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Depois filosofava, sem descontinuar, com o entusiasmo<br />
dum convertido, ávido de converter:<br />
— Como a inteligência aqui se liberta, hem? E como<br />
tudo é animado duma vida forte e profunda...!<br />
Dizes tu agora, Zé Fernandes, que não há aqui pensamento...<br />
— Eu?! Eu não digo nada, Jacinto...<br />
— Pois é uma maneira de refletir muito estreita e<br />
muito grosseira...<br />
— Ora essa! Mas eu...<br />
— Não, não percebes. A vida não se limita a pensar,<br />
meu caro doutor...<br />
— Que não sou!<br />
— A vida é essencialmente vontade e movimento:<br />
e naquele pedaço de terra, plantado de milho, vai<br />
todo um mundo de impulsos, de forças que se revelam,<br />
e que atingem a sua expressão suprema, que é a<br />
forma. Não, essa tua filosofia está ainda extremamente<br />
grosseira...<br />
— Irra! mas eu não...<br />
—E depois, menino, que inesgotável, que miraculosa<br />
diversidade de formas... E todas belas!<br />
Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu<br />
reparasse com reverência. Na natureza nunca eu<br />
descobriria um contorno feio ou repetido! Nunca<br />
duas folhas de hera, que, na verdura ou recorte, se<br />
assemelhassem! Na cidade, pelo contrário, cada casa<br />
repete servilmente a outra casa; todas as faces reproduzem<br />
a mesma indiferença ou a mesma inquietação;<br />
as idéias têm todas o mesmo valor, o mesmo<br />
cunho, a mesma forma, como as libras; e até o que<br />
há mais pessoal e íntimo, a ilusão, é em todos idêntica,<br />
e todos a respiram, e todos se perdem nela como<br />
no mesmo nevoeiro... A mesmice — eis o horror das<br />
cidades! (pp. 125-126)<br />
Jacinto pensava ficar em Tormes no máximo<br />
dois meses, até a inauguração da igrejinha e trasladamento<br />
dos restos dos antepassados. No entanto,<br />
foi alongando sua estada, cada vez mais entusiasmado<br />
com sua quinta, para a qual tinha grandes planos.<br />
Após as primeiras semanas contemplativas, Jacinto<br />
começou a manifestar desejo de ação. Inexperiente<br />
nos trabalhos rurais, o fidalgo sonhava<br />
transformar sua rústica serra numa propriedade<br />
moderna, aproveitando os largos espaços inativos<br />
com um imenso prado, onde se criaria gado de raça,<br />
para fabricação de queijos finos. Para realização<br />
disso, do modo sofisticado que Jacinto pensava, seria<br />
necessário um vultoso investimento, que elevaria os<br />
custos de produção a ponto de trazer enorme prejuízo.<br />
O administrador de Tormes, Silvério, opunha-se<br />
aos sonhos mirabolantes do patrão, argumentando<br />
que, se ele quisesse gastar tanto dinheiro,<br />
que o fizesse em outras propriedades que possuía,<br />
espalhadas por Portugal, em que as terras eram de<br />
qualidade superior.<br />
Mas, infelizmente para a quietação do Silvério, Jacinto<br />
lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes na sua<br />
rude serra. Era realmente como se o tivessem plantado<br />
de estaca naquele antiquíssimo chão, de onde brotara a<br />
sua raça, e o antiquíssimo humo 8 refluísse e o penetrasse<br />
todo, e o andasse transformando num Jacinto<br />
rural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão,<br />
como as árvores que ele tanto amava.<br />
E depois, o que o prendia à serra era o ter nela<br />
encontrado o que na cidade, apesar da sua sociabilidade,<br />
não encontrara nunca, — dias tão cheios, tão<br />
deliciosamente ocupados, de um tão saboroso interesse,<br />
que sempre penetrava neles, como numa festa<br />
ou numa glória. (p. 139)<br />
Contudo, os planos de Jacinto ficavam no papel,<br />
devido à resistência respeitosa do administrador<br />
Silvério, que sempre dava um bom motivo<br />
para não se iniciarem as reformas.<br />
Quando Jacinto ralhava com Zé Fernandes, porque<br />
este não se enlevava com os encantos da natureza,<br />
o amigo advertia:<br />
— Meu filho, olha que eu não passo de um pequeno<br />
proprietário. Para mim não se trata de saber<br />
se a terra é linda, mas se a terra é boa. Olha o que<br />
diz a Bíblia! “Trabalharás a quinta com o suor do teu<br />
rosto!” E não diz “contemplarás a quinta com o enlevo<br />
da tua imaginação!” (p. 142)<br />
Com o passar do tempo, Jacinto foi se familiarizando<br />
com os trabalhos rurais, sentindo prazer em<br />
conversar com os camponeses. Numa manhã de<br />
chuva tempestuosa, porém, ao abrigar-se na casa de<br />
um empregado seu, ficou chocado com a miséria que<br />
encontrou. Informado das condições precárias dos<br />
trabalhadores, que desconhecia, ordenou ao administrador<br />
Silvério a construção de habitações decentes<br />
para todos e a revisão de contratos de trabalho,<br />
no intuito de melhorar a renda dos empregados.<br />
A quinta de Tormes torna-se um imenso canteiro<br />
de obras. Jacinto, além de habitações aos trabalhadores,<br />
estava determinado a construir uma escola,<br />
uma creche para os bebês, uma biblioteca e a<br />
instalar uma farmácia, que atenderia toda região. A<br />
popularidade do fidalgo torna-se enorme, sendo<br />
reconhecido como um grande benfeitor dos pobres.<br />
João Torrado, um velho ermitão, figura folclórica,<br />
meio adivinho, afirmava a todos que Jacinto era D.<br />
Sebastião (sebastianismo), que voltara.<br />
HHaappppyy EEnndd<br />
Jacinto, indo a Guiães, por ocasião do aniversário<br />
de Zé Fernandes, hospedou-se na casa dele e<br />
conheceu, finalmente, a tia do amigo, Vicência, que<br />
ficou encantada de sua pessoa. Na festa, Jacinto foi<br />
8 Matéria orgânica de grande importância para a constituição<br />
e regeneração do solo.<br />
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