17.04.2013 Views

“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, de Jean Baptiste Debret

“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, de Jean Baptiste Debret

“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, de Jean Baptiste Debret

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

REPRESENTAÇÕES DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA NA VIAGEM<br />

PITORESCA E HISTÓRICA AO BRASIL, DE JEAN BAPTISTE DEBRET<br />

1<br />

Emilia Maria Ferreira da Silva – UEFS<br />

emiliamfs@terra.com.br<br />

Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre como a Família Real Portuguesa foi<br />

representada na Viagem <strong>pitoresca</strong> e <strong>histórica</strong> <strong>ao</strong> Brasil, <strong>de</strong> <strong>Jean</strong> <strong>Baptiste</strong> <strong>Debret</strong>. Preten<strong>de</strong>mos<br />

i<strong>de</strong>ntificar, a partir <strong>de</strong> três imagens iconográficas e trechos <strong>de</strong> suas respectivas <strong>de</strong>scrições textuais<br />

elaboradas pelo autor, o olhar do viajante sobre a presença da corte no Brasil e a aceitação <strong>de</strong>sta<br />

pela socieda<strong>de</strong> brasileira. Acreditamos que o pintor revelar seu comprometimento com o Estado<br />

português colocando muitas das suas estampas a serviço da imagem que o império buscava<br />

divulgar e cristalizar, qual seja, a <strong>de</strong> um país civilizado.<br />

É corrente que a Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil, <strong>de</strong> <strong>Jean</strong> <strong>Baptiste</strong> <strong>Debret</strong>, é<br />

uma importante fonte e objeto <strong>de</strong> estudo para a produção historiográfica. Esse artigo tem<br />

como objetivo, refletir sobre representações da Família Real Portuguesa Portuguesa<br />

presentes na Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil, <strong>de</strong> <strong>Jean</strong> <strong>Baptiste</strong> <strong>Debret</strong> 1 . Esta obra<br />

foi publicada pela primeira vez na França, entre 1841 e 1839, como resultado das<br />

informações coletadas <strong>de</strong> pessoas e outros autores e <strong>de</strong> observações feitas em primeira mão<br />

pelo autor, durante o período em que esteve no Brasil, <strong>de</strong> 1816 á 1831. A obra é constituída<br />

<strong>de</strong> 156 pranchas, acompanhadas <strong>de</strong> textos <strong>de</strong>scritivos para que, como afirma <strong>Debret</strong>, “pena<br />

e pincel suprissem reciprocamente sua insuficiência mútua”. 2<br />

Buscamos i<strong>de</strong>ntificar, a partir da iconografia e das <strong>de</strong>scrições textuais que<br />

acompanham as estampas, o olhar do viajante sobre a Família Real Portuguesa, não tendo a<br />

preocupação central <strong>de</strong> realizar uma verificação da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do artista em relação a um<br />

suposto real, mas <strong>de</strong> perceber essas imagens e textos prioritariamente enquanto construções<br />

discursivas 3 . O conceito <strong>de</strong> representação que utilizamos é formulado por Roger Chartier<br />

como” modos como uma <strong>de</strong>terminada realida<strong>de</strong> é pensada, construída, dada a ler”.<br />

Para falarmos da Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil é imprescindível<br />

consi<strong>de</strong>rar alguns elementos da biografia <strong>de</strong> <strong>Debret</strong> e da chegada da Missão Artística<br />

Francesa em terras brasileira, que contribuíram na elaboração da obra.<br />

Na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX configura-se na Europa o império<br />

napoleônico,que teve uma influência <strong>de</strong>terminante sobre todos os setores e segmentos<br />

sociais, não ficando a produção artística <strong>de</strong> fora <strong>de</strong>sse processo. Ao lado do barroco estilo<br />

1 DEBRET, <strong>Jean</strong> <strong>Baptiste</strong>. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil. Tradução e notas <strong>de</strong> Sérgio Millet /<br />

apresentação <strong>de</strong> Lygia da Fonseca F. da Cunha. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Limitada; São Paulo: Ed.<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1989. (Coleção Reconquista do Brasil. 3ª Série especial vols. 10, 11 e 12).<br />

2 DEBRET, <strong>Jean</strong> <strong>Baptiste</strong>. Viagem Pitoresca e Histórica..., 1989, tomo I, p. 24.<br />

3 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel 1988, p. 23.


que predominou na Europa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVII até o final do século XVIII, foi<br />

<strong>de</strong>stacando-se progressivamente o neoclássico e consolidando-se como arte oficial francesa<br />

quando Napoleão Bonaparte assumiu o po<strong>de</strong>r no início do século XIX, expressando-se na<br />

construção dos templos, arcos e nas encomendas, <strong>ao</strong>s pintores, <strong>de</strong> quadros que registrassem<br />

os feitos políticos e guerreiros do imperador. O estilo que se impunha primava entre outras<br />

características, pelo predomínio da cor e do tema histórico, entendido como os feitos<br />

políticos e guerreiros do imperador. Sugerindo ser esse o estilo que retratava a “ ética da<br />

Revolução” como uma nova interpretação e significado, entendido como um classicismo<br />

revolucionário. A arte segundo Arnold Hauser passa a ser concebida como uma “profissão<br />

<strong>de</strong> fé política”,voltada para ser mais um meio <strong>de</strong> sustentação das estruturas sociais. 4<br />

É bem conhecido que, com a expansão napoleônica, ocorreu a invasão <strong>de</strong> Portugal<br />

pelas tropas francesas, levando o monarca português D. João VI a refugiar-se na colônia<br />

brasileira. Enquanto D. João VI permaneceu no Brasil (1808-1821) várias foram as<br />

medidas que apontam para a tentativa <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar a colônia <strong>ao</strong>s padrões europeus 5 . Entre<br />

elas, estava o incentivo e ações políticas no sentido <strong>de</strong> selecionar e contratar profissionais<br />

capazes <strong>de</strong> fundar uma escola ou instituto teórico-prático <strong>de</strong> aprendizagem artística e<br />

técnico-profissional, a Imperial Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Belas Artes, que foi fundada em 1829. 6 É<br />

nesse contexto <strong>de</strong>sse esforço que chegou <strong>ao</strong> Brasil a Missão Artística Francesa composta<br />

pelos irmãos Taunay, um paisagista e outro estatuário; <strong>Jean</strong> B.<strong>Debret</strong>, pintor <strong>de</strong> história,<br />

Grandyean <strong>de</strong> Montigny, arquiteto; Simão <strong>de</strong> Pradier, abridor; Francisco Ovi<strong>de</strong>, professor<br />

<strong>de</strong> mecânica; Joaquim Lebreton, literato e membro do Instituto da França <strong>de</strong>ntre outros, no<br />

total cerca <strong>de</strong> quarenta pessoas consi<strong>de</strong>rando as famílias que acompanhavam os<br />

profissionais 7 .<br />

Com a <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Napoleão em 1815 e a volta <strong>ao</strong> po<strong>de</strong>r dos Bourbons, a situação<br />

dos artistas neoclássicos ligados <strong>ao</strong> ex-imperador ficou extremamente ameaçada. David<br />

exila-se na Bélgica, um exílio <strong>de</strong> acordo com Naves inevitável uma vez que “ ... participara<br />

ativamente da revolução, tendo inclusive votado a execução <strong>de</strong> Luís XVI...” 8 ; <strong>Debret</strong>,<br />

Grandjean <strong>de</strong> Montigny e outros, a convite <strong>de</strong> Joaquim Lebreton, aceitam compor a Missão<br />

Artística Francesa. Além da insegurança <strong>de</strong> permanecer na França após a queda <strong>de</strong><br />

4<br />

HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, tomo II, 1980-1982, p.<br />

796-797.<br />

5<br />

SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A fundação <strong>de</strong> uma Europa possível. In: Anais do Seminário<br />

Internacional D. João VI: Um Rei Aclamado na América. Rio <strong>de</strong> Janeiro : Museu Histórico Nacional, 2000.<br />

6<br />

TAUNAY, Afonso <strong>de</strong> E. A Missão Artística <strong>de</strong> 1816. Brasília: Ed. Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, 1983, p. 256.<br />

7<br />

SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Sol do Brasil: Nicolas-AntoineTaunay e as <strong>de</strong>sventuras dos artistas<br />

franceses na corte <strong>de</strong> D. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.197.<br />

8<br />

NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora Ática ,1996, p. 58.<br />

2


Napoleão, a morte o único filho <strong>de</strong> <strong>Debret</strong> teria sido a outra gran<strong>de</strong> razão da sua saída do<br />

país.<br />

É importante situar ainda que brevemente, os fatores que favoreceram às origens e a<br />

vinda da Missão. Com base no estudo <strong>de</strong> Naves, sua organização oi resultante <strong>de</strong> uma<br />

combinação <strong>de</strong> fatores, sendo a princípio iniciativa dos artistas franceses isolados no novo<br />

governo, e contando posteriormente com a aceitação das autorida<strong>de</strong>s portuguesas. Embora<br />

o governo português no Brasil tenha <strong>de</strong>monstrado todo interesse em “acolher” os viajantes,<br />

até a “a paz européia <strong>de</strong> 1815”, com a <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Napoleão foi <strong>de</strong>senvolvida, através da<br />

Intendência Geral da Polícia, uma política rigorosa <strong>de</strong> intolerância em relação à literatura<br />

francesa e <strong>ao</strong>s franceses, para impedir a penetração, em terras brasileiras, os princípios do<br />

século das luzes. 9 Segundo Taunay, o Marquês <strong>de</strong> Marialva, embaixador extr<strong>ao</strong>rdinário <strong>de</strong><br />

Portugal junto à Corte <strong>de</strong> Luís XVIII e Estreiro-mor, <strong>ao</strong> ser comunicado por Lebreton, em<br />

agosto <strong>de</strong> 1815, que artistas <strong>de</strong>sejavam estabelecer-se no Brasil, respon<strong>de</strong>u que “... seriam<br />

todos bem acolhidos; e alcançariam terras <strong>de</strong> sesmarias. Não estava, porém, autorizado a<br />

lhes pagar a passagem...” 10 Ainda segundo esse autor, em ofício datado <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro<br />

<strong>de</strong> 1815, o Marquês <strong>de</strong> Aguiar, encarregado <strong>de</strong> negócios, respon<strong>de</strong>u a Lebreton sobre o<br />

projeto que “ S.A.R. o príncipe regente viu o projeto referente <strong>ao</strong>s artistas e artífices com<br />

especial agrado” 11 .<br />

Quanto <strong>ao</strong> governo francês, Taunay aponta que o governo <strong>de</strong> Luís XVIII não se<br />

envolveu no caso. Entretanto, segundo esse autor, o Cônsul-Geral Maler, representante da<br />

França no Brasil, teria perseguido Lebreton sem tréguas, oficiando <strong>ao</strong> Duque <strong>de</strong> Richelieu<br />

a chegada da Missão e suas impressões sobre a recepção por parte do governo português.<br />

Em resposta a um dos ofícios enviados por Maler respon<strong>de</strong>u Richelieu, ministro <strong>de</strong><br />

Estrangeiros da Restauração: “... durante a sua estada no Rio, <strong>de</strong>veis, Sr., consi<strong>de</strong>rá-los<br />

como franceses e conce<strong>de</strong>r-lhes toda a assistência a que tem direito qualquer súdito <strong>de</strong> sua<br />

Majesta<strong>de</strong>...” 12 . <strong>Debret</strong> afirma que a missão foi organizada por solicitação do governo<br />

português, não se referindo em nenhum momento à situação política da França 13 .<br />

9 Sobre a ingerência do governo <strong>de</strong> D. João VI na entrada <strong>de</strong> estrangeiros ver, entre outros estudos, NEVES,<br />

Lúcia Maria Bastos P. “O privado e o público nas relações culturais do Brasil com a França e Espanha no<br />

governo Joanino ( 1808-1821) .IN: Anais do Seminário Internacional D. João VI: Um Rei Aclamado na<br />

América. Rio <strong>de</strong> Janeiro : Museu Histórico Nacional, 2000, p. 189-200.<br />

10 TAUNAY, Afonso <strong>de</strong> E. A Missão Artística <strong>de</strong> 1816. Brasília: Ed. Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, 1983, p.14.<br />

11 TAUNAY, Afonso <strong>de</strong> E. A Missão Artística ..., 1983, p.17<br />

12 TAUNAY, Afonso <strong>de</strong> E. A Missão Artística ..., 1983, p. 21-27.<br />

13 DEBRET, <strong>Jean</strong> <strong>Baptiste</strong>. Viagem Pitoresca e Histórica...,1989, tomo I, p. 23.<br />

3


Antes <strong>de</strong> apresentarmos três representações iconográficas e trechos textuais sobre a<br />

Família Real Portuguesa 14 , elaboradas por <strong>Debret</strong>, consi<strong>de</strong>ramos relevante pontuar alguns<br />

aspectos da sua biografia que sugerem seu comprometimento artístico político. Filho <strong>de</strong><br />

um escrivão do parlamento francês e primo <strong>de</strong> David, o famoso chefe da escola<br />

neoclássica, <strong>Debret</strong> sempre esteve ligado <strong>ao</strong> Estado Francês, não só em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> sua<br />

filiação, mas sobretudo <strong>de</strong>vido a sua formação artística, que lhe proporcionava realizar<br />

trabalhos voltados a homenagear a nação e a corte francesa, consi<strong>de</strong>rados por Rodrigo<br />

Naves, <strong>de</strong> excelente qualida<strong>de</strong> para o estilo da época. 15<br />

É lícita a afirmativa <strong>de</strong> Iara Lis Carvalho, <strong>de</strong> que <strong>Debret</strong> bem sabia que a arte<br />

po<strong>de</strong>ria enobrecer a política. Afinal, ele tinha trabalhado e convivido com David na<br />

produção <strong>de</strong> quadros históricos do império napoleônico, sem contar que um <strong>de</strong> seus<br />

melhores amigos, Nicolas Antoine Taunay, produziu cinqüenta quadros napoleônicos e<br />

revolucionários 16 .<br />

Quando a Missão Artística chegou <strong>ao</strong> Brasil, ficou estabelecido por <strong>de</strong>creto real que<br />

os membros receberiam pensão anual pelos serviços prestados, sendo a <strong>de</strong> <strong>Debret</strong> <strong>de</strong><br />

oitocentos mil réis, que correspondiam a cinco mil francos pelo câmbio da época. Ou seja,<br />

equivalia a aproximadamente o preço <strong>de</strong> uma pipa <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte (62$000réis) principal<br />

mercadoria para escambo; ou ainda meta<strong>de</strong> do valor <strong>de</strong> uma mulher escrava com ofício em<br />

Salvador, no período <strong>de</strong> 1811 a 1830 (145$110 réis). 17<br />

Como já afirmamos, enquanto esteve na França <strong>Debret</strong> passou boa parte <strong>de</strong> sua vida<br />

fazendo trabalhos sob encomenda para o governo napoleônico. No Brasil, <strong>Debret</strong><br />

continuou a ser um pintor ligado <strong>ao</strong> governo. Sua principal meta, sua “missão” era fundar a<br />

Aca<strong>de</strong>mia, consi<strong>de</strong>rada como importante meio <strong>de</strong> civilizar um povo consi<strong>de</strong>rado pelo o<br />

autor “... ainda na infância”. 18<br />

A própria organização da obra aponta para uma visão evolucionista e eurocentrica<br />

<strong>de</strong> <strong>Debret</strong>, assim como para a divulgação e <strong>de</strong>fesa do Estado, quando afirma na introdução<br />

do tomo III que após ter <strong>de</strong>scrito no tomo I a situação dos índios brasileiros e no tomo II<br />

14 Como já afirmamos anteriormente a obra é composta <strong>de</strong> aproximadamente 156 pranchas. No tomo III,<br />

composto basicamente <strong>de</strong> 53 estampas <strong>de</strong> natureza política e religiosa., 25 <strong>de</strong>stas são <strong>de</strong> caráter político, ou<br />

seja, 43% do total.<br />

15 NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora Ática ,1996, p.47.<br />

16 SOUZA, IARA Lis Carvalho. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo – 1780-1831. São<br />

Paulo:Fundação Editora da UNESP,1999, p.56.<br />

17 FLORENTINO, Manolo . Em costas negras. Uma história do tráfico <strong>de</strong> escravos entre a África e o Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,p.125-169. ANDRANDE, Maria José <strong>de</strong> Souza. A mão <strong>de</strong><br />

obra escrava em Salvador (1811-1860). São Paulo: Corrupio, Brasília, DF: CNPQ, 1988,p. 175.<br />

18 DEBRET, <strong>Jean</strong> B. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil...., 1989, tomo I, p.24.<br />

4


“... <strong>de</strong>talhes mais raros e quase ignorados da ativida<strong>de</strong> do povo civilizado do Brasil, sujeito<br />

<strong>ao</strong> jugo português...” 19 ; se ocupará finalmente da<br />

... história política e religiosa sujeita <strong>ao</strong> reflexo das combinações<br />

diplomáticas da Europa, continuamente agitada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 89, constitui um<br />

quadro interessante, rico <strong>de</strong> episódios colhidos in loco e cujo<br />

enca<strong>de</strong>amento contribuirá para estabelecer os traços já quase apagados<br />

dos primeiros passos que trouxeram à civilização esse povo recémregenerado<br />

20 .<br />

Curioso que a reflexão <strong>de</strong> <strong>Debret</strong> a respeito da regeneração do povo constitui-se em<br />

um paradoxo se pensarmos na França pós Napoleão, com o retorno dos Bourbons e como<br />

já apontamos a complicada e perigosa situação dos artistas neoclássicos. Para ele com a<br />

sua chegada o rei <strong>de</strong> Portugal<br />

... acordou o brasileiro <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> três séculos <strong>de</strong> apatia, quando fugindo<br />

da Europa, veio erguer seu trono à sombra tranqüila das palmeiras,<br />

embora abandonasse mais tar<strong>de</strong> essa obra <strong>de</strong> regeneração, inspirada pela<br />

necessida<strong>de</strong>. Mas a civilização germinara, e o Brasil, compreen<strong>de</strong>ndo seu<br />

futuro, conservou o filho primogênito do inconstante protetor,<br />

transformando-o em imperador in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte cuja autorida<strong>de</strong> soberana<br />

anulou <strong>de</strong>finitivamente as pretensões <strong>de</strong> Portugal sobre as antigas<br />

colônias da América... 21<br />

É possível perceber um <strong>Debret</strong> re<strong>de</strong>finindo e reelaborando o estilo e a “profissão”,<br />

“pintor <strong>de</strong> história” para a nova realida<strong>de</strong>. Como observa Carelli, “É indubitável que o<br />

choque da nova realida<strong>de</strong> transfigurou a produção <strong>de</strong> <strong>Debret</strong>...”. 22 De acordo com Naves, “<br />

<strong>Jean</strong> <strong>Baptiste</strong> <strong>Debret</strong> foi o primeiro pintor estrangeiro a se dar conta do que havia <strong>de</strong><br />

postiço e enganoso em simplesmente aplicar um sistema formal preestabelecido – o<br />

neoclassicismo, por exemplo- à realida<strong>de</strong> brasileira 23 .<br />

Além da pensão paga pelo governo outro meio <strong>de</strong> sobrevivência <strong>de</strong> <strong>Debret</strong> foram as<br />

encomendas e aulas particulares e principalmente os trabalhos que fez sob encomenda para<br />

a família real portuguesa. Como o “Retrato do Rei D. João VI e do Imperador Dom Pedro<br />

I” (Prancha 9), em tamanho natural e em trajes majestáticos.<br />

19<br />

DEBRET, <strong>Jean</strong> B. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil...., 1989, tomo III, p. 13<br />

20<br />

DEBRET, <strong>Jean</strong> B. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil...., 1989, tomo III, p. 13<br />

21<br />

DEBRET, <strong>Jean</strong> B. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil...., 1989, tomo III, p. 13.<br />

22<br />

CARELLI, M. Culturas Cruzadas: intercâmbios entre França e Brasil. Tradução Nicia Adan Bonatti.<br />

Campinas, São Paulo: Papirus, 1994.<br />

23<br />

NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil:.., 1996, p.44.<br />

5


Prancha 9: “Retrato do Rei Dom João VI e do Imperador Dom Pedro I”, Viagem Pitoresca<br />

e Histórica, tomo III.<br />

É interessante algumas trechos da <strong>de</strong>scrição da prancha, primeiro referindo à Dom<br />

João VI e <strong>de</strong>pois à D. Pedro I on<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scrição das características físicas dos soberanos<br />

quase que remetem às suas prováveis competências como governantes.Não <strong>de</strong>vemos nos<br />

esquecer que o que foi encomendado foram os quadros e não as <strong>de</strong>scrições dos mesmos. O<br />

que efetivamente, o que é mais curioso ainda, só foi feito em solo francês.<br />

Esse soberano só usou o seu uniforme real <strong>de</strong> gala no dia da aclamação,<br />

ainda assim sem a coroa, em virtu<strong>de</strong> do costume estabelecido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

morte do Rei Dom Sebastião, na África, em 1580. Dom Sebastião,dizem,<br />

foi levado <strong>ao</strong> céu com a coroa à cabeça e <strong>de</strong>ve trazê-la novamente a<br />

Lisboa.<br />

O rei, bom cavaleiro na mocida<strong>de</strong>, tornando-se obeso o no Brasil,<br />

abandonou a equitação. Era <strong>de</strong> temperamento sanguíneo e <strong>de</strong> pequena<br />

estatura; tinha as coxas e as pernas extremamente gordas e as mãos e os<br />

pés muitos pequenos. 24<br />

Quanto a D. Pedro <strong>Debret</strong> afirma que:<br />

24 DEBRET, <strong>Jean</strong> B. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil...., 1989, tomo III, p.152.<br />

6


O imperador usava seu gran<strong>de</strong> uniforme anualmente na abertura das<br />

Câmaras, e, <strong>de</strong> acordo com o cerimonial adotado, pronunciava seus<br />

discursos com a coroa na cabeça; tanto na entrada como na saída<br />

comportavam certo aparato.<br />

Criou a Or<strong>de</strong>m do Cruzeiro no dia da sua coroação; mais tar<strong>de</strong>, a do<br />

Dragão, unicamente usada por sua família, e, por ocasião <strong>de</strong> seu segundo<br />

casamento, a da Rosa, que mal teve tempo <strong>de</strong> ser posta em vigor.<br />

Dom Pedro I, forte e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> estatura, era <strong>de</strong> um temperamento bilioso<br />

e sanguíneo; já em fins <strong>de</strong> sua estada no Brasil começava a engordar<br />

excessivamente, principalmente nas coxas e nas pernas, espécie <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>formida<strong>de</strong> comum <strong>ao</strong>s <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes da família da casa <strong>de</strong> Bragança.<br />

Mas, sempre espartilhado com arte, era <strong>de</strong> aparência nobre e<br />

extr<strong>ao</strong>rdinariamente asseado.<br />

(...)<br />

Deu o exemplo das privações durante a sua regência e no começo <strong>de</strong> seu<br />

reinado, tempo difíceis em que revelou todas a s qualida<strong>de</strong>s dignas <strong>de</strong> um<br />

soberano regenerador, conservando todavia uma paixão marcada pelo<br />

fausto exterior do trono.... 25<br />

Um outro quadro sob encomenda da corte que escolhemos para este trabalho é a<br />

‘Aclamação do Rei Dom João VI’ (Prancha 37) , representando a união das províncias do<br />

Brasil <strong>ao</strong> reino Portugal.<br />

Prancha 37: “Aclamação do Rei Dom João VI”, Viagem Pitoresca e Histórica, tomo III.<br />

25 DEBRET, <strong>Jean</strong> B. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil...., 1989, tomo III, p. 153.<br />

7


Na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> <strong>Debret</strong> e na representação iconográfica é possível perceber que o<br />

autor <strong>de</strong>stina o espaço privado prioritariamente para a elite, nobreza e o clero (grupos<br />

sociais dominantes na socieda<strong>de</strong> da época) como o lugar a<strong>de</strong>quado para que estes grupos<br />

manifestassem o apoio e reconhecimento <strong>ao</strong> novo soberano e a nova condição da então<br />

colônia.<br />

Escolhi o momento em que o primeiro-ministro terminou a leitura do<br />

voto formulado pelas províncias do Brasil, chamando <strong>ao</strong> trono do novo<br />

reino unido o príncipe regente <strong>de</strong> Portugal. O rei acaba <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r:<br />

“Aceito”, e o entusiasmo geral dos espectadores se manifesta pela<br />

aclamação “Viva el-rei, nosso senhor” e o gesto português <strong>de</strong> agitar o<br />

lenço.(...)<br />

Tal foi a cerimônia que consagrou a resolução real transportando para o<br />

Brasil a se<strong>de</strong> da realeza portuguesa... 26<br />

E na tentativa <strong>de</strong> salvar do esquecimento feito tão solene, <strong>Debret</strong> representou a<br />

possível aceitação dos “brasileiros”, do “povo” <strong>ao</strong> novo rei e a nova condição do Brasil, no<br />

espaço público através da prancha “Vista do Largo do Palácio no dia da aclamação <strong>de</strong><br />

Dom João VI” (Prancha 38).<br />

26 DEBRET, <strong>Jean</strong> B. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil...., 1989, tomo III, p.231.<br />

8


Prancha 38: “Vista do Largo do Palácio no dia da aclamação <strong>de</strong> Dom João VI”, Viagem<br />

Pitoresca e Histórica, tomo III.<br />

O momento escolhido é do da partida do rei, em que aparece <strong>ao</strong><br />

balcão central do edifício para mostrar-se <strong>ao</strong> povo e receber as<br />

primeiras homenagens, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer para a Capela Real a fim <strong>de</strong><br />

assistir <strong>ao</strong> Te Deum com que termina a cerimônia da aclamação... 27<br />

Ao retratar tanto representações do espaço privado quanto do espaço público da<br />

aclamação do novo rei, simbolicamente <strong>Debret</strong> sugere portanto, a aceitação e exaltação da<br />

socieda<strong>de</strong> civil, política e religiosa à casa dos Braganças. É relevante ressaltar que esses<br />

quadros encomendados pela família real, funcionavam como divulgadores da imagem que<br />

o império queira imortalizar ou<br />

cristalizar 28 .<br />

Para finalizar gostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar que já é corrente a utilização dos relatos <strong>de</strong><br />

viagens enquanto fonte. E como todo e qualquer fonte muito ainda se tem a investigar nas<br />

obras dos viajantes e em especial na Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil, <strong>de</strong> <strong>Jean</strong> B.<br />

<strong>Debret</strong>. Diversos aspectos da socieda<strong>de</strong> brasileira do período foram contemplados pelo<br />

autor: festa, hábitos alimentares, religião, vestuário, ativida<strong>de</strong>s econômicas, entre outras.<br />

Referências bibliográficas:<br />

ANDRANDE, Maria José <strong>de</strong> Souza. A mão <strong>de</strong> obra escrava em Salvador (1811-1860).<br />

São Paulo: Corrupio, Brasília, DF: CNPQ, 1988.<br />

CARELLI, M. Culturas Cruzadas: intercâmbios entre França e Brasil. Tradução Nicia<br />

Adan Bonatti. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994.<br />

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel<br />

1988.<br />

DEBRET, <strong>Jean</strong> <strong>Baptiste</strong>. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil. Tradução e notas <strong>de</strong><br />

Sérgio Millet. Apresentação <strong>de</strong> Lygia da Fonseca F. da Cunha. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia<br />

27 DEBRET, <strong>Jean</strong> B. Viagem Pitoresca e Histórica <strong>ao</strong> Brasil...., 1989, tomo III, p. 232<br />

28 A respeito da construção da imagem do império são importantes, entre outros estudos, SCHWRACZ, Lilia<br />

Mortiz. As barbas do imperador. D. Pedro II, um monarca no trópicos.São Paulo: Companhia das<br />

Letras,1999; MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio. Civilização e po<strong>de</strong>r no Brasil às vésperas da<br />

in<strong>de</strong>pendência (1808 a 1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; e SANTOS, Afonso Carlos Marques<br />

dos Santos. “A fundação <strong>de</strong> uma Europa possível” In: Anais Seminário Internacional D.João VI: Um rei na<br />

América. Rio <strong>de</strong> Janeiro : Museu Histórico Nacional, 2000, p.189-200.<br />

9


Limitada; São Paulo: Ed. Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1989. (Coleção Reconquista do<br />

Brasil. 3ª Série especial vols. 10, 11 e 12).<br />

FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. Uma história do tráfico <strong>de</strong> escravos entre a<br />

África e o Rio <strong>de</strong> Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.<br />

HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da arte. São Paulo: Editora Mestre Jou,<br />

tomo II, 1980-1982.<br />

MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio. Civilização e po<strong>de</strong>r no Brasil às vésperas da<br />

in<strong>de</strong>pendência (1808 a 1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.<br />

NAVES, Rodrigo. A Forma Difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora<br />

Ática ,1996.<br />

NEVES, Lúcia Maria Bastos P. O privado e o público nas relações culturais do Brasil com<br />

a França e Espanha no governo Joanino (1808-1821). Em: Anais do Seminário<br />

Internacional D. João VI: Um Rei Aclamado na América. Rio <strong>de</strong> Janeiro : Museu Histórico<br />

Nacional, 2000, p. 189-200.<br />

SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A fundação <strong>de</strong> uma Europa possível. Em: Anais do<br />

Seminário Internacional D. João VI: Um Rei Aclamado na América. Rio <strong>de</strong> Janeiro :<br />

Museu Histórico Nacional, 2000.<br />

SANTOS, Afonso Carlos Marques dos Santos. A fundação <strong>de</strong> uma Europa possível. Em:<br />

Anais Seminário Internacional D. João VI: Um rei na América. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Museu<br />

Histórico Nacional, 2000, p.189-200.<br />

SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Sol do Brasil: Nicolas-AntoineTaunay e as <strong>de</strong>sventuras dos<br />

artistas franceses na corte <strong>de</strong> D. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.<br />

SCHWRACZ, Lilia Mortiz. As barbas do imperador. D. Pedro II, um monarca no<br />

trópicos.São Paulo: Companhia das Letras,1999.<br />

SOUZA, IARA Lis Carvalho. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo –<br />

1780-1831. São Paulo:Fundação Editora da UNESP,1999.<br />

TAUNAY, Afonso <strong>de</strong> E. A Missão Artística <strong>de</strong> 1816. Brasília: Editora Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Brasília, 1983<br />

10

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!