Na capa: Cocytus-Margens, 2000-2002 © José Fabião Uma estação no inferno As obras apresentadas (desenhos a grafite e pinturas sobre papel) foram realizadas entre 2000 e 2003. Não há entre os vários núcleos seleccionados relações directas. Porém, é possível dar um sentido à sua associação num mesmo espaço-percurso-tempo. Um pequeno grupo de desenhos (a grafite) revela-nos apenas frágeis linhas dispostas oblíqua ou verticalmente. Por vezes ganham inesperadas densidades, outras vezes ainda, cruzam-se. Mas nunca surge dessas imagens qualquer padrão de malha contínua. A artista, reduzida a mínimos meios de expressão, forçando-se à observação do que lhe estava mais próximo, representa o imediato mas não o evidente. Concentra a sua atenção nas linhas de fissura e relevo, de enrugamento e fractura que se modelam e desenham em pequenos toros que à sua frente via arder. Memórias da história do fazer artístico transformaram este exercício de desenho à vista num exercício de ilusões técnicas: o lápis alterna entre a mão direita e a esquerda, evolui em sacões, repete-se sobre si mesmo, imita os efeitos das “frottages”… Entrando no jogo daquele que toma a parte pelo todo, <strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> transforma o microcosmos da lenha no mundo de uma floresta, e essa floresta, abandonando a escassa profundidade permitada pelo espaço de clausura da lareira, torna-se imagem de perspectivas urbanas — mas a fórmula modernista que parece reviver nestas perspectivas é uma falsa promessa. Um outro grupo de trabalhos, mais escasso ainda, mostra-nos desenhos (a grafite) de alguns corações. O jogo entre imagem naturalista e síntese gráfica, a simbologia e jogos de linguagem escrita desenvolvido em torno da palavra-conceito “coração”, são evidentes. Os desenhos trocam ou acumulam ou complexificam significados (“corações ao alto” e “corações ao baixo”, por exemplo) que nos encaminham, enfim, para o núcleo seguinte. Este derradeiro núcleo de desenhos integra um ainda mais vasto conjunto de trabalhos que a artista desenvolve em todas as direcções e recorrendo a uma multiplicidade de meios de expressão (pintura, escultura, fotografia intervencionada, etc.) e de materiais (metais como o chumbo, o ferro ou o cobre, papel, vidro, madeira, etc.). Obtém assim um universo denso escassamente mostrado e conhecido e que merece ser entendido em conjunto, numa rede de leituras cruzadas — espécie de visão totalizadora do (seu) mundo (interior). Nas obras que agora se apresentam, a relação com o estatuto tradicional do desenho altera-se. Sobre o suporte do papel há uma acumulação de matérias que ilide a dominante da grafite ou das linhas coloridas, o gesto isolado da mão ou a definição de uma forma. A ambiguidade visual e semântica oferecida pela pintura está mais presente. Também a relação com a realidade exterior se altera. A imagem criada não representa (em nenhum grau de simplificação ou abstracção formal) o que alguma vez se viu — antes representa sentimentos e razões. Cada mancha de cor é sinal de uma dor, cada palavra escrita e solta na página revive uma Dói-me tudo, 2003 memória, cada risco, golpe, forma revelada ou escondida vale por um modelo de vida. A dimensão significante desses desenhos é determinada por uma única razão: a do sentimento. O sentimento move a artista como força motriz: água ou vento ou máquina de músculos e tendões e ossos locomotores ou motor de explosão, enfim. Rejeitando os evidentes e claros rios que delimitam e reverdecem o Paraíso bíblico, <strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> conduz-nos aos subterrâneos rios dos Infernos, reino de Hades e Perséfone, onde penam e erram as almas condenadas. Onde as saudades intensas e a tristeza profunda, a dor insuportável e a angústia mais extrema imperam — até o esquecimento finalmente se impor. É como se não houvesse esperança nem em renascer, nem em alcançar os Campos Elísios, reservados aos heróis. E é como se esse destino e essa desesperança se manifestassem em vida. E é como se essa vida fosse a da própria autora, assim feita protagonista de cada uma das estações definidas para os Infernos pela tradição clássica e dantesca. Um momento que formalmente se isola neste grupo temático é o dos desenhos onde <strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> projecta, como uma sombra negra, a silhueta da barca de Caronte, barqueiro do Aqueronte, primeiro dos rios dos Infernos. Ao invés dos outros são desenhos de uma lisura sem falha e absoluta simplicidade — tão absoluta como a inevitabilidade do destino a que conduz. Mas regressemos ao conjunto maioritário. Há desenhos que levam os nomes de alguns dos rios infernais (Aqueronte, Cocito, Estige, Piriflegetonte…), que se acrescentam de palavras-chave e/ou pequenos grafitos. <strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> estabelece uma associação empírica mas não aleatória, instável mas não contraditória, entre as cores e formas dominantes de cada tema (aqui: azul e negro, grelha, etc.), os
Sem título, 2001