11.07.2015 Views

FILOSOFIA SOCIAL, CIÊNCIAS SOCIAIS - Universidade Estadual ...

FILOSOFIA SOCIAL, CIÊNCIAS SOCIAIS - Universidade Estadual ...

FILOSOFIA SOCIAL, CIÊNCIAS SOCIAIS - Universidade Estadual ...

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

José Crisóstomo de Souza79<strong>FILOSOFIA</strong> <strong>SOCIAL</strong>, CIÊNCIAS<strong>SOCIAIS</strong>:Teoria, Progresso Cumulativo eVerificação Empírica no Conhecimento daSociedade.José Crisóstomo de SouzaDepartamento de Filosofia - FFCH - UFBa.jcsd@e-net.com.brResumo: Num passado recente, sob o assédio doexperimentalismo neo-positivista nessa área, chegou-se a considerarque a filosofia social e política seria inteiramente substituída por umaverdadeira ciência positiva, de base empírica, da sociedade. Mas sãovários os argumentos que descartam, em princípio, essa possibilidade.No caso destacado da obra de Thomas Kuhn, a própria imagem, quea ciência natural experimentalista faz de si mesma, fica questionada,como também a possibilidade de um contraste absoluto entre ciênciasocial e filosofia. Contra Karl Popper e desenvolvido pela argumentaçãoinovadora de Sheldon Wolin, o pensamento de Kuhn ofereceinteressantes argumentos – particularmente contra as pretensõesde testabilidade empírica e de progresso cumulativo na teoria – quecontribuem para recolocar de forma fecunda a questão das relaçõesentre filosofia social e ciência social, bem como entre ciência efilosofia, em geral.Palavras-chaves: Filosofia social - Ciência social - Teoria.Abstract: Few decades ago, under the assault of neopositivistexperimentalism in this field, many came to considerthat social and political philosophy would be entirely replacedby a true positive, empiricist, science of society. However,there are several arguments that discard this possibility fromthe start. In the particular case of the work of Thomas Kuhn,Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


80 José Crisóstomo de Souzathe very image that experimental natural science has of itselfis challenged, as well as the possibility of an absolute contrastbetween social science and philosophy. Against Karl Popper,and developed by the innovative argumentation of SheldonWolin, Kuhn’s work offers interesting arguments – particularlyagainst claims of empirical testability and cumulative progressin the field of theory – that contribute in a productive way tothe reapraisal of the relations between social philosophy andsocial science, as well as between science and philosophy ingeneral.Key-words: Social philosophy – Social science – Theory .1 Sociologia Científica “Empirista” versus FilosofiaSocial “Especulativa”Não é de hoje que o status de conhecimento da filosofiasocial e política põe-se como objeto de controvérsia. Algumasdécadas atrás - em Oxford, que é talvez a sua sede para omundo de língua inglesa -, essa filosofia chegou mesmo a serconsiderada como um domínio morto ou de importância muitodiminuída 1 . A confiança e as esperanças voltavam - se,então, para as ciências do social e do político a se desenvolverematé mesmo contra a filosofia, ou pelo menos sem ela, esegundo o modelo experimentalista (empirista, behaviorista)das ciências naturais - segundo o modelo “positivista” poderíamostambém dizer. As ciências sociais estariam atrasadas emrelação às ciências naturais justamente por não se haveremainda emancipado do controle da filosofia e mesmo do seucontágio. A emancipação da ciência (natural), do controle dafilosofia, por volta do século XVII, é que teria permitido osgrandes saltos que, desde então, foram dados pelo conhecimentoda natureza; e uma revolução semelhante já se teria há algumtempo iniciado nas ciências sociais, às quais urgiria agoraseguir os mesmos métodos da ciência natural, de preferênciaaos da filosofia, para que progressos dignos do nome venhama se realizar 2 .Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza81Uma inspiração humeana - de David Hume (1711-1776). poderia, segundo Peter Winch, ser percebida por trás dessacrítica à filosofia, crítica que a vê praticamente como pseudociênciaa-priori. É Hume quem diz que,com respeito à natureza dasprovas que nos certificam sobre questões de fato, o queinteressa é atingir o conhecimento da causa e do efeito. Paraem seguida acrescentar:Ouso afirmar, numa proposição geralque não admite exceção, que o conhecimento daquela relação(de causa e efeito) não é, em nenhum caso, alcançado porraciocínios a-priori, mas origina-se inteiramente da experiência,quando descobrimos que alguns objetos particulares estãopermanentemente ligados uns aos outros. 2 Esse argumentohumeano, entretanto, viria sendo utilizado de forma imprópria,para Winch, como um ataque a qualquer especulação filosófica,a qual, ao contrário, seria, na verdade, inteiramente legítima.A forma imprópria do argumento sendo a seguinte: Novasdescobertas sobre matérias reais de fato só podem ser estabelecidaspor métodos experimentais; nenhum processo de pensamentoa-priori seria suficiente para isso. Visto que é a ciência queusa métodos experimentais, enquanto a filosofia é puramentea-priori, segue-se que a investigação da realidade deve serdeixada (apenas) à ciência - o que Winch contesta 4 .Naquela época, o debate concentrou-se, nos EstadosUnidos, sobre as questões metodológicas, na linha de que -como afirma B. Barber - não somente a ciência social épossível, mas, inclusive, é essencialmente a mesma daciência natural 5 . O conhecimento social e político confiáveldeveria ser, assim, adquirido através dos procedimentos científicosclássicos, que compreendem antes de mais nada a observação,a coleta de dados, a classificação e a verificação. Dessamaneira, a ciência social e política viria finalmente gozar dosdois principais benefícios da ciência que são a precisão e acumulatividade. Sheldon Wolin encontra esses dois aspectoscentrais - para ele, relacionados entre si em uma medidaconsiderável - na proposta dos advogados de um ciênciasocial e política “experimentalista” 6 :Em primeiro lugar, osque têm essa posição buscam desenvolver uma teoria científicaque sirva de guia para a investigação empírica. Como acreditam,Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


82 José Crisóstomo de Souzapor exemplo, Lasswell e Kaplan, a teorização, mesmo acercada política, não deve ser confundida com a especulaçãometafísica em termos de abstrações irremediavelmente afastadasda observação e do controle empíricos 7 . Em segundo lugar,tal teoria deveria justamente permitir um conhecimento cumulativo,o que não tem sido o caso da teoria social e política tradicional.A tais argumentos, os defensores desta última, ou seja, dachamada filosofia política e social, têm dado uma respostaconsiderada por Wolin como muito fraca. De acordo comeles, já não é mais possível produzir uma filosofia social ou"teoria política" original. Ou, como argumentam outras vezes,cada época ou sociedade tem-se preocupado com seus problemassociais e políticos peculiares, e, portanto, o conhecimentosocial e político, diferente da ciência natural, tem sido esempre será local e restrito."Teoria política tradicional” é o termo usado por SheldonWolin para se referir aos mais importantes representantesda filosofia política e social na tradição ocidental, como Platão,Aristóteles, Hobbes, Locke, Rousseau ou Hegel.Marx ocupariaaí, segundo ele, uma posição intermediária entre aqueles e osdesenvolvimentos científicos mais recentes 8 . Os advogadosde uma ciência social e político experimental, diz Wolin,afirmam que, porque a teoria tradicional sempre se preocupoucom questões “metafísicas” e “normativas”, ela foi incapaz deproduzir um corpo de conhecimento cumulativo. Por enfrentarquestões acerca da natureza da justiça, da autoridade, dosdireitos e da igualdade, e por formular essas questões emtermos de modelos projetivos de sociedade, a teoria tradicional– cheia de asserções que são, em princípio, intestáveis -definiu-se por um tipo de investigação na qual o progresso éimpossível. O conhecimento social e político deveria, então,passar a basear-se na norma segundo a qual uma proposiçãoé verdadeira ou falsa conforme o grau em que ela e o mundoreal correspondem 97 . Se uma teoria deve produzir conhecimentopolítico e social confiáveis, ela deve poder submeter suasasserções a uma verificação sistemática. No passado, ofracasso em desenvolver métodos de verificação empírica, eem formular proposições que, em princípio, fossem testáveis,Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza83teria privado a teoria tradicional dos meios para resolverasserções conflitantes sobre a política e a sociedade, e paraestabelecer uma fundação segura para o conhecimento, sobrea qual uma pesquisa bem sucedida pudesse ser construída.Veremos mais adiante, de forma mais detalhada, como Wolinvai contrapor-se a essa posição, com uma solução bastanteoriginal - inspirada na filosofia da ciência de Thomas Kuhn.John Plamenatz sintetiza a posição dos “experimentalistas”basicamente nos mesmos termos que Wolin. O problema -diz ele, apresentando o ponto de vista dos críticos da filosofia- não é “ter teorias acerca de como essa ou aquela forma degoverno funciona". Podem-se, inclusive, elaborar teorias acercado governo “em geral”, daquilo que é comum a todas asformas de governo, pois essas seriam teorias “que podem serverificadas”, e, como tal, representam tentativas mais oumenos bem sucedidas de ampliar nosso conhecimento. Oproblema estaria nas teorias acerca do que deve visar ogoverno, e de como ele deve ser organizado. Essas teoriasprescritivas - que não poderiam ter base empírica - "nãoampliam o conhecimento”, mas antes apenas expressampreferências, pretendendo ao mesmo tempo fazer mais doque isso. Obviamente, expressando preferências, elas sópodem variar de época para época, de país para país, departido para partido, de pessoa para pessoa 10 .Os filósofos sociais e políticos, então, têm produzidoconceitos que se colocam como um obstáculo à explicaçãocientífica dos fatos, porque sua função real - embora nãoadmitida – é justificar o que eles resolvem achar desejável.Como conseqüência, a grande diversidade de teorias acerca,por exemplo, do que deve visar o governo, ou de como ogoverno deveria ser organizado, têm-nas desacreditado. Plamenatz,porém, considerando que a filosofia política não produz omesmo tipo de conhecimento que a ciência política, e admitindoque talvez ela tenha até mesmo atrapalhado a ciência, vaiapesar de tudo replicar que a ciência social e política, bemcomo a filosofia reduzida à análise lingüística, dos neopositivistas,não ocupam todo o espaço do conhecimentoIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


84 José Crisóstomo de Souzateórico sobre esses assuntos. E, principalmente, não satisfazema demanda que a teoria política e a filosofia prática e socialtêm preenchido, demanda essa que se refere, por exemplo,à definição dos propósitos do governo, bem como à formulaçãode valores e aspirações, e à orientação da ação. Tais saberes,ademais, não são discursos quaisquer sobre essa questões,mas apresentam-se como sistemáticos, auto-consistentes erealistas 11 .Na sua resposta aos cientificistas, Peter Winch vaidesenvolver pontos diferentes dos de Plamentatz. Suaargumentação levanta, ao seu modo, algumas das questõesque também Thomas Kuhn vai depois abordar, com é o casoda relação mundo-linguagem (que veremos mais adiante).Para Winch, antes de mais nada, “o problema central, isto é,o de definir a natureza dos fenômenos sociais em geral,pertence à filosofia. Por outro lado, muitas espécies de atividadessociais são necessariamente ininteligíveis para o simplesobservador de fora, que não sabe o que significa estar envolvidonelas. O que implica em que a atitude de imparcialidade edistância, que os cientistas sociais “experimentalistas” julgamser exigência da objetividade do método científico, pode sero seu maior erro. Entre as principais diferenças nas espéciesde “compreensão da realidade” buscadas respectivamentepelo filósofo e pelo cientista, Winch destaca que, enquanto osegundo investiga a natureza pelas causas e efeitos de coisase processos particulares e reais, o filósofo lida com a próprianatureza da realidade como tal e em geral 12 . De fato, comomostra, por exemplo, Burnet, o sentido com o qual o filósofoindaga “O que é real?” envolve o problema da relação dohomem com a realidade, o que nos levaria para além daciência 13 . Temos que perguntar se a mente humana pode ounão ter algum contato com a realidade e, se puder, quediferença isto trará para a sua vida . Ora, prossegue Winch,pensar que essa indagação possa ser resolvida por métodosexperimentais, implica num erro tão sério quanto pensar quea filosofia, com seus métodos de raciocínio a-priori, poderiacompetir com a ciência experimental em seu próprio terreno.E isso porque não se trata absolutamente de umaIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza85questão empírica, mas de uma questão conceitual; para além,portanto, das verificabilidade da ciência experimental 14 . Recorreraos resultados de uma experiência seria esquivar-se da questãoimportante, pois o filósofo teria que perguntar, antes, porquais indícios ou características esses mesmos resultadosserão aceitos como “realidade”. Naturalmente, esse tipo deargumentação, apenas exaspera o cientista “empirista” ou“experimental” - e não sem razão, do ponto de vista de seuspróprios objetivos e interesses. Mas a importância da questãofilosófica não pode ser apreendida nos termos dos preconceitosda ciência experimental. É uma questão, diz Winch, que nãopode ser respondida generalizando-se a partir de exemplosparticulares, visto que uma resposta particular à perguntafilosófica já traz implícita a aceitação de tais exemplos como‘reais 15 .Outro ponto levantado por Winch diz respeito à relaçãoentre a linguagem e o mundo, e a posição com a qual elepolemiza, nesse caso, está bem representada pelas teses deT.D. Weldon. Para Weldon, os problemas das filosofias políticae social originam - se das excentricidades da linguagem comque procuramos descrever as instituições sociais e políticas,e não de qualquer mistério inerente a essas mesmas instituições.Seguindo fielmente uma concepção da filosofia como “ajudantede obras” 16 , Weldon a vê cumprindo um papel puramentenegativo na tarefa de conhecimento da vida social: o defiscalizar aí o uso da linguagem, contra noções e proposiçõessem sentido. Os métodos da ciência empírica ou experimentalé que contribuirão para fazer avançar a compreensão da vidasocial, e não os métodos da filosofia 17 . Mas, ao supor que sepode estabelecer uma distinção nítida entre “o mundo comoele é” e a linguagem com que tentamos descrevê-lo, Weldonsuprimiria indevidamente toda a questão filosófica. Contraisso, Peter Winch argumenta que nossos termos, naverdade,estabelecem para nós a forma de experiência quetemos do mundo; quando falamos do mundo, estamos de fatofalando do que entendemos pela expressão “o mundo”. Nãohá maneira de escaparmos aos conceitos em cujos termosIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


86 José Crisóstomo de Souzapensamos a respeito do mundo, para então dizermos comoele é “em si” 18 .Que o cientista, em geral, trabalha e experimenta a partirde certos conceitos que ele mesmo não examina, e que issotem a ver com as próprias virtudes que a ciência moderna vaiexibir, pode ser percebido já na formulação da estratégiadesta ciência, defendida por Francis Bacon (1561-1626), masorigens, no começo dos grandes saltos que configuraram oseu admirável progresso. A possibilidade de cooperação e afecundidade da pesquisa vão supor exatamente o assentamentode conceitos, princípios e procedimentos comuns para umfecundo trabalho comum.Na Grande Instauração, Bacon fala de como axiomascorretamente descobertos conduziriam batalhões de trabalhadoresda ciência, associados e com disponibilidade de tempo, geraçãoapós geração, na coleta de experiência, num trabalho primeirodistribuído e em seguida combinado. Ao invés de muitostrabalhadores da ciência tocando a mesma tarefa, um cuidariade uma coisa e outro de outra. E esse projeto de Bacon pareceretratar algo bastante próximo das comunidades científicascomo descritas depois, por exemplo, por Thomas Kuhn, como cientista individual desempenhando disciplinadamente tarefasem boa medida já previamente definidas. Só que a concepçãobaconiana de uma tranqüila cumulatividade “geração apósgeração” vai se desfazer inteiramente na visão do autor de AEstrutura das Revoluções Científicas. 19A réplica de Sheldon Wolin - que apresentaremos maisadiante - aos críticos da filosofia política e social, apoia-seexatamente nas concepções de Thomas Kuhn sobre a ciência.Através delas, Wolin constrói uma argumentação interessante,não sem elementos originais, que tenta equacionar a comparaçãoentre as duas formas de conhecimento, fora da distinçãoabsoluta, mais trivial, entre, de um lado, “teoria normativa”,que compreende a preocupação com valores e ordens políticasideais (a filosofia social e política), e, de outro, “teoria empírica”,que se concentra na aplicação de procedimentos científicospara a aquisição de conhecimento confiável, e na construçãoIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza87de um corpo crescente de generalizações progressivamentemais inclusivas 20 . Entretanto, no seu “Paradigms and PoliticalTheories”, Wolin trabalha com A Estrutura das RevoluçõesCientíficas sem ter podido tomar conhecimento do “Posfácio”,acrescentado a edições posteriores da obra, e sem mencionarnada da troca mais recente de argumentos e esclarecimentosentre ele e seus adversários e rivais - sendo Karl Popper omais notável deles 21 . Ao lado disso, o fato de sua apresentaçãodo livro de Kunh ser muito resumida e simplificada tambémrecomenda uma exame mais detido das formulações do próprioKunh, que, ademais, faz também ele próprio várias comparaçõesinteressante e esclarecedoras entre a ciência e a filosofia, emespecial quanto a questão do progresso cumulativo. Por issoexaminaremos, em seguida, as formulações do próprio autorde A Estrutura, trazendo também algo da discussão em tornodas mesmas, particularmente da parte de Karl Popper (comseu método para isolar asserções pretensamente científicasde asserções meramente normativas ou metafísicas) – paradepois voltarmos à contribuição de Wolin.Cabe assinalar antes, porém, que, da época da ofensivaexperimentalista para cá, abalaram-se de um modo geral ospressupostos do experimentalismo e o ideal positivista daunificação das ciências (naturais e sociais), antes imperanteno mundo anglo-saxônico, entrou em irremediável crise peloassédio de vários outros pontos de vista além dos de Kuhne Wolin. Quentin Skinner nos apresenta, em obra recente, oretorno das “grande teorias” execradas por Wight Mills noperíodo anterior 22 . Há já algum tempo, deixamos para trás aopinião de Daniel Bell (ou, pelo menos parte dela), de quequalquer tentativa de formulação de uma filosofia geral, socialou política” seria “um esforço confuso e antiquado para acompanhara era científica. Do mesmo modo, ficou debilitada a idéia deque as ciências naturais seriam o modelo adequado para asdisciplinas sociais, em favor de uma abordagem hermenêuticapara as ciências humanas, que encontraria respaldo na posiçãoanti-positivista do “segundo” Wittgenstein, para quem os“fatos” só podem ser compreendidos em função de uma formaIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


88 José Crisóstomo de Souzade vida específica. Entre outros, também Quine se associaa Wittgenstein com seu ataque ao “dogma empírico da pretensaexistência de uma distinção categórica entre conceitos efatos”. Ao lado de outros expoentes das novas “grandesteorias”, como seus pontos de vista hermenêuticos, estruturalistas,pós-empiricistas e desconstrucionistas, o próprio QuentinSkinner vai ainda destacar Thomas Kuhn 23 , cujas idéias passamosagora a examinar.2. Ciência (Social) e Filosofia (Social): a Não - Verificabilidadede Toda Teoria.Em resumo, a obra de Thomas Kuhn vai contra uma idéiade ciência ainda hoje muito difundida, questionando, antes demais nada, o otimismo com relação a uma ciência progressivada natureza como “a mais dinâmica, distintiva e influentecriação do espírito ocidental”. Suas concepções lançam umanova luz sobre a compreensão do progresso científico e desuas condições, e questionam a relação direta normalmentesuposta, na ciência experimental, entre fato e teoria. Suasconcepções podem implicar numa nova maneira de entendertanto a teoria social tradicional (a filosofia social e políticaclássica) como a teoria social dita científica, além de, naturalmente,atingirem a própria imagem que faz de si a ciência natural.Thomas Kuhn teve formação de físico, interessando-sedepois pela história da ciência e envolvendo-se mais e maisem questões de filosofia da ciência e mesmo de filosofiageral. Sua conclusões tomam como base sobretudo a históriadas ciências físicas, como qualquer um pode ver 21 . Entreoutras influências ou inspirações que ele reconhece, estão osfamosos estudos do russo naturalizado francês AlexandreKoyré 25 . De fato, basta uma olhada na obra deste último paraque se perceba como muitas das idéias kuhnianas já andavampor aí antes que ele as sistematizasse em um conjunto denoções características. Entre tais idéias, destaca-se a de“revolução epistêmica”, ou de revolução na ciência, provenientejustamente de Koyré.Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza89Koyré se refere a uma revolução galileana (de GalileuGalileu, 1564-1642) e cartesiana (de René Descartes, 1596-1650) - que permanece uma revolução ainda que tendo sidopreparada por uma longo esforço do pensamento De um lado,ele parece ver o pensamento humano (o pensamento europeu,deveríamos dizer) tratando, através da (sua) história, sempredos mesmos problemas e elaborando, lenta e progressivamente,os instrumentos e ferramentas, isto é, os conceitos novos,os métodos de pensamento, que permitirão enfim os superar.Mas, de outro lado, não obstante essa alusão a uma continuidadeaparentemente até linear, Koyré vai frisar como a física modernaimplica notadamente o abandono do conceito clássico e medievalde “Cosmos” e sua substituição pelo conceito de “Universo”.Uma virada que deve ser entendida como uma verdadeirarevolução na visão de mundo do homem ocidental, no seuquadro conceitual mais geral, algo como um mudança radical,profunda, de um macro-paradigma a outro,de uma episteméa outra 26 .Nos seus Estudos Newtonianos, Koyré fala do nascimento,desenvolvimento e declínio (relativo) da concepção newtoniana (deIsaac Newton, 1642-1727) de mundo; e de como nascemos ousomos criados num mundo newtoniano. Ou pelo menos seminewtoniano,diz ele, talvez preocupado em amenizar uma afirmaçãoque Thomas Kuhn retomará com menos receio. De qualquer forma,trata-se novamente de uma revolução, uma das mais profundas,senão a mais profunda, das mutações e das transformaçõesrealizadas...pelo espírito humano desde a invenção do Cosmospelos gregos, dois mil anos antes. Uma revolução que tem sidoreferida a diferentes elementos: o papel da experimentação, a lutacontra o saber livresco, a fé do homem em si mesmo, a atitude práticado homem moderno (a vita activa , da burguesia ascendente), etc. 27Observe-se que a marcha da ciência e a marcha da filosofia jáaparecem aqui, em Koiré, significativamente vinculadas, através denomes como os de Galileu Galilei, Francis Bacon e René Descartes.Associado aos quais, exatamente no terreno da filosofia política esocial, está, com todo direito, o nome de Thomas Hobbes; e umaIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


90 José Crisóstomo de Souzaassociação semelhante pode ser feita também entre os nomes docientista Isaac Newton e o do filósofo Immanuel Kant, sempre nessahistória na qual se diz que a ciência progride e a filosofia não...A partir de estudos como os de Koyré, o autor de A Estruturadas Revoluções Científicas constata que, muitas vezes sem percebêlointeiramente, os historiadores da ciência têm passado a tentarmostrar antes a integridade histórica de uma ciência em seu própriotempo, do que a procurar as suas contribuições permanentes ànossa atual superioridade 28 . Kuhn assume inteiramente a nova ótica,restringindo a aplicação da idéia convencional de progresso àsmudanças no interior da ciência de uma mesma época, e considerandoem grande medida como incomensuráveis os sucessivos sistemascientíficos, separados por momentos revolucionários, filosóficos,como os verificados por Koyré. Com efeito, na ciência haveria duasespécies de mudança, e uma delas diz respeito à “ciência normal”,resumindo-se ao processo, geralmente cumulativo, através do qual“as crenças aceitas de uma comunidade científica ganham substânciae são expressas e ampliadas” 29 . Ou seja, o desenvolvimentocumulativo do conhecimento científico, comumente concebido,corresponde à “ciência normal”, que é a atividade da maior parte doscientistas a maior parte do tempo.A noção de ciência normal é central em Kuhn e é uma das quemais contestação tem encontrado. Ela pode ser melhor compreendidano seu confronto com Karl Popper, o interlocutor mais reputado, e oopositor mais nítido, do autor de A Estrutura das RevoluçõesCientíficas. Um cientista, segundo Popper, constrói teorias e as põea prova pela observação e experimentação 30 . Mas para Kuhn essa éuma generalização equivocada, que omite exatamente a característicacentral da atividade científica, aquela que a distingue de outrasatividades - da filosófica, em especial. Os testes que o cientista faznunca são dirigidos para a verificação - ou melhor, para a refutação- da teoria. Ao contrário, quando está às voltas com um problema depesquisa normal, o cientista deve postular a teoria corrente como aregra do seu jogo 31 . Kuhn acrescenta: “É preciso viver os referenciaisIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza91e explorá-los, antes que eles possam romper-se. Em funçãode suas respectivas visões, Popper sustenta, em vez disso,que o cientista deve tentar sempre ser um crítico e umproliferador de teorias alternativas, enquanto Kuhn insiste naconveniência de uma estratégia que reserve tal comportamentopara ocasiões especiais, os momentos revolucionários e...filosóficos 32 .Em Conjecturas e Refutações, Karl Popper remonta àorigem da “tradição da discussão crítica” - que representaria“o único modo praticável de expandir nosso conhecimento” -aos filósofos gregos, de Tales a Platão, homens que fomentarama discussão crítica não só entre as escolas, mas tambémdentro delas 33 . Aí estaria o motor do progresso cumulativo daciência. Kuhn, porém, não vê nisso nada que se pareça comciência stricto sensu, mas sim com filosofia e, ele acrescenta,com ciência social. A discussão crítica seria antes a tradiçãoque tem caracterizado desde então a filosofia e boa parte daciência social - diz Kuhn, separando esta última das ciênciasnaturais. Ao contrário, é precisamente o abandono do discursocrítico que assinala a transição para a ciência (natural emoderna), e para o ‘progresso. Isso, é verdade, não durariapara todo o sempre; “depois que um campo opera essatransição, o discurso crítico retornará em momentos de crise,quando estão em jogo as bases desse campo. Mas, nessecaso -quando precisam escolher entre teorias concorrentes,e só nessa ocasião- os cientistas (naturais) comportam-semais bem “como filósofos”. E, “em nenhuma dessas escolhas”- acrescenta ainda Kuhn, em oposição direta a Popper eaos “empiristas” da ciência social - o sistema de testes(verificação empírica) desempenha papel decisivo 34 .Kuhn teria, assim, descoberto que a ciência real (apesquisa básica, tanto quanto a aplicada, tecnológica) énormalmente uma atividade governada por hábitos, uma atividadede solução de “quebra-cabeças”. Não uma atividadefundamentalmente perturbadora, problematizadora, ou “falsificadora”(isto é, que põe suas conclusões permanentemente em questão,Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


92 José Crisóstomo de Souzapelo teste da experimentação). Ou seja, pura e simplesmente,não se trata de uma atividade filosófica 35 . Quebra-cabeça(puzzle) é o nome que Kuhn prefere usar, em lugar de problema,para caracterizar uma questão balizada por certa regras ecuja solução em princípio, está assegurada. E paradigma éo nome que ele dá àquilo que orienta normalmente a atividadedo cientista; algo que é suposto, base ou referência para suaatividade. Mais - e menos - do que o que se chama simplesmentede teoria, mesmo em sentido amplo. Um estado de coisaspré-científico ou multi-paradigmático poderia ser chamado defilosófico 36 ; Já a ciência madura se caracterizaria pela existênciade apenas um paradigma reconhecido como tal pela comunidadecientífica, mas esse paradigma não teria nada de propriamenteverificável e especificamente “científico”.Paradigma é então o termo chave associado às teses deKunh, um termo hoje amplamente difundido e mesmo extremamentepopularizado. É uma noção a ser aqui melhor esclarecida, nãosó porque é a mais importante no pensamento de Kuhn, e osuporte de várias referências suas à filosofia em geral, comotambém porque é crucial para a reinterpretação da relaçãofilosofia social – ciência social que Wolin vai propor, e queexploraremos mais adiante. A definição precisa do que sejaum paradigma, em sentido kuhniano, porém, é um tremendodesafio, e merece uma atenção a parte. Margaret Mastermanpretende ter encontrado na obra de Kuhn vinte e um sentidosdiferentes - embora não incompatíveis entre si - para aqueletermo. Em primeiro lugar, os paradigmas são realizaçõescientíficas universalmente reconhecidas, que durante algumtempo fornecem modelos de problemas e de soluções parauma comunidade de profissionais da ciência, como nos exemplosapresentados por Alexandre Koyré, de Galileu e Newton. Masos paradgimas são também conjuntos de crenças (“filosofias”),ou constelações de perguntas, ou arsenais de ferramentasconceituais, ou uma obra clássica, ou uma tradição. O paradigmaé ainda uma figura de gestalt, princípio organizador capaz degovernar a própria percepção, um ponto de vista epistemológicogeral (como “o paradigma filosófico iniciado por Descartes”).Prosseguindo na análise dos textos e concepções de ThomasIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza93Kuhn, Masterman entende que há três tipos principais deparadigmas: 1) os “metafísicos”, como um novo modo de ver;2) os “sociológicos”, como uma realização científica concretauniversalmente reconhecida; e 3) os “paradigmas de construção”,fornecedores de instrumentos. Segundo ela, o paradigmapode ser, inclusive, anterior à teoria, como um conjunto dehábitos mentais. O “paradigma metafísico”, por exemplo, éalgo mais amplo e ideologicamente anterior à teoria 37 .O próprio Kuhn, no “Posfácio” que acrescentou ao seulivro em 1969, fala de dois sentidos para o termo paradigma.De um lado, paradigma indicaria toda a constelação dascrenças, valores, técnicas, etc., partilhadas pelos membrosde uma comunidade determinada. De outro, denotaria um tipode elemento dessa constelação: as soluções concretas dequebra-cabeças (puzzles) que, empregadas como modelosou exemplos, podem substituir regras explícitas como basepara a solução dos restantes quebra-cabeças da “ciêncianormal”, aquela que se desenvolve entre os momentos derevolução. São as realizações passadas dotadas de naturezaexemplar. Ao primeiro sentido Kuhn chama de sociológico; eo segundo, “pelo menos filosoficamente,” - diz ele - “é o maisprofundo dos dois” 38 . Mas o primeiro sentido parece apresentaruma certa primazia na visão kuhniana, que, para queixa dealguns dos seus mais importantes críticos, desenvolve-se apartir de uma certa sociologia e psicologia do conhecimento,mas do que de uma lógica, o paradigma governando, antesde tudo, "não um objeto de investigação, mas um grupo depraticantes de ciência” 39 .Ainda no referido “Posfácio”, Kuhn defende a conveniênciade desligar o conceito de paradigma da definição de outranoção fundamental sua, a de “comunidade científica”. Em seulugar, ele sugere a noção de “matriz disciplinar” - e não deparadigma para explicar a relativa abundância de comunicaçãoprofissional entre os membros de uma comunidade científicae a relativa unanimidade aí de julgamentos profissionais. Ospróprios cientistas diriam que partilham de uma teoria ou deum conjunto de teorias; contudo, o termo teoria, tal como éIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


94 José Crisóstomo de Souzaempregado presentemente na filosofia da ciência,conota umaestrutura bem mais delimitada em natureza e alcance do quea exigida aqui. Assim, “matriz disciplinar” seria o melhor nomepara o “compromisso grupal” que antes chegara a ser denominadopor Kuhn de paradigma e que compreende as generalizaçõessimbólicas, as crenças (como a de que todos os fenômenospercebidos são devidos à interação de átomos qualitativamenteneutros no vazio), e os valores que se referem a predições(como acuradas, quantitativas) e a teorias (simples, coerentes,etc.). Desse ponto de vista, o componente que pode ser maisapropriadamente chamado de paradigma são as soluçõesconcretas e técnicas encontráveis nas publicações 40 .3. Testabilidade, Incomensurabilidade e Progresso: CadaParadigma, um Mundo.Como já se vê, as concepções de Kuhn representam umduro golpe na ambicionada “testabilidade da teoria”, dos adeptosda “teoria social científica” e das “ciências sociais experimentais”.Testabilidade (refutabilidade lógica e empírica) essa que nãoexistiria, como se imagina, nem mesmo no caso das ciênciasnaturais - o modelo a que aqueles aspiram -, como, porexemplo, na física ou na biologia. Ficaria, portanto, prejudicadoo esforço dos experimentalistas de discriminar a “teoria tradicional”- a filosofia social e política. Naturalmente, não faltaram e nãofaltam críticas às idéias de Kuhn, que busquem sustentar umaimagem menos heterodoxa da atividade científica. Entre osexpoentes de tais críticas estão, é claro, os representantesda ciência social “experimentalista”, “behaviorista”, ou “positivista”,bem como aqueles que tomam mais expressamente o partidode Popper e de seu “racionalismo crítico”. Contrastando coma idéia relativamente clara de testabilidade (de uma teoria) -retruca, por exemplo, J. Watkins -, a noção kuhniana correspondente,de uma teoria deixar de ‘sustentar convenientemente umatradição de solução de quebra-cabeças’ é essencialmente vaga 41 .Kuhn concede que, para poder funcionar ou deixar defuncionar adequadamente, quando aplicada à solução científicade quebra-cabeças, uma teoria tem de ser de algum modoIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza95testável. A dificuldade estaria em definir os critérios quedevem ser aplicados quando se decide se determinada incapacidadede resolução de quebra-cabeças há de ser ou não atribuídaà teoria fundamental. Mas - contra-ataca - a dificuldade decritério para tal decisão é idêntica àquela sobre se o resultadode determinado teste falseia (refuta) ou não uma teoria, e,sobre esse assunto, Sir Karl (Popper) é necessariamente tãovago quanto eu. O autor de A Estrutura das RevoluçõesCientíficas procura mostrar que não há tanta diferença entreas duas posições, e que a de Popper não exclui também umamargem de “arbítrio” na adoção ou abandono de uma teoria.Os cientistas devem “ficar alertas ao colapso da teoria”, sejatal colapso descrito como “severa anomalia” (como na concepçãode Kuhn), ou como “como falseamento”, isto é, não verificação(como na concepção de Popper).Esta vigilância, porém, nãoassegura que os cientistas cheguem ao mesmo julgamentoem cada caso concreto. Onde um enxerga colapso, outropode perceber apenas um problema menor 42 . Não é, portanto,a experiência - ou “a realidade” - que decide.Sustentando as críticas de Popper, J. Watkins insiste emque “deve haver um nível crítico” para uma teoria, em que umaquantidade tolerável de anomalias se transforme numa quantidadeintolerável 43" . Mas, de acordo com Kunh, como vemos, essenível pode não ser o mesmo para todos, pois nem se pode“dizer com segurança que dois homens vêem a mesma coisae possuem os mesmos dados” e “os identificam ou interpretamde maneira diferente” - o que por si já traria embaraço aosadeptos do valor absoluto da verificação empírica. Na verdade,os estímulos recebem muito processamento nervoso antesde alguma coisa ser vista; ou seja, diferente do que pensavaDescartes, a correlação entre o estímulo e a sensação nãoé bi-unívoca nem independe da educação.Portanto, Kuhn conclui, podemos razoavelmente suspeitarque aquela correlação varia entre uma comunidade e outra 44 .As dificuldades do credo experimentalista se encontrariam,desse modo, num nível mais básico. Ele vai ao ponto de dizerque "dois grupos, cujos membros têm sistematicamente sensaçõesIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


96 José Crisóstomo de Souzadiferentes, ao captar os mesmos estímulos, vivem,em certosentido, em mundos diferentes; embora dizer que os membrosde diferentes grupos podem ter percepções diferentes quandoconfrontados com os mesmos estímulos não implica emafirmar que podem ter quaisquer percepções.Assim, não seria apenas na filosofia social ou na “teoriasocial tradicional” que a subjetividade do respectivo teóricodeixaria sua marca 45 . Os homens envolvidos processamcertos estímulos de maneira diferente, recebendo deles dadosdiferentes, vendo coisas diferentes ou as mesmas coisasdiferentemente. O que significa que, na ausência de umalinguagem neutra, a escolha de uma nova teoria é a decisãode adotar uma linguagem diferente e desenvolvê-la num mundocorrespondentemente diferente. 46 Ao mesmo tempo, Kuhnprocura defender-se das acusações de simples irracionalidadena escolha e sustentação de uma teoria, de advogar um totalrelativismo e a prevalência de uma “regra da maioria”. A“ciência normal” seria, de fato, uma tentativa enérgica ededicada de forçar a natureza a entrar nas caixas conceituaisfornecidas pela educação profissional. E, no que diz respeitoa como se dá a escolha entre conjuntos de caixas, teorias ouparadigmas, ele realmente fala de "técnicas de persuasão” ede uma situação em que não está em jogo nem a demonstraçãonem o erro; a transferência de lealdade de paradigma aparadigma é uma experiência de conversão. Não é de admirar,portanto, que essas noções sejam interpretadas por algunscomo querendo dizer que “nas ciências estabelecidas, a forçafaz o direito”: Eu teria afirmado... que os membros de umacomunidade científica podem acreditar em tudo o que quiserem,bastando para isso que decidam primeiro sobre o objeto doseu consenso, para impô-lo depois aos colegas e à natureza,de modo que "nem a lógica, nem a observação, nem a boarazão estão implicadas na escolha da teoria". Mas o que Kuhnquer mesmo dizer é que “nenhuma das partes” – no debatesobre a escolha de uma teoria" - tem acesso a um argumentoque se assemelhe a uma prova da lógica ou matemáticaformal". Pode-se partir do acordo sobre critérios para a escolhade uma teoria: “exatidão, amplitude, simplicidade, produtividadeIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza97e outras”. Mas a simplicidade, o alcance, a produtividade e atéa precisão podem ser julgados de modo muito diverso porpessoas diversas, mesmo que isso não queira dizer quepossam ser julgados arbitrariamente 47 .Desse modo, com relação à questão da verdade de umateoria – o desiderato dos cientistas sociais “experimentalistas”e anti-filosóficos -, Kuhn prefere ficar apenas com o emprego“intra-teórico” da noção de verdade. No que diz respeito àcomparação entre teorias destinadas a abranger a mesmaextensão de fenômenos naturais, ele tem mais dúvidas. E,como vemos, na opinião dele, não há experiência que resolva.Quando se trata de teorias ..., cada uma delas foi havida porverdadeira em sua época e depois posta de lado por falsa, ea mais recente pode ser tida como melhor como instrumentopara a prática da ciência normal. Contudo, queixa-se Kuhn,muitos filósofos da ciência desejam comparar teorias comorepresentações da natureza, como enunciados sobre o quehá realmente lá fora. Eles procuram, apesar de tudo, "umsentido em que a mais recente está mais perto da verdade",mas Kuhn acredita que “nada disso exista”. Popper propõe,diz ele, “um critério de verossimilhança” para dizer que umateoria mais recente suplantou a anterior por aproximar-semais da verdade, como no caso, por exemplo, de uma teoriade campo, mais recente, com relação a uma de “matéria-eforça”,mais antiga, no sentido de que “os constituintes finaisda natureza são mais parecidos com campos do que commatéria e força”. Mas, alega Kuhn, está longe de ser claro omodo com que se há de explicar a expressão ‘mais parecido. 48No seu entender, a comparação de teorias históricas dasciências físicas e naturais absolutamente não indica que suasontologias se estão aproximando de uma limite. Em certosaspectos muito fundamentais, por exemplo, a teoria da “relatividadegeral de Einstein se parece mais com a física de Aristótelesdo que com a de Newton”. Popper acha que os defensores deteorias concorrentes compartilham de uma linguagem neutraadequada à comparação desses relatos de observação danatureza, mas Kuhn está tendente a afirmar que isso nãoexiste, e que tanto “verdade” como prova” "seriam termos deIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


98 José Crisóstomo de Souzautilização apenas “intrateóricas 49" .No que diz respeito diretamente ao (não-)progresso dafilosofia - da “teoria tradicional” - vis-à-vis o progresso daciência, as teses kuhnianas conduzem a conclusões igualmenteheréticas. Ele entende que na filosofia também há revoluções,bem como “uma prática normal entre duas revoluções”. Se afilosofia é um campo que se desenvolve através de umasucessão de tradições contrárias e de alterações revolucionárias,seu contraste com o progresso das ciências não se deveriaentão à ausência de uma metodologia como a que Popper dizser a da ciência - antes pelo contrário. É no campo da filosofia(e não no das ciências), aliás, que Popper estaria melhorexemplificado: praticantes acham asfixiante a tradição vigente,pelejam para romper com ela e procuram regularmente umestilo ou um ponto de vista filosófico próprio. A filosofia e aarte seriam os campos nos quais o método de Popper éessencial, “porque sem uma crítica constante e a proliferaçãode novos modos de prática não haveria revoluções" 50 . Sobesse aspecto, como vimos o próprio Kuhn dizer, as ciênciassociais também fariam parte desse grupo.De fato, a filosofia não oferece resultados que possamser testados através de um cotejo ponto-por-ponto com anatureza. Mas são a crítica incessante e a luta contínua poruma nova largada que não conduzem a um progresso nítido.Faltariam, então, às artes e à filosofia, como às protociências,o elemento que, nas ciências maduras, permite as formasmais patentes de progresso. E qual seria ele? Não há receitapara a maturidade, mas é necessário, em dado momento,arranjar “uma boa teoria científica”, um critério de demarcaçãocomo em Popper, técnicas preditivas enraizadas na teoria, oaprimoramento delas, etc.. A partir daí, cessariam, na verdade,“a crítica firme e a proliferação da teoria”, e os cientistaspoderiam tranqüilamente aplicar seus talentos aos puzzles.Mesmo com uma teoria que permita a ciência normal, porém,os cientistas poderiam continuar a se comportar, se quisessem,como os praticantes das “proto-ciências” - e da filosofia - ,procurando pontos fracos naquela teoria e procurando levantarIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza99teorias alternativas. É o que, no entender de Kuhn, a metodologiade Popper de fato acarretaria 51 . Ao contrário, é a formaçãopouco crítica do cientista (diferente da do filósofo e do artista)que, vedando o questionamento e a disponibilidade para outrosparadigmas, permite o ambicionado progresso. Nesse sentido,os cientistas sociais experimentalistas estariam buscandofechar um paradigma, mas não deveriam imaginar que aprópria experiência legitima sua escolha.4. Teoria Social Filosófica como “Ciência Social Extraordinária”.Apesar de toda a complexidade envolvida no sentido dotermo paradigma, bem como da sutileza de todo o resto dasteses kuhnianas que cercam aquela noção, um leitor perspicazcomo Popper acha-se à vontade para dizer que o seu debatedordá o nome de paradigma à “teoria dominante” 52 . E SheldonWolin igualmente conclui, em seu “Paradigms and PoliticalTheories”, que o paradigma, em Kuhn, é a teoria que dominauma comunidade científica. A noção kuhniana de comunidadecientífica merece aqui uma certa atenção, pois ela vai serretomada por Wolin e aproveitada na argumentação em quetenta resgatar os direitos da “teoria tradicional” - a filosofiapolítica e a filosofia social. A comunidade científica kuhnianaconsistiria dos homens que partilham um paradigma; e, inversamente,um paradigma seria aquilo que os membros de uma comunidadepartilham. O autor de A Estrutura das Revoluções Científicasprocura escapar da circularidade aí implicada, pretendendoque a comunidade - constituída pelos praticantes de umaespecialidade científica - possa ser distinguida sem recursoprévio ao paradigma, e, em seguida, esse pode ser apreendidoatravés do exame do comportamento de seus membros. Setivesse de rescrever seu livro, diz Kuhn, “começaria discutindoa estrutura comunitária da ciência, e não me fiaria exclusivamentenos ‘temas partilhados’ para fazê-lo”. Novamente, aqui, emoposição a Popper, ele entende que, embora a ciência nãoseja “a única atividade cujos praticantes podem ser agrupadosem comunidades”, ela é a única em que cada comunidadeé seu público e seu juiz próprio e exclusivo 53" .Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


100 José Crisóstomo de SouzaComo Wolin observa em sua leitura de Kuhn, uma comunidadecientífica é uma instrumento enormemente eficiente pararesolver os quebra-cabeças que seus paradigmas definem,e sua atividade é executada com o suposto de que ela sabecomo é o mundo. Kuhn chega a afirmar, na introdução ao seufamoso livrinho, que novidades muitas vezes são suprimidas,porque são subversivas aos compromissos básicos. A vigênciado paradigma permite que os “cientistas normais” não sedistraiam nem percam tempo defendendo seus princípios,suas regras de investigação e a visão de mundo que o paradigmaencarna. A descrição de Kuhn contradiz, portanto, a idéiasegundo a qual o cientista rejeita a imposição de qualquerverdade pela autoridade organizada, especialmente a nãocientífica.Contradiz a idéia de que os cânones de validade doconhecimento científico são individualistas e não estão postosem qualquer organização formal, mas nas consciências ejulgamentos individuais dos cientistas 54 .Particularmente importante, na noção kuhniana de comunidadecientífica, é idéia de que esta desenvolve meios para imporum paradigma aos seus membros e que disso depende oprogresso científico. Os membros da comunidade devemseguir as regras e práticas decorrentes do paradigma, e ocomportamento desviante se depara normalmente com sanções.Entre os meios de iniciação e indução de seus membros- àcomunidade e ao paradigma -, dois que se destacam são aeducação e os livros-textos. O estudante raramente é expostoà literatura científica aberta e criativa, e os livros-textos dão,por seleção e distorção, a idéia equivocada de que os cientistasanteriores trabalharam o mesmo conjunto de problemas fixose de cânones que a mais recente revolução na teoria e nométodo definiram como científicos 55 . Trata-se de uma educaçãoestreita e rígida, provavelmente mais que qualquer outra,exceto talvez, diz Kuhn, em teologia ortodoxa; mas,para otrabalho científico normal de resolução de problema dentro datradição que os livros-textos definem, o cientista está equipadoquase perfeitamente.Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza101Um aspecto da visão de Kuhn com o qual Wolin trataparticularmente de questionar o cientista político de linha“positivista” ou “behaviorista” são as suas observações sobreo processo através do qual a comunidade institui um paradigmaem lugar de outro 56 . Segundo Kuhn, como vimos, não há umamaneira inteiramente objetiva para escolher entre teorias; hásempre um elemento arbitrário na escolha. Entre outras coisas,porque mais de uma construção teórica pode ser colocadasobre determinada coleção de dados. A perspectiva de mudançase constrói com a ocorrência de frustrações nas expectativasdos pesquisadores, quando eles se deparam com quebracabeçasque não podem ser equacionados pelo paradigma.Éo que Kuhn chama de anomalias, isto é, descobertas que nãose encaixam no paradigma, a despeito dos esforços paraajustá-lo. Quando as anomalias começam a se manifestar deforma persistente e reconhecida, instala-se então uma situaçãode crise; as regras do velho paradigma são relaxadas e aciência normal dá lugar à ciência extraordinária, o que implicanuma disposição de olhar o mundo de uma forma desimpedidae nova. O que leva à adoção de uma paradigma? A comunidadeacha que ele se adequa melhor aos fatos, após um procedimentoinicial de competição. Contudo, para Kuhn, o que está em jogonão são propriamente fatos novos, mas novos padrões cognitivose normativos, uma nova maneira de olhar os fenômenos, umnovo campo de problemas. Não haveria um critério neutroentre paradigmas concorrentes; cada paradigma propõe oseu próprio critério, apesar da existência de alguns critériosaproximativos. O novo paradigma deve ser capaz de transformaras anomalias em “puzzles”, e a decisão será tomada pelosmais qualificados.É com esses elementos kuhnianos que Wolin se voltapara a questão da filosofia social e política 57 Ele propõe, nãoque as teorias sociais e políticas devam ser aceitas comoum tipo de teoria científica, mas que elas podem ser melhorentendidas como paradigmas. E que o pretendido estudocientífico (“empirista”) da sociedade é uma forma especial depesquisa inspirada por paradigma. Muitos filósofos políticose sociais teriam tido essa idéia sobre o seu próprio trabalho.Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


102 José Crisóstomo de SouzaMaquiavel pretendeu estar seguindo “um caminho ainda nãotrilhado por ninguém”. Hobbes afirma ter encontrado regraspara a construção e preservação de Estados, que outroshomens até então não tinham podido encontrar; e, no prefáciodo De Cive , dedica-se a desqualificar os paradigmas deAristóteles, Cícero e Santo Tomás.Segundo Wolin, pensadores como Platão, Aristóteles,Maquiavel, Hobbes, Locke e Marx corresponderiam os cientistascomo Galileu, Harvey, Newton, Laplace, Faraday e Einstein;cada um oferecendo uma nova maneira de olhar o mundosocial e político, uma nova definição do que é relevante paraa sua compreensão. Os historiadores da filosofia política esocial normalmente enfatizam a descontinuidade e novidadena sucessão dos sistemas. Os seguidores dos grandes filósofos,em vez de serem considerados como fazendo “ciência normal”,são vistos como epígonos chatos e repetidores, e a aplicaçãode uma filosofia para além do seu contexto original é consideradana maioria das vezes como distorção. Em contraposição aisso, Wolin acha que as teorias políticas mais importantestêm servido como paradigmas-mestre explorados por outrosde forma comparável à ciência normal; como no caso doparadigma aristotélico na Idade Média. Assim, podem terocorrido casos importantes de conhecimento cumulativo nahistória da filosofia.A analogia entre filosofia e ciência também poderia serfeita, segundo Wolin, com relação aos poderes da comunidadecientífica. A Academia de Platão teria sido criada para estendero paradigma do mestre, da mesma maneira que o Liceu deAristóteles, esse com um motivo político menos marcado.Mas os filósofos sociais e políticos procurariam uma outramaneira de efetivar ou impor suas teorias: buscando o poderda própria sociedade e da própria comunidade política; nãopara conquistar seus pares, mas para mudar a própria sociedade!Assim seriam os casos de Platão (com Dionísio II), de Maquiavelcom a proposta de um novo sistema político que exigia aderrubada do velho; de Hobbes com a esperança de que suateoria chegasse às mãos de um soberano, etc., etc. Por fim,Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza103Wolin vai considerar que o movimento “experimentalista”,nas ciências social e política, preenche a maioria das especificaçõeskuhnianas para um paradigma bem sucedido. Ele domina oscurrículos de muitos departamentos universitários, forma umanova geração de estudantes, segundo os novos métodos deanálise de levantamento e processamento dos dados, etc. Oslivros de texto com sua orientação “behaviorista” são cadavez mais comuns, e haveria até mesmo sinais de que opassado estaria sendo reinterpretado para mostrar que arevolução “behaviorista” é simplesmente a culminação detendências da ciência política nas últimas décadas.A partir daí, Wolin vai afastar-se da formulação originalde A Estrutura das Revoluções Científicas para propor umaadaptação inovadora. Inicialmente ele observa que as grandesteorias do passado surgiram em resposta às crises no mundoou na própria sociedade e não na comunidade dos filósofos.A crise apresenta-se como uma oportunidade para reorganizara sociedade e a teoria. Como resposta, o teórico não pretendeadequar-se a tal sociedade, mas ultrapassá-la. Justamente oque tem sido reprovado na “teoria tradicional”, e que Wolinparece querer não apenas explicar, mas também legitimar: adimensão idealista ou normativa da filosofias social e política.Ele vai propor, então, considerar a própria sociedade comoum paradigma de tipo operativo, a sociedade enquanto tomadacomo um todo coerente de práticas, instituições e crenças,muitas vezes estabelecidas em constituições escritas 58 . Talconjunto de práticas e crenças é um paradigma na medida emque a sociedade tenta conduzir sua vida política de acordocom ele. No curso da história, a sociedade passa por mudanças(novas classes, novas relações econômicas, padrões raciaise religiosos reformulados), às quais procurará ajustar-se - oque poderia ser comparado à solução de puzzles. É o caso,por exemplo, das reivindicações de voto na Inglaterra doséculo XIX e na Rússia czarista - com resultados diferentes.Já as revoluções política e social seriam uma espécie demudança de paradigma.Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


104 José Crisóstomo de SouzaNesse ponto, Wolin já inverteu praticamente todo o caminhoconcluído por Kuhn, na medida em que este procurou utilizarcategorias e enfoques da política à compreensão da atividadecientífica. Mesmo assim, o autor de “Paradigms and PoliticalTheories” ainda oferece mais algumas observações sugestivas.Nos períodos de ciência normal, diz ele, a comunidade científicamostra-se muito impaciente com a filosofia (a “teoria tradicional”),e se posiciona mesmo pela não-necessidade dela. A filosofiaé uma distração (do esforço de investigação), na medida emque questiona pressupostos e reabre questões consideradasfechadas. Também as sociedades operando normalmentemostrariam pouco interesse pela filosofia se esta questionaseus pressupostos fundamentais. A maioria das principaisteorias (filosofias) políticas e sociais teria sido produzidajustamente durante tempos de crise, raramente em períodosde normalidade. Nisso elas se assemelhariam à ciência extraordinária;são produzidas quando o paradigma social e político operativoencontra, não puzzles, mas profundas anomalias. Sendoassim, a indiferença pela filosofia ou pela teoria tradicionalnão é expressão de uma escolha entre ter uma teoria ou viversem ela. Uma sociedade operando normalmente tem suateoria na forma do paradigma dominante, mas ela é dadacomo suposta, porque representa o consenso da sociedade,donde Wolin propõe distinguir dois tipos de paradigmas: oprimeiro são as teorias, como propusera inicialmente, queconstituem um paradigma extraordinário; o segundo é o paradigmanormal, encarnado nos arranjos efetivos de uma sociedadepolítica.Voltando às ciências social e política “empiristas” ou“behavioristas” e ao tipo de investigação que ela conduz, umadas suas características mais notáveis seria a aceitação dosparadigmas social e político dominantes como estrutura dereferência e como fonte de problemas para pesquisa. A maiorparte dos problemas, senão todos, apenas o são porque oparadigma operativo assim o sugere. Questões como: o quedetermina a preferência dos eleitores? o que explica suaapatia? qual o valor funcional da não participação? são problemasnum regime liberal e democrático, e não em qualquer regime,Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza105Donde Wolin conclui que o “behaviorismo” social e político,como a “ciência normal”, parte de um entendimento do mundocomo definido pelo paradigma dominante, que não dita, masinfluencia.Na concepção de Wolin, então, a “teoria científica” pretendidapelos empiristas, e a “teoria tradicional”, filosófica, estãoentre si como a “ciência normal” e a “ciência extraordinária”de Thomas Kuhn. A teoria tradicional, preocupada com mundospossíveis, põe em cheque o paradigma vigente. Entre as duasteorias, porém, pode haver um contraste, mas não um divórcio.Os achados da teoria empirista podem ser, em verdade,subversivos. Por exemplo, algumas evidência parecem sugerirque o sistema democrático gozará de maior estabilidade secertos segmentos do eleitorado não votarem; ou que oselementos mais pobres da população possuissem atitudesque pudessem ser perigosas para a ordem política. A própriaciência normal então poderia estar no processo de exporanomalias. Se essas anomalias persistissem e se ampliassem,isso mesmo poderia levar à ciência extraordinária, ou seja, àfilosofia social e política - e, eventualmente, a uma mudançade paradigma. Conclusão: não existe teoria propriamenteempírica ( essa é apenas um outro paradigma), e ninguémescapa inteiramente da filosofia, do conceito, do não verificávele não empiricamente refutável...5 NOTAS1 Cf. PLAMENTZ, John. The Use of Political Theory, p.37, in PoliticalStudies, vol.8, Clarendon Press, 1960, v.8.p. 37-47. Para P. Laslett, “dequalquer modo, e por agora, a filosofia política morreu” (“Introduction”,In Philosophy, Politics and Society, Series I, ed. P. Laslett, Oxford, 1956).2 Essa é a leitura que Peter Winch, faz da posição dos empiristas, em AIdéia de uma Ciência Social, Zahar, Rio de janeiro, 1976. Em espanhol, verWINCH, Ciência Social y Filosofia, Amorrotu, Buenos Aires, 1972.3 HUME, David , citado por Peter Winch, p.18-19.4 Cf. WINCH, opus cit.., p.19.5 BARBER, B.. Science and The Social Order (New York: Collier Books, 1962),p.311.Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


106 José Crisóstomo de Souza6 WOLIN, Sheldon. Paradigms and Political Theories, p. 161, In: Paradigmsand Revolutions, Edit. por Gary Gutting, University of Notre Dame Press, Indiana,1980, p. 160-191.7 Harold Lasswell, e Abraham Kaplan, Power and Society, New Haven: YaleUniversity Press, 1950, p. X. Ver, em português, A Linguagem da Política, Ed.<strong>Universidade</strong> de Brasília, 1982.8 Segundo Wolin, Karl Marx, “cujos escritos estão cheios de uma belaambivalência com relação aos modos anteriores de teorizar”, constitui-se numalinha divisória adequada separando a teoria política clássica dosdesenvolvimentos posteriores, científicos, nessa área.9 Esse princípio, o chamado critério de correspondência, defendido, entreoutros, por Robert Alan DAHL (Modern Political Analysis, Englewood Cliffs, NewJersey: Prentice-Hall, 1963), resumiria, na opinião de Wolin, a prescrição que onovo cientista social “experimentalista” pretende seguir (cf. Wolin, op. cit., p. 161-162). Em português, ver A Moderna Análise Política, Rio de Janeiro: EditoraLidador,1966.10 JohnPlamentz, op. cit., p. 38-39.11 Id., ibid., p.40.12 O livro de Peter Winch, A Idéia de uma Ciência Social, em sua ediçãooriginal, inglesa, é de 1956: The Idea of a Social Science, London, Routled andKegan Paul. Nele, Winch desenvolove a noção, de Wittgenstein, de jogos delinguagem integrados em formas de vida. Wolin vai referir-se a Winch de passagemcomo um crítico que acusa o cientista social “experimentalista” do erro de tratarquestões filosóficas como questões empíricas.13 BURNET, John, Greek Philosophy, p.11-12; citado por WINCH, em A Idéiade uma Ciência Social, p.20.14 WINCH, op. cit., p.20.15 WINCH, id., ibid.16 A expressão é de LOCKE, John (1632-1704), na Carta ao Leitor com queabre seu Ensaio acerca do Entendimento Humano. Como “ajudante de obras”,a filosofia apenas “limpa um pouco o terreno e remove um pouco de entulho” paradesimpedir o caminho da ciência e de seus “mestres construtores”.17 WELDON, Vocabulary of Politics, Harmondsworth, 1953, p.35; citado porWINCH, op. cit., p. 22-23.18 WINCH, opus cit., pp. 21ss. Esse ponto vai ter importância na concepçãokuhniana de ciência.19 Cf. KUHN ,Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas, EditoraPerspectiva, São Paulo, 1976. Essa é a edição com que estaremos trabalhando,mas em cotejo com o texto original: The Structure of Scientific Revolutions,University of Chicago Press, 1970. A edição original é de 1962.20 WOLIN, Sheldon, opus cit., p.163.21 POPPER é o autor de A Lógica da Pesquisa Cientítica, co-edição Cultrix-Edusp, São Paulo, 1964 (primeira ed. inglesa: The Logic of Scientific DiscoveryIdeação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza107Londres, 1959). Embora tendo polemizado contra a posição anti-positivista daEscola de Frankfurt, ele é antes, como ele próprio se define, um “racionalistacrítico”, e não um expoente do positivismo.22 SKINNER,Quentin (org.), As Ciências Humanas e os seus GrandesPensadores, D. Quixote, Lisboa, 1992.23 Numa abordagem diversa, também Luc Ferry, Alain Renaut ( cf. “Kant,Fichte”, em New French Thought, M. Lilla ed., Princenton U. Press, 1994) têmprocurar abrir caminho, em meio às ciências sociais, para a legitimidade dasquestões próprias da filosofia política. Nesse caso, de um ponto de vista kantiano,segundo eles obstaculizado pelas próprias “grandes teorias” mais recentes, queSKINNER, Quentin saúda..24 Karl POPPER, entende que a visão kuhniana da ciência na históriaajusta-se mais ao caso da teoria astronômica do que às outras ciências. Cf.POPPER, “A Ciência Normal e Seus Perigos”, p.63, em A Crítica e oDesenvolvimento do Conhecimento, org. I.LAKATOS, E, MUSGRAVE, A, SãoPaulo, Ed.CULTRIX, da USP, 1979, p.63 a 71. Ed. inglesa: Criticism and the Growthof Knowledge, Cambridge, 1970. Esse volume, nascido de um simpósio acercada obra de Kuhn, apresenta uma interessante discussão de seu conceitosprincipais, com a participação dele próprio, de Popper, Feyerabend, e outros,críticos e defensores do ponto de vista kuhniano..25 Ver “Prefácio” de A Estrutura das Revoluções Científicas.26 KOYRÉ, Alexandre. Galilée et la Révolution Scientifique du XVII Siècle,em Etudes d’Histoire de la Pensée Scientifique, Paris, PUF, 1965, p. 11-12. Ver,em português, Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro:Forense-Universitária, 1982.27 KOYRÉ, Alexandre, Études Newtonienes. Paris: Gallimard, 1966, p.27-29passim.28 Ver "Introdução" de A Estrutura das Revoluções Científicas. Essa é talveza idéia central a que conduzem as investigações históricas de Thomas Kuhn,29 KUHN,Thomas. Reflexões sobre os meus Críticos, p. 309, em A Críticae o Desenvolvimento do Conhecimento, p.285 a 343.30 POPPER, Karl. The Logic of Scientific Discovery, 1959. p.27., citado porKUHN em Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?, p. 9, em A Críticae o Desenvolvimento...31 KUHN, em A Crítica..., p.9.32 KUHN, opus cit., p.298 ss.33 POPPER, Karl. Conjectures and Refutations, 1963, p.148-52. Conjecturase Refutações.Brasília: Editora <strong>Universidade</strong>, 1982.34 KUHN,Thomas, em A Crítica,... p.11-12, passim.35Como conclui Margaret Masterman, explicando a concepção de Kuhn, em“A Natureza do Paradigma”, p. 74 (A Crítica..., p. 72-108).36 MASTERMAN, op. cit., p.90.Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


108 José Crisóstomo de Souza37 Id. ibid, p. 90 e 92 ss.38 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas, p.218.39 Ibid., p.224.40 Ibid., 226 ss.41. WATKINS, J. Contra a Ciência Normal, p.39, em A Crítica e oDesenvolvimento do Conhecimento, p.33-48.42 KUHN, Thomas. Reflexões sobre os meus Críticos, p.306.43 WATKINS, J., opus cit., p.39.44 KUHN, Thomas, Reflexões..., p.307.45 Cf. KUHN, Thomas. A Estrutura..., p.239-241, e Reflexões..., p.340-342.46 “Reflexões...”, p. 306-307.47 Id., ibid., p.321-322. Como o leitor pode observar, a maior parte destaseção consiste numa compilação das Reflexões de KUHN.48 Id, ibid., p. 326.49 Id., ibid., p.307-308.50 Id., ibid., p.300-301.51 Id., ibid., p.302-304, passim.52 POPPER, Karl , A Ciência Normal e seus Perigos, p.65 e 67, em A Críticae o Desenvolvimento....53 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas, p.220.54 É interessante observar como, apesar de criticar a idéia da ciência comoprodução “individual”, KUHN não considera a possível influência do poder políticoou econômico na escolha do paradigma pela comunidade científica.55 Sobre a falsa percepção de continuidade e sobre suas origens ver ocapítulo XI de A Estrutura das Revoluções Científicas.56 WOLIN, op.cit., p. 169ss.57 Cf. WOLIN, op.cit., p.174ss.58 WOLIN, op.cit., p.183-4.Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


José Crisóstomo de Souza1096 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBARBER, B. Science and the social order. Nova York: Collier,1963.DAHL, Robert. Modern political analysis. Nova Jersey: Prentice-Hall, 1963. Em português: A moderna análise política. Riode Janeiro: Lidador, 1966.FERRY, Luc, e RENAUT, Alain. Kant and Fichte. In:NewFrench Thought. Princeton Univ., 1994.KOYRÉ, Alexandre. Études newtonienes. Paris: Gallimard,1966.KOYRÉ, Alexandre. Galilée et la révolution scientifiquedu XVII Siècle. In: Etudes d’histoire da la pensée Scientifique.Paris: P.U.F., 1965. Em português: Estudos de Históriado Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense,1982.KUHN, Thomas. The structure of scientific revolutions.Chicago: Univ. of Chicago, 1970. Em português: Aestrutura das revoluções científicas. São Paulo:Perspctiva, 1976.KUHN, Thomas. Reflexões sobre os meus críticos. In: Acrítica e o desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo:Cultrix-Edusp, 1979.KUHN, Thomas. Lógica da descoberta ou psicologia daPesquisa? In: A Crítica e o desenvolvimentodo conhecimento.São Paulo: Cultrix-Edusp, 1979.LASLETT, R. Philosophy, politics and society. Oxford, 1956.LASSWELL, Harold, KAPLAN, Abraham. Power and Society.New Haven: Yale Univ. Press, 1950.LASSWELL, Harold. A linguagem da política. Brasília: Univ.de Brasília, 1982.MASTERMAN, Margareth. A natureza do paradigma. In: Acrítica e o desenvolvimento do conhecimento.São Paulo:Cultrix-Edusp, 1979.MAMENATZ, John. The use of political theory. In:Politicalsudies. Clarendon Press, 1960.v.8.POPPER, Karl. Conjectures and Refutations. Londres:Routledge, 1963.POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. Londres:Hutchinson, 1959.POPPER, Karl. A ciência normal e seus perigos. In: A críticae o desenvolvimento do conhecimento.São Paulo: Cultrix-Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999


110 José Crisóstomo de SouzaEdusp, 1979. Ed. inglesa: Criticism and the Growth ofKnowledge, Cambridge,: 1970.SKINNER, Quentin (org). As ciências humanas e seusgrandes pensadores. Lisboa: D.Quixote, 1992.WATKINS, J. Contra a ciência normal. In: A crítica e odesenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix-Edusp, 1979.WELDON, T.D. Vocabulary of politics. Londres: Harmondsworth,1953.WINCH, Peter. The idea of a social science. Londres: Routledge,1956.WOLIN, Sheldon. Paridigms and political theories. In: Paradigmsand revolutions. Indiana: Univ. of Notre Dame, 1980.Ideação, Feira de Santana, n.4, p.79-110, jul./dez. 1999

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!