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É fato que, no romance, essas relações todas não<br />
são tão esquemáticas como as apresentamos. Na verdade,<br />
nos capítulos de I a VIII, prevalece o elogio da<br />
cidade, cuja superioridade se celebra. No entanto, Zé<br />
Fernandes, por exemplo, levanta sérias objeções ao<br />
entusiasmo irrestrito de Jacinto pela urbanidade. Por<br />
outro lado, nos capítulos de IX a XVI, predomina a<br />
apologia da natureza, apresentada como superior à<br />
cidade. Mas, aqui também, o ímpeto idealizador de<br />
Jacinto é temperado com as ponderações realistas de<br />
Zé Fernandes sobre a natureza (— Meu filho, olha<br />
que eu não passo de um pequeno proprietário. Para<br />
mim não se trata de saber se a terra é linda, mas se a<br />
terra é boa.), ou com a revelação da existência de<br />
miséria entre os camponeses.<br />
Outra consideração relevante sobre o espaço,<br />
nessa obra, diz respeito à moradia do protagonista<br />
em Paris, o “202”. O prodigioso palacete apresenta-se<br />
como um microcosmo da civilização urbana. Todo<br />
seu luxo e conforto, toda parafernália mecânica, toda<br />
erudição acumulada em sua biblioteca de trinta mil<br />
volumes impressionam, à primeira vista, pela magnificência.<br />
Uma observação mais detida, contudo, impõe<br />
outra imagem — de ineficiência, inutilidade e<br />
opressão. As panes mecânicas e elétricas transtornam<br />
a vida cotidiana; os livros não se abrem; a casa tem<br />
uma atmosfera pesada, como de estufa, em que Jacinto<br />
definha solitário. No último capítulo, quando Zé<br />
Fernandes visita Paris pela derradeira vez, o “202”<br />
despovoado cristaliza-se como imagem de um museu<br />
das ilusões equivocadas de uma época de equívocos:<br />
E então, passeando através das salas, realmente<br />
me pareceu que percorria um museu de antigüidades;<br />
e que mais tarde outros homens, com uma<br />
compreensão mais pura e exata da vida e da felicidade,<br />
percorreriam, como eu, longas salas, atulhadas<br />
com os instrumentos da super-civilização, e, como<br />
eu, encolheriam desdenhosamente os ombros<br />
ante a grande ilusão que findara, agora para sempre<br />
inútil, arrumada como um lixo histórico, guardado<br />
debaixo da lona. (pp. 187-188)<br />
Estilo<br />
Na perspectiva da escola literária, A Cidade e as<br />
Serras mescla tendências estilísticas comuns na literatura<br />
da segunda metade do século XIX: Realismo,<br />
Naturalismo e Impressionismo.<br />
Do Realismo, o romance empresta, principalmente,<br />
o espírito crítico, com que Eça de Queirós<br />
castiga o francesismo da elite rural portuguesa de<br />
seu tempo. Esta, segundo se depreende da leitura<br />
atenta da obra, seduzida pelo estilo de vida diletante<br />
parisiense, seria responsável pelo abandono em que<br />
se encontravam as propriedades agrárias.<br />
Do Naturalismo, A Cidade e as Serras aproveita<br />
o gênero do romance de tese, inventado por essa<br />
tendência, para defender a superioridade da vida<br />
rural sobre a urbana. Outras características desse<br />
estilo, freqüentes na obra, apresentam-se no rebaixamento<br />
de personagens à condição de animalidade<br />
(zoomorfismo) e na exibição de elementos<br />
sórdidos ou desagradáveis (estética do feio). Observem-se<br />
as expressões negritadas, no exemplo<br />
selecionado, em que o narrador Zé Fernandes reproduz<br />
o delírio que sofreu, quando se embriagou<br />
por ter sido abandonado pela amante.<br />
Era ela! Era a Madame Colombe, que esfuziara<br />
da chama da vela, e saltara sobre o meu leito, e desabotoara<br />
o meu colete, e arrombara as minhas costelas,<br />
e toda ela, com as saias sujas, mergulhara<br />
dentro do meu peito, e abocara o meu coração, e<br />
chupava a sorvos lentos, como na Rua do Hélder, o<br />
sangue do meu coração! Então, certo da morte, ganindo<br />
pela tia Vicência, pendi do leito para mergulhar<br />
na minha sepultura, que, através da névoa fina,<br />
eu distinguia sobre o tapete — redondinha, vidrada,<br />
de porcelana e com asa. E, sobre a minha sepultura,<br />
que tão irreverentemente se assemelhava ao meu<br />
vaso, vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vomitei<br />
a lagosta. Depois, num esforço ultra-humano,<br />
com um rugido, sentindo que, não somente toda a<br />
entranha, mas a alma se esvaziava toda, vomitei<br />
Madame Colombe! (p. 61)<br />
A técnica impressionista manifesta-se especialmente<br />
nas descrições da natureza campestre, em<br />
que a captação dos fatos exteriores pelas sensações<br />
é apresentada conforme a percepção imediata deles,<br />
sem intervenção de análise racional. Observe-se, no<br />
texto selecionado como exemplo, o emprego dos<br />
verbos rolar, desabar, subir e embeber, destacados<br />
em negrito. No primeiro caso, o narrador, que se encontra<br />
num trem em movimento, em vez de dizer que<br />
as rodas deste rolavam sobre os trilhos, transmite ao<br />
leitor a sensação pessoal imediata de estar ele a rolar;<br />
no segundo, o rápido deslocamento do olhar do<br />
narrador, de alto a baixo, cria a impressão de que os<br />
penhascos desabam; no terceiro, ocorre um movimento<br />
inverso, quando o olhar percorre velozmente<br />
o terreno de topografia ascendente, as oliveiras plantadas<br />
nele transmitem a sensação fugaz de estarem a<br />
subir pela encosta.<br />
Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos<br />
que desabavam até largos socalcos cultivados<br />
de vinhedo. Embaixo, numa esplanada, branquejava<br />
uma casa nobre, de opulento repouso, com a<br />
capelinha muito caiada entre um laranjal maduro.<br />
Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava<br />
contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco<br />
lento carregado de pipas. Para além, outros socalcos,<br />
de um verde pálido de resedá, com oliveiras apoucadas<br />
pela amplidão dos montes, subiam até outras<br />
penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas,<br />
na fina abundância do azul. (p. 101)<br />
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