Poesia moderna brasileira.pdf
Poesia moderna brasileira.pdf
Poesia moderna brasileira.pdf
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
LITERATURA<br />
PROFESSOR: Vinicius Rodrigues<br />
TURMA: 301<br />
POESIA MODERNA BRASILEIRA<br />
Poética<br />
Estou farto do lirismo comedido<br />
Do lirismo bem comportado<br />
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente<br />
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.<br />
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário<br />
o cunho vernáculo de um vocábulo.<br />
Abaixo os puristas<br />
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais<br />
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção<br />
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis<br />
Estou farto do lirismo namorador<br />
Político<br />
Raquítico<br />
Sifilítico<br />
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja<br />
fora de si mesmo<br />
De resto não é lirismo<br />
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante<br />
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes<br />
maneiras de agradar às mulheres, etc<br />
Quero antes o lirismo dos loucos<br />
O lirismo dos bêbedos<br />
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos<br />
O lirismo dos clowns de Shakespeare<br />
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.<br />
Manuel Bandeira<br />
O poema acima é, por vários motivos, um emblema da geração que começa a se criar na poesia <strong>brasileira</strong> a partir da<br />
influência da vanguarda modernista do início do século XX. Muitos dos artistas que se filiaram ao chamado Modernismo de 22<br />
acabaram por, no entanto, perceber que aquele vulto ideológico, na verdade, deveria fazer parte de algo maior, um estopim para a<br />
consolidação de uma literatura original e legitimamente <strong>moderna</strong> por desvincular-se de rótulos que os reduzissem em termos<br />
temáticos e de estilo, para que produzissem, enfim, boa poesia sem limitações: apegada tanto à tradição quanto aos modernos,<br />
investindo no diálogo com o prosaico e o coloquial, ao mesmo tempo em que também poderia estar ligada às influências mais<br />
eruditas, falando sobre brasilidade ou apenas o mais genérico sentimento humano, escrevendo sobre a própria subjetividade do<br />
poeta ou descolando o eu-lírico para se transformar num observador das mazelas sociais mais abrangentes.<br />
Manuel Bandeira (1886 – 1968): Manuel Bandeira é o primeiro paradigma de poeta contemporâneo que se estabelece na<br />
literatura <strong>brasileira</strong>. Num primeiro momento, sua obra está repleta de marcas que forçam os limites do verso livre (notável caso<br />
do “Poema tirado de uma notícia de jornal”), com poesias que extrapolam as marcas de anti-formalismo dos parnasianos – o<br />
principal alvo dos modernistas. No entanto, essa expressão radical do poeta farto do “lirismo que não seja libertação” (do texto<br />
referido acima) também dá lugar, quase que predominantemente, ao homem cansado e tomado pela doença que, ao mesmo<br />
tempo que o imita, dá importância à observação dos pequenos fatos líricos do dia-a-dia; na obra de Bandeira, figura a autoironia<br />
(inclusive presente na acepção que dava a si mesmo: “poeta menor”) de um homem que não faz dessa tristeza apenas<br />
tragédia. Além do poema abaixo, “Não sei dançar”, é notável o caso sempre citado de “Pneumotórax”.<br />
“Uns tomam éter, outros cocaína.<br />
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.<br />
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.<br />
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria (...)<br />
Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.<br />
Perdi a saúde também.<br />
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz band.<br />
(...)”
Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987): Na mesma linha de Bandeira, Drummond rompe os próprios princípios<br />
modernistas com os quais se alinhara na juventude para promover uma das obras mais coesas de toda a arte <strong>brasileira</strong> (quiçá da<br />
poesia mundial). O apego à infância, ao sentimento paterno e um não encontrar-se permanente no mundo são<br />
recorrências em sua obra, o que está muito bem representado pelo “Poema de Sete Faces”:<br />
“Quando nasci, um anjo torto<br />
desses que vivem na sombra<br />
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.<br />
As casas espiam os homens<br />
que correm atrás de mulheres.<br />
A tarde talvez fosse azul,<br />
não houvesse tantos desejos.<br />
O bonde passa cheio de pernas:<br />
pernas brancas pretas amarelas.<br />
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.<br />
Porém meus olhos<br />
não perguntam nada.<br />
O homem atrás do bigode<br />
é sério, simples e forte.<br />
Quase não conversa.<br />
Tem poucos, raros amigos<br />
o homem atrás dos óculos e do -bigode,<br />
Meu Deus, por que me abandonaste<br />
se sabias que eu não era Deus<br />
se sabias que eu era fraco.<br />
Mundo mundo vasto mundo,<br />
se eu me chamasse Raimundo<br />
seria uma rima, não seria uma solução.<br />
Mundo mundo vasto mundo,<br />
mais vasto é meu coração.<br />
Eu não devia te dizer<br />
mas essa lua<br />
mas esse conhaque<br />
botam a gente comovido como o diabo.”<br />
Já no livro A Rosa do Povo, Drummond revela uma faceta também muito marcante de sua obra, qual seja a poesia<br />
social, de caráter abertamente engajado e, nesse caso, de profunda relação com as preocupações motivadas pela II Guerra, que<br />
acompanhou a produção dos textos da obra. Este viés do autor, entretanto, jamais deixa de dialogar com sua visão<br />
desencantada que, aqui só ganha ares mais politizados e menos individuais, como em “A Flor e a Náusea”:<br />
“Preso à minha classe e a algumas<br />
roupas,<br />
Vou de branco pela rua cinzenta.<br />
Melancolias, mercadorias espreitamme.<br />
Devo seguir até o enjôo?<br />
Posso, sem armas, revoltar-me?<br />
Olhos sujos no relógio da torre:<br />
Não, o tempo não chegou de<br />
completa justiça.<br />
O tempo é ainda de fezes, maus<br />
poemas, alucinações e espera.<br />
O tempo pobre, o poeta pobre<br />
fundem-se no mesmo impasse.<br />
(...)<br />
Nenhuma carta escrita nem<br />
recebida.<br />
Todos os homens voltam para casa.<br />
Estão menos livres mas levam jornais<br />
e soletram o mundo, sabendo que o<br />
perdem.<br />
(...)<br />
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.<br />
Ao menino de 1918 chamavam<br />
anarquista.<br />
Porém meu ódio é o melhor de mim.<br />
Com ele me salvo<br />
e dou a poucos uma esperança<br />
mínima.<br />
Uma flor nasceu na rua!<br />
Passem de longe, bondes, ônibus, rio<br />
de aço do tráfego.<br />
Uma flor ainda desbotada<br />
ilude a polícia, rompe o asfalto.<br />
Façam completo silêncio, paralisem<br />
os negócios,<br />
garanto que uma flor nasceu.<br />
Sua cor não se percebe.<br />
Suas pétalas não se abrem.<br />
Seu nome não está nos livros.<br />
É feia. Mas é realmente uma flor.<br />
Sento-me no chão da capital do país<br />
às cinco horas da tarde<br />
e lentamente passo a mão nessa<br />
forma insegura.<br />
Do lado das montanhas, nuvens<br />
maciças avolumam-se.<br />
Pequenos pontos brancos movem-se<br />
no mar, galinhas em pânico.<br />
É feia. Mas é uma flor. Furou o<br />
asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”<br />
Cecília Meireles (1901-1964): “a poetisa do eterno instante” é a primeira figura feminina da literatura <strong>brasileira</strong> que se<br />
destaca num universo amplamente dominado pelo sexo masculino. Cecília notavelmente carrega para os seus escritos uma<br />
sensibilidade muito particular que, no entanto, não se limita a um recorte de gênero, ou seja, não pode só ser percebida pelo fato<br />
de estarmos trabalhando com uma mulher. A poética da autora lida com movimentos característicos da observação<br />
existencialista, ligada ao momento mais singular possível – o instante! Nesse sentido, a obra de Cecília Meireles opera<br />
demasiadamente com temas como a transitoriedade e a passagem do tempo, ainda que profundamente conectados com o<br />
seu presente; também por isso, carrega imagens fortes e de tom quase onírico (de sonho) e epifânico, o que remete muito<br />
à tradição simbolista do século XIX.<br />
Eu canto porque o instante existe<br />
e a minha vida está completa.<br />
Não sou alegre nem sou triste:<br />
sou poeta.<br />
Irmão das coisas fugidias,<br />
não sinto gozo nem tormento.<br />
Motivo<br />
Atravesso noites e dias<br />
no vento.<br />
Se desmorono ou se edifico,<br />
se permaneço ou me desfaço,<br />
- não sei, não sei. Não sei se fico<br />
ou passo.<br />
Sei que canto. E a canção é tudo.<br />
Tem sangue eterno a asa ritmada.<br />
E um dia sei que estarei mudo:<br />
- mais nada.
Devido às suas próprias experiências de perdas subseqüentes na família (muito bem referidas no poema “Caronte”),<br />
alguns versos de Cecília também demonstram uma fixação pela temática da passagem – tanto nas relações humanas<br />
(abandono, perda, solidão), como pela própria vida; a morte, no entanto, não adquire tom pessimista ou enfatiza seu sentido<br />
grotesco, percebemos, todavia, escritos dotados de musicalidade (outra forte influência do Simbolismo) e uma<br />
melancolia delicada.<br />
Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.<br />
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído.<br />
No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,<br />
modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.<br />
Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade<br />
da lua.<br />
Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras,<br />
Elegia<br />
e a voz dos pássaros e a das águas correr, - sem que a<br />
recolhessem teu ouvidos inertes.<br />
Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No<br />
teto?<br />
Inclinei-me sobre teu rosto, absoluta, como um espelho.<br />
E tristemente te procurava.<br />
Mas também isso foi inútil, como tudo mais.<br />
João Cabral de Melo Neto (1920-1999): sempre referido como um poeta disciplinado em seu fazer poético, um leitor da<br />
tradição da poesia ocidental, João Cabral, no entanto, é um autor extremamente moderno. Essa modernidade está profundamente<br />
presente na forma como utiliza a linguagem, apelando para a dureza e a secura nas palavras na produção de versos que<br />
talvez sejam os mais bem trabalhados ritmicamente na literatura <strong>brasileira</strong>. É a chamada “educação pela pedra” que<br />
o próprio autor refere no título de um de seu livros. Esse objetivo estético buscado pelo autor está presente em muitos de seus<br />
poemas que analisam o próprio fazer poético, como “A palo seco” que, já em seu título, apóia-se em uma expressão autoexplicativa,<br />
uma vez que remete a um estilo sonoro da música flamenca, cantado de forma “seca” e direta, sem acompanhamento:<br />
1.1. “Se diz a palo seco<br />
o cante sem guitarra;<br />
o cante sem; o cante;<br />
o cante sem mais nada;<br />
se diz a palo seco<br />
a esse cante despido:<br />
ao cante que se canta<br />
sob o silêncio a pino.<br />
1.2. O cante a palo seco<br />
é o cante mais só:<br />
é cantar num deserto<br />
devassado de sol;<br />
é o mesmo que cantar<br />
num deserto sem sombra<br />
em que a voz só dispõe<br />
do que ela mesma ponha.<br />
(...)<br />
4.3. A palo seco existem<br />
situações e objetos:<br />
Graciliano Ramos,<br />
desenho de arquiteto,<br />
as paredes caiadas,<br />
a elegância dos pregos,<br />
a cidade de Córdoba,<br />
o arame dos insetos.<br />
4.4. Eis uns poucos exemplos<br />
de ser a palo seco,<br />
dos quais se retirar<br />
higiene ou conselho:<br />
não de aceitar o seco<br />
por resignadamente,<br />
mas de empregar o seco<br />
porque é mais contundente.”<br />
A temática agreste passa a ser, então, uma escolha em que se fundem linguagem e ambientação na construção dos<br />
textos de João Cabral de Melo Neto. Nesse sentido, a análise de suas poesias também passa a ganhar uma relação de crítica<br />
social, mais bem observada no poema narrativo que o consagrou, Morte e Vida Severina (que se tornou peça musical nas mãos<br />
de Chico Buarque), mas também subjacente às imagens de outros trabalhos como “O Cão sem Plumas”:<br />
II. Paisagem do Capibaribe<br />
Entre a paisagem<br />
o rio fluía<br />
como uma espada de líquido espesso.<br />
Como um cão<br />
humilde e espesso.<br />
Entre a paisagem<br />
(fluía)<br />
de homens plantados na lama;<br />
de casas de lama<br />
plantadas em ilhas<br />
coaguladas na lama;<br />
paisagem de anfíbios<br />
O Cão sem Plumas<br />
de lama e lama. (...)<br />
Na água do rio,<br />
lentamente,<br />
se vão perdendo<br />
em lama; numa lama<br />
que pouco a pouco<br />
também não pode falar:<br />
que pouco a pouco<br />
ganha os gestos defuntos<br />
da lama;<br />
o sangue de goma,<br />
o olho paralítico<br />
da lama.<br />
Na paisagem do rio<br />
difícil é saber<br />
onde começa o rio;<br />
onde a lama<br />
começa do rio;<br />
onde a terra<br />
começa da lama;<br />
onde o homem,<br />
onde a pele<br />
começa da lama;<br />
onde começa o homem<br />
naquele homem.<br />
Difícil é saber<br />
se aquele homem<br />
já não está<br />
mais aquém do homem; (...)
Esta cova em que estás com palmos medida<br />
É a conta menor que tiraste em vida<br />
É de bom tamanho nem largo nem fundo<br />
É a parte que te cabe deste latifúndio<br />
Não é cova grande, é cova medida<br />
É a terra que querias ver dividida<br />
É uma cova grande pra teu pouco defunto<br />
Mas estás mais ancho que estavas no mundo<br />
É uma cova grande pra teu defunto parco<br />
Funeral de um Lavrador<br />
(fragmento de Morte e Vida Severina)<br />
Porém mais que no mundo te sentirás largo<br />
É uma cova grande pra tua carne pouca<br />
Mas a terra dada, não se abre a boca<br />
É a conta menor que tiraste em vida<br />
É a parte que te cabe deste latifúndio<br />
É a terra que querias ver dividida<br />
Estarás mais ancho que estavas no mundo<br />
Mas a terra dada, não se abre a boca.<br />
Mário Quintana (1906-1994): o gaúcho Mário Quintana é um poeta que emerge independente de qualquer filiação estética,<br />
está aquém de quaisquer influências mais palpáveis; conecta-se, contudo, à mesma tendência de Manuel Bandeira e Carlos<br />
Drummond de Andrade no que diz respeito à observação do cotidiano. Não há, contudo, como em Drummond, o apego às<br />
transformações sociais e questões políticas, mas algo que o situa como um “poeta da simplicidade”, onde ficam claras<br />
características como a ironia e o sarcasmo e um reducionismo muito próximo do estilo dos cronistas. Não por acaso,<br />
Quintana fez muitos experimentos em sua escrita ao imprimir musicalidade e noções de ritmo e rima próprias dos versos em textos<br />
em prosa, produzindo o que poderíamos chamar de poemas em prosa (como os do Caderno H: as máximas de tom<br />
enfático e “definitivo” – aspecto presente também em Espelho Mágico e Sapato Florido). A imagem de Quintana ficou<br />
associada, como o passar dos anos, às suas breves incursões no universo infantil e sua imagem de idoso fragilizado pelo tempo, o<br />
que, ligado ao seu estilo jocoso, só fez alimentar uma ideia de um autor singelo, sutil e irreverente; no entanto, há que se<br />
desmistificar essa questão: sua irreverência está associada a uma auto-ironia destrutiva que provoca uma tristeza latente<br />
em seus poemas, apenas disfarçada pelo cômico; as definições pontuais e reducionistas de seus textos seriam também,<br />
portanto, consequência dessa percepção desencantada.<br />
Rua dos Cataventos<br />
IV<br />
Eu nada entendo da questão social.<br />
Eu faço parte dela, simplesmente..<br />
E sei apenas do meu próprio mal,<br />
Que não é bem o mal de toda a gente,<br />
Nem é deste Planeta.. Por sinal<br />
Que o mundo se lhe mostra indiferente!<br />
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,<br />
É quem lê os meus versos afinal..<br />
E enquanto o mundo em torno se esbarronda,<br />
Vivo regendo estranhas contradanças<br />
No meu vago País de Trebizonda..<br />
Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,<br />
É lá que eu canto, numa eterna ronda,<br />
Nossos comuns desejos e esperanças!..<br />
O poeta canta a si mesmo<br />
O poeta canta a si mesmo<br />
porque nele é que os olhos das amadas<br />
tem brilho a um tempo inocente e perverso...<br />
O poeta canta a si mesmo<br />
porque num seu único verso<br />
pende – lúcida, amarga -<br />
uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...<br />
Porque o seu coração é uma porta batendo<br />
a todos os ventos do universo.<br />
Porque além de si mesmo ele não sabe nada<br />
ou que Deus por nascer está tentando agora<br />
ansiosamente respirar<br />
neste seu pobre ritmo disperso!<br />
O poeta canta a si mesmo<br />
porque de si mesmo é diverso.<br />
Vinicius de Moraes: (1913-1980): Vinicius foi um dos mais completos artistas do Brasil. Sua obra poética compreende dois<br />
grandes momentos que se distinguem e apontam para caminhos diferentes: a poesia dos anos de juventude e a<br />
fase em que, já consolidado e reconhecido, resolveu investir seu talento como compositor musical. Da primeira<br />
fase, ressalta-se o valor de sua relação com a tradição clássica e a influência da poesia simbolista francesa. Soube<br />
como poucos imprimir delicadeza à dureza de certas estruturas poéticas demasiadamente formais e presas como o soneto e deu<br />
nova dimensão ao uso desse tipo de poema. Dessa série fantástica de sonetos, destaca-se o belíssimo jogo de antíteses presente<br />
no “Soneto da Separação”:<br />
“De repente do riso fez-se o pranto<br />
Silencioso e branco como a bruma<br />
E das bocas unidas fez-se a espuma<br />
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.<br />
De repente da calma fez-se o vento<br />
Que dos olhos desfez a última chama<br />
E da paixão fez-se o pressentimento<br />
E do momento imóvel fez o drama.<br />
De repente, não mais que de repente<br />
Fez-se de triste o que se fez amante<br />
E de sozinho o que se fez contente
Fez-se do amigo próximo o distante<br />
Fez-se da vida uma aventura errante<br />
De repente, não mais que de repente.”<br />
Gradualmente, a formação de Vinicius como poeta desenvolveu-se e ramificou-se. A temática social presente em “A Rosa<br />
de Hiroshima” (poema musicado nos anos 70 pela banda Secos & Molhados) também tornou o autor reconhecido nesse<br />
segmento. Tanto por isso, quanto pelo jogo rítmico proposto, “Operário em Construção” é facilmente relacionado ao estilo de<br />
João Cabral de Melo Neto, por exemplo, além de ser um dos mais bem acabados poemas da literatura de língua portuguesa, em<br />
que fica clara a progressão da figura do título e a sensação de modificação, observada nas repetições que vão ganhando outros<br />
sentidos ao longo do texto:<br />
“Era ele que erguia casas<br />
Onde antes só havia chão.<br />
Como um pássaro sem<br />
asas<br />
Ele subia com as casas<br />
Que lhe brotavam da mão.<br />
Mas tudo desconhecia<br />
De sua grande missão:<br />
Não sabia, por exemplo<br />
Que a casa de um homem<br />
é um templo<br />
Um templo sem religião<br />
Como tampouco sabia<br />
Que a casa que ele fazia<br />
Sendo a sua liberdade<br />
Era a sua escravidão.<br />
Pensem nas crianças<br />
Mudas telepáticas<br />
Pensem nas meninas<br />
Cegas inexatas<br />
Pensem nas mulheres<br />
Rotas alteradas<br />
Pensem nas feridas<br />
Como rosas cálidas<br />
Mas, oh, não se esqueçam<br />
De fato, como podia<br />
Um operário em<br />
construção<br />
Compreender por que<br />
um tijolo<br />
Valia mais do que um<br />
pão?<br />
Tijolos ele empilhava<br />
Com pá, cimento e<br />
esquadria<br />
Quanto ao pão, ele o<br />
comia...<br />
Mas fosse comer tijolo!<br />
E assim o operário ia<br />
Com suor e com cimento<br />
Erguendo uma casa aqui<br />
Adiante um apartamento<br />
Além uma igreja, à<br />
Operário em Construção<br />
A Rosa de Hiroshima<br />
frente<br />
Um quartel e uma<br />
prisão:<br />
Prisão de que sofreria<br />
Não fosse,<br />
eventualmente<br />
Um operário em<br />
construção.<br />
Mas ele desconhecia<br />
Esse fato extraordinário:<br />
Que o operário faz a<br />
coisa<br />
E a coisa faz o operário.<br />
De forma que, certo dia<br />
À mesa, ao cortar o pão<br />
O operário foi tomado<br />
De uma súbita emoção<br />
Da rosa da rosa<br />
Da rosa de Hiroshima<br />
A rosa hereditária<br />
A rosa radioativa<br />
Estúpida e inválida<br />
A rosa com cirrose<br />
A anti-rosa atômica<br />
Sem cor sem perfume<br />
Sem rosa sem nada<br />
Ao constatar assombrado<br />
Que tudo naquela mesa<br />
– Garrafa, prato, facão –<br />
Era ele quem os fazia<br />
Ele, um humilde operário,<br />
Um operário em<br />
construção.<br />
Olhou em torno: gamela<br />
Banco, enxerga, caldeirão<br />
Vidro, parede, janela<br />
Casa, cidade, nação!<br />
Tudo, tudo o que existia<br />
Era ele quem o fazia<br />
Ele, um humilde operário<br />
Um operário que sabia<br />
Exercer a profissão<br />
(...)”<br />
A partir do momento em que produz a peça musical Orfeu da Conceição, a ligação de Vinicius com a canção popular<br />
passa a ser cada vez mais estreita. A própria peça já era um indício disso – ao fazer migrar um mito grego para o universo carioca<br />
e utilizando principalmente o samba-canção como mote musical, percebe-se que essa será uma busca constante na obra do<br />
autor: a união e o equilíbrio entre o erudito e o popular. E esta é uma questão fundamental entre praticamente<br />
todos os autores da modernidade <strong>brasileira</strong> na poesia – não visível nas aproximações entre erudito e popular, como<br />
o coloquial e formal, o simples e o complexo, etc, tirando, em grande parte o tom “sagrado” que mistificara a<br />
poesia no Brasil.<br />
Fora isso (e voltanto a Vinicius), temos nesse fato, a montagem de Orfeu, também, o primeiro encontro efetivo de Vinicius<br />
de Moraes e Tom Jobim (uma vez que este compôs as harmonias musicais para as letras do poeta para a peça); essa parceria viria<br />
a ser uma das mais importantes da história da música mundial quando acabaria por gerar, ao lado do papel fundamental de João<br />
Gilberto como músico e intérprete, a Bossa Nova, uma nova forma de criar musicalmente, totalmente original na sua fusão de<br />
jazz e samba. O papel de Vinicius aqui era, num primeiro momento, principalmente, o de traduzir em forma de poesia as<br />
expectativas dessa nova geração que não via mais nos derramamentos melancólicos do samba-canção e do bolero da época as<br />
justificativas para seus anseios; era o momento de falar com otimismo, fruto de uma geração que presenciava um crescimento<br />
econônimo significativo em seu país.<br />
A objetividade e a simplicidade da poesia de Vinicius como compositor musical desvirtuam bastante da linha<br />
que o poeta seguira em sua obra anteriormente, mas dão lugar, entretanto, a um segmento genial de sua poesia, recheado de<br />
preciosidades que deram um outro sentido à Canção como modelo literário. Como músico, inclusive (e não só como letrista),<br />
Vinicius adquire status próprio e sua parceria com Tom Jobim acaba por ser mais uma dentre tantas que se distinguem<br />
ligeiramente uma da outra, como as feitas com Carlos Lyra, Toquinho e, principalmente, Baden Powell, com quem acabaria por<br />
produzir a mais significativa ramificação da Bossa Nova: os Afro-sambas. Seguem abaixo alguns exemplos que compõem o<br />
cancioneiro do “poetinha”:
Chega de Saudade<br />
Vai minha tristeza,<br />
E diz a ela que sem ela não pode ser,<br />
Diz-lhe numa prece<br />
Que ela regresse, porque eu não<br />
posso mais sofrer.<br />
Chega de saudade<br />
A realidade é que sem ela não há<br />
paz, não há beleza<br />
É só tristeza e a melancolia<br />
Que não sai de mim, não sai de mim,<br />
Canto de Ossanha<br />
O homem que diz "dou"<br />
Não dá!<br />
Porque quem dá mesmo<br />
Não diz!<br />
O homem que diz "vou"<br />
Não vai!<br />
Porque quando foi<br />
Já não quis!<br />
O homem que diz "sou"<br />
Não é!<br />
Porque quem é mesmo "é"<br />
Não sou!<br />
O homem que diz "tou"<br />
Não tá<br />
Porque ninguém tá quando quer<br />
Coitado do homem que cai<br />
No canto de Ossanha traidor!<br />
Samba da Benção<br />
É melhor ser alegre que ser triste<br />
Alegria é a melhor coisa que existe<br />
É assim como a luz no coração<br />
Mas pra fazer um samba com beleza<br />
É preciso um bocado de tristeza<br />
É preciso um bocado de tristeza<br />
Senão, não se faz um samba não<br />
Fazer samba não é contar piada<br />
E quem faz samba assim não é de<br />
não sai<br />
Mas se ela voltar, se ela voltar<br />
Que coisa linda, que coisa louca<br />
Pois há menos peixinhos a nadar no<br />
mar<br />
Do que os beijinhos que eu darei na<br />
sua boca,<br />
dentro dos meus braços<br />
Coitado do homem que vai<br />
Atrás de mandinga de amor...<br />
Vai! Vai! Vai! Vai!<br />
Não vou...<br />
Que eu não sou ninguém de ir<br />
Em conversa de esquecer<br />
A tristeza de um amor<br />
Que passou<br />
Não! Eu só vou se for prá ver<br />
Uma estrela aparecer<br />
Na manhã de um novo amor...<br />
Amigo sinhô<br />
Saravá<br />
Xangô me mandou lhe dizer<br />
nada<br />
O bom samba é uma forma de<br />
oração<br />
Porque o samba é a tristeza que<br />
balança<br />
E a tristeza tem sempre uma<br />
esperança<br />
A tristeza tem sempre uma esperança<br />
De um dia não ser mais triste não<br />
Os abraços hão de ser milhões de<br />
abraços<br />
Apertado assim, colado assim, calado<br />
assim<br />
Abraços e beijinhos, e carinhos sem<br />
ter fim<br />
Que é pra acabar com esse negócio<br />
de você viver sem mim.<br />
(...)<br />
Vinicius de Moraes e Tom Jobim<br />
Se é canto de Ossanha<br />
Não vá!<br />
Que muito vai se arrepender<br />
Pergunte pr'o seu Orixá<br />
O amor só é bom se doer<br />
Pergunte pr'o seu Orixá<br />
O amor só é bom se doer...<br />
Vai! Vai! Vai! Vai!<br />
Amar!<br />
Vai! Vai! Vai! Vai!<br />
Sofrer!<br />
Vai! Vai! Vai! Vai!<br />
Chorar!<br />
Vai! Vai! Vai! Vai!<br />
Dizer!...<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />
ANDRADE, Carlos Drummond. Alguma <strong>Poesia</strong>. Rio de Janeiro: Record, 2001.<br />
ANDRADE, Carlos Drummond. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.<br />
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.<br />
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004.<br />
GOUVEIA, Margarida Maia. Cecília Meireles: uma poética do “eterno instante”. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002.<br />
MEIRELES, Cecília. Flor de Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.<br />
MELO NETO, João Cabral de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.<br />
MORAES, Vinicius de. <strong>Poesia</strong> Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.<br />
QUINTANA, Mário. Quintana de Bolso. Porto Alegre: L&PM, 1997.<br />
Vinicius de Moraes e Baden Powell<br />
Ponha um pouco de amor numa<br />
cadência<br />
E vai ver que ninguém no mundo<br />
vence<br />
A beleza que tem um samba, não<br />
Porque o samba nasceu lá na Bahia<br />
E se hoje ele é branco na poesia<br />
Se hoje ele é branco na poesia<br />
Ele é negro demais no coração<br />
Vinicius de Moraes e Baden Powell