Desenhos Ana Isabel Miranda Rodrigues 3 Abr – 30 Jun - Culturgest
Desenhos Ana Isabel Miranda Rodrigues 3 Abr – 30 Jun - Culturgest
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materiais de cada trabalho (na escultura, o ferro, o vidro, o<br />
chumbo, o cobre, etc.) e os atributos de cada um dos rios.<br />
As palavras inscritas, esses desenhos no desenho ou na matéria<br />
pictórica do desenho, definem áreas temáticas diferenciadas<br />
a partir da disparidade de elementos quotidianos que mais<br />
lhe importam: sofás, casas, gatos, cadeiras, tapetes, espelhos,<br />
camas, copos, mesas, figuras de casais enlaçados, nus adâmicos<br />
que recordam o paraíso no inferno, são desencadeadores de<br />
memórias de vida, emblemas orientadores, luzes ou sombras<br />
sinalizadoras; são palavras e imagens que enunciam sentimentos.<br />
E os sentimentos que desencadeiam o seu processo criativo<br />
desempenham nas obras o mesmo papel que os materiais, as<br />
cores ou as soluções técnicas.<br />
As complexas soluções compositivas que a artista desenvolve<br />
nas pequenas dimensões de cada uma destas obras<br />
organizam-se a partir de um restrito número de elementos<br />
sábia e sensivelmente mobilizados. Os resultados formais enriquecem-se<br />
em virtude da manipulação ilusionista e preciosa<br />
dos recursos plásticos. Porém, não se trata nem de contenção<br />
nem de academismo, nem de decorativismo nem de previsibilidade.<br />
Há uma constante experimental, um risco assumido<br />
em permanência. Vejamos quais: a acumulação e desbaste de<br />
gestos, as formas e matérias expressos como palimpsesto, a<br />
nebulosa de sinais oferecidos sobre a superfície, capaz de cegar<br />
a leitura, a simplicidade negada aos aparentemente repetitivos<br />
“pouchoirs” utilizados, a perspectiva fragmentar e armadilhada<br />
das grelhas compositivas explicitadas, a agregação de matéria<br />
(colagem, fita-cola) ou a negação ritual da imagem e da matéria<br />
(cortes do suporte por gestos de esfaqueamento).<br />
Assim, o que temos é um esboço de texto visual convencionado<br />
mas impreciso, um diário de sentimentos cuja expressão<br />
escapa às regras e recursos da linguagem verbal. Estes desenhos<br />
são como uma colecção de mapas poéticos, plantas subjectivas<br />
traçadas a partir de/ou como preparação para viagens interiores<br />
— são um campo de exposição de sentimentos e emoções.<br />
<strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> assemelha-se, nesta viagem a que dá forma artística,<br />
a uma Penélope encarregue de fazer os trabalhos de Ulisses.<br />
O desenho e a pintura (noutras séries também a escultura e a<br />
fotografia) substituem a tecelagem mas, como ela, desfazem-se<br />
e refazem-se dando-se sempre como inacabados.<br />
O confronto com o Inferno, onde poucos mortais desceram<br />
e de onde só por favor divino puderam regressar, é um desafio<br />
conscientemente procurado por <strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> que nele entra e<br />
dele sai sacrificando ritualmente aos mortos como Ulisses o<br />
fez. Mas, ao invés de Ulisses, a sua viagem é feita de esperas, é<br />
um pensamento viajante saindo de um corpo em ascese.<br />
<strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong> concretiza um trabalho sobre a memória própria<br />
e a ficção dessa memória, onde é impossível isolar imagens e<br />
pormenores, que só se entendem como sínteses abruptas, contracções<br />
brutais, associações poéticas.<br />
Há nestes trabalhos uma experiência de exílio, de isolamento,<br />
de solidão. Os rios dos Infernos estão em simetria invertida<br />
em relação aos rios do Paraíso e são evocados por <strong>Ana</strong> <strong>Isabel</strong><br />
precisamente como espelho de ausência daqueles. Sob a angústia<br />
lancinante dos rios do Inferno, persiste a recordação<br />
melancólica dos rios da Babilónia.<br />
Lagos-Lisboa, 29 de Fevereiro/8 de Março de 2004<br />
João Lima Pinharanda<br />
Sem título, 2001<br />
Sem título, 2001