17.04.2013 Views

Desenhos Ana Isabel Miranda Rodrigues 3 Abr – 30 Jun - Culturgest

Desenhos Ana Isabel Miranda Rodrigues 3 Abr – 30 Jun - Culturgest

Desenhos Ana Isabel Miranda Rodrigues 3 Abr – 30 Jun - Culturgest

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

materiais de cada trabalho (na escultura, o ferro, o vidro, o<br />

chumbo, o cobre, etc.) e os atributos de cada um dos rios.<br />

As palavras inscritas, esses desenhos no desenho ou na matéria<br />

pictórica do desenho, definem áreas temáticas diferenciadas<br />

a partir da disparidade de elementos quotidianos que mais<br />

lhe importam: sofás, casas, gatos, cadeiras, tapetes, espelhos,<br />

camas, copos, mesas, figuras de casais enlaçados, nus adâmicos<br />

que recordam o paraíso no inferno, são desencadeadores de<br />

memórias de vida, emblemas orientadores, luzes ou sombras<br />

sinalizadoras; são palavras e imagens que enunciam sentimentos.<br />

E os sentimentos que desencadeiam o seu processo criativo<br />

desempenham nas obras o mesmo papel que os materiais, as<br />

cores ou as soluções técnicas.<br />

As complexas soluções compositivas que a artista desenvolve<br />

nas pequenas dimensões de cada uma destas obras<br />

organizam-se a partir de um restrito número de elementos<br />

sábia e sensivelmente mobilizados. Os resultados formais enriquecem-se<br />

em virtude da manipulação ilusionista e preciosa<br />

dos recursos plásticos. Porém, não se trata nem de contenção<br />

nem de academismo, nem de decorativismo nem de previsibilidade.<br />

Há uma constante experimental, um risco assumido<br />

em permanência. Vejamos quais: a acumulação e desbaste de<br />

gestos, as formas e matérias expressos como palimpsesto, a<br />

nebulosa de sinais oferecidos sobre a superfície, capaz de cegar<br />

a leitura, a simplicidade negada aos aparentemente repetitivos<br />

“pouchoirs” utilizados, a perspectiva fragmentar e armadilhada<br />

das grelhas compositivas explicitadas, a agregação de matéria<br />

(colagem, fita-cola) ou a negação ritual da imagem e da matéria<br />

(cortes do suporte por gestos de esfaqueamento).<br />

Assim, o que temos é um esboço de texto visual convencionado<br />

mas impreciso, um diário de sentimentos cuja expressão<br />

escapa às regras e recursos da linguagem verbal. Estes desenhos<br />

são como uma colecção de mapas poéticos, plantas subjectivas<br />

traçadas a partir de/ou como preparação para viagens interiores<br />

— são um campo de exposição de sentimentos e emoções.<br />

<strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> assemelha-se, nesta viagem a que dá forma artística,<br />

a uma Penélope encarregue de fazer os trabalhos de Ulisses.<br />

O desenho e a pintura (noutras séries também a escultura e a<br />

fotografia) substituem a tecelagem mas, como ela, desfazem-se<br />

e refazem-se dando-se sempre como inacabados.<br />

O confronto com o Inferno, onde poucos mortais desceram<br />

e de onde só por favor divino puderam regressar, é um desafio<br />

conscientemente procurado por <strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> que nele entra e<br />

dele sai sacrificando ritualmente aos mortos como Ulisses o<br />

fez. Mas, ao invés de Ulisses, a sua viagem é feita de esperas, é<br />

um pensamento viajante saindo de um corpo em ascese.<br />

<strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> concretiza um trabalho sobre a memória própria<br />

e a ficção dessa memória, onde é impossível isolar imagens e<br />

pormenores, que só se entendem como sínteses abruptas, contracções<br />

brutais, associações poéticas.<br />

Há nestes trabalhos uma experiência de exílio, de isolamento,<br />

de solidão. Os rios dos Infernos estão em simetria invertida<br />

em relação aos rios do Paraíso e são evocados por <strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong><br />

precisamente como espelho de ausência daqueles. Sob a angústia<br />

lancinante dos rios do Inferno, persiste a recordação<br />

melancólica dos rios da Babilónia.<br />

Lagos-Lisboa, 29 de Fevereiro/8 de Março de 2004<br />

João Lima Pinharanda<br />

Sem título, 2001<br />

Sem título, 2001

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!