<br />

4.2 e 4.3.<br />

100%<br />

90%<br />

80%<br />

70%<br />

60%<br />

50%<br />

40%<br />

30%<br />

20%<br />

10%<br />

0%<br />

Percentagem <strong>de</strong> respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s à questão 4<br />

4.1 4.2 4.3<br />

Respon<strong>de</strong>u correctamente<br />

Respon<strong>de</strong>u erra<strong>da</strong>mente<br />

78


Questão 4.1<br />

Estu<strong>do</strong> sobre as concepções <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong> Capítulo 8<br />

A primeira <strong>da</strong>s três alíneas <strong>da</strong> questão 4. referia-se ao cardinal <strong>do</strong> conjunto vazio,<br />

ten<strong>do</strong> os alunos respondi<strong>do</strong> zero elementos em 96% <strong>do</strong>s casos. É <strong>de</strong> salientar que apenas<br />

um aluno respon<strong>de</strong>u erra<strong>da</strong>mente a esta questão, ten<strong>do</strong> afirma<strong>do</strong> que o conjunto possuía<br />

infinitos elementos.<br />

Questão 4.2.<br />

A esta alínea, 96% <strong>do</strong>s estu<strong>da</strong>ntes respon<strong>de</strong>ram que o conjunto { 1,<br />

2,<br />

5,<br />

8}<br />

− era<br />

forma<strong>do</strong> por quarto elementos e mais uma vez houve um aluno que consi<strong>de</strong>rou que o<br />

conjunto era infinito.<br />

Questão 4.3.<br />

Agora <strong>de</strong>cidimos analisar o tipo <strong>de</strong> respostas que os alunos <strong>da</strong>riam quanto ao número<br />

<strong>de</strong> elementos <strong>de</strong> um conjunto infinito. Pois bem, obteve-se três tipos <strong>de</strong> respostas:<br />

“infinito”, “finito” e “cinco”.<br />

Consi<strong>de</strong>rar que o conjunto com reticências é infinito foi o mais comum (88%). No<br />

entanto, é <strong>de</strong> salientar que um aluno respon<strong>de</strong>u que o conjunto é finito e <strong>do</strong>is alunos<br />

afirmaram que o número <strong>de</strong> elementos <strong>do</strong> conjunto { , 2,<br />

3,<br />

4,<br />

5,...<br />

}<br />

1 é cinco.<br />

79


Conclusão<br />

Conclusão<br />

Historicamente, os filósofos distinguiram <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> infinito: infinito potencial e<br />

infinito actual.<br />

A filosofia <strong>de</strong> Aristóteles e a sua expressão nos Elementos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s<br />

condicionaram as concepções <strong>de</strong> infinito até ao século XIX. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> infinito actual<br />

arrastava consigo contradições para as quais, até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século, não se encontrava<br />

solução; assim, o infinito só era aceite na sua forma potencial, sen<strong>do</strong> entendi<strong>do</strong> como<br />

um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensar e não como um objecto matemático.<br />

A partir <strong>de</strong> 1869, os trabalhos <strong>de</strong> Georg Cantor, iriam provocar gran<strong>de</strong>s mu<strong>da</strong>nças no<br />

que diz respeito às concepções <strong>de</strong> infinito.<br />

Já na actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o infinito actual é aceite pela maioria <strong>do</strong>s matemáticos.<br />

A história <strong>do</strong> infinito sempre foi controversa, geran<strong>do</strong> vários conflitos ao longo <strong>do</strong>s<br />

séculos. Des<strong>de</strong> o tempo <strong>da</strong> Grécia Antiga que este tema gerou confusão com as nossas<br />

intuições.<br />

Com o intuito <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r mais profun<strong>da</strong>mente as concepções <strong>de</strong> infinito <strong>do</strong>s alunos,<br />

realizou-se um questionário sobre o assunto em alunos <strong>de</strong> uma turma <strong>do</strong> 8.º ano <strong>de</strong><br />

escolari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No entanto, reconhecemos que a amostra <strong>de</strong> alunos com que trabalhamos está longe<br />

<strong>de</strong> ser representativa <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tratou-se <strong>de</strong> uma amostra por conveniência, pois por<br />

incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> horário, testes e trabalhos <strong>do</strong>s alunos, foi esta a organização<br />

possível. Logo o tamanho reduzi<strong>do</strong> e a natureza circunstancial <strong>da</strong> amostra não legitima<br />

generalizações.<br />

No que diz respeito às concepções acerca <strong>do</strong> infinito, as conclusões a que chegámos<br />

são essencialmente coinci<strong>de</strong>ntes com as <strong>da</strong> generali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s que se <strong>de</strong>bruçaram<br />

sobre esta problemática (em particular, Rock (1991), Tall (1981) e Tirosh (1994)). Não<br />

se afastam, igualmente, <strong>da</strong>s apresenta<strong>da</strong>s em Rodrigues (1994) num estu<strong>do</strong> envolven<strong>do</strong><br />

alunos <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores <strong>de</strong> <strong>Matemática</strong> no ano terminal <strong>de</strong> curso.<br />

80


Conclusão<br />

De um mo<strong>do</strong> geral os alunos admitem a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um infinito em potência, mas não<br />

em acto, e, quan<strong>do</strong> não rejeitam totalmente a sua possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ten<strong>de</strong>m a transpor para<br />

esse território os méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> comparação e medi<strong>da</strong> que lhes são familiares <strong>do</strong> caso<br />

finito.<br />

Enfim, intuitivamente, a palavra infinito tem um, ou vários, significa<strong>do</strong>s para ca<strong>da</strong><br />

um <strong>de</strong> nós.<br />

Des<strong>de</strong> sempre essa noção preocupa os homens. A partir <strong>da</strong> observação <strong>da</strong>s estrelas, o<br />

<strong>de</strong>correr <strong>do</strong> tempo, as experiências religiosas (crença na vi<strong>da</strong> eterna), o homem tem-se<br />

questiona<strong>do</strong> sobre algo maior <strong>do</strong> que a sua mente po<strong>de</strong> conceber e que ultrapassa os<br />

horizontes temporal e espacialmente limita<strong>do</strong>s <strong>da</strong> sua existência.<br />

A noção <strong>do</strong> ilimita<strong>do</strong>, <strong>do</strong> eterno, <strong>do</strong> que não acaba, <strong>do</strong> que está sempre para além <strong>do</strong><br />

concebível, em suma, <strong>do</strong> infinito, faz parte <strong>da</strong>s nossas experiências mais profun<strong>da</strong>s. Ao<br />

longo <strong>do</strong>s tempos, pintores, escultores e poetas têm procura<strong>do</strong> traduzi-la na expressão<br />

artística.<br />

Na pintura encontramo-la, por exemplo, na representação <strong>do</strong> horizonte em<br />

perspectiva, a partir <strong>do</strong> Renascimento, nas construções <strong>do</strong> Surrealismo nos princípios <strong>do</strong><br />

século XX e constitui, como vimos, uma preocupação constante na obra <strong>de</strong> M. C.<br />

Escher.<br />

Na literatura, os exemplos abun<strong>da</strong>m. Fiquemos apenas com o final <strong>de</strong> um soneto <strong>de</strong><br />

Vinicius <strong>de</strong> Moraes on<strong>de</strong> se joga com as palavras imortal e infinito:<br />

Eu possa me dizer <strong>do</strong> amor (que tive):<br />

Que não seja imortal, posto que é chama<br />

Mas que seja infinito enquanto dure.<br />

81


Ou <strong>de</strong> Alexandre O’neill,<br />

O infinito? Diz-lhe que entre.<br />

Faz bem ao infinito entre gente.<br />

Conclusão<br />

De facto, tal como na literatura e na expressão plástica, a representação <strong>do</strong> infinito<br />

em <strong>Matemática</strong> é um tópico apaixonante e igualmente belo. Porque, mesmo quan<strong>do</strong> não<br />

parece fácil apercebermo-nos disso, a <strong>Matemática</strong> também trabalha com i<strong>de</strong>ias.<br />

82


Bibliografia<br />

Bibliografia<br />

• Borges, Jorge Luís (1941). Ficções. Porto: Colecção Mil Folhas.<br />

• Boyer, Carl B. (1993). História <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>. São Paulo: Editora Edgard<br />

Blücher Lt<strong>da</strong>.<br />

• Caraça, Bento J. (1978). Conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> matemática. Lisboa.<br />

• Devlin, Keith (1994). <strong>Matemática</strong>: A ciência <strong>do</strong>s padrões. Porto: Porto Editora<br />

• Estra<strong>da</strong>, M. F. e outros (2000). História <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Aberta.<br />

• Eves, Howard (1997). Introdução à história <strong>da</strong> <strong>Matemática</strong>. 2ª edição.<br />

Campinas: Editora <strong>da</strong> Unicamp.<br />

• Gö<strong>de</strong>l, Kurt. (1979). O teorema <strong>de</strong> Gö<strong>de</strong>l e a hipótese <strong>do</strong> contínuo. Lisboa:<br />

Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian.<br />

• Guillen, Michael. (1987). Pontes para o infinito. O la<strong>do</strong> humano <strong>da</strong>s<br />

matemáticas. Lisboa: Gradiva.<br />

• Martinho, Maria H. S. S. (1996). O infinito através <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> M. C. Escher.<br />

Dissertação apresenta<strong>da</strong> para obtenção <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> Mestre em <strong>Matemática</strong>, área<br />

<strong>de</strong> especialização em Ensino. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong>.<br />

• Pinto, José J. M. S. (2000). Méto<strong>do</strong>s infinitesimais <strong>de</strong> análise matemática.<br />

Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian.<br />

• Rodrigues, Marina V. V. F. (1994). O conceito <strong>de</strong> infinito em futuros professores<br />

<strong>de</strong> <strong>Matemática</strong>. Dissertação apresenta<strong>da</strong> para obtenção <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> Mestre em<br />

Ciências <strong>de</strong> Educação, especiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Supervisão. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro.<br />

• Sampaio, Patrícia A. S. R. (2006). Concepções <strong>de</strong> infinito <strong>do</strong>s alunos <strong>do</strong> ensino<br />

secundário: contributo <strong>da</strong> webquest Escher e a procura <strong>do</strong> infinito. Tese <strong>de</strong><br />

mestra<strong>do</strong> em Educação. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong>.<br />

• Stewart, Ian (1996). Os problemas <strong>da</strong> matemática. Liboa: Gradiva.<br />

83


Bibliografia<br />

• Struik, Dirk J. (1997). História Concisa <strong>da</strong>s <strong>Matemática</strong>s. Lisboa: Gradiva.<br />

• Viegas, Maria T. V. M. (1996). <strong>Infinito</strong> e dimensão: uma revolução no século<br />

XIX. Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em Ensino <strong>de</strong> <strong>Matemática</strong>. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto.<br />

• Wal<strong>de</strong>gg, G. (1991). The conceptual evolution of actual mathematical infinity,<br />

Educacional Studies in Mathematics, 22.<br />

84


Anexos<br />

Anexos<br />

85


1. Lê com atenção o excerto <strong>do</strong> texto Parliamo tanto di me (cap.XVI) <strong>de</strong> César Zavattini sobre uma<br />

competição <strong>Matemática</strong>, à qual quem ganha é quem pronunciar o número mais eleva<strong>do</strong>.<br />

Meu pai e eu chegamos à Aca<strong>de</strong>mia quan<strong>do</strong> o presi<strong>de</strong>nte Maust iniciava a chama<strong>da</strong> <strong>do</strong>s participantes<br />

na prova mundial <strong>de</strong> matemática.<br />

- Um, <strong>do</strong>is, três, quatro, cinco, …<br />

Na sala ouvia-se apenas a voz <strong>do</strong>s concorrentes. (…) Às vinte e duas exactas, registou-se o primeiro<br />

golpe <strong>de</strong> teatro: o algebrista Pull concluiu:<br />

- Um bilião.<br />

(…) Explodiram aplausos na sala, imediatamente secun<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo presi<strong>de</strong>nte. Meu pai olhou em volta<br />

com superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> (…) e principiou:<br />

- Um bilião <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões<br />

<strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões…<br />

A multidão <strong>de</strong>lirava:<br />

- Viva, viva…<br />

- … <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões <strong>de</strong> biliões…<br />

(…) A sua voz atenuou-se a pouco e pouco e o último sopro <strong>de</strong> biliões brotou-lhe <strong>do</strong>s lábios como um<br />

suspiro, após o que se <strong>de</strong>ixou cair na ca<strong>de</strong>ira, exausto. O príncipe Otão aproximou-se, e preparava-se<br />

para lhe colocar a me<strong>da</strong>lha no peito, quan<strong>do</strong> Gianni Binacchi bra<strong>do</strong>u:<br />

- Mais um!<br />

A multidão precipitou-se no hemiciclo e ergueu este último em triunfo. Quan<strong>do</strong> regressámos a casa,<br />

minha mãe aguar<strong>da</strong>va-nos, ansiosa, à entra<strong>da</strong>. Chovia. Meu pai, mal <strong>de</strong>sceu a carruagem, lançou-se-lhe<br />

nos braços, soluçan<strong>do</strong>:<br />

- Se tivesse dito mais <strong>do</strong>is, ganhava eu.<br />

Será que este pai tem razão? Para ganhar bastaria ter dito mais <strong>do</strong>is? Quem po<strong>de</strong>rá ganhar este<br />

concurso?<br />

Escola B 2/3 <strong>de</strong> Vila Ver<strong>de</strong> – 345430<br />

Questionário sobre o conceito <strong>de</strong> <strong>Infinito</strong>


2. Como po<strong>de</strong>rias explicar a alguém o que é o infinito?<br />

3. Indica o valor lógico <strong>da</strong>s seguintes afirmações, assinalan<strong>do</strong> com um X a resposta correcta.<br />

1. To<strong>do</strong> o segmento <strong>de</strong> recta contém um conjunto infinito <strong>de</strong> pontos.<br />

2. To<strong>do</strong> o plano contém um número infinito <strong>de</strong> pontos.<br />

3. 0,0(9) > 0,0999999999999<br />

4. Entre quaisquer <strong>do</strong>is pontos <strong>de</strong> uma recta é sempre possível existir outro.<br />

5. To<strong>da</strong> a recta contém um conjunto infinito <strong>de</strong> pontos.<br />

6. 0,(7) – 0,777777 = 0<br />

4. Quantos elementos têm os seguintes conjuntos?<br />

4.1. { };<br />

4.2. {-1, 2, 5, 8};<br />

4.3. {1, 2, 3, 4, 5, …}.<br />

Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira Falsa


Trabalho realiza<strong>do</strong> por:<br />

Cristina Freitas<br />

Elsa Gonçalves<br />

Ema Silva

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!